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Se eu pudesse alterar isso, alterava. Querê-lo. Ansiar por ele.
Fecho os olhos à noite e toco-me, imaginando que é ele. As suas mãos
a afagarem-me. Os dedos dele a penetrarem-me.
Faço isto — e odeio-me. Porque o meu desejo não é quente e suave, mas
retorcido, selvagem e errado.
Destruímo-nos, eu e ele. Mesmo agora, ao fim de tantos anos, conti-
nuamos devastados e despedaçados.
E despedaçados permaneceremos, porque, um sem o outro, nunca con-
seguiremos ficar inteiros. E, no entanto, não podemos voltar a estar juntos.
Nunca. Não daquela maneira.
O nosso desejo tem dentes, afinal. Sobrevivemos uma vez, por pouco.
Mas se abusarmos da sorte, é mesmo capaz de nos engolir por completo…
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o rei do sexo
M esmo pelos padrões de Southampton, a festa na mansão
de 800 metros quadrados na Meadow Lane tresandava a
extravagância.
Artistas premiados com Grammys atuavam num palco ao ar livre
que tinha sido montado no relvado exuberante que se estendia da
casa principal até aos campos de ténis. Celebridades conviviam com
modelos que flirtavam com magnatas de Wall Street que discutiam
cotações de ações com gurus da tecnologia e académicos abastados,
tudo enquanto bebericavam um belo uísque escocês e o gin mais em
voga na estação.
Luzes coloridas iluminavam a piscina, que imitava uma gruta natu-
ral, na qual modelos nus flutuavam ociosamente em colchões de ar,
com os corpos a serem usados por chefs de sushi como travessas onde
apresentavam delícias epicuristas.
Cada convidada recebia uma mala Hermès Birkin e cada convidado,
um relógio de uma edição limitada da Hublot, e as exclamações de
deleite — tanto dos homens como das mulheres — rivalizavam com o
ribombar do fogo de artifício que estalara sobre a baía de Shinnecock
às dez da noite em ponto, uma hora planeada na perfeição para dis-
trair os convidados do bulício do pessoal que trocava o bufete de jan-
tar pela variedade de sobremesas, café e digestivos.
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Não fora poupada a mais pequena despesa; nenhum desejo, von-
tade ou indulgência fora negligenciado. Nada tinha sido deixado ao
acaso e cada uma das pessoas ali presentes era da opinião de que a
festa fora um dos eventos imperdíveis da temporada, se não mesmo
do ano. Caramba, talvez até da década.
Todos os que são alguém estavam ali, debaixo das estrelas que
iluminavam o terreno de um hectare e meio na Billionaires’ Row.
Quer dizer, todos à exceção do milionário que era o anfitrião da festa.
E a especulação quanto a onde se encontraria, o que estaria a fazer e
com quem percorria a multidão bem bebida e ávida por mexericos
como um fogo a espalhar-se com a ajuda de uma tempestade.
— Não faço ideia de onde se terá metido, mas apostaria um bom
dinheiro em como não estará a lamentar-se sozinho — comentou um
homem grisalho e magro como um cabide, com uma expressão que
sugeria reprovação, mas que, o mais provável, disfarçava um senti-
mento de inveja.
— Juro que me vim cinco vezes — anunciava uma loura emper-
tigada à sua melhor amiga, com um suspiro teatral cuja intenção era
atrair as atenções. — O homem é um mestre na cama.
— Tem uma cabeça astuta para os negócios, aquele — disse um
corretor de Wall Street —, mas não tem qualquer decoro quando o
que está em causa é a pila.
— Oh, querido, não. Não é para se ter uma relação. — Uma mo-
rena a celebrar um contrato com uma agência de modelos recente-
mente assinado estremeceu, como que a reviver um momento de
êxtase. — É como chocolate de alta qualidade, deve ser saboreado em
quantidades limitadas. Mas é tão bom quando o provamos…
— Bom para ele, se consegue levar tantas para a cama. — Um
hipster com a barba por fazer e o cabelo apanhado num puxo ia
limpando as lentes dos óculos de aros metálicos com a fralda da
camisa. — Mas por que raio é que tem de fazer tanto alarde a res-
peito disso?
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— Todas as minhas amigas já estiveram com ele. — A pequena
ruiva que gozava de uma pensão de alimentos de centenas de milha-
res de dólares abriu um sorriso lento, e o faiscar dos seus olhos verdes
dava a entender que ela seria uma gata e ele umas natas deliciosas.
— Mas só eu é que tive o prazer de uma segunda ronda.
— Todas as suas amigas?
— Quantas tipas?
— Pelo menos metade das mulheres que aqui estão hoje. Talvez
mais.
— Pá, nem pergunte. Confie em mim. O Dallas Sykes é o Rei
do Sexo. Nós os dois? Meros mortais como nós não podemos sequer
comparar-nos com ele.
Três pisos acima dos convivas, num quarto com uma janela com
vista para o Atlântico, Dallas Sykes chupava avidamente o clítoris da
loura esguia que estava sentada na cara dele a contorcer-se com pra-
zer pré-orgástico. Os gritos da loura — «sim, sim!» — misturavam-se
com os gemidos guturais de deleite da ruiva voluptuosa que lhe mon-
tava a cintura enquanto ele a penetrava a fundo com os dedos.
Tinham-se-lhe rendido, aquelas mulheres, e a noção de que seriam
suas naquela noite — para ternura, para tormento — afetava-o pro-
fundamente. Um afrodisíaco malvado com um gume tão afiado como
aço e, pelo menos, tão brutal quanto este.
Estava inebriado — de sexo, de uísque, de submissão. E, naquele
momento, tudo o que queria era perder-se no prazer. Deixar que todas
as outras merdas se desfizessem.
— Por favor. — Os músculos da ruiva contraíram-se muito à volta
dos dedos dele e um tremor percorreu-lhe o corpo, com uma necessi-
dade de se vir tão forte que passava o limiar em que se transformava
em dor. — Estou quase lá, Dallas. Quero-te dentro de mim. Oh, Deus,
por favor. Agora.
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Ele mal distinguia as palavras, perdidas nos sons húmidos da sua
boca no sexo doce da loura. Mas ouviu o suficiente e, com um movi-
mento selvagem e brusco, fez rolar a rapariga por cima de si para o
lado, deixando-a estendida e a tremer sobre a cama, com os mamilos
duros e o sexo escorregadio, aberto e convidativo.
Dallas sentiu o corpo a retesar-se de necessidade. De desejo. Mas
só queria a descarga. Não queria qualquer uma daquelas mulheres.
Na verdade, não. A companhia delas, sim. O escape que lhe ofere-
ciam, claro. Mas elas mesmas?
Nenhuma era a mulher por quem ansiava. Nenhuma era a rapa-
riga que tanto o salvara como o destruíra. A mulher que ele queria.
A mulher que nunca poderia ter.
E, assim, em vez disso, procurava prazer e paixão no arrebata-
mento de sexo puro e ardente.
— Senta-te — disse à loura enquanto dissipava os pensamentos
e arrependimentos sombrios. Levou a mão ao copo de cristal e aca-
bou com o Glenmorangie, adorando a forma como lhe queimava a
garganta e atordoava a cabeça. — Encosta-te à cabeceira da cama.
Abre bem as pernas.
Ela assentiu com a cabeça, movendo-se avidamente para lhe obe-
decer enquanto ele afastava a ruiva da cintura.
— Fode-me — implorou-lhe a ruiva. Os olhos verdes dela fais-
caram, a sua expressão era suplicante. Tinha os lábios inchados, a
pele ruborizada. Cheirava a sexo, e o odor (tão familiar, tão perigoso,
tão chamativo, caramba) deixou-o ainda mais duro. — Quero que me
fodas.
As palavras saíram-lhe com um beicinho — eram uma súplica —
e Dallas quase sorriu em resposta.
Quase, mas não o fez.
Em vez disso, arqueou uma sobrancelha.
— Queres? Miúda, aqui o que importa não é o que tu queres.
É o que tu precisas.
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— Então, preciso que me fodas.
Os lábios dele remexeram-se. Gostava de mulheres que sabiam
o que queriam, disso não havia dúvida. E a ruiva divertia-o mesmo.
Tinha-a selecionado da multidão lá em baixo porque lhe agradara a
forma como preenchia o vestido preto sedutor, que entretanto caíra
amarrotado no chão do quarto dele. Por isso e pelo facto de ele por acaso
saber que ela tinha um primo que trabalhava para um oficial do go-
verno em Bogotá, uma ligação que talvez um dia viesse a revelar-se útil.
Quanto à loura, Dallas não tinha motivos ulteriores em particular.
Mas apreciava-lhe o pequeno corpo flexível e a obediência silenciosa.
Naquele momento, ela estava sentada tal como ele mandara, de per-
nas afastadas e com uma vulnerabilidade maravilhosa. Não mexia
nem um músculo, mas a cadência da pulsação na garganta telegra-
fava a sua excitação pelo menos tanto quanto os mamilos tensos e o
sexo quente e molhado.
Ele correspondeu ao olhar faiscante e verde da ruiva e depois ace-
nou com a cabeça à loura.
— Tu queres ser fodida. Eu quero ver. E, garanto-te, ela quer fazer
o que quer que eu diga. Parece uma receita perfeita, não achas?
A ruiva passou os dentes brancos e polidos pelo lábio inferior.
— Eu nunca…
— Mas vais fazê-lo. Hoje. — Fitou-lhe os olhos. — Por mim.
Ela lambeu os lábios enquanto ele deslizava da cama e se punha
de pé. Ela continuava sentada nos calcanhares, de joelhos sobre o col-
chão. Ele debruçou-se e apoderou-se dela num beijo longo e demo-
rado. Ela sabia a morangos e inocência. Ele queria devorar os primeiros;
eliminar a segunda.
— Passa as pernas à volta da cintura dela e beija-a profundamente.
Chupa-lhe as mamas. Toca-lhe como queiras. Mas ela vai foder-te
com os dedos enquanto nós os dois imaginamos que é a minha pila.
E, miúda? Vais vir-te mais para mim do que alguma vez te vieste para
qualquer outra pessoa.
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— E tu?
Ele deu pelo tremor de excitação na voz dela e percebeu que a
tinha convencido.
— Eu vou estar aqui mesmo — respondeu, enquanto lhe dava a
mão e a encorajava na direção da loura, que estava corada de expe-
tativa. Pôs-se atrás da ruiva, segurando-lhe os seios, enquanto ela
rodeava a cintura da loura com as pernas. Depois, apertou-lhe os
mamilos com força enquanto os dedos da loura deslizavam para o
interior dela.
Junto às costas dela, sentia cada tremor de prazer, cada aceleração
da pulsação dela. E, quando ela começou a tremer com uma série de
pequenas convulsões, ele deslizou a mão por trás por entre as pernas
dela, mergulhando os dedos no sexo molhado. Ao fazê-lo, a sua mão
roçou na da loura, cujo gemido sensual foi direto ao seu membro.
Em seguida, deslizou o dedo já húmido para espicaçar o ânus da
ruiva, que se encostou mais a si, com o corpo claramente em brasa
sob aquele ataque duplo.
— Dallas — gemeu ela, com o corpo a tremer de excitação. — Oh,
meu Deus, Dallas, isto é tão marado.
— É assim que eu gosto, miúda — disse ele. — É só assim que
eu faço.
Era verdade. Gostava de sexo sórdido. Selvagem. Queria lembrar-
-se de quem era. Daquilo em que se tornara.
O Rei do Sexo. Sabia como todos lhe chamavam e não podia dei-
xar de considerar adequada — e irónica — a alcunha. Porque, sabia
Deus, que ele estava fodido. Toda a sua maldita vida era uma repre-
sentação. Uma fachada.
Estava danificado. Tão destruído quanto um homem poderia estar.
Mas tinha dado a volta a essa merda. Reclamara-a. Tornara-a sua.
Talvez nunca mais voltasse a ter nos braços a mulher por quem
ansiava, mas, se essa era a sua realidade, queria assegurar-se de que
aproveitava ao máximo.
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Baixou a mão que tinha livre para afagar o membro. A sensação
da palma molhada de sexo a mover-se ritmicamente pelo aço da sua
ereção misturou-se com os sons loucos, quase selváticos, das duas
mulheres. Fechou os olhos, imaginando outro lugar. Outra mulher.
Pensou nela. Pensou em Jane.
Mas não assim. Não passado dos cornos. Não como um maldito
entretenimento de uma noite, tão fungível e tão pouco importante
como uma ida ao cinema.
Só que tudo estava fodido. Sobretudo ele.
Maldição. Precisava de calar aquilo. Aqueles pensamentos.
Aqueles desejos.
Todos aqueles malditos arrependimentos.
O trinar agudo do telemóvel arrancou-o dos pensamentos e fê-lo
afastar-se da ruiva, que protestou com um grito.
— Desculpa, miúda. — Tinha a voz tensa, o peito contraído. — Este
é o toque que eu atendo sempre.
Agarrou no telemóvel que estava na mesa de cabeceira, passando
a mão ao de leve pela pele das duas mulheres antes de lhes virar cos-
tas e atender a chamada.
— Diz-me — exigiu saber, à espera do pior. O seu melhor amigo,
Liam Foster, não deveria dar notícias até à manhã seguinte. Se estava
a ligar já, isso queria dizer que algo teria acontecido.
— Está tudo bem, pá — disse Liam, com a voz tão à beira da exci-
tação quanto o treino militar lhe permitia.
— E o rapaz? — Dallas tinha enviado a sua equipa a Xangai para
reaver o filho de 8 anos de um diplomata chinês, raptado dez dias
antes.
— Bem — assegurou Liam. — Desidratado, malnutrido, assus-
tado, mas voltou para a família e, fisicamente, deve recuperar por
completo.
Fisicamente, pensou Dallas, e a palavra ganhava uma sonoridade vil
na sua mente. Porque isso não era tudo, pois não? Nem por sombras.
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Afastou tais pensamentos, obrigando-se a concentrar-se.
— Então, porque é que estás a…
— Porque o cretino alemão que o apanhou tentou trocar a liber-
dade por informações. Ele sabe, Dallas. Este sacana do Mueller sabe
quem era o sexto sequestrador.
As palavras eram simples. O impacto que tiveram em Dallas não.
O seu sangue tornou-se fogo. O quarto ficou quente e vermelho.
Queria espancar o sexto homem até mais não. Queria enrolar-se sobre
si mesmo e chorar.
Queria saber finalmente a verdade.
Eram dois ao comando dos seis sacanas que o tinham apanhado
— e com certeza aquele sexto homem poderia identificar os emprega-
dores. Em primeiro lugar, o tipo principal, que se mantinha afastado,
sem sujar as mãos, mas que era o mais porco de todos. Esse homem
vivia na memória de Dallas apenas sob a forma de laivos e impres-
sões. Tinha sido esperto. Tinha-se mantido à distância. Mas era ele o
marionetista, quem contratara os seis e puxara todos os cordelinhos.
Dallas e Jane acabaram por pensar nele como o Carcereiro; só falara
diretamente com Dallas duas vezes. Dissera-lhe que merecia tudo
aquilo — cada momento de agonia, cada pontada de medo, cada alfi-
netada de humilhação.
E depois havia a Mulher. Deveria alimentar e cuidar de Dallas e
Jane, mas, em vez disso, acarretava dor e medo, juntamente com uma
obscuridade retorcida e uma vergonha profundíssima que não se des-
vanecera, nem depois de Dallas se libertar do confinamento daquelas
paredes bolorentas.
Mas ele já não tinha 15 anos. Não estava trancado às escuras, tor-
turado, faminto e indefeso.
Poderia estar danificado, mas tinha dinheiro e poder e sabia como
manejar ambos como uma maldita maça medieval.
— Estamos a aproximar-nos do fim desta coisa — disse Liam.
— Usamos a informação deste tipo para agarrar o sexto. Interrogamo-lo.
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Obrigamo-lo a dizer-nos quem o contratou. É a última peça do puzzle,
Dallas. Quando conseguirmos isso, vais finalmente poder dizer que
acabou.
Dallas fechou os olhos e inspirou, assimilando as palavras. Liam
enganava-se, claro. Aquilo nunca acabaria realmente. Mas era inegá-
vel a expetativa que crescia dentro de si. A fantasia de poder, de facto,
pôr fim àquilo.
Por si.
Pela sua sanidade mental.
Mas, sobretudo, por Jane.
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2era uma vez
Dezassete anos antes
—S abes que és um verdadeiro imbecil, não sabes?
Quince Radcliffe encostava-se com descontração
à ombreira da porta enquanto Dallas se apressava a
enfiar uns ténis nos pés. Já tinha vestido um par de calças de ganga
bem puída, depois de despir as de fato de treino com que estivera na
cama a ler Nietzsche, em vez de se dedicar ao trabalho de Cálculo que
deveria entregar no dia seguinte. Atacaria os cinco problemas de ma-
nhã; naquela noite, estava demasiado embrenhado em Assim Falou
Zaratustra. Ou estivera, até receber o telefonema dela.
— O diretor Phelps vai querer a tua cabeça num espeto.
— Tenho praticamente a certeza de que isso violaria pelo menos
uma dúzia de regras da escola.
Dallas deu uma volta enquanto falava, lançando um olhar de des-
prezo a todo o quarto enquanto procurava uma camisa limpa. Tinha
15 anos e sabia tratar da sua própria roupa, o que não significava que
se desse ao trabalho com muita frequência.
Encontrou uma t-shirt preta desbotada debaixo da pequena secre-
tária coberta de livros. Puxou-a, cheirou-a e enfiou-a pela cabeça. Depois
de mais uma fungadela, levantou-a para poder chegar às axilas com o
desodorizante. Já não havia tempo para um duche e arrependia-se de
não se ter incomodado com isso mais cedo.
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— Está bem — respondeu Quince. — Como queiras. Mas se te
apanham…
Dallas encostou a mão ao coração enquanto o seu companheiro
de quarto deixava a frase por terminar.
— Oh, Quince, não sabia que te importavas.
Quince semicerrou os olhos e, depois, virou lentamente a mão até
o dedo do meio ficar exposto. Dallas soltou uma gargalhada.
— Deixa de te preocupar. Vamos só passar umas horas juntos. Vou
ter cuidado. Tu proteges-me. E ninguém vai dar pela minha ausência.
Era melhor que ninguém desse, já que, embora Dallas não fosse
admiti-lo em voz alta, Quince tinha razão. Estava a correr um risco
e tanto. O pai tinha puxado uns bons cordelinhos e desembolsado
massa a sério para o ter no St. Anthony’s, um dos colégios internos
mais prestigiados da Europa, se não do mundo. Na altura, Dallas tinha
ficado verdadeiramente chateado — se havia coisa que não queria era
ser despachado dos EUA para o Reino Unido —, mas, ao fim de um
ano, tinha de admitir que gostava de ali estar.
Ou, melhor, tinha de o admitir a si mesmo — não estava disposto
a revelar a verdade a Eli e Lisa. Ainda não. Talvez nunca, sequer.
Adorava os pais, a sério, mas havia sempre aquela coisa entre eles.
Aquela distância. Talvez por saber demasiado acerca de quem era
e de onde vinha. Talvez os miúdos não devessem saber a verdade
acerca de si mesmos. Talvez simplesmente não conseguissem lidar
com isso.
Pensou no lema preferido de Nietzsche: Torna-te quem és. E pen-
sou no seu próprio corolário: Descobre que raio de porra és antes de
começares a tornar-te isso. Já para não mencionar quem és.
Bem, estava a tentar, não estava?
Tinha vindo a esforçar-se muito, a seguir as regras. Mais ou menos,
vá. A fazer todas as merdas que devia fazer. Não podia anular os meses
de drogas e de roubo de carros, em que se esgueirava a meio da noite
e, de um modo geral, se comportava como um otário de primeira,
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mas podia ficar ali, cumprir com o trabalho e tornar-se o homem que
queria ser. O homem que sabia que poderia ser.
Em qualquer outra noite, teria ficado a estudar.
Ou, mais precisamente, teria ficado entretido com livros ou video-
jogos e, depois, passaria os 10 ou 15 minutos antes de uma aula a
acabar os trabalhos de casa ou a estudar para um teste.
Mas naquela noite não.
Naquela noite, ela estava ali.
Naquela noite, Jane telefonara-lhe da estação. «Apanhei o com-
boio em Londres. Toda a gente julga que vou passar a noite em casa
da minha amiga Donna, a que se mudou para Londres no ano pas-
sado quando o pai arranjou o emprego na embaixada.» As palavras
saíam-lhe a uma velocidade furiosa, como se tivesse de as expulsar
antes de perder a coragem. «Mas não estou com a Donna. Estou aqui.
E quero mesmo ver-te hoje à noite, percebes, antes de a loucura começar.
Antes de deixarmos de ser só nós os dois. Por isso, estou a ir. Agora
mesmo. E não me importa se achas que não devia. Estou a ir, e não
podes dizer-me que não.»
Ela ia; ia mesmo.
E, claro está, ele não poderia dizer-lhe que não.
— Não vás — insistiu Quince, espreitando pela janela na direção
da copa de um salgueiro ali perto e do átrio lá em baixo. — Tenho um
mau pressentimento.
Dallas levou a mão ao bolso de trás para se assegurar de que tinha
a carteira.
— Desiste, meu. Eu vou. Quero dizer, a sério, qual é a pior coisa
que pode acontecer?
Quince virou-se para o encarar e, ao fazê-lo, o luar que passava por
entre as ramagens do salgueiro ensombrou-lhe o rosto.
— Oh, pá, vamos lá pensar. Expulsão?
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— Com a quantidade de dinheiro que o meu pai injeta neste sítio?
Não me parece.
As palavras saíam-lhe com facilidade, mas ele próprio não acredi-
tava muito nelas. Apesar da fortuna da família, Eli Sykes tivera de se
esforçar para que o filho fosse admitido na Academia. Ao que parecia,
Dallas não era o modelo de decoro que a escola costumava aceitar.
E não seria preciso muito para que Phelps e o conselho administra-
tivo decidissem que nunca deveriam ter cedido.
Isso não tinha importância. Mesmo que implicasse viver em casa
e submeter-se aos malditos exames normais, faria aquilo. Escapar-
-se-ia.
Tinha de a ver.
— Proteges-me?
As sombras moveram-se pelo rosto de Quince.
— Continuo a não gostar disto. Vai correr mal como a merda.
— Q, então, meu. Ajuda-me lá.
Quince suspirou.
— Foda-se. Sabes que vou ajudar-te.
Dallas esboçou um sorriso largo — o mesmo que, anos depois,
o colocaria na capa da GQ e da Esquire. Um sorriso indulgente e astuto
que prometia pecado e redenção, tudo num só.
— Fico a dever-te uma bem grande — disse Dallas.
— Ficas mesmo. — Quince voltou a inclinar a cabeça na direção da
janela. — Ela está lá em baixo. Vai. E, por amor de Deus, sê discreto.
Como tinha bastante prática em escapulir-se pelas escadas trasei-
ras do Pavilhão Lancaster, Dallas saiu do quarto, avançou pelo corre-
dor e passou pela saída de emergência em menos de três minutos.
Hesitou apenas o tempo suficiente para se assegurar de que nenhum
dos tipos de gravatas demasiado justas e vassouras enfiadas no rabo
voltava a ativar o alarme, mas tudo permaneceu em silêncio.
Esgueirou-se pela escuridão pintalgada pelo luar, por entre as
sombras que formavam padrões no terreno húmido. Um pequeno
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afluente do Tamisa corria pela propriedade da escola, dividindo o
átrio entre os Pavilhões Lancaster e Wellington. Jane nunca tinha ido
ali, mas ele sabia onde ela estaria. Escrevera-lhe e-mails suficientes a
descrever o campus e onde gostava de ir para se sentar, para pensar.
E, sim, para amaldiçoar o facto de a rapariga que queria — a rapariga
que amava — ser a única que não podia ter.
Uma curva no caminho revelou o banco. Era bastante simples,
com a tinta desgastada por anos de exposição aos elementos, apesar
do abrigo limitado proporcionado por um carvalho majestoso que era,
sem dúvida, mais velho do que a escola, fundada três séculos antes.
Apressou-se na direção do banco, com o peito contraído. Ela não
estava ali. Teria mudado de ideias? Decerto não teria mudado de ideias.
Então, as sombras junto à margem do rio moveram-se e ali estava
ela, simplesmente de pé a observar o reflexo fantasmagórico da lua na
água. Estava de costas para ele, que se manteve absolutamente imó-
vel. Apesar disso, deveria tê-lo ouvido. Ou talvez tivesse apenas pres-
sentido a sua presença.
Virou-se e, quando sorriu, foi como se o resto do mundo simples-
mente desaparecesse.
Ele deu um passo na direção dela, e em seguida outro e outro ainda,
até ficarem tão próximos que sentiam a respiração um do outro.
Ele estendeu a mão para ela, e ela fez o mesmo, mas ambos recua-
ram assim que os seus dedos se tocaram.
Com a boca a formar um sorriso envergonhado, ela baixou o olhar.
O momento tornou-se incómodo e ele não sabia como eliminar o
mal-estar denso que parecia preencher o ar entre eles. Tudo o que ele
sabia era ela. Tudo o que queria era tocar-lhe, abraçá-la.
Queria beijá-la, louca e ardentemente, muito mais profundamente
do que quando partilharam aquele beijo suave há mais de um ano.
E, raios, que lhe importava que isso fosse errado. Queria isso. Queria-a
a ela.
Sempre quisera.
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Mas havia promessas entre eles. E, por isso, manteve os braços
firmemente ao longo do corpo, obrigando-se a não se mexer, a não
avançar, a não lhe tocar, apesar da necessidade que o percorria, um
anseio tão intenso, puro e forte que ele não compreendia como pode-
ria estar errado. Mais, não compreendia como era capaz de lhe resistir.
— Jane.
Ela ergueu os olhos, mas, ainda assim, não lhe correspondeu ao
olhar.
— Eu sei. Mas… — Interrompeu-se, e os seus ombros encolheram-
-se e descaíram.
Ele conteve a respiração, esperando que ela fosse menos forte do
que ele, porque, se ela capitulasse, ele faria o mesmo.
Mas ele já devia saber. Quando ela levantou a cabeça e, por fim,
lhe fitou os olhos, o incómodo tinha desaparecido. Não havia qual-
quer incerteza. Qualquer embaraço. Ele só via resolução. E arrepen-
dimento.
— Eu tinha de te ver — disse ela. O que queria dizer era: «O má-
ximo que podemos ter é vermo-nos um ao outro.»
— Eu sei — disse ele. — Antes que todos os outros cheguem.
Eu percebo.
Mais um dia de aulas e começariam as férias da primavera.
Os pais dele estavam em Londres, o pai acompanhado pelos princi-
pais funcionários e suas famílias. O plano era que Dallas e a mãe,
Lisa, viajassem até Oxford. Dallas poderia ter apenas 15 anos, mas
o seu aproveitamento escolar era tal que tinha uma boa hipótese
de ser admitido, e as várias reuniões que os pais tinham marcado
ocupavam-lhe praticamente a totalidade das curtas férias.
Enquanto Lisa e Dallas iam a Oxford, Eli ficaria em Londres e
visitaria os novos armazéns Sykes, que tinham aberto no ano anterior.
E, como Jane estava a fazer um estágio depois das aulas no departa-
mento de marketing, por intermédio da sua escola privada nos Estados
Unidos, ficaria em Londres com Eli enquanto Dallas estava em Oxford.
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Para poderem ver-se a sós, aquele era o momento.
Graças a Deus, ela tinha telefonado. Ele só desejava ter tido cora-
gem de lhe telefonar primeiro.
— Estou contente por teres vindo — disse ele. — Estou tão con-
tente por teres vindo, caramba.
O sorriso dela chegou-lhe aos olhos, tornando radiante o rosto já
por si belo. Ela sempre fora uma rapariga gira, mas agora também
tinha 15 anos, apenas uns meses mais nova do que ele, e estava a
transformar-se numa mulher impressionante. Usava o cabelo escuro
comprido e com risco ao meio, a cair-lhe até aos ombros, tão lustroso
que brilhava ao luar, e tinha as sobrancelhas ligeiramente inclinadas,
dando-lhe uma expressão de divertimento constante, como se visse
quanto do mundo estava às avessas, mesmo que mais ninguém desse
por isso. A sua pele pálida era luminosa e, embora tivesse um rosto re-
dondo, os seus fantásticos malares acrescentavam um ar de elegância
de modelo de passarela a uma cara que, sem isso, pouco teria de invulgar.
Em suma, era a perfeição. Mas era a boca dela o que lhe chamava
e cativava a atenção. Era com os lábios dela que ele sonhava. Era neles
que queria tocar. Eram eles que queria provar. Imaginou o calor da
boca dela pressionada contra a sua, a suavidade… E sentiu-se a ficar
teso em reação.
Baixou o olhar, esperando que ela não visse a prova de quanto ele
a queria. Ainda era virgem e também bastante inexperiente. Mas era
bem capaz de fantasiar e, naquele momento, a sua mente estava a mil
com o cheiro dela, o toque dela, quente e nua contra si, e…
Merda. Para.
Inspirou fundo e obrigou-se a pensar em coisas sem conotação
sexual. Cálculo seria bom. Ou estatística.
Remexeu os pés e voltou a olhar para ela.
— Então, hã, vieste a pé desde a estação de comboios?
Ela abanou a cabeça, com o olhar sobretudo fixo no chão, tam-
bém. Deus, que par faziam!
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— Apanhei um táxi. Queria… queria chegar o mais depressa pos-
sível.
As palavras atearam lume dentro dele.
— Ai, sim? Fico contente. — Expirou ruidosamente. — Certo. Hã,
o que queres fazer?
Estava a fitá-la enquanto fazia a pergunta e, mesmo na escuridão,
apercebeu-se do rubor que lhe crescia nas faces. Com as entranhas
a retorcerem-se, o seu membro, que se acalmara com pensamentos
acerca de equações diferenciais, tornou a retesar-se.
Caramba, estavam mesmo tramados. Oh, se estavam!
— Vi um panfleto na sala de convívio acerca de um concerto à
meia-noite no parque — apressou-se a dizer. — Deve ser uma cha-
chada, mas isso só vai tornar a coisa mais divertida. Uns tipos a tocar
covers de canções dos Beatles para celebrar um aniversário qualquer
de sei lá que álbum.
Ela riu-se.
— Música não é mesmo contigo.
— Mas é contigo.
O sorriso doce dela quase o devastou.
— Sim. Pois é. — Ela passou os dentes pelo lábio inferior e, de
repente, as calças dele tornaram-se muito, muito pequenas. — E real-
mente parece ser uma chachada. — Deu um passo na direção dele
e empurrou-lhe o pé ao de leve com o dedo grande. — E acho que vai
ser o máximo.
— Sim?
Ela assentiu com a cabeça, com um ar entusiasmado e feliz, como
se estivessem prestes a embarcar numa aventura grandiosa.
Ele começou a avançar na direção do parque e ela acompanhou-
-lhe o passo a seu lado. O silêncio era confortável e, naquele momento,
não havia outra coisa que ele preferisse estar a fazer, nem outra pes-
soa com quem preferisse estar. Por isso, naturalmente, tinha de con-
seguir fazer parar o tempo bem passado que estavam a ter.
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— O Eli vai aos arames se descobrir que estás aqui.
— Ele é que decidiu trazer uma estagiária a Londres — respon-
deu ela com ligeireza. Mas depois fez uma careta enquanto lhe lan-
çava um olhar rápido. — Acho que nunca te ouvi chamares-lhe «pai».
Ele inclinou a cabeça para olhar para ela.
— Achas que devia? Esquece — acrescentou antes que ela pudesse
responder. — Não tem importância. Nem devia ter dito nada.
Ela observou-o, como se tentasse descortinar o que ele não estava
a dizer.
— Ainda estás lixado por ele te ter mandado para aqui? Quero dizer,
uma coisa é um colégio interno, mas ele despachou-te para o outro
lado do mundo.
Ele abanou a cabeça.
— Se lhe disseres isto, vou negar, mas não. Andava fodido lá em
casa. Todas as merdas em que me tinha metido. E…
Interrompeu-se e enfiou as mãos nos bolsos. Quase dissera: «Tu.»
E não queria mesmo entrar por aí.
Ela deteve-se, pegou-lhe na mão e fê-lo parar a seu lado.
— Estou a piorar as coisas? Será que não devia ter vindo?
— Por Deus, não. — As palavras saíram-lhe demasiado depressa,
revelaram demasiado. Ele fitou as mãos dadas e, depois, tornou a
olhar para ela. — Talvez — sussurrou.
Os olhos de ambos encontraram-se e, embora isso fosse um cliché,
ele sentiu. O poder. O calor. Ali mesmo entre eles e muito mais forte
do que os dois.
— Dallas. — Foi tudo o que ela disse, e ele não sabia se era um
protesto ou um convite.
Não estava disposto a esperar para descobrir.
Num único movimento, aproximou-se, com a palma da mão
a segurar-lhe a nuca enquanto a sua boca se juntava à dela. Ela sabia a
mel. Sabia a casa. E, quando arquejou e o som lhe abriu a boca apenas
um pouco mais, ele aproveitou, explorando com a língua. Saboreando,
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apoderando-se, aprofundando o beijo até nada os separar. Nem ar, nem
pele, nem o maldito mundo que dizia que não deveriam fazer aquilo.
Que era uma loucura. Que era errado.
Sem fôlego, afastou-se de súbito com receio de se ter excedido. De
ter ido demasiado longe. Aterrorizado por poder ver medo quando ela
abrisse os olhos. Ou, pior, arrependimento.
Mas o rosto dela estava suave, a pele pálida quase angélica sob o
luar e, quando ela abriu os olhos e o fitou, o que ele viu foi o seu pró-
prio desejo refletido nos grandes olhos castanhos dela.
— Não devíamos — sussurrou ele.
— Eu sei.
Nenhum deles se mexeu. Ali ficaram, a escassos centímetros um
do outro, e ele sentia o hálito dela no rosto, mentolado e irresistível.
Parecia-lhe que ouvia o bater do coração dela; tinha a certeza de que
ela seria capaz de ouvir o do seu.
Depois, como que unidos pelo peso da ligação que partilhavam,
deram um passo em frente exatamente ao mesmo tempo. Bocas jun-
taram-se, rápida e avidamente. Mãos apalpavam, dedos acariciavam.
Ele nunca estivera tão duro na vida, nem sequer em todas aquelas
vezes em que, deitado na cama, enfiara a mão nos boxers enquanto
a imaginava. Por um momento, a mortificação apoderou-se dele,
mas ela emitiu um ruído suave e ele percebeu que era o seu nome.
Estava tão carente e cheio de desejo que foi de admirar que não se
viesse logo.
— Jane, eu… — Não sabia o que pretendia dizer, mas não impor-
tava. As suas palavras foram silenciadas pelo grito dela, acutilante
como uma faca e brutalmente curto.
Alguém a agarrara. Dois homens vestidos de negro ladeavam Jane,
com os rostos ocultados por máscaras de esqui e as mãos cerradas
sobre os braços dela enquanto a arrastavam para longe dele, com a
cabeça pendida para um lado.
— Não!
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Pareceu ter passado uma eternidade até ele proferir a palavra, até
tentar lançar-se para a frente para a ajudar. Mas apercebeu-se nesse
momento de que nem sequer segundos se tinham passado. E de que
não poderia ajudá-la — nem sequer poderia ajudar-se a si mesmo.
Também tinha sido apanhado.
Debateu-se, conseguindo soltar o braço esquerdo, e girou para a
direita, tentando libertar-se — tentando ver tudo o que podia antes
de o agarrarem de novo e de o imobilizarem.
Quatro homens. Dois a segurá-lo. Dois ao lado deles, um dos quais
com um trapo na mão.
E ainda os dois que tinham Jane.
No total, eram seis homens. Seis atacantes.
Seis sequestradores.
Seis, repetiu mentalmente enquanto combatia o medo, abafando-o
e obrigando-se a escutar as vozes dos homens. A calcular-lhes a altura
e o peso. A observar-lhes os olhos, a fazer frente ao terror e a pensar,
mesmo enquanto um dos homens se aproximava dele e lhe tapava a
boca e o nariz com o trapo ensopado de clorofórmio.
E, enquanto o mundo se dissipava sob ele, agarrou-se à imagem
mental daqueles seis homens mortos. Porque era isso que eles esta-
vam. Mortos. Por mais tempo que ele demorasse a conseguir que
assim fosse.
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27
3libertação
—D allas? Merda, meu, ainda aí estás?
Sobressaltado, apercebeu-se de que tinha estado
a apertar o telemóvel como se fosse o pescoço do
sexto sequestrador, com tanta força que era de admirar que aquela
porcaria não se tivesse partido na sua mão. Irritado, pôs as memórias
de parte e concentrou-se.
— De onde estás a ligar?
— Do jato — disse Liam. — Estou a ir de Berlim para o refúgio
em Mendoza.
Dallas franziu o sobrolho, perguntando-se como é que a Argentina
entrava naquela história enquanto avançava nu para a varanda, onde
poderia falar à vontade. Lá em baixo, na festa, umas quantas mulhe-
res acotovelaram-se umas às outras, olhando para cima e apontando.
Ele mal deu por elas.
— Estou a ouvir.
— O Mueller arrancou o puto do colégio privado em Xangai e
conseguiu levá-lo clandestinamente para a Europa. Finalmente, apa-
nhámos o sacana na Alemanha. O Quince fez um trabalho impecável
para o obrigar a falar — acrescentou.
O antigo colega de quarto do colégio interno de Dallas tornara-se
oficialmente um agente do MI6 e, oficiosamente, um dos principais
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membros da Libertação, a equipa secreta escolhida a dedo por Dallas
há mais de dez anos.
Tinha fundado a organização como forma de encontrar — e des-
truir — aqueles que o torturaram, mas esta evoluíra e transformara-
-se em muito mais do que isso. A Libertação tinha-se tornado uma
força poderosa, que fazia o que fosse necessário para resgatar crian-
ças raptadas, e a sua clientela secreta e discreta chegava à organização
através de passa-palavra e recomendações. Nenhum cliente saberia
estabelecer a ligação a Dallas ou a qualquer um dos outros homens.
A Libertação ultrapassava os limites, contornava a lei. Acima de
tudo, obtinha resultados.
Dallas inspirou, apenas para assegurar que a voz permanecia firme.
— Então, estás a dizer que o Mueller vos falou do sexto?
— Durante o interrogatório, sim. Fizemos as perguntas do cos-
tume para determinar se ele sabia algo acerca do teu sequestro.
— E sabia.
— O filho da puta é um maldito cão raivoso que serve qualquer
um que tenha um osso suficientemente saboroso.
— Há alguma razão para acreditarmos que o próprio Mueller
esteja implicado? — Era rebuscado, mas talvez Mueller fosse o sexto
e estivesse agora a tentar escamotear os factos. Raios, talvez até fosse
o maldito Carcereiro.
— Negativo — respondeu Liam. — Estava a cumprir pena numa
prisão alemã, seis meses antes e 18 meses depois de teres sido apa-
nhado. Não teve qualquer envolvimento… Apostaria a minha reputa-
ção nisso. Mas não deixa de ser uma fonte, uma fonte potencialmente
fundamental. Sabia do teu sequestro e de uma batelada de outros.
Dallas cerrou o punho enquanto inspirava fundo, contendo a fúria
que ameaçava avassalá-lo.
— Como é que soube do meu? Correm rumores?
Se assim fosse, isso era interessante por si só. Eli Sykes mantivera
o sequestro em segredo — não contara a ninguém que não pertencesse
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ao seu círculo mais íntimo. Nem à comunicação social, nem ao FBI,
nem à Scotland Yard. A ninguém. Tratara pessoalmente do assunto,
contratando mercenários, tratando do pagamento do resgate. E, acima
de tudo, mantendo uma grande, grande discrição.
Até à data, Dallas não sabia ao certo se o pai fizera muito ou pouco.
Sim, ele e Jane tinham sido libertados. Mas o preço que pagaram fora
brutal.
Mesmo atualmente, passadas quase duas décadas, o mundo jul-
gava que Dallas Sykes, o filho problemático do comerciante milionário
Eli Sykes, deixara o chique colégio interno para passar uma tempo-
rada num hospital privado. Quanto a Jane, a comunicação social nem
dera pelo seu desaparecimento, e ela guardara segredo quanto a isso.
Quando recrutara os membros da Libertação, Dallas contara a
verdade à equipa. Todos precisavam de compreender o seu propósito.
Além disso, cada um dos homens tinha a sua própria razão para se
dedicar à Libertação e à missão desta. O mais importante de tudo era
que Dallas sabia que podia confiar neles.
Mas mesmo eles só estavam a par do sequestro. Não sabiam do
pior que acontecera dentro daqueles quartos trancados e húmidos.
Raios, nem sequer Jane sabia do pior, e ela estivera na escuridão con-
sigo.
— Não são rumores generalizados — informou-o Liam. — O nome
do nosso alvo é Silas Ortega. Era ele o sexto homem e, basicamente,
tem fama de fazer qualquer coisa pelo preço certo. Tem também fama
de saber manter a boca fechada, mas suponho que o gozo de se gabar de
como tinha tramado o grande Eli Sykes tenha sido demasiado até para
ele. Contou a alguém e o Mueller inteirou-se.
— E entregou-nos essa informação.
— Digamos que foi isso que aconteceu — replicou Liam.
Um sorriso ligeiro aflorou-lhe aos lábios, mas Dallas não insistiu.
Não precisava de ouvir o que Quince fizera a Mueller para lhe extrair
a informação. Cada membro da Libertação fazia o que tinha de fazer.
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Raios, o nome do grupo sublinhava a sua missão de acabar com os
maus da fita.
— E repara nisto — acrescentou Liam, com um laivo de entu-
siasmo a colorir a sua apresentação profissional. — O Mueller disse
que o Ortega sabia para quem estava a trabalhar. Disse que não é o
tipo de cretino que trabalhe para uma voz com uma conta bancária.
É leal, é cruel e é tremendamente eficaz, mas só trabalha para gente
que conhece.
A esperança cresceu nas entranhas de Dallas. Não era suave, mas
antes dura e cruel como o sacana que ele perseguia. O sacana que
Ortega poderia identificar.
— E o Ortega está na Argentina?
— Tem um vinhedo lá. A segurança do sítio é apertada, mas o
Quince está a tratar disso e o Noah dá-lhe apoio a partir dos Estados
Unidos.
— E o Antonio? — perguntou Dallas, referindo-se ao quinto e
último membro da Libertação.
— Está a finalizar as coisas na China.
Dallas assentiu com a cabeça enquanto considerava as opções.
— Avancem assim que tiverem oportunidade. Apanhem o Ortega,
e o Quince que lhe deite as mãos. Haveremos de querer que atravesse a
fronteira para Valparaiso. Podemos fazê-lo passar num navio de carga.
A Libertação tinha ligações sólidas na cidade portuária chilena.
— Já estamos a tratar disso. Parece que o Minerva deve chegar em
breve — respondeu, referindo-se a um cargueiro que já tinham con-
tratado antes. — Aviso-te quando… Oh, raios! Espera aí.
— O que foi?
— Dá-me um segundo — respondeu Liam, num tom inconfun-
dível de irritação.
Carregou no botão para silenciar a chamada, deixando Dallas frus-
trado, mas não preocupado. O mais provável era que Antonio esti-
vesse a apresentar o seu relatório. Ou talvez Noah e Quince tivessem
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descoberto alguma coisa acerca do complexo de Ortega. O que quer que
fosse, Liam saberia lidar com a questão. Rápida e eficientemente.
Tornou a entrar, sem prestar qualquer atenção às mulheres que
continuavam na cama. Em vez disso, avançou na outra direção, atra-
vessando o quarto em direção à estante de mogno polido que tinha
uma prateleira a fazer as vezes de bar. Pousou o telefone enquanto se
servia de mais um copo de uísque e, depois, obrigou-se a não ceder à
voz na sua cabeça que lhe dizia que desta é que era. Que a persegui-
ção estava quase a terminar.
Fechou os olhos e deixou-se levar pelas memórias dispersas dos
últimos 17 anos.
Já antes tinham estado à beira de descobrir o Carcereiro. Cinco
vezes, na verdade. Tinham demorado anos, mas haviam conseguido
localizar os outros cinco sequestradores e, de cada vez, Dallas espe-
rara obter uma pista sólida que o levasse ao filho da mãe que orques-
trara o seu sequestro.
Porém, todas as pistas se tinham revelado inúteis. Dois tinham
morrido antes de a equipa conseguir sequer identificá-los — um de
cancro, outro numa rixa na cadeia. Outro preferira matar-se com um
tiro na cabeça a ser capturado. Os outros dois tinham sido contrata-
dos pela vítima de cancro e nenhum deles sabia o que quer que fosse
acerca do Carcereiro ou da Mulher. Tinham-lhes facultado alguma
informação acerca dos cúmplices mortos, mas, até à data, a informa-
ção não levara a parte alguma. E nada sabiam sobre o sexto.
Agora parecia que a Libertação tinha uma verdadeira hipótese de
descobrir o número seis. Mas Dallas estava perfeitamente consciente
de que tudo poderia correr mal. E, se aquela pista também não desse
em nada, a probabilidade de descobrir quem o apanhara a si e a Jane
reduzia-se praticamente a zero.
Foda-se.
Dallas pousou com força o copo já vazio e encostou as palmas das
mãos à madeira quente, inclinando-se para a frente, de cabeça baixa
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enquanto deixava o uísque queimá-lo. Mas não havia álcool suficiente
no mundo para lhe abrasar as memórias. Ou os arrependimentos.
Suspirou, endireitando-se, com o olhar a deter-se de imediato num
dos livros na prateleira, mesmo ao nível dos seus olhos. A sobrecapa
branca estava coçada no topo e na base da lombada, por o livro ser reti-
rado e devolvido à prateleira quase todos os dias.
Tirou-o e olhou para a capa. Uma carrinha escolar. Fita de cena
de crime. O título pintado como um grafito na carrinha — O Preço do
Resgate.
E o nome da autora a parecer enorme, em baixo: Jane Martin.
Já era raro ele e Jane verem-se a sós. Nos últimos quatro meses,
ela estivera a viver em Los Angeles, pelo que a falta de contacto fazia
sentido. Mas, mesmo quando se encontravam na mesma cidade, não
havia jantares, encontros rápidos para almoço, e tanto as chamadas
como as mensagens de texto eram poucas. Continuavam a ter um
círculo de amigos em comum, claro, mas os seus encontros não eram
frequentes — nem satisfatórios.
Desde o sequestro que se mantinham afastados um do outro.
Tanto emocional como fisicamente. Ele sentia a sua falta — sentia tanto
a sua falta, caramba —, mas também sabia que aquela era a melhor
maneira. A única maneira.
Separados, estavam a salvo.
Juntos, eram incendiáveis.
Mas isso não significava que ele não a visse nem se mantivesse ao
corrente de onde ela andava e do que fazia. E não agarrava naquele
mesmo livro quase todos os dias, não o virava nas mãos e percorria a
foto da autora com as pontas dos dedos? Não ligava o televisor e assis-
tia aos programas da manhã para que ela era convidada com tanta
frequência, sobretudo agora que O Preço do Resgate era o centro das
atenções de Hollywood?
A história era perfeita para o livro e para um filme. Cinco alu-
nos da terceira classe raptados na carrinha da escola. Desaparecidos
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durante mais de um mês e, depois, quase mortos quando uma tenta-
tiva de resgate levada a cabo por um grupo de mercenários incompe-
tentes correu terrivelmente mal.
E ninguém suspeitava de que a autora fosse, ela própria, uma
vítima de um sequestro. Que a empatia com que escrevia fosse abso-
lutamente genuína.
Nenhum entrevistador lhe perguntou se o projeto era pessoal.
Se era uma espécie de catarse. De terapia.
Mas era, claro.
Dallas compreendia isso, ainda que mais ninguém o compreen-
desse.
Também compreendia outra coisa. Conhecia demasiado bem o rosto
de Jane para não ver: a ligeiríssima contração da face quando algum
repórter mencionava que, no final, os miúdos tinham sido salvos.
Que tinham tido um final feliz.
Bastava-lhe pensar nisso para ter quase tanta vontade de rir como
de chorar.
Os miúdos tinham sobrevivido, claro.
Dallas e Jane também.
Mas isso não era um final feliz. Dallas sabia-o. Jane sabia-o.
E ele tinha a certeza de que aquelas crianças torturadas também
o saberiam.
Levou mais uma vez a mão ao uísque, mas depois afastou-o deli-
beradamente. A noite tornara-se interessante e ele queria ter a cabeça
espairecida, por mais tentador que pudesse ser livrar-se dos pensa-
mentos acerca de Jane.
Deixou o copo na estante e voltou-se para o quarto. Ao fazê-lo,
apercebeu-se de que a loura deslizara para a beira da cama enquanto
a ruiva saíra mesmo de lá e estava naquele momento a caminhar na
sua direção, com as ancas a oscilar provocadoramente.
Combateu o impulso de lhes dizer que se vestissem e fossem
embora porque, naquele momento, não estava mesmo para ali virado.
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Mas isso já não importava. O Dallas Sykes que ele criara estava
sempre para aí virado. Era essa a ilusão, afinal.
Ergueu um dedo para travar o avanço da ruiva e inclinou a cabeça
com um ar reprovador perante a expressão irritada dela.
— Volta para a cama — disse-lhe. — A tua boca. No sexo dela.
Quando ela não obedeceu de imediato, ele avançou para se colo-
car diante dela. Ouviu a respiração excitada dela, e o que restava da
sua reticência desapareceu. Queria aquilo. Raios, precisava daquilo.
Não dela, mas da sua voluntariedade. Da sua obediência.
Deslizou a mão entre as pernas dela e enfiou-lhe dois dedos. Ela ge-
meu, um som grave e apaixonado que o percorreu, satisfazendo essa
vontade profunda e primária.
— Agora — disse ele. — Até que eu te mande parar.
Ela humedeceu os lábios, com os olhos vidrados de desejo. Depois,
nua, regressou para a cama e enterrou de bom grado a cara entre as
pernas da loura expectante.
Um calafrio de emoção percorreu-o, ao maravilhar-se com a avi-
dez com que ela obedecia. Com o entusiasmo. Estavam submetidas
ao seu controlo. Tanto quanto Mueller. Tanto quanto o sexto seques-
trador não tardaria a estar.
— Desculpa interromper-te a festa — comentou Liam secamente,
depois de Dallas recuperar o telemóvel e voltar à varanda.
— Bate-me uma — respondeu ele num tom amigável.
— Agradeço a proposta, meu, mas acho que já tens com que te
entreter.
Dallas quase riu. De todos os seus amigos, Liam era o que melhor
compreendia o que ele fazia — e porquê. Mas, apesar de ainda mo-
mentos antes terem estado prestes a celebrar, entretanto a maré
mudara. Não obstante a tentativa de ligeireza, Dallas detetava um tom
duro na voz de Liam. Frustração. Até derrota.
Não queria perguntar, mas não era do género de se esconder de
más notícias.
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— Conta-me — exigiu.
— Ao que parece, o nosso Sr. Ortega está na lista negra de uma
data de gente. O Noah acaba de confirmar que as autoridades locais o
procuram, juntamente com a Interpol e, muito possivelmente, o FBI.
Dallas deixou escapar um impropério.
— E ainda piora — continuou Liam. — Segundo consta, está
desaparecido há 36 horas.
— Alguém o apanhou primeiro. — Só a custo as palavras lhe
passaram pelo aperto do peito. Todo aquele tempo… Todo aquele
trabalho… E perdiam o prémio por pouco mais de um dia? Que
merda.
— E não é difícil adivinhar que carta vai jogar se estiver a tentar
chegar a acordo.
— Pois, não é nada difícil — concordou Dallas. — Desembuchar
tudo acerca de um sequestro de alguém da família Sykes… Dizer que
tem a certeza de que aconteceu e que pode indicar o homem por trás
disso… O Ortega vai tornar-se o maldito herói de uma agência qual-
quer, com imunidade e uma palmadinha nas costas.
Dentro do quarto, uma das mulheres gritou, em êxtase.
Na varanda, Dallas fechou os olhos, angustiado.
Inspirou fundo e passou os dedos pelo cabelo desalinhado devido
ao sexo, em busca de uma solução. Algum passe de mágica.
— Se alguma dessas agências descobre quem é o Carcereiro antes
de nós…
Não se deu ao trabalho de terminar a frase. Não precisava.
Ao longo de 17 anos, sonhara matar o filho da puta que o levara a
si e a Jane. Tinha suado. Tinha planeado. Tinha investigado, interro-
gado, lutado e rezado. E, depois de ter todas as peças no devido lugar,
começara a recrutar.
Agora a Libertação funcionava a todo o gás e estava no auge da sua
potência. Era uma máquina leve e ágil. Uma maldita coisa belíssima
que florescia nas sombras.
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A Libertação dedicava-se a resgatar vítimas, sim. Mas também a
ministrar justiça. Também exercia vingança. E todos na equipa o sa-
biam. Não se dourava a pílula. Não havia os adereços habituais de pro-
cedimentos e regras. A Libertação encontrava os maus da fita. E fazia
o necessário para puni-los e devolver as vítimas a casa.
Se o governo localizasse o Carcereiro, levá-lo-ia a julgamento.
A Libertação, porém, executá-lo-ia.
E não havia poder na Terra que dissuadisse Dallas disso. Sonhara
com o momento. Repetira-o na sua mente vezes sem conta.
A fantasia sustentara-o durante as longas noites às escuras. Durante
as horas intermináveis que passara sozinho. Quando fora atormen-
tado. Humilhado.
Quando, por fim, o tinham feito ceder.
Dallas sabia perfeitamente que ver o Carcereiro e a Mulher mor-
rer não restauraria o que ele e Jane haviam perdido, não curaria o que
se partira. Mas seria justo. Seria bom.
Talvez até fosse suficiente.
— Eu vou — disse Dallas. — Se o Ortega continua a monte, vou
juntar-me a vocês na caçada. E se vocês conseguirem apanhá-lo, quero
ser eu mesmo a interrogar o filho da puta.
— Raios, Dallas…
— E se o governo já tiver o Ortega sob custódia, então vamos atirar-
-nos ao Mueller. Quero sacar-lhe toda a informação que ele tenha.
O que sabe acerca do Ortega. Que comissões aceitou, que cigarros
fumou. Que mulheres fodeu. — Andava de um lado para o outro,
com a mente a mil. — Quero saber de tudo e de todos. Não é possível
que o Ortega só se tenha gabado uma vez do sequestro de alguém
da família Sykes. Quero saber que mais ele disse e a quem o disse.
Quero saber o que ele sabe e ver onde isso leva.
— Então, o quê? Estás a dizer que precisas de estar presente? Que
não confias em mim para liderar esta equipa? Que achas que o Quince,
o Noah e o Antonio não conseguem fazer isto? Isso é uma treta, e tu sabes.
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— Raios, Liam. A Libertação é…
— Tua — interrompeu-o o amigo. — Achas que eu não sei isso?
A Libertação é o teu bebé, a tua missão. É o teu espetáculo, Dallas,
e todos temos seguido as tuas regras. Seguido à letra, caramba. E tem
funcionado. Mas há uma razão para que sejas um fantasma nesta
organização, meu, tu sabes. Raios, foste tu próprio quem ditou a lei.
E a primeira regra é que ninguém infrinja as malditas regras.
O sorriso de Dallas era ténue.
— Não estou a infringir nada. Só que agora as regras mudaram.
— Calculou mentalmente quanto tempo demoraria a chegar ao aero-
porto no seu helicóptero e à Argentina no seu jato. — Chego daqui
a 13 horas. E se o Ortega não estiver numa cela quando eu chegar,
é bom que o maldito do Mueller esteja.
Liam sabia que não devia discutir.
— Doze horas — contrapôs. — Doze, ou começamos sem ti.
— Não começam nada — disse Dallas, porque sabia que não eram
apenas os seus homens, mas sobretudo os seus amigos. — Eu estarei lá.
Dallas estava a vestir umas calças de ganga pretas quando a porta
do quarto se abriu e Archie entrou, com um saco de pele na mão.
Na cama, as duas mulheres — ainda ali, ainda esperançadas —
taparam-se à pressa com os lençóis. Não era necessário. Archie Shaw
tinha passado 45 dos seus quase 70 anos ao serviço da família Sykes,
e os últimos dez exclusivamente com Dallas. Era criado, mordomo,
confidente e amigo, tudo num só.
Os olhos penetrantes e cinzentos de Archie tinham visto tudo.
Mas ele nunca partilhava; nunca bisbilhotava. E Dallas confiava abso-
lutamente nele.
— Fiz-lhe a mala com roupas e produtos de higiene para uma
semana — disse, depositando a mala aos pés de Dallas. — E chegou
outra carta hoje à tarde.
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Mostrou-lhe o envelope azul-claro que já se tornara familiar. Mesmo
do outro lado do quarto, Dallas sabia que o seu nome e a sua morada
estariam numa etiqueta branca, com letras impressas por uma anti-
quada impressora de agulhas. Não teria remetente.
— Desfaço-me dela? — perguntou Archie, dado que Dallas nada
dizia.
— Não. — Naquele momento, as cartas eram uma fonte de
irritação. Mas ele já imaginava o remetente a tornar-se perigoso.
— Guarda-a na minha mala. Trato disso depois.
Até então, ele não fora capaz de descortinar nem sequer o mais
pequeno indício da identidade do remetente. Mas um dia este come-
teria um erro. Aquela carta poderia contê-lo.
A expressão de Archie não se alterou, embora Dallas soubesse que
também ele se sentia frustrado com aquelas provocações anónimas
que tinham começado a chegar pouco mais de um ano antes. Limitou-
-se a enfiar o envelope num dos bolsos laterais da mala.
— Mais alguma coisa?
— A menina West telefonou.
Dallas apertou a cana do nariz. Tinha namorado com Adele West
durante uns seis meses, depois do divórcio dela, se é que se podia cha-
mar namoro àquilo. Honestamente, Dallas não sabia o que lhe chamar,
senão uma relação doentia.
Mas isso tinha acabado — e ele de certeza absoluta não queria
falar com ela naquele momento.
— Deixa a mensagem na minha secretária. Trato disso quando
voltar.
— Com certeza, senhor. — Olhou de relance para o relógio.
— O helicóptero chegará dentro de 20 minutos.
— O que faria eu sem ti?
— Usaria as mesmas roupas dias a fim, presumivelmente. Pelo
menos assim presto um serviço não só a si, mas também ao Sr. Foster
e aos outros.
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— Desde os tempos da faculdade que não uso a mesma roupa
dois dias seguidos. — Encostou uma mão afetuosa no ombro de
Archie. — Obrigado.
— Devo dizer aos seus convidados que teve de ir resolver um
assunto profissional urgente?
— Nem pensar. Diga-lhes que recebi uma chamada da… Como
se chama a atriz cujo vídeo sexual se está a tornar viral na Internet?
Diga-lhes que fui vê-la. Não vamos querer começar a reparar a repu-
tação que me esforcei tanto por destruir.
— Nesse caso, desejo-lhe boa sorte e sucesso. E, Dallas — acres-
centou, com a voz embargada pela emoção enquanto se desviava da
sua habitual formalidade —, volte inteiro.
O sorriso de Dallas foi tão rápido como presunçoso, mas a sua voz
revelou-se séria.
— Volto. Volto sempre.
Archie parecia prestes a discordar, e Dallas sabia porquê. Claro,
Dallas já participara em missões, mas, como Liam salientara, sempre
fora um fantasma.
Trabalhara em pano de fundo, na pesquisa e na análise. Agira como
testa de ferro e intermediário, interagindo com potenciais clientes,
fingindo conhecer alguém que conhecia alguém que poderia ajudá-
-los, com discrição, a recuperar os entes queridos. Frequentara festas
da alta sociedade em todo o mundo, tanto para reunir informação,
como para colocar dispositivos de escuta ou levar a cabo outras tarefas
necessárias. E, nas raras ocasiões em que participara num raide, fora
completamente equipado, para que de forma alguma alguém pudesse
reconhecer o seu rosto tão divulgado.
Daquela vez, seria diferente. Daquela vez, ele queria estar na cela.
Queria encarar Mueller e Ortega até ter a certeza de que extraíra toda
a informação possível àqueles sacanas.
E queria assegurar-se de que morriam. Ortega, o fulcro que dera
cabo da vida do próprio Dallas. E Mueller, que raptara cruelmente
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tantas crianças — que lhes destroçara as vidas e as das famílias delas
apenas por dinheiro e emoção.
— Terei cuidado — disse Dallas lentamente, de olhar fixo no velho
amigo. — Mas levarei isto até ao fim.
Archie inclinou a cabeça, aquiescendo, como um pai resignado a
enviar um filho para a guerra. Era uma metáfora adequada. Se alguém
sabia mais do que Dallas acerca da Libertação e dos seus perigos ine-
rentes, essa pessoa era Archie. Estoico, sério e senhor de si próprio,
Archie trabalhava nas sombras, equilibrando a casa de Dallas, a sua
vida diária e todo o género de atividades extracurriculares, tanto as
reais como as que fazia apenas para dar espetáculo.
Quanto às últimas, Archie inclinou a cabeça na direção do outro
lado do quarto para as mulheres ainda na cama de Dallas, com um ar
simultaneamente curioso e impaciente.
— Deixo-o para que acabe de se vestir e despedir. — Lançou uma
olhadela ao relógio. — Esteja no heliporto dentro de 15 minutos.
Não esperou pela resposta de Dallas. Em vez disso, virou-se, avan-
çou eficientemente para a porta e saiu do quarto sem fazer ruído.
— Um helicóptero? — A ruiva fez beicinho com os lábios incha-
dos. — Vais mesmo embora?
— Estiveste a ouvir a conversa?
A boca dela curvou-se para cima, numa expressão malandra.
— Se calhar, devias castigar-me.
— Vou pôr isso na agenda — disse ele. — Mas tens razão. Tenho
de me ir embora. — Consultou o relógio. Queria estar no heliporto
quando o helicóptero chegasse. Não queria desperdiçar nem um mo-
mento. — Tens o meu número de telemóvel?
— Claro.
— Manda-me fotos. — Desviou o olhar para a loura. — Mandem-
-me fotos muito interessantes.
O rubor que se espalhou pelos rostos das duas mulheres deu-lhe
mais prazer do que deveria, mas que se lixasse. Queria o que queria.
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E se uma selfie má daquelas duas a beijar-se o deixasse teso — e o dis-
traísse de Jane e de onde ia e do que ia fazer —, então queria recebê-
-la. Afinal, seria um voo muito longo até à Argentina.
Tinha acabado de agarrar numa t-shirt preta que estava nas costas
de uma cadeira quando ouviu a batida ligeira na porta.
— Entre — respondeu, esperando que Archie não fosse dizer-lhe
que o helicóptero estava retido.
Mas, quando se voltou com um olhar inquisitivo para a porta a
abrir-se, não foi o rosto eficiente de Archie que apareceu no limiar —
foi o de Jane. E, nesse momento, o coração de Dallas parou de bater.
Ali ficou especado, como um maldito idiota, especado a olhar para
a porta como se estivesse a ver um fantasma. Raios, talvez estivesse.
Era mais provável que um espetro surgisse naqueles corredores do
que aquela mulher, que, em tempos, ali vivera.
Ela vestia apenas umas calças de ganga e um top de alças cor-de-
-rosa, por baixo de uma blusa branca e transparente. Trazia o farto cabelo
castanho preso num rabo de cavalo descuidado, com umas quantas
madeixas soltas a emoldurar-lhe o rosto. Não tinha qualquer maqui-
lhagem e os olhos castanhos pareciam enormes na sua pele pálida.
Estava com um ar esgotado e apressado. Estava linda. E, mesmo pas-
sado tanto tempo — mesmo tendo combatido aquilo todos os santos
dias —, ele sentiu o desejo a perpassá-lo, ardente, exigente e dema-
siado perigoso.
Os olhos dela encontraram-no quase de imediato, e ele viu-a mani-
festamente calma, como se ele fosse mesmo aquilo que ela procurava
e tudo o que pudesse alguma vez precisar.
Os olhos dela animaram-se e o seu sorriso iluminou-se como um
raio de sol. E, nesse momento, o tempo parou e tudo ficou suspenso.
Depois, o calor dos olhos dela esfriou e o seu olhar desceu pelo
peito nu dele até às calças nas ancas, com a braguilha aberta reve-
lando as cuecas pretas que ele vestia. Dallas sentiu o membro — já a
retesar-se simplesmente por estar a vê-la — agitar-se sob a inspeção
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dela. E não tinha a certeza, mas pareceu-lhe ver dois pontos rosados
a aflorar-lhe às faces.
Ela não correspondeu ao olhar dele, virando rapidamente a cabeça,
dirigindo a atenção para a cama e para as duas mulheres nuas que
continuavam ali, a fitá-la com um ar desafiador, como se fossem donas
do coração dele. Como se significassem mais do que uma diversão.
Ele observou-a a lamber os lábios e a rodar um ombro para trás,
como um lutador antes de entrar num ringue. Quando tornou a olhar
para ele, tinha os olhos inexpressivos.
— Não me apercebi, quando passei pelas pessoas lá em baixo,
de que também tinhas uma festa privada a decorrer aqui. Deveria ter
suposto. É o que tu agora fazes, não é? Quem és tu?
— Eu sou quem sou — confirmou ele, embora tudo dentro de
si quisesse gritar que ela na verdade não estava a vê-lo. Que aquelas
mulheres e aquela vida eram apenas um jogo de espelhos e fumo.
Um disfarce.
E, sim, uma defesa contra ela. Porque, enquanto ela olhasse para
si com tanto desprezo e repulsa, estavam a salvo. Ele construíra um
muro à sua volta porque fora preciso construí-lo. E, à semelhança dos
camponeses chineses que tinham ficado barricados enquanto cons-
truíam a Grande Muralha, também ele estava preso dentro de uma
barreira criada por si mesmo.
— Não é quem tu és. — Pareceu-lhe ouvir um rogo na voz dela.
— É aquilo em que te permitiste transformar.
Mil réplicas acumularam-se na sua mente. Não deu voz a qualquer
uma delas. Como poderia, se cada palavra que ela dissera era verdade?
Quando a única coisa que ela não entendia era que ele estava a desem-
penhar um papel? Calculado e planeado. E secreto para todos, exceto
para os que melhor o conheciam. E essa era uma categoria em que
ela já não se inseria.
Ela esperou um pouco, como se contasse que ele a contradissesse,
como qualquer homem que se respeitasse no mínimo faria.
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Dado que ele se mantinha calado, ela deixou escapar um murmú-
rio de desilusão e abanou a cabeça; o desapontamento que ele via nos
olhos dela magoou-o mais do que quaisquer reprimendas.
— Vieste cá para me criticar? — Falou num tom casual enquanto
avançava para o bar, esperando que ela não se apercebesse de quanto
o afetava tê-la simplesmente no mesmo quarto que ele. — Porque,
honestamente, para isso um telefonema teria bastado. — Ergueu um
copo limpo. — Queres?
Não conseguiu interpretar a expressão que lhe ocupou o rosto.
Repugnância? Arrependimento? O que quer que fosse não importava.
Depressa foi substituída pelo sorriso falso e educado que qualquer
criança que cresça a ser o centro das atenções aprende em tenra idade.
O sorriso que protege da comunicação social intrometida e de estra-
nhos insistentes.
E, naquele momento, era a ele que o dirigia.
Deus, a que ponto tinham chegado.
— Parece óbvio que deveria ter telefonado primeiro.
Passou as mãos pelas calças de ganga, o único sinal de que estava
agitada. E, francamente, ele teria preferido que ela se zangasse con-
sigo. Era aquela treta educada e calma que o deixava mesmo lixado.
— Jane… — interrompeu-se, sem saber o que dizer. Por isso, nada
disse, limitando-se a estender a mão e a rezar para que ela aceitasse
o que lhe oferecia.
Não aceitou.
Em vez disso, abanou a cabeça, e ele sentiu as entranhas a revolver-
-se ao ver lágrimas a brilhar nos lindos olhos dela.
— Cometi um erro — disse ela, voltando-se para a porta. — Nunca
deveria ter vindo ter contigo.
E depois saiu à pressa, antes que ele pudesse fazer o que quer que
fosse para a impedir.
Por um momento, Dallas limitou-se a ficar ali especado como um
idiota. Depois, seguiu-a. Tinha de saber o que ela fora ali dizer-lhe.
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O que a levara a ir ao seu encontro ao fim de tanto tempo. Mas a per-
gunta da loura fê-lo parar.
— Quem era aquela?
Dallas enfiou as mãos nos bolsos, de costas para as mulheres e de
olhos cerrados, em protesto contra a verdade. A única verdade que im-
portava. Já não era sua amante. Ele nem sequer tinha a certeza de que
ainda fosse sua amiga.
Perdera-a, em todos os sentidos. Em todos, exceto um. E era esse
que importava. Que ele tinha de manter presente. A única ligação que
os unia tão firmemente quanto os separava.
— A minha irmã — disse ele, com a palavra a revolver-se como
parasitas nas suas entranhas. — É minha irmã.
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