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[1] Matar sem dó: retomando a ambivalência da caça, do abate e do consumo de carne nas terras baixas sul-americanas Felipe F. Vander Velden UFSCar Resumo As noções de pena e de são operadores comuns na imposição de certos limites relacionados à matança de animais no Brasil, seja na caça ou no abate de espécies domesticadas. Em vários casos etnográficos relatados, elas produzem efeitos no momento do abate de animais (domésticos e selvagens, de criação e de caça), e levam a uma cuidadosa economia de afetos e de posições (sobretudo etárias e de gênero) relativas ao ato de matar animais a fim de torná-los alimento. Em um certo sentido, Stephen Hugh-Jones, em artigo já celébre, propôs, empregando a ideia de um “mal estar moral”, um mecanismo algo semelhante de relação com o abate de animais de presa entre os caçadores indígenas amazônicos. Esta sugestão foi logo duramente criticada pelo que seria projetar um “sentimentalismo” urbano contemporâneo sobre mundos ameríndios por, entre outros, Descola e Erikson. Neste artigo, retomo a sugestão de Hugh-Jones ao olhar para o que parecem ser casos em que um mal estar moral não só efetivamente controla a matança, mas também orienta as relações entre humanos e animais em geral: o que também poderíamos compreender como a existência de uma certa sensibilidade, operada por meio de uma economia de noções similares às de pena e de entre povos indígenas e não indígenas, na Amazônia as também alhures. Discuto esta possibilidade a partir de certos fragmentos de reflexão dos Karitiana povo de língua Tupi-Arikém composto por cerca de 320 pessoas residentes no sudoeste da Amazônia brasileira sobre os (seus) animais de criação, aliadas a materiais etnográficos de outras paragens, indígenas e não indígenas. Avanço, aqui, a hipótese ainda muito preliminar de que a operacionalização dessas formas de controle afetivo- moral do abate e do sofrimento está vinculada à relação entre caça e criação/familiarização entre os grupos ameríndios, como uma das formas de tratamento de uma bastante difundida (talvez universal) aversão à morte e ao derramamento de sangue animal. Humanos e animais são unidos por vínculos originários (a mitologia o diz abundantemente); assim, para que entre eles a morte seja possível, é preciso que animais sejam tornados outros em relação aos humanos, que esse nexo originário seja obliterado, donde a separação entre relações do tipo caça e do tipo criação. Desta forma, o que poderíamos denominar provisoriamente de piedadeusada, aqui, em sentido genérico, para indicar as conexões profundas entre humanos e não humanos funcionaria como uma fenda que se abre na relação, que se quer estável, entre a morte e a necessidade ou desejo de infligi-la: é, portanto, preciso matar sem piedade, sem dó, porque quando estas existem, não se mata, não se logra matar. Nesse sentido, a familiarização de animais dá livre curso àquilo que não deve, de maneira nenhuma, emergir entre caçadores e presas de caça, sob pena de torná-la impossível: o afeto, o reconhecimento mútuo, a partilha do sofrimento e, afinal, a troca de perspectivas. Pode-se, enfim, caçar, matar, apenas porque tais afetos são conjurados, embora permaneçam insinuando-se nas múltiplas prescrições e restrições relativas ao derramamento de sangue animal nas terras baixas sulamericanas e alhures.

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[1]

Matar sem dó: retomando a ambivalência da caça, do abate e do consumo

de carne nas terras baixas sul-americanas

Felipe F. Vander Velden

UFSCar

Resumo

As noções de pena e de dó são operadores comuns na imposição de certos limites

relacionados à matança de animais no Brasil, seja na caça ou no abate de espécies

domesticadas. Em vários casos etnográficos relatados, elas produzem efeitos no

momento do abate de animais (domésticos e selvagens, de criação e de caça), e levam a

uma cuidadosa economia de afetos e de posições (sobretudo etárias e de gênero)

relativas ao ato de matar animais a fim de torná-los alimento. Em um certo sentido,

Stephen Hugh-Jones, em artigo já celébre, propôs, empregando a ideia de um “mal estar

moral”, um mecanismo algo semelhante de relação com o abate de animais de presa

entre os caçadores indígenas amazônicos. Esta sugestão foi logo duramente criticada –

pelo que seria projetar um “sentimentalismo” urbano contemporâneo sobre mundos

ameríndios – por, entre outros, Descola e Erikson. Neste artigo, retomo a sugestão de

Hugh-Jones ao olhar para o que parecem ser casos em que um mal estar moral não só

efetivamente controla a matança, mas também orienta as relações entre humanos e

animais em geral: o que também poderíamos compreender como a existência de uma

certa sensibilidade, operada por meio de uma economia de noções similares às de pena

e de dó entre povos indígenas e não indígenas, na Amazônia as também alhures.

Discuto esta possibilidade a partir de certos fragmentos de reflexão dos Karitiana –

povo de língua Tupi-Arikém composto por cerca de 320 pessoas residentes no sudoeste

da Amazônia brasileira – sobre os (seus) animais de criação, aliadas a materiais

etnográficos de outras paragens, indígenas e não indígenas. Avanço, aqui, a hipótese –

ainda muito preliminar – de que a operacionalização dessas formas de controle afetivo-

moral do abate e do sofrimento está vinculada à relação entre caça e

criação/familiarização entre os grupos ameríndios, como uma das formas de tratamento

de uma bastante difundida (talvez universal) aversão à morte e ao derramamento de

sangue animal. Humanos e animais são unidos por vínculos originários (a mitologia o

diz abundantemente); assim, para que entre eles a morte seja possível, é preciso que

animais sejam tornados outros em relação aos humanos, que esse nexo originário seja

obliterado, donde a separação entre relações do tipo caça e do tipo criação. Desta forma,

o que poderíamos denominar provisoriamente de “piedade” – usada, aqui, em sentido

genérico, para indicar as conexões profundas entre humanos e não humanos –

funcionaria como uma fenda que se abre na relação, que se quer estável, entre a morte e

a necessidade ou desejo de infligi-la: é, portanto, preciso matar sem piedade, sem dó,

porque quando estas existem, não se mata, não se logra matar. Nesse sentido, a

familiarização de animais dá livre curso àquilo que não deve, de maneira nenhuma,

emergir entre caçadores e presas de caça, sob pena de torná-la impossível: o afeto, o

reconhecimento mútuo, a partilha do sofrimento – e, afinal, a troca de perspectivas.

Pode-se, enfim, caçar, matar, apenas porque tais afetos são conjurados, embora

permaneçam insinuando-se nas múltiplas prescrições e restrições relativas ao

derramamento de sangue animal nas terras baixas sulamericanas e alhures.

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“Mas até onde recuam os registros

históricos, os humanos expressaram

ambivalência sobre a presença inerente da

violência e da morte envolvidas em comer

animais.”

Jonathan Safran Foer, Comer animais.

Meu ponto de partida nesta incursão, ainda muito preliminar, sobre certos

mecanismos de controle afetivo-moral do abate de animais e sobre a circulação de

formas de sensibilidade na relação entre humanos e animais entre povos indígenas nas

terras baixas da América do Sul, é a narrativa, transcrita do caderno de campo de meu

ex-aluno Fabiano José Alves de Souza1, em pesquisa entre os índios Pataxó que,

deslocados do sul da Bahia, vivem hoje mais ao sul, na Reserva Indígena Fazenda

Guarani, leste do estado de Minas Gerais. Tomo emprestadas as palavras dele:

Eram os primeiros dias do mês de outubro de 2011. Eu estava na aldeia

Imbirussu, (Carmésia, MG), acompanhando o cacique Romildo. Quando

estávamos saindo da Mata da Racha, já em uma área aberta, descampada, ele

viu uma cacinha de bambu (nome nativo), um roedor muito parecido com uma

preá, porém, de tamanho maior. Romildo conseguiu capturar com as mãos o

animal depois de uma intensa correria. Agachado, sentando sobre seus

calcanhares, ele começou a bater com a ponta do facão na cabeça da caça,

quando ele percebeu que o animal estava demorando a morrer. Desconfiado,

Romildo ergueu a cabeça e me indagou se eu estava com dó da cacinha de

bambu. Afirmando o que realmente estava acontecendo comigo, eu disse que

estava com pena do bichinho. Balançando a cabeça, num gesto de insatisfação,

ele começou a bater com mais força o facão na cabeça do animal e me

disse: “esse bicho nasceu prá morrer mesmo, nasceu para ser comido mesmo,

para servir de caça para nós. Não tem que ter dó”. Depois deste dia eu não

mais fui convidado para participar das caças. Eu estava atrapalhando a morte

dos bichos (grifos meus).

Eventos como estes, nos quais se verifica uma cuidadosa economia de afetos e

de posições (sobretudo etárias e de gênero) relativas ao ato de matar animais a fim de

torná-los alimento, não são incomuns em várias regiões do mundo rural brasileiro, onde

a interposição de noções de dó/pena – promovida, em geral, por mulheres e crianças

1 Registro meu agradecimento ao Fabiano ter me permitido utilizar este excerto de seus cadernos de

campo. Muito mais a respeito do pensamento Pataxó pode ser encontrado em sua tese de doutorado

(Alves de Souza 2015).

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(mas também, note-se, de antropólogos) – entre homens e criaturas destinadas ao abate

faz o animal “demorar a morrer” (Siqueira 2012: 21) ou “estraga a carne” (Dantas

2008, ver também Brandão 1999: 69-78). Tal fenômeno também se verifica na

Amazônia, como neste caso, entre os Puruborá no centro do estado de Rondônia, de um

cachorro, Bob, morto a pauladas pela dona porque insistira em devorar seus filhotes de

pato no quintal. De acordo com Tarsila Menezes, outra ex-aluna (2016: 56, grifo meu):

É interessante narrar a história do cachorro Bob, que morreu na tentativa de

comer os patinhos do terreiro da única casa que os cria. A dona dos patos o

matou com uma paulada (o mesmo que se usa para pilar) na cabeça. Conforme

as Puruborá, o cachorro teve uma morte demorada porque a mulher que o

matou estava grávida, e o bebê, ainda na barriga da mãe, teve pena do animal:

“quando se mata com dó o bicho ressuscita”. Como consequência, a mãe da

criança afirma que sua filha tem muito carinho pelos animais, não gosta de

maltratá-los, e faz birra quando vê algum animal morto ou morrendo.

Em todos estes casos – seja na caça, seja no abate doméstico – o sentimento de

pena ou dó do animal, demonstrado por alguns indivíduos – mulheres, crianças e um

etnógrafo – funciona como uma espécie de barreira contra o sofrimento imposto à

vítima: o animal não deve sofrer (inutilmente e excessivamente), e sua morte deve ser

rápida. Talvez essa ideia, aqui aplicada aos animais, derive da oposição, fartamente

verificada no Brasil, entre uma morte bonita, tranquila e sem sofrimento, e uma morte

feia, aquela “trágica, a patentear temores, pusilanimidade, pavor, a sentir dores

cruciantes, com esgares, trejeitos” (Câmara Cascudo S/d: 591)2. Esta forma de controle

afetivo-moral do abate e do sofrimento também poderia expressar um imperativo ético

diante de uma vida que precisa ser tirada para que outras floresçam, dada a profunda

implicação – reconhecida, por exemplo, entre os povos indígenas na Amazônia – da

“morte na vida” (death in life) (Kohn 2013: 18).

Não quero sugerir, evidentemente, que o que descreve o rural brasileiro explique

tudo a respeito dos Pataxó em Minas Gerais ou aos Puruborá em Rondônia, ainda que

mais e mais autores venham destacando os rendimentos teóricos de não se isolar as

sociedades indígenas de seus vizinhos, demonstrando que as redes de relações práticas e

2 Estas mesmas considerações estão por trás das discussões a respeito do abate humanitário, conjunto de

normas técnicas aplicadas à indústria da carne e destinadas a diminuir o desconforto e o sofrimento

envolvidos na ação de matar. Os complexos fundamentos afetivo-morais – que afetam, portanto, a

racionalidade da produção industrial – desse conjunto de normas são analisados, entre outros, por Vialles

(1994), Dias (2009), Pachirat ( ), Perrota (2015), Stefanuto ( ) e Froehlich (2016). De todo modo,

cuidar de animais é permitir sua boa morte (Law 2010: 61).

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simbólicas vão, sempre, muito além das fronteiras das aldeias (Mura Iglesias Lima ).

Conforme a etnologia contemporânea vem lutando para afirmar a oposição entre uma

mais pura “indianidade” na Amazônia e uma “baixa distintividade cultural” dos povos

indígenas no leste e nordeste brasileiro é ilusória: todos os índios produzem-se como

índios o tempo todo (Viveiros de Castro 1999) e, no Brasil, “todo mundo é índio, exceto

quem não é” (Viveiros de Castro 2006). A própria riqueza do material recolhido por

Fabiano no interior de Minas Gerais é testemunho disso (Alves de Souza 2015).

Minha intenção, aqui, é retomar algumas ideias propostas anos atrás por Stephen

Hugh-Jones (1996), ao sugerir abordar a ambivalência no consumo de carne (daí meu

título) nas sociedades indígenas nas terras baixas por meio de uma leitura paralela às

noções ocidentais ligadas à matança de animais e à alimentação carnívora. Meu ponto

aqui é como as noções como pena, dó, sentir (ou sentimento) ou sofrer (ou sofrimento)

– como expressões populares que se aproximariam do que se denomina, nos círculos

cultos, de compaixão ou piedade – podem emergir nos discursos indígenas sem que isso

signifique uma projeção de sentimentalismos urbano-ocidentais sobre cosmologias

indígenas (como quer Descola 1998 criticando a sugestão de Hugh-Jones) ou a

emergência de “novas sensibilidades” com respeito aos animais no mundo

contemporâneo vinculadas, necessariamente, ao distanciamento (espacial e simbólico)

intencionalmente criado entre humanos e não humanos (Thomas 2001) e a posterior

erosão desse mesmo fosso no tocante aos animais de companhia, os pets, tornados, ao

que parece, cada vez mais próximos de nós (Kulick ) e, por esta razão, merecedores

dos mesmos afetos que dedicamos aos nossos co-específcos humanos.

O que eu quero sugerir, seguindo os passos de Hugh-Jones, é que matar animais

(e, posteriormente, comer a carne do animal abatido) jamais parece ser ato isento de

considerações morais e afetivas/emocionais, e que há uma circulação destas noções –

dó/pena/sofrimento, ou noções nativas correlatas – que torna possível a matança ao

radicá-las nos outros – mulheres, crianças e estrangeiros – liberando, assim,

particularmente os homens caçadores (e matadores por excelência) deste fardo. Nesse

sentido, a operacionalização dessas modalidades de controle afetivo-moral da matança e

do sofrimento dos animais funcionaria, antes, como um operador simbólico das

distinções de gênero e idade que tornariam possível o derramamento de sangue: o

caçador tem que matar sem dó porque este mesmo afeto protege os animais dos

excessos; manifestar qualquer vínculo afetivo implica, seguramente, na impossibilidade

do abate. A própria circulação desses conceitos ou de conceitos similares parece indicar

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uma sensibilidade possível no horizonte: aquela que é preciso obliterar para matar, e

isso não apenas diante de animais domésticos ou familiares (aqueles mais próximos do

convívio humano), mas também quanto aos animais predados nas atividades de caça na

floresta, como bem ilustra o exemplo citado acima entre os Pataxó em Minas Gerais. No

limite, a piedade sempre pode vir a se interpor ao ato, tornando-o impossível. A pouca

atenção dispensada a esses estados emocionais pela antropologia, parece-me, está na

raiz de uma certa naturalização da caça como atividade definidora não só da economia,

mas também das masculinidades – e mesmo das indianidades – na Amazônia.

* * *

O evento vivido por Fabiano, assim como o sentimento – e, mais, os efeitos

deste sentimento – experimentado por ele não são estranhos a muitos etnólogos em

campo: recordemos Philippe Descola expressando seu desgosto em ter de atirar, pela

primeira vez, em um bando de macacos que “zombava deles na copa das árvores”,

encorajado pelos Achuar a estrear o rifle novinho adquirido especialmente para a

pesquisa etnográfica (Descola 1998: 31); ou Paul Nadasdy (2003: 86), trêmulo e

nauseado após matar pela primeira vez com as próprias mãos uma lebre branca, que

resisistiu viva às várias tentativas desajeitadas do etnólogo-tornado-caçador. A mesma

ambivalência – na forma da aversão – foi observada por Hugh-Jones (1996) entre seus

filhos, pela primeira vez no alto rio Negro, diante da carne de animais que conheciam

apenas dos zoológicos e livros infantis, ponto de partida para suas reflexões que nos

mobilizam aqui.

Em seu artigo de 1996, Stephen Hugh-Jones nota as similaridades, antes do que

as diferenças, entre as atitudes quanto à morte de animais e ao consumo de seus corpos

na Amazônia indígena e na Europa moderna: em ambos os contextos etnográficos, diz o

autor, impera uma significativa ambivalência diante dessas práticas, um desconforto –

velado ou obliterado, sempre, e esse é o ponto que nos interessará adiante – quanto ao

fato de que a produção de toda a vida depende da destruição e da desintegração da vida

(Hugh-Jones 1996: 126).

Hugh-Jones elenca um conjunto bastante rico de evidências que apontam para

uma problematização da matança de animais e do consumo de carne na Amazônia, mas

seus dados, lidos em paralelo com estudos sobre o carnivorismo na sociedade ocidental

– onde não parecem restar dúvidas sobre as profundas implicações simbólicas do

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consumo de produtos de origem animal (Sahlins Vialles 1994; Fiddes 1991; Foer

2011) – , acabam por levá-lo à conclusão de que há muito em comum na forma como

ameríndios e europeus veem a carne, significam e simbolizam a carne e se relacionam

com ela, sobretudo quanto a uma má consciência manifesta em todo abate sangrento e

consumo de animais (Hugh-Jones 1996: 131)3. Esta má consciência ou ambivalência

estaria diretamente ligada, nas terras baixas da América do Sul, ao fato de que os

animais são pessoas e à intimidade ou proximidade das relações que conectam humanos

e não humanos (Hugh-Jones 1996: 134).

Talvez em resposta antecipada às críticas de matriz estruturalista de Philippe

Descola (1994 e 1998), Hugh-Jones (1996: 134) faz uma ressalva: a de que não está

sugerindo que os povos indígenas sentimentalizam [are prone to sentimentalise] suas

interações com os animais, e nem que suas atitudes para com esses seres sejam

diretamente comparáveis aos modos de relação entre uns e outros no mundo

contemporâneo. Meu ponto, contudo, é perguntar: é de sentimentalismo – no sentido de

pieguice – que se trata? Ou de sentimento, no sentido muito mais produtivo – e não

menos codificado – de afeto, daquilo que afeta? Os índios não podem ter compaixão ou

piedade, não podem ser afetados pela percepção da proximidade ou da similaridade com

seres outros? Não podem ter empatia, sendo mobilizados pela compreensão do

sofrimento alheio? Não estarão esses afetos potencialmente sempre no horizonte das

relações entre humanos e animais? É em torno dessas questões que circula o texto que

se segue.

De passagem, apenas desejo lembrar que desde Lévi-Strauss ( )

sabemos que sentimentos humanos conformam um código, uma gramática que

prescreve e sanciona afetações individuais; nesse sentido, a crítica de Descola equivoca-

se, me parece, ao apostar numa distinção entre intelectual e afetivo (entre estrutura e

sentimento), alertando para a primazia do primeiro em relação ao segundo, e igorando,

assim, o que dizia seu mestre (Lévi-Strauss ) a respeito da expressão etnográfica do

pensamento selvagem em seu duplo aspecto, justamente, e invariavelmente, afetivo e

intelectual. Ademais, ainda que a atenção às práticas de cuidado (care) sugira um

movimento intelectual que se afasta de “versões racionais do humano” (Mol, Moser &

3 Entre estas evidências das questões colocadas aos povos indígenas pela necessidade de matar e comer

animais está a conhecida conversão da carne de animais abatidos em vegetais inofensivos pelos xamãs

Piaroa (Overing Kaplan 1975: 39). Note-se que a vegetalização também não é estranha às formas de

consumo de corpos animais no ocidente: peixes, com frequência, tendem ao vegetal, o que fica expresso

no vocabulário empregado nas relações fágicas com animais aquáticos: frutos do mar, coleta ou colheita

de pescado (Bérard 1993).

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Pols 2010: 15), deve-se reconhecer que o aspecto afetivo não se refere à sentimentos, ou

a emoções românticas, mas a um conjunto de práticas enraizadas na vida real e que

conformam uma economia de sentimentos ou do cuidado (Harbers 2010: 163). Assim,

pode-se dizer que os sentimentos ou afetos referidos aqui estão entre as emoções e as

estruturas, duplamente enraizados no intelecto e no afetivo (o que seria, talvez, o estofo

da moral).

* * *

Algumas poucas evidências etnográficas apontam para a existência de afetos

análogos ao que vou chamar aqui, por economia, de piedade com relação aos animais

caçados na Amazônia e em outras paragens das terras baixas. Laura Rival (1996: 150)

argumenta que, às vezes, certo animal pede por sua vida aos caçadores Huaorani

(Amazônia equatoriana) sendo, desta forma, poupado nas caçadas; essas “relações

pessoais”, de acordo com a autora, são estabelecidas por meio do contato visual, que

tem o poder de “levar humanos à compaixão” (Rival 1996: 162, minha tradução). Rival

fala em “compaixão” (compassion) ao insistir sobre a possibilidade da troca de olhares

que garante aos Huaorani que ali, naquele corpo de macaco, há uma vida que deve ser

poupada com base em laços interpessoais.

Entre os Xukuru no agreste de Pernambuco, nordeste do Brasil, Clarissa Martins

Lima (2013) documentou a ambiguidade envolvida na morte de animais entre

domesticados e silvestres. No primeiro caso, os Xukuru – de maneira análoga ao caso

dos marchantes seridoenses (no Rio Grande do Norte) descritos por Dantas (2016) –

afirmam que, apesar de não possuírem alma, alguns animais domésticos são criaturas

“abençoadas por Deus”, o que faz com que, nas palavras de uma informante da autora,

“quem mata gado e ovelha não é feliz, não, que eles são abençoados” (Lima 2013: 135-

137). No caso dos animais selvagens a presença de alguma “força espiritual” pode ser

detectada em uma presa em potencial que, ao contrário do que se espera, não foge à

presença humana e encara o caçador de frente. Lima (2013: 137) conta o caso de um

caçador, conhecido como Bacurau, que:

“[...] na sua infância, costumava caçar. Mas parou quando, durante uma

caçada, se deparou com um veado que ficou encarando ele. Nesse dia ele se deu

conta de que poderia ser um sinal de Deus, ou mesmo algum parente falecido

que estava ali, no corpo do animal, para lhe dar um recado”.

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Caçadores ribeirinhos (não indígenas) na Reserva de Desenvolvimento

Sustentável Piagaçu-Purus (Amazonas, Brasil) por vezes manifestam sentimentos

semelhantes, especialmente dirigidos aos primatas (considerados “parecido com gente”

ou “já ter sido gente”), mas não apenas:

O apelo antropomórfico dos primatas é também evidenciado em diversos relatos

dos moradores da RDS-PP e reflete experiências e relações afetivas pessoais

que restringem o consumo de diversas espécies pelos entrevistados, como pode

ser percebido nos seguintes relatos: “Atirei em um barrigudo uma vez, quando

fui cacetar pra matar, ele colocava a mão de todo jeito, pra não matar, dava

pena dele”; “Atirei numa macaca-prega prenhe, fiz o parto, era todinho uma

pessoa... Me deu muita dó daquele bichinho” (Vieira & Shepard 2017: 48,

meus grifos).

O meu próprio material, proveniente de quinze anos de pesquisa entre os

Karitiana, povo falante de uma língua Arikém, do tronco Tupi, e localizado no norte do

estado de Rondônia (sudoeste da Amazônia brasileira)4, nada diz sobre os sentimentos

envolvidos nas caçadas, exceto os temas gerais elencados por Hugh-Jones (1996):

restrição quanto ao exagero, excesso ou falta de propósito no abate de animais, atitude

circunspecta e respeitosa para com as carcaças, tratamento adequado dos despojos e as

muitas sanções aplicadas pelos donos/mestres dos animais contra caçadores

desavisados, excessivamente violentos ou mal-intencionados. Para além da sugestão de

Hugh-Jones de que esses são mecanismos que apontam para o caráter ambivalente da

matança e do consumo de carne nas terras baixas – mais do que formas de manejo

ambiental ou de racionalização do acesso a proteínas – a relação dos Karitiana com seus

animais domesticados (animais de criação, como dizem) parece-me indicar que as

noções de pena/dó/sofrimento podem espreitar, também na Amazônia, as relações entre

humanos e animais. Sofrer pelo animal parece estar no horizonte da reflexão dos

Karitiana sobre suas relações com estes seres, e isso não é só assunto de mulheres e

crianças, ou dos excessivamente sensíveis antropólogos. Estaríamos, assim, frente a um

contexto em que caça e criação/familiarização seriam relações opostas no que tange ao

4 Os Karitiana somam cerca de 320 indivíduos, que habitam cinco aldeias, três no interior e duas fora da

Terra Indígena Karitiana, com 89 mil hectares, e em processo de revisão de limites (lamentavelmente

paralisado pela justiça federal em 2013). Para informações gerais a respeito deste povo, consultar Storto

& Vander Velden (2005) e Vander Velden (2012).

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sentimento: não há pena da presa na floresta, mas pode havê-la no caso daqueles seres

comensais, que se criam nas aldeias e que é necessário, muito eventualmente, matar.

Creio que a chave para a compreensão do que estou propondo aqui está nos

processos de familiarização de animais, ou seja, nos mecanismos de transformação de

animais em princípio estranhos em membros, em certo sentido, das famílias humanas

“como filhos” – note-se a metáfora, que não é uma afirmação literal – , tal como dizem

os Karitiana. Não tenho espaço para detalhar as múltiplas dimensões do fenômeno, algo

que fiz mais aprofundadamente em outro lugar (Vander Velden 2012). Quero aqui,

apenas, destacar um aspecto da consolidação do vínculo humano-animal entre os

Karitiana, com especial foco nos cachorros, algo que nunca pude explorar

detalhadamente até o momento.

Atentemos para o que dizem alguns Karitiana sobre os cães, legião em suas

aldeias, como é comum em outras comunidades indígenas no Brasil. Cachorros

caçadores são preferidos porque “ajudam as pessoas”; no entanto, a caça oferece um

risco considerável aos animais, fato que não só podemos acompanhar com relativa

frequência no transcorrer dos dias nas aldeias, como se converte em tópico constante

das conversas dos índios. Diz Gumercindo Karitiana:

“Eu que não tenho cachorro, só gosto de cachorro caçador, para matar caça,

pois ele ajuda as pessoas, mas criar por aí [sem razão utilitária?] eu não gosto,

não, é muito cheiroso [fedido]. Tempo eu criava muito cachorro caçador, mas a

pessoa sente muito quando morre, [porque] cachorro mata caça, e ajuda o

pessoal, e cachorro também não vive muito, porque caça brava mata muito

cachorro”.

Não ter cachorros porque se “sente” sua morte, no jogo perigoso e imprevisível

(ainda mais na Amazônia da circulação das perspectivas) entre predador e presa: esta é

uma objeção comum que muitos caçadores Karitiana têm verbalizado para justificar que

não se fazem mais acompanhar na mata por seus cães de caça. Mas esta capacidade de

sofrer pela morte violenta de um animal estimado – porque útil, mas não só – pode

aparecer na vida mais amena do cotidiano das aldeias, na forma de um sentimento de

compaixão direcionado não a animais em particular, mas à situação dos cães em geral,

sabidamente precária. Narra Antônio Paulo:

“Eu não quero pegar mais cachorro, porque eles sofrem muito com fome,

apanha. Eu não gosto de ver cachorro sofrer. Eu não quero, mas mulher pega

assim mesmo.”.

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Com o que concorda com seu filho Antônio José, adicionando um motivo

frequente do sofrimento canino, o abandono temporário dos animais nas residências,

quando as famílias se deslocam para as cidades:

“Eu não quero mais cachorro, não tem mais, morreu tudo. O pessoal tem que

sair da aldeia, aí cachorro fica sozinho, com fome, ninguém dá comida, sofre

muito”.

“Quando tem criação, sofre muito por causa de criação”, diz-se com frequência.

Antônio Paulo diz que não gosta de ver os animais sofrerem, e Cizino diz ser “feia” a

atitude de deixar os cachorros solitários na aldeia, com fome e sem cuidados. Isso leva à

demonstrações dessa atitude que pode ser denominada de piedade, como a atenção

dispensada pelo pajé Cizino a um gatinho que, na Casa do Índio de Porto Velho, teve

uma das patas quebradas ao ser espancado. Os exemplos de atos de compaixão e

expressões de afeto e preocupação para com animais entre os Karitiana poderiam ser

multiplicados.

Estaremos, aqui, diante da emergência de uma nova sensibilidade (cf. Thomas

2001) para com o sofrimento envolvido na vida ou na morte de cães e outros animais

familiares? Estarão os Karitiana emulando a afeição que observam muitos não índios

dirigirem a seus animais domésticos, evoluindo neste quesito, por assim dizer, da

barbárie para a civilidade, como teria feito o ocidente (Thomas 2001)? Haveria, nisso,

alguma influência da intensa penetração, tanto efetiva quanto discursiva, da pecuária na

região norte de Rondônia, conduzindo os Karitiana a uma reconfiguração de suas

relações com os animais nos moldes da fazenda, coisa que parecem fazer em outros

domínios (cf. Vander Velden )? Estarão, por outro lado, os Karitiana reconfigurando

os animais de presa por meio de novas relações com eles em função da difusão e

penetração aceleradas dos discursos das várias denominações evangélicas com as quais

o grupo têm contato desde meados dos anos de 1970, da mesma forma como os Ifugao

convertidos ao Pentecostalismo nas Filipinas reconstituem os porcos por meio da

reconfiguração de suas relações com estes animais e com os humanos em geral (Remme

2014: 140-141)? Ou, alternativamente, estarei eu mesmo projetando um

sentimentalismo todo meu (se é que o tenho...) sobre os modos Karitiana de pensar e

tratar animais, incorrendo, mais uma vez, no erro anti-estruturalista denunciado por

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Philippe Descola (1998), ao julgar os afetos de caçadores indígenas por meio dos

critérios disponíveis para avaliar as relações com animais – mascotes ou rebanhos,

companhia e recurso – no meu mundo (Harbers 2010: 143)?

Noto, de partida, que ao sugerir que pelo menos alguns Karitiana sentem e

recusam o sofrimento dos animais eu não estou dizendo que estes animais são objeto

dos cuidados tão sistemáticos que, nas sociedades urbanas contemporâneas – e segundo

alguns autores (Serpell 1996; Thomas 2001; Kulick 2009) – têm forçado mesmo uma

revisão das fronteiras entre humanidade e animalidade. Estou apenas enfatizando que o

afeto, expresso pelas ideias de sentimento ou sofrimento (transformações dos

sentimentos de dó ou pena) – e não apenas para com os animais de que são donos, mas

com os animais familiares como um todo – fornece o estofo das relações entre humanos

e animais nas aldeias. Tratar-se-ia, aqui, de algo próximo à empatia, da capacidade de

colocar-se no lugar do outro, de sentir o sofrimento do outro (de Waal 2010)?

Não creio que estes sejam sentimentos novos, oriundos da experiência do

contato. Vocês poderiam argumentar, entretanto, que os animais familiares (os animais

domésticos ou de criação) são fundamentalmente diferentes dos animais de caça, tanto

que algumas línguas indígenas terão mesmo termos distintos para designar animais do

que reconhecemos como a mesma espécie zoológica, a depender se são criados em casa

ou abatidos na floresta (Erikson 1987). Tal distinção vale para os Karitiana mesmo,

entre os quais é a modalidade de relação que estrutura o sistema classificatório: os

animais caçados (e comidos) são, literalmente, carne (himo), ao passo que esta

classificação jamais pode ser estendida aos animais domésticos, referidos genericamente

como by’edna (“minha criação”). O que essas questões de afeto, pena, dó, sofrimento e

sentimento, então, teriam que ver com a caça? Não é sabido amplamente, por meio da

literatura especializada, que os povos amazônicos não demonstram quaisquer pruridos

de piedade, culpa ou atenção ao sofrimento do animal abatido, e a únicas emoções que

as caçadas despertam são tão somente a excitação e o prazer, além do dever cumprido?

Serão mesmo? Retomo, aqui, o exercício especulativo de Hugh-Jones no artigo

supracitado (1996): o de apostar nas semelhanças, muito mais do que nas diferenças,

que unem nós e eles, o ocidente industrial moderno e os povos indígenas nas terras

baixas sul-americanas. Com efeito, qual é o mecanismo que transforma a caça potencial

– filhotes recolhidos na floresta – em animal familiar – criados na companhia dos

humanos – se não o afeto, descrito pela teoria etnológica como familiarização? Os

Karitiana tornam seus animais de criação “como filhos”, e não estarão aí os mecanismos

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de compensação, que Philippe Erikson (1987) indica subsidiarem a adoção de pets na

Amazônia? Não é de afeto que se trata o recolher filhotes órfãos e indefesos por conta

da morte violenta, nas mãos dos homens, de suas mães?

E, aqui, eu retorno ao relato do Fabiano, com o qual iniciei esta reflexão. Se o

afeto tece os laços entre humanos e não humanos nas aldeias indígenas, vedando a

matança dos animais familiares que, em geral, jamais serão caça novamente, não é

porque algo marca a distância entre índios e animais na floresta, algo que franqueia o

derramamento de sangue? Algo que espreita todas as formas do combate5, e que,

quando irrompe – no momento em que a pena, a dó, o sentir por e o sofrer por se

interpõem entre homem e animal – leva a reações de agressão desmedida contra a presa,

em geral proibidas na América indígena, tal qual a tentativa raivosa do caçador Pataxó

que não vê morrer o preá-alimento por causa da compaixão do etnólogo. O respeito para

com a presa parece prejudicado pela irrupção da compaixão e pedir então, com isso, o

excesso. E o desrespeito traz consequências: a caça converte-se definitivamente em

guerra, confundindo perspectivas (Fausto 2007: 501); e o animal “não pode ser tratado

como um inimigo” (Erikson 1986: 194), sob a ameaça premente da vendetta.

Etnólogos, mulheres e crianças6 são as máquinas de guerra da afeição contra a

força bruta dos homens, caçadores e guerreiros. Se aos homens cabem as armas de caça

e guerra, às mulheres e aos estrangeiros – fracos e limitados, por definição7 – cabem as

técnicas do amansamento e da familiarização, da criação e sustentação de laços afetivos

e emocionais com os animais. Nesse sentido, a familiarização de animais dá livre curso

aquilo que não pode emergir entre humanos e presas de caça, sob pena de torná-la

impossível: o afeto, o reconhecimento mútuo, a partilha do sofrimento – e, ao fim e ao

cabo, a troca de perspectivas. Pode-se, enfim, caçar, matar, apenas porque tais afetos

são conjurados, embora permaneçam insinuando-se nas múltiplas prescrições e

5 Sabemos que guerra e caça, na Amazônia, se interpenetram de formas diversas (ver Dal Poz 1993; Lima

1996, Fausto 2007, entre outros). No entanto, tendo a concordar com Matt Cartmill (1993) em sua

argumentação sugerindo que a associação entre caça e guerra – a “caça como guerra” e o “caçador-

guerreiro”, a caça como praeludium belli – e o animal como inimigo (cf. Oehrl 2013, sobre a caça ao urso

na Europa germânica) – são tropos poderosos e secularmente difundidos no pensamento ocidental, o que

indicaria a necessidade de cautela crítica em sua retomada nos mundos ameríndios.Talvez o que os povos

indígenas estejam fazendo, ao evitar a violência da guerra nos eventos de caça (ou seja, impedindo que a

caça se converta em guerra), seja justamente mantendo apartados o que o pensamento ocidental conectou.

Ver também, a respeito, Kwon (1998). 6 Que etnólogos sejam infantilizados entre povos outros ninguém discutirá; que sejam feminilizados

decorre, talvez, das atividades nas quais se engaja em campo e/ou de seu posicionamento diante de

formas nativas de organização das distinções de gênero. Eu, por exemplo, não caço, e quero suspeitar que

a maioria dos etnólogos na Amazônia também não o faça. 7 Estrangeiros, qua inimigos, são sempre fracos, falíveis, pouco confiáveis, irresponsáveis, intrometidos,

agressivos, belicosos, egoístas, ou seja, menos que humanos (Santos Granero 2009).

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restrições relativas ao derramamento de sangue animal nas terras baixas sulamericanas e

alhures.

Todavia, os homens podem também ter pena, e sofrer pelo animal,

eventualmente: isto, dizem os Karitiana sobre os pobres cães de aldeia. Mas o efeito

disso é a recusa masculina em ter animais, como que a exorcizar o peso emotivo desta

relação, ao passo que as mulheres podem dar livre curso ao sentimento: na prosa direta

de Antônio Paulo, “mulher pega [cachorros] assim mesmo”. Talvez, enfim, Loretta

Cormier (2003) tenha razão em dizer que algo na identidade feminina deve estar mesmo

fortemente vinculado à criação de animais mascotes.

Relações afetivas parecem ser, pois, a interposição feminina – não temporal ou

derivada, note-se, mas lógica – entre os homens caçadores e presas animais8. Oposto

simétrico da eventual reconversão de animais de criação em caça, que observei por duas

vezes entre os Karitiana: entre uma mulher e uma de suas galinhas intervém um homem

e seu arco e flechas. Mesmo galinhas domésticas devem ser, portanto, caçadas para que

sejam comidas, posto que aquilo que se familiariza não se pode matar, ou não se mata

com tanta facilidade (cf. Dalla Bernardina 1991). O ritual Cinta-Larga, no qual um

animal doméstico é morto a flechadas na posição do anfitrião, diz a mesma coisa: no

intante em que atiram no animal de criação, os guerreiros gritam relembrando os muitos

animais “silvestres” que mataram em caçadas (Dal Poz 2004: 273). Para matar, é

preciso desfamiliarizar – solicitar a outrem, interpor as armas, lembrar da floresta,

roubar ou comprar para comer animais alheios (como fazem os Karitiana; cf. Vander

Velden ). Os exemplos de outros povos indígenas e da pecuária brasileira,

elencados acima, expressam a mesma coisa com relação à criação animal: para matar e

converter em alimento, entrega-se o serviço a um outro – entregamo-lo, não é fato,

coletivamente, à indústria da carne? Ou afastam-se mulheres e crianças, para que o afeto

não irrompa, retardando o golpe de misericórdia por meio de algo que parece conectar

humanos e não humanos.

Penso ser, possivelmente, a individuação de certos animais o mecanismo de

criação destes vínculos afetivos que aborrecem a caça. Assim é com os pets, animais

familiares, que passam por processos de aparentamento, recebem nomes próprios,

possuem donos, são cuidados e têm sua morte chorada (Vander Velden 2012). É o caso

8 A presença feminina no universo da caça é com frequência problemática, haja vista a recorrente

incompatibilidade entre mulheres e armas, e entre menstruação e toda a empresa de conversão de animais

em alimento, desde a saída para a floresta até a cozinha.

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do animal que comunica aos Huaorani pedidos de clemência, e que por meio da troca de

olhares tem sua vida poupada: trata-se, sempre, de um animal em particular, e não

todos, nem mesmo o restaste de um bando de macacos ignorantes da solicitação

individual de um de seus membros (Rival 1999).

A afeição, portanto, individualiza: tira da massa indiferenciada da espécie a

singularidade do sujeito que se considera, com o qual se empatiza. Assim a piedade

levanta uma barreira contra a brutalidade, e sua emergência, mesmo que inesperada,

sinaliza o limite da matança. Ao envolver aquele desafortunado preá com sentimento,

Fabiano abriu uma fenda na relação, que se quer estável, entre a morte e a indiferença a

ela (que se explica, então, pela necessidade ou fome, pelo esporte ou construção da

pessoa): é preciso matar sem dó, porque com dó não se mata9.

Os Piro na Amazônia peruana parecem ter dito a mesma coisa a Peter Gow

(1991: 103, nota 11), só que fraseada numa linguagem em que a individuação encontra-

se associada à sabedoria ou esperteza dos animais e a sua proximidade com os donos da

caça; apenas aqueles que são muito estúpidos ou ignorantes podem ser abatidos para

consumo, e destes não se deve ter pena:

“The animals killed are not those most closely protected by the owner, for a

hunter told me, ‘Never pity the game animals. If you feel pity for them, don’t

hunt them. The animals which get killed are the ignorant ones’ (…)”.

Não sinta pena, pois os animais são ignorantes. Mate-os. Mas se sentir pena, não

cace. Os animais protegidos mais de perto por seus donos, disse o mesmo caçador ao

etnógrafo, você sequer vê na floresta: o que tem dono não se abate, pois não se vê,

comentário sobre a virtual incapacidade de formular esta hipótese, a de matar animais

com donos. Os outros, multidão, não merecem a compaixão, mas a panela. No entanto,

a piedade está lá, posto que aventada pelo caçador.

* * *

9 Não é precisamente assim que opera, entre nós, o mecanismo da individualização dos animais

domésticos frente à massa anônima da criação industrial? Afora os exemplos do mundo rural, que já

evoquei, o que dizer dos matadouros industriais, onde a indefinição de quem efetivamente mata o animal

– aquele que insensibiliza ou aquele que sangra, criando-se entre eles uma espécie de “limbo” onde se dá

a morte – também não fala das imensas ambiguidades envolvidas no ato de matar (e de comer, afinal)

animais (Vialles 1994; Dias 2009)? E todas as formas de estetização da carne (Vialles 1994) que, entre

nós, conduz à alienação (Dias 2009) do consumidor em relação ao fato de que o produto que consome foi,

outrora, uma criatura viva e senciente, dizem, por acaso, outra coisa?

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Tudo isso que estou dizendo parece ir de encontro ao que é amplamente descrito

na literatura sobre as culturas indígenas nas terras baixas: que a caça tem um papel

absolutamente central nessas cosmologias (Viveiros de Castro 1996b), que não há

nenhum sentimento (como sentimentalismo) envolvido na caça e na morte violenta de

animais (Descola 1998), nem mesmo por parte das mulheres, sempre ávidas por carne

gorda e ouvintes atentas das conversas e histórias que os homens contam alegre e

prazenteiramente sobre caçadas e encontros com animais. Afinal, essas são sociedades

de caçadores, que dependem das presas animais para sobreviver e, assim, não podem se

dar ao luxo de desenvolver, para com esses animais-comida, quaisquer vínculos de

natureza afetiva ou emocional, tal como gostariam ecologistas e defensores dos direitos

animais.

Meu ponto, contudo, é que tomar apenas as práticas e as narrativas indígenas

acerca da caça nada nos dizem sobre os aspectos afetivos envolvidos na interação

violenta entre homens e animais. Com efeito, que mecanismos atuam para permitir que

se mate um animal? Alguns autores detectaram o funcionamento de uma lógica da

sedução, em que o caçador (homem) envolve a presa (neste caso, feminilizada) por

meio de artes eróticas para, ao fim e ao cabo, abatê-la. No entanto, conforme a inspirada

leitura de Roland Barthes (1989), no jogo arriscado da sedução, cabe questionar: quem

é, de fato, a presa?10 Recordemos o caçador Yukaghir descrito por Rane Willerslev

(2007), que está ciente de que uma confusão entre as posições de predador e de presa

assombra todo ato de caçar – pensado como um processo de atração fatal sobre os

animais – , e que o caçador sempre beira perigosamente a fronteira entre o humano e o

animal, podendo, a qualquer momento, atravessar o limiar que torná-lo-ia presa de caça.

Tal constatação nos conduz diretamente ao problema do perspectivismo. Pois se,

nas terras baixas, animais são gente, são pessoas vestidas com outras roupas, matar

animais é matar pessoas11: conforme observa Crocker (1985: 260, minha tradução) a

respeito dos Bororo, “se uma pessoa erra na sua conduta para com seres humanos,

muito provavelmente será pouco correto no tratamento dos bope ure, os animais de

caça”. Estamos bem informados sobre as muitas consequências da morte de pessoas

humanas nas mãos de outras pessoas humanas na Amazônia: ventres cheios de sangue,

espíritos-inimigos falando por bocas outras e ameaçando converter o familiar em vítima

10 Proposição que não é tão estranha em um cenário amazônico, no qual as aparências enganam (Rivière

1995) e o encontro com seres não humanos traz sempre o risco da circulação de perspectivas e da captura

dos humanos que, de predadores, passam a presas (Viveiros de Castro 1996a; Fausto 2007) 11 A não ser, claro, que os animais pensem que são gente, embora estejam equivocados (Garcia 2010).

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(Viveiros de Castro 1986; Fausto 2001) e, entre os Karitiana, a certeza de que o

matador, repleto e pesado com o sangue do defunto, terá um destino póstumo não

menos que horrendo. Matar animais é matar pessoas, insisto; pessoas animais, que fique

bem claro. Se, enfim, todo consumo de carne beira o canibalismo (Brightman 1993;

Hugh-Jones 1996), então em toda caçada espreita a guerra e o homicídio (Fausto 2007).

De que formas essas populações lidam com esta incômoda aproximação? Minha

sugestão é que fazem isso matando sem dó, porque a empatia – a capacidade ou a

potencialidade de sofrer o sofrimento alheio, de se colocar no lugar do outro – é não

apenas a impossibilidade da matança, mas também, talvez, o percurso mais curto que

leva a mudança da perspectiva, a troca da indumentária, a metamorfose de pessoa

humana para pessoa não humana, sua transformação em outro, ou seja, a própria morte.

Não se deve empatizar com a comida; não se deve ter pena da presa, sob a ameaça

diuturnamente presente do toma lá dá cá de um destino trágico, em que morre o caçador

e não o caçado, em que a guerra se sobrepõe à caça (cf. Lima 1996).

Rane Willerslev (2007), no seu livro sobre os Yukaghir, desvendou de maneira

admirável o funcionamento íntimo desses caçadores no oriente siberiano, na sua árdua

tarefa de abater animais. O autor argumenta que o caçador Yukaghir mimetiza sua presa

– ou seja, ele quase se metamorfoseia nela; ele mente, portanto, porque a mimese nunca

é, como cópia, idêntica ao original. Desta forma, o caçador atrai a presa, que vê nele a

sua própria imagem, mas há um espaço, deixado e delicadamente controlado pelo

homem, uma espécie de intervalo em que ele mesmo não é nem humano e nem animal.

É este espaço perigosíssimo – porque o risco de se perder é imenso – entre uma

perspectiva e outra que permite o tiro fatal. Mas é esse mesmo intervalo que abre o

flanco para a eventual interposição de emoções ali de todo intoleráveis: se não atirar, o

caçador será fatalmente tragado para o outro lado da relação.

O caçador Yukaghir, portanto, caminha por uma linha tênue entre a lealdade

para com seus iguais e aquela para com seus semelhantes. Creio que, nas terras baixas

da América do Sul, as coisas se passem de forma análoga: um controle muito estrito das

próprias emoções é condição para matar pessoas animais. Também os afetos fazem

escorregar por entre perspectivas alheias, também os sentimentos ameaçam com a

metamorfose ou, numa escala mais mundana, com a fome.

* * *

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Mas é preciso matar para comer? Falemos, pois, de fome, e voltemos ao ponto

com o qual iniciei a sessão anterior. Tomar o gosto pela carne e o prazer das caçadas

como índices de uma relação não problemática – porque isenta de sentimentos ou

sentimentalismos – entre humanos e animais me parece naturalizar a caça, como se

matar e comer animais fosse quase uma não-questão. Vimos como Stephen Hugh-Jones

(1996) defende a existência, entre os povos indígenas, de um questionamento

permanente do problema, sinalizando desconforto, operado por meios variados:

preceitos éticos, mitos, rituais, xamanismo, tecnologias. Vimos, também, que para os

Karitiana matar animais domésticos é impensável porque estes são como filhos: nunca,

jamais, simples estoque de carne12 (cf. Erikson 1987; 1998).

Há mais nessa naturalização da caça: a sua eleição – noto, por parte dos

etnólogos, e não dos índios, pois para eles isto é óbvio – como forma privilegiada de

acesso ao mundo animal, como alimento e como valor, sugere que a própria indianidade

desses povos – mais do que somente a masculinidade arrogante de seus homens – seja

definida pela atividade caçadora e pela alimentação carnívora. Forma local de uma pré-

concepção geral no pensamento ocidental moderno: a associação estreita entre

humanidade e carnivorismo, a noção de que a vida social se funda na caça, com o abate

de grandes mamíferos (Ingold 1988; Cartmill 1993; Fausto 2007).

O pressuposto de que índios caçam porque são índios, ou devem continuar

caçando para continuarem sendo índios, grassa em projetos de manejo de fauna silvestre

ou – estranha conexão – de experiências com a criação doméstica de espécies nativas

(sobre essas questões ver Vander Velden 2012). Ainda que em uma análise em

sobrevoo, contudo, os índios parecem pedir outra coisa: a implantação de projetos de

criação de animais domésticos de origem europeia (galinhas, bois, porcos, cabras),

mesmo que, em muitos casos, os objetivos estejam muito distantes da segurança

nutricional e da satisfação das necessidades e dos gostos alimentares, conforme

argumentei em outro lugar (Vander Velden 2011).

Necessidades? Gostos alimentares? A famosa “fome de carne”, reconhecida em

algumas línguas amazônicas como sensação distinta – e mais aguda – de uma fome

genérica (cf. Camargo 1999: 132) parece encontrar seu limite, por exemplo, nos dados

(novamente) Huaorani, entre os quais a carne é tão apreciada quanto as frutas, mas

havendo abundância de frutos de palmeiras a caça é interrompida (Rival 1996: 147-

12 Anta do Valdemar.

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148); não se verifica, ali, grande diferença entre a caça e a coleta, uma vez que árvores

são pessoas (Rival 1998). Ou, também, na observação dos Trio, recolhida por Peter

Rivière: “nós podemos viver sem carne, mas sem pão [mandioca] nós morremos”

(Rivière 1969: 42). Ou ainda, nas constatações de Philippe Erikson (1998: 367) sobre os

Chacobo na Bolívia, para quem o arroz cozido com muito óleo – principal alimento

deste povo hoje – pode ser consumido sem carne, ao emular a tão apreciada gordura da

carne13. Conforme Hugh-Jones (1996: 126), o fato do gosto pronunciado pela carne não

significa que não haja ambivalência e tensão no seu consumo, tal qual ocorre entre nós.

Aqui também encontramos as favas Krahó. Emerson Guerra (2008: 151-152)

descobriu que, quando tinham abundância de certa qualidade de feijão-fava (leguminosa

com teores de proteína maiores que os da carne vermelha), os caçadores Krahó no

Brasil central não saíam à caça, pois tinham sua “fome de carne” satisfeita. Assim,

argumenta o autor, a fava poderá vir a ser uma excelente alternativa nos contextos

indígenas em que se diz haver “carência protéica”, como naqueles em que a caça está

rareando e a criação doméstica de animais encontra obstáculos variados para sua

implantação.

Tudo isso aponta, possivelmente, para outra das conclusões do ensaio de Hugh-

Jones (1996: 128): a de que a ênfase colocada pelas etnografias na caça e na carne

talvez derive, ao menos em parte, do peso simbólico da carne como alimento por

excelência no ocidente (cf. Fiddes 1991); ou seja, ocorreria, entre nós, uma forma de

naturalização da alimentação carnívora, difundida, posteriormente, nos modos de

interpretar gostos, hábitos e necessidades alimentares indígenas. Não consigo entender,

desta forma, por que Carlos Fausto (2007: 502) sugere que o parentesco, nas terras

baixas, é criado a partir da partilha de carne e da comensalidade carnívora. Não será o

parentesco criado via compartilhamento de qualquer coisa e na comensalidade em geral,

menos pelo quê se come e mais, como o próprio autor defende, em como se come e em

com quem se come?

Este naturalização da caça/carne resta ainda mais evidente no mesmo artigo de

Carlos Fausto que, conquanto muito instigante, traz uma série de problemas, que

indicam que a leitura paralela dos dados indígenas e europeus feita por Stephen Hugh-

Jones (1996) poderia ser aplicada, com rendimento, ao material discutido pelo primeiro.

Com efeito, Fausto sustenta que os animais, na Amazônia, precisam ser “produzidos

13 E, talvez, dos frutos das palmeiras, também bastante gordurosos, como notam os Karitiana.

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como comida, já que eles não são ‘naturalmente’ um objeto. Em outras palavras, um

sujeito animal precisa ser reduzido à condição de um objeto inerte” (Fausto 2007: 503,

minha tradução). Pergunto, no entanto: em qual cosmologia ou região do planeta os

animais são naturalmente objetos a serem apropriados e devorados como alimento? Os

animais são, em algum lugar, comida circulando por aí14, pronta para ser devorada sem

qualquer processo ou artifício de dissociação entre a vida e a carne? Poderíamos aventar

a possibilidade de que, nos nossos sistemas de produção industrial de animais, galinhas,

porcos e vacas tenham, de fato, sua condição de ser vivo e senciente (e, talvez, de

sujeito) reduzida à condição de repasto para os homens: que bovinos sejam pensados,

desde o início de suas tristes vidas, como carcaças (Sordi 2016); creio, contudo, que as

muitas questões colocadas, entre nós, a respeito do abate e do consumo de carne (cf.

Foer 2011) sugerem o contrário: animais não são “naturalmente” meros objetos em

lugar nenhum. De todo modo, como observa Els Lagrou (2007: 516], “nossa [ocidental]

obsessão com a ‘objetificação’ do outro e do mundo pode não ser a deles [dos índios]”.

Por outro lado, esta “objetividade” da carne conflita, parece-me, com os próprios

dados etnográficos empregados como ilustração por Fausto. Com efeito, a ação dos

xamãs Piaroa incide sobre a carne, de modo a convertê-la em tubérculos inofensivos e

seguros ao consumo humano. Ou seja: é a carne, já, desde sempre, algo muito distante

do mero objeto a ser apropriado sem maiores cuidados. Esta condição da carne, aliás, se

não passa despercebida aos olhares indígenas sobre a violência da matança de animais,

logicamente não escapa aos olhos ocidentais, e penso que toda a ambivalência

associada, no Ocidente moderno, ao consumo de carne (ao mesmo tempo prestigoso,

viril, vital, fortificante e arriscado, nojento, imoral ou anti-ético), fala precisamente

sobre a constatação de que a carne jamais é um objeto inerte (Fiddes 1990; Adams

1991; Parry 2009). Separar o animal-sujeito de sua carne-objeto, como fazem Fausto e

outros, é, parece-me, insistir nos mesmos mecanismos que, no mundo contemporâneo,

tornam os animais que comemos invisíveis porque mortos detrás dos muros dos

abatedouros e oferecidos à mesa jamais como animais, mas como pura e simplesmente

carne (Adams 1991; Vialles 1994). Separar a carne do animal que morreu por causa

dela é fazer desaparecer o animal, reduzido a um produto seguro e confiável que pode

ser degustado sem maiores preocupações. Todo o intenso debate em torno da

alimentação carnívora nas sociedades ocidentais demonstra, a meu ver, que o

14 Penso naqueles desenhos animados em que o lobo faminto olha para seu antagonista – porco ou ave,

em geral – e o vê/imagina como uma refeição pronta, coxa ou costeleta fumegantes, na mesa posta.

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mecanismo de invisibilização do animal morto apresenta rachaduras significativas e a

carne segue sendo um alimento ambíguo. Todas as preocupações de caçadores com as

“pequenas mortes” (little deaths) da “vida cotidiana” (everyday life) (Cavell 2005 apud

Kohn 2013: 104) na Amazônia, assim como todos as precauções quanto ao tratamento e

ao consumo de carne ali, parecem apontar numa direção semelhante.

Esses exemplos assinalam as armadilhas de reduzir cosmologias a modalidades

de subsistência, conforme apontou Gastón Gordillo (2006) ao criticar os trabalhos que,

nos anos de 1970 e 1980, viam os índios do Chaco argentino, então residentes nos

subúrbios de Buenos Aires e catando lixo para sobreviver, como praticantes de uma

espécie de forma atávica de coleta: uma vez coletores de recursos en el monte (a floresta

chaquenha), sempre coletores de recursos nos montes (só que, agora, de detritos).

Gordillo argumenta que tal leitura desconsidera não apenas a mudança cultural e a

adaptação a novas condições de existência como, sobretudo, questões políticas graves

que falam de desigualdade, pobreza, marginalização social e, seguramente, fome.

* * *

Não estou querendo converter todos os índios amazônicos em vegetarianos ou

veganos, nem, tampouco, naturalizar as práticas de cuidado, tornando-as inatas (cf.

). Quero apenas direcionar meu olhar para certos cantos obscuros das relações entre

humanos e animais que a antropologia (e o pensamento social em sentido amplo) ignora

em seu pendor racionalista. Quero, com isso, recordar que Lévi-Strauss (1997 [1962]),

ao discorrer sobre o pensamento selvagem, lembrava que o mundo concebido também

se vive, e sob um duplo aspecto, simultaneamente intelectual e afetivo. Este aspecto

afetivo – base fundamental da atenção detalhada ao real que os povos indígenas

exercitam – que me interessa investigar. Não quero retornar, além disso, com

explicações funcionalistas ou materialistas dos tabus que cercam a caça: apenas sugerir

a necessidade de uma investigação – etnograficamente orientada, é claro – sobre os

sentimentos e afetos/afetividades (traduzidos em moralidades) envolvidos nas ações de

matar e de comer seres vivos, para além da adrenalina, da consolidação de

masculinidades e da diversão, emoções verbalizadas por vários grupos indígenas e seus

etnógrafos. Por que a caça jamais é realizada sem o acompanhamento de um conjunto

absolutamente estrito e muitas vezes complexo de regras vinculadas ao tratamento dos

animais e de seus despojos? Nunca, jamais, se mata de qualquer jeito, e nunca, de modo

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algum, deve-se desfazer dos restos do animal consumido de forma descuidada. As

evidências dessas obrigações morais para com a caça, seu abate e seu consumo,

abundam na América do Norte (Tanner 1979; Brightman 1993) e na Sibéria (Willerslev

2007), mas são também registradas em outras partes, como, por exemplo, na Europa

(Hell 1994), no Cáucaso (Hunt 2003) e no mundo árabe e sudárabe (Serjeant 1976). Em

todos esses lugares o que temos é uma ética aparentemente destinada aos animais

individuais, ainda que seres sobrenaturais (tais como donos, mestres, pais ou mães da

caça) possam também ser endereçados. Por qual razão, então, nas terras baixas sul-

americanas, os animais individualizados importam tão pouco, dissolvidos em multidões

anônimas dirigidas pelos personagens que realmente importam, seus donos-

controladores, hipóstases dos animais de carne e osso (Fausto 2008)? Trata-se de uma

forma de tratamento dos não humanos restrita à esta região do globo, ou muito mais um

efeito da leitura tendenciosa de seus etnógrafos?

Uma vez dessubjetivada, alienada, vegetalizada, estetizada, desmontada,

preparada, privada – ao menos idealmente – de seu aspecto agentivo ou destacada dos

seres de onde provém, toda carne pode ser consumida, na Amazônia e alhures. O que

pode indicar que a colocação de Philippe Erikson, embora formulada para os animais

domésticos (animais de criação) entre populações indígenas, deva ser estendida para

todos os seres: “se há pouca dificuldade em comê-los, matá-los, ao contrário, se mostra

extremamente problemático” (Erikson 1998: 371). Isso mesmo que nas porções de

carne pareça restar, sempre, “um traço de atividade e de subjetividade deixado no

animal e, portanto, em algumas circunstâncias as pessoas devem se abster de comer

quase tudo” (Fausto 2007: 506, tradução minha). Esses resíduos sinalizam a potência

deste “objeto”, parte de seres vivos mortos para o sustento e o deleite humanos, na

Amazônia, no Ocidente contemporâneo, em toda parte.

Considerações morais – que, se têm fundamentos estruturais, também derivam

em larga medida das interpretações individuais e da reflexão intelectual e afetiva sobre

teorias e práticas, ou seja, da experiência do vivido (Kohn 2007) – sobre o que são as

relações apropriadas entre os seres, diz Hugh-Jones (1996: 132) devem ser levadas a

sério. E estas escapam completamente a uma abordagem estruturalista que condena o

afetivo em nome de um intelectualismo estrito (Descola 1994; 1998) e, quando

observado da perspectiva da experiência de vida das pessoas e de seu engajamento

cotidiano com o mundo, vazio.

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Em um livro recente, o primatólogo holandês Frans de Waal (2010) sugeriu, a

partir de inúmeras pesquisas em etologia, que a empatia pode ser considerada uma

característica inata de muitos animais, especialmente mamíferos15. Talvez, então, as

similaridades entre índios e europeus quanto ao tratamento dos animais e de sua carne

digam algo sobre conexões mais profundas dos dois lados do grande divisor Euro-

Americano. Vínculos que devem ser buscados em outro lugar que não na cultura.

Assim, quando Hugh-Jones conclui seu texto desta forma:

“Focalizando a presença de uma má consciência em relação a matar e comer

animais que, sustento, pode ser detectada não apenas entre os europeus mas

também entre os povos indígenas na Amazônia, eu tentei trabalhar contra a

corriqueira tendência antropológica de exagerar diferenças culturais e, ao

contrário, exibir o que há de comum entre “nós” e “eles” (Hugh-Jones 1996:

145, minha tradução).

Empatia – a capacidade colocar-se no lugar do outro: não é este, justamente, o

problema das cosmologias perspectivistas nas terras baixas sul-americanas? Habitar

outros corpos, experimentar outras perspectivas: não é isso que fazem todo o tempo

xamãs e guerreiros? O problema, na Amazônia, reside, justamente, em controlar ou

evitar esta circulação de perspectivas, pois qualquer identificação com o outro leva à

metamorfose em outro. Matar, daí, converte-se na ação dramática que impede a rotação

dos pontos de vista: como muito bem demonstrou Tânia Lima (1996) para os Yudjá, o

abate de queixadas impede que os caçadores humanos permitam, ao fim e ao cabo, que

a caçada se transforme em guerra, o que ela seria da perspectiva dos porcos; matando,

os homens garantem o predomínio do ponto de vista humano-caçador sobre aquele dos

porcos-guerreiros. A caça não deve se converter em guerra. Isso talvez seja outro

argumento em apoio ao silêncio dos caçadores (Kwon 1998) – a prática, amplamente

difundida e comum também na Amazônia, de não falar durante caçadas, especialmente

fazendo referências à matança dos animais e às intenções predatórias dos caçadores

(Yvinec 2005): não se fala em matar, predar ou caçar – mas em andar, procurar, buscar

e, em contextos específicos, soprar (Descola 1998; Garcia 2010) – para que os animais

não escutem e compreendam (e, portanto, reajam conforme a ameaça), mas também

15 Ver Van Dooren (2014) sobre evidências das capacidades empática em aves, especialmente corvos.

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para que os animais não tomem a chegada de um grupo de caçadores aos seus locais de

habitação como a irrupção de um bando de sanguinários guerreiros16.

Matar, então, impede uma (con)fusão: a captura da perspectiva humana por outra

não humana. O ato de matar é mecanismo de defesa, além de produtor de alimento.

Matar é impor diferença, forma-limite de se resguardar a perspectiva. Reconhecê-lo,

todavia, não significa esvaziar tal ação de outros conteúdos, notadamente o da

ambivalência (que pode correr na esteira de outros afetos), conforme Hugh-Jones

defendeu em seu artigo discutido acima. “Um derramamento de sangue jamais é

considerado um ato banal” (Hell 1999:209, minha tradução); “coletar sangue nunca é

um ato simbólico inocente. O fluido vermelho é muito potente, e dívidas de sangue são

muito comuns” (Haraway 2004:272, minha tradução); e, por fim, “que tipo de pessoa

alguém se torna quando se habitua a matar?” (Law 2010: 64). As formas de sofrer, de

sentir e de ser afetado por este sangue derramado dos outros é o que devemos

investigar. E de forma geral, humana, nós e eles, como quer Hugh-Jones, e assim

conforme argumenta Lévi-Strauss em alguns de seus últimos escritos, ao sugerir que

“somos todos canibais” (Lévi-Strauss 2004a[1993]) e defendendo o vínculo entre

“alimentação carnívora e um canibalismo ampliado” que teria, talvez, “conotação

universal e, assim, raízes muito profundas no pensamento” (Lévi-Strauss 2004b [2001]:

81):

“Não surpreende que o ato de matar seres vivos para se alimentar proponha aos

humanos, conscientemente ou não, um problema filosófico – problema que todas

as sociedades tentam resolver” (Lévi-Strauss 2004b [2001]: 80, meu grifo).

Se essas sugestões são, como as imagens da submissão animal, “patéticas”

segundo Jacques Derrida (2002; ver também Wolfe 2003), elas, contudo, apontam para

questão central nos turbulentos dias de hoje, em que a convivência entre os seres no

planeta em nome da sobrevivência de todos se torna crucial, qual seja, a

16 Esta seria uma das tantas modalidades de ocultação ou velamento, tão difundidas nas práticas

venatórias dos povos amazônicos. Tânia Lima (1996), discorrendo sobre o mesmo problema, sugere que

para os porcos o grupo de caçadores Yudjá é, de saída, um partido de guerra. O que estou sugerindo é que

os caçadores humanos mascaram a violência da caça ao não permitirem que ela se converta em guerra,

por meio do desvelamento, aos porcos, dos objetivos predatórios da caçada. Noto que, neste artigo, a

autora deixa claro – um tanto quanto contraditoriamente ao modelo perspectivista original aparecido no

mesmo volume – que os humanos são humanos da perspectiva dos porcos (por isso estes são alvo de um

ataque guerreiro, não de uma caçada), e não super-predadores (como onças). Os humanos é que não

podem ceder à tentação de ver nos porcos seres humanos. Eu acho que eles não cedem. Não posso afirmá-

lo para os Yudjá, mas os Karitiana seguramente não usam confundir porcos e humanos.

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“imensa questão do páthos, do patológico, precisamente, do sofrimento, da

piedade e da compaixão. E do lugar que é preciso dar à interpretação dessa

compaixão, ao compartilhar do sofrimento entre os viventes, ao direito, à ética,

à política que é preciso referir a essa experiência da compaixão” (Derrida

2002: 53, grifo no original).

Talvez tudo isso fale das dificuldades inerentes no rompimento dos laços que

nos vinculam aos animais e que nos fazem reconhecermo-nos neles. É preciso, assim,

tornar evidentes, etnograficamente, tais conexões, para a compreensão exata dos

fenômenos da caça e da criação animal. Só assim, talvez, possamos de fato começar a

interrogar transculturalmente aquilo que Rousseau definiu como, nos homens, “uma

repugnância inata por ver sofrer um semelhante” (Rousseau 1994) e que, seguindo a

homenagem de Lévi-Strauss (1989), fundam verdadeiramente uma moral e uma ciência

do humano.

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