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34 fórum Almanack Braziliense. São Paulo, n°11, p. 34-38, mai. 2010 Mediações em tempos híbridos: entre pátrias e revoluções Resumo A presença de François-René de Chateaubriand como agente entre “Dois Mundos”, sobretudo diante das questões das independências e do tráfico de escravos entre Américas e Europa, remete às concepções de pátria, colônia e independência, questões que são recolocadas como centrais nas relações entre Estados na Europa, no contexto de busca de estabilização política e social no período pós-Revolução Francesa. Abstract The presence of François-René de Chateaubriand as an agent between “Two Worlds”, namely in face of the issues like the independencies and the slave traffic between the Americas and Europe, refers to the conceptions of homeland, colony and independence, issues that are restored as central to the relations among the states in Europe, in the context of the search for social and political stabilization during the Post-French Revolution period. Palavras-chave revolução, liberalismo, idéias políticas, tráfico negreiro, Independência, relações internacionais Keywords revolution, Enlightenment, political ideas, slave trade, Independence, internal relations Mediations in Hybrid Times: between Homelands and Revolutions Marco Morel Professor no Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IFCH / UERJ – Rio de janeiro / Brasil) e-mail: marco.morel@pesquisador. cnpq.br

Mediações Em Tempos Hibridos, Entre Pátrias e Revoluções

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Mediações em tempos híbridos:entre pátrias e revoluções. Marco MorelProfessor no Departamento deHistória da Universidade do Estadodo Rio de Janeiro. Almanack Braziliense. São Paulo, n°11, p. 34-38, mai. 2010

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  • 34frum Almanack Braziliense. So Paulo, n11, p. 34-38, mai. 2010

    Mediaes em tempos hbridos: entre ptrias e revolues

    Resumo A presena de Franois-Ren de Chateaubriand como agente entre Dois Mundos, sobretudo diante das questes das independncias e do trfico de escravos entre Amricas e Europa, remete s concepes de ptria, colnia e independncia, questes que so recolocadas como centrais nas relaes entre Estados na Europa, no contexto de busca de estabilizao poltica e social no perodo ps-Revoluo Francesa.

    Abstract The presence of Franois-Ren de Chateaubriand as an agent between Two Worlds, namely in face of the issues like the independencies and the slave traffic between the Americas and Europe, refers to the conceptions of homeland, colony and independence, issues that are restored as central to the relations among the states in Europe, in the context of the search for social and political stabilization during the Post-French Revolution period.

    Palavras-chaverevoluo, liberalismo, idias polticas, trfico negreiro, Independncia, relaes internacionais

    Keywordsrevolution, Enlightenment, political ideas, slave trade, Independence, internal relations

    Mediations in Hybrid Times: between Homelands and Revolutions

    Marco Morel Professor no Departamento de Histria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IFCH / UERJ Rio de janeiro / Brasil)e-mail: [email protected]

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    O texto Entre tempos e mundos: Chateaubriand e a outra Amrica, de Wilma Peres Costa, to instigante quanto o tema nele estudado. O olhar sobre aqueles tempos consegue uma perspectiva de amplitude, da histria em grandes traos com cenrios picos, paradoxais e incertos, como habitualmente so os tempos de crise. O artigo tem, inicialmente, este mrito de, em tempos historiogrficos de especializao (ou migalhas, como preferem alguns), manter a dimenso macro sem perder a articulao com o recorte temtico e cronolgico escolhido. Elaborado maneira abrangente das aulas dos catedrticos, incorpora tambm aquisies mais recentes da histria poltica. Dialogando e partindo das perspectivas estruturais, sistmicas ou socioeconmicas, abre-se para o tempo da curta durao, da anlise do pensamento poltico, dos conceitos, da conscincia e ao dos protagonistas e da dinmica da acelerao do tempo histrico. A conhecida frase de Chateaubriand sobre os restauracionistas em geral e Fernando VII em particular, citada em seu artigo, s pode ser aplicada autora pela metade: nada esqueceu, mas se renovou no eterno aprendizado da pesquisa e docncia. Trata-se, pois, da contribuio de algum que domina o ofcio de historiador, pela maneira exemplar que envolve segurana, rigor, nuances e polissemias com os quais trata as palavras, episdios e personagens.

    , pois, com satisfao que aceitei o desafio de apreciar um trabalho com tais caractersticas. E, na condio de pesquisador do perodo e de temticas prximas, aprendi bastante com o artigo. Minha tentativa de contribuio, pois, ser baseada em dois procedimentos. Apontar os aspectos inovadores e a contribuio para o conhecimento e, tambm, buscar alguns pontos e questes que poderiam servir de complemento ao que foi apresentado, sobretudo a partir de minha prpria perspectiva e pesquisas realizadas.

    Quanto discusso conceitual apresentada inicialmente, com destaque para os sentidos polissmicos de nao, penso em agregar o conceito de ptria. Se verdade que a mudana do significado tradicional de nao (de tnico cultural) para o moderno (cvico poltico, externo e interno) foi essencial, como assinala a autora, possvel avaliar que houve uma migrao do conceito tambm caleidoscpico de ptria (que at e durante a Revoluo Francesa tinha forte sentido politizado) para o de nao. Apesar dos significantes no serem os mesmos, os significados de ptria acabaram se transmutando para os de nao. Como j assinalava R. Bluteau em seu Vocabulrio de 1712, ptria no era compreendida apenas como local de nascimento mas, sim, como: local de nascimento (cidade, provncia ou reino), local de escolha de moradia (que ficaria conhecido como ptria de adoo), espao de universalidade (alm das fronteiras territoriais), espao abstrato de liberdade intelectual e utopia poltica e, finalmente, como espao poltico de atuao e virtude1.

    Quanto ao conceito de colnia, o que me parece mais instigante justamente indagar at que ponto o sentido pejorativo do que viria a ser chamado de colonialismo surge exatamente na (e a partir da) poca to bem estudada por Wilma Costa. Mesmo que algumas formulaes do abade Raynal fossem bastante contundentes quanto presena dos europeus na Amrica, pode-se questionar at que ponto ele formula claramente a noo de colnia como naturalmente antagonista de uma metrpole, idia que s viria a aparecer com mais clareza em outro contexto, durante e aps os processos de Independncia da Amrica ibrica, atravs das anlises de

    1MOREL, Marco. Ptrias polissmicas: Repblica das Letras e imprensa na crise do Imprio por-tugus na Amrica. In: KURY, Lorelay (org.). Iluminismo e Imprio no Brasil. O Patriota (1813-1814). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. p.67-102.

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    outro abade, o De Pradt2. Aps as independncias nacionais americanas, o vocbulo colonizao persiste, mas com sentido de ocupao racional de territrios e vinda de imigrantes estrangeiros.

    A partir destas questes, lembro aqui duas contribuies de Franois-Xavier Guerra, atravs de duas categorias que ele forjou para o contexto: patriotismo imperial e hibridismo cultural e poltico3. Deste modo, muitas das manifestaes de tipo patritico que antecedem as Independncias da Amrica ibrica poderiam ser compreendidas sob tal tica. A passagem do patriotismo imperial para a soberania nacional faria parte justamente da construo de novas referncias polticas e culturais naquelas sociedades em transformao.

    A prpria idia de que espanhis e portugueses compunham uma raa degenerada, presente no pensamento francs (inclusive na obra de Raynal), aparece formulada por Chateaubriand no momento chave das Independncias americanas e seria, em boa medida, utilizada nos subse-qentes movimentos de afirmao das novas nacionalidades.

    Quanto ao hibridismo cultural e poltico (que no se confunde com as idias de mestiagem), talvez seja mais uma opo para se compreender a perspectiva e atuao de Franois-Ren de Chateaubriand, na medida em que, como assinala Wilma com sensibilidade e exatido, ele transitava entre tempos e mundos. verdade que o hibridismo to caracterstico deste perodo no era homogneo (alguns mais para o antigo, outros mais para o moderno) e Chateaubriand constituiu sua prpria e original mistura.

    Neste sentido, fecunda a assimilao apresentada por Wilma sobre as viagens (que implicam em deslocamentos e decalagens, de tempo e espao), articulando-as com as vises de Raynal sobre os Novos Mundos e com o pensamento de Tocqueville sobre a democracia na Amrica (do Norte), sem fazer a associao, muito mais freqente, da comparao com autores que formularam crticas mais contundentes ao processo revolucionrio, como J. de Maistre e L. de Bonald. Embora no esteja no foco da autora uma anlise propriamente do pensamento poltico de Chateaubriand, no deixa de ser tentador aproximar tal perspectiva de viagem ao marcante (na poca) relato e reflexes de Volney sobre as runas dos imprios, publicadas no mesmo ano da ida de Chateaubriand Amrica do Norte. Do mesmo modo que as consideraes de E. Burke sobre a Revoluo em Frana, na qual o autor insiste, como sabido, na importncia da tradio dos costumes e da civilizao longamente construda e ameaada pelos horrores da Revoluo. No sentido prospectivo, pode-se imaginar que Chateaubriand pertencia mesma linhagem poltica de um F. Guizot, por exemplo (ainda que um fosse oposicionista e outro expoente da Monarquia de Julho), cujo liberalismo monrquico, constitucional e conservador pregava harmonia entre as novas liberdades, com o encerramento do processo revolucionrio e a consolidao de um Estado forte e centralizador4. Sem contar a discusso sobre as liberdades modernas e antigas empreendidas por outro liberal ps-Revoluo Francesa, Benjamin Constant, cujas concepes de Estado e liberdade se demarcavam de Guizot.

    Outro mrito do trabalho de Wilma colocar a escravido (com destaque para o trfico atlntico) como ponto central das relaes entre os Estados europeus, no aspecto secundrio ou ramo delgado de frondosa rvore. Atravs da ao diplomtica de Chateaubriand estudada por Wilma percebemos que, mesmo sem o trabalho escravo ter o mesmo peso nas sociedades europias e americanas, este assunto criava tenses e impasses,

    2RAYNAL, Guillaume-Thomas Franois. O Estabelecimento dos Portugueses no Brasil. Rio de Janeiro/Braslia: Arquivo Nacional/UnB, 1998; DE PRADT, Dominique. Des colonies et de la Rvolution actuelle de lAmrique. Paris: Bechet / Egron, 1817; para uma abordagem inicial do pensamento de Pradt sobre as independncias na Amrica, ver MOREL, Marco. A Independncia no papel: a imprensa peridica. In: JANCS Istvn (org.). Independncia: Histria e Historiografia. So Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005. p.617-626.

    3GUERRA, Franois-Xavier. A nao na Amrica espanhola: a questo das origens. Maracanan, vol.1, n.1, p.9-30, 1999/2000; Idem. Modernidad e independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispnicas. Madri: Mapfre, 1992.

    4ROSANVALON, Pierre. Le moment Guizot. Paris: Gallimard, 1992.

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    sendo motivo de embates diplomticos diretos entre Inglaterra e Frana. Os chamados problemas colonial e escravista estavam na base dos limites e das possibilidades de reestruturao dos imprios europeus em suas relaes com o Novo Mundo.

    Faz parte desta questo ao mesmo tempo colonial e escravista o to lembrado exemplo de So Domingos, isto , da rebelio de escravos iniciada em 1791 e que desembocaria na Independncia do Haiti em 1804. Anote-se que as resistncias francesas perda desta colnia foram intensas, com desperdcio de vidas humanas e despesas avultadas. E foi somente dois anos depois da sada de Chateaubriand do ministrio dos Negcios Estrangeiros que a Frana reconheceria tal Independncia, cobrando uma indenizao astronmica cujo pagamento ajudaria a manter a situao de pobreza e violncia que ainda hoje marca o Haiti5.

    Neste sentido, os pronunciamentos de Chateaubriand assinalados e analisados por Wilma no podem ser considerados dos mais progressistas, nem originais - do ponto de vista da escravido. Inclusive pela comparao com pensamento de franceses contemporneos, como o abade Grgoire, notrio abolicionista e defensor da Independncia do Haiti, como pelo j citado abade De Pradt, que formulou uma viso mais sofisticada sobre o assunto: seria mais propcio, segundo este, preparar gradualmente uma emancipao das colnias e da escravido, para evitar que os sucessos (como se dizia) de So Domingos se espalhassem por outras partes. Diante do protagonismo escravo encarnado pela Revoluo do Haiti, De Pradt propunha duas atitudes: silncio e ocultao ou, ento, execrar os horrores de tais episdios. Verdade que os testemunhos de Chateaubriand citados fazem parte de sua ao diplomtica no calor dos acontecimentos, no de uma reflexo mais elaborada. E que do ponto de vista estritamente poltico, Chateaubriand no pode ser taxado de retrgrado, pois defendia a monarquia constitucional e os princpios bsicos do liberalismo, como a representatividade parlamentar e o constitucionalismo, ainda que numa vertente que privilegiava a soberania do monarca6.

    A complexidade do conceito de revoluo, seja visto como horror a ser repudiado, seja como processo inelutvel resultante do progresso, compartilhada pelo liberalismo que sucedeu a Revoluo Francesa e a Constituio de Cadiz, e que seria a base do juste milieu e da idia de moderao, j estava presente em Chateaubriand, como bem mostra Wilma. Em termos esquemticos, pode-se apontar trs posies bsicas sobre a idia de revoluo nestas primeiras dcadas do XIX: negar e combater; aceitar como parte do passado, assimilar e colocar um ponto final; considerar somente como ponto de partida para a continuidade de futuras revolues.

    A partir da anlise elaborada por Wilma, pode se compreender a posio de Chateaubriand como intermediria entre a primeira e a segunda, combatendo a terceira. Os rtulos so teis, mas tambm precrios, ainda mais num tempo de acelerao do tempo, crises, incertezas e revolues. Se a definio clssica de contra-revolucionrio, embora pertinente em alguns aspectos, no basta para dar conta da riqueza do pensamento de Chateaubriand, do mesmo modo catalog-lo como liberal, ainda que conservador, embora cabvel, mas com nuances.

    Duas categorias, mediao e metamorfose, poderiam integrar a compreenso da presena deste inter-medirio entre mundos e tempos, na feliz formulao de Wilma Costa. A Independncia do Brasil, por

    ROSANVALON, Pierre. Le moment Guizot. Paris: Gallimard, 1992.

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    BENOT, Y. e DORIGNY M. (org.). Rtablissement de lesclavage das les colonies franaises. 1802. Aux origines de Haiti. Paris: Maisonneuve, 2003.

    6BENOT, Y. La modernit de lesclavage. Essai sur la srvitude au coeur du capitalisme. Paris:

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    exemplo, ainda que alguns considerem como fruto das Luzes ou novas idias, teve a mediao poltica e cultural da Restaurao Francesa, que de alguma maneira filtrava estes fluxos e vertentes, reelaborando-os. Chateaubriand, intelectual e chefe da diplomacia francesa entre 1822 e 1823, teve papel importante neste momento, ponto de partida para a construo nacional brasileira.

    A noo de influncia para se compreender estas relaes entre os continentes e seus mundos j est desgastada. Alm de atravessados por mediaes, as idias, modelos polticos e aes concretas passam por expressivas metamorfoses geradas, sobretudo, pela presena dos supostos influenciados, que recebem, relem, ressignificam e reagem de acordo com suas prprias perspectivas.

    Enfim, estes rpidos comentrios sobre o artigo Entre tempos e mundos: Chateaubriand e a outra Amrica no do conta da riqueza da reflexo elaborada por Wilma Costa e deixam de lado temas cruciais, como a presena e as reflexes de Chateaubriand sobre questo ibrica e das Amricas (do Norte e espanhola, esta como objeto tambm dos trabalhos de Joo Paulo Pimenta7), sobre as formas de governo, sobre passado e futuro, entre outros pontos.

    Sem se propor a um enfoque biogrfico, as reflexes de Wilma Costa sobre a vida e a obra de Chateaubriand nos apresentam uma trajetria ao mesmo tempo articulada e solitria, grandiosa e marginal, com a instabilidade e a constncia da amplido dos mares: do alm tmulo, ainda hoje, o mausolu do personagem se encontra pousado, ousado, isolado e pico nas rochas batidas pelas ondas na praia de Saint Malo, um dos portos de chegada e partida entre o Velho e o Novo Mundo.

    La Dcouverte, 2003; Idem. Les Lumires, lesclavage et la colonisation. Paris: La Dcouverte, 2005.

    7PIMENTA, Joo Paulo Garrido. O Brasil e a Amrica espanhola (1808- 1822). Tese de Doutorado, So Paulo: Departamento de

    Histria, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2004.

    Recebido para publicao em abril de 2010Aprovado em abril de 2010