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MEDICALIZAÇÃO E JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: A AMEAÇA SUB - REPTÍCIA À UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITO SOCIAIS 1 Homero Gonçalves Neto 2 Renata Braga Klevenhusen 3 RESUMO: O artigo trata do fenômeno social de “medicalização” da vida que sucede a partir do início da modernidade, num período em que a ciência apresentou-se como promessa de salvação do homem contra as ameaças da natureza. Diante disso, analisa a constante parametrização e normalização dos comportamentos que coloca em risco a individualidade e subjetividade do sujeito, afastando de si a noção de saúde e, com isso, provocando uma escalada das demandas judiciais em busca da proteção desse direito previsto na Constituição. Palavras-chave: Medicalização da vida; hermenêutica filosófica; direito à saúde ABSTRACT: This paper deals with the social phenomenon of "medicalization" of life that happens from the beginning of modernity, a time when science was presented as a promise of salvation of man against the threats of nature. Therefore, it was shown that the constant parameter and normalization of behavioren dangers the subject's individuality and subjectivity, distancing itself from the notion of health and, thus, causing an escalation of lawsuits seeking the protection of that right under the Constitution . Keywords: Medicalization of life; philosophical hermeneutics; right to health. 1. Introdução O homem pós-moderno encontra-se imerso em uma sociedade altamente tecnicista, sujeito ao controle das autoridades que dominam o poder de dizer as verdades acerca do mundo e desacreditado em sua individualidade para além do papel de mero ator economicamente ativo no mundo capitalista. Diante disso, especula-se que hoje o sujeito encontra-se subjugado por uma medicina também erigida no solo fértil da modernidade, submetida à mesmas mazelas 1 Este artigo é produto do projeto de pesquisa “Judicialização da saúde: os impactos econômicos e sociais das decisões judiciais em face do direito à saúde no Estado do Rio de Janeiro” desenvolvido com apoio da FAPERJ. 2 Advogado e Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá. 3 Pós-Doutora pelo Instituto de Medicina Social (UERJ). Doutora pela UFSC. Mestre em Direito pela UERJ, Professora do Núcleo de Pós-Graduação da Universidade Tiradentes , da Universidade Gama Filho e da Universidade Estácio de Sá. MEDICALIZATION AND JUDICIALIZATION HEALTH: THE THREAT SURREPTITIOUSLY THE RIGHT TO UNIVERSALIZATION SOCIAIS

Medicalização e Judicialização Da Saúde- A Ameaça Subreptícia à Universalização Dos Direito Sociais

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  • MEDICALIZAO E JUDICIALIZAO

    DA SADE: A AMEAA SUB-REPTCIA UNIVERSALIZAO DOS DIREITO SOCIAIS1

    Homero Gonalves Neto2

    Renata Braga Klevenhusen3

    RESUMO: O artigo trata do fenmeno social de medicalizao da vida que sucede a partir do incio da modernidade, num perodo em que a cincia apresentou-se como promessa de salvao do homem contra as ameaas da natureza. Diante disso, analisa a constante parametrizao e normalizao dos comportamentos que coloca em risco a individualidade e subjetividade do sujeito, afastando de si a noo de sade e, com isso, provocando uma escalada das demandas judiciais em busca da proteo desse direito previsto na Constituio.

    Palavras-chave: Medicalizao da vida; hermenutica filosfica; direito sade

    ABSTRACT: This paper deals with the social phenomenon of "medicalization" of life that happens from the beginning of modernity, a time when science was presented as a promise of salvation of man against the threats of nature. Therefore, it was shown that the constant parameter and normalization of behavioren dangers the subject's individuality and subjectivity, distancing itself from the notion of health and, thus, causing an escalation of lawsuits seeking the protection of that right under the Constitution .

    Keywords: Medicalization of life; philosophical hermeneutics; right to health.

    1. Introduo

    O homem ps-moderno encontra-se imerso em uma sociedade altamente

    tecnicista, sujeito ao controle das autoridades que dominam o poder de dizer as

    verdades acerca do mundo e desacreditado em sua individualidade para alm do papel

    de mero ator economicamente ativo no mundo capitalista.

    Diante disso, especula-se que hoje o sujeito encontra-se subjugado por uma

    medicina tambm erigida no solo frtil da modernidade, submetida mesmas mazelas 1 Este artigo produto do projeto de pesquisa Judicializao da sade: os impactos econmicos e sociais das decises judiciais em face do direito sade no Estado do Rio de Janeiro desenvolvido com apoio da FAPERJ. 2 Advogado e Mestre em Direito pela Universidade Estcio de S. 3 Ps-Doutora pelo Instituto de Medicina Social (UERJ). Doutora pela UFSC. Mestre em Direito pela UERJ, Professora do Ncleo de Ps-Graduao da Universidade Tiradentes , da Universidade Gama Filho e da Universidade Estcio de S.

    MEDICALIZATION AND JUDICIALIZATION HEALTH: THE THREAT SURREPTITIOUSLY THE RIGHT TO UNIVERSALIZATION SOCIAIS

  • de uma revoluo tecnicista que desde o sculo XVIII investiu-se do compromisso de

    livrar o homem das ameaas da natureza, especialmente da morte e das doenas que

    tanto disseminaram-se aps o perodo da revoluo industrial.

    A cincia mdica tem assumido papel de autoridade ungida pelo Estado como

    fonte de saber legitimado pela cultura moderna, levando a se questionar como esse

    saber se tornou capaz de subjugar qualquer outra fonte dissonante de seus preceitos,

    criando-se uma ideologia de sade forjada nas bases do constante controle do corpo.

    Assim, ao entronizar a medicina como a autoridade apta a ditar o ideais de

    sade do sujeito e, dependendo essa cincia unicamente de seus prprios fundamentos

    para revelar com cada vez mas preciso suas verdades, tentar concluir o estudo se

    isso no foi responsvel por afastar o homem da conscincia de sua corporeidade,

    causando o vazio do ser que transformou-se na angustiosa sensao de incompletude.

    Da mesma forma, considerando o perfil da sociedade industrializada e

    consumista, impem-se entender essa relao insidiosa que pode estar por traz de uma

    ideologia de sade, cuja parametrizao sofre com o controle das autoridades

    intimamente ligadas aos meios de produo capitalista.

    A partir dessas consideraes, o presente artigo abordar as consequncias

    dessa situao no mbito das demandas judiciais por sade. Ser avaliado o atual

    estgio de Judicializao e como essa ocorre no sistema judicirio brasileiro,

    possibilitando o acesso irrestrito e democrtico dos cidados, para avaliar se h como

    aplicar-se a hermenutica filosfica como filtro contra excessos e distores na

    interpretao do direito sade.

    Baseado na observao de casos concretos e pesquisas pautadas na reviso da

    bibliografia correlata, o estudo analisar os principais mtodos utilizados para a

    interpretao da Constituio Federal para a concesso de prestaes assistenciais de

    sade, avaliando com isso os riscos que o tecnicismo da cincia mdica pode provocar

    numa sociedade controlada por ideologias ditadas pelas foras econmicas, onde uma

    sensao de patologia generalizada pode estar impregnada no iderio pblico, valendo-

    se do Poder Judicirio como partcipe de num fenmeno de medicalizao da vida.

    Sero abordadas ainda as origens histricas e sociais dos direitos sociais com

    objetivo de demonstrar a diferena entre os interesses originrios e a atual concepo

  • desses direitos diante do quadro de gradual crescimento das demandas de sade, cujas

    origens, especula-se esto intimamente ligadas s ideologias. 2. A Medicalizao da vida na sociedade patologizada

    No obstante existam estudos que faam uma diferenciao entre os

    fenmenos medicalizao e farmacologizao da vida, tratar-se-o ambas como

    sinnimas, posto advirem de fato que tm uma origem sociologicamente comum, ou

    seja, a entronizao dos auspcios da cincia mdica no iderio pblico e formao da

    ideologia do consumo como principal via de acesso sade, apoiada no inculcamento

    de uma constante sensao de um corpo patologizado.

    No entanto, vale coligir a diferenciao feita por Nomia Lopes4 , qual

    contribui para uma melhor compreenso dos lindes de separao entre os termos, bem

    como, para entend-los dentro do assunto que ora se prope estudar.

    O fenmeno da medicalizao est relacionado com a crescente expanso da interveno da medicina nos domnios mais privados da vivncia humana. (...) o caso da medicalizao de comportamentos que at ento eram exteriores ao campo da interveno crescente de situaes e comportamentos conotados com o desvio social tais como o alcoolismo, a violncia, ou a toxicodependncia estendendo-se at os mais recnditos domnios da resistncia intruso clnica, tais como a sexualidade, a reproduo, a menopausa, a obesidade(...) Enfim, um leque crescente de esferas do mbito privado e pblico que progressivamente foram transitando para o foro da interveno mdica. E pode acrescentar-se, ainda, a esta espiral de hegemonia mdica, a prpria medicalizao do que correntemente designado de preveno e da promoo da sade, se atendermos a toda a panplia de exames e rastreios clnicos regulares e que as mesmas tm vindo a ser associadas.

    Porm, o fenmeno da medicalizao no se materializa apenas nesta progressiva expanso da interveno da medicina. A consolidao do fenmeno prende-se sobretudo com a que os tericos da sociologia da sade tm designado como a disseminao cultural da prpria ideologia mdica (...).

    A farmacologizao remete para a dominncia dos medicamentos nas opes teraputicas, tal como a medicalizao remete para a dominncia das concepes mdicas na interpretao da sade e da

    4 Nomia Lopes assina artigo que trata da diferenciao e introduo dos conceitos na sociedade moderna, especialmente pelo advento da medicina moderna, na segunda metado do sec. XX. (LOPES, Nomia, Medicamentos e percepes sociais do risco, Actas do Congresso Portugus de Sociologia Sociedades Contemporneas Reflexividade e aco, Braga, Portugual: Universidade do Minho, 2004)

  • doena constituem dois processos socialmente indissociveis, mas que importa manter analiticamente separados.5

    Na abordagem de tema, deve-se inicialmente revisitar as ideias de Ivan Illich6,

    que em 1975 j denunciava o tortuoso caminho pelo qual se seguia em direo

    cultura medicalizante, forjada num contexto de avano irrefletido da medicina

    moderna.

    Considerando a iatrogenia como uma consequncia do avano da medicina,

    Illich denunciou trs tipos dessa iatrogenia nefasta de uma cincia que expropria a

    sade, apontando-as pelas vias da iatrogenia clnica, como sendo aquela que produz

    resultados catastrficos para os indivduos que se utilizam das tecnologias mdica e

    dela dependem unicamente; a iatrogenia social, que resulta na perda da autonomia do

    grupo no uso de tcnicas de preveno e controle da sade, causando a passividade e

    inrcia de um sujeito que perdeu a capacidade de se autodeterminar diante da fora da

    cincia mdica; e, por fim, a iatrogenia estrutural, ingente destruidora das tradies,

    culturas e rituais de sobrevivncia e combate doena, retirando a f e a crena em

    meios que no sejam os tcnico-cientficos.

    O absolutismo da tcnica mdica acaba por sobrep-la a qualquer outro meio

    menos eficiente de cura e sua primazia revela a faceta intransigente de uma cincia

    que no induz reflexo do paciente ou mesmo incentiva-o na busca por meios

    alternativos que no o interventivo/medicalizante.

    O traado do compromisso constitucional empreendido em favor da sade,

    que encontra suas razes histricas na j referida 8 Conferncia Nacional da Sade,

    v-se hoje na contingncia de oferecer resposta s pretenses de garantia de uma

    sade que, em pleno sculo XXI, se v influenciada diretamente na sua delimitao,

    por fenmenos outros de cunho fortemente sociolgico.

    Unschuld 7aponta para a existncia de condicionantes culturais da prtica

    mdica e, assim, as novas demandas postas a cada integrante de uma sociedade do 5Ibidem. 6 ILLICH, Ivan, A expropriao da sade: nmesis da medicina, 3 ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975, p.190/191. 7 UNSCHULD, P.U. Culture and Pharmaceutics: some epistemological observations of pharmacological systems in Ancient Europe and Medieval China. In: GEEST.;WHYTE (eds.). The context of medicines in developing countries. Studies in pharmaceutical anthropology. Dordrecht: Kluwer, 1988. p. 179-197

  • espetculo, transformam em patolgicas, condies que normalmente se tinha por

    associada to-somente a idade, ou ainda a momentos da vida.

    A sociedade constri como um desvio - suscetvel de soluo mdica -

    comportamentos que paream de alguma forma menos consentneos com a

    performance que se entende desejvel de um cidado da hipermodernidade.

    De outro lado, as conquistas da medicina que do resposta teraputica a

    situaes extremas, muitas vezes culminam por gerar uma presso em favor da sua

    oferta para hipteses menos graves - onde a medicalizao se apresentara como um

    mecanismo mais cmodo, mas nem sempre necessrio ou recomendvel. Nesse

    sentido, Foucault, ao analisar a questo da resistncia aos antobiticos, conclui: De

    modo geral pode-se afirmar que pelo prprio efeito dos medicamentos efeitos

    positivo e teraputico produziu-se uma perturbao, para no dizer uma destruio,

    do ecossistema no apenas do indivduo como tambm da prpria espcie humana.8

    O modelo de racionalidade moderna permitiu que o corpo fosse considerado

    como uma mquina e que a doena fosse tratada pela biomedicina de forma

    mecanicista e entendida como um mau funcionamento da mquina em locais

    especficos do organismo e que s poderia ser vencida com medicamentos alopticos.

    Assim, os frmacos passam a ser o centro das atenes mdicas e, tambm, do

    mercado, transformando a sade em mercadoria, gerando o seu uso abusivo, aumento

    dos custos dos sistemas de sade e impedindo a percepo da dimenso social da

    doena.

    Foucault aponta para o fato da medicina contempornea intervir sobre outros

    objetos que no as doenas:(...) no sculo XX os mdicos esto inventando uma

    sociedade,no mais da lei, mas da norma. O que rege a sociedade no so o cdigos,

    mas a perptua distino entre o normal e o anormal, a perptua empreitada de

    restituir o sistema de normalidade.9

    8 FOUCAULT, M. La crisis de la medicina o la crisis de la antimedicina. Educacin mdica y salud (OPAS), 10(2): 152-170, 1976, p. 158

    9 Op.cit., p. 161

  • No mesmo sentido, Swaan10 defende que o processo de medicalizao social

    no est restrito apenas ao desenvolvimento do conhecimento mdico, mas, tambm,

    a interveno mdica na soluo de conflitos, empoderando a classe para questes

    sociais e morais. Desta forma, o regime mdico passou a ser o principal orientador

    social, o interventor indispensvel na vida social, diminuindo o campo de autonomia

    do indivduo sobre a sua vida e criando um novo modelo normalizador.

    Hans Jonas conclui que esse processo de regulao social pela medicina

    encarado, por vezes, como uma forma de delegao de responsabilidade ou de alvio

    para a sociedade:

    Mas do alvio do paciente, um objectivo inteiramente dentro da tradio da arte mdica, facilmente se passa ao alvio da sociedade do transtorno que lhe traz um comportamento individual difcil entre os seus membros: ou seja, facilmente se passa da aplicao mdica aplicao social, facto que abre um ilimitado campo de graves possibilidades. Os melindrosos problemas ligados regulao social, e ausncia dela, na moderna sociedade de massas, levam a que o alargamento daquele tipo de mtodos de manipulao a categorias no mdicas se mostre extremamente tentador em termos de controlo social .11

    Sobre a perda da autonomia causada pelas polticas sociais de sade, Dmaso

    afirma que a teraputica deveria recuperar a autonomia e no gerar uma dependncia.

    O projeto de sade deve ter cunho educativo,: Educao para a vida, eis a o

    projeto da poltica sanitria mais radical e coerente com o desejo humano de

    autonomia 12

    Para Caponi, a definio de sade dada pela OMS, autorizaria a legitimao

    de determinados estados patolgicos como instrumentos de controle social:

    preciso negar-se a aceitar qualquer tentativa de caracterizar os infortnios como patologias que devem ser medicamente assistidas, assim como preciso negar-se a admitir um conceito de sade

    10 SWAAN, A. The management of normality: critical essays in health and welfare. London:Routledge, 1990 11 JONAS, H. Tcnica e Responsabilidade: Reflexes sobre as novas tarefas da tica. In:tica, medicina e tcnica. Lisboa: Veja, 1994. p. 53.

    12 DMASO, R. Sade e Autonomia: Para uma poltica da vida. In: FLEURY, S. (org.). Sade: Coletiva? Questionando a onipotncia do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1992. p. 222.

  • fundado em uma associao com tudo aquilo que consideramos como moral ou existencialmente valorizvel. Ao contrrio, preciso pensar em um conceito de sade capaz de contemplar e de integrar a capacidade de administrar de forma autnoma essa margem de risco, de tenso, de infidelidade e, por que no dizer, de mal-estar com a qual todos inevitavelmente devemos conviver.13

    A definio ampliada de sade do VIII CNS permite considerar como

    medicalizveis todos os aspectos da existncia humana. Nesse sentido, Dworkin14

    analisa a atribuio de status de doena infelicidade. Essa concepo vem

    permitindo o uso abusivo de antidepressivos, sem considerar os efeitos da

    artificializao da felicidade. Assim, a lgica de que a medicina seria responsvel

    pela felicidade e que os aspectos perturbadores da vida seriam passveis de analgesia

    qumica.

    Afirma, ainda, o referido autor que o uso de psicotrpicos mais danoso do

    que o consumo de lcool, pois, ao contrrio deste, o uso de antidepressivos

    legitimado por uma instituio poderosa: a classe mdica. Para Dworkin, a

    infelicidade necessria para que o indivduo possa rever os rumos de sua vida e

    pensar nas consequncias das suas aes sobre a vida dos outros. Certamente, o uso

    desenfreado de psicotrpicos representa uma ameaa e no podemos mensurar os seus

    efeitos a longo prazo sobre o tecido social.

    Urge repensarmos a onipotncia da medicina e a posio do frmaco como

    sinnimo de sade, pois esta lgica induz o consumo indiscriminado de

    medicamentos e amplia, cada vez mais, o espectro daquilo que pode e deve ser

    medicalizado.

    Partindo do pressuposto j denunciado, de que os males que afligem o homem

    so todos eles classificveis e tratveis de acordo com a tcnica aplicvel por cada

    uma das linhas de especialidades da medicina cincia-, o corpo passa a receber a

    ateno visual e biolgica capaz de somatizar a experincia do indivduo na forma de

    sentimentos medicalizveis.

    13 CAPONI, S. Georges Canguilhem y el estatuto epistemolgico del concepto de salud. Histria, Cincias, Sade Manguinhos, IV (2): 287-307, jul./out. 1997, p. 300.

    14 DWORKIN, Ronald W. Felicidade artificial. O lado negro da nova classe feliz. Trad. de Paulo Anthero S. Barbosa. 1. Ed. So Paulo: Planeta, 2007, p. 9-25.

  • Confundindo-se assim, muitas vezes, os prprios sintomas com as doenas, a

    medicina anuncia seu sucesso ao extirpar a dor, eliminar o sofrimento e redefinir as

    formas fsicas de pacientes atravs de uma cultura dominada pela ideologia da cura

    atravs da cincia e imbuda de um esprito consumista que se inocula pela lgica

    mercadolgica do hedonismo.

    Assim, como bem descreve Agea, a medicina reivindica cada vez mais para si

    a autoridade para dominar todos os territrios da vida, determinando ao seu alvedrio

    os limites em que essas manifestaes biolgicas so aceitas como normais e

    patologizando tudo que lhe anormal, porm, sem atentar-se para as demais fontes de

    saber no mdico que demonstram a coerncia e naturalidade de muito desses

    sentimentos.15

    Assim, consignada a tendncia moderna que induz a tcnica mdica a

    prosseguir avanando em direo regulao da vida em todos os seus aspectos,

    encontra-se o sujeito contemporneo em vias de tornar-se escravo de uma ideologia

    que lhe impe cada vez mais a supresso de sua conscincia.

    Convicto de que o bem-estar mental, a disposio fsica, a beleza estereotipa, a

    capacidade intelectual, o equilbrio emocional e tantas outras caractersticas

    individuais so determinantes para sua aceitao e permanncia dentro do exigente

    corpo social, o homem contemporneo sofre pela ameaa da constante sensao de

    carregar em si alguma patologia. Portanto, para conformar-se aos ditames de perfeito

    ajuste aos padres, resta ao sujeito caminhar pelas vias da medicalizao como a

    nica alternativa de quem deseja ser normal.

    Contudo, enquanto a camada mais abastada da populao recorre aos inmeros

    tratamentos mdicos, medicamentos modernos e recursos tecnolgicos avanados em

    busca da sade perfeita, aqueles muitos que desejam manter-se dentro dos mesmos

    padres estticos e sanitrios idealizados encontram-se privados dessas benesses.

    O que aos poucos se v uma verdadeira revoluo medicalizante, onde a

    diviso classista passa a apoiar-se tambm na capacidade de acesso aos recursos mais

    sofisticados da medicina, ungindo esses com o status social que lhe condicionam a

    felicidade, enquanto para aqueles que possuem recursos insuficientes para 15 Ibidem.

  • submeterem-se aos melhores tratamentos sofrem pelo constante estigma da

    fragilidade e do adoecimento.

    Entretanto, ainda que os acessos sejam maiores ou menores conforme a

    capacidade econmica do sujeito, a grande questo resiste por detrs dessa revoluo

    e afeta todas as camadas sociais, transformando os cidados nessa quadra da histria

    em fiis seguidores de uma doutrina de medicalizao. Aos poucos essa cultura

    invade os postos de sade, os consultrios mdicos, as clnicas estticas e, num

    momento ainda pouco evoludo do perfil social do Estado Democrtico de Direito,

    avana para o aclito Poder Judicirio e ameaa o plano poltico de universalizao

    do acesso sade previsto no texto da Constituio de 1988, enveredando-se

    sorrateiramente pelas vias judiciais na forma de demandas por efetividade do direito

    sade.

    3. O direito sade e a formao e (no) implementao poltica dos direitos

    sociais no Brasil.

    Cabe inicialmente buscar um mtodo de interpretao judicial eficiente,

    apoiado nas diretrizes constitucionais programadas pelo legislador ao longo da

    evoluo do Estado Constitucional de direito, para se compreender os realces de um

    verdadeiro direito sade. Sabendo-se que na atualidade esse direito torna-se to

    valioso para a implementao da face social do Estado, perfaz-se igualmente

    importante compreender o que se entende por sade num contexto atual de

    medicalizao, visto que esto em constante confronto as vises distorcidas do que se

    entende por sade e a correta interpretao desse direito fundamental.

    Constatando-se, portanto, que a cincia mdica produz seus prprios padres

    de normalidade, conforme avanam os artifcios tcnicos que sustentam a sua prxis,

    bem como, que a sociedade fica merc do ideal de sade corroborado por aquela,

    conclui-se com isso serem tambm contingentes os parmetros que apoiam esses

    padres, o que urge discernir o que seria um procedimento mdico adequado ou

    inadequado dentro dos contornos da ordem legal vigente.

    Sabendo-se, tambm, que os limites de um Estado Provedor encontram-se

    delimitados dentro de um texto legal soberano, bem como, sujeito s fronteiras

    oramentrias, todo o reconhecimento das vitrias polticas e sociais se colocam em

  • linha de coliso com os interesses individualistas e mercantilistas. Portanto, torna-se

    conveniente combater os efeitos nefastos de uma cincia medica urdida pelos

    interesses privados e moldada pelo desejo liberal do livre mercado, que ainda se

    enrazam na cultura jurdica brasileira.

    Em mesmo sentido, tendo em vista a conformao social e democrtica do

    Texto Poltico, preciso debelar a ameaa de universalizar-se um direito pelas vias

    transversas do individualismo, o qual deixa a populao exposta aos assdios e

    presses dos interesses liberais. A luta pela implementao dos desejos sociais visa

    combater tambm a ideologia objetificadora que enaltece o cidado saudvel como

    mero instrumento a servio da produo e do consumo de uma sociedade capitalista.

    por esse diagnstico de que existe uma divorciada viso da sade como

    resultado da objetificao do corpo e como bem-estar do ser humano que no contexto

    atual faz eclodir a ameaa de que a judicializao se torne um instrumento oposto

    imagem que ostenta, ou seja, como um inimigo real da verdadeira universalizao e

    implementao eficiente dos recursos na promoo desse direito social fundamental

    previsto na Constituio Federal de 1988.

    Parte-se ento para o estudo da essncia dos direitos fundamentais como obra

    da evoluo social, fruto da luta em prol dos interesses de salvaguarda dos direitos

    bsicos para a existncia digna de uma comunidade jurdica e que se apresentam

    como limites da interveno pblica nos lindes da vida particular, bem como,

    compromissos de promoo da cidadania coletiva.

    Para a preservao da sade como direito social impe-se compreender sua

    exata dimenso dentro da identidade histrica e a tradio de um Estado que pretende-

    se democrtico, mas dentro de uma ordem justa fundada na lei e no direito.

    Assim, como aponta Gilmar Ferreira Mendes16 deve-se visualizar o modelo

    constitucional dos direitos fundamentais como matiz composta, a um s tempo, [de]

    direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva,

    sendo, portanto, capazes de gerar aos cidados a proteo de sua liberdade contra 16 MENDES, Gilmar Ferreira, Os direitos fundamentais e seus mltiplos significados na ordem constitucional, Revista Eletrnica de Direitos do Estado, Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Pblico, n 23, julho/agosto/setembro de 2010, encontrado em: http://www.direitodo estado.com/revista/REDE-23-JULHO-2010-GILMAR-MENDES.pdf.

  • ataques externos, bem como, a prerrogativa de promoo de seus interesses pessoais

    perante o Estado.

    Esclarece ainda Mendes com base na teoria dos quatro status, que tais direitos

    podem ser qualificados como direitos de defesa, (Abwehrrechte) destinados a

    proteger determinadas posies subjetivas contra a interveno do Poder Pblico17

    caminhando evolutivamente at o direitos de prestao positiva que tanto podem

    referir-se a prestaes fticas de ndole positiva (faktische positive Handlungen),

    quanto a prestaes normativas de ndole positiva (normative Handlungen)18.

    Assim como Mendes e tambm apoiados na descrio evolutiva das

    constituies modernas conforme a teoria dos status de Jellinek, Winfried Brugger e

    Mnia Leal19 descrevem os perodos superados da histria para que se chegasse ao

    estgio constitucional atual e que, nos seus quatros primeiros momentos, trazem a

    justificativa essencial para a fundamentalizao desses direitos e garantias

    individuais.

    Nessa abordagem, apresentam primeiramente a fase em que h a valorizao

    da soberania, onde a anarquia e a ruptura do poder poltico e religioso exigiram a

    unificao nacional, com o estabelecimento de poderes soberanos os quais incidissem

    sobre os domnios territoriais desse estado e recassem diretamente sobre seu povo

    para regular a barbrie e proteger os cidados; nesse momento o cidado atingiu um

    status subjecionis20.

    Num segundo momento, descrito como de busca da liberdade, entendem como

    a poca em que o indivduo alcana o status libertatis, negativus aps o grande

    crescimento do poder estatal que sufocou a individualidade do cidado, resultando no

    esmagamento das liberdades de exerccio de direitos contra o Estado. Vieram ento ao

    socorro da sociedade a foras de libertao contra o jugo desse poder opressor, a

    separao dos poderes, os direitos constitucionais contra os poderes e a secularizao

    17 Ibidem. 18 Ibidem. 19 BRUGGER, Winfried; LEAL, Mnia Clarissa Hennig, Os direitos fundamentais nas modernas constituies: anlise comparativa entre as constituies alem, norte-americana e brasileira, Revista do Direito:Revista do programa de Ps-graduao Mestrado e Doutorado, Santa Cruz do Sul: Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul-EDUNISC, n28, jul/dez 2007. 20 Ibidem

  • que levou para o poder do Estado o domnio sobre alguns institutos at ento

    considerados religiosos21.

    No suficientes para fazer ceder todo o poder que estava concentrado nas

    mos do Estado, os direitos continuaram a ser objeto de manipulao requerendo mais

    do que a simples no interveno mas, tambm, a garantia de participao poltica

    efetiva; surge com isso a fase denominada como de busca da democracia, onde os

    indivduos buscaram legitimar sua participao poltica, criando o cidado com

    status activus. Vieram ento os direitos de liberdade de expresso, associao,

    liberdade religiosa, voto e garantias de acesso ao poder que permitiram maior abertura

    para os reclamos do povo22.

    Debalde essas conquistas, a omisso estatal quanto aos desejos populares e a

    possibilidade de maior manifestao surtiram revelar os desejos de um povo que

    sofria com a carncia de assistncia social e com os desnveis provocados pela

    liberdade sustentada pela explorao dos mais fracos. Esse perodo revela o status

    positivus do cidado como soluo para as fragilidades de sociedades ignoradas por

    seus governos, abandonadas sorte da livre explorao mtua e impregnada de

    preconceitos e discriminaes provocadas pela pobreza e marginalidade23.

    Com isso destaca-se dentro desse processo histrico um primeiro momento

    evolutivo de busca por liberdade frente ao Estado e a afirmao da individualidade do

    sujeito, construindo-se um ncleo fundamental inviolvel de cidadania no interior da

    vida em sociedade; tal conquista tributria das conquistas polticas provenientes dos

    ideais da Revoluo Francesa de 1789.

    Nessa esteira Carlos Simes24 delimita as caractersticas desse perodo do

    Estado de direito, acentuando que em razo da origem revolucionria dos mesmos

    esses so tratados como direitos de primeira gerao, ocupando-se o professor de

    informar que a partir da os direitos civis deixaram de ser concebidos como

    21 Ibidem 22 Ibidem 23 Ibidem. 24 SIMES, Carlos, Curso de direito do servio social, 3ed., So Paulo: Cortez, 2009.

  • manifestaes da vontade divina e os governantes foram responsabilizados pela

    garantia de tratamento a todos com base no princpio da liberdade e da igualdade25.

    Contudo, como prossegue Simes, a pobreza, a desigualdade e a expropriao

    impostas aos cidados e, principalmente aos trabalhadores possibilitou o

    questionamento do valor da solidariedade social, urgindo que a pretenso de bem-

    estar social se fizesse atravs da incorporao de direitos ao texto constitucional26.

    Com essa introduo de novos direitos sociais seria possvel compensar e reduzir as

    desigualdades, promovendo-se a justa distribuio ou redistribuio das riquezas

    sociais e naturais.

    Exsurge assim o Welfare State como pretenso salvador de uma humanidade

    cansada das mazelas criadas pelo liberalismo e das repercusses funestas de um

    perodo histrico de miserabilidade humana, responsvel pelo florescimento da idia

    de estabelecerem-se as condies de dignidade humana com a criao de direitos

    sociais.27 Conforme aduz Humberto Dalla28 esses direitos so enquadrados no Direito

    Constitucional como direitos de segunda dimenso em razo do perodo de

    surgimento aps a instituio dos direitos de liberdade, de primeira dimenso.

    Tratando-se de liberdades positivas provenientes do perodo aps o segundo

    ps-guerra, cujo marco legal se deu pela Lei Fundamental de Bonn de 1949,

    atualmente esses direitos sociais encontram-se objetivados na Constituio Federal de

    1988, superando a simples ideia das liberdades negativas estabelecidas pelo

    liberalismo, bem como, inaugurando a noo de um direito de valorizao do homem

    e das instituies que lhe alam condio cidad.

    Recorrendo-se ainda historigrafia no retrospecto de construo dos direitos

    sociais, deita-se o estudo na identificao do surgimento do Estado Social, admitindo-

    se com Marques e Mendes29 a existncia de duas fases bem reconhecidas na formao

    desse sistema de proteo social.

    25 Ibidem, p. 71. 26 Ibidem, p. 72. 27 TELLES, Vera da Silva, Direitos Sociais: afinal do que se trata?, Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 28 PINHO, H. D. B. . A tutela coletiva no Brasil e a sistemtica dos novos direitos, Jurispoiesis (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 08, n. 1, p. 143-158, 2006. 29 MARQUES, Rosa Maria; MENDES, quilas. Democracia, sade pblica e universalidade: o difcil caminhar. Saude soc., So Paulo, v. 16, n. 3, Dec. 2007 . Disponvel em:

  • Assumida definitivamente como um compromisso do Estado na formao de

    uma rede de proteo e preservao dos direitos responsveis pela emancipao, bem

    como, pela segurana social do cidado dentro de uma sociedade dominada pelas

    foras de produo capitalista, os direitos sociais tornaram-se universais.

    A necessidade de se promover o desenvolvimento da sociedade conforme se

    dispunha de recursos necessrios para financiamento os servios pblicos fez dos

    direitos sociais uma forma de libertao dos cidados do jugo da explorao liberal,

    em busca do verdadeiro exerccio de sua autonomia e individualidade.

    Nesse seguir a Constituio de um Estado Democrtico no mais se apresenta

    como simples garantidor da ordem liberal de proteo do individualismo, nem mesmo

    como um escudo protetor das polticas assistencialistas ou de manuteno da

    estabilidade poltica criada pela e para as elites; antes disso, o texto constitucional se

    coloca como um norte e um dever a ser implementado dentro dos limites de um

    acordo poltico de interesse social maior do que a simples liberdade, tendo como

    guardio um Poder Judicirio municiado de instrumentos de implementao e aberto

    aos reclamos da populao.

    Ao brandir a espada da Justia como guardio do direito que se pretende

    implementar, o Poder Judicirio assume o papel de bem conceber o direito sade

    numa vertente de liberdade positiva, onde os ideais a serem alcanados coincidem

    com os interesses democraticamente estabelecidos e no com as foras econmicas

    dominantes ou maiorias ocasionais. Assim, somente diante do catlogo de valores

    previstos de forma consensual e solidria que se pode combater eficientemente a

    sobreposio de interesses liberais sobre os sociais.

    Desta feita, como a sade num Estado Democrtico de direito no

    assistencialista puramente, nem liberal que se orienta pela logica individualista, a

    perfeita interpretao da constituio que determina o alcance da norma contra abusos

    e tergiversaes que ameaam o seu grandioso projeto democratizante de

    universalizarem-se os direitos sobre toda a coletividade. H, entretanto, um constante

    choque entre os interesses liberais com o projeto social ainda no atendido e que urge

    . Acesso em 30 Dec. 2011. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902007000300005

  • em nosso Estado aplacar a servido do direito apenas queles mais prximos do

    Poder.

    Visto isso, a busca pela implementao desses direitos tem obrigatoriamente

    que passar pelo filtro da interpretao Constitucional, depuradas as vises distorcidas

    de um povo ainda forjado nas bases do liberalismo que se mistura ao ideal de Estado

    social ainda no atingido, onde as liberdades negativas e liberdades positivas ainda

    so entendidos como foras comuns e que caminham lado a lado.

    4. A Judicializao da Sade e o problema prtico de interpretao

    Diante da necessidade de implementao, a garantia de que os direitos

    fundamentais sociais deveriam ser atendidos impuseram a ateno do Estado para

    com o compromisso republicano de bem zelar pela distribuio dos recursos de forma

    a cumprir a promessa de universalizao dos servios pblicos. Contudo, nem sempre

    essa promessa fora cumprida a contento, diante dos inmeros entraves polticos e

    conjunturais que se entrechocaram durante a formao do Estado de Direito

    contemporneo.

    Como bem aponta Antnio Rodrigues de Freitas Jr. 30, ainda que muitos

    argumentos contrrios a universalizao possam ser obra de uma ideologia

    neoconservadorista de raiz liberal que intenta aplacar o sucesso desse Estado

    Providncia, a realidade emprica (de causa indeterminada) refora a presena de

    constantes crises que intermitentemente se instalam no interior do modelo

    distributivo.

    Em suas elucubraes que combatem o discurso dos libertrios contrrios ao

    Estado Social, Freitas Junior informa os diversos argumentos que confrontam a sua

    ideia, porm, ao fim, reconhece estarem amparados por provas empricas de suas

    ocorrncias31.

    Assim, dentre outras formas de obstruo, admite que as demandas sociais

    atendidas apenas por critrios polticos ignora os limites impostos pelo crescimento

    30 FREITAS JUNIOR, Antnio Rodrigues de, Os direitos sociais e a constituio de 1988: crise econmica e poltica do bem-estar, Rio de Janeiro: Forense, 1993. 31 Ibidem.

  • econmico e causa o desequilbrio oramentrio que, especula-se, traria

    consequncias desastrosas para a economia32.

    Tratando de analisar as formas de explorao do capital e o acordo de

    estabilizao entre esse e o Estado para evitar-se uma crise poltica, Joachim Hirsch33

    critica esse modelo afirmando que o mesmo foi quem permitiu o livre funcionamento

    do mercado, afastando as lutas que colocam em questo a hegemonia da classe

    indispensvel sua estabilidade,.

    Desta feita, em seu estudo Hirsch34 explica que a relao de dependncia entre

    o Estado e a produo material no sistema capitalista revela uma limitao quanto ao

    poder de apropriao de rendas, o que, por depender de impostos, tende a seguir a

    esteira dos lucros da produo e, assim, tambm fica sujeito s intempries

    econmicas e flutuaes nessas mesmas taxas de lucros.35

    Sem adentrar na anlise do interesse Estatal na majorao da mais-valia, fica a

    concluso de que resulta da, alm de uma grande impossibilidade de planificar a

    margem de recursos, uma massa de manobra quantitativa para as aes do Estado

    extremamente limitada com relao soma do conjunto da mais-valia produzida36.

    Isso induz a crer que, independentemente das discusses acerca da

    imperfectibilidade do sistema atual, toda a poltica de implementao dos direitos

    sociais passa primeiramente pela necessidade de viabiliz-los economicamente, o que

    depende intrinsecamente da capacidade privada de produzir riqueza e,

    proporcionalmente a isso, da arrecadao de tributos provenientes da exao como

    fonte de custeio.

    Assim, considerado que a organizao oramentria do Estado Constitucional

    Brasileiro frente aos compromissos sociais reconhecidos como direitos coletivos de

    competncia exclusiva do Poder Executivo, Jos Reinaldo de Lima Lopes37 afirma ser

    32 Ibidem. 33 POLANTZAS, 1977, p. 104 34 Ibidem. 35 Ibidem. 36 Ibidem, p.101. 37 LOPES, Jos Reinaldo de Lima, Direito subjetivo e direitos sociais: o dilema do judicirio no estado social de direito, in: FARIA, Jos Eduardo, Direitos humanos, direitos sociais e justia, 1 ed., So Paulo: Malheiros Editores.

  • fundamental a compreenso de que o oramento impe limites que apenas o

    planejamento pode superar.

    Contudo, por ser a questo redistributiva que atinge a realidade imediata dos

    cidados esse planejamento tem seu ponto fulcral nas mazelas dos pases de

    modernidade tardia ou, como quer Anabelle Silva, ps-modernidade sem

    modernidade38. Em tais casos no chegou-se a implementarem as polticas pblicas

    mnimas consignadas nas respectivas Cartas Polticas, transformando essa situao de

    falta de efetividade em exemplo prtico do que se chamou Neves de

    constitucionalizao simblica39.

    Considerando-se ento que a promessa poltica atinge seu objetivo no exato

    momento de sua implementao, ficam abertas as chagas de um Estado

    Constitucional pouco eficiente, o que Lnio Streck 40 bem denominou como o

    simulacro de modernidade numa sociedade que encontra-se privada das garantias

    fundamentais. Como afirma Marcelo Neves, em nossa sociedade as normas no

    conseguem conformar os fatos da vida41.

    Resta, porm, evidente aquilo que Anabelle Silva aponta como uma falha

    desse projeto de modernidade, onde ainda so visveis leses graves s primeiras

    dimenses dos direitos fundamentais, no tendo sido os benefcios do Estado social

    experimentados pela massa de credores necessitados das polticas pblicas

    intervencionistas, de promoo da igualdade e de redistribuio mnima dos produtos

    da vida em sociedade.42

    Conformados esses direitos sociais de segunda gerao no texto fundamental,

    tais prerrogativas seriam suficientes para garantir aos cidados o acesso aos servios

    coletivos e dariam sustento dignidade humana, centro gravitacional do Estado

    Constitucional, porm, o dficit que se verifica conduz ao oprbrio do cidado e

    aniquila as conquistas obtidas.

    38 SILVA, 2005. 39 NEVES, Marcelo, apud, SILVA, 2005. 40 STRECK, Lnio, Constituio ou barbrie? a lei como possibilidade emancipatria a partir do estado democrtico de direito, texto encontrado no site: www.leniostreck.com.br/site/wp-content/uploads/2011/10/16.pdf 41 NEVES, Marcelo, apud, SILVA, 2005, p. 39 42 Ibidem, p. 48.

  • No obstante ser o resultado desses avanos legislativos, como j visto, a

    sade como direito social revela sua face de garantia fundamental cuja implementao

    possui uma acepo de liberdade negativa, bem como de uma liberdade positiva em

    face do Estado; ou seja, um dever Constitucional o qual exige a iniciativa poltica

    tanto para sua proteo contra ataques quanto para sua implementao para

    promoo.

    Nesse sentido, quanto ao carter de liberdade positiva dos direitos

    fundamentais sociais Cludia Maria Perlingeiro dos Santos afirma que esses so

    compreendidos como posies de vantagens juridicamente tuteladas tendo como

    contrapartida a imposio ao Estado do cumprimento de deveres e obrigaes

    necessrias criao e manuteno das citadas posies de vantagem.43

    Assim, consabidamente, a sade um direito social previsto no artigo 6 da

    Constituio Federal de 1988, consagrado como Direito Fundamental em razo de sua

    natureza de direito existencial mnimo radicado na dignidade da pessoa humana,

    conforme previsto no art. 1, inciso III da mesma Carta.

    Com isso, revela o art. 196 o desejo de universalizar-se o acesso sade,

    fazendo incluir dentre os direitos sociais a plenitude de uma vida digna, repleta das

    condies necessrias incluso do sujeito dentro de uma sociedade livre, justa e

    solidria (art. 3, inciso I da CRFB/88).

    Muito se discute sobre a natureza desse direito social como poder ou relao

    estabelecida perante o Estado, tendendo-se a reconhecer na prtica judiciria a

    imediatidade da sua aplicao conforme a leitura do 1 do art. 5 da Constituio

    Federal de 1988.

    Ocorre, contudo, que pela inrcia poltica constatada, construiu-se com apoio

    na prpria constituio a doutrina da efetividade, o que muito colaborou para a

    implementao dos direitos fundamentais antes tratados como meros contedos

    programticos pelo Estado. Com isso, seguindo o pensamento de Luis Roberto

    43 SANTOS, Cludia Maria Macedo Perlingero dos, Jurisdio e direitos fundamentais: controle da omisso do estado na concretizao do direito sade, Jurispoiesis, ano 10., n10, Rio de Janeiro: Universidade Estcio de S, Programa de Ps-graduao em direito, 2007, p. 375.

  • Barroso44, a ineficcia desses direitos seria intolervel e so suas palavras que

    revelam o compromisso: se esta na Constituio para ser cumprido!45. Impe-se

    a partir da a necessidade de consecuo dos fins polticos do Estado, o que encontra a

    via judicial como melhor caminho

    Diante disso, considerando-se que as promessas no cumpridas esbarram num

    discurso poltico-econmico de limitao e independncia, Barroso 46 faz um

    diagnstico sobre as causas principais da interveno do Poder Judicirio na

    implementao dos direitos sociais, eliminando a ideia de que a limitao residiria na

    independncia dos poderes constitudos.

    Como primeira grande causa dessa Judicializao, aponta Barroso a

    redemocratizao do pas trazida pela Constituio Federal de 1988. A criao de

    instrumentos democrticos de acesso justia, a participao popular na poltica

    reavivaram a conscincia dos direitos e albergaram aos cidados uma maior

    capacidade de reivindicar seus direitos de forma ativa, em suma: a redemocratizao

    fortaleceu e expandiu o Poder Judicirio, bem como aumentou a demanda por justia

    na sociedade brasileira.47

    A constitucionalizao abrangente considerada a segunda causa da

    judicializao e caracteriza-se pelo seu potencial de transformar Polticas em

    Direito. Na medida em que uma questo (...) disciplinada em uma norma

    constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretenso jurdica, que

    pode ser formulada sob a forma de ao judicial.48

    Por fim, a terceira e ltima causa seria a presena de instrumentos de controle

    de constitucionalidade muito evoludos, cujo modelo ecltico combina o sistema

    norte americano de controle constitucional incidenta e difuso, bem como o modelo

    europeu de ao direta, que permite levar questes diretamente ao Supremo Tribunal

    44 BARROSO, Lus Roberto, Da falta de efetividade judicializao excessiva: direito sade, fornecimento gratuito de medicamentos e parmetros para a atuao judicial, artigo extrado do site: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/da_falta_de_efetividade_a_judicializacao_excessiva.pdf. 45 Ibidem. 46 BARROSO, Lus Roberto, Judicializao, ativismo judicial e legitimidade democrtica, artigo extrado do site: www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20090130-01.pdf 47 Ibidem, p. 3 48 Ibidem, p. 3

  • Federal. Somado a isso a inmeras pessoas legitimadas para a propositura de aes

    diretas fortalece o poder de reivindicao das polticas pblicas.

    Para alguns como Ricardo Seibel de Freitas Lima, cuja viso contrasta-se com

    a crescente implementao dos direitos sociais pelo Poder Judicirio essa

    Judicializao chega a extremos, posto que invade a competncia dos demais Poderes

    e esvazia o poder de planejamento como um voluntarismo irracional 49.

    Contudo, como bem aponta Boaventura de Souza Santos50, debalde ser rica a

    discusso acerca da legitimidade ou ilegitimidade do Poder Judicirio para receber as

    demandas por direitos sociais, sabe-se que a urgncia pela implementao imediata

    dos direitos fundamentais em pases perifricos fez desses direitos assegurados pela

    via judicial. Tal fato no deixa de retratar uma tendncia dos Tribunais em todo o

    mundo, porm, nos pases em desenvolvimento que experimentaram perodos de

    ditadura como o Brasil, a lenta transio democrtica impede a implementao

    espontnea das polticas pblicas.

    Em artigo sobre o assunto, Souza Santos expe as dificuldades de se investir

    de plena independncia um Poder Judicirio no totalmente livre da cultura poltica

    de outrora, muitas vezes limitado pelo conservadorismo de seus membros, dominado

    por concepes retrgradas de direito e sociedade hostil justia distributiva e

    tecnicamente despreparada para ela51.

    Nesse liar, com Lenio Streck52 que segue-se concluso do Souza Santos de

    que o direito encontra-se apto a dar as respostas a uma sociedade que clama pelas

    promessas da modernidade. Porm, constrito dentro de um modelo de interpretao de

    cariz positivista, o judicirio se v as voltas com um confronto de modelos

    interpretativos que se aliam ao interesse de apropriar-se da melhor leitura do texto,

    sem, contudo, aportar sua concluso na efetividade de uma ordem poltica que

    necessita apropriar-se de sua verdadeira essncia hermenutica. 49 LIMA, Ricardo Seibel de Freitas Lima, Direito sade e critrios de aplicao, Direito Pblico, n. 12, abr-mai-jun/2006. 50 SANTOS, Boaventura de Souza, Os tribunais nas sociedade contemporneas, Coimbra: Centro de Estudos Sociais, Oficina do CES. n. 65, 1995, artigo extrado do site: http://hd1.handle.net/10316/10965. 51 Ibidem, p. 33. 52 STRECK, Lnio, Os vinte anos da Constituio do Brasil e as possibilidades de realizao dos direitos fundamentais diante dos obstculos do positivismo jurdico, in: Revista Jurdica do Ministrio Pblico de Mato Grosso, ano 3, n. 4, jan. jun 2008.

  • Como aponta Lenio Streck no se pode omitir ao constitucionalismo que

    revolucionou o direito no sculo XX; da a tarefa fundamental de qualquer teoria

    jurdica nessa quadra de histria: concretizar direitos, resolvendo problemas

    concretos53.

    tambm pela viso de Lenio Streck que Gustavo Amaral apresenta sua

    posio acerca da hermenutica constitucional na implementao dos direitos

    fundamentais sociais, apontando o texto fundamental como uma ferramenta

    disposio do intrprete que a aplica.

    Assim, sendo a sade um bem fundamental que carece de guarida do

    intrprete contra violaes de toda ordem, a tarefa de zelar por sua proteo passa

    pela judicializao dessa poltica pblica, o que se faz invariavelmente pela via

    individual e que, por ser isolada suscita inmeras discusses. Amparados pela

    Constituio que prev a imediata implementao dos direitos sociais, fica

    compreendida a idia de que enquanto forem tratados como bens necessrios

    manuteno da dignidade esses sero abarcados e, como bem aponta Ingo Sarlet,

    sero uma espcie de direito subjetivo definitivo prestao.54

    Assim, aprofundando mais essa reflexo na caracterizao dos direitos sociais

    fundamentais, com Ingo Sarlet55 que se apresenta o conceito de mnimo existencial

    como um ncleo assente contra intervenes de qualquer poder, reforando a

    essencialidade dos direitos dessa natureza.

    Segundo Ingo Sarlet, as premissas desse princpio impe mais do que simples

    garantias de sobrevivncia, ampliando-se para alm dessa viso restrita para conferir

    meios de desenvolvimento que assegurem ao indivduo um mnimo de insero em

    termos de tendencial igualdade na vida social56.

    No obstante a delimitao do alcance da aplicao dos direitos fundamentais

    seja de difcil definio, entende Rogrio Bento que ser diante da situao prtica

    que se definir se os direitos pleiteados compreendem a parcela do mnimo existencial

    53 Ibidem, p. 101. 54 SARLET, Ingo, A eficcia dos direitos fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 324. 55 SARLET, 2008. 56 Ibidem, p. 21.

  • ou se esto fora da linha demarcatria daquilo que se pode considerar

    indispensvel para uma existncia digna. 57

    Diante disso, mesmo constatando-se que a feio paradigmtica do mnimo

    existencial seja amplamente difundida, a certeza de que os direitos sociais

    ultrapassam esse piso tornam essa especulao desprovida de sentido, especialmente

    quando a sade vem ao socorro de uma resposta jurdica que lhe sustente. Fica assim

    evidente que o contedo fundamental do direito sade insculpido dentro de uma

    lgica de solidariedade social marca uma tendncia mais abrangente assumida pela

    nossa Carta Constitucional, a qual prev dentre as polticas sociais a promoo,

    proteo e recuperao da sade.

    Resta indefinido, contudo, a exata linha divisria do conceito de mnimo

    existencial, frente mirade de formas conceituais e variegada profuso de acepes

    quando se est imerso em uma sociedade formatada numa raiz multicultural e

    amplamente globalizada. Enquanto as palavras arregimentam em torno de si uma

    infinidade de definies que se intercambiam no largo espao da linguagem, a

    definio das margens demarcatrias de um conceito to amplamente empregado

    sempre sero difceis de se encontrar.

    Assim, dvidas sobre quais as prestaes compreendidas dentro desse limite

    sempre so o mote de discusses que se estabelecero pelas inmeras vias

    interpretativas, atuando a subjetividade como um ingrediente que desarticula as mais

    rgidas vises.

    Nesse ponto, cabe consignar tambm que ao longo dos tempos o compromisso

    poltico variou conforme evoluram as expectativas da sociedade, fazendo incidir

    sobre o Estado em cada momento uma demanda social especfica qual antes no

    havia. Diante disso, os anseios de uma justia distributiva ideal estar sempre em vias

    de provocar uma crise, transformando-se essa entropia numa oportunidade de auto-

    renovao que aperfeioa todo o sistema social.

    No entanto, para que a sade no se torne a panaceia que conduz

    constantemente a crer-se que esse direito fundamental social sempre estaria margem 57 NASCIMENTO, Rogrio Bento do, A efetivao do direito fundamental de acesso sade, Jurispoiesis, ano 11, n 11, jan-dez 2008, Rio de Janeiro: Universidade Estcio de S, Programa de Ps-graduao em direito, 2008, p. 314.

  • da poltica e da justia, imperioso se faz estabelecer um mtodo rigoroso fundada

    numa compreenso hermenutica para se obter um conceito apofntico concreto

    acerca do que seria a sade, cuja previso encontra-se tratada como direito

    fundamental atrelado dignidade humana dentro do texto constitucional.

    Assim, diante de um texto constitucional que pretende universalizar o

    atendimento s demandas de sade, atendendo a todos aqueles que se acham

    necessitados de curarem-se das doenas ou promoverem uma melhora de seu bem-

    estar, resta evidente conhecer a real extenso desse conceito conforme o mtodo

    hermenutico apropriado para concretizar-se as promessas latentes do Estado Social

    de Direito.

    Considerando que noo de sade perpassa a ideia de equilbrio e bem-estar de

    um sujeito dotado de fora postulante e armado com instrumentos jurdicos que lhe

    permitem alcanar seus interesses particulares, resta divisar qual a dimenso de um

    direito que pretende reatar o homem com sua perspectiva de sade e em conformidade

    com a ideia de bem-estar, diante dos inmeros recursos tecnolgicos e cientficos que

    lhe servem de libis nessa busca.

    Como expe Jos Ricardo Ayres58, o projeto de felicidade humana pelo qual

    perpassa a sade encontra suas razes na ontologia, numa existncia condizente com o

    objetivo de vida gestado no interior de um ser cultural, cujas razes autnticas esto

    fixadas na tradio. Visto isso, questiona-se se estaria apta a cincia mdica ou

    qualquer outra cincia, como a jurdica, para dizer sozinha o que seria o bem-estar e

    sade do homem ou oferecer isoladamente todos os recursos necessrios para atingir

    o xito em seu projeto?

    Antes de qualquer resposta h de se compreender que existe um nvel

    hermenutico de compreenso da sade que supera a superficialidade de um

    diagnstico tcnico cientfico ou que atribua ao sujeito a pecha de doente pelo simples

    fato de estar em desequilbrio com o meio. Considerando-se que o sujeito hoje

    encontra-se fustigado pelas diversas presses sociais e ideologias de sade, bem

    como, sujeitos a uma medicina que legitima sua autoridade nas raias de uma

    58 AYRES, Jos Ricardo C. M. , Uma concepo hermenutica de sade, PHYSIS: Ver. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):43-62-2007.

  • sociedade pautada pela produo e pelo consumo, torna-se urgente compreender o

    sentido da sade conforme a integralidade do ser prevista no texto constitucional.

    Portanto, no prescinde o intrprete de uma igual viso hermenutica do texto

    que d sentido a esse direito social, o que induz a concluir que so as condies

    objetivas que confluem para a sensao de dignidade e coexistncia similar aos

    demais sujeitos que compartilham do mesmo ambiente social.

    No obstante a relao entre o intrprete do sujeito e o intrprete da lei

    contribua para conhecer melhor o sujeito e compreender suas necessidades

    existenciais e essenciais, no momento em que o intrprete da lei depara-se com o

    caso concreto que os universos se fundem, possibilitando a perfeita compreenso da

    situao que se revela na profundidade do conceito de sade.

    Assim, quando a viso do intrprete encontrar-se habituada a perscrutar as

    idiossincrasias e particularidades do sujeito que prope a questo e, no momento em

    que essas conformarem-se ao texto constitucional, a tarefa interpretativa que a si

    cumpre atingir efetividade e evidenciar a resposta correta.

    Assim, quando diante de uma demanda de sade no pode o Poder Judicirio

    tratar as normas constitucionais como meros direitos positivos a serem reconhecidos

    como ordens imponderveis, nem tratar os pleitos do sujeito como simples reclamos

    de usurios mal servidos pelo sistema pblico de sade. Expurgando toda a

    superficialidade inata do homem moderno, deve-se vislumbrar em cada caso a

    oportunidade emancipatria de um sujeito que busca do Estado a proteo integral de

    seu direito social fundamental de sade que consta registrado na Constituio Federal.

    Dessa arte, como norma superior a Constituio representa um instrumento

    promovedor-transformador do Estado Social e Democrtico de Direito 59 e a

    interpretao o reflexo de um judicirio consciente desse papel transformador e

    emancipador, porm sem expor a sociedade perfdia de um engodo liberal-

    inidividualista-normativista ainda preso cultura positivista.

    Sendo assim, preciso que o Judicirio se debruce sobre o caso para ver alm

    das aparncias superficiais. Como um Poder que avaliza o direito no momento em que

    59 Ibidem.

  • o efetiva, a ateno daquele que aplica a lei deve impedir que uma inteleco

    equivocada atenda mais aos interesses esprios do que prpria essncia social do

    direito fundamental sade.

    Considerando que os riscos da medicalizao fragilizam o cidado

    contemporneo submetendo ao controle das autoridades, bem como s presses

    econmicas e normalizao de uma sociedade que perdeu a noo de

    individualidade e as referncias tradicionais em prol do liberalismo de outrora, fica a

    cargo daqueles que interpretam a lei aplic-las para dar o contorno correto em vista do

    atual projeto poltico.

    Portanto resta encontrar o equilbrio na lei que se d somente pela melhor

    compreenso do sentido do texto, ou seja, uma interpretao que resuma-se num

    exerccio hermenutico que compreenda a essncia do texto, sem necessidade de

    elucubraes e interpretaes arrevesadas que atentem contra sua estrutura lgica e a

    historicidade presente em sua fonte principal, a Constituio.

    5. Concluso

    O trabalho adentrou no entendimento acerca do legado deixado pela era

    moderna, empreendendo-se numa busca pelas causas que levaram o homem a

    condio de objeto na sociedade contempornea. Assim, aps delimitadas tais razes,

    partiu-se em busca das causas desse estado de objetificao, o qual provocou a

    desconstituio da essncia integral do ser e retirou desse homem o poder de

    reconhecer-se como saudvel perante uma sociedade pautada por padres de sade

    impostos pelas autoridades dotadas de poder para tanto.

    Caminhando nesse sentido, tentou-se relacionar essas causas ao atual estgio

    de desenvolvimento da cincia mdica, a qual restringiu os limites da salubridade aos

    estreitos padres da normalidade, sugerindo uma situao de constante patologia dos

    cidados e oferecendo a medicalizao como salvao para essa situao.

    Nesse liar, pretendeu-se tambm evidenciar os reflexos dessa patologizao

    que hoje exsurge como uma constante ameaa universalizao da sade no Estado

    brasileiro, principalmente quando vislumbrado o crescente aumento das demandas

  • judiciais em busca de resultados mdicos que eliminem essa inmeras patologias

    (medicalizao).

    Nesse sentido, verifica-se que o tema hermenutica filosfica figura como o

    pano de fundo da presente dissertao, encontrando-se aparente na primeira parte

    desse trabalho que trata do tema medicalizao, atravs da discusso sobre a

    necessidade do homem ligar-se sua essncia ontolgica tradicional de ser integral,

    assim como, na segunda parte, pela proposta de se fundar uma interpretao

    constitucional que supere o positivismo das interpretaes atuais e compreenda o

    texto tambm na integralidade e profundidade hermenutica.

    A partir dessas premissas iniciais, procurou-se evidenciar o quanto a cincia e

    a tcnica alcanaram o atual status na sociedade por meio da contestao das bases

    tradicionais do saber, expungindo o que no se adequava ao seu mtodo prprio e, ao

    fim, sagrando-se vitoriosa pela deposio dos conhecimentos ditos vulgares..

    Como resultado disso, tm-se um homem que no mais reconhece seu papel

    essencial na sociedade e dependente da tcnica como nica instncia de poder capaz

    de dizer a verdade acerca do mundo. Assim, viu-se invadir aos poucos todos os

    setores da vida, para introduzirem-se neles os aparatos tecnolgicos que no mais

    atendem ao homem, mas se fazem teis para manter esse eterno movimento de

    composio.

    Na tentativa de aproximar-se essas ideias daquelas que forjaram as bases

    sociedade moderna, procurou-se demonstrar que o homem, carente de fundamentos

    racionais para expurgar seus temores, almejou desde os primrdios livrar-se da

    condio natural de um ser finito, utilizando-se desse conhecimentos cientficos e

    tecnolgicos como principais aliados na batalha pela negao da morte e das doenas.

    Contudo, da mesma forma como a cincia logrou legitimar-se como nica

    instncia competente para dizer a verdade, sua consequncia objetificante tambm

    provocaram um rompimento do homem com sua essncia natural, resultando assim no

    que Hans Jonas bem identificou como a dualidade de um ser dividido entre uma

    existncia exterior/corporal (material) e outra interior (espiritual).

    Entronizada como poder e alada ao patamar de verdade a cincia adentrou

    nos domnios da vida para transformar em objetos todos os elementos sujeitos ao seu

  • escrutnio, o que incluiu seu corpo considerado em sua perspectiva interior e

    visualizvel.

    Fica assim evidente o resultado da combinao entre o poder cientfico para

    ditar a verdade e da predisposio pblica para aceit-las como certeza ideolgica,

    produzindo-se uma sociedade pautada por padres de sade consubstanciados em

    regras de normalidade, contudo, no necessariamente individualizadas ao cidado,

    mas sim, formatadas por um conceitos gerais pouco particulares.

    No obstante a estreiteza dos padres conformados aos padres de sade

    idealizados pela cincia, por outro lado, os cidados destitudos de poder para

    saberem sobre a prpria sade passam nortearem-se por essas normas gerais,

    reduzindo sua busca por sade ao mero cumprimento de regras gerais, abandonando-

    se sua ligao com sua essncia individual.

    Assim, procurou-se demonstrar que, da mesma forma como a cincia contribui

    para difundir uma cultura de sade com base da aplicao prtica de seus

    conhecimentos tcnicos, essa tambm acaba por fomentar a formao de ideologias

    que incorporam o iderio coletivo transformando o sujeito em um refm de padres

    de sade inalcanveis e que provocam em si a constante sensao de constante

    adoecimento.

    Reconhecida a existncia de uma Constituio que no alcanou atingir sua

    pretenso social e que, clama pela implementao dos direitos sociais de forma a

    cumprir as promessas textuais de seu programa, resta da efetividade s normas

    fundamentais, protegendo-se o ncleo ptreo da dignidade humana.

    Demonstrada a imediatidade na implementao dos direitos fundamentais

    sociais para que o acesso universal s prestaes de sade seja eficiente, verificou-se

    necessria a interveno judicial para suprir as carncias que afetam esse ncleo

    fundamental de direitos da dignidade, reconhecendo-se um mnimo assente contra

    omisses.

    Nessa linha, uma vez garantida ao cidado o direito sade conforme previsto

    na Constituio Federal, valiosa se faz uma abordagem que reconhea o valor desses

    direitos, porm, que respeite os limites de implementao fundados numa resposta

    social aos ataques do liberalismo.

  • Desta feita, consignados que as ideologias medicalizantes gestadas no interior

    de um sistema capitalista provocam a objetificao do sujeito e o transforma em um

    instrumento de produo e consumo, vem a hermenutica filosfica proteger a

    sociedade da invaso rasteira dessa ideologia de cariz liberal e que pode afetar todo o

    projeto social da constituio.

    Assim identificados os riscos que a medicalizao oferece pelo vis liberal

    de sua marcha, tentou-se demonstrar o quanto as ideologias de sade podem ser

    usadas como subterfgio das foras econmicas para fazer imperar seus interesses de

    objetificao do sujeito, utilizando-se da via Judicial como libi nesse

    empreendimento.

    Diante disso e, seguindo-se a linha adotada desde o incio do trabalho, props-

    se a hermenutica filosfica como uma forma de reatar o sujeito com suas origens

    ontolgicas e tradicionais, assim como, um mtodo seguro de interpretao para se

    proteger o homem da discricionariedade do intrprete que, assim como os cidados

    encontra-se sujeito contaminar-se por essas foras ingentes.

    No obstante a sade permanecer como direito fundamental inalienvel do

    sujeito, apresenta-se a face oculta de uma ideologia que funda-se na necessidade de

    manterem-se vivas as foras de produo e de consumo, cuja funo liga-se mais aos

    interesses das autoridades do que procura pelo atendimento de uma necessidade

    essencial do sujeito contemporneo.

    6. Referncias bibliogrficas

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