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ímbolos Nacionais: O Hino e a Bandeira Susana Martins * Hino Nacional Alfredo Keil terá composto na noite de 12 de Janeiro a marcha patriótica A Portuguesa, em protesto contra o Ultimato Inglês de 11 de Janeiro de 1890. A iniciativa surgira durante um jantar de amigos frequentadores da "Tabacaria Costa" do Rossio e da editora musical "Neuparth" no Chiado, grupo de que fazem parte, entre outros, Keil, Augusto Neuparth, Duque de Palmela, Rafael Bordalo Pinheiro, Sebastião de Magalhães Lima e Teófilo Braga. Em resposta à solicitação de Keil e em "íntimo acordo" com este, o poeta Henrique Lopes Mendonça compõe a letra nos finais do mesmo mês. Segundo a explicação que Lopes Mendonça fará mais tarde, A Portuguesa pretendia ser essencialmente um "canto em que se consubstanciasse a alma da pátria ferida, com as suas aspirações de liberdade e de revivescência vigorosa", um hino que pudesse ser rapidamente aprendido pelo povo e adoptado "como um caso de reivindicação nacional" 1 - os mesmos sentimentos presentes nas três referências musicais seguidas por Keil: a Marselhesa, o fado e o Hino da Maria da Fonte. A marcha conhece de imediato larga difusão. Em Fevereiro de 1890 a Neuparth & C.ª edita a partitura para distribuição gratuita. As cores de fundo são o azul e o branco da bandeira da monarquia constitucional, o brasão central da Casa de Bragança é substituído pelo título da marcha. A tiragem eleva-se a mais de 22000 exemplares, números excepcionais para a época. Imprimem-se e distribuem-se folhetos e prospectos, afixam-se cartazes. A divulgação estende-se até a outros países da Europa, com a tradução dos versos em alemão, espanhol, italiano e russo. Em diversos palcos de Lisboa, A Portuguesa merece particular destaque. A 29 de Março de 1890, no "Grande Concerto Patriótico" realizado no Real Teatro de São Carlos a favor da "Grande Subscrição Nacional", a marcha é executada. Um pouco por todos os teatros da capital ela é tocada ou cantada. No final de Abril A Portuguesa constava dos programas de 3 dos 8 teatros de Lisboa e começava a ser ouvida pelas ruas. A 20 de Abril de 1890, no intervalo de concorrida tourada que tem lugar na praça de touros de Sintra com a presença do rei D. Carlos, igualmente a favor da "Grande Subscrição Nacional", o público pede a execução da marcha. O rei acede, a maioria escuta-a de pé e sem chapéus na cabeça. A marcha é também utilizada para fins comerciais. Numerosos são os produtos cujas embalagens ostentam imagens com ela relacionadas ou que recebem o seu nome: surgem as sardinhas "A Portuguesa", os charutos "A Portuguesa" ou as bolachas "A Portuguesa". A popularidade conquistada pel’ A Portuguesa leva ainda ao seu aproveitamento político. De canto patriótico depressa se transforma em hino republicano, embora na província continuasse a ser preferido o Hino da Maria da Fonte. Não obstante, subsistem algumas dúvidas quanto aos reais propósitos de Alfredo Keil ao compor a marcha. Se alguns enfatizam as opções republicanas do autor e o cariz antimonárquico de A Portuguesa, outros há que o negam terminantemente. Contudo, os republicanos esforçam-se para sublinhar o seu carácter subversivo. Constantemente referem que esta irrita as autoridades e que estaria iminente a sua proibição. É neste contexto que, no final de Abril de 1890, Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça vêm a público demarcar-se das apropriações políticas e sublinhar a intenção patriótica da mesma 2 . No entanto, a 31 de Janeiro de 1891, a tentativa de implantação da República no Porto é feita ao som de A Portuguesa. A banda de Infantaria 18, que acompanha as tropas revoltosas no percurso entre o Campo de Santo Ovídio e a Praça de D. Pedro, teria tocado a marcha. O facto faz crescer a desconfiança por parte do Governo. A Portuguesa deixa de ser tocada pelas bandas regimentais. * 1 - "Como nasceu a Portuguesa" in Diário de Notícias, 18 de Novembro de 1910 – transcrito in RODRIGUES, António, Álbum. Alfredo Keil, Lisboa, Ministério da Cultura/IPPAR/Galeria de Pintura do Rei D. Luís, 2001, p. 175-179. 2 - Carta assinada por ambos, datada de 26 de Abril de 1890, publicada no jornal O Século do dia seguinte – transcrita in RODRIGUES, António, Álbum. Alfredo Keil, Lisboa, Ministério da Cultura/IPPAR/Galeria de Pintura do Rei D. Luís, 2001, p. 83. 120 S

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Page 1: ímbolos Nacionais: Carlos a favor da Grande Subscrição ...hino nacional, A Portuguesa!". Seguem-se novas edições da partitura da marcha, tanto pela Neuparth & C.ª como pela Imprensa

ímbolos Nacionais:O Hino e a BandeiraSusana Martins *

Hino Nacional

Alfredo Keil terá composto na noite de 12 de Janeiro a marchapatriótica A Portuguesa, em protesto contra o Ultimato Inglêsde 11 de Janeiro de 1890. A iniciativa surgira durante um jantarde amigos frequentadores da "Tabacaria Costa" do Rossio e daeditora musical "Neuparth" no Chiado, grupo de que fazemparte, entre outros, Keil, Augusto Neuparth, Duque dePalmela, Rafael Bordalo Pinheiro, Sebastião de MagalhãesLima e Teófilo Braga. Em resposta à solicitação de Keil e em"íntimo acordo" com este, o poeta Henrique Lopes Mendonçacompõe a letra nos finais do mesmo mês.

Segundo a explicação que Lopes Mendonça fará mais tarde,A Portuguesa pretendia ser essencialmente um "canto em quese consubstanciasse a alma da pátria ferida, com as suasaspirações de liberdade e de revivescência vigorosa", um hinoque pudesse ser rapidamente aprendido pelo povo e adoptado"como um caso de reivindicação nacional" 1 - os mesmossentimentos presentes nas três referências musicais seguidaspor Keil: a Marselhesa, o fado e o Hino da Maria da Fonte.

A marcha conhece de imediato larga difusão. Em Fevereiro de1890 a Neuparth & C.ª edita a partitura para distribuiçãogratuita. As cores de fundo são o azul e o branco da bandeirada monarquia constitucional, o brasão central da Casa deBragança é substituído pelo título da marcha. A tiragem eleva-sea mais de 22000 exemplares, números excepcionais para aépoca. Imprimem-se e distribuem-se folhetos e prospectos,afixam-se cartazes. A divulgação estende-se até a outros paísesda Europa, com a tradução dos versos em alemão, espanhol,italiano e russo. Em diversos palcos de Lisboa, A Portuguesamerece particular destaque. A 29 de Março de 1890, no

"Grande Concerto Patriótico" realizado no Real Teatro de SãoCarlos a favor da "Grande Subscrição Nacional", a marcha éexecutada. Um pouco por todos os teatros da capital ela étocada ou cantada. No final de Abril A Portuguesa constavados programas de 3 dos 8 teatros de Lisboa e começava a serouvida pelas ruas. A 20 de Abril de 1890, no intervalo deconcorrida tourada que tem lugar na praça de touros de Sintracom a presença do rei D. Carlos, igualmente a favor da"Grande Subscrição Nacional", o público pede a execução damarcha. O rei acede, a maioria escuta-a de pé e sem chapéusna cabeça. A marcha é também utilizada para fins comerciais.Numerosos são os produtos cujas embalagens ostentamimagens com ela relacionadas ou que recebem o seu nome:surgem as sardinhas "A Portuguesa", os charutos "A Portuguesa"ou as bolachas "A Portuguesa".

A popularidade conquistada pel’ A Portuguesa leva ainda aoseu aproveitamento político. De canto patriótico depressa setransforma em hino republicano, embora na provínciacontinuasse a ser preferido o Hino da Maria da Fonte. Nãoobstante, subsistem algumas dúvidas quanto aos reaispropósitos de Alfredo Keil ao compor a marcha. Se algunsenfatizam as opções republicanas do autor e o carizantimonárquico de A Portuguesa, outros há que o negamterminantemente. Contudo, os republicanos esforçam-se parasublinhar o seu carácter subversivo. Constantemente referemque esta irrita as autoridades e que estaria iminente a suaproibição. É neste contexto que, no final de Abril de 1890,Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça vêm a públicodemarcar-se das apropriações políticas e sublinhar a intençãopatriótica da mesma 2.

No entanto, a 31 de Janeiro de 1891, a tentativa de implantaçãoda República no Porto é feita ao som de A Portuguesa. A bandade Infantaria 18, que acompanha as tropas revoltosas nopercurso entre o Campo de Santo Ovídio e a Praça deD. Pedro, teria tocado a marcha.

O facto faz crescer a desconfiança por parte do Governo.A Portuguesa deixa de ser tocada pelas bandas regimentais.

*1 - "Como nasceu a Portuguesa" in Diário de Notícias, 18 de Novembro de 1910 – transcritoin RODRIGUES, António, Álbum. Alfredo Keil, Lisboa, Ministério da Cultura/IPPAR/Galeriade Pintura do Rei D. Luís, 2001, p. 175-179.

2 - Carta assinada por ambos, datada de 26 de Abril de 1890, publicada no jornal O Séculodo dia seguinte – transcrita in RODRIGUES, António, Álbum. Alfredo Keil, Lisboa, Ministérioda Cultura/IPPAR/Galeria de Pintura do Rei D. Luís, 2001, p. 83.

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monarquia dos Bragança. Reclama antes a evocação da bandeiradas jornadas revolucionárias de 3 a 5 de Outubro e da primeirabandeira a ser desfraldada depois da implantação daRepública, de cores verde e encarnada, bipartida verticalmente,vermelha junto à tralha, ocupando o verde a maior parte, coma esfera armilar de ouro assente em fundo azul, encimada poruma estrela de prata com resplendor de ouro.

Procurando solucionar a questão, a 15 de Outubro de 1910 oGoverno nomeia uma comissão para o estudo da Bandeira e doHino Nacionais. Dela fazem parte eminentes personalidadesda vida nacional: o pintor Columbano Bordalo Pinheiro, oescritor Abel Botelho, o jornalista João Chagas e dois destacadoscombatentes do 5 de Outubro, o tenente Ladislau Pereira e ocapitão Afonso Palla. A 29 de Outubro a comissão apresenta oseu projecto, em tudo idêntico à bandeira da revolução: apenasse altera a localização das cores e a sua proporcionalidade,ficando agora o verde junto à tralha e ocupando maior espaçoo vermelho. A proposta é apreciada em Conselho de Ministrosrealizado no dia seguinte e são sugeridas algumas modificações.A segunda versão da comissão é avaliada e aprovada peloConselho de Ministros menos de uma semana depois, a 6 deNovembro. Respeitando na globalidade o projecto anterior, ésuprimida a estrela e são introduzidas ligeiras alterações àesfera armilar.

A 29 de Novembro o Governo Provisório aprova o últimoprojecto, ao que se soube pela maioria de um voto, e estabelecepor decreto o 1 de Dezembro como o Dia da Festa daBandeira, dia em que simultaneamente se celebra aRestauração da Independência em 1640. É o primeiro feriadoda jovem República e a primeira grande festa cívica por elarealizada. Na manhã de 1 de Dezembro, frente à CâmaraMunicipal de Lisboa, a Escola Naval e a Escola do Exército, emparada militar e ao som de A Portuguesa, prestam homenagemà bandeira verde/rubra.

Todavia, a controvérsia não termina. Multiplicam-se os projectosde bandeira, travam-se de razões os seus autores, discutem-seas cores, as armas e a simbologia. As cores são o principalponto de discórdia. Ao apoio dado ao verde/rubro por AfonsoCosta, António José de Almeida ou Teófilo Braga, opõe-se oazul/branco defendido por não menos prestigiadas figuras, deque são exemplo Guerra Junqueiro, Braamcamp Freire, Lopesde Mendonça ou Sampaio Bruno. Os primeiros evocam overde/rubro da bandeira içada na malograda revolta de 31 de

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Mas a marcha não é esquecida. No Verão de 1897, aquando dachegada a Lisboa do cruzador Adamastor, mandado construirem Livorno com os fundos da "Grande Subscrição Nacional"para oferta à Coroa portuguesa em nome da defesa nacional,a imprensa republicana exige a execução da marcha narecepção oficial. Perante a renitência da imprensa liberal emadmitir que A Portuguesa era o verdadeiro hino nacional,acusam as autoridades de a terem banido. Porém, esta acaboupor ser tocada pelas bandas militares presentes, intercaladacom o Hino da Carta, nas cerimónias de 7 e 15 de Agosto. Paraa ocasião a Neuparth & C.ª edita novamente prospectos damarcha, semelhantes aos de 1890, mas acrescenta-lhes asobreimpressão da palavra "Lembra-te".

Na manhã de 5 de Outubro de 1910 as forças republicanas quedescem a Avenida da Liberdade desde a Rotunda sãoacompanhadas pelas bandas de música de Caçadores 5 e deInfantaria 6 que tocam incessantemente A Portuguesa.A implantação da República dá-lhe foros de hino nacional. A17 de Novembro de 1910 uma nota do ministro da Guerra doGoverno Provisório determina: "Que sempre se execute ohino nacional, A Portuguesa!". Seguem-se novas edições dapartitura da marcha, tanto pela Neuparth & C.ª como pelaImprensa Nacional. Agora, as cores de fundo são já o verde eo vermelho.

Finalmente, na primeira sessão da Assembleia NacionalConstituinte, realizada a 19 de Junho de 1911, A Portuguesa éconsagrada como hino nacional.

Bandeira Nacional

Após a vitória da revolução republicana de 5 de Outubro de1910, os novos dirigentes vêem na redefinição dos símbolosnacionais uma das suas prioridades. O Hino da Carta ésubstituído pela marcha A Portuguesa, a bandeira azul e brancapela verde e rubra. Porém, a ruptura não é pacífica.Especialmente no que respeita à bandeira e às suas cores emparticular a polémica é violenta e duradoira.

Tendo constado junto da opinião públ ica que orecém-empossado Governo estaria inclinado em manter nabandeira as cores azul e branca da monarquia constitucional,a ala republicana mais radical dá a conhecer o seu desacordo.Para esta, as cores azul e branco representam a decadência da

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Janeiro de 1891 no Porto e a posterior propaganda republicana,os segundos sublinham a tradição histórica, falam do branco eazul como espelho da alma nacional, lembram que a bandeiraverde/rubra içada na varanda do município de Lisboa a 5 deOutubro estava ladeada por duas bandeiras azuis e brancas.

O plebiscito reclamado pelos partidários do azul/branco não éaceite pelo Governo e a 19 de Junho de 1911, na sessão deabertura da Assembleia Nacional Constituinte, é sancionado oprojecto aprovado anteriormente: "A Bandeira Nacional ébipartida verticalmente em duas cores fundamentais, verdeescuro e escarlate, ficando o verde escuro ao lado da tralha. Aocentro, e sobreposto à união das duas cores, terá o escudo dasArmas Nacionais, orlado de branco e assentando sobre aesfera armilar manuelina, em amarelo e avivada de negro" 3.Dias depois é publicado o parecer técnico sobre as medidas eproporções da bandeira nacional, das bandeiras regimentais edo jack para os navios.

O triunfo da bandeira verde/rubra corresponde à confirmaçãosimbólica dos princípios ideológicos e políticos da propagandarepublicana. A matriz democrática, positivista, nacionalista ecolonial, laica e anti-clerical do republicanismo histórico éconsagrada. O vermelho é a cor dos movimentos revolucionáriose populares, o verde a cor destinada por Comte aos pavilhõesdas nações positivistas do futuro; o escudo das quinas e aesfera armilar a evocação dos dois momentos mais altos dahistória portuguesa – a fundação da nacionalidade e a epopeiamarítima. Pelo contrário, a expulsão do azul-branco é a rupturacom a monarquia e com o culto católico de Nossa Senhora daConceição. O verde e o vermelho são, aliás, as cores semprepresentes em toda a iconografia que simboliza a Repúblicaentre 1891 e 1910, ou seja, durante o "período de propaganda"do republicanismo.

Por esta ser, mais que a bandeira nacional, a bandeira daRepública, com uma legitimidade sobretudo política, o seureconhecimento é complexo. Nem entre os republicanos aopção é consensual. Os actos de desrespeito e repúdio sãoinicialmente frequentes, mesmo entre os militares. Apenas otempo e as vicissitudes políticas e militares a confirmamdefinitivamente como símbolo nacional.

3 - Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n.º 1, sessão de 19 de Junho de 1911, p. 1.