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FILOSOFIA DA CIÊNCIA Silvio Chibeni FILOSOFIA E SUAS DISCIPLINAS Hoje em dia costuma-se considerar pertencentes ao tronco principal da filosofia as disciplinas da estética, lógica, ética, epistemologia e metafísica, sendo que as duas primeiras mostram tendência à autonomização. De forma muitíssimo simplificada, pode-se dizer que a estética examina abstratamente a beleza e a feiúra; a lógica investiga o encadeamento formal das proposições; a ética estuda questões relativas ao bem e ao mal, aos direitos e deveres; a epistemologia ocupa-se do conhecimento, suas origens, fundamentos e limites, enquanto que a metafísica procura especular sobre a natureza última das coisas. Fora esses ramos fundamentais, há ainda diversos outros que resultam de suas interconexões e especializações, como por exemplo a filosofia política, a filosofia da linguagem, a filosofia da ciência, a teologia. EPISTEMOLOGIA A epistemolgia é o estudo ou ciência do conhecimento. Dois dos grandes problemas da epistemologia são o das origens e fundamentação do conhecimento (quais os processos pelos quais o adquirimos, em que ele se fundamenta) e o dos seus limites, ou extensão (quais as coisas que podem, em princípio, ser conhecidas e quais as que não podem). Ao

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FILOSOFIA DA CIÊNCIA

Silvio Chibeni

FILOSOFIA E SUAS DISCIPLINAS

Hoje em dia costuma-se considerar pertencentes ao tronco

principal da filosofia as disciplinas da estética, lógica,

ética, epistemologia e metafísica, sendo que as duas

primeiras mostram tendência à autonomização. De forma

muitíssimo simplificada, pode-se dizer que a estética

examina abstratamente a beleza e a feiúra; a lógica

investiga o encadeamento formal das proposições; a ética

estuda questões relativas ao bem e ao mal, aos direitos e

deveres; a epistemologia ocupa-se do conhecimento, suas

origens, fundamentos e limites, enquanto que a metafísica

procura especular sobre a natureza última das coisas. Fora

esses ramos fundamentais, há ainda diversos outros que

resultam de suas interconexões e especializações, como por

exemplo a filosofia política, a filosofia da linguagem, a

filosofia da ciência, a teologia.

EPISTEMOLOGIA

A epistemolgia é o estudo ou ciência do conhecimento.

Dois dos grandes problemas da epistemologia são o das

origens e fundamentação do conhecimento (quais os processos

pelos quais o adquirimos, em que ele se fundamenta) e o dos

seus limites, ou extensão (quais as coisas que podem, em

princípio, ser conhecidas e quais as que não podem). Ao

longo da história da filosofia, esses dois problemas

epistemológicos quase nunca foram tratados separadamente,

já que há conexões entre eles. Porém, para fins de análise

a distinção é útil, e podemos classificar as doutrinas

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epistemológicas em dois grupos principais, conforme se

ocupem de um ou de outro desses problemas.

No caso do problema das origens e fundamentação do

conhecimento, há essencialmente duas posições antagônicas:

i) Empirismo. Sustenta que o conhecimento se baseia e

se adquire através do que se apreende pelos sentidos.

Admite-se, além dos sentidos “externos” (visão, audição,

tato, olfato e paladar) a participação de um sentido

“interno” (introspecção), que nos informa acerca de nossos

sentimentos, estados de consciência e memória. Como quase

toda doutrina filosófica, o empirismo encontra raízes na

Grécia Antiga; ganhou novo ímpeto com a revolução

científica do século 17, e seus principais defensores no

período moderno foram Locke, Berkeley e Hume.

ii) Racionalismo. Mantém que as fontes do verdadeiro

conhecimento encontram-se não na experiência, mas na razão.

Como no caso do empirismo, também essa doutrina já era

defendida entre os gregos; na era moderna, seus principais

expoentes foram Descartes e Leibniz.

Naturalmente, é possível manter-se uma posição

empirista acerca de determinado tipo de conhecimento e

racionalista acerca de outro. De fato, é freqüente, por

exemplo, que empiristas com relação ao conhecimento do

mundo físico sejam racionalistas com relação ao

conhecimento matemático. E mesmo dentro de uma mesma área,

é cabível sustentar-se posições diferentes quanto à origem

do conhecimento, dependendo do tipo de proposição

envolvida. Esse é o caso da teoria epistemológica de Kant;

segundo ela, nosso conhecimento da física é parcialmente a

priori (como no caso das leis de Newton) e parcialmente

empírico, ou a posteriori (a lei de Boyle, por exemplo).

Não iremos aqui discutir e avaliar, ou mesmo apresentar

de forma sistemática, as múltiplas variantes dessas

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doutrinas epistemológicas sobre a origem do conhecimento.

Notemos apenas que, como resultado das profundas

transformações sofridas pela física em nosso século (que,

entre outras conseqüências, levaram à descrença na verdade

universal das leis da dinâmica newtoniana, e à adoção de

geometrias não-euclideanas), o racionalismo com relação ao

conhecimento do mundo físico aparentemente perdeu muito de

sua plausibilidade.

Realismo e anti-realismo

Passemos agora à questão dos limites do conhecimento.

Aqui, a oposição principal se dá entre a doutrina

epistemológica do realismo e uma série de doutrinas com

nomes diversos, ditas genericamente anti-realistas.

Poucos conceitos filosóficos têm recebido

caracterizações tão diversas quanto o de realismo. Em um

sentido amplo, o termo realismo denota uma determinada

posição filosófica acerca de certas classes de objetos, ou

de proposições sobre esses objetos. Consideram-se, por

exemplo, os objetos matemáticos, os universais, os objetos

materiais ordinários, as entidades não-observáveis

postuladas pelas teorias científicas, etc.

Em uma formulação puramente metafísica, o realismo

sobre os objetos de uma dessas classes se caracteriza pela

afirmação de que os objetos em questão “realmente existem”,

ou “desfrutam de uma existência independente de qualquer

cognição”, ou “estão entre os constituintes últimos do

mundo real”. Pode-se pois ser realista com relação a uma

classe ou classes de objetos e anti-realista com relação a

outras. Outros filósofos preferem (por razões que não

examinaremos aqui) formular o realismo em termos

epistemológicos, dizendo, por exemplo, que por realismo se

deve entender a doutrina segundo a qual as proposições

sobre os objetos da classe em disputa possuem um valor de

verdade objetivo, independente de nossos meios para

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conhecê-lo: são verdadeiras ou falsas em virtude de uma

realidade que existe independentemente de nós.

As posições anti-realistas por vezes recebem nomes

especiais, de acordo com a classe de objetos em questão.

Assim, o anti-realismo com relação às entidades matemáticas

é conhecido por construtivismo; com relação aos objetos

materiais ordinários por fenomenalismo; com relação aos

universais por nominalismo. O anti-realismo científico

questiona a possibilidade do conhecimento das entidades e

processos inobserváveis postulados pelas teorias

científicas; recebe várias denominações, dependendo de como

a tese do realismo científico é negada: instrumentalismo,

redutivismo, empirismo construtivo, relativismo, etc.

*VER REALISMO, CONSTRUÇÃO SOCIAL E RELATIVISMO

OBSERVAÇÕES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE A CIÊNCIA E A FILOSOFIA

Seria quase desnecessário lembrar que, desde a sua origem,

o homem sempre cuidou de obter conhecimento sobre os

objetos que o cercam, pois disso depende sua sobrevivência.

Tal conhecimento histórica e biologicamente primitivo é,

pois, antes de tudo um saber como, um conhecimento motivado

por algo externo à atividade cognitiva propriamente dita: a

necessidade de controle dos fenômenos naturais.

A Grécia Antiga testemunhou, no entanto, o surgimento

de uma perspectiva cognitiva nova: a busca do conhecimento

pelo próprio conhecimento, por mera curiosidade

intelectual. Aqueles que cultivavam essa busca do saber

pelo saber foram chamados filósofos (traduzindo, “os que

amam ou buscam a sabedoria”).

Um dos mais importantes desses homens – talvez mesmo o

mais importante deles –, Aristóteles (c. 384-322 a.C.),

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abre uma de suas obras fundamentais, a Metafísica,

justamente com a afirmação de que “por natureza, todo homem

deseja conhecer” (livro I, cap. 1). Em seguida traça, em um

texto que cativa tanto por sua eloqüência como por sua

precisão analítica, a distinção entre três tipos de saber,

ou talvez de etapas na busca do saber. Adaptando um pouco a

terminologia, temos:

(i) Conhecimento por experiência sensorial direta.

Restringe-se aos objetos e eventos individuais, e informa

simplesmente acerca do que é.

(ii) Conhecimento técnico. Engloba leis gerais, mas

dirige-se apenas à questão de como é. Basta, pelo menos num

primeiro momento, para dirigir nossas ações.

(iii) conhecimento teórico. Também de tipo geral,

procura responder a questão de por que é. Esse é o domínio

da ciência propriamente dita, no qual se investigam as

“causas” e “princípios” dos fenômenos. Vale a pena ver este

comentário do próprio Aristóteles:

“Aquele que é mais exato e mais capaz de ensinar as

causas é mais sábio, em todas as áreas do conhecimento. E

quanto às ciências, igualmente, aquilo que é desejável por

si mesmo e com vistas apenas ao conhecimento é mais próprio

da sabedoria do que aquilo que é desejável com vistas aos

seus resultados ...” (Metafísica, livro 1, cap. 2,

982a.10).

Esse cultivo do saber pelo saber talvez seja a principal

herança que recebemos dos gregos, e um dos traços mais

importantes da cultura ocidental. Chegou até nós não apenas

pela filosofia – hoje um tanto esquecida –, mas

principalmente por ter sido incorporado ao que hoje

chamamos ciência.

CIÊNCIA E A QUESTÃO DA UNIVERSALIDADE E DA CERTEZA

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A utilização do termo ‘ciência’ no sentido

contemporâneo é bastante recente, consolidando-se somente

no século XX. Porém, a ciência – neste sentido do termo – é

mais antiga, remontando mais ou menos ao século XVII. No

meio tempo, era usualmente denominada filosofia natural.

Tal denominação reflete, é claro, a origem da ciência

naquela busca do saber pelo saber destacada pelos Antigos.

Eles não distinguiam ciência de filosofia; tudo era

filosofia. A palavra ‘ciência’, que já existia (em latim

scientia; em grego episteme), era usada para diferençar o

tipo especial de conhecimento a que Aristóteles cantou

louvores: o conhecimento universal e certo acerca dos 3

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fenômenos naturais, dos números, das figuras geométricas,

etc., buscado sem preocupações práticas.

Esse ideal de universalidade e certeza foi incorporado

às ciências, no sentido contemporâneo da palavra, quando

começaram a surgir no século XVII. O impressionante sucesso

explicativo e preditivo das nascentes disciplinas foi

atribuído a um novo método de investigação, que

supostamente aliava a observação cuidadosa e, quando

possível, controlada dos fenômenos, ao crivo da razão. No

caso mais significativo, a física, a matematização foi

também um ingrediente importante nesse método.

A compreensão precisa do chamado “método científico”, das

características que distinguiriam as disciplinas

científicas das não-científicas, ou pseudo-científicas,

constituiu, desde então, um dos temas mais polêmicos da

filosofia da ciência, a área da filosofia que se ocupa da

análise do conhecimento científico. Não há espaço aqui para

sequer mencionar as principais teorias filosóficas sobre a

questão.

Há um ponto, porém, que gostaria de ressaltar. É que

embora ainda hoje o leigo e muitos cientistas continuem a

associar a noção de ciência à de certeza e infalibilidade,

as análises epistemológicas levaram, há muito, os filósofos

da ciência a reverem essa associação. No âmbito do chamado

“empirismo”, o questionamento desse ponto remonta pelo

menos a John Locke, no século XVII; no século seguinte, foi

aprofundado por David Hume, numa famosa crítica cética.

Curiosamente, foi apenas no século XX que houve um

reconhecimento mais geral de que a obtenção de conhecimento

universal e certo acerca dos processos naturais é um ideal

que, depois de dois milênios e meio, deve ser abandonado,

por inatingível.

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Perdido esse traço quase que definitório da ciência, ficou

ainda mais difícil encontrar critérios de demarcação entre

ciência e não-ciência que sejam de aplicação geral. Há hoje

diversas propostas em análise, nenhuma isenta de objeções

mais ou menos graves. Muitos terão, por exemplo, ouvido

referências à concepção de ciência do já mencionado Karl

Popper.

Karl Popper

Mais, talvez, do que qualquer outro filósofo da ciência

contemporâneo ele enfatizou o caráter irredutivelmente

conjetural de todo o nosso conhecimento da matéria. Numa

expressão famosa, Popper sugeriu que entendêssemos o

conhecimento científico não como episteme (que requer

certeza), mas como doxa (opinião).

Segundo Popper, as leis e teorias científicas, mesmo as

mais bem estabelecidas, são sempre hipóteses, inventadas

livremente para predizer e explicar os fenômenos. O que as

tornaria científicas é sua falseabilidade, ou seja, o

poderem, em princípio, ser refutadas pela experiência. É

claro que as teorias de fato aceitas num dado momento não

podem já ter sido refutadas. Mas é importante que sejam

refutáveis, pois caso contrário não teriam potenciais

pontos de contato com a realidade. O progresso da ciência

seria, assim, o resultado de um processo constante de

conjeturas e refutações, de substituição de hipóteses

falseadas por hipóteses melhores e não falseadas, porém

sempre falseáveis.

Embora essa visão da ciência aparentemente rompa de forma

radical com a noção original, há um elemento importante no

ideal clássico que Popper procurou preservar e defender,

mediante uma argumentação cerrada: o realismo. Essa posição

filosófica é, em termos simples, a de que, embora falíveis,

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as teorias científicas devem ser entendidas como tentativas

sérias, e cada vez melhores, de descrever uma realidade

objetiva, ainda quando transcenda o nível dos fenômenos, ou

seja, aquilo que é diretamente perceptível aos sentidos. O

empreendimento científico continua, nessa perspectiva

realista, dando vazão da melhor forma possível ao nosso

arraigado desejo de compreender o mundo real, de descobrir

como e por que funciona.

MÉTODO CIENTÍFICO

*PROBLEMAS DA INDUÇÃO, DEDUÇÃO E ADBUÇÃO

Constitui crença generalizada que o conhecimento fornecido

pela ciência é, de algum modo, superior relativamente aos

demais tipos de conhecimento, como o do homem comum.

Teorias, métodos, técnicas, produtos, contam com aprovação

geral quando considerados científicos. A autoridade da

ciência é evocada amplamente. Indústrias, por exemplo,

freqüentemente rotulam de científicos processos por meio

dos quais fabricam seus produtos, bem como os testes aos

quais os submetem. Atividades várias de pesquisa nascentes

se auto-qualificam científicas , buscando respeitabilidade.

Essa atitude quase que de veneração à ciência deve-se, em

boa parte, ao extraordinário sucesso prático alcançado pela

física, pela química, pela biologia e por suas

ramificações. Assume-se, implícita ou explicitamente, que

por detrás desse sucesso existe um método especial que,

quando seguido, redunda em conhecimento certo, seguro.

*relação entre conhecimento (epistemologia), e Poder: a

ciência tem autoridade porque tem método ou por uma questão

de poder, por uma questão política?

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A questão de saber que método seria esse tem constituído

uma das principais preocupações dos filósofos, desde que a

ciência ingressou em uma nova era, no século XVII. Formou-

se em torno dela e de outras questões correlacionadas um

ramo especial da filosofia, a filosofia da ciência. Essa

disciplina passou por transformações importantes no século

XX, tendo, como conseqüência, chegado a uma visão do método

científico bem mais satisfatória, sob diversos aspectos, do

que a que prevaleceu, com algumas variações, nos três

séculos precedentes.

A tripartição aristotélica do conhecimento

*ver menção anterior a Aristóteles

Nessa acepção original, o termo .ciência. (episteme,

scientia) indica o ideal máximo do saber humano: a

apreensão completa e definitiva da realidade de um objeto

ou processo. A busca da ciência nesse sentido representava,

pois, um desafio imenso. De forma admirável, isso não

impediu que fosse aceito pela maioria dos filósofos durante

quase dois milênios. Paradoxalmente, foi somente quando a

investigação científica do mundo adentrou uma fase

particularmente fecunda, a partir do século XVII, que

começaram a surgir as primeiras suspeitas sistemáticas de

que, talvez, o ideal fosse alto demais. Nessa época, o

próprio avanço do saber determinou, entre outras coisas,

uma crescente especialização, que se traduziu num

desmembramento, relativamente ao tronco comum da filosofia,

que englobava quase todas as áreas do saber, de um

aglomerado de campos que viria, bem mais tarde, ser chamado

de ciência, numa acepção mais restrita do termo, e que é a

que prevalece hoje em dia.2

No tronco original permaneceram

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diversas disciplinas, como a metafísica, a lógica, a

epistemologia, a ética e a estética.

*Neste ínterim, a questão da universalidade e da certeza

começam a ser questionadas: quais seriam as potencialidades

e os limites da razão e do conhecimento? Quanto a isso,

podemos destacar a filosofia de David Hume e de Kant.

Teorias fenomenológicas e teorias explicativas

uma distinção entre dois tipos de teorias científicas:

fenomenológicas e explicativas. Essa distinção diz respeito

à natureza das proposições da teoria.

proposições se refiram exclusivamente a propriedades e

relações empiricamente acessíveis entre os fenômenos são

ditas fenomenológicas (.fenômeno.: aquilo que aparece aos

sentidos). Teorias desse tipo têm como função descrever,

por suas leis, as correlações entre os fenômenos. Isso é o

suficiente para permitir a previsão da ocorrência de um

fenômeno a partir da ocorrência de outros. Exemplos

importantes de teorias fenomenológicas são a termodinâmica,

a teoria da relatividade especial e a teoria da seleção

natural de Darwin.

Porém a capacidade de predição de fenômenos é apenas o

primeiro dos dois grandes objetivos da ciência, no sentido

atual do termo. O outro objetivo é o de fornecer

explicações para os fenômenos, quer individualmente, quer

já concatenados por leis de tipo fenomenológico. Numa visão

tradicional (adotada daqui em diante), esse objetivo deve

ser buscado apontando-se as causas dos fenômenos. Teorias

que se proponham a especificar tais causas, a partir das

quais se compreenda as razões da ocorrência dos fenômenos,

são ditas teorias explicativas, ou construtivas. Esta

última denominação foi sugerida por Einstein, a partir da

observação de que as teorias deste segundo tipo envolvem

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proposições referentes a entidades e processos inacessíveis

à observação direta, que são postulados com o objetivo de

explicar os fenômenos por sua .construção. a partir dessa

suposta estrutura fundamental subjacente (Einstein 1954, p.

228). Exemplos característicos desse tipo de teoria são a

mecânica quântica, a mecânica estatística, o

eletromagnetismo, a genética molecular e grande parte das

teorias químicas.

O problema da indução

Tanto as teorias fenomenológicas como as explicativas

envolvem, de forma essencial, proposições universais, entre

as quais destacam-se as que se classificam como leis. Tais

proposições englobam no seu âmbito todo o universo de

objetos ou processos de determinados tipos. No âmbito das

ciências naturais, essas proposições suscitam um problema

epistemológico importante: como podem ser fundamentadas, ou

justificadas? Em outros termos, que tipo de evidência pode

assegurar sua verdade?

Ao tratar desse problema, alguns filósofos, como Descartes,

Leibniz e Kant, tentaram uma via que em filosofia se

chama .racionalista., ou seja, que busca a fundamentação no

âmbito exclusivo do pensamento. Parece hoje claro, ao menos

para os filósofos da ciência, que essa tentativa não deu

certo. Qualquer conhecimento dos entes e processos naturais

deve, de alguma forma, apoiar-se na experiência, na

observação dos fatos, não na razão pura. Essa tese é

usualmente chamada de .empirismo., e teve em Locke, George

Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776) seus

principais defensores no período moderno. Pois bem: dado

que qualquer experiência é necessariamente particular, ou

seja, referente a objetos individuais, como pode essa

experiência constituir base adequada para as leis

científicas, que se referem ao universo inteiro de objetos?

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Em outros termos, como se pode passar de observações

particulares para o caso geral? Esse problema

epistemológico é hoje conhecido como problema da indução.

Ceticismo – Hume:

simplesmente não há meios racionais ou empíricos de

assegurar, com certeza absoluta, a verdade das leis

científicas a partir da experiência ou de raciocínios

lógicos. Não considero adequada a interpretação comum de

que essa seria uma conclusão puramente cética.4

Parece-me que a lição principal a ser tirada dessas

análises é que temos de renunciar, de uma vez por todas, ao

ideal tradicional do conhecimento universal e certo sobre o

mundo. Todas as nossas afirmações universais sobre a

natureza são irredutivelmente falíveis. Nenhum conhecimento

científico minimamente complexo para envolver leis não pode

ser dito provado, no sentido estrito do termo.

Não obstante o caráter incontroverso dessa conclusão,

parece que não foi ainda assimilada nem pelo homem comum,

nem pelos próprios cientistas, que seguem pensando em

ciência como sinônimo de certeza. Para os filósofos da

ciência, trata-se de ponto pacífico há muito tempo. Nem por

isso, porém, deixa de ser para eles perturbador. Uma das

razões é que a certeza sempre foi vista como um traço quase

que definitório da ciência. Perdido, ficou mais difícil

encontrar critérios de demarcação entre ciência e não-

ciência que sejam de aplicação geral. Retomarei esse

problema da demarcação mais adiante.

Hipóteses e explicações científicas

Como já observei, as teorias científicas explicativas

buscam estabelecer os mecanismos causais dos fenômenos.

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Tais mecanismos via de regra encontram-se além do nível

fenomenológico, ou seja, não podem ser determinados por

observação direta. Eles são, tipicamente, postulados como

hipóteses. A noção de hipótese é crucialmente importante na

ciência. Ao contrário do que pensa o homem comum, a ciência

não visa a eliminar as hipóteses, nem poderá fazê-lo, se

quiser preservar o ideal aristotélico da compreensão do

mundo. Não há um meio de, pela investigação, transformar

uma hipótese científica . ao menos do tipo relevante para a

presente discussão . em algo .provado., e portanto que não

seria mais uma hipótese.5

Diante disso, o que o cientista

tem de fazer é desenvolver uma série de critérios que

ajudem a determinar o estatuto epistemológico das

hipóteses, ou seja, que possibilitem a avaliação das

diversas hipóteses, enquanto pretendentes à verdade.

Em vista da predominância das teorias explicativas na

ciência, o problema que acaba de ser indicado é de grande

importância, e, em seus diversos desdobramentos, constitui

a parte mais expressiva das discussões epistemológicas

contemporâneas.

Realismo científico

Há, entre os epistemólogos, uma divisão em dois grupos

principais: os realistas científicos e os anti-realistas

científicos. Os primeiros são os que defendem que, embora

de forma falível, as hipóteses científicas sobre entes e

processos inobserváveis têm como propósito realmente

afirmar algo sobre esses entes, ou seja, são tentativas

genuínas de descobrir como a realidade das coisas é. Os

anti-realistas, por sua vez, ou propõem que elas não têm

esse objetivo, e devem ser entendidas de outro modo, por

exemplo como meros instrumentos formais que auxiliam na

concatenação teórica das leis fenomenológicas, mas sem

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nenhuma pretensão à descrição da realidade subjacente aos

fenômenos.

Na perspectiva empirista favorecida hoje em dia, o maior

desafio para o realista científico é estabelecer ligações

entre suas hipóteses e a experiência direta.

Teste de hipóteses: refutações

Na avaliação das hipóteses, e, mais geralmente, dos

conjuntos estruturados de hipóteses a que chamamos teorias,

a atenção epistemológica tem que ser focalizada na

estrutura formal da relação entre hipótese e experiência.

Importância da refutação da hipótese:

Embora à primeira vista esse não seja um caso interessante,

essa impressão é errada, pois da refutação de uma hipótese

se aprende algo importante: que o mundo não é como a

hipótese diz ser. À falta de um acesso epistêmico direto,

isso já é alguma coisa, podendo, por exemplo, direcionar a

pesquisa para outras hipóteses melhores. Um dos mais

importantes filósofos da ciência contemporâneos, Karl

Popper, desenvolveu sua teoria da ciência em torno dessa

idéia: a ciência progride na direção de um melhor

conhecimento do mundo por um processo de conjeturas e

refutações. O conhecimento científico é irredutivelmente

hipotético, conjetural, mas as nossas hipóteses acerca do

mundo vão se aperfeiçoando ao longo do tempo pela

sistemática eliminação de hipóteses falsas.7

Questão da dermarcação entre ciência e não-ciência:

É apropriado neste ponto retomar brevemente a questão da

demarcação. Como a demarcação entre ciência não-ciência, ou

pseudo-ciência, não pode ser feita com base na existência

de um procedimento que garanta infalivelmente a verdade das

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proposições científicas, Popper propôs que o que diferencia

a ciência é a falseabilidade de suas proposições básicas,

ou seja, o poderem em princípio ser refutadas pela

experiência. É claro que as hipóteses e teorias de fato

aceitas num dado momento não podem já ter sido refutadas ou

falseadas. Mas é importante que sejam falseáveis, pois caso

contrário não teriam potenciais pontos de contato com a

realidade.

Integração teórica

Mas a questão que se coloca, com Quine, é que se uma

hipótese é refutada – falseada pela experimentação, surgem

hipóteses auxiliares.

Assim como no caso do problema da indução, acredito que a

reação apropriada aqui não seja a de um ceticismo completo

quanto à possibilidade de refutação de hipóteses na

ciência. A lição importante a ser tirada dessa análise é a

de que o conhecimento científico tem caráter essencialmente

integrado: não consiste de aglomerados de proposições, cada

uma das quais possa ser avaliada independentemente das

demais. Quine expressou bem o ponto dizendo que .nossas

proposições sobre o mundo externo enfrentam o tribunal da

experiência sensível não individualmente, mas

corporativamente. (Quine 1953, seção 5). Voltarei a esse

assunto mais adiante. Diante de evidência desfavorável, o

cientista deverá apelar a critérios extra-lógicos, mais

sutis e difíceis de explicitar, sobre o que fazer com sua

teoria, sobre que partes modificar.

Teste de hipótese: confirmação

Apesar dessa limitação lógica séria, há uma

importante .intuição. por detrás de um argumento desse

tipo, e que talvez possa ser preservada. Parece natural

pensar que se a verdade das implicações experimentais de

Page 17: Material Silvio Chibeni

uma hipótese for constatada experimentalmente, a hipótese

será de algum modo .confirmada. pela experiência. Pelo

menos, sabe-se que nesse caso a experiência não refutou a

hipótese, e isso já é alguma coisa.

O caminho mais promissor de levar adiante essa .intuição.

parece ser o que foi pela primeira vez explorado de forma

sistemática por Charles S. Peirce, filósofo americano do

final do século XIX. Ele propôs que temos aqui uma forma de

inferência não-lógica e não-indutiva que chamou de abdução.

limitar-me-ei a enumerar, de forma muito breve, alguns

aspectos que qualquer teorização científica deve apresentar

para que se credencie de forma mais robusta para enfrentar

o desafio de colocar-se como candidata a representação da

realidade.

Prossegue a questão: como demarcar o que é ciência e o

que não é? Balanço das posições apresentadas até aqui e

defesa da proposta de Lakatos:

A concepção lakatosiana de ciência envolve um novo critério

de demarcação entre ciência e não-ciência. O critério

tradicional, ainda hoje aceito por leigos, considera

científicas somente as teorias .provadas. empiricamente.

Tal critério é, como vimos, forte demais: não haveria,

segundo ele, nenhuma teoria genuinamente científica, pois

todo conhecimento do mundo exterior é falível. Também o

critério falseacionista, segundo o qual só são científicas

as teorias refutáveis, elimina demais: como nenhuma teoria

pode ser rigorosamente falseada, nenhuma poderia

classificar-se como científica.

Uma boa teoria científica precisa ter: Quantidade,

variedade e precisão da evidência empírica; simplicidade

teórica

Page 18: Material Silvio Chibeni

- Quantidade: quanto mais implicações experimentais

verdadeiras a teoria tiver, melhor. Uma teoria capaz de

acomodar um número muito limitado de fatos abre-se

facilmente à suspeita de ser ad hoc, ou seja, feita tendo

em vista justamente dar conta desses fatos, não tendo,

portanto, boas credenciais epistêmicas. Mas o fator

numérico não é tudo aqui: mais importante ainda é a

variedade das conseqüências experimentais da teoria.

14

Variedade: A teoria deve cobrir uma área ampla de

fatos, ou seja, deve ser abrangente. Com isso, maximiza-se

sua exposição a possíveis falseações, o que, como vimos, é

uma virtude importante de uma boa teoria científica. Caso a

teoria sobreviva às tentativas de falseação em tantos casos

diversos, ganha-se segurança de que é verdadeira.

c3) Precisão: Quanto mais precisas as predições

experimentais da teoria, maior a sua falseabilidade.

Teorias vagas e imprecisas são imunes ao eventual veredicto

negativo dos testes a que seja submetida, e isso é séria

desvantagem, pois desestimula a busca de teorias melhores.

c4) Simplicidade teórica. Apresentando-se duas ou mais

teorias alternativas para dar conta de um certo conjunto de

fenômenos, devemos preferir a mais simples delas (supondo

que seus méritos quanto a outros fatores sejam iguais).

Muitos cientistas e alguns filósofos fazem a suposição de

que as verdadeiras leis da natureza são simples, e que

portanto a busca de teorias simples é, ao mesmo tempo, a

busca de teorias que se aproximam da verdade. Essa

associação entre simplicidade e verdade não é nada

evidente, e nem parece haver um caminho pelo qual possa ser

estabelecida. Por essa razão, os filósofos da vertente

anti-realista rejeitam a associação como .metafísica., e

portanto sem valor para a ciência ou mesmo para a

Page 19: Material Silvio Chibeni

filosofia. No entanto, tem funcionado pelo menos como um

ideal regulador da ciência. Assim, a simplicidade pode

continuar sendo procurada, ao menos, por razões

heurísticas, ou pragmáticas.