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Iracema sem chão 1. Sou Auritha Tabajara Nascida longe da praia, Fascinada pelas notas E Melodia da jandaia. No Ceará foi à festa Meu leito foi a floresta Na companhia de Maia. Minha essência ancestral Me encontra cordelizando, Em amparo faz-me existir, Ao mundo eu vou contando, Que minha forma de amar, Ninguém vai colonizar, Da arte vou me armando. Filha da mãe Natureza Mulher indígena eu sou, Com a força feminina Cinco século atravessou, Cada vez mais sábia e forte, Seu medo não é morte Que o preconceito gerou. Hoje essa mulher levanta Com letra e voz autoral, Contra toda violência, Por um amor ancestral, De um corpo esvaziado, Usado sem ser amado, Na lei do homem normal. E baseado na bíblia, O homem veio ditar, Sua fé diz que é pecado, O mesmo sexo amar, E com massacre e doença, Nossa língua e nossa crença, Tentaram assassinar. Essa força feminina, Traz um sagrado poder, Pois nascemos da floresta,, E com ela vamos morrer, É nossa ancestralidade E nossa diversidade, Que nos faz sobreviver. Minha avó é referência, Desde o tempo de menina, Até me tornar mulher, Nas histórias que ela ensina, Estou pronta para voar, A minha forma de amar Raiz que nunca termina. Fui casada tive filhos, Quatro para variar, Vitória Kawenne Cauê, Ana vem comigo ficar, Vitória e Cauê morreram, E para o meu desespero, Kawenne não sei onde está. Eu são sou como Iracema, A de José de Alencar, Virgem dos lábios de mel, Sem história pra lembrar, Trago comigo a memória, Sou Auritha com história, Mulher livre para amar. Sou lésbia, sou indígena, Resistindo a violência Nordestina, feminista, Sou mulher de resistência Ao regime a dominação, Vivo a descriminação Desigualdade e persistência. O grão 3. 1º Vou contar lhe um segredo Que aprendi como enredo Recitado em poesia De um grão que foi plantado Cultivado e germinado Que se pratica todo dia. Esse grão vem da memória Transformado em história Para nossa educação Um velho quem me contou Sobre o grão que ele plantou No despertar da tradição. 3º Eu fiquei imaginando Na cabeça martelando O que esse grão significa? Será bom para comer? Pra ninguém queria dizer Vai que esse grão não fica! 4º Fui perguntar lá no rio Mas ele estava com frio E não quis me responder. Voltei até o curral Mas não tinha um animal Para algo me dizer. 5º Fui perguntar pra jandaia Que se banhava na praia Pro lado de Fortaleza, Ela me mandou voltar Os ancestrais escutar Ouvir a mãe natureza. 6º Aí me veio a lembrança No meu tempo de infância Que os velhos me diziam Que prestasse atenção Na chamada educação Não deixar cuca vazia. 7º Eu ouço história na aldeia E para que outros leiam Escrevo aqui no papel. É o grão que estou plantando Outra geração deixando Nesta forma de cordel. 8º mesmo sendo na cidade Se educar com humildade Da raiz não esquecer, Falar o suficiente De tudo ser consciente Não deixar se enlouquecer. 9º Esse grão é valioso Para alguns misterioso É preciso transformar Plante na sua cabeça Um grão que te esclareça Te ajude a rememorar. 10º Na aldeia a gente dança Aprendi desde criança O maracá balançar, Entendi o que é respeito Porque sabe o efeito Na hora de educar. 11º Na aldeia tudo é arte Tudo também se reparte É cultura festejar Pinta o corpo de urucum Veste com palha tucum Em tudo vale alegrar. 12º Damos bom dia ao sol Como flor de girassol Tudo vive em harmonia Na debulha de feijão O cuidado com o grão Que se tem a cada dia. 13º Tudo com habilidade Firme na ancestralidade Ou na dança do toré, O vento é nosso irmão Lá não há separação Entre o homem e o igarapé. 14º Na aldeia tudo cresce A cultura permanece Tudo é lindo como um grão Grão de arroz, de trigo , aveia Milho, café na aldeia Grandes roças de feijão. 15º Joga bola a criançada Tudo em roda e animada E contar quando crescer Ser contador de história Ter presente na memória O canto ao anoitecer. 16º Eu ouço história na aldeia E para que outros leia Escrevo aqui no papel. É o grão que estou plantando Outra geração deixando Nesta forma de cordel. Sou Auritha 2. cordelista Sou Auritha cordelista Nascida no Ceará Sou do povo Tabajara Onde canta o sabiá La da aldeia umburana Minha terra é soberana Pelo toque do maracá. A vida lá no nordeste, Não se vive com fineza, Não aperrei pra nada, Alguns chamam de pobreza, Mas se exibe no face book Nas praias de Fortaleza. Povo preconceituoso, ‘Inda’ mais com nordestino Dizendo que somos burros, Que nós tem pouco ensino, Na mão de uma tabajara, Maracá é coisa rara, Do lado de um granfino Dizem: O índio que é índio mermo A oca é a moradia, Anda nu comendo caça Numa rede noite e dia, Não pode usar internet Porque é tecnologia. Pois eu sou é nordestina Tenho orgulho de dizer Sou tabajara ando vestida Como o que for pra comer Uso celular, internet Porque trabalhei pra ter. Antes do céu cair 4. Então, lá pelas tantas ele acordou dormindo. Levantou-se ficando na cama e foi trocando o sentido da vida, pois mudara o mês. Não tinha rotina, tipo ir à padaria esperando ver um alguém especial. Foi na janela, tocou o sino e foi caminhar nas folhas serenadas pois o sol estava ali mas não estava. Estava frio e ele negou-se à preguiça rolando com os cachorros como toda manhã brincavam. Morava agora longe de casa e não tinha tecnologia para não perder os sentidos. Buscava memória nas frutas e para as ter fazia com voluntários reparos nas casas dos patrícios e só queria o cheiro do lugar. O caju lem- brava a mãe colhendo, os mais maduros o pai cheirando a mocororó. Melancia os irmãos morenos em contraste com o vermelho vivo da fruta que ele mesmo plantara lá na capoeira. Nunca revelara seu amor por distâncias e tão remoto ficava que boatos de sua morte eram frequentes. Sempre lembrava no conjunto das memórias o dia que percebeu o chamado e não teve saída. Foi quando disse: Parentes eu vou sair. Vou sair nu e eles vão perguntar por vocês. Eles vão querer saber mais sobre vocês que sobre mim. E para eles eu vou dizer: perguntem direto a eles. Eles estão lá, no norte da Amazônia esparramados no pé do Monte Roraima. Eles estão todos lá, são sobreviventes. Se felizes ou tristes, perguntem a eles. Se estão satisfeitos ou decepcionados, perguntem-lhes. Olha eles aqui ó, na arte, na foto, você os vê na geografia? Podem estar sadios ou mortos, vivos em espírito certamente estão. Vamos pesquisar na internet – GARIMPO ILEGAL MATA NA AMAZÔNIA. Eu poderia te enrolar, desconversar, te contar mitos e fazer desenhos coloridos mas não seria eu. Poderia falar de qualquer coisa, mas eu não vejo TV, não discuto politicagem, nem gosto de futebol. Eu só insinuarei: Talvez eles sejam como vocês. Tipo assim: Os açougueiros não se entendem porque têm facas. Os ignorantes têm insultos. Os amores têm seus ciúmes. Os deuses também querem o melhor aos seus e por aí em diante. Talvez falte diálogo, entendimento, trabalho, compreensão e compromisso. Pode faltar mui- tas coisas para quem muito procura mas o que aparece é a felicidade, se sobressai. O povo tem uma tendência à felicidade. E a desgraça passa e o resistir torna aquilo mais vida. Essas coisas boas de ver, fazer e sentir como a comida quente para a hora de esquecer o mundo e ver-se refletido no fundo da colher de sopa verde. Muitas coisas boas que desaparecem forçadamente todos os dias, podem ser as aventuras, os mundos possíveis, os mundos reservas. O índio tem flechas e ainda tem floresta, conhecimento. Então, vamos encher o nosso livro de prazer e não de dor e dar à ciência. Vamos estar também com eles nas estantes, nas livrarias, encaixotados como mercadoria sem venda. Vamos ser bibliografia, papel pros brancos, fonte para seus filhos pois queremos fazer a grande troca. Não, não é bem isso. Estamos longe ainda de modelar os pés firmes do novo tempo, ele é gigante, vai precisar de magia e encantamento, a pureza do saber. Tudo parece bem mas, os bens de uns são as ruinas de outros. Os minutos passam, a própria eternidade. Ninguém vê ou sente a agonia banalizada. Nessa primeira abordagem já está claro? Claro, não vou contar o segredo de ninguém. Minha mãe nunca me disse: não fale com estranhos. Ela sabia. Todos nós somos estranhos. Então, seria melhor não dizer nada, pois ela sabia, logo eu saberia. Hoje estou aqui e olha, digo que gosto mesmo dos estranhos. Eles são os nossos reflexos e você sabe, reflexos encantam e haja vida para buscá-los. Direi eles estão lá, e eles irão pra ver se é mesmo tudo verdade ou se sou só mesmo um bom mentiroso. O despertador tocou. Trocamos nossa cultura, não levantamos mais de madrugada para a grande aula da rede com o sábio pajé. – Sr. Jaider Esbell – O seu embarque é o próximo! – Eu: muito obrigado! – Vamos gente! Claro, já tentaram te falar. Talvez ainda não dessa forma, nesse tempo, com esses recursos e exem- plos todos mas de certo, já tentaram te falar. Se tudo é mesmo interpretação, vamos interpretar. Se tudo é semiótica, paranoia e sensacionalismo, vamos despolemizar o vácuo. Mas, pelos olhos de quem, se cada coração é uno? Cruzando, juntando tudo, não fica exatamente um todo. Soltando tudo, não fica, tampouco, brechas, espaços vazios, coisa alguma sem importância. Vamos brincar com as palavras antes do céu cair. Vamos extrapolar os signos, transpor o limite do além e capturar de volta o nosso sentido. Arte, a mais poderosa linguagem universal. A arte é absoluta sobre todas as coisas, sobre tudo. É um arcabouço sem arestas, sem fronteiras, sem lei. A arte vem do pensamento, a ideia inicial sobre o grande ato criador. A arte vem antes da fonte da criatividade, ela é o fluxo vital do artista. Deus em si criou-se da arte. Todos os mistérios e obviedades vêm da arte. O falar, a forma de gritar sentimentos e verbalizar o oculto também faz revelar o caráter. A escrita tem muito poder, é a arte da desconstrução. A ligação dos mais usuais recursos de acesso ao conhecimento. Práticas culturais e tecnologias distribuídas entre os povos no pequeno corpo do mundo é a integração conversada. São estas as estacas iniciais para segurar o céu. Há generosidade da parte da natureza em tudo. Em tudo ela nos permite; viver aos nossos modos nos mais diversos ambientes. Na densa floresta passeamos em sua sombra, em grandes montanhas estamos nós adaptados, também nos desertos e em cam- pos alagadiços triunfamos. Cruzamos mares revoltos para levar e trazer e esse eterno procurar nos tem deixado vazios e sequiosos. Nossas frustrações extravasam nosso campo limite e estendemos destruição muito além de nosso querer e de nossas consciências. O lixo físico e as energias desvia- das como ruídos são de fato reais e nos cobram como filhos. O grande diálogo. O grande pacto, as grandes alianças, os estudos, as obediências, as penitências e sacrifícios devem voltar para a roda da conversa. Brincando, os homens foram muito além e pareciam tão dispersos nos campos onde antes corriam os bisões, as chitas e os leões. Estávamos tão dispersos que só um grito universal quente, vindo do lado inesperado, faria algum efeito nele, o nosso outro eu adormecido. Longe do merecimen- to, pensamos em vingança, mas tão fracos em nossa pequenez não movemos a balança com nossa indiferença sobre o grande ato espetacular que é a vida. Um vento cruviano, um desses tornados que se arrebatam da grande mãe dos ventos, a nossa Cruviana, sai a avisar. Um desses ventos-entidade foi escolhido aqui, no meio das montanhas, no terreiro de Makunaima. Makuxis saíram cedo capturar o vento cruviano para levar o grito novamente ao mundo. Foram. Foram na sequência da noite pois nessa noite não deveriam dormir, mas vigiar. Mas o vento não era uma coisa só, mas um monte de curumins pescando, caçando e vivendo por conta própria desde sempre. Voluntariamente já vinham eles e toparam-se no caminho. Quando os outros parentes perceberam que os curumins eram o vento cruviano, recolheram suas armadilhas e abriram ala para o vento passar. Era madrugada, toda a vasti- dão de savana dormia. Ali havia algo parecido com paz, só que não era exatamente paz mas um esta- do letárgico de perturbação encantadora. O sereno pesava ainda mais o sono e da ponta da palha do buriti pingava uma gota de vida. Havia esperança e tempo e os curumins Makuxi saíram mais uma vez no mundo das grandes paixões. Os curumins reuniram mais umas forças, tornaram-se vento mesmo, e em redemoinho subiram para a parte mais alta do hemisfério norte, por onde deviam começar as investidas da reconstituição do aparente caos. Foram-se. A força da transformação acelerou tudo em volta, o alvorecer adiantou-se e daquele dia em diante o assunto foi esse: Antes do céu cair. Antes do céu cair passou a ser um estado de espera, algo a ser evitado, algo que te tão contraditório foi incluído em todos os circuitos, passou a estar em todas as vitrines, em todas as placas nas ruas, nos anúncios de TV, nos campos de futebol e no lanche das crianças na escola. Antes do céu cair virou grife popular e de tão popular todos queriam. Todos queriam ser popular para estar no mesmo esforço de Antes do céu cair. Antes do seu cair virou tatuagem, virou coro na igreja pois já era oração. Antes do céu cair entrou no uivo dos bichos, no latidos dos cachorros, na simbiose das coisas. Pássaros misteriosos vol- taram a ser vistos cantando a melodia. Nas áreas remotas onde os retraídos vivem era esse o mantra da manhã, do meio dia e das 6 horas da tarde. Antes do céu cair foi parar em todas as capas de jornal e todos os presidentes assinaram o grande pacto, antes mesmo do céu cair. Jaider Esbell 4 (1979) é artista, escritor e produtor cultural indígena da etnia Makuxi. Mora em Boa Vista e escreve em português. Auritha Tabajara 1 3 (1980) é escritora, contadora de histórias, cordelista e poeta da etnia Tabajara. Mora em São Paulo e escreve em português. No enxame 5. Sob uma alegre clara luzente lâmpada contraposta ao escuro do quarto está um homem num enxame de mosquitos que o irrita às vezes um pica ao menos não no alto porque em cima dele fica um chapéu na cabeça e no pescoço tem a gola do casaco às vezes um pica então o homem coça o pescoço quente o nariz quente rosto quente mas é incrivelmente lento até que a mão alenta pra coçar além isso também move a mão entre os mosquitos pra se livrar deles mas alenta mais lento do que se poderia perceber às vezes um pica o que lhe resta? às vezes ele clama “Justiça” na escuridão “Honra honestidade” “Você parece um velho molenga um idiota lerdo e besta” chia um do enxame às vezes um pica “Eu não sou velho dá pra vê-lo eu só nasci cedo demais na vida” ele resmunga às vezes um pica às vezes um pica Caras brilhantes 8. um homem anda num longo casaco preto noite adentro e mal seria visto já que é noite escura se não usasse a luz do celular pra se achar no escu- ro e se sua cara não brilhasse vez por outra chega alguém pra ele olha com con- fiança ou de lado ou sombrio ou direto pra longe uma vez vem alguém pra ele e diz “a sua cara brilha” o homem desliga o celular põe no bolso fica de mãos livres põe as duas na frente da cara e vê as mãos à luz da própria cara “a minha cara brilha” o homem anda as mãos enterradas no longo casaco preto noite adentro usa a luz da cara pra se achar no escuro uma vez vêm pra ele uma vaca e uma criança as caras delas brilham ele as vê de longe à luz das caras vindo pra ele e grita “as suas caras bri- lham” quando a vaca bufa forte e a sua cabeça forte e estólida sacode parece dispor o entorno brilhan- te pela luz da sua cara num movimento sacudido a criança se volta ao homem “as nossas caras bri- lham e quando alguém vem nós somos olhados e questionados não dá pra andarmos juntos em três noite adentro” “venha junto a gente vai se achar” a vaca a criança e o homem de casaco preto vão em três à luz das caras no escuro se familiarizam com o brilho das caras e assim se acostumam Mas que ideia 6. Ninguém na família tem fantasia a mãe não o pai zero a filha zero fantasia o filho zero fantasia ninguém tem potencial vivem a vida da família da manhã à noite e à noite vão à cama da família pra tombar Certa noite porém no sonho da filha a mãe passeia vem-lhe a ideia que ela usa um estranho louco capacete roxo de matéria especial com uma ponta imensa ela estanca com seu capacete roxo no meio da família que entrelaça os dedos pra mãe subir na trança que servirá de plataforma de lançamento Pai filho e filha seguem a mãe vai no meio de joelhos e ressuscita e assim a mãe afunda e sobe vai de joelhos e ressuscita até que basta e a mãe salta pra fora do ventre da família e corre afora além e afora até cruzar a lua que ela atravessa com seu capacete roxo pra deixar um buraco limpo no retorno acorre mais além até o ponto morto onde acaba a luz do sol no ponto morto a mãe se vira ali ela se esforça e volta até a luz dispara com capacete roxo pelo buraco da lua e vai parar no vente da família A filha cala seu sonho vivem a vida da família da manhã à noite Certa manhã porém a mãe desperta antes do marido do filho da filha “Vem-me a ideia que uso um capacete roxo com uma ponta imensa” no espanto a família aporta os preparativos da mãe mas ela estanca com capacete roxo no meio da família que seguindo suas instruções entrelaça os dedos pra mãe subir na trança Pai filho e filha seguem a mãe vai no meio de joelhos e ressuscita e assim a mãe afunda e sobe vai de joelhos e ressuscita até que basta e a mãe salta pra fora do ventre da família e corre afora além do afora até cruzar a lua que ela atravessa com seu capacete roxo acorre mais além até o ponto morto onde acaba a luz do sol “Que louco que ideia mais inebriante” ela anuncia ainda que sem ser ouvida então a família canta alto e dança em roda e festeja a imensa potência da própria raça no ponto morto a mãe se vira ali ela se esforça e volta até a luz dispara com capacete roxo pelo buraco da lua e vai parar sensata e serena no ventre da família que de todo coração a recebe e felicita Michael Fehr 5 8 (1982) é poeta e cantor suíço. Ele ganhou o prêmio nacional, e é sem duvida o melhor performer do seu país. Mora em Berna e escreve em alemão. Tradução do alemão de Guilherme Gontijo Flores 11 julho 16h: BRASA. A tradução como gesto político: Luana Almeida, Abigail Campos Leal, Ingrid Martins, Léa Meier, tatiana nascimento e aurore zachayus. Palestra e performance. 19h: Auritha Tabajara e Yumi Ito, performance, concerto. 12 julho 16h: AATI. Traduzir quíchua em Argentina, repensar os paradigmas para chegar à tradução-ação: Gabriel Torem, palestra e concerto. 20h: Simone Spoladore, Vanni Bianconi e Ricardo Aleixo que lê Jaider Esbell, performance. 13 julho 16h: Looren América Latina. Poéticas ameríndias e antigas em tradução: Iván García, Guilherme Gontijo Flores e Luciane Alves, conferência-performance. 20h: Ricardo Aleixo e Michael Fehr, performance, concerto. Gráfica: Coco Garbani Ilustração: Gil Duarte Oca Babel é um projeto de tradução e hospitalidade linguística: escritores e escritoras, tradutores e tradutoras brasileiros, suíços, argentinos e mexicanos trabalharam em duplas, escrevendo coletivamente, confrontando diferenças nas línguas e nos silêncios, compartilhando escritas, visões e vozes. Este pôster-livro é um mapa que reúne os textos seminais, os poemas-sementes a partir dos quais cresceu o diálogo entre as duplas de autores. Escritos ou traduzidos para o português, ricos em influências tupis, suíço-alemãs, italianas, inglesas, makuxis, japonesas, quíchuas e espanholas, estes textos desenham agora um mapa que passa por florestas de palavras, ramificações de imaginários e rimas como espinhos, e mantêm os traços de uma série de trocas criativas e pessoais. Este mapa também passa por Paraty onde, com parceria da FLIP+, Oca Babel é uma casa que hospeda as performances das duplas de autores. Oca Babel trabalha com escritores de origem indígena, africana, de outras migrações ou outras margens. As margens precisam encontrar formas de serem ouvidas: as hegemonias precisam ouvi-las com a mesma urgência. um besouro de corpo bem vermelho se senta perfeito no bico de um pássaro igualmente bem vermelho o pássaro é azul mas o bico é vermelho e agora as asas do besouro são transparentes e iridescem e como a luz brinca a iri- descência das asas do besouro tem um efeito visual na ca- beça do pássaro e assim a cabeça azul parece se mexer como se movida por uma razão mas é óbvio que não pas- sa de um efeito que evapora assim que o besouro estica as asas e zumbindo voa o pássaro ficou quieto por muito tempo mas agora com toda força farfalhando sacode as penas de esplendor azul e voa também 7. Auritha Tabajara 1 3 Jaider Esbell 4 Michael Fehr 5 8 Ricardo Aleixo 9 14 Simone Spoladore 23 Vanni Bianconi 15 19 Yumi Ito 20 22 Estes e outros textos, em original e em tradução para outras línguas, incluindo traduções inéditas em makuxi e quíchua, podem ser encontrados na revista multilíngue on-line: www.specimen.press OCA BABEL projeto de escrita coletiva e multilíngue 11 13 julho Paraty Rua da Lapa 375 Centro Histórico Ver o programa aqui: www.babelfestival.com www.specimen.press e nas redes sócias do festival Babel e da revista on-line Specimen Babel Festival di letteratura e traduzione Bellinzona BRASA – a tradução como gesto político

Mas que ideia 11 julho OCA BABEL projeto de Luana Almeida, … · 2019-07-09 · 3º Eu fiquei mi agni ando Na cabeça marteal ndo O que esse grão sgi nfiica? ... Grão de arroz,

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Page 1: Mas que ideia 11 julho OCA BABEL projeto de Luana Almeida, … · 2019-07-09 · 3º Eu fiquei mi agni ando Na cabeça marteal ndo O que esse grão sgi nfiica? ... Grão de arroz,

Iracema sem chão 1.

Sou Auritha TabajaraNascida longe da praia,Fascinada pelas notasE Melodia da jandaia.No Ceará foi à festaMeu leito foi a florestaNa companhia de Maia.

Minha essência ancestralMe encontra cordelizando,Em amparo faz-me existir,Ao mundo eu vou contando,Que minha forma de amar,Ninguém vai colonizar,Da arte vou me armando.Filha da mãe NaturezaMulher indígena eu sou,Com a força femininaCinco século atravessou,Cada vez mais sábia e forte,Seu medo não é morteQue o preconceito gerou.

Hoje essa mulher levantaCom letra e voz autoral,Contra toda violência,Por um amor ancestral,De um corpo esvaziado,Usado sem ser amado,Na lei do homem normal.

E baseado na bíblia,O homem veio ditar,Sua fé diz que é pecado,O mesmo sexo amar,E com massacre e doença,Nossa língua e nossa crença,Tentaram assassinar.

Essa força feminina,Traz um sagrado poder,Pois nascemos da floresta,,E com ela vamos morrer,É nossa ancestralidadeE nossa diversidade,Que nos faz sobreviver.

Minha avó é referência,Desde o tempo de menina,Até me tornar mulher,Nas histórias que ela ensina,Estou pronta para voar,A minha forma de amarRaiz que nunca termina.

Fui casada tive filhos,Quatro para variar,Vitória Kawenne Cauê,Ana vem comigo ficar,Vitória e Cauê morreram,E para o meu desespero,Kawenne não sei onde está.

Eu são sou como Iracema,A de José de Alencar,Virgem dos lábios de mel,Sem história pra lembrar,Trago comigo a memória,Sou Auritha com história,Mulher livre para amar.

Sou lésbia, sou indígena,Resistindo a violênciaNordestina, feminista,Sou mulher de resistênciaAo regime a dominação,Vivo a descriminaçãoDesigualdade e persistência.

O grão 3.

1º Vou contar lhe um segredoQue aprendi como enredoRecitado em poesiaDe um grão que foi plantadoCultivado e germinadoQue se pratica todo dia.

2º Esse grão vem da memóriaTransformado em históriaPara nossa educaçãoUm velho quem me contouSobre o grão que ele plantouNo despertar da tradição.

3º Eu fiquei imaginandoNa cabeça martelandoO que esse grão significa?Será bom para comer?Pra ninguém queria dizerVai que esse grão não fica!

4º Fui perguntar lá no rioMas ele estava com frioE não quis me responder.Voltei até o curralMas não tinha um animalPara algo me dizer.

5º Fui perguntar pra jandaiaQue se banhava na praiaPro lado de Fortaleza,Ela me mandou voltarOs ancestrais escutarOuvir a mãe natureza.

6º Aí me veio a lembrançaNo meu tempo de infânciaQue os velhos me diziamQue prestasse atençãoNa chamada educaçãoNão deixar cuca vazia.

7º Eu ouço história na aldeiaE para que outros leiamEscrevo aqui no papel.É o grão que estou plantandoOutra geração deixandoNesta forma de cordel.

8º mesmo sendo na cidadeSe educar com humildadeDa raiz não esquecer,Falar o suficienteDe tudo ser conscienteNão deixar se enlouquecer.

9º Esse grão é valiosoPara alguns misteriosoÉ preciso transformarPlante na sua cabeçaUm grão que te esclareçaTe ajude a rememorar.

10º Na aldeia a gente dançaAprendi desde criançaO maracá balançar,Entendi o que é respeitoPorque sabe o efeitoNa hora de educar.

11º Na aldeia tudo é arteTudo também se reparteÉ cultura festejarPinta o corpo de urucumVeste com palha tucumEm tudo vale alegrar.

12º Damos bom dia ao solComo flor de girassolTudo vive em harmoniaNa debulha de feijãoO cuidado com o grãoQue se tem a cada dia.

13º Tudo com habilidadeFirme na ancestralidadeOu na dança do toré,O vento é nosso irmãoLá não há separaçãoEntre o homem e o igarapé.

14º Na aldeia tudo cresceA cultura permaneceTudo é lindo como um grãoGrão de arroz, de trigo , aveiaMilho, café na aldeiaGrandes roças de feijão.

15º Joga bola a criançadaTudo em roda e animadaE contar quando crescerSer contador de históriaTer presente na memóriaO canto ao anoitecer.

16º Eu ouço história na aldeiaE para que outros leiaEscrevo aqui no papel.É o grão que estou plantandoOutra geração deixandoNesta forma de cordel.

Sou Auritha 2. cordelistaSou Auritha cordelistaNascida no CearáSou do povo TabajaraOnde canta o sabiáLa da aldeia umburanaMinha terra é soberanaPelo toque do maracá.

A vida lá no nordeste,Não se vive com fineza,Não aperrei pra nada,Alguns chamam de pobreza,Mas se exibe no face bookNas praias de Fortaleza.

Povo preconceituoso,‘Inda’ mais com nordestinoDizendo que somos burros,Que nós tem pouco ensino,Na mão de uma tabajara,Maracá é coisa rara,Do lado de um granfino

Dizem: O índio que é índio mermoA oca é a moradia,Anda nu comendo caçaNuma rede noite e dia,Não pode usar internetPorque é tecnologia.

Pois eu sou é nordestinaTenho orgulho de dizerSou tabajara ando vestidaComo o que for pra comerUso celular, internetPorque trabalhei pra ter.

Antes do céu cair 4.

Então, lá pelas tantas ele acordou dormindo. Levantou-se ficando na cama e foi trocando o sentido da vida, pois mudara o mês. Não tinha rotina, tipo ir à padaria esperando ver um alguém especial. Foi na janela, tocou o sino e foi caminhar nas folhas serenadas pois o sol estava ali mas não estava. Estava frio e ele negou-se à preguiça rolando com os cachorros como toda manhã brincavam. Morava agora longe de casa e não tinha tecnologia para não perder os sentidos. Buscava memória nas frutas e para as ter fazia com voluntários reparos nas casas dos patrícios e só queria o cheiro do lugar. O caju lem-brava a mãe colhendo, os mais maduros o pai cheirando a mocororó. Melancia os irmãos morenos em contraste com o vermelho vivo da fruta que ele mesmo plantara lá na capoeira. Nunca revelara seu amor por distâncias e tão remoto ficava que boatos de sua morte eram frequentes. Sempre lembrava no conjunto das memórias o dia que percebeu o chamado e não teve saída. Foi quando disse: Parentes eu vou sair. Vou sair nu e eles vão perguntar por vocês. Eles vão querer saber mais sobre vocês que sobre mim. E para eles eu vou dizer: perguntem direto a eles. Eles estão lá, no norte da Amazônia esparramados no pé do Monte Roraima. Eles estão todos lá, são sobreviventes. Se felizes ou tristes, perguntem a eles. Se estão satisfeitos ou decepcionados, perguntem-lhes. Olha eles aqui ó, na arte, na foto, você os vê na geografia? Podem estar sadios ou mortos, vivos em espírito certamente estão. Vamos pesquisar na internet – GARIMPO ILEGAL MATA NA AMAZÔNIA. Eu poderia te enrolar, desconversar, te contar mitos e fazer desenhos coloridos mas não seria eu. Poderia falar de qualquer coisa, mas eu não vejo TV, não discuto politicagem, nem gosto de futebol. Eu só insinuarei: Talvez eles sejam como vocês. Tipo assim: Os açougueiros não se entendem porque têm facas. Os ignorantes têm insultos. Os amores têm seus ciúmes. Os deuses também querem o melhor aos seus e por aí em diante. Talvez falte diálogo, entendimento, trabalho, compreensão e compromisso. Pode faltar mui-tas coisas para quem muito procura mas o que aparece é a felicidade, se sobressai. O povo tem uma tendência à felicidade. E a desgraça passa e o resistir torna aquilo mais vida. Essas coisas boas de ver, fazer e sentir como a comida quente para a hora de esquecer o mundo e ver-se refletido no fundo da colher de sopa verde. Muitas coisas boas que desaparecem forçadamente todos os dias, podem ser as aventuras, os mundos possíveis, os mundos reservas. O índio tem flechas e ainda tem floresta, conhecimento. Então, vamos encher o nosso livro de prazer e não de dor e dar à ciência. Vamos estar também com eles nas estantes, nas livrarias, encaixotados como mercadoria sem venda. Vamos ser bibliografia, papel pros brancos, fonte para seus filhos pois queremos fazer a grande troca. Não, não é bem isso. Estamos longe ainda de modelar os pés firmes do novo tempo, ele é gigante, vai precisar de magia e encantamento, a pureza do saber. Tudo parece bem mas, os bens de uns são as ruinas de outros. Os minutos passam, a própria eternidade. Ninguém vê ou sente a agonia banalizada. Nessa primeira abordagem já está claro? Claro, não vou contar o segredo de ninguém. Minha mãe nunca me disse: não fale com estranhos. Ela sabia. Todos nós somos estranhos. Então, seria melhor não dizer nada, pois ela sabia, logo eu saberia. Hoje estou aqui e olha, digo que gosto mesmo dos estranhos. Eles são os nossos reflexos e você sabe, reflexos encantam e haja vida para buscá-los. Direi eles estão lá, e eles irão pra ver se é mesmo tudo verdade ou se sou só mesmo um bom mentiroso. O despertador tocou. Trocamos nossa cultura, não levantamos mais de madrugada para a grande aula da rede com o sábio pajé. – Sr. Jaider Esbell – O seu embarque é o próximo! – Eu: muito obrigado! – Vamos gente!Claro, já tentaram te falar. Talvez ainda não dessa forma, nesse tempo, com esses recursos e exem-plos todos mas de certo, já tentaram te falar. Se tudo é mesmo interpretação, vamos interpretar. Se tudo é semiótica, paranoia e sensacionalismo, vamos despolemizar o vácuo. Mas, pelos olhos de quem, se cada coração é uno? Cruzando, juntando tudo, não fica exatamente um todo. Soltando tudo, não fica, tampouco, brechas, espaços vazios, coisa alguma sem importância. Vamos brincar com as palavras antes do céu cair. Vamos extrapolar os signos, transpor o limite do além e capturar de volta o nosso sentido. Arte, a mais poderosa linguagem universal. A arte é absoluta sobre todas as coisas, sobre tudo. É um arcabouço sem arestas, sem fronteiras, sem lei. A arte vem do pensamento, a ideia inicial sobre o grande ato criador. A arte vem antes da fonte da criatividade, ela é o fluxo vital do artista. Deus em si criou-se da arte. Todos os mistérios e obviedades vêm da arte. O falar, a forma de gritar sentimentos e verbalizar o oculto também faz revelar o caráter. A escrita tem muito poder, é a arte da desconstrução. A ligação dos mais usuais recursos de acesso ao conhecimento. Práticas culturais e tecnologias distribuídas entre os povos no pequeno corpo do mundo é a integração conversada. São estas as estacas iniciais para segurar o céu. Há generosidade da parte da natureza em tudo. Em tudo ela nos permite; viver aos nossos modos nos mais diversos ambientes. Na densa floresta passeamos em sua sombra, em grandes montanhas estamos nós adaptados, também nos desertos e em cam-pos alagadiços triunfamos. Cruzamos mares revoltos para levar e trazer e esse eterno procurar nos tem deixado vazios e sequiosos. Nossas frustrações extravasam nosso campo limite e estendemos destruição muito além de nosso querer e de nossas consciências. O lixo físico e as energias desvia-das como ruídos são de fato reais e nos cobram como filhos. O grande diálogo. O grande pacto, as grandes alianças, os estudos, as obediências, as penitências e sacrifícios devem voltar para a roda da conversa. Brincando, os homens foram muito além e pareciam tão dispersos nos campos onde antes corriam os bisões, as chitas e os leões. Estávamos tão dispersos que só um grito universal quente, vindo do lado inesperado, faria algum efeito nele, o nosso outro eu adormecido. Longe do merecimen-to, pensamos em vingança, mas tão fracos em nossa pequenez não movemos a balança com nossa indiferença sobre o grande ato espetacular que é a vida. Um vento cruviano, um desses tornados que se arrebatam da grande mãe dos ventos, a nossa Cruviana, sai a avisar. Um desses ventos-entidade foi escolhido aqui, no meio das montanhas, no terreiro de Makunaima. Makuxis saíram cedo capturar o vento cruviano para levar o grito novamente ao mundo. Foram. Foram na sequência da noite pois nessa noite não deveriam dormir, mas vigiar. Mas o vento não era uma coisa só, mas um monte de curumins pescando, caçando e vivendo por conta própria desde sempre. Voluntariamente já vinham eles e toparam-se no caminho. Quando os outros parentes perceberam que os curumins eram o vento cruviano, recolheram suas armadilhas e abriram ala para o vento passar. Era madrugada, toda a vasti-dão de savana dormia. Ali havia algo parecido com paz, só que não era exatamente paz mas um esta-do letárgico de perturbação encantadora. O sereno pesava ainda mais o sono e da ponta da palha do buriti pingava uma gota de vida. Havia esperança e tempo e os curumins Makuxi saíram mais uma vez no mundo das grandes paixões. Os curumins reuniram mais umas forças, tornaram-se vento mesmo, e em redemoinho subiram para a parte mais alta do hemisfério norte, por onde deviam começar as investidas da reconstituição do aparente caos. Foram-se. A força da transformação acelerou tudo em volta, o alvorecer adiantou-se e daquele dia em diante o assunto foi esse: Antes do céu cair. Antes do céu cair passou a ser um estado de espera, algo a ser evitado, algo que te tão contraditório foi incluído em todos os circuitos, passou a estar em todas as vitrines, em todas as placas nas ruas, nos anúncios de TV, nos campos de futebol e no lanche das crianças na escola. Antes do céu cair virou grife popular e de tão popular todos queriam. Todos queriam ser popular para estar no mesmo esforço de Antes do céu cair. Antes do seu cair virou tatuagem, virou coro na igreja pois já era oração. Antes do céu cair entrou no uivo dos bichos, no latidos dos cachorros, na simbiose das coisas. Pássaros misteriosos vol-taram a ser vistos cantando a melodia. Nas áreas remotas onde os retraídos vivem era esse o mantra da manhã, do meio dia e das 6 horas da tarde. Antes do céu cair foi parar em todas as capas de jornal e todos os presidentes assinaram o grande pacto, antes mesmo do céu cair.

Jaider Esbell 4(1979) é artista, escritor e produtor cultural indígena da etnia Makuxi. Mora em Boa Vista e escreve em português.

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No enxame 5.

Sob uma alegreclara luzentelâmpadacontraposta ao escuro do quartoestá um homem num enxame de mosquitosque o irritaàs vezes um picaao menos não no altoporque em cima dele fica um chapéuna cabeçae no pescoço tem a gola do casacoàs vezes um picaentão o homem coça o pescoço quenteo nariz quenterosto quentemas é incrivelmente lentoaté que a mão alentapra coçaralém isso também move a mão entre os mosquitospra se livrar delesmas alenta mais lentodo que se poderia perceberàs vezes um picao que lhe resta?às vezes ele clama“Justiça”na escuridão“Honrahonestidade”“Você parece um velho molengaum idiota lerdo e besta”chia um do enxameàs vezes um pica“Eu não sou velhodá pra vê-loeu só nasci cedo demais na vida”ele resmungaàs vezes um picaàs vezes um pica

Caras brilhantes 8.

um homem anda num longo casaco preto noite adentro e mal seria visto já que é noite escura se não usasse a luz do celular pra se achar no escu-ro e se sua cara não brilhasse

vez por outra chega alguém pra ele olha com con-fiança ou de lado ou sombrio ou direto pra longe

uma vez vem alguém pra ele e diz “a sua cara brilha”

o homem desliga o celular põe no bolso fica de mãos livres põe as duas na frente da cara e vê as mãos à luz da própria cara “a minha cara brilha”

o homem anda as mãos enterradas no longo casaco preto noite adentro usa a luz da cara pra se achar no escuro

uma vez vêm pra ele uma vaca e uma criança as caras delas brilham ele as vê de longe à luz das caras vindo pra ele e grita “as suas caras bri-lham”

quando a vaca bufa forte e a sua cabeça forte e estólida sacode parece dispor o entorno brilhan-te pela luz da sua cara num movimento sacudido

a criança se volta ao homem “as nossas caras bri-lham e quando alguém vem nós somos olhados e questionados não dá pra andarmos juntos em três noite adentro” “venha junto a gente vai se achar”

a vaca a criança e o homem de casaco preto vão em três à luz das caras no escuro se familiarizam com o brilho das caras e assim se acostumam

Mas que ideia 6.

Ninguém na família tem fantasiaa mãe nãoo pai zeroa filha zero fantasiao filho zero fantasianinguém tem potencialvivem a vida da família da manhã à noitee à noite vão à cama da família pra tombar

Certa noite porém no sonho da filha a mãe passeiavem-lhe a ideiaque ela usa um estranholouco capacete roxo de matéria especial com uma ponta imensa ela estanca com seu capacete roxo no meio da famíliaque entrelaça os dedospra mãe subir na trançaque servirá de plataforma de lançamentoPaifilho e filha seguema mãe vai no meiode joelhos e ressuscitae assim a mãe afunda e sobevai de joelhos e ressuscitaaté que basta e a mãe salta pra fora do ventre da famíliae corre afora além e aforaaté cruzar a luaque ela atravessa com seu capacete roxopra deixar um buraco limpo no retornoacorre mais alématé o ponto mortoonde acaba a luz do solno ponto morto a mãe se viraali ela se esforçae volta até a luzdispara com capacete roxo pelo buraco da lua e vai parar no vente da família

A filha cala seu sonhovivem a vida da família da manhã à noite

Certa manhã porém a mãe desperta antes do maridodo filhoda filha“Vem-me a ideiaque uso um capacete roxo com uma ponta imensa”no espanto a família aporta os preparativos da mãemas ela estanca com capacete roxo no meio da famíliaque seguindo suas instruções entrelaça os dedospra mãe subir na trançaPaifilho e filha seguema mãe vai no meiode joelhos e ressuscitae assim a mãe afunda e sobevai de joelhos e ressuscitaaté que basta e a mãe salta pra fora do ventre da famíliae corre afora além do aforaaté cruzar a luaque ela atravessa com seu capacete roxoacorre mais alématé o ponto mortoonde acaba a luz do sol“Que loucoque ideiamais inebriante”ela anunciaainda que sem ser ouvidaentão a família canta alto e dança em roda e festeja a imensa potência da própria raçano ponto morto a mãe se viraali ela se esforçae volta até a luzdispara com capacete roxo pelo buraco da lua e vai parar sensata e serena no ventre da famíliaque de todo coração a recebe e felicita

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11 julho16h: BRASA. A tradução como gesto político: Luana Almeida, Abigail Campos Leal, Ingrid Martins, Léa Meier, tatiana nascimento e aurore zachayus. Palestra e performance.

19h: Auritha Tabajara e Yumi Ito, performance, concerto.

12 julho16h: AATI. Traduzir quíchua em Argentina, repensar os paradigmas para chegar à tradução-ação: Gabriel Torem, palestra e concerto.

20h: Simone Spoladore, Vanni Bianconi e Ricardo Aleixo que lê Jaider Esbell, performance.

13 julho16h: Looren América Latina. Poéticas ameríndias e antigas em tradução: Iván García, Guilherme Gontijo Flores e Luciane Alves, conferência-performance.

20h: Ricardo Aleixo e Michael Fehr, performance, concerto.

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Oca Babel é um projeto de tradução e hospitalidade linguística: escritores e escritoras, tradutores e tradutoras brasileiros, suíços, argentinos e mexicanos trabalharam em duplas, escrevendo coletivamente, confrontando diferenças nas línguas e nos silêncios, compartilhando escritas, visões e vozes. Este pôster-livro é um mapa que reúne os textos seminais, os poemas-sementes a partir dos quais cresceu o diálogo entre as duplas de autores. Escritos ou traduzidos para o português, ricos em influências tupis, suíço-alemãs, italianas, inglesas, makuxis, japonesas, quíchuas e espanholas, estes textos desenham agora um mapa que passa por florestas de palavras, ramificações de imaginários e rimas como espinhos, e mantêm os traços de uma série de trocas criativas e pessoais.Este mapa também passa por Paraty onde, com parceria da FLIP+, Oca Babel é uma casa que hospeda as performances das duplas de autores. Oca Babel trabalha com escritores de origem indígena, africana, de outras migrações ou outras margens. As margens precisam encontrar formas de serem ouvidas: as hegemonias precisam ouvi-las com a mesma urgência.

um besouro de corpo bem vermelho se senta perfeito no bico de um pássaro igualmente bem vermelho o pássaro é azul mas o bico é vermelho e agora as asas do besouro são transparentes e iridescem e como a luz brinca a iri-descência das asas do besouro tem um efeito visual na ca-beça do pássaro e assim a cabeça azul parece se mexer como se movida por uma razão mas é óbvio que não pas-sa de um efeito que evapora assim que o besouro estica as asas e zumbindo voa o pássaro ficou quieto por muito tempo mas agora com toda força farfalhando sacode as penas de esplendor azul e voa também

7.

Auritha Tabajara 1 – 3 Jaider Esbell 4 Michael Fehr 5 – 8 Ricardo Aleixo 9 – 14 Simone Spoladore 23 Vanni Bianconi 15 – 19 Yumi Ito 20 – 22

Estes e outros textos, em original e em tradução para outras línguas, incluindo traduções inéditas em makuxi e quíchua, podem ser encontrados na revista multilíngue on-line: www.specimen.press

OCA BABELprojeto de escrita coletiva e multilíngue

11 – 13 julhoParatyRua da Lapa 375Centro Histórico

Babel 2019Festival di letteratura e traduzioneBellinzona

12 –15 settembre

babelfestival.comspecimen.press

14.

Ver o programa aqui: www.babelfestival.com www.specimen.presse nas redes sócias do festival Babel e da revista on-line Specimen

Babel 2019Festival di letteratura e traduzioneBellinzona

12 –15 settembre

babelfestival.comspecimen.press

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Babel 2019Festival di letteratura e traduzioneBellinzona

12 –15 settembre

babelfestival.comspecimen.press

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BRASA – a tradução como gesto político

Page 2: Mas que ideia 11 julho OCA BABEL projeto de Luana Almeida, … · 2019-07-09 · 3º Eu fiquei mi agni ando Na cabeça marteal ndo O que esse grão sgi nfiica? ... Grão de arroz,

Cabeça de serpente 12.

a serpente morde a própria cauda. a serpente pensa que morde a própria cauda. a serpente apenas pensa que mor-de a própria cauda. a serpente morde a própria cauda que pensa. a serpente morde a própria cauda suspensa. a ser-pente pensa que a própria cauda morde. a serpente pensa com a própria cabeça. a serpente sonha que simula o pró-prio silvo. a serpente sonha ser outra serpente que simula o próprio sonho e silva. a serpente pensa e silva selva aden-tro. a serpente sonha que pensa e no sonho pensa que as serpentes sonham. a serpente pensa que sonha e no sonho pensa o que as serpentes pensam. a serpente morde sem pensar no que pode. a serpente pensa que morde a pró-pria causa. a serpente pensa e morde em causa própria. a serpente pensa e morde apenas o que pensa. a serpente pensa que pensa e morde o que pensa. a serpente morde o que pensa e o que morde. a serpente pensa o que pensa a serpente. a serpente se pensa enquanto serpente. a ser-pente se pensa enquanto ser que pensa. a serpente pensa o que pensam as serpentes. a serpente morde o que pensa a serpente. a serpente morde o que mordem as serpentes. a serpente morde o que pode. a serpente pensa em se mor-der. a serpente morde sem pensar o que pode. a serpen-te morde sem pensar o que morde o que pode. a serpente morde o que morde. a serpente morde enquanto pode. a serpente pensa sem palavras. a serpente só não pensa a palavra serpente. a serpente só não morde a palavra ser-pente. a serpente pode o que pode sem palavras. a serpen-te morde o que pode sem medir palavras. a serpente mede de cabo a rabo a própria cabeça. a serpente emite a própria sentença. a serpente morde a própria cabeça.

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Ricardo Aleixo 9 – 14

(1960) é poeta, artista plástico, designer de som, cantor, compositor e performer. É co-fundador do Festival de Arte Negra. Mora em Belo Horizonte e escreve em português.

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tudo muda o tempo todomuda o todo tudo tempotempo o todo tudo mudamuda o tudo todo tempotempo o todo muda tudo

tempo muda o tudo todotudo todo o tempo mudatempo muda o todo tudoo tempo muda tudo todotudo muda o tempo todo

Café 23.

Um dia eu tomei um café em uma montanha e um raio explodiu dentro da minha cabeça.

Será que a casa é a mente que é o céu?

Meu corpo histérico era veloz ele trazia a memória do mundo.

Café.

Uma mesa. Um café. Uma pessoa. Muitas pessoas.Uma mesa redonda e um líquido escuro.Seria café?O que saía da térmica?

O xamã não deixou que minha amiga também tomasse o líquido.Eu fumei um cigarro. E ele me falou sobre meus dentes.

A xícara contém o escuro.Que é lago. As pedras da Virgínia, as águas da Ofélia.

Café. Café. Café.

O Brasil tão grande e eu perdida na floresta de dentro.

Sair do corpo. Voltar para o corpo.Conectar mente e coração.Depois da dor de achar que eu tinha matado alguém porque tinha cortado um sabonete.

É que a raiva era grande. A dor imensa.E o líquido espalhado como uma poça.

Nota de rodapé 18.

A pálpebra da onda se fecha,lentas prolongam-se como espumasteus cílios – relutantes, carrancudosou como no início das nossas coisas.[1]

...................................................................................[1] Por que te penso sempre de olhos fechados?Estamos a um oceano de distância e os fusosdefasados, onde estás anoitece mais cedo,mas sempre foi assim e se eu era tua rima

depois com tempo uma nota de rodapé,e daquelas que explica o que a personagem imagina,de longe a verdadeira diferençaé faltar ao encontro sem dividir o quarto. Teus olhos, abertos, são um objetivoque não encontra o instante para a foto, ou a costase o mar se subtrai, íris molhadaspor pouco, mais um pouco, agora secas.

Não. Eis o exemplo de nota de rodapé.Nem vale a pena dizer que teu é o olho que vê.Só o mar não se satura de devolver imagensque sejam de amor céu velas miragens:

nos tornamos opacos, e fixos, e juro a mim mesmoprocurar-te de dia como se estivéssemos no escuro –até recurvo, a cabeça que embranquece,os passos incertos mas o quadril aquático

se sente que moveste o ar, e o plexose enrola para perder a si mesmo,como ondas, sim, estas ondas de ressaca se retomam o mar aberto após a quebra.

Anfisbênia 16.

A garota com as costas longas, o longo pescoço e tudoe um pai de passagem de volta ao deserto,curvas acentuadas ora esguias por anos de heroína,ela quem usou toda minha dorfoi a última mulher que amei em italiano.Quase vinte anos sem rimar cuore e amore.Depois corazón tienes razón, agora estamos em heart-I’m doing my part. Am I? Estou em Trindade sozinho.Na Europa é inverno em todas as línguas,aqui e no coração a estação é secamas as precipitações são tropicais, sempre forame o primeiro dia ressuscitoutodas aquelas de uma vida, mastão recalcadas e furiosas que me pergunto se são minhas.A resposta rastejava hoje no pátio, enfiouuma de suas cabeças no muro, e foi.

33 15.

Dormimos tu e eu agarradoscomo duas cifras da minha nova idade –e se alguém no sono se viratambém o outro de imediato se encrava –os dois três;há uma semana tens trinta anose um três tu também, o outro não é um númeromas a curva da tua barriga(e a curva do espanto, entretanto)por quem a habita há três meses,somos trêstrês.

Cosmogonia 17.

“I know”, dizes a Loren mesmo sem saber o que éque a faz chorar (um choro diferente daquele que às seisdesbaratina o dia, ou de tédio, raiva, fome), “I know”.Assim os cosmologistas postulam dark matter, energy e flow.

Tantos esforços para entender consomem feito aspirinapousada sobre a pia molhada da cozinha, são acossadospelo rastro de uma sombra e se isso se manifesta na língua,em suas medidas de respiração e matéria, tem-se uma trégua.

Mas as coisas obscuras, vida invisível que se faz,teus olhos viam, de quando em quando, meses atrás aí no ponto de ar em que cada batida de cílios é uma rimaalternada entre tuas pupilas negras e luz e rímel.

Tropeças num canto e Loren, que não fala, te diz: “ainôu” –e se derramas uma lágrima é lenta, açucarada, um poucocomo teus beijos escuros de seda ou a clara flor do trevo,as ultimas gotículas de leite entre vocês e desta minha folha.

A gaivota pensa que está sozinha? 22.

A neblina fica em volta dessas pedras enormeso sol brinca de esconde-escondeo musgo verde se mistura com aquelas pedras azuladasé só uma ilusão um breve instante de satisfação quando penso em você

é como um fruto proibido escondido numa árvoreeu colheria você, mas queimaria meus dedosvocê arde na noite como cinza vulcânica quentebrilhando em tons avermelhadosoh meu coração ardente, por que perseguimos o que não podemos tere queremos largar o que temos, queremos largar, queremos largar, queremos largar

Um pássaro canta músicas do maro vento forma pequenas bolhas na águadanças de algas marinhas à volta das falésiassombras escuras refletidas na superfície do azule eu me pergunto, a gaivota pensa que está sozinha?

Máquina zero 11.

Quarto dia: entendo que o que preciso, se quero mesmo continuar a perambular com alguma chance de êxito por uma cidade ( duas ) como Berlim, éde sapatos de largo fôlego. Caminho ( penso enquanto caminho ), permeável a tudo: ao frio sol cortante, às crianças turcas com seu comércio informal de brinquedos usados, à beleza sem rumo da adolescente que ( longas pernas abertas sobre um prosaico selim de bicicleta ) cavalga o começo da tarde, aos grafites que “dariam belas fotos”, à Topografia do Terror, às ruínas, ao rasta que me saúda ( “Rasta!” ) na Wilhelmstrasse, às lascas do Muro na vitrine da pequena loja, ao amarelo-zoom do metrô apontando na curva antes do teatro, à História,

Noite 14.

O menino viusair da bocada mulher, talvez sua mãe, uma vozestrídula e lábil, que logo desandou,em cadência de sonho, a quê?– A enumerar desas-tres já ocorridose por ocorrer, a fecundarharpias, a frisar

Noite

as marcasda passagem da pantera pelo quarto,a aturdir relógios, a enegrecer o sole outras mais de tais proezas.

minha mente inquieta 20.

através da noite mais escurasozinhacom essa mente inquietafecho os olhos e vejolembranças que voltam à vidasonhos vívidos desaparecemo tempo parece ficar paradodesde o crepúsculo até o começo da claridadea pausa do dia está próxima ninguém escuta apenas eue o calor do solme abraça

velha árvore de pau-brasil 21.

quando há o orvalho branco sobre o jardim ensolaradoo tempo parece imóvel por um intenso momentosomos tão pacíficosesperamos em silêncio

na centelha da manhãtão jovens como nossas esperançasparece haver tantos mitos não detectadosentre os galhos de uma velha árvore de pau-brasil

na profundidade da vegetação rasteiraouço um sussurrosão as folhas falando comigoé tempo de ir, é tempo de explorar

Previsão do tempo I, II, III 19.

Mas o relógio não pára não, agora por exemploé noite, as nuvens depositaram-se no chão,as escovas que varrem são o único som que ouço,viro o binóculo para ver um pouco onde estou:entro na idade em que os isqueiros se esvaziamsem que sejam roubados, ou dito de outro jeitodeveria também parar de fumar, para o fisco euainda não existo, começa o medo de voarmas, será que o meu país parece pouco mais que um visto,é nesta idade que decidi emigrar.A primeira impressão é de que o fisco tem razão.Mas aí há a ansiedade, que deve ter a vercom o passo que recua ou com um sopro no coração,mas não é só isso, pelo menos quer dizer não estou prontonem estou me preparando, se não para o terrorde estar aqui, e não consumir, e receber a conta.

A agulha da gota com o fio da chuva costurameus pensamentos aqui no alto com o negro do asfaltoduzentos pés abaixo e luzes a se perder de vista –não se assuste se pulo de um pensamento a outro.Com uma avó, no momento, divido o apartamentoe os corredores da demência, com a língua inglesa o quarto:sem uma visão do mundo tenho os olhares de regressodas palavras, mas será um estrabismo de Vênus entre duas línguasou o que se conhece como língua bífida?Pouco importa, no final, não pelo costume à fronteira e ao desterro, mas porque a poesia levaa trair o que se vive pelo desejo de escrevê-lo.Ou talvez seja como num quadro quando o brancoda tela justifica as camadas trêmulas de cor e pinceladas,exato claro voo da borda de uma nuvem.A poesia é uma técnica para preparar a tela.

Previsão do tempo I, II, III

Reconheço a grama alta na sombra, utensílios,espaços não abertos mas vazios entre as casas,fuligem em camadas sobre as coisas,materiais enferrujados e corroídos –truques do mundo para ser maleável –,e os lampiões à beira do riacho (o Grand Union,mas por que “água doce”? é metal na boca),o deglutir do úmido e do breu.E descubro novamente (quando St Mary marca a hora)que se a vida é desmedidafora da medida se pode viver, mas não durae não basta: então se dê desmedidamentea uma coisa que é mais livre se tem limites,é finita, mas contém infinitos,e na medida em que tu a imitasela te toca e acompanha entre semelhantes.

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