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A MATEMÁTICA DA VIDA É recomendável dar ênfase à matemática, por várias razões. A primeira é que geralmente se deixa na penumbra quando se discute alfabetizaçao/alfabetismo. "Contar" faz parte do rosário inicial (ler, escrever e contar), mas parece secundário, tanto assim que as alfabetizadoras reservam para a matemática espaço sempre menor, quando não expressam desgosto. A segunda razão refere-se à sua importância desde sempre para a constituição de habilidades de leitura do mundo, tornada cada vez mais intensa no decorrer dos tempos, com destaque para a linguagem científica e tecnológica (tecnociência) e para a informática. Assim, seja qual for o sentido atribuído à noção de "ler a realidade", a matemática é referência crucial. A terceira razão está no fato de que a aprendizagem da matemática tende a ser a mais problemática na escola, pelo menos nas séries mais avançadas. A quarta razão pode ser vista no fato de que, sendo o terror dos alunos, pode virar fator de exclusão social (Alves, 2002), à medida que não só empurra muitos alunos para áreas de estudo onde a matemática não seria relevante, selecionando-os negativamente, ou constitui-se barreira de contenção para a progressão escolar, como, sobretudo, atrapalha, veda, o acesso a linguagens centrais do mundo atual cada vez mais matematizado. Tomo a matemática como referência crucial do processo de alfabetização/alfabetismo, sendo sua importância nem maior, nem menor que a questão da leitura e escrita. A aprendizagem da matemática precisa adequar-se aos reclamos substanciais da dinâmica da aprendizagem, implicando pesquisa e elaboração própria, feitura de textos e principalmente habilidade de interpretação autônoma. Esta posição afasta-se drásticamente da matemática dos macetes e dos vestibulares, valorizando a matemática como expressão fundamental do saber pensar (Demo, 1995a) 20 . Alfabetismo matemático É dispensável reafirmar o quanto habilidades matemáticas são importantes para o exercício da cidadania, desde sempre e ainda mais hoje. A seguir, tento brevemente alinhar alguma argumentação nesta direção 21 . A primeira preocupação é ressaltar que, discutindo alfabetização e alfabetismo, não se pode, de modo algum, restringir-se a leitura e escrita. Ainda é costume esta restrição, também porque os alfabetizadores, de modo geral, se sentem melhor face a língua portuguesa do que face a matemática. É comum encontrar entre as "normalistas" e pedagogos certo distanciamento, por vezes desgosto, com a matemática. Seria o caso lembrar aqui a obra de Machado (2001) sobre matemática e língua materna, sob o manto da impregnação mútua. Na escola, matemática e língua portuguesa não se articulam adequadamente, embora na prática da vida não seja possível interpor qualquer estranhamento. Para reconstruir a realidade que nos cerca, precisamos tanto do alfabeto, quanto dos números, sem falar que "mesmo as tentativas mais singelas de iniciação à matemática pressupõem um conhecimento da língua materna, ao menos em sua forma oral, o que é essencial para a compreensão do significado dos objetos envolvidos ou das instruções para a ação sobre eles" (Machado, 2001, p.1S). Questão das mais contumazes é o vezo de ver na matemática o reino da precisão e em outras áreas ditas sociais a imprecisão. A língua materna é tida como dinâmica, imprecisa, ambígua, de caráter polissêmico, enquanto a matemática, na condição de linguagem própria da ciência, seria precisa, monossêmica, livre de ambigüidades. De certa forma, a aprendizagem da matemática suporia superar a linguagem frouxa da língua materna, tornando esta dependente daquela. Sempre que se

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A MATEMÁTICA DA VIDA

É recomendável dar ênfase à matemática, por várias razões. A primeira é que geralmente se deixa na penumbra quando se discute alfabetizaçao/alfabetismo. "Contar" faz parte do rosário inicial (ler, escrever e contar), mas parece secundário, tanto assim que as alfabetizadoras reservam para a matemática espaço sempre menor, quando não expressam desgosto. A segunda razão refere-se à sua importância desde sempre para a constituição de habilidades de leitura do mundo, tornada cada vez mais intensa no decorrer dos tempos, com destaque para a linguagem científica e tecnológica (tecnociência) e para a informática. Assim, seja qual for o sentido atribuído à noção de "ler a realidade", a matemática é referência crucial. A terceira razão está no fato de que a aprendizagem da matemática tende a ser a mais problemática na escola, pelo menos nas séries mais avançadas. A quarta razão pode ser vista no fato de que, sendo o terror dos alunos, pode virar fator de exclusão social (Alves, 2002), à medida que não só empurra muitos alunos para áreas de estudo onde a matemática não seria relevante, selecionando-os negativamente, ou constitui-se barreira de contenção para a progressão escolar, como, sobretudo, atrapalha, veda, o acesso a linguagens centrais do mundo atual cada vez mais matematizado. Tomo a matemática como referência crucial do processo de alfabetização/alfabetismo, sendo sua importância nem maior, nem menor que a questão da leitura e escrita.

A aprendizagem da matemática precisa adequar-se aos reclamos substanciais da dinâmica da aprendizagem, implicando pesquisa e elaboração própria, feitura de textos e principalmente habilidade de interpretação autônoma. Esta posição afasta-se drásticamente da matemática dos macetes e dos vestibulares, valorizando a matemática como expressão fundamental do saber pensar (Demo, 1995a)20.

Alfabetismo matemático

É dispensável reafirmar o quanto habilidades matemáticas são importantes para o exercício da cidadania, desde sempre e ainda mais hoje. A seguir, tento brevemente alinhar alguma argumentação nesta direção21. A primeira preocupação é ressaltar que, discutindo alfabetização e alfabetismo, não se pode, de modo algum, restringir-se a leitura e escrita. Ainda é costume esta restrição, também porque os alfabetizadores, de modo geral, se sentem melhor face a língua portuguesa do que face a matemática.

É comum encontrar entre as "normalistas" e pedagogos certo distanciamento, por vezes desgosto, com a matemática. Seria o caso lembrar aqui a obra de Machado (2001) sobre matemática e língua materna, sob o manto da impregnação mútua. Na escola, matemática e língua portuguesa não se articulam adequadamente, embora na prática da vida não seja possível interpor qualquer estranhamento. Para reconstruir a realidade que nos cerca, precisamos tanto do alfabeto, quanto dos números, sem falar que "mesmo as tentativas mais singelas de iniciação à matemática pressupõem um conhecimento da língua materna, ao menos em sua forma oral, o que é essencial para a compreensão do significado dos objetos envolvidos ou das instruções para a ação sobre eles" (Machado, 2001, p.1S).

Questão das mais contumazes é o vezo de ver na matemática o reino da precisão e em outras áreas ditas sociais a imprecisão. A língua materna é tida como dinâmica, imprecisa, ambígua, de caráter polissêmico, enquanto a matemática, na condição de linguagem própria da ciência, seria precisa, monossêmica, livre de ambigüidades. De certa forma, a aprendizagem da matemática suporia superar a linguagem frouxa da língua materna, tornando esta dependente daquela. Sempre que se

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trate de precisão terminológica e aspectos quantitativos, a matemática e o padrão universal para procedimentos científicos, atribuindo-se a esta nítida superioridade, como se reconhece, em geral, superioridade a quem sabe lidar bem com matemática.

No mundo acadêmico este estereótipo persiste, valendo como divisor de águas a habilidade de tratar evidências empíricas de modo matemático, a ponto de comparecer como determinante da cientificidade (Demo, 2000b). Neste sentido, o questionamento de Machado e de rara clarividência, porque oferece opções fundamentais de visualizar a relação entre leitura/escrita e matemática. "Na verdade, dizer-se que a sombra depende da luz pouco contribui para a compreensão do real significado de uma e de outra: saber lidar com o claro e o escuro na construção da uma imagem é o que efetivamente importa, e o excesso de luz pode ter o mesmo efeito que a obscuridade. Existem, no entanto, fecundas relações de interdependência entre essas duas disciplinas, que carecem de uma exploração conseqüente, tendo em vista o ensino de ambas" (Machado, 2001, p.16).

Ai está um dos fulcros do que se tem chamado "guerra das ciências" (Brockman, 2003), em meio às disputas acirradas entre modernisrno e pós-modernismo (Sokal e Brickmont, 1999). Não é o caso aqui enfrentar tais querelas, mas apenas assinalar horizontes alternativos da discussão. De um lado, é hoje comumente aceita a "lógica difusa" (fuzzy logic) (Kosko, 1999), no sentido de distinguir as formas que fazem parte da dinâmica da realidade e a própria realidade. Como diz Kosko, linha reta não existe na natureza, até porque é idéia própria de ditador que gostaria de traçar linhas retas peremptórias, em especial em termos de submissão alinhada absoluta. A realidade é mais propriamente um lusco-fusco, por ser profundamente não linear. A realidade está muito mais para "mais ou menos" do que para alinhamentos nítidos. Em estatística, a margem de erro é considerada parte integrante de qualquer levantamento amostral, tendo como referência a probabilidade. Como alega Bernstein (1997), ao analisar "a fascinante história do risco" como "desafio dos deuses", os cálculos probabilísticos não desfazem o risco, apenas tentam equacioná-lo em limites relativamente controláveis. Ganhar na bolsa é sempre uma questão de risco. O recurso a formalizações matemáticas dão conta de faces lineares das dinâmicas não lineares. Estas não podem ser extintas, porque as formalizações são modos de alinhamento de dinâmicas não lineares, do que se depreende que as formalizações são intervenções de fora, não necessariamente expressões de dentro. Em toda''''dinâmica, por mais caótica, podem-se divisar alinhamentos ordenados, mas não são esses que definem a dinâmica (Berlinski, 2000). A dinâmica, para ser realmente dinâmica, precisa admitir e mesmo fundar-se na desordem, da qual provém a criatividade. A ciência continua perseguindo, ao fundo da desordem, uma "ordem escondida" (hidden order) (Coveney e Highfield, 1995; Holland, 1998), porque tende a sucumbir a "ditadura do método", como diz Morin (1995, 1996): a realidade é forçada a adequar-se ao método, a ponto de só ser considerado real o que cabe no método (Demo, 2000b).

Ademais, Gödel mostrou, com o teorema da incompletude, que a própria matemática, como sistema formal, não fecha ao final, porque ela gera proposições não "decidíveis" internamente ao sistema. Esta visão emplacou preocupação das mais criativas na matemática: em vez de apresentar-se apenas como estratégia formalizada de resolver problemas, seria mais inteligente entendê-la como estratégia de problematização.

Sob a ótica da problematização supera-se a percepção utilitarista, imediatista de atrelar matemática a procedimentos "culinários", como se só interessasse o que fosse imediatamente útil. É preciso buscar na matemática uma das expressões crucias do saber pensar, não apenas para reconhecer e colher na realidade faces lineares, facilmente quantificáveis e formalizáveis, sobretudo para divisar nela as dinâmicas que escapam às linerizações. É fútil a noção de que problemas sejam todos solucionáveis, porque não corresponde ao ritmo da vida e da natureza.

Não se trata, apenas de aceitar que, a cada problema resolvido, surge pelo menos um outro, mas em

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essência de que é inteligente, criativo, produtivo saber conviver com problemas dos quais não damos conta e deles retirar alternativas infindas. Antigamente tínhamos a expectativa de que as teorias seriam representações da realidade, mesmo sendo modelos. Hoje, desistimos desta pretensão, porque as teorias são maniras criativas de problematizar a realidade, tendo como certeza maior a incerteza de nossos esquemas de captação (Demo, 2000c).

É fútil a expectativa de que a natureza seja solucionável numa fórmula pronta final (everything theory)(Gribbin, 1998), como se pudesse ser reduzida a procedimentos de formalização matemática. Apenas a este nível formal é possível imaginar validades universais, enquanto que na realidade, sendo o mundo das contingências, validades universais são impossíveis. A natureza admite padronizações formais, alinhamentos ordenados, mas, como dinâmica dialética, está submetida à flecha do tempo e suas estruturas são dissipativas (Prigogine, 1996).

A matemática gira em torno de formalizações pretensamente exatas, mas é preciso não esquecer que nelas não ferve a vida, apenas expressões de sua recorrência. Não se vive na lógica, ainda que a vida também seja, pelo menos em certo sentido, lógica. A parte mais interessante da lógica da vida e sua falta de lógica. Caso o amor fosse, por exemplo, apenas expressão matemática formal, perderia a graça da surpresa, incompletude, aperfeiçoamento infinito, recomeço, controle imperfeito (Lewis et al, 2000).

Será necessário reconhecer que toda linguagem, também a língua portuguesa, é formalizável até certo ponto, como é prova disso a gramática, não sendo isto privilégio da matemática. Esta é mais facilmente formalizável, tornando seu desempenho no mundo das formas fantástico. A realidade, no entanto, não é matemática, por mais que admita formalizações matemáticas em sua compreensão e intervenção. Por alguma razão, as formalizações matemáticas metem mais medo que as lingüísticas, e é talvez por isso que gênios matemáticos são mais gênios que outros não matemáticos. Qualquer texto bem feito, sendo sistemático, é um apanhado organizado de códigos, algoritmos, estruturas gramaticais, partanto, formalizado. Todavia, até hoje consideramos um dos textos mais encantadares a poesia que, quando bem feita, brinca de caos e surpresa, torce e retorce a linguagem, ou seja, parece fugir a qualquer matemática. Ainda assim, a poesia geralmente procura simetrias, recorrência e até mesmo rimas, no que também reconhece a presença de formalizações.

Para dar conta da realidade precisamos de ambas, leitura/escrita e matemática. Uma pode ser mais, outra menos formal, uma mais, outra menos polissêmica, uma mais, outra menos ambígua, mas ambas fazem parte da comunicação humana, são linguagens e que, como tais, expressam não só como dinâmicas podem ser formalizadas, como também a necessidade de as desformalizar, desconstruir, questionar.

Não se lê bem a realidade sem o concurso de ambas e é por isso que, falando de propedêutica básica, aparecem sempre juntas, ao lado da filosofia, linguagem e matemática (Demo, 1995a). É comum atribuir-se a matemática, até a exclusividade, a virtude do "raciocínio lógico", como se este fosse espúrio ou quase em outros ambientes lingüísticos. Diz-se que matemática é fundamental para desenvolver o raciocínio lógico, no que fica implícito que os não matemáticos padecem de raciocínio ilógico. Raciocínio lógico, no sentido da habilidade de formalização do discurso, e propriedade da mente humana como tal, podendo estar mais ou menos visível em cada caso, não sendo viável a comunicação humana sem um mínimo de lógica. A matemática está mais próxima desta virtude, mas não é detentora exclusiva.

No outro lado, matemática leva a pecha de ser assunto árido, difícil, impenetrável, e apenas poucos dão conta dela, enquanto a língua materna pareceria ser menos problemática, até porque falar é coisa ordinária. Machado sugere que esta estigmatização não se "deve a razões essenciais,

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endógenas, mas a abordagens inadequadas", por exemplo, "quando matematica é tratada como uma linguagem em que a hipertrofia da dimensão sintática obscurece indevidamente o papel da semântica" (2001, p.17).

Deixa-se de perceber que matemática existe como linguagem de captação, reconstrução e desconstrução de uma realidade que não é apenas matemática. A sintaxe (algoritmos, gramática) está em função da semântica (arte de interpretar, reconstruir). Enquanto a gramática fundamentalmente reproduz, a semântica recria em cada gesto de comunicação (Orlandi, 2003). Por isso o computador, sendo máquina sintática, algorítmica, e apenas reprodutiva (pelo menos até ao momento), enquanto o cérebro consegue entender comunicações ambíguas, tratar ausências como presenças, perceber silêncios como comunicação.

Matemática para leitura da realidade

Matemática é parte necessária da formação do cidadão, não só porque expressa linguagem crucial da mente humana, mas igualmente porque o mundo que criamos em torno de nós tende a envolver-se, cada vez, em linguagens matematizadas, a exemplo da informática. O tratamento digital dos dados que entram na memória do computador pressupõe ordem estrita, formalizada, inequívoca, seqüencial, o que já mostra que a capacidade de padronizar é parte fundamental da compreensão da realidade, mas daí não segue a habilidade semântica. Uma sinfonia pode ser formalizada em códigos e gravada em disco, mas, como dinâmica dialética, vai além disso, porque, em cada concerto, é recriada, não propriamente reproduzida.

Matemática é fundamental para "ler'' a realidade, não só porque procedimentos formais são parte da realidade, mas principalmente porque saber padronizar complexidades e uma maneira de nelas penetrar. Perante o desconhecido, a mente humana procede pela via da padronização, pelo menos como hipótese primeira: a) buscamos no desconhecido o que haveria de conhecido, familiar; b) buscamos no desconhecido o que se repete; c) se isto não for suficiente, inventamos uma ordem e aplicamos a realidade, dando a este procedimento o nome de teoria. Na verdade, entendemos melhor o que está ordenado e, por isso, tendemos a ordenar para entender. Saber lidar com matemática é, nisto, um pedaço crucial do saber pensar.

No entanto, na escola a matemática continua cercada de estereótipos como de ser exata, abstrata, inata, prática, além de lugar do raciocínio lógico. Tanto quanto língua materna e atividade ordinária, matemática e extraordinária. Esta preponderância, que vai se tornando prepotência, e alimentada pela aliança histórica da matemática com as ciências ditas exatas. Hoje sabemos melhor que tal exatidão é principalmente força de expressão, a par de cultivo de certo elitismo acadêmico.

A rigor, nenhum setor do conhecimento é exato, se levarmos a sério seu contexto multicultural e complexo (Harding, 1998; Santos, 2003), exceto em formalidades abstratas. Assim como é impraticável definir um conceito com exatidão (a partir de certa altura, a formalização seria contraproducente, já que a pretensa exatidão seria paga com o distanciamento de uma realidade não alinhável por completo), é prudente aceitar que a matemática, no fundo, produz apenas resultados aproximados. Abstrair não é propriedade da matemática, mas do conhecimento humano como tal, a partir da capacidade de simbolização (Deacon, 1998). Assim como nem todos tocam bem violão e disto não segue que não se possa estudar violão com proveito, assim há pessoas mais propensas à matemática e disto não decorre que outras não possam aprender matemática. A diversidade de talentos é uma das dinâmicas mais criativas da natureza, mas não é natural ver dicotomias entre tais talentos. Para dominar o raciocínio lógico, sobretudo para desenvolver raciocínios criativos, a matemática não é caminho único, até porque isto já não seria bom raciocínio. Ademais, a matemática não é importante apenas porque serve para resolver problemas práticos, mas principalmente porque, como expressão própria da mente humana, é componente crucial do saber

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pensar.

Machado chama a atenção para a dificuldade de combinar a expectativa frequente de que a matemática seria língua universal acima das nacionalidades e culturas com a realidade, na qual continua o estereótipo de que matemática é coisa tão difícil que não seria para todos. O lado mais visivelmente formal da matemática lhe confere esta prerrogativa de ser linguagem facilmente comum, mas daí não decorre que a comunicação humana seja parte secundária, porque o correto é o inverso. Assim como parece irreal querer inventar uma língua universal, como o esperanto, para garantir, de uma vez por todas, que todos se entendam, é irreal postular que, se todos "falassem" matemática, todos se entenderiam melhor, porquanto comunicação humana não é apenas sintaxe. É centralmente semântica, na qual a interpretação é muito mais decisiva do que a seqüência de códigos recorrentes.

Como em qualquer dinâmica adequada de aprendizagem, é importante que o professor de matemática saiba partir dos saberes existentes dos alunos, não para aí empacar (acabaria atrasando o aluno), mas para proceder de dentro para fora, respeitando o aluno como sujeito.

A leitura matemática do mundo parece ser uma das características da espécie humana. O homem age matematicamente, por razões que os cientistas da cognição ainda não podem dar uma explicação satisfatória. Assim como falamos, matematizamos. Linguagem é a capacidade organizacional de expressar o nosso agir. Ao falar damos espaço para que nossa criatividade se manifeste, organizando é transmitindo o imaginário. Isso não é menos verdade com a matemática. No processo de geração do conhecimento, a transição do individual para o social foi, e continua sendo, o ponto crucial na evolução do indivíduo e da espécie. É aí que surgem os sistemas de codificação e a linguagem, já identificados por Sócrates como um dos momentos mais conflitantes na história do homem. Igualmente importante e a criação da matemática. E, em Sócrates, a escrita e a aritmética são criadas pelo mesmo faraó mitológico. O essencial é conceber sistemas de códigos que, uma vez socializados, são reconhecidos como escrita e como aritmética. Está assim criada a necessidade da literacia e da materacia para elevar o homem a sua condição maior. A literacia tem recebido atenção de pesquisadores. Mas pouca atenção tem sido dada, internacionalmente, a materacia (D' Ambrosio in Pref. Danyluk, 2003, p.11).

Esta alegação não tem como base o lado utilitário da matemática, mas o sentido cultural e biológico da aprendizagem. Entendemos mais facilmente o que já vem padronizado em nossa vida cotidiana, embora isto seja, como regra, um mundo restrito e que a escola precisa ultrapassar, tendo como objetivo não só dar conta da realidade imediatamente circundante, mas da realidade do mundo.

A matemática precisa "ser feita"

A matemática precisa ser significativa, fazer parte da compreensão da realidade, pertencer aos desafios de desconstruir e reconstruir a realidade. Um problema pertinaz ainda são, na escola, as aulas reprodutivas, em particular em matemática, porque levam a memorizar macetes, sem a devida compreensão. Matemática precisa "ser feita", não absorvida, memorizada. Professor de matemática não é quem da aula (a parabólica também da, a cores, com efeitos especiais e gente bonita), mas quem consegue fazer com que o aluno aprenda matemática (Demo, 2004a). Enquanto o aluno não aprender, não há professor. É imprescindível que matemática esteja inserida em procedimentos de pesquisa e elaboração própria, habilidades de argumentação e contra-argumentação, entendimento interpretativo de dados organizados comuns na imprensa. Como a prendizagem matemática é, na escola, particularmente penosa, analiso a pesquisa de uma autora inspiradamente crítica (Danyluk (2002).

Parte da idéia de que ler é ato de conhecimento (Silva, 1986, 1991), afastando logo leitura como reprodução de códigos alfabéticos ou numéricos. Não é, para Danyluk (2003, p.15-16), o que ocorre, conforme constatou em sua pesquisa na escola:

Na cotidianidade desses encontros, constatei que a professora não dialogava com os alunos, não conversava com

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eles sobre aquilo que estavam fazendo, nem sobre o significado do que era escrito no quadro-negro. Percebi que não os tratava como pessoas capazes de compreender e de desvelar a linguagem daquilo que estava sendo dito nas atividades. Apenas agia mecanicamente, escrevendo, no quadro-negro, e induzindo os alunos a emitir, também, de forma mecânica, suas referências às respostas que indicava. Os alunos, por sua vez, deixavam-se levar pela fala da professora, que não revelava uma organização do seu pensamento. Assim, não se estabelecia entre a professora e os alunos o diálogo no qual a inteligibilidade de ambos sobre o significado da matemática pudesse aparecer. A professora não conseguia ser-com-os-alunos22 , ao limitar o ensino e os questionamentos a padrões do seu conhecimento, conduzindo-os a uma resposta já elaborada por ela. Não havia espaço para o aluno desenvolver sua compreensão e elaborar suas idéias. Desse modo, a realização das atividades escolares era sentida como algo enfadonho. E, por não ouvir o aluno ou por não incentivá-lo ao pensamento meditativo para aquilo que estava sendo mostrado, não ficava claro para ele a coerência das atividades desenvolvidas. Não se dava, portanto, o envolvimento da criança com a matemática nem com a linguagem da professora. Ao induzir ao ato de pensar, a professora não criou possibilidades para que a compreensão e a interpretação do sentido e do significado se desenvolvessem em seus alunos, pois o que se ressaltava era o falar. Os alunos ficavam, dessa forma, entregues a fala vazia, mostrada pelo discurso da professora. Do que pudera até então constatar na pesquisa em realização, muitos aspectos me deixavam preocupada. Dentre eles, um em especial: a professora não estava atenta ao pensamento do aluno, não ouvia quais eram suas dúvidas, não procurava entender como seu aluno raciocinava nem como compreendia os significados. Nas aulas, não havia espaço para conversar sobre o que a professora e os alunos estavam fazendo. Era um fazer por fazer, isto é, era um fazer para preencher o espaço temporal em que a criança e a professora deveriam ficar dentro da sala de aula. Essa prática levava os alunos a se sentirem dominados e dependentes, afastando-se de um pensar autêntico, ou seja, ficavam impossibilitados de compreender o sentido do que faziam e ouviam, além de atribuírem significados as experiências por eles vividas as ações da professora e a linguagem matemática trabalhada em aula.

Não me parece difícil divisar o quanto esta percepção da Danyluk corresponde ao cotidiano da grande maioria das escolas, nas quais, como diz D' Ambrosio, matemática é ensinada como se fosse língua estrangeira (Idem, 2003, p.11).

Referindo-se a McLaren (1991) e seu conceito de "rituais da escola", Danyluk acentua a marca de um: entidade perdida em ritualísticas vazias,.feitas para preencher o tempo futilmente, mais orientadas para o controle disciplinar. A aprendizagem emancipatória, libertadora já não conta. Antes, e evitada, censurada em nome da absorção dos ritos sociais que introduzem a população na mediocridade geral. Danyluk questiona com forte veemência este uso da matemática como disciplinamento dos alunos, o que permite perceber que dificuldade de entender matemática passa a ser parte desta estratégia. É próprio de rituais repetitivos fazê-lo sem entender, por rotina. Não comunicam, nem levam a comunicar. Antes, induzem ao silêncio e é isto que compete a uma população submissa. Em ambiente de visível opressão, as crianças eram compelidas a obedecer, mais do que a compreender, até porque seriam castigadas se não ficassem quietas.

Do que constatei no contexto escolar em relação à atitude dos alunos e da professora na realização do ato de ler a linguagem matemática, foi que a professora esteve com o aluno de modo autoritário, não significativo, não dialógico, repressor e punitivo. Não houve compreensão daquilo que foi ensinado de matemática. Desse modo, leitura da linguagem matemática, realizada na escola, foi mecânica, sem significado e vazia de sentido. Assim, linguagem matemática não foi lida, pois os alunos eram treinados, condicionados, instruídos, porém não conduzidos para a leitura da linguagem matemática. A leitura se da quando há envolvimento do leitor com aquilo que está sendo lido. O ato de ler e de ler a linguagem matemática esta fundamentado nos atos humanos de compreender, de interpretar e de comunicar a experiência vivida. Assim, a leitura, quando é compreensão e interpretação, abre para o leitor novas possibilidades de compreensão de si, do outro e do mundo. O Ser se mostra no discurso por meio da linguagem, e essa linguagem pode ser lida. O homem, vivendo no mundo-com-os-outros, tem a possibilidade de fazer leituras de diferentes expressões. Assim sendo, não se lê apenas a linguagem mostrada pelo discurso expresso por palavras. É possível ler os sinais emitidos pela natureza, assim como a tela de um pintor, os gestos corporais, os olhares das pessoas. São tipos de expressães que estão presentes no mundo, cuja compreensão dos sinais é feita pelo ser humano, mediante o ato de ler (Idem, p.18).

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Por ser o ato de ler, fundamentalmente, um ato de conhecimento e considerando que o ser humano é "um ser que é compreensão, o seu aprender só tem sentido quando emprega as palavras e as significações daquilo que lê na vida cotidiana para compreender a si próprio, compreender o mundo e comunicar-se com os outros. O leitor, dirigindo sua consciência para o lido, encontra, na leitura, uma possibilidade de revelação do mundo" (Ibidem).

É visível como esta autora conjuga bem alfabetismo escolar com o social, assim como unifica o alfabetismo em leitura/escrita e em matemática. Tem como inspiração maior a leitura do mundo, em sentido libertador, desde que as crianças participem de forma ativa, crítica e reflexiva, a partir do contexto de suas existências. Valoriza referencias etnomatemáticas (D' Ambrosio, 1998,2001), sempre na tentativa de fazer da matemática expressão da existência humana, também em suas abstrações. Isto permite ver nas abstrações matemáticas, não diatribes de fuga da realidade, complicando o que poderia ser simples, mas maneiras inteligentes, críticas e criativas de interpretar a realidade, formalizando-a.

As referências matemáticas surgem no próprio relacionamento humano em sociedade, não só porque sempre há quantidades a discriminar, mas principalmente porque as tramas relacionais exigem sua codificação formal para serem melhor entendidas, urdidas, desconstruídas e reconstruídas. Nesta trama, o leitor não é absorvente passivo de mensagens, mas típico sujeito autopoiético, interpretativo e reconstrutivo, podendo elaborar e reelaborar novos contextos. É assim que Danyluk (Idem, p.20) entende "alfabetização matemática":

Entendo que alfabetização matemática diz respeito aos atos de aprender a ler e a escrever a linguagem matemática, usada nas séries iniciais da escolarização. Compreendo a alfabetização matemática, portanto, como fenômeno que trata da compreensão, da interpretação e da comunicação dos conteúdos matemáticos ensinados na escola, tidos como iniciais para a construção do conhecimento matemático. Ser alfabetizado em matemática, então, é compreender o que se lê e escreve, o que se compreende a respeito das primeiras noções de lógica, de aritmética e de geometria. Assim, a escrita e a leitura das primeiras idéias matemáticas podem fazer parte do contexto de alfabetização.

Ao contrário do que muitos matemáticos sugerem, que não escrevem, calculam, Danyluk reclama que é preciso ler e escrever matemática. Sustenta-se em Foucambert (1994), que valoriza a escrita como indutora do poder de transformar e compreender o mundo, como habilidade de produzir textos com o objetivo de não só pensar, mas de estruturar em texto o real. Enquanto a escrita parece exigência óbvia para o ato de ler, ainda não o é para a matemática, parecendo que a alfabetização não incluiria a matemática. "Poucos são os textos que tratam da alfabetização matemática, ou seja, do ato inicial de ler e de escrever matemática" (Danyluk, 2003, p.25). Na história da humanidade, porém, parece que contar deu azo à necessidade de ler e escrever.

Tem sido aflitivamente desinteressante a matemática escolar23.

Considero que a construção das idéias matemáticas se da no movimento dialético de relações construídas e reconstruídas, onde o ser humano organiza suas idéias e se revela em expressão, ou seja, comunica a inteligibilidade do que compreendeu e interpretou. A escola, sendo um dos lugares onde as crianças podem realizar suas possibilidades de construir idéias matemáticas, faz-me considerar que o professor que alfabetiza, no início da escolarização, deve respeitar o modo pelo qual as crianças realizam seus registros, permanecendo com a criança, ouvindo-a e permitindo que ela escreva aquilo que sabe. Seus registros devem ser vistos como produções criativas, espontâneas e não como escritas em que falta exatidão (Idem, p.231).

É crucial que os professores assumam que o aluno é capaz de inventar e fazer matemática, no contexto do processo de construção do conhecimento matemático.

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20Neste livro trato da propedêutica do saber pensar: filosofia, linguagem, matemática. Em termos certamente simplificados, oferece-se maneira de articular a leitura/confronto da realidade, essencial para a prática da cidadania.

21Vale lembrar que minha análise aqui é incipiente e tem como objetivo apenas repisar a importância do alfabetismo matemático. Por isso também não me atenho a coberturas maiores de bibliografia e discussões.

22Expressão extraída do contexto de Heidegger, um dos referenciais teóricos da obra de Danyluk, e que significa a capacidade de estar inserido na existência real das pessoas.

23Citando D'Ambrosio (1991, p.2): "A matemática que estamos ensinando é obsoleta, inútil e desinteressante. Ensinar ou deixar de ensinar essa matemática dá no mesmo. Na verdade, deixar de ensiná-la pode até ser um benefício, pois elimina fontes de frustração!... Nossa proposta é ensinar uma matemática viva, uma matemática que vai nascendo com o aluno enquanto ele memso vai desenvolvendo seus meios de trabalhar a realidade na qual ele está agindo".

Trechos extraídos das páginas 89 à 100 do livro de DEMO, Pedro. Leitores para sempre. Editora Mediação, Porto Alegre - 2006.