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Medida e Integra¸ ao Manuel Ricou Departamento de Matem´atica Instituto Superior T´ ecnico Abril 2009

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Medida e Integracao

Manuel Ricou

Departamento de Matematica

Instituto Superior Tecnico

Abril 2009

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Prefacio

Mas antes do mais: o que entendemos por∫ ba f(x)dx?

Bernhard Riemann, 1854

A pergunta acima foi formulada por Bernhard Riemann no trabalho emque definiu o que hoje chamamos o “integral de Riemann”. O objectivodo presente texto e, sobretudo, o de expor respostas que esta pergunta temtido no decurso dos ultimos 150 anos, e sugerir, mesmo que parcialmente, oenorme impacto que as correspondentes investigacoes tiveram na evolucaoda Matematica, durante este mesmo perıodo.

A compreensao de qualquer area da Matematica e facilitada pelo recon-hecimento previo do contexto que a viu nascer. No caso da Teoria da Inte-gracao, esse contexto abrange um perıodo temporal particularmente longo.Na realidade, diversos problemas de Geometria e Estatica, resolvidos naAntiguidade Classica com recurso ao chamado “metodo de exaustao”, eenvolvendo o calculo de determinadas areas, volumes, e centros de massa,correspondem, na terminologia moderna, ao calculo de integrais. Por estarazao, a Teoria da Integracao e certamente uma das mais antigas areas daMatematica, e beneficia de raızes heurısticas muito sugestivas, que ajudamao seu entendimento.

A Teoria da Integracao comecou a tomar a sua forma moderna no seculoXVII, com os trabalhos de Newton e Leibnitz, e de percursores como Fermate Barrow. Data deste perıodo a surpreendente descoberta que, mais do quequalquer outra, marca o nascimento do Calculo Infinitesimal: a integracao ea diferenciacao sao operacoes inversas uma da outra, o que ainda hoje des-crevemos no que dizemos serem os “Teoremas Fundamentais do Calculo”.Datam tambem deste perıodo as primeiras aplicacoes do Calculo a questoescientıficas fundamentais, muito em especial a Teoria da Gravitacao Univer-sal, do proprio Newton, um marco ımpar na historia do pensamento humano.

Foi apenas nos finais do seculo XVIII que a sofisticacao dos problemasa estudar se comecou a revelar incompatıvel com a informalidade e falta derigor com que ate aı tinham sido tratadas as nocoes mais basicas do CalculoInfinitesimal. Nos primeiros anos do seculo XIX, o grande matematicoCauchy iniciou um cuidadoso exame das ideias mais centrais do Calculo,como as de limite, derivada, integral, e continuidade, efectivamente lancando

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as bases da nossa practica actual. Neste processo, apresentou a primeiradefinicao satisfatoria de integral, se bem que restringindo a sua aplicacao afuncoes contınuas. O desenvolvimento da Teoria da Integracao acelerou-senovamente a partir dos meados do seculo XIX, em especial a partir da pu-blicacao do trabalho de Riemann que mencionamos, desta vez sob a pressaode difıceis problemas de natureza teorica, suscitados pelas ideias de Fouriersobre as series que hoje tem o seu nome. Muito naturalmente, a questao desaber quais as funcoes que podem ser representadas por series de Fourier,originada por sua vez por questoes mais “praticas” relativas a resolucao dasprincipais equacoes diferenciais parciais da Fısica Matematica, levava ine-vitavelmente a uma reapreciacao da propria nocao de “funcao”. Requeriatambem a integracao de funcoes sobre as quais nao parecia razoavel imporcondicoes de continuidade, sob pena de se desvirtuarem alguns dos princi-pais objectivos das investigacoes em curso. A pergunta de Riemann quecitamos acima e um reflexo deste tipo de preocupacoes.

A Teoria da Integracao tornou-se desde entao um motor importante nacrescente axiomatizacao e abstraccao da Matematica, estas ultimas parti-cularmente evidentes desde os finais do seculo XIX. A tıtulo de ilustracao,o classico Teorema de Riesz-Fischer, demonstrado sob diversas formas noperıodo 1907-1910, revelou uma profunda analogia entre, por um lado, sofisti-cadas construcoes matematicas formadas por (classes de equivalencia de)funcoes somaveis e, por outro, objectos tao “simples” como a recta real,estudados ha mais de 25 seculos. Em certo sentido, este teorema mostraque as funcoes somaveis “no sentido de Lebesgue” completam as funcoesintegraveis “no sentido de Riemann”, precisamente como os numeros reaiscompletam os numeros racionais. Resultados desta natureza foram, e sao,convites abertos a criacao e estudo de novas entidades abstractas, que per-mitem a exploracao deste tipo de analogia de forma sistematica, rigorosa, emuito eficiente do ponto de vista intelectual.

Hoje, a Teoria da Integracao e certamente um dos blocos fundamentaisda Matematica, e e especialmente relevante para multiplas das suas areasfundamentais e aplicadas, como a Analise Funcional, o Calculo de Variacoes,as Equacoes Diferenciais, e a Teoria das Probabilidades. As suas ideiasrepercutem-se em algumas das teorias mais centrais da Fısica Moderna, e saoprevalentes no esclarecimento de questoes oriundas da Engenharia. Afinalde contas, o “espaco de estados” do atomo de hidrogenio, o mais simplesatomo da natureza, e um espaco de (classes de equivalencia de) funcoesde quadrado somavel no sentido de Lebesgue, e o exemplo mais classicona literatura actual de um problema variacional de “descontinuidade livre”resulta de trabalhos sobre reconhecimento de imagens por computador.(1)

Pelas razoes acima, a Teoria da Integracao e naturalmente uma parte

1D.Mumford e J.Shaw, Boundary Detection by Minimizing Functionals, IEEE Confer-ence on Computer Vision and Pattern Recognition, San Francisco 1985.

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importante da formacao dos alunos da Licenciatura em Matematica Apli-cada e Computacao (LMAC) do IST, e foi sobretudo para estes alunos que opresente texto foi escrito. O ensino da Teoria da Integracao no contexto do3o ano da LMAC sempre representou para o autor um desafio e uma opor-tunidade muito interessantes, que se pode resumir nas seguintes questoes:

• Como conciliar a necessidade pratica de apresentar uma area difıcil eextensa, indispensavel a formacao dos alunos, sem a desligar da suabase intuitiva, e sem a tornar demasiado difıcil para a maioria dosestudantes?

• Como transformar o nıvel de abstraccao da teoria, de um obstaculoa sua compreensao, em uma oportunidade de entender melhor o cres-cente papel da abstraccao na Matematica contemporanea?

• Como aproveitar o estudo desta teoria para apresentar a Matematicanao como um saber estatico, mas como um processo dinamico e apaixo-nante de construcao de poderosas metaforas da realidade fısica, decrescente sofisticacao e subtileza?

Na sua modesta tentativa de responder a estas questoes, o autor socorreu-se com frequencia de ideias e comentarios dos principais criadores da teoria,em especial Henri Lebesgue e Emile Borel. Em particular, o texto estaescrito, mesmo nas seccoes mais abstractas, no respeito rigoroso pelo queLebesgue chamava a “definicao geometrica” do integral, que nao e outrasenao a ideia, desde sempre muito satisfatoria do ponto de vista intuitivo,que, para qualquer funcao nao-negativa f ,

Integral da funcao f = Medida da regiao de ordenadas de f .

Entendemos aqui a palavra “medida” como significando “area”, “volume”,ou o analogo apropriado destas nocoes em espacos de dimensao mais elevada.

A apresentacao da teoria nao segue assim o percurso que e hoje maistradicional, e e importante entender que alguns resultados basicos assumempor vezes um papel diferente, menos convencional, no seu desenvolvimento:veja-se como ilustracao o Teorema de Fubini-Lebesgue, tal como e enunciadoe demonstrado no Capıtulo 3, para a medida de Lebesgue em RN . E apenasapos a sua apresentacao que encontramos neste texto, pela primeira vez, oresultado, aqui um teorema, que e usualmente tomado como a definicao de“funcao Lebesgue-mensuravel”. A tecnica que seguimos permite ainda umademonstracao muito simples dos resultados classicos sobre “limites e inte-grais”, o teorema de Beppo Levi, ou da Convergencia Monotona, o lema deFatou, e o teorema de Lebesgue, ou da Convergencia Dominada, e evidenciaa sua relacao directa com as ideias mais basicas da Teoria da Medida. Poroutras palavras, revela que estas propriedades sao essencialmente a chamada

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“σ-aditividade”, esta uma propriedade comum a qualquer medida, e obser-vada e registada com muita clareza por Borel.

A exposicao inspira-se em multiplos aspectos no desenvolvimento histo-rico da Teoria, e esforca-se por deixar clara a continuidade entre as teorias deintegracao de Riemann e de Lebesgue. Em especial, e repetindo fielmente oproprio Lebesgue, a sua teoria e apresentada como uma evolucao “natural”da de Riemann, sobretudo enquanto adaptacao de ideias de Peano e Jordan,entretanto melhoradas por Borel. Discutimos algumas das principais difi-culdades tecnicas da teoria de Riemann, e a respectiva resolucao pela teoriade Lebesgue, em especial as relacionados com os Teoremas Fundamentais doCalculo. Estes sao aqui tratados com amplo recurso a tecnicas e resultadosda Teoria da Medida, i.e., com base no “modelo geometrico” da integracao.Neste contexto, o grande teorema de diferenciacao de Lebesgue e provadopor uma adaptacao simples do belo argumento de Riesz (o seu “Lema doSol Nascente”), mas a demonstracao do teorema de Banach-Zaretski afasta-se bastante das tecnicas usadas por Banach. As multiplas referencias aCantor feitas neste texto devem ainda recordar-nos que a sua genial Teoriados Conjuntos e mais um exemplo de abstraccoes fundamentais entradas naMatematica em grande parte pela necessidade de enunciar e estudar comclareza questoes suscitadas pela Teoria da Integracao.

A apresentacao dos resultados principais da Teoria, incluindo o Teoremade Radon-Nikodym-Lebesgue, o Teorema de Fubini-Lebesgue, e os Teoremasde Representacao de Riesz, nao faz qualquer concessao a tentacao de tornarestas magnıficas construcoes intelectuais mais simples do que efectivamenteo sao.

Naturalmente apenas a leitura atenta do texto podera revelar se esteresponde de forma satisfatoria as preocupacoes acima manifestadas, e serepresenta um equilıbrio razoavel entre os diversos objectivos que pretendeatingir. Ao autor resta somente desejar que outros encontrem na sua leituraum prazer comparavel a satisfacao que a sua escrita lhe trouxe.

Lisboa, Fevereiro de 2008

Manuel Ricou

Departamento de MatematicaInstituto Superior Tecnico1096 Lisboa CodexPORTUGAL

[email protected]

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Conteudo

1 Integrais de Riemann 7

1.1 Rectangulos e Conjuntos Elementares em RN . . . . . . . . . 8

1.2 Algebras, Semi-Algebras e Funcoes Aditivas . . . . . . . . . . 19

1.3 Conjuntos Jordan-Mensuraveis . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

1.4 O Integral de Riemann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

1.4.1 O Espaco das Funcoes Integraveis . . . . . . . . . . . 44

1.4.2 Integrais Indefinidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

1.4.3 Continuidade e Integrabilidade . . . . . . . . . . . . . 52

1.5 Os Teoremas Fundamentais do Calculo . . . . . . . . . . . . . 60

1.6 O Problema de Borel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

2 A Medida de Lebesgue 89

2.1 Espacos Mensuraveis e Medidas . . . . . . . . . . . . . . . . . 90

2.2 A Medida de Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

2.3 Os Espacos de Borel e de Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . . 114

2.4 Conjuntos Nao-Mensuraveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

2.5 Medidas Exteriores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

3 Integrais de Lebesgue 149

3.1 O Integral de Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150

3.2 Limites, Mensurabilidade e Integrais . . . . . . . . . . . . . . 162

3.3 O Teorema de Fubini-Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . . . . 171

3.4 Funcoes Mensuraveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186

3.5 Funcoes Somaveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200

3.6 Continuidade e Mensurabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . 209

4 Outras Medidas 217

4.1 A Decomposicao de Hahn-Jordan . . . . . . . . . . . . . . . . 218

4.2 A Variacao Total de uma Medida . . . . . . . . . . . . . . . . 228

4.3 Medidas Absolutamente Contınuas . . . . . . . . . . . . . . . 234

4.4 Medidas Regulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236

4.5 Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R . . . . . . . . . . . . . . 245

4.6 Funcoes de Variacao Limitada . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255

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4.6.1 Funcoes Absolutamente Contınuas . . . . . . . . . . . 2634.7 Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R . . . . . . . . . 268

4.7.1 O Teorema de Diferenciacao de Lebesgue . . . . . . . 2684.7.2 A Decomposicao de Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . 2774.7.3 Diferenciacao de Funcoes de Variacao Limitada . . . . 285

5 Outros Integrais de Lebesgue 295

5.1 A Medida µ⊗m . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2965.2 Funcoes Mensuraveis e Integrais . . . . . . . . . . . . . . . . . 3095.3 O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue . . . . . . . . . . . 3195.4 Os Espacos Lp . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3275.5 Teoremas de Representacao de Riesz . . . . . . . . . . . . . . 3385.6 Teoremas de Egorov, Lebesgue e Riesz . . . . . . . . . . . . . 3525.7 O Teorema de Fubini-Lebesgue . . . . . . . . . . . . . . . . . 358

Indice Remissivo 368

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Capıtulo 1

Integrais de Riemann

A teoria da integracao evoluiu rapidamente na segunda metade do seculoXIX. Por um lado, e sobretudo como resultado das descobertas fundamen-tais de Fourier sobre series trigonometricas, hoje ditas series de Fourier, adificuldade dos problemas a esclarecer com esta teoria ultrapassou, defini-tivamente, os recursos pouco sofisticados da teoria existente, ate entao as-sente, essencialmente, numa base informal e intuitiva. Em 1854, quandoRiemann quis caracterizar as funcoes que podem ser representadas por seriesde Fourier, foi-lhe necessario analisar a nocao de “funcao integravel” a luzde mais exigentes criterios de generalidade, exactidao e rigor. A definicaoque apresentou ainda hoje deve ser conhecida por quem quer que desejecompreender os conceitos mais centrais da Analise Matematica.

Por outro lado, em paralelo com estes estudos de Riemann, mas ainda nocontexto da escola Alema, o genial Cantor descobriu a Teoria dos Conjuntose, simultaneamente, atingiu-se um novo patamar de precisao na forma comosao definidos os proprios numeros reais. Ao procurar respostas a questoessuscitadas tanto pela nova teoria de Riemann, como pela teoria de Fourier,retomaram-se problemas tao antigos como a propria Matematica, conheci-dos da Geometria elementar, mas que podiam agora ser estudados a luzdestas novas ideias. O que e a area de uma figura plana? O que e o volumede um solido? Qualquer figura plana limitada tem area? Qualquer subcon-junto de uma recta tem comprimento? E possıvel calcular, por exemplo,o comprimento do conjunto dos numeros racionais? Uma primeira solucaopara este tipo de problemas foi descoberta pelo matematico italiano Peano,ja perto do final do seculo XIX. O proprio Peano compreendeu a relacao di-recta entre a sua teoria, que definia a medida de conjuntos, e a de Riemann,que definia o integral de funcoes, e sabia que as duas teorias sao, em certosentido, completamente equivalentes.

Neste primeiro capıtulo, estudamos sobretudo as ideias de Riemann e dePeano, mas nao seguimos a cronologia da sua descoberta, nem usamos sem-pre os conceitos exactamente como originalmente definidos. Procuramos,

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8 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

em vez disso, evidenciar o mais directamente possıvel a sua equivalencia.Apontaremos tambem algumas das deficiencias tecnicas que apresentam eque estao na origem da sua substituicao, ja no seculo XX, pela teoria des-coberta por Henri Lebesgue.

Uma observacao simples sobre terminologia: e comum usar as palavras“medida” ou “conteudo”, em vez de “comprimento”, “area” ou “volume”,porque estas ultimas estao irremediavelmente associadas a dimensao dosconjuntos em causa (respectivamente, um, dois ou tres), e a teoria que aquiestudamos e basicamente independente dessa dimensao e aplicavel mesmoquando essa dimensao e superior a tres. Neste capıtulo, usaremos sobretudoo termo “conteudo”, normalmente na forma “conteudo-N”, onde N e adimensao do espaco subjacente, reservando a palavra “medida”, que comoveremos tem um sentido tecnico muito preciso, para utilizacao posterior.

1.1 Rectangulos e Conjuntos Elementares em RN

A determinacao do conteudo-N de subconjuntos de RN e muito simplespara os conjuntos que sao rectangulos ou unioes finitas de rectangulos. Oprincipal objectivo desta seccao e o de definir o conteudo dos conjuntos destetipo e identificar e demonstrar as suas propriedades mais basicas.

Figura 1.1.1: Uniao finita de rectangulos.

O calculo da area de um rectangulo no plano e imediato, porque sabemosda geometria elementar que essa area e o produto dos comprimentos dos seuslados. Em particular, e como ilustrado na figura seguinte, um rectangulobidimensional (em R2) da forma R = I×J , onde I e J sao intervalos em R,tem area igual ao produto dos comprimentos de I e de J .

Claro que usaremos o termo “rectangulo” com um sentido mais geral,independente da dimensao N do espaco RN em causa: qualquer produtocartesiano (finito) de intervalos na recta R e um rectangulo:

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1.1. Rectangulos e Conjuntos Elementares em RN 9

I

J

R

Figura 1.1.2: Area de R = (comprimento de I)×(comprimento de J).

Definicao 1.1.1 (Rectangulos em RN ). R ⊆ RN e um rectangulo se eso se R = I1 × I2 × · · · × IN , onde I1, I2, · · · , IN sao intervalos em R.

Sempre que nos referirmos a um rectangulo e for conveniente indicarexplicitamente a dimensao N do respectivo espaco RN , usamos a expressao“rectangulo-N”. Em particular, um rectangulo-1 e um intervalo, um “rec-tangulo” no sentido mais usual do termo e, nesta terminologia, um rectan-gulo-2, e um rectangulo-3 e um prisma rectangular. Reservamos o termo“intervalo” apenas para rectangulos-1.

Notamos que o conjunto vazio ∅ e um rectangulo-N para qualquer N .Na verdade, se R = I1 × I2 × · · · × IN , entao um ou mais dos intervalosIk pode conter apenas um ponto ou ser vazio, caso em que o rectangulose diz degenerado. Por exemplo, um rectangulo-2 degenerado pode ser umsegmento de recta, um ponto ou vazio.

O comprimento ou conteudo-1 do intervalo I ⊆ R designa-se porc1(I). Se I e limitado com extremos a ≤ b, do tipo [a, b], [a, b[, ]a, b] ou ]a, b[,entao c1(I) = b − a. Se I e ilimitado, i.e., se a = −∞ e/ou b = +∞,entao c1(I) = +∞. Se J e tambem um intervalo, entao R = I × J eum rectangulo-2 e a sua area ou conteudo-2 designa-se por c2(R), ondec2(R) = c1(I) × c1(J).

Analogamente, o produto cartesiano de tres intervalos I, J e K e umprisma rectangular P em R3 e o seu volume ou conteudo-3 e dado por

c3(P ) = c1(I) × c1(J) × c1(K).

Nestes como noutros produtos envolvendo factores que podem ser infinitos,usaremos as seguintes convencoes, salvo mencao em contrario:

• Qualquer produto que inclua pelo menos um factor nulo e nulo,mesmo que todos os outros factores sejam infinitos.

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10 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

• Qualquer produto de factores nao nulos que inclua pelo menos umfactor infinito e infinito.

• O sinal do produto e calculado pelas habituais “regras dos sinais”.

A tıtulo de exemplo, o eixo dos yy em R2 e um rectangulo-2 com conteudo-2igual a 0, ja que este eixo e o produto cartesiano R = [0, 0]×] −∞,+∞[, eportanto c2(R) = 0 ×∞ = 0.

E imediato generalizar as observacoes anteriores para o caso de RN :

Definicao 1.1.2 (Conteudo de Rectangulos em RN ). SeR = I1×I2×· · ·×INe um rectangulo em RN , o conteudo-N de R designa-se por cN (R), ouapenas c(R), e e dado por

cN (R) = c1(I1) × c1(I2) × · · · × c1(IN ).

O conteudo-N e portanto uma funcao definida numa classe de conjuntos,ou seja, e um exemplo do que chamamos uma funcao de conjuntos.Neste caso, e uma funcao com valores no intervalo [0,+∞] definida, para ja,na classe de todos os rectangulos-N .

Uma das propriedades mais fundamentais da nocao de conteudo e a suaaditividade. Especializada para rectangulos, esta propriedade significasimplesmente que, quando um rectangulo R e dividido em dois rectangulosdisjuntos A e B, a soma dos conteudos de A e de B e o conteudo de R, i.e.,

c(R) = c(A) + c(B).

Esta propriedade e intuitivamente evidente para as nocoes usuais decomprimento, area e volume, mas deve ser demonstrada como valida parao conteudo-N , independentemente de N . A proposicao seguinte generaliza-a para uma famılia finita de rectangulos e a respectiva demonstracao estaesbocada nos exercıcios 13 a 16 desta seccao.

Proposicao 1.1.3 (Aditividade do Conteudo). Se R1, · · · , Rm sao rectan-gulos-N disjuntos e R = ∪m

i=1Ri e tambem um rectangulo-N , temos

cN (R) =

m∑

i=1

cN (Ri).

No calculo de somas que podem incluir parcelas infinitas, usamos asseguintes convencoes:

• Se a soma inclui parcelas infinitas todas com o mesmo sinal, entao oseu resultado e infinito, com o sinal das parcelas em causa.

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1.1. Rectangulos e Conjuntos Elementares em RN 11

• Se a soma inclui parcelas infinitas com sinais diferentes, entao o seuresultado nao esta definido, ou seja, a soma e uma indeterminacao.

Quando R e um conjunto e P e uma famılia de conjuntos disjuntos cujauniao e R, dizemos que P e uma particao de R. Se R e um rectangulo e P euma particao finita de R em subrectangulos, podemos escrever a identidadeem 1.1.3 na forma

cN (R) =∑

r∈P

cN (r).

O diametro de R ⊆ RN e definido por

diam(R) = sup ‖x − y‖ : x,y ∈ R .

O diametro da particao P do conjunto R e definido por

diam(P) = sup diam(r) : r ∈ P .

O diametro de uma particao e um indicador simples da sua granularidade.

Exemplos 1.1.4.

1. A famılia [0, 1[, [1, 1], ]1, 2] e uma particao de I = [0, 2].

2. A famılia P =P1 = [0, 1] × [0, 1

2 ], P2 = [0, 1]×] 12 , 1], P3 =]1, 2]× [0, 1]

e uma

particao de R = [0, 2]× [0, 1], com diam(P) = diam(P3) =√

2, e esta ilustradana figura abaixo. E obvio que

c2(R) = c2(P1) + c2(P2) + c2(P3).

P1

P2 P3

diam

=

√ 2

Figura 1.1.3: Particao P do rectangulo R = [0, 2] × [0, 1].

refinar uma particao e, simplesmente, subdividir cada um dos conjuntosque a constituem. Mais formalmente, se P e R sao particoes de R, dizemosque R e um refinamento de P, ou que R e mais fina do que P, se e

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12 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

R1 R2

R3

R4 R5

R6 R7

Figura 1.1.4: Refinamento R da particao P da figura 1.1.3.

so se cada conjunto r ∈ R esta contido em algum conjunto p ∈ P. Nestecaso, Rp = r ∈ R : r ⊆ p e uma particao de p. E claro que se R e umrefinamento de P entao diam(R) ≤ diam(P). Se P e Q sao duas quaisquerparticoes do mesmo conjunto R, qualquer particao R de R simultaneamentemais fina do que P e do que Q diz-se um refinamento comum das particoesP e Q. E facil obter um refinamento comum de quaisquer duas particoes domesmo conjunto:

Proposicao 1.1.5. Se P e Q sao particoes de R, entao

R = p ∩ q : p ∈ P, q ∈ Qe um refinamento comum de P e Q.

Se P e Q sao particoes de R em rectangulos, entao o refinamento comummencionado em 1.1.5 e tambem uma particao em rectangulos, porque a in-terseccao de dois rectangulos e sempre um rectangulo. Esta observacao ealias aplicavel a qualquer famılia finita de particoes de R em rectangulos.

P Q R

Figura 1.1.5: Particoes P e Q, e um refinamento comum R.

Se S ⊆ R e um subrectangulo de R, existem particoes P de R em rec-tangulos que incluem o rectangulo S. A figura 1.1.6 ilustra esta ideia, queimplica em particular:

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1.1. Rectangulos e Conjuntos Elementares em RN 13

S

R

R3 = S

R1 R2

R4

R5

Figura 1.1.6: Rectangulos S ⊆ R e uma particao P de R com S ∈ P.

Proposicao 1.1.6. Se S e R sao rectangulos, entao R\S (1) e uma uniaofinita de rectangulos.

No que se segue, referimo-nos com frequencia a conjuntos que sao unioes

finitas de rectangulos (e muito facil mostrar, com base na proposicao1.1.6, que estes rectangulos podem sempre ser supostos disjuntos, como ereferido no exercıcio 4).

Definicao 1.1.7 (As classes U(RN ) e E(RN )).

a) U(RN ) e a classe formada pelos conjuntos que sao unioes finitas derectangulos-N ,

b) E(RN ) e a classe formada pelos conjuntos limitados em U(RN ), ouseja, pelos conjuntos que sao unioes finitas de rectangulos limitados.Os conjuntos em E(RN ) dizem-se elementares,

c) Mais geralmente, se S ⊆ RN entao U(S) =E ∈ U(RN ) : E ⊆ S

e

analogamente E(S) =E ∈ E(RN ) : E ⊆ S

.

A proposicao seguinte regista que as classes U(RN ) e E(RN ) sao fechadasem relacao as operacoes de uniao, interseccao e diferenca de conjuntos. Arespectiva demonstracao e o exercıcio 9.

Proposicao 1.1.8. Se C = U(RN ) ou C = E(RN ) entao

A,B ∈ C =⇒ A ∪B,A ∩B,A\B ∈ C.

E facil definir o conteudo de qualquer conjunto em U(RN ). Basta decom-por o conjunto em causa numa uniao finita de rectangulos disjuntos, i.e.,escolher uma sua particao em rectangulos, e adicionar os conteudos dessesrectangulos. Por exemplo,

• Se A = [0, 1]∪]3,+∞[ entao c1(A) = 1 + ∞ = ∞, e

1Se X e Y sao conjuntos, X\Y = x ∈ X : x 6∈ Y e a diferenca de X e Y .

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14 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

• Se B = [0, 1]∪]2, 5[, entao c1(B) = 1 + 3 = 4.

E no entanto evidente que a decomposicao de um dado conjunto S numauniao finita de rectangulos disjuntos pode ser feita de multiplas maneiras,como ilustrado na figura 1.1.7. Portanto, a ideia referida so pode ser a basede uma correcta definicao se a soma obtida depender apenas do proprioconjunto S, e nao da particao utilizada para decompor S em subrectangulos.A demonstracao deste facto assenta somente na aditividade do conteudo pararectangulos, expressa em 1.1.3, e esta feita imediatamente a seguir.

Figura 1.1.7: Particoes distintas do conjunto S, e um refinamento comum.

Proposicao 1.1.9. Se P e Q sao particoes de S ∈ U(RN ) em rectangulos,entao ∑

p∈P

cN (p) =∑

q∈Q

cN (q).

Demonstracao. A famılia R = p ∩ q : p ∈ P, q ∈ Q e um refinamento co-mum das particoes P e Q (ver figura 1.1.7). Observamos que

• Fixado p ∈ P, a famılia Rp = r ∈ R : r ⊆ p e uma particao de p e

• Fixado q ∈ Q, a famılia Rq = r ∈ R : r ⊆ q e uma particao de q.

Segue-se de 1.1.3 que cN (p) =∑

r∈Rp

cN (r) e cN (q) =∑

r∈Rq

cN (r).

Por agrupamento das parcelas das somas finitas em causa, temos

p∈P

cN (p) =∑

p∈P

r∈Rp

cN (r) =∑

r∈R

cN (r) =∑

q∈Q

r∈Rq

cN (r) =∑

q∈Q

cN (q).

Concluımos que a definicao seguinte nao e ambıgua e generaliza 1.1.2.

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1.1. Rectangulos e Conjuntos Elementares em RN 15

Definicao 1.1.10. Se U ∈ U(RN ) o conteudo-N de U e dado por

cN (U) =∑

r∈R

cN (r),

onde R e uma qualquer particao finita de U em rectangulos-N .

A proposicao seguinte regista propriedades do conteudo em U(RN ).

Proposicao 1.1.11. Se A,B e C sao unioes finitas de rectangulos-N entao:

a) Aditividade: A ∩B = ∅ =⇒ cN (A ∪B) = cN (A) + cN (B),

b) Positividade: cN (A) ≥ 0,

c) Monotonia: A ⊆ B =⇒ cN (A) ≤ cN (B),

d) Subaditividade: A ⊆ B ∪C =⇒ cN (A) ≤ cN (B) + cN (C).

Demonstracao. a) Se P e Q sao particoes finitas dos conjuntos A e B emrectangulos, entao R = P ∪Q e uma particao de A ∪B e temos

cN (A ∪B) =∑

r∈R

cN (r) =∑

p∈P

cN (r) +∑

q∈Q

cN (q) = cN (A) + cN (B).

b) E evidente que cN (A) ≥ 0.

As propriedades c) e d) nesta proposicao podem obter-se de a) e b) e daspropriedades indicadas em 1.1.8. Temos assim:

c) Se A ⊆ B entao B = A ∪ (B\A), onde B\A e disjunto de A e B\A euma uniao finita de rectangulos-N . Segue-se de a) e b) que

cN (B) = cN (A) + cN (B\A) ≥ cN (A).

d) B ∪C e C\B sao unioes finitas de rectangulos e B ∪C = B ∪ (C\B),onde B e C\B sao disjuntos. Segue-se de a), b) e c) que

cN (A) ≤ cN (B ∪ C) = cN (B) + cN (C\B) ≤ cN (B) + cN (C).

A afirmacao seguinte pode ser encarada como uma outra generalizacaoda definicao 1.1.2, ou como uma generalizacao da regra elementar “o volumede um prisma e o produto da area da base pela altura”. Na realidade, de umponto de vista intuitivo, deve ser tao natural e “obvia” como a propriedadede aditividade, mesmo quando N + M > 3. De um ponto de vista maisformal, e na verdade uma versao muito preliminar do Teorema de Fubini,que discutiremos repetidas vezes no que se segue.

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16 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Proposicao 1.1.12 (Conteudo do Produto Cartesiano). Se A ∈ U(RN ) eB ∈ U(RM ), entao A× B ∈ U(RN+M ) e cN+M (A ×B) = cN (A) × cM (B).Alem disso, se A e B sao elementares entao A×B e tambem elementar.

Demonstracao. O resultado e evidente quando A e B sao rectangulos. Bastanotar que se A = I1 × · · · × IN e B = J1 × · · · × JM , onde os conjuntos Ii eJj sao intervalos em R, entao

A×B = I1 × · · · × IN × J1 × · · · × JM e um rectangulo-(N +M), e

cN+M (A×B) = c(I1)× · · · × c(IN )× c(J1)× · · · × c(JM ) = cN (A)× cM (B).

Se P e Q sao particoes finitas dos conjuntos A e B em rectangulos, e facilverificar que R = p× q : p ∈ P, q ∈ Q e uma particao finita de A×B emrectangulos, e em particular A×B ∈ U(RN+M ). Temos assim

cN (A)cM (B) =

p∈P

cN (p)

q∈Q

cM (q)

=∑

p∈P

q∈Q

cN (p) cM (q) =

=∑

p∈P

q∈Q

cN+M (p× q) =∑

r∈R

cN+M (r) = cN+M (A×B)

S

S + x

xTranslacao de S

Reflexao de S

Figura 1.1.8: Translacao e reflexao (em x2 = 0) do conjunto elementar S.

Convencionamos aqui que, se S ⊆ RN e x ∈ RN , entao S + x designaa translacao y + x : y ∈ S. Notamos que qualquer translacao de umrectangulo e um rectangulo com o conteudo do rectangulo original. A mesmaobservacao e verdadeira para qualquer reflexao de um rectangulo numqualquer dos hiperplanos de equacao xk = 0. A proxima proposicao forma-liza esta ideia, ilustrada na figura 1.1.8 para conjuntos elementares. A suademonstracao e o exercıcio 17.

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1.1. Rectangulos e Conjuntos Elementares em RN 17

Proposicao 1.1.13 (Invariancia sob Translacoes e Reflexoes). Se E ∈U(RN ) e T e uma translacao de E ou a reflexao de E num dos hiperplanosxk = 0, entao T ∈ U(RN ) e cN (T ) = cN (E). Se E e elementar entao T eigualmente elementar.

Se I e um intervalo limitado de extremos a < b e b − a > 2ε > 0, osintervalos F = [a+ε, b−ε] e U =]a−ε, b+ε[ sao, respectivamente, fechado eaberto, F ⊆ I ⊆ U e c(U\F ) = 4ε. Dizemos por isso que qualquer intervalopode ser aproximado, por defeito, por um intervalo fechado, e por excesso,por um intervalo aberto, com “erro arbitrariamente pequeno”. A genera-lizacao desta afirmacao para conjuntos elementares fica igualmente comoexercıcio (18):

cN (S) − ε cN (S) + ε

cN (S)

cN (F ) cN (U)

cN (F ) + εcN (U) − ε

Proposicao 1.1.14. Se S ⊆ RN e elementar e ε > 0, existem conjuntoselementares F (fechado) e U (aberto) tais que F ⊆ S ⊆ U e cN (U\F ) < ε,donde cN (S) − ε < cN (F ) ≤ cN (S) ≤ cN (U) < cN (S) + ε.

Exercıcios.

1. Quantos vertices, arestas e faces tem um rectangulo-N?

2. Existem 4 intervalos limitados com extremos a e b, que sao [a, b], ]a, b], [a, b[,e ]a, b[. Quantos rectangulos-N limitados existem com os mesmos vertices?

3. Existem conjuntos ilimitados E ⊂ RN com conteudo finito arbitrario?

4. Demonstre a proposicao 1.1.6 e mostre que qualquer conjunto que seja umauniao finita de rectangulos e uma uniao finita de rectangulos disjuntos.

5. Calcule c4(U), onde U = R1 ∪ R2 ∪ R3, R1 = [0, 6] × [0, 5] × [0, 6] × [0, 10],R2 = [−1, 4]× [2, 6]× [3, 8]× [4, 12] e R3 = [−2, 3]× [−1, 4]× [−1, 4]× [−2, 7].

6. Mostre que se E ∈ U(RN ) entao cN (∂E) = 0. Conclua que cN (E) =cN (int(E)) e portanto int(E) = ∅ ⇔ cN (E) = 0.(2)

2Se X ⊆ RN , designamos a fronteira de X por ∂X e o fecho de X por X. Ointerior e o exterior de X designam-se, respectivamente, por int(X) e ext(X). Temos,em particular, que ∂X = X\int(X).

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18 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

7. Mostre que se E ∈ U(R) entao c(E) = 0 se e so se E e finito.

8. Mostre que se E ⊂ RN e infinito numeravel(3) entao E 6∈ U(RN ).

9. Demonstre a proposicao 1.1.8.

10. Generalize as alıneas 1.1.11 a) e 1.1.11 d) para famılias finitas de conjuntos.

11. Sejam A e B rectangulos e considere R = A×B. Mostre que

a) Se RA e RB sao particoes de A e deB, entao R = a× b : a ∈ RA, b ∈ RBe uma particao de R.

b) Se P e uma particao qualquer de R em rectangulos, existe um refinamentoR para a particao P do tipo referido em a).

12. Mostre que, se C ∈ U(RN+M ), entao existem rectangulos-N R1, · · · , Rn,disjuntos e conjuntos Bi ∈ U(RM ) tais que

C =

n⋃

i=1

Ri ×Bi.

13. Seja I ⊆ R um intervalo e I = I1, I2, · · · , In uma particao finita de I emintervalos. Prove que

c(I) =∑

i∈Ic(i) =

n∑

k=1

c(Ik).

14. Seja R = I × J ⊆ R2 um rectangulo-2, onde I e J sao intervalos emR. Dadas particoes P = I1, I2, · · · , In de I e Q = J1, J2, · · · , Jm deJ , onde os Ik e Jj sao intervalos, definimos ∆xk = c(Ik) e ∆yj = c(Jj) eR = i× j : i ∈ P , j ∈ Q. Prove que

c2(R) =

n∑

k=1

m∑

j=1

∆xk∆yj =∑

r∈Rc2(r).

15. Sendo R = I × J ⊆ R2 um rectangulo, onde I e J sao intervalos em R, e Puma particao de R em rectangulos, prove que

c2(R) =∑

p∈Pc2(p).

Sugestao: Mostre que P tem um refinamento R do tipo referido no exer-cıcio anterior e no exercıcio 11. Aplique em seguida o resultado anterior aorectangulo R e a cada rectangulo p ∈ P .

3O conjunto X e numeravel se e so se existe uma funcao sobrejectiva φ : N → X,sendo que X pode ser finito ou infinito. X e infinito numeravel se e so existe uma bijeccaoφ : N → X, e dizemos neste caso que φ e uma enumeracao dos elementos de X.

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1.2. Algebras, Semi-Algebras e Funcoes Aditivas 19

16. Demonstre 1.1.3. sugestao: Proceda por inducao em N , generalizando asideias nos exercıcios 14 e 15 e aproveitando os exercıcios 11 e 13.

17. Demonstre a proposicao 1.1.13.

18. Demonstre a proposicao 1.1.14.

1.2 Algebras, Semi-Algebras e Funcoes Aditivas

Introduzimos nesta seccao um conjunto de nocoes abstractas, mas relativa-mente elementares, que sao uteis no estudo de funcoes de conjuntos e saoextensivamente utilizadas na teoria da medida. Estas ideias serao aindaenriquecidas e completadas nas seccoes 1.6 e 2.1. Comecamos por uma clas-sificacao para classes de conjuntos, parcialmente inspirada em propriedadesdas classes E(RN ) e U(RN ).

Definicao 1.2.1 (Algebras e Semi-algebras de Conjuntos). Seja X um con-junto arbitrario e S uma famılia nao-vazia de subconjuntos de X. S diz-seuma semi-algebra (em X) se e so se:

a) Fecho em relacao a uniao: A,B ∈ S ⇒ A ∪B ∈ S, e

b) Fecho em relacao a diferenca: A,B ∈ S ⇒ A\B ∈ S.

A semi-algebra S diz-se uma algebra (em X) se, alem disso,

c) X ∈ S.

Exemplos 1.2.2.

1. As classes U(RN ) e E(RN ) sao semi-algebras, de acordo com 1.1.8.

2. A classe E(RN ) nao e uma algebra, porque RN nao e elementar.

3. A classe U(RN ) e uma algebra, porque RN e um rectangulo.

4. Se S ⊆ RN , a classe E(S) e uma semi-algebra. Se S e um conjunto elementar,entao E(S) e uma algebra em S.

5. A classe dos rectangulos em RN nao e uma semi-algebra em RN , porque naoe fechada nem para a uniao nem para a diferenca.

6. A classe dos conjuntos abertos em RN nao e uma semi-algebra em RN , porquenao e fechada para a diferenca (apesar de ser fechada para a uniao e a intersec-cao). O mesmo se passa com a classe dos conjuntos fechados em RN .

7. Sendo X um qualquer conjunto, a classe de todos os subconjuntos de X , quedesignamos P(X), e a maior algebra de conjuntos em X .

8. A classe ∅, X e a menor algebra de conjuntos em X .

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20 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

O proximo teorema indica propriedades algebricas que sao comuns aqualquer semi-algebra de conjuntos.

Teorema 1.2.3. Seja S uma semi-algebra no conjunto X. Temos, entao:

a) ∅ ∈ S.

b) Fecho em relacao a interseccao: A,B ∈ S ⇒ A ∩B ∈ S.

c) Fecho em relacao a unioes e interseccoes finitas:

A1, A2, · · · , An ∈ S ⇒n⋃

k=1

Ak,n⋂

k=1

Ak ∈ S.

Se S e uma algebra em X, temos ainda:

d) Fecho em relacao a complementacao: A ∈ S ⇒ Ac ∈ S.(4)

Demonstracao. a) A classe S e por definicao nao-vazia. Sendo A ∈ S, temos∅ = A\A ∈ S.

b) A ∩B = A\(A\B) ∈ S.

c) E facilmente demonstravel por inducao.

d) Como por hipotese X ∈ S, concluımos que Ac = X\A ∈ S.

Alguma da terminologia definida a seguir ja foi informalmente utilizadana seccao anterior. Note-se que nos referimos a funcoes de conjuntos com va-lores em [0,+∞], como por exemplo o conteudo-N na classe dos rectangulos,ou com valores reais.

Definicao 1.2.4 (Propriedades de funcoes de conjuntos). Seja λ : S → Yuma funcao, onde S e uma classe de subconjuntos de um conjunto fixo Xe Y = R ou Y = [0,+∞]. Supondo que as afirmacoes seguintes sao validaspara quaisquer conjuntos A,B,C ∈ S, a funcao de conjuntos λ diz-se:

a) Aditiva: Se A∪B ∈ S e A e B disjuntos ⇒ λ(A∪B) = λ(A)+λ(B).

b) Subaditiva: Se C ⊆ A ∪B ⇒ λ(C) ≤ λ(A) + λ(B).

c) Monotona: Se A ⊆ B ⇒ λ(A) ≤ λ(B).

d) Nao-negativa: Se λ(A) ≥ 0.

Exemplos 1.2.5.

1. Conteudo-N : O conteudo-N , tal como o definimos em E(RN ), e uma funcaoaditiva, subaditiva, monotona e nao-negativa.

4Quando o conjunto “universal” X e evidente do contexto da discussao, usamos anotacao Ac = X\A.

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1.2. Algebras, Semi-Algebras e Funcoes Aditivas 21

2. Cardinal: Dado um conjunto Y , o cardinal de Y designa-se por #(Y ) ee igual ao numero de elementos de Y , se Y e finito, ou igual a +∞ , se Y einfinito. Qualquer que seja o conjunto X , o cardinal e uma funcao de conjuntosaditiva, subaditiva, monotona e nao-negativa definida na classe P(X).

3. Probabilidades: Na Teoria das Probabilidades, associamos uma probabili-dade, que e um numero entre 0 e 1, a acontecimentos. Os acontecimentos saosubconjuntos de um conjunto fixo X e formam uma algebra A (porque?). Aprobabilidade p : A → [0, 1] e portanto uma funcao de conjuntos, que e sempreaditiva, subaditiva, monotona e nao-negativa. Por exemplo, o conjunto X , quee um acontecimento certo, tem probabilidade 1, ou seja, p(X) = 1.

4. Muitas grandezas fısicas, ditas extensivas, como a massa, carga electrica,energia, entropia, momento linear, etc., podem ser representadas por funcoesaditivas de conjuntos. Os conjuntos em causa sao normalmente regioes doespaco ou partes de um dado corpo material.

5. Introduzimos aqui uma famılia de exemplos que referiremos com frequencianos Capıtulos seguintes. Consideramos:

• A classe C formada pelos intervalos do tipo ]a, b] com −∞ < a ≤ b <∞,

• Uma qualquer funcao real f : R → R, e

• A funcao de conjuntos λ : C → R dada por λ(]a, b]) = f(b) − f(a).

A classe F(R) formada pelas unioes finitas de intervalos em C e uma semi-algebra, como e facil verificar. Para alargar a definicao de λ a toda a classeF(R), basta observar que qualquer conjunto A ∈ F(R) e uma uniao finita deintervalos disjuntos I1, I2, · · · , In em C e tomar

λ(A) =n∑

k=1

λ(Ik).

(Para mostrar que esta definicao nao e ambıgua, observe que λ e obviamenteaditiva em C e adapte o argumento que utilizamos em 1.1.9.). E ainda imediatoque

• λ e aditiva em F(R) e

• λ e nao-negativa, monotona e subaditiva se e so se f e crescente.

Casos tıpicos desta famılia de exemplos sao as distribuicoes de probabilidade narecta real, onde e comum escolher para f a chamada distribuicao (comulativa)de probabilidade. Neste caso, o valor f(x) e a probabilidade do acontecimentoE = X ∈ R : X ≤ x, e por isso f e uma funcao crescente em R tal que0 ≤ f ≤ 1. E tambem claro que f(b)−f(a) e a probabilidade do acontecimentoA = X ∈ R : a < X ≤ b, que podemos designar por λ(]a, b]).

O proprio conteudo de Jordan (restrito a classe F(R)) resulta de escolherf(x) = x.

6. Os seguintes casos especıficos do exemplo anterior sao muito simples masinteressantes:

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22 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

• Se f e a funcao de Heaviside(5) (a funcao caracterıstica do intervalo[0,+∞[), entao λ e o impulso, medida ou distribuicao de dirac(6).O calculo de λ e imediato:

λ(A) =

1, se 0 ∈ A0, se 0 6∈ A

• Se f(x) = int(x), onde int(x) = maxk ∈ Z : k ≤ x e a parte inteira

de x, entao λ(A) conta os inteiros que pertencem a A, i.e., λ(A) =#(A ∩ Z) e λ tem o pitoresco nome de pente de dirac.

Estes exemplos sao frequentemente utilizados na Fısica para representar dis-tribuicoes de massas (ou cargas) pontuais unitarias numa recta. Repare-se depassagem que em qualquer destes exemplos e facil alargar a definicao de λa classe de todos os subconjuntos de R, como e igualmente simples adaptaras respectivas definicoes a contextos mais gerais (e.g., referindo outros pontosque nao 0 e outros conjuntos que nao Z, substituindo R por outro qualquerconjunto X , etc.).

7. Continuando o exemplo 5, note-se que nao so e verdade que qualquer funcaof : R → R determina uma funcao de conjuntos λ aditiva na semi-algebraF(R), como e igualmente verdade que qualquer funcao aditiva λ definida efinita em F(R) determina uma correspondente funcao f , que na realidade eunica a menos de uma constante aditiva arbitraria. Para obter f , podemossempre tomar

f(x) =

+λ(]0, x], se x ≥ 0−λ(]x, 0]), se x < 0

AB

A ∩BA\B

Figura 1.2.1: λ(A) = λ(A ∩B) + λ(A\B)

Indicamos abaixo propriedades comuns a quaisquer funcoes aditivas de-finidas em semi-algebras, de que a figura 1.2.1 ilustra um exemplo.

Teorema 1.2.6. Se λ : S → Y e uma funcao aditiva definida na semi-algebra S e Y = R ou Y = [0,∞], entao:

5De Oliver Heaviside (1850 - 1925), engenheiro, fısico e matematico ingles.6Do celebre fısico ingles Paul Adrien Maurice Dirac (1902 - 1984), premio Nobel em

1933. Foi um dos distintos ocupantes da Catedra Lucasiana da Universidade de Cambridge(1932-1969), hoje ocupada pelo famoso fısico Stephen Hawking. Terminou a sua vida nosEstados Unidos, onde ensinou nas Universidades de Miami e do Estado da Florida.

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1.2. Algebras, Semi-Algebras e Funcoes Aditivas 23

a) λ(∅) = 0, ou λ(A) = +∞ para qualquer A ∈ S.(7)

b) Se A,B ∈ S entao (8)

λ(A ∩B) + λ(A ∪B) = λ(A) + λ(B) e λ(A) = λ(A ∩B) + λ(A\B).

c) λ e nao-negativa ⇐⇒ λ e monotona ⇐⇒ λ e subaditiva.

d) Se A1, A2, · · · , An ∈ S e A1, A2, · · · , An sao disjuntos entao

λ(

n⋃

k=1

Ak) =

n∑

k=1

λ(Ak).

Demonstracao. a) Se A ∈ S, segue-se, por aditividade, que

λ(A) = λ(A) + λ(∅).

Se existe algum conjunto A tal que λ(A) 6= +∞, e claro que λ(∅) = 0.b) A\B e B sao disjuntos e A ∪B = (A\B) ∪B, donde

(1) λ(A ∪B) = λ(A\B) + λ(B).

Analogamente, A ∩B e A\B sao disjuntos e A = (A ∩B) ∪ (A\B), donde

(2) λ(A) = λ(A ∩B) + λ(A\B).

Concluımos de (1) e (2) que

λ(A ∩B) + λ(A ∪B) = λ(A ∩B) + λ(A\B) + λ(B) = λ(A) + λ(B).

c) Se λ e nao-negativa e A ⊇ B, entao λ(A\B) ≥ 0 e

λ(A) = λ(A ∩B) + λ(A\B) = λ(B) + λ(A\B) ≥ λ(B),

i.e., λ e monotona. Se λ e monotona e C ⊆ A ∪B entao

λ(C) ≤ λ(A ∪B) = λ(A ∪ (B\A)) = λ(A) + λ(B\A) ≤ λ(A) + λ(B),

ou seja, λ e subaditiva. Finalmente, se λ e subaditiva e como ∅ ⊆ A ∪ Aentao λ(∅) ≤ 2λ(A) e λ e nao-negativa.

d) A demonstracao fica como exercıcio.

No caso das funcoes subaditivas, deixamos como exercıcio obter:

7Em geral, consideramos apenas funcoes λ que nao sao constantes e iguais a +∞.8Estas identidades devem ser manipuladas com cuidado quando λ toma valores infini-

tos. Note que so podemos escreve-las na forma λ(A ∪ B) = λ(A) + λ(B) − λ(A ∩ B) eλ(A\B) = λ(A) − λ(A ∩B) quando nao conduzem a indeterminacoes do tipo (∞−∞).

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24 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Teorema 1.2.7. Se λ : S → Y e uma funcao subaditiva definida na semi-algebra S e Y = R ou Y = [0,∞], entao:

a) λ e nao-negativa,

b) A1, A2, · · · , An ∈ S ⇒ λ(

n⋃

k=1

Ak) ≤n∑

k=1

λ(Ak), e

c) Se λ(∅) = 0 entao λ e monotona.

Exercıcios.

1. Sendo A uma classe de subconjuntos de X , prove que A e uma algebra emX se e so se A e nao-vazia, fechada em relacao a uniao (ou interseccao), e acomplementacao.

2. Pode substituir-se a uniao pela interseccao na definicao 1.2.1?

3. Mostre que a classe S dos conjuntos limitados e uma semi-algebra em RN .Considere a funcao λ : S → R, dada por

λ(A) = diam(A) = sup ‖x− y‖ : x, y ∈ A , para A ∈ S.

Quais das propriedades referidas em 1.2.4 sao satisfeitas por λ?

4. Os subconjuntos finitos do conjunto X formam uma semi-algebra? Umaalgebra?

5. Sendo R um rectangulo-N limitado, mostre que E(R) e a menor algebra emR que contem os subrectangulos de R.

6. Demonstre as afirmacoes feitas no texto a respeito do exemplo 1.2.5.5.

7. Generalize o exemplo 1.2.5.5 para o plano R2, sendo agora f uma funcao deduas variaveis.

8. Considere a seguinte experiencia aleatoria, para seleccao de um numero nointervalo [0, 6]. Primeiro, usamos uma moeda para decidir um de dois metodos:no caso “caras”, escolhemos ao acaso um numero no intervalo [0, 6] (com umadensidade de probabilidade constante); no caso “coroas”, rolamos um dadopara escolher um numero do conjunto 1, 2, 3, 4, 5, 6. Descreva a distribuicaode probabilidade λ associada a esta experiencia, calculando a correspondentefuncao de distribuicao cumulativa f .

9. Conclua a demonstracao de 1.2.6 e prove 1.2.7.

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1.3. Conjuntos Jordan-Mensuraveis 25

1.3 Conjuntos Jordan-Mensuraveis

A teoria desenvolvida no inıcio deste Capıtulo e manifestamente demasiadopobre para esclarecer de modo satisfatorio a nocao de conteudo de um con-junto. Afinal de contas, uma regiao tao simples como um triangulo nao eelementar e portanto por enquanto ainda nao definimos a sua area! Nestaseccao, definimos o conteudo-N para os conjuntos Jordan-mensuraveis(9),que formam uma classe bastante mais extensa do que a classe dos conjuntoselementares. Veremos em particular que muitas figuras geometricas comuns(triangulos, cırculos, elipses, etc.) sao conjuntos Jordan-mensuraveis. Ex-ploramos aqui a aproximacao de conjuntos nao-elementares por conjuntoselementares, tal como ilustrado na figura 1.3.1 para um cırculo. Note-se

Figura 1.3.1: 2 < π < 4

que esta ideia de aproximacao, se bem que formalizada por Jordan e Peanoapenas no final do seculo XIX, e na realidade uma descoberta fundamentalmuito antiga, usualmente atribuıda a Arquimedes(10).

Observe-se a este respeito que, se J ⊆ RN e um conjunto limitado, entaoexistem conjuntos elementares K e U tais que K ⊆ J ⊆ U. Os conjuntos K eU aproximam J , respectivamente, por defeito e por excesso. Por esta razao,qualquer definicao “razoavel” de cN (J) deve conduzir as desigualdades

1.3.1. cN (K) ≤ cN (J) ≤ cN (U).

Como K e U sao elementares, sabemos de 1.1.11 c) que

K ⊆ J ⊆ U =⇒ K ⊆ U =⇒ cN (K) ≤ cN (U).

Tomando nesta desigualdade o conjunto K como fixo, concluımos que, seK ∈ E(J), entao

cN (K) e minorante do conjuntocN (U) : U ∈ E(RN ), J ⊆ U

.

9De Camille M.E. Jordan (1838 - 1922), matematico frances, professor da EscolaPolitecnica de Paris. As ideias apresentadas nesta seccao foram, no entanto, introduzidaspelo matematico italiano Giuseppe Peano, 1858-1932, professor da Universidade de Turim.

10Arquimedes, matematico e engenheiro, viveu em Siracusa (Sicılia) em 287-212 A.C.,no tempo em que esta cidade era uma colonia grega. Foi, certamente, um dos mais geniaiscientistas de todos os tempos.

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26 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

K J

U

Figura 1.3.2: K e U sao aproximacoes de J .

Como o ınfimo de um conjunto e o maior dos seus minorantes, temos

cN (K) ≤ infcN (U) : U ∈ E(RN ), J ⊆ U

.

A desigualdade anterior e valida para qualquer K ∈ E(J), ou seja,

infcN (U) : U ∈ E(RN ), J ⊆ U

e majorante de cN (K) : K ∈ E(J) .

O supremo de um conjunto e o menor dos seus majorantes, e portanto

sup cN (K) : K ∈ E(J) ≤ infcN (U) : U ∈ E(RN ), J ⊆ U

.

O supremo e o ınfimo mencionados acima merecem designacao especial:

Definicao 1.3.2 (Conteudo Interior e Exterior). Se J ⊆ RN e um conjuntolimitado, o seu conteudo interior, designado cN (J), e o seu conteudo

exterior, designado cN (J), sao dados por

cN (J) = sup cN (K) : K ∈ E(J) e

cN (J) = infcN (U) : U ∈ E(RN ), J ⊆ U

.

Notamos agora que se cN (J) satisfaz 1.3.1 entao temos igualmente

cN (J) ≤ cN (J) ≤ cN (J).

O ponto de partida para a teoria de Jordan e a seguinte observacao, genialpela sua simplicidade:

Se os conteudos interior e exterior de J sao iguais, entao oconteudo do conjunto J so pode ser igual a esse valor comum.

Esta e a ideia formalizada na proxima definicao.

Definicao 1.3.3 (Conteudo de Jordan). (11) Se J ⊆ RN e limitado,

11Esta definicao foi primeiro apresentada por Peano em 1887 num trabalho muito origi-nal que inclui, igualmente pela primeira vez, as nocoes de interior, exterior e fronteira deum subconjunto de RN e uma definicao abstracta de “funcao aditiva de conjuntos”, quePeano chamava “funcao distributiva”. O correspondente artigo de Jordan e de 1892.

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1.3. Conjuntos Jordan-Mensuraveis 27

a) Dizemos que J e jordan-mensuravel se e so se cN (J) = cN (J).

b) Neste caso, o conteudo de jordan de J , designado cN (J), e dadopor cN (J) = cN (J) = cN (J).

c) A classe dos conjuntos Jordan-mensuraveis de RN designa-se por J (RN ).Mais geralmente, a classe de todos os subconjuntos Jordan-mensuraveisde R ⊆ RN designa-se por J (R).

Se o proprio conjunto J referido em 1.3.3 e elementar, e indispensavelverificar que esta definicao e compatıvel com a que apresentamos em 1.1.10para estes conjuntos. Por outras palavras, e necessario provar que:

• Os conjuntos elementares sao Jordan-mensuraveis e

• O respectivo conteudo pode ser indistintamente determinado usando1.1.10 ou 1.3.3.

Para isso, supomos J elementar e tomamos K = J = U , para observar que

cN (K) ≤ cN (J) ≤ cN (J) ≤ cN (U) = cN (K).

Quando J nao e elementar, a definicao 1.3.3 pode ser difıcil de aplicar direc-tamente, porque exige o calculo explıcito dos conteudos interior e exteriorde J . E frequentemente mais pratico utilizar a proposicao seguinte:

Teorema 1.3.4. J ∈ J (RN ) se e so se existem para cada ε > 0 conjuntos

K,U ∈ E(RN ) tais que K ⊆ J ⊆ U e cN (U\K) < ε.

K e U podem ser supostos fechados ou abertos e temos ainda que

cN (U) − ε < cN (K) ≤ cN (J) ≤ cN (U) < cN (K) + ε.

Demonstracao. Supomos que ε > 0 e os conjuntos elementares K e U saotais que

K ⊆ J ⊆ U e cN (U\K) = cN (U) − cN (K) < ε.

Como cN (K) ≤ cN (J) ≤ cN (J) ≤ cN (U), temos

cN (J) − cN (J) ≤ cN (U) − cN (K) < ε, donde

0 ≤ cN (J) − cN (J) < ε

Sendo esta ultima desigualdade valida para qualquer ε > 0, e claro quecN (J) = cN (J), i.e., J ∈ J (RN ). Deixamos a conclusao da demonstracaopara o exercıcio 4.

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28 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

JK

U

cN (K)

cN (J)

cN (U)cN (J) + εcN (J) − ε

cN (K) + εcN (U) − ε

Figura 1.3.3: Aproximacao de um conjunto Jordan-mensuravel por conjun-tos elementares.

Concluımos que os conjuntos Jordan-mensuraveis sao os conjuntos quepodem ser aproximados por defeito e por excesso por conjuntos elementares,“com erro arbitrariamente pequeno”. Pode tambem ser util a seguinte al-ternativa a 1.3.4, cuja demonstracao deixamos para o exercıcio 5:

Teorema 1.3.5. J ∈ J (RN ) se e so se existem sucessoes de conjuntoselementares Kn e Un tais que Kn ⊆ J ⊆ Un e cN (Un\Kn) → 0 donde

limn→+∞

cN (Kn) = limn→+∞

cN (Un) = cN (J).

Exemplo 1.3.6.

Um dos problemas originalmente resolvidos por Arquimedes foi o do calculoda area da regiao entre um arco da parabola y = x2 e o eixo dos xx. Mostramosaqui que esta regiao e Jordan-mensuravel, deixando o calculo da sua area parao exercıcio 2. Na verdade, provamos a seguir que a regiao de ordenadas dequalquer funcao monotona e sempre Jordan-mensuravel, se bem que o calculoda respectiva area possa ser um problema de mais difıcil resolucao.

Considere-se a figura 1.3.4. A regiao de ordenadas da funcao nao-negativa fno intervalo [a, b] e o conjunto

Ω = (x, y) : a ≤ x ≤ b, 0 < y < f(x) .Supomos que f e crescente, mas o argumento e aplicavel com modificacoesevidentes a funcoes decrescentes. Fixado n ∈ N, dividimos o intervalo [a, b]

em n subintervalos de comprimento ∆x = (b−a)n , utilizando pontos igualmente

espacados a = x0 < x1 < · · · < xn = b. Definimos intervalos Ik e rectangulosauxiliares Ak e Bk para 1 ≤ k ≤ n, tomando

Ik = [xk−1, xk], Ak = Ik×]0, f(xk−1)[ e Bk = Ik×]0, f(xk)[.

Sejam Kn e Un os conjuntos elementares dados por

Kn =

n⋃

k=1

Ak e Un =

n⋃

k=1

Bk donde Kn ⊆ Ω ⊆ Un.

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1.3. Conjuntos Jordan-Mensuraveis 29

f(b)

f(a)∆x = b−a

n

f(b

)−f(a

)

a b

Ak

Bk

Figura 1.3.4: A regiao de ordenadas de f e Jordan-mensuravel.

Como a figura 1.3.4 sugere, e facil verificar que

c2(Un\Kn) = (f(b) − f(a))∆x = (f(b) − f(a))(b − a)

n→ 0.

Segue-se de 1.3.5 que Ω e Jordan-mensuravel.

O argumento anterior pode ser adaptado para provar que triangulos,cırculos e, em geral, regioes limitadas por conicas e/ou segmentos de rectasao Jordan-mensuraveis. O proximo exemplo ilustra o calculo do compri-mento de subconjuntos da recta real R.

Exemplo 1.3.7.

Consideramos o conjunto A =

∞⋃

n=1

An, onde An = [1

2n,

1

2n− 1]. A nao e

elementar, mas e natural aproxima-lo pelos conjuntos elementares

KN =N⋃

n=1

An, onde e evidente que KN ⊂ A.

Por outro lado, temos ainda

An ⊆ [0,1

2n− 1] =⇒

∞⋃

n=N+1

An ⊆ [0,1

2N + 1] =⇒ A ⊆ KN ∪ [0,

1

2N + 1].

O conjunto UN = KN ∪ [0, 12N+1 ] e tambem elementar e temos KN ⊆ A ⊆ UN .

Alem disso,

c(UN\KN) = c([0,1

2N + 1]) =

1

2N + 1→ 0, quando N → ∞.

Concluımos de 1.3.5 que A e Jordan-mensuravel, com comprimento dado por

c(A) = limN→∞

c(KN) = limN→∞

N∑

n=1

c(An) =∞∑

n=1

c(An) =∞∑

n=1

1

2n(2n− 1).

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30 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

K3

K6

U3

U6

Figura 1.3.5: Aproximacao do conjunto A por conjuntos elementares.

O seguinte corolario de 1.3.4 e util para identificar conjuntos Jordan-mensuraveis de conteudo nulo. A respectiva demonstracao e o exercıcio 8.

Corolario 1.3.8. Sendo J ⊆ RN , entao J e Jordan-mensuravel e cN (J) = 0se e so se para qualquer ε > 0 existe um conjunto elementar U tal que

J ⊆ U e cN (U) < ε.

Exemplo 1.3.9.

Introduzimos aqui o conjunto de Cantor(12), um exemplo classico queutilizaremos com frequencia neste texto. Este conjunto obtem-se por um en-genhoso processo iterativo de divisao de intervalos em tres subintervalos iguais,seguido da remocao do subintervalo medio, como sugerido na figura 1.3.6.

F0

F1

F2

F3

F4

U1 U2U2 U3U3U3U3 U4U4U4U4U4U4U4U4

Figura 1.3.6: A construcao de Cantor.

Seja I um qualquer intervalo limitado fechado e ψ(I) o intervalo aberto de com-

primento c(I)3 centrado no ponto medio de I. Definimos T (I) = I\ψ(I), e nota-

mos que T (I) e a uniao de dois intervalos limitados fechados e c(T (I)) = 23c(I).

De forma analoga, se E = ∪nk=1Ik e uma uniao finita de intervalos limitados

fechados disjuntos Ik, definimos T (E) = ∪nk=1T (Ik), donde c(T (E)) = 2

3c(E).

12De Georg F.L. Cantor (1845 - 1918), matematico alemao nascido na Russia, criadorda Teoria dos Conjuntos. Este conjunto foi introduzido num trabalho de Cantor publicadoem 1883. Note-se que a primeira referencia a nocao de conteudo exterior, e mesmo o termo“conteudo”, sao igualmente de Cantor, e aparecem numa sua publicacao de 1884.

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1.3. Conjuntos Jordan-Mensuraveis 31

O conjunto de Cantor, que designamos C(I), e dado por

C(I) =

∞⋂

n=0

Fn, onde Fn =

[a, b] , se n = 0,T (Fn−1) se n > 0.

Fn e a uniao de 2n intervalos disjuntos limitados e fechados, cada um comcomprimento c(I)/3n. Fn e portanto um conjunto elementar com c(Fn) =(2/3)nc(I) e temos por razoes evidentes que

C(I) =

∞⋂

n=0

Fn ⊂ Fn e c(Fn) = (2/3)nc(I) → 0.

Segue-se assim do corolario anterior que C(I) e um conjunto Jordan-mensuravelde conteudo nulo. Deixamos para o exercıcio 16 verificar que C(I) e umconjunto fechado e infinito nao-numeravel. Note-se igualmente que se Un =Fn−1\Fn para n ≥ 1 entao Un e um conjunto elementar aberto formado por 2n

intervalos, cada um com comprimento 13n c(I). Temos ainda que U = I\C(I) =

∪∞n=0Un e uma uniao numeravel de intervalos abertos disjuntos.

Exemplo 1.3.10.

E relativamente simples indicar conjuntos que nao sao Jordan-mensuraveis, eapresentamos a seguir o conjunto de Dirichlet (13). Trata-se do conjuntoformado pelos racionais num dado intervalo [a, b] que, para simplificar, supomosser o intervalo [0, 1], ou seja, consideramos o conjunto D = Q ∩ [0, 1].

Qualquer intervalo nao degenerado (i.e., com interior nao-vazio) contem racio-nais e irracionais (14). Portanto, se um conjunto elementar E contem apenasracionais ou apenas irracionais, entao E e formado por intervalos que se re-duzem cada um a um so ponto. Neste caso, E e um conjunto finito e temconteudo nulo. Se D e o conjunto de Dirichlet e K e U sao quaisquer conjuntoselementares tais que K ⊆ D ⊆ U , entao:

• Como K e elementar e so contem racionais, temos c(K) = 0.

• Como V = [0, 1]\U e elementar e so contem irracionais, temos c(V ) = 0e segue-se facilmente que c(U) ≥ 1.

Concluımos que c(U) − c(K) ≥ 1 e portanto D nao e Jordan-mensuravel.

Indicamos em 1.1.8 e 1.1.11 algumas propriedades elementares basicas daclasse U(RN ) e do conteudo-N , tal como definido nesta classe. E importanteverificar que essas propriedades se mantem validas na classe J (RN ).

13Peter Gustav Lejeune Dirichlet (1805-1859), matematico alemao. O exemplo deDirichlet original e a funcao caracterıstica dos racionais, e foi publicado em 1829.

14Dizemos que o conjunto S ⊆ RN e denso em RN se e so se qualquer conjunto abertonao-vazio U ⊆ RN contem pontos de S, i.e., se e so se S = RN . Nesta terminologia, osconjuntos Q e R\Q sao densos em R.

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32 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Proposicao 1.3.11. A classe J (RN ) e uma semi-algebra e o conteudo deJordan e aditivo e nao-negativo em J (RN ). Em particular, cN e monotonoe subaditivo em J (RN ).

Demonstracao. a) Provamos apenas o fecho da classe J (RN ) em relacaoa uniao, deixando o caso da diferenca para os exercıcios. Dados A,B ∈J (RN ), sabemos de 1.3.5 que existem sucessoes de conjuntos elementaresKn,K

′n, Un e U ′

n tais que

Kn ⊆ A ⊆ Un, K′n ⊆ B ⊆ U ′

n, cN (Un\Kn) → 0, cN (U ′n\K ′

n) → 0.

Os conjuntos K ′′n = Kn ∪K ′

n e U ′′n = Un ∪ U ′

n sao elementares, de 1.1.8, eobservamos que

K ′′n ⊆ A ∪B ⊆ U ′′

n e

U ′′n\K ′′

n = [Un\(Kn ∪K ′n)] ∪ [U ′

n\(Kn ∪K ′n)] ⊆ (Un\Kn) ∪ (U ′

n\K ′n).

Temos de 1.1.11 que

0 ≤ cN (U ′′n\K ′′

n) ≤ cN (Un\Kn) + cN (U ′n\K ′

n) → 0,

e concluımos de 1.3.5 que A ∪B e Jordan-mensuravel.

b) Se A e B sao disjuntos, os conjuntos Kn e K ′n mencionados acima sao

igualmente disjuntos e portanto, de acordo com 1.3.5 e 1.1.11, temos

cN (K ′′n) → cN (A ∪B) e cN (K ′′

n) = cN (Kn) + cN (K ′n) → cN (A) + cN (B),

ou seja, cN (A∪B) = cN (A) + cN (B). E evidente que o conteudo de Jordane nao-negativo, e as restantes afirmacoes seguem-se de 1.2.6.

Deixamos para o exercıcio 9 a adaptacao das proposicoes 1.1.12 e 1.1.13aos conjuntos Jordan-mensuraveis, que enunciamos da seguinte forma:

Teorema 1.3.12. Se A ∈ J (RN) e B ∈ J (RM ), entao

a) A×B ∈ J(RN+M ) e cN+M (A×B) = cN (A) × cM (B).

b) Se x ∈ RN entao A+ x ∈ J (RN ) e cN (A+ x) = cN (A).

c) Se C e uma reflexao de A num dos hiperplanos xk = 0, entao C ∈J (RN ) e cN (A) = cN (C).

Os conjuntos Jordan-mensuraveis podem ser tambem caracterizados peloconteudo das respectivas fronteiras. Veremos mais adiante que esta condicaoe um caso particular do resultado que relaciona a integrabilidade de umafuncao com o conjunto de pontos onde essa funcao e descontınua.

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1.3. Conjuntos Jordan-Mensuraveis 33

Teorema 1.3.13. Se J ⊂ RN e limitado, entao

J ∈ J (RN ) ⇐⇒ cN (∂J) = 0.

Em particular, se J e Jordan-mensuravel temos cN (J) = cN (int(J)), etemos ainda cN (J) = 0 se e so se int(J) = ∅.

Demonstracao. Supomos que J ⊂ RN e Jordan-mensuravel. Dado ε > 0,existem conjuntos elementares K e U tais que

K ⊆ J ⊆ U e cN (U\K) < ε.

Supomos sem perda de generalidade que K e aberto e U e fechado. Nestecaso, e facil verificar que

K ⊆ int(J) ⊆ J ⊆ U , donde ∂J ⊆ U\K.

O conjunto U\K e elementar e cN (U\K) < ε, onde ε e arbitrario. Temosportanto, de acordo com 1.3.8, que cN (∂J) = 0. Deixamos para o exercıcio10 a conclusao desta demonstracao.

Exemplos 1.3.14.

1. Note-se do anterior que os conjuntos Jordan-mensuraveis, tal como os con-juntos elementares, nao podem ter simultaneamente interior vazio e conteudopositivo.

2. Vimos ja que o conjunto de Dirichlet nao e Jordan-mensuravel, mas este factoe tambem consequencia do resultado anterior, porque se D = Q ∩ [0, 1] entao∂D = [0, 1], donde c(∂D) = 1 e D nao e Jordan-mensuravel.

Exercıcios.

1. Generalize a desigualdade 2 < π < 4 (ver figura 1.3.1) de R2 para RN .

2. Prove que a area da regiao de ordenadas de f(x) = x2 no intervalo [0, 1] e 13 .

sugestao: Use a identidade:

n∑

k=1

k2 =n3

3+n2

2+n

6.

3. Mostre que J =

1n : n ∈ N

e Jordan-mensuravel e tem conteudo nulo.

4. Conclua a demonstracao do teorema 1.3.4. Porque razao os conjuntos K eU podem ser supostos abertos ou fechados?

5. Demonstre o teorema 1.3.5.

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34 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

6. Seja f : RN → RN dada por f(x) = rx. Prove que se K ∈ J (RN ) entaof(K) ∈ J (RN ) e cN (f(K)) = rN cN (K).

7. Prove que a area de um cırculo de raio r e πr2 e a area da regiao limitadapor uma elipse de semi-eixos a e b e πab.(15)

8. Prove o corolario 1.3.8.

9. Conclua a demonstracao de 1.3.11 e prove o teorema 1.3.12.

10. Conclua a demonstracao de 1.3.13. sugestao: Prove que se o rectanguloR intersecta tanto int(A) como ext(A) entao R intersecta tambem ∂(A).

11. Sendo A ⊆ RN limitado, prove que cN (A) − cN (A) = cN (∂A).

12. Mostre que se A ⊂ RN , tanto A como Ac sao densos em RN e R e umrectangulo-N limitado com cN (R) > 0 entao A ∩ R e R\A nao sao Jordan-mensuraveis (16).

13. Mostre que se J ∈ J (RN ), cN (J) = 0 e K ⊆ J , entao K ∈ J (RN ) ecN (K) = 0.

14. Mostre que, se A ⊆ RN , B ⊆ RM , cN (A) = 0 e A e B sao limitados, entaoA×B e Jordan-mensuravel e cN+M (A×B) = 0.

15. Suponha que K ∈ J (R2) e seja V o solido de revolucao obtido rodando Kem torno do eixo dos xx. Mostre que V ∈ J (R3).

16. Seja C(I) o conjunto de Cantor, tal como definido no exemplo 1.3.9.

a) Prove que C(I) e um conjunto limitado e fechado com interior vazio econclua que C(I) e a fronteira do seu complementar.

b) Verifique que C(I) e Jordan-mensuravel, com conteudo nulo.

c) Mostre que os pontos de C(I) sao os pontos de acumulacao de C(I),razao pela qual C(I) se diz um conjunto perfeito(17).

d) Prove que C(I) e infinito nao-numeravel e nao e elementar. sugestao:Determine uma bijeccao entre C(I) e o conjunto das sucessoes binarias.

e) Mostre que x+ y : x, y ∈ C(I) = [0, 2].

17. Dados vectores a1,a2, · · · ,aN em RN , considere o “paralelepıpedo” P =∑Nk=1 tkak : 0 ≤ tk ≤ 1

. Prove que P e Jordan-mensuravel, com cN (P ) =

| det(a1,a2, · · · ,aN )| (o valor absoluto do determinante da matriz formadapelos vectores a1, · · · ,aN ). sugestao: Mostre que:

15π e naturalmente definido como a area do cırculo de raio 1.16O exemplo de Dirichlet resulta de tomar A = Q e N = 1.17O ponto x ∈ RN e ponto de acumulacao do conjunto A ⊆ RN se e so se qualquer

vizinhanca de x contem pontos de A distintos de x. As nocoes de “ponto de acumulacao”e de “conjunto perfeito” devem-se igualmente a Cantor.

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1.4. O Integral de Riemann 35

a) Se a1, · · · ,aN sao linearmente dependentes, entao cN (P ) = 0.sugestao: Considere equacoes cartesianas para P .

b) P e Jordan-mensuravel porque a sua fronteira tem conteudo nulo.

c) Se Q resulta de P substituindo ai por a′i = ai + λaj , com i 6= j, entao

cN (Q) = cN (P ). sugestao: Suponha primeiro que 0 ≤ λ ≤ 1. Note queneste caso Q\P e uma translacao de P\Q. Considere em seguida λ ∈ N.

d) O conteudo de P e o valor absoluto do determinante indicado. sugestao:Reduza a matriz cujas linhas sao os vectores ai a forma diagonal, peloprocesso de eliminacao de Gauss-Jordan.

18. Seja T : RN → RN uma transformacao linear, e K ∈ J (RN ). Mostre queT (K) ∈ J (RN ), e cN (T (K)) = |J |cN (K), onde J e o determinante de T .

1.4 O Integral de Riemann

Como dissemos, o problema da definicao do integral de funcoes esta directa-mente relacionado com o problema da definicao do conteudo de conjuntos.Dada uma funcao f : I → R, onde para simplificar supomos que I = [a, b]e um intervalo, designamos aqui por Ω+ e Ω− os conjuntos ilustrados nafigura 1.4.1, que sao dados por

Ω+ =(x, y) ∈ R2 : x ∈ I e 0 < y < f(x)

e

Ω− =(x, y) ∈ R2 : x ∈ I e 0 > y > f(x)

.

O integral de f , dito unidimensional ou simples, porque f e funcaode uma variavel real, e designado usualmente por

∫ b

af(x)dx,

∫ b

af,

If(x)dx ou

If,

e a diferenca das areas ou conteudos-2 dos conjuntos Ω+ e Ω−. Estasideias generalizam-se facilmente a funcoes de N variaveis:

Definicao 1.4.1 (Regiao de Ordenadas). Se R ⊆ S ⊆ RN e f : S → R,definimos os conjuntos:

• Ω+R(f) =

(x, y) ∈ RN+1 : x ∈ R, 0 < y < f(x)

, e

• Ω−R(f) =

(x, y) ∈ RN+1 : x ∈ R, 0 > y > f(x)

.

A regiao de ordenadas de f no conjunto R e o conjunto

ΩR(f) = Ω+R(f) ∪ Ω−

R(f) ⊆ RN+1.

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36 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

a

b

Ω+

Ω−

f R2R

Figura 1.4.1:

∫ b

af(x)dx = c2(Ω

+) − c2(Ω−).

Neste caso mais geral, devemos ainda ter

1.4.2.

Rf(x)dx = cN+1(Ω

+R(f)) − cN+1(Ω

−R(f)).

O integral e agora a diferenca dos conteudos-(N+1) dos conjuntos Ω+R(f)

e Ω−R(f) e diz-se um integral-N . Por exemplo, um integral-2, ou duplo, e a

diferenca dos volumes, ou conteudos-3, dos conjuntos Ω+R(f) e Ω−

R(f). Deacordo com 1.4.2, podemos concluir que:

1.4.3. As funcoes de N variaveis para as quais podemos calcularo respectivo integral-N sao determinadas pelos conjuntos em RN+1

cujo conteudo-(N + 1) esta definido.

Na seccao anterior, definimos o conteudo de conjuntos Jordan-mensura-veis. Podemos agora definir o integral de funcoes para as quais os conjuntosΩ+

R(f) e Ω−R(f) sao Jordan-mensuraveis, i.e., para as quais o conjunto ΩR(f)

e Jordan-mensuravel(18). Sao estas as funcoes Riemann-integraveis.

Definicao 1.4.4 (Integral de Riemann). Seja R ⊆ S ⊆ RN e f : S → R.

a) f e riemann-integravel (em R) se e so se ΩR(f) e Jordan-mensu-ravel.

b) Neste caso, o integral de riemann de f em R e dado por∫

Rf = cN+1(Ω

+R(f)) − cN+1(Ω

−R(f)).

18Deve verificar no exercıcio 1 desta seccao que ΩR(f) e Jordan-mensuravel se e so seΩ+

R(f) e Ω−

R(f) sao Jordan-mensuraveis.

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1.4. O Integral de Riemann 37

c) O conjunto das funcoes definidas em R e Riemann-integraveis em R edesignado por I(R).

Se f e Riemann-integravel em R entao, em particular, o conjunto ΩR(f)e necessariamente limitado, ou seja, f e limitada em R e o subconjunto deR onde f e diferente de zero e tambem limitado.

Nao e facil indicar criterios de integrabilidade razoavelmente gerais mas,recordando as observacoes feitas na seccao anterior a proposito do exemplo1.3.6, quando mencionamos a parabola y = x2, e simples mostrar que

Proposicao 1.4.5. Se f e limitada e monotona no intervalo limitado I,entao f e Riemann-integravel em I.

Exemplos 1.4.6.

1. A funcao f(x) = ex e integravel em qualquer intervalo limitado porque f ecrescente em R.

2. A funcao de Dirichlet dir e a funcao caracterıstica (19) do conjuntodos racionais, isto e,

dir(x) =

1, quando x ∈ Q,0, quando x 6∈ Q.

Deixamos como exercıcio verificar que esta funcao nao e integravel em nenhumintervalo I com c(I) > 0.

3. A funcao de Riemann(20) r e definida como se segue:

r(x) =

0, quando x 6∈ Q,1, quando x = 0,1q , quando x = p

q , onde p e q sao inteiros primos entre si e q > 0.

Deixamos tambem como exercıcio verificar que r e Riemann-integravel emqualquer intervalo limitado e o respectivo integral e nulo, apesar de r ser des-contınua em todos os pontos racionais.

Sendo f : X → R uma funcao, definimos as suas partes positiva enegativa, respectivamente f+ e f−, por

• f+(x) = max f(x), 0 e f−(x) = max −f(x), 0, donde

• f = f+ − f− e |f | = f+ + f−.

19Se X e um conjunto arbitrario e A ⊆ X, a funcao caracterıstica de A e a funcaoχA : X → R, que e constante e igual a 1 para x ∈ A, sendo igual a 0 para x 6∈ A.

20Este exemplo foi descoberto em 1875 pelo matematico alemao Johannes Karl Thomae,1840-1921, professor em Gottingen. Riemann foi no entanto o primeiro matematico amostrar que existem funcoes integraveis descontınuas em conjuntos densos, como e o casoda funcao r.

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38 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

As propriedades do integral de Riemann que se seguem reflectem pro-priedades geometricas elementares do conteudo.

Teorema 1.4.7. Supondo R ⊆ S ⊆ RN e f, g : S → R, entao

a) f e Riemann-integravel em R se e so se f+ e f− sao Riemann-integraveis em R e neste caso

Rf =

Rf+ −

Rf−,

b) Desigualdade triangular: Se f e Riemann-integravel em R, entao |f |e Riemann-integravel em R e

|∫

Rf | ≤

R|f | =

Rf+ +

Rf−,

c) Monotonia: Se f e g sao Riemann-integraveis em R e f ≤ g entao

Rf ≤

Rg,

d) Homogeneidade: Se f e Riemann-integravel em R e c ∈ R, entao cfe Riemann-integravel em R e

R(cf) = c

Rf.

f |f |

f+ f−

Figura 1.4.2: Regioes de ordenadas de f , f+, f−, e |f |.

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1.4. O Integral de Riemann 39

Demonstracao. Provamos apenas, a tıtulo de exemplo, a afirmacao a). Paraisso, observe-se a figura 1.4.2. E evidente que:

• Os conjuntos Ω+R(f) e Ω+

R(f+) sao iguais, e

• O conjunto Ω+R(f−) e a reflexao de Ω−

R(f) no hiperplano xN+1 = 0.

Deve ser claro que f e Riemann-integravel se e so se f+ e f− sao Riemann-integraveis e

Rf = cN+1(Ω

+R(f)) − cN+1(Ω

−R(f))

= cN+1(Ω+R(f+)) − cN+1(Ω

+R(f−)) =

Rf+ −

Rf−.

Registe-se desde ja que a definicao do integral de Riemann apresentadaem 1.4.4 e (essencialmente) equivalente a definicao original de Riemann de1854, mas e distinta desta. Actualmente, e alias mais comum definir ointegral de Riemann usando uma terceira alternativa, com recurso as nocoesde integral superior e integral inferior, e que passamos a descrever.

Para introduzir estas nocoes auxiliares, seja f : R → R uma funcaolimitada no rectangulo-N limitado R. Se r ⊆ R, escrevemos

mr = inf f(x) : x ∈ r e Mr = sup f(x) : x ∈ r .

Quando P e uma particao finita de R em rectangulos nao-vazios, definimosas somas superior e inferior de Darboux(21) da funcao f para a particaoP, designadas respectivamente por Sd(f,P) e Sd(f,P), por

Sd(f,P) =∑

r∈P

MrcN (r) e Sd(f,P) =∑

r∈P

mrcN (r).

Volterra(22) introduziu as nocoes de integral superior e de integral

inferior em 1881. Sao definidas como se segue:

Definicao 1.4.8 (Integral Superior, Integral Inferior). Seja f limitada em Re designe-se por PR a classe de todas as particoes finitas de R em rectangulos.Os integrais superior

∫Rf e inferior

∫Rf sao dados por:

Rf = inf

Sd(f,P) : P ∈ PR

e

R

f = sup Sd(f,P) : P ∈ PR

21Jean Gaston Darboux (1842 - 1917), matematico frances, professor na Escola Normale na Sorbonne, e um dos principais divulgadores das ideias de Riemann em Franca. Estassomas aparecem referidas em trabalhos de varios autores, todos publicados em 1875.

22Vito Volterra, 1860-1940, matematico italiano. Volterra criou a nocao de “funcional”,e ensinou nas Universidades de Pisa, Turim e Roma. Foi forcado a exilar-se (com 71anos!), por se recusar a prestar juramento de fidelidade ao regime fascista de Mussolini.

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40 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Estas nocoes reduzem-se facilmente aos conceitos que introduzimos naseccao anterior. Em particular, o calculo de somas de Darboux reduz-se aocalculo do conteudo de conjuntos elementares que aproximam a regiao deordenadas de f . Para precisar esta ultima observacao e apenas necessariointerpretar as parcelas onde mr < 0 ou Mr < 0 como fazemos no proximolema.

Note que, sendo A ⊆ RN+1, seguimos a convencao natural de desig-nar por A+ (e A−), respectivamente, as partes de A acima (e abaixo) dohiperplano xN+1 = 0, ou seja, escrevendo x = (x1, x2, · · · , xN+1), tomamos

A+ = x ∈ A : xN+1 > 0 e A− = x ∈ A : xN+1 < 0

K+

U+

U−

K−

Figura 1.4.3: Conjuntos K e U determinados por uma particao R.

Lema 1.4.9. Se f : R → R e limitada no rectangulo-N limitado R, R euma particao de R em rectangulos e Ω = ΩR(f), entao existem conjuntoselementares K ⊆ Ω ⊆ U tais que

Sd(f,R) = cN+1(K+) − cN+1(U

−) e Sd(f,R) = cN+1(U+) − cN+1(K

−).

Demonstracao. Consideramos as seguintes subparticoes de R:

S+ = r ∈ R : Mr > 0, S− = r ∈ R : Mr < 0 e

I+ = r ∈ P : mr > 0, I− = r ∈ P : mr < 0.Os conjuntos elementares U+ e K− sao dados por (ver figura 1.4.3)

U+ =⋃

r∈S+

r×]0,Mr[ e K− =⋃

r∈S−

r×]Mr, 0[

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1.4. O Integral de Riemann 41

Analogamente, os conjuntos elementares K+ e U− sao dados por

K+ =⋃

r∈I+

r×]0,mr[ e U− =⋃

r∈I−

r×]mr, 0[

E facil constatar que K+ ⊆ Ω+ ⊆ U+, K− ⊆ Ω− ⊆ U−, e um calculoimediato mostra que

Sd(f,R) = Sd(f,I+) + Sd(f,I−) = cN+1(K+) − cN+1(U

−) e

Sd(f,R) = Sd(f,S+) + Sd(f,S−) = cN+1(U+) − cN+1(K

−).

O lema anterior conduz directamente a:

Lema 1.4.10 (de Peano). Se f : R→ R e limitada no rectangulo-N limitadoR e Ω = ΩR(f) entao

Rf = cN+1(Ω

+) − cN+1(Ω−) e

R

f = cN+1(Ω+) − cN+1(Ω

−).

Demonstracao. Se P e uma particao de R, segue-se do lema anterior e dasdefinicoes de cN e cN que

Sd(f,P) = cN+1(K+) − cN+1(U

−) ≤ cN (Ω+) − cN (Ω−) e

Sd(f,P) = cN+1(U+) − cN+1(K

−) ≥ cN (Ω+) − cN (Ω−).

Podemos assim concluir que

(1)

R

f ≤ cN+1(Ω+) − cN+1(Ω

−) ≤ cN+1(Ω+) − cN+1(Ω

−) ≤∫

Rf.

Suponha-se agora que K−,K+ e V,W sao conjuntos elementares tais queK+ ⊆ Ω+ ⊆ V e K− ⊆ Ω− ⊆ W . Podemos sempre tomar V = U+ eW = U−, onde U e elementar (porque?), e recordamos do exercıcio 12 daseccao 1.1 que existe uma particao P tal que

K =⋃

r∈R

r × Ir e U =⋃

r∈R

r × Jr,

onde os Ir e Jr sao conjuntos elementares em R. Um momento de reflexaorevela que, para qualquer r ∈ P, temos necessariamente

Ir ⊆]mr,Mr[⊆ Jr, donde Mr −mr ≤ c(Jr) − c(Ir) e portanto

Sd(f,P) − Sd(f,P) =∑

r∈P

(Mr −mr)cN (r) ≤∑

r∈P

[c(Jr) − c(Ir)] cN (r) =

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42 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

r∈P

c(Jr)cN (r) −∑

r∈P

c(Ir)cN (r) = cN+1(U) − cN+1(K).

Segue-se facilmente que

Sd(f,P)−Sd(f,P) ≤[cN+1(U

+) − cN+1(K−)]−[cN+1(K

+) − cN+1(U−)],

donde obtemos ainda∫

Rf −

R

f ≤[cN+1(U

+) − cN+1(K−)]−[cN+1(K

+) − cN+1(U−)],

e finalmente

(2)

Rf −

R

f ≤[cN+1(Ω

+) − cN+1(Ω−)]−[cN+1(Ω

+) − cN+1(Ω−)].

As desigualdades em (1) e (2) estabelecem a igualdade a provar.

O proximo resultado e um corolario directo deste lema. E o seu conteudoque e actualmente a mais tradicional definicao do integral de Riemann.

Corolario 1.4.11. Se f : R → R e limitada no rectangulo-N limitado Rentao f e Riemann-integravel em R se e so se

Rf =

R

f , e neste caso

Rf =

R

f =

Rf

Demonstracao. De acordo com 1.4.10, temos∫

Rf =∫

Rf se e so se

cN+1(Ω+) − cN+1(Ω

−) = cN+1(Ω+) − cN+1(Ω

−) ⇐⇒

⇐⇒ cN+1(Ω+) − cN+1(Ω

+) = cN+1(Ω−) − cN+1(Ω

−) = 0

E portanto claro que∫

Rf =∫

Rf se e so se os conjuntos Ω+ e Ω− sao

Jordan-mensuraveis, e neste caso temos∫

Rf =

R

f = cN+1(Ω+) − cN+1(Ω

−) =

Rf.

E tambem possıvel verificar a integrabilidade de f sem calcular explici-tamente os seus integrais superior e inferior. Podemos em vez disso recorrera ideia subjacente a 1.3.4, que referimos a proposito do problema analogo decaracterizacao dos conjuntos Jordan-mensuraveis. Deixamos como exercıcioa demonstracao da proposicao seguinte.

Proposicao 1.4.12. Se f : R → R e limitada no rectangulo-N limitado Rentao f e Riemann-integravel em R se e so se existe para cada ε > 0 umaparticao P de R tal que Sd(f,P) − Sd(f,P) < ε.

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1.4. O Integral de Riemann 43

Em abono da verdade historica, sublinhe-se a terminar que as ideiassobre integrais de funcoes de Riemann (1854), Darboux (1875) e Volterra(1881), obviamente precederam os trabalhos sobre o conteudo de conjuntosde Cantor (1884), Peano (1887) e Jordan (1892). Quase certamente, ostrabalhos de Darboux e Volterra foram inspiracao decisiva em especial paraCantor e Peano. Em qualquer caso, as ideias abordadas nesta seccao eramseguramente familiares a Peano, que conhecia, por exemplo, o lema 1.4.10,aqui identificado com o seu nome. Mostramos que a definicao 1.4.4 e equi-valente a afirmacao no corolario 1.4.11, mas a sua equivalencia a definicaooriginal de Riemann, que alias ainda nao apresentamos, so sera estabelecidamais adiante.

Exercıcios.

1. Prove que ΩR(f) e Jordan-mensuravel se e so se os conjuntos Ω+R(f) e Ω−

R(f)sao ambos Jordan-mensuraveis.

2. Mostre que se f 6= 0 apenas num subconjunto finito de R entao f e Riemann-integravel em R e

∫R f = 0.

3. Suponha que o conjunto onde f 6= 0 e uma uniao de conjuntos Jordan-mensuraveis disjuntos A1, A2, · · · , Am em RN , e que f(x) = ak, quando x ∈Ak. Mostre que ∫

RN

f =

m∑

k=1

akcN (Ak).

4. Mostre que a funcao f(x) = sen( 1x ) e integravel em ]0, 1].

5. Suponha que f esta definida em R, R ⊇ S, g e a restricao de f a S e f(x) = 0quando x 6∈ S. Mostre que f e integravel em R se e so se g e integravel em Se que, neste caso, ∫

R

f =

S

g.

6. Prove que se f e g sao funcoes Riemann-integraveis em R, entao as funcoesm e M definidas por m(x) = min f(x), g(x) e M(x) = max f(x), g(x) saoigualmente integraveis em R.

7. Suponha que f e Riemann-integravel no conjunto limitado R. Prove queo grafico de f em R, i.e., o conjunto G = (x, y) : x ∈ R, y = f(x), temconteudo nulo. Se o grafico da funcao f tem conteudo nulo, podemos concluirque f e integravel?

8. Seja f Riemann-integravel em RN , a ∈ RN e b ∈ R. O que pode dizer sobrea integrabilidade e o valor dos integrais das funcoes dadas por

g(x) = f(x − a), h(x) = bf(x) e u(x) = f(bx)?

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44 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

9. Calcule os integrais superior e inferior da funcao de Dirichlet num qualquerintervalo limitado I ⊂ R.

10. Demonstre a proposicao 1.4.12. Como se pode adaptar 1.4.12 para contem-plar regioes de integracao “arbitrarias”?

11. Demonstre as seguintes propriedades da funcao de Riemann (exemplo 1.4.6.3):

a) Se ε > 0, entao o conjunto x ∈ I : r(x) ≥ ε e finito.

b) A funcao de Riemann r e integravel em qualquer intervalo limitado I.

sugestao: Dado ε > 0, e sendo Rε = I × [0, ε], mostre que Rε ∪ ΩI(r)e um conjunto elementar.

c) A funcao r e contınua em x se e so se x e irracional.

12. Se a funcao f e Riemann-integravel em R, os respectivos conjuntos de nıvel,i.e., os conjuntos x ∈ R : f(x) = a sao sempre Jordan-mensuraveis? E osconjuntos x ∈ R : f(x) > a?

13. Mostre que o produto de funcoes Riemann-integraveis e Riemann-integravel.sugestao: Comece por supor que as funcoes em causa nao tomam valoresnegativos.

14. Verifique que a composicao de funcoes Riemann-integraveis pode nao serRiemann-integravel. sugestao: Determine uma funcao Riemann-integravel ftal que dir = f r.

15. Sendo f Riemann-integravel em [0, R] e C = (x, y) : x2+y2 < R, considere

a funcao g definida em C por g(x, y) = f(√x2 + y2). Mostre que g e integravel

em C e (23)∫

C

g(x, y)dxdy = 2π

∫ R

0

f(r)rdr.

1.4.1 O Espaco das Funcoes Integraveis

A aditividade do integral em relacao a funcao integranda e a identidade

R(f + g) =

Rf +

Rg,

que, como veremos, e valida desde que f e g sejam ambas Riemann-integra-veis em R. A aditividade do integral tem ainda um significado geometricoclaro, mas ja nao e tao simples de demonstrar a partir de propriedades doconteudo de Jordan. Provamo-la a seguir usando somas de Darboux para as

23Este calculo e um exemplo simples de “mudanca de variaveis” para coordenadas po-

lares, dadas por x = r cos θ, y = r sen θ.

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1.4. O Integral de Riemann 45

diversas funcoes integrandas. No que se segue, o integral definido (deRiemann, em R) e o funcional φ : I(R) → R, dado por (24)

φ(f) =

Rf.

Teorema 1.4.13. Sendo R ⊆ RN e f, g : R → R funcoes Riemann-integraveis em R, entao f + g e Riemann-integravel em R e:

R(f + g) =

Rf +

Rg.

Temos ainda que I(R) e um espaco vectorial e o integral definido φ : I(R) →R e um funcional linear.

Demonstracao. Supomos para simplificar que R e um rectangulo limitado.Designando aqui por Mr(h) o supremo da funcao h no conjunto r, e pormr(h) o ınfimo de h em r, deve ser claro que, para qualquer r ⊆ R, temos

mr(f) +mr(g) ≤ mr(f + g) ≤Mr(f + g) ≤Mr(f) +Mr(g).

Resulta destas desigualdades que se R e uma particao de R entao

Sd(f,R) + Sd(g,R) ≤ Sd(f + g,R) ≤ Sd(f + g,R) ≤ Sd(f,R) + Sd(g,R)

Concluımos que

Sd(f,R) + Sd(g,R) ≤∫

R

(f + g) ≤∫

R(f + g) ≤ Sd(f,R) + Sd(g,R)

Como R e uma particao arbitraria de R obtemos igualmente

R

f +

R

g ≤∫

R

(f + g) ≤∫

R(f + g) ≤

Rf +

Rg

E portanto claro que se f e g sao integraveis em R entao f + g e tambemintegravel em R e ∫

R(f + g) =

Rf +

Rg.

Combinando este resultado com a propriedade de homogeneidade esta-belecida em 1.4.7, resulta finalmente que I(R) e um espaco vectorial(25) e φe um funcional linear.

24A funcao φ diz-se um funcional, precisamente porque o seu domınio e uma classe defuncoes. Um funcional e linear se e uma transformacao linear de espacos vectoriais.

25O conjunto de todas as funcoes f : X → R, por vezes designado RX , e sempre umespaco vectorial real, com as operacoes usuais de soma de funcoes e de produto de funcoespor numeros reais, qualquer que seja o conjunto X. Portanto, qualquer subconjunto naovazio de RX que seja fechado em relacao a estas operacoes e um seu subespaco vectorial.

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46 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

f

g

Figura 1.4.4: ‖f − g‖1 e o conteudo da regiao entre os graficos de f e g.

O funcional ν : I(R) → R dado por ν(f) = ‖f‖1 =∫R |f | tem tambem

um papel importante na Analise, porque e frequentemente utilizado comomedida da distancia entre funcoes integraveis f e g, tomando essa distanciacomo sendo ‖f − g‖1. Este funcional diz-se a norma L1 de f , por razoesque esclareceremos mais adiante(26).

A propriedade de aditividade indicada em 1.4.13 a) pode ser generaliza-da para quaisquer somas finitas por um argumento elementar de inducao.E no entanto fundamental reconhecer que nao e facilmente generalizavel aseries de funcoes, porque em geral as operacoes de integracao e de passagemao limite (implıcita no calculo da soma de uma serie) nao comutam, i.e.,

limn→+∞

Ifn(x)dx e distinto de

Ilim

n→+∞fn(x)dx.

Exemplos 1.4.14.

1. Considerem-se as funcoes fn dadas por:

fn(x) =

n, se x ∈]0, 1/n[ e0, se x 6∈]0, 1/n[.

Como fn(x) → 0 para qualquer x ∈ R e∫ 1

0fn(x)dx = 1 para qualquer n ∈ N,

temos que

limn→+∞

∫ 1

0

fn(x)dx = 1 e obviamente distinto de

∫ 1

0

limn→+∞

fn(x)dx = 0.

Para obter funcoes Riemann-integraveis g e gn tais que

g(x) =

∞∑

n=1

gn(x) e

∫ 1

0

g(x)dx 6=∞∑

n=1

∫ 1

0

gn(x)dx,

podemos por exemplo tomar

gn(x) = fn(x) − fn−1(x) com f0 = 0, e g(x) =∞∑

n=1

gn(x).

26Este funcional e na realidade uma semi-norma no espaco I(R). Veja a este respeitoo exercıcio 6.

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1.4. O Integral de Riemann 47

Note-se que a dificuldade ilustrada neste exemplo nada tem a ver com eventuaisdeficiencias tecnicas da definicao de Riemann, porque os calculos em causa saointeiramente elementares.

2. A passagem ao limite sob o sinal de integral pode tambem ser impossıvelporque o limite f nao e Riemann-integravel. Para ilustrar esta possibilidade,seja I = [0, 1] eD = q1, · · · , qn, · · · = Q∩I o conjunto de Dirichlet. TomamosQn = qk : k ≤ n e definimos fn : [0, 1] → R por

fn(x) =

1, se x ∈ Qn e0, se x 6∈ Qn.

Deve ser quase obvio que

• fn e Riemann-integravel em qualquer intervalo e tem integral nulo, porquee diferente de zero apenas num conjunto finito, mas

• fn(x) → f(x) = dir(x) para qualquer x ∈ R, e esta funcao nao e Rie-mann-integravel em nenhum intervalo com mais de um ponto.

A dificuldade exibida neste exemplo esta directamente ligada com insuficienciasda definicao de Riemann, e veremos adiante como e minimizada pela introdu-cao da definicao de Lebesgue. O exemplo pode ser igualmente adaptado parailustrar dificuldades do mesmo tipo com a integracao de series, ou seja, paradeterminar funcoes Riemann-integraveis gn tais que

g(x) =∞∑

n=1

gn(x),∞∑

n=1

∫ 1

0

gn(x)dx converge e

∫ 1

0

g(x)dx nao existe,

porque g nao e Riemann-integravel.

Exercıcios.

1. Sendo R = [0, 1], determine funcoes fn, gn ∈ I(R), tais que:

a) g(x) =

∞∑

n=1

gn(x) 6∈ I(R), mas

∞∑

n=1

∫ 1

0

gn(x)dx converge.

b) limn→∞

R

fn = 0, mas limn→∞

fn(x) nao existe, para nenhum x ∈ R.

c) limn→∞

R

fn nao existe, mas limn→∞

fn(x) existe, para qualquer x ∈ R.

2. Mostre que a funcao de Dirichlet dir e dada por:

dir(x) = limm→∞

limn→∞

(cosm!πx)2n.

3. Suponha que a serie de potencias∑∞

n=1 anxn converge para |x| < r, e mostre

que esta serie pode ser integrada termo-a-termo em qualquer intervalo [a, b] ⊂] − r, r[. sugestao: Prove que a serie converge uniformemente em [a, b].

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48 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

4. A funcao f(x) =∑∞

n=0(−1)n

2n int(nx) e Riemann-integravel em [0, 1]? Qual eo conjunto de pontos onde f e contınua?

5. Sendo H a funcao de Heaviside (a funcao caracterıstica do intervalo [0,∞[),e Q ∩ [0, 1] = qn : n ∈ N, considere-se:

f(x) =

∞∑

n=1

(−1)n

2nH(x− qn).

A funcao f e Riemann-integravel em [0, 1]? Qual e o seu conjunto de pontosde descontinuidade?

Recorde que se V e um espaco vectorial real, ou complexo, entao uma funcaoν : V → R diz-se uma norma se e so se ν tem as seguintes propriedades:

a) Desigualdade triangular: ν(u+v) ≤ ν(u)+ν(v), para quaisquer vectoresu,v ∈ V ,

b) Homogeneidade: ν(αu) = |α|ν(u), para qualquer vector u e escalar α,

c) Positividade: ν(u) ≥ 0, e ν(u) = 0 se e so se u = 0.

Sendo ν uma norma no espaco vectorial V , que se diz neste caso um espaco

vectorial normado, a distancia entre vectores u e v em V e definida pord(u,v) = ν(u − v). Se o funcional ν goza das propriedades acima indicadas,com a unica excepcao que podem existir vectores nao-nulos u para os quaisν(u) = 0, entao ν diz-se uma semi-norma.

6. Mostre que o funcional ν(f) = ‖f‖1 e uma semi-norma em I(R).

1.4.2 Integrais Indefinidos

E usual dizer que a funcao real de variavel real f e um “integral indefinido”quando f e da forma

f(x) =

∫ x

ag(t)dt,

onde g e uma funcao Riemann-integravel num dado intervalo I, a variavelx ∈ I e a ∈ I esta fixo. Respeitamos aqui a usual convencao de tomar

∫ x

ag(t)dt = −

∫ a

xg(t)dt quando x < a.

A mesma terminologia aplica-se a funcoes de varias variaveis, usando agoraintegrais em rectangulos, e.g., quando

F (x, y) =

∫ x

a

∫ y

bG(s, t)dsdt.

Introduzimos aqui uma ideia ligeiramente mais geral, que corresponde a con-siderar o integral indefinido como uma funcao de conjuntos, cuja variavel

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1.4. O Integral de Riemann 49

independente e uma regiao de integracao “arbitraria”, que em particular naoe necessariamente um intervalo ou um rectangulo. Mais especificamente, edada uma qualquer funcao f : R→ R, consideramos a classe dos subconjun-tos de R onde f e Riemann-integravel, que designamos por Jf (R), notamosque Jf (R) nunca e uma classe vazia (porque?), e introduzimos

Definicao 1.4.15 (Integral Indefinido). O integral indefinido (de Rie-mann) de f em R e a funcao de conjuntos λ : Jf (R) → R dada por:

λ(E) =

Ef.

Se a funcao f e Riemann-integravel em R, e facil verificar que f e igual-mente integravel pelo menos em qualquer subconjunto Jordan-mensuravelde R, i.e., temos neste caso que J (R) ⊆ Jf (R).

Teorema 1.4.16. Seja f : R → R uma funcao Riemann-integravel emR ⊆ RN . Se E ⊆ R e Jordan-mensuravel, entao f e Riemann-integravelem E, e ∫

Ef =

RfχE.

E × J

ΩE(f)ΩR(f)

E

J

Figura 1.4.5: ΩE(f) = ΩR(f) ∩ (E × J) = ΩR(fχE).

Demonstracao. A funcao f e limitada em R, i.e., existe m ∈ R tal que−m < f(x) < m. Se J = [−m,m], entao E×J e Jordan-mensuravel, porquee um produto de conjuntos Jordan-mensuraveis (veja-se 1.3.12). Deve serevidente que

ΩE(f) = ΩR(f) ∩ (E × J) = ΩR(fχE).

O conjunto ΩR(f) ∩ (E × J) e portanto Jordan-mensuravel, porque e ainterseccao de conjuntos Jordan-mensuraveis (1.3.11). Por outras palavras,f e Riemann-integravel em E e e obvio que

Ef =

RfχE.

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50 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Podemos generalizar a qualquer integral indefinido os resultados indica-dos para o conteudo de Jordan em 1.3.11.

Teorema 1.4.17. Jf (R) e uma semi-algebra e λ e aditivo em Jf (R).Temos ainda que:

a) Se f ≥ 0 em R entao λ e nao-negativo, monotono e subaditivo,

b) Se f e integravel em R entao Jf (R) ⊇ J (R) e uma algebra.

Demonstracao. Tal como fizemos em 1.3.11, verificamos apenas a tıtulo deexemplo que a classe Jf (R) e fechada em relacao a uniao e provamos aaditividade de λ. Simplificamos a notacao, escrevendo abreviadamente, e.g.,ΩA em vez de ΩA(f). Sendo C = A ∪ B, onde A,B ∈ Jf (R), temos entaoque (ver Figura 1.4.6):

• f e Riemann-integravel em A e em B, i.e., os conjuntos ΩA e ΩB saoJordan-mensuraveis.

• O conjunto ΩC = ΩA ∪ ΩB e igualmente Jordan-mensuravel.

• Portanto, f e Riemann-integravel em C, i.e., C ∈ Jf (R).

Se A e B sao disjuntos, entao Ω+A e Ω+

B sao igualmente disjuntos, assimcomo Ω−

A e Ω−B . Como o conteudo de Jordan e aditivo, temos

cN+1(Ω+C) = cN+1(Ω

+A ∪ Ω+

B) = cN+1(Ω+A) + cN+1(Ω

+B), e

cN+1(Ω−C) = cN+1(Ω

−A ∪ Ω−

B) = cN+1(Ω−A) + cN+1(Ω

−B).

Subtraindo estas identidades, concluımos que λ(C) = λ(A) + λ(B).

A B A ∪B

Figura 1.4.6: Regioes de ordenadas em A, B e A ∪B.

A regiao de ordenadas de uma funcao caracterıstica χE e o produtocartesiano E×]0, 1[. Se E ⊆ R ⊆ RN e Jordan-mensuravel, temos portanto:

RχE = cN+1(E×]0, 1[) = cN (E) × 1 = cN (E).

Nao e difıcil mostrar que se χE e integravel em RN entao E e Jordan-mensuravel, pelo que temos na verdade:

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1.4. O Integral de Riemann 51

Teorema 1.4.18. O conteudo-N e o integral indefinido da funcao f iden-ticamente igual a 1 no conjunto RN .

O teorema acima e de uma simplicidade quase trivial, mas encerra umaideia que complementa de forma muito interessante o que dissemos em 1.4.3.De um ponto de vista intuitivo, e como a identidade cN+1(ΩR) = cN (E)×1 =cN (E) deve ser sempre valida, e tambem natural esperar que a seguinteidentidade seja sempre valida:

cN (E) =

RχE .

Por outras palavras, determinar o conteudo-N do conjunto E deve ser equi-valente a determinar o integral-N da respectiva funcao caracterıstica χE e,portanto, tambem e verdade que

1.4.19. Os conjuntos em RN para os quais podemos calcular o res-pectivo conteudo-N sao determinados pelas funcoes (de N variaveis)cujo integral-N esta definido.

Exemplos 1.4.20.

1. A teoria desenvolvida ate aqui nao atribui um integral a funcao de Dirichlet,por exemplo, quando a regiao de integracao e o intervalo [0, 1]. De formaequivalente, nao atribui um comprimento ao conjunto Q∩ [0, 1], formado pelosracionais do mesmo intervalo.

2. Recorde-se do exemplo 1.3.7 que se

A =

∞⋃

n=1

[1

2n,

1

2n− 1], entao A ∈ J (RN ) e c(A) =

∞∑

n=1

1

2n(2n− 1).

Portanto, se f e a funcao caracterıstica do conjunto A, temos igualmente

R

f =

∞∑

n=1

1

2n(2n− 1).

Exercıcios.

1. Complete a demonstracao da proposicao 1.4.17.

2. Suponha que f e Riemann-integravel no conjunto R e que g e limitada emR. Mostre que, se o conjunto x ∈ R : f(x) 6= g(x) tem conteudo nulo, entaog e integravel em R e

∫R f =

∫R g.

3. Demonstracao a proposicao 1.4.18. sugestao: Mostre que S(χE ,P) ≤cN (E) ≤ cN (E) ≤ S(χE ,P).

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52 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

1.4.3 Continuidade e Integrabilidade

Desde cedo se suspeitou que a integrabilidade no sentido de Riemann de umafuncao limitada depende fortemente da “extensao” do conjunto de pontosonde a funcao e descontınua. Por outras palavras, se f : R → R e limitadanum rectangulo compacto R e descontınua apenas em S ⊂ R, onde S e“pequeno”, esperava-se que f fosse integravel em R. O exemplo de Riemann1.4.6.3 mostra no entanto que nao e facil tornar rigorosa esta ideia. Afinal decontas, a funcao de Riemann e descontınua no conjunto dos racionais, quenao e Jordan-mensuravel. Por outro lado, o conjunto dos racionais e densoem R e era tambem opiniao corrente entre muitos matematicos que qualquerteoria razoavel sobre a “extensao” de conjuntos devia considerar os conjuntosdensos como “grandes”. Nao e por isso surpreendente que o esclarecimentoda relacao entre continuidade e integrabilidade tenha sido uma fonte de tra-balhos inovadores, que revelaram muitas das pistas conduzindo a modernateoria da medida.

Supomos aqui conhecida a seguinte famosa caracterizacao dos conjuntoscompactos em RN :

Teorema 1.4.21 (Heine-Borel). (27)O conjunto K ⊆ RN e compacto se eso se e limitado e fechado. Em particular, os rectangulos compactos sao osrectangulos limitados e fechados.

E conveniente introduzir a nocao de oscilacao de uma funcao f : R→ R.Se s ⊆ R ⊆ RN e nao-vazio, designamos por Ms e ms, como usualmente,respectivamente o supremo e ınfimo de f em s, e definimos a funcao (deconjuntos) Oscf por:

1.4.22. Oscf (s) = Ms −ms.

Dado x ∈ RN e r > 0, designamos por B(x, r) ou Br(x) a Bola Aberta

de raio r e centro em x, ou seja,

B(x, r) = Br(x) = y ∈ RN : ‖x − y‖ < r.

Se x ∈ R, a funcao φ(x, r) = Oscf (Br(x) ∩R) ≥ 0 esta definida para r > 0e e crescente em r. Em particular, com x fixo existe sempre o limite deφ(x, r) quando r → 0:

27Heinrich Eduard Heine, matematico alemao, 1821-1881, referiu pela primeira vez aideia subjacente a este teorema, ao provar que uma funcao contınua num intervalo limitadoe fechado e uniformemente contınua. Felix Edouard Justine Emile Borel, matematicoe polıtico frances, 1871-1956, deixou uma obra muita extensa, e foi um dos principaiscriadores da Teoria da Medida. Borel introduziu este teorema na sua tese, publicada comoSur quelques points de la theorie des fonctions, em Annales Scientifiques de l’E.N.S., 3e

serie, tome 12 (1895), pp. 9-55. O teorema de Heine-Borel, na sua forma actual, em RN ,foi apresentado por Vitali em 1905, num dos principais artigos sobre a moderna teoria daintegracao.

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1.4. O Integral de Riemann 53

Definicao 1.4.23 (Oscilacao de uma funcao limitada). Se f : R→ R e umafuncao limitada, a sua oscilacao e a funcao ωf : R→ R dada por:

ωf (x) = limr→0

φ(x, r) = limr→0

Oscf (Br(x) ∩R).

Note-se para posterior referencia que definimos igualmente:

lim supy→x

f(y) = limr→0

sup f(z) : z ∈ Br(x) ∩R , e

lim infy→x

f(y) = limr→0

inf f(z) : z ∈ Br(x) ∩R .

Exemplos 1.4.24.

1. Se f(x) = x, entao Oscf (Br(x)) = 2r, e

ωf (x) = limr→0

Oscf (Br(x)) = 0.

2. Se f e a funcao de Dirichlet e I e um conjunto aberto nao-vazio, temossup f(x) : x ∈ I = 1 e inf f(x) : x ∈ I = 0. Concluımos que Oscf (I) = 1 eωf(x) = 1, para qualquer x ∈ R.

3. Se f e uma funcao limitada, entao:

ωf (x) = lim supy→x

f(y) − lim infy→x

f(y).

A demonstracao das seguintes propriedades fica como exercıcio.

Lema 1.4.25. Se R ⊆ RN e f : R→ R e limitada em R entao:

a) Para qualquer x ∈ R, f e contınua em x se e so se ωf (x) = 0, e nessecaso lim sup

y→x

f(y) = lim infy→x

f(y) = f(x).

b) Se U e aberto e x ∈ U ∩R, entao ωf (x) ≤ Oscf (U ∩R),

c) Para qualquer x ∈ R, se ωf (x) < ε entao existe um aberto U tal quex ∈ U e ωf (y) < ε para qualquer y ∈ U ∩R, e

d) O conjunto x ∈ R : ωf (x) ≥ ε e fechado.

Demonstracao. Deixamos a demonstracao de a) e b) para o exercıcio 3.

• Para provar c), notamos que existe ρ > 0 tal que Oscf (Bρ(x)∩R) < ε,e tomamos U = Bρ(x).

• Para provar d), seja Uε = x ∈ R : ωf (x) < ε. Temos de c) que,se ωf (x) < ε, entao existe ρx > 0 tal que Oscf (B(x, ρx) ∩ R) < ε.Notamos que

V =⋃

x∈Uε

B(x, ρx) e aberto e x ∈ R : ωf (x) < ε = V ∩R.

F = V c e fechado e x ∈ R : ωf (x) ≥ ε = F ∩R e tambem fechado.

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54 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Convencionamos que se R e uma particao de R e T ⊆ R entao RT =r ∈ R : r∩T 6= ∅, e notamos que T ⊆ K =

⋃r∈RT

r. O seguinte resultadoauxiliar sera muito util no que se segue.

Lema 1.4.26. Se ωf < ε em T ⊆ R e T e compacto, entao existe δ > 0 talque, para qualquer particao R de R em subrectangulos,

diam(R) < δ =⇒ Sd(f,RT ) − Sd(f,RT ) ≤ εcN (K), onde K =⋃

r∈RT

r.

Demonstracao. De acordo com a definicao 1.4.23,

∀x∈T ∃ρx>0 0 < ρ < ρx ⇒ Oscf (Bρ(x) ∩R) < ε.

A famılia de bolas abertas B(x, ρx

2 ) e uma cobertura de T . Como T ecompacto, existe uma subfamılia finita de bolas centradas em x1,x2, · · · ,xn,que e, ainda, uma cobertura de T . Tomamos δ = 1

2 min ρx1, ρx2

, · · · , ρxne supomos que R e uma particao de T com diam(R) < δ.

Fixado r ∈ RT , existe x ∈ r ∩ T , e portanto existe xi tal que x ∈B(xi,

ρxi

2 ). Para qualquer y ∈ r (mesmo que y 6∈ T ), temos entao

‖y − xi‖ ≤ ‖y − x‖ + ‖x − xi‖ < δ +ρxi

2< ρxi

, i.e., r ⊆ B(xi, ρxi).

Concluımos que Oscf (r) < ε, ou Mr −mr < ε, e portanto

Sd(f,RT ) − Sd(f,RT ) =∑

r∈RT

(Mr −mr)cN (r) ≤ ε∑

r∈RT

cN (r) = εcN (K).

Se f : R→ R e uma funcao limitada num rectangulo-N compacto e D eo seu conjunto de pontos de descontinuidade, entao segue-se de 1.4.25 que

D =∞⋃

n=1

Dn, onde Dn =

x ∈ R : ωf (x) ≥ 1

n

.

A condicao de integrabilidade indicada abaixo esta enunciada em termosdos conjuntos Dn. Mostra que o conjunto de pontos de descontinuidade deuma funcao Riemann-integravel nao e necessariamente Jordan-mensuravel,mas e sempre uma uniao numeravel de conjuntos de conteudo nulo.

Teorema 1.4.27 (Integrabilidade e Continuidade). Se f : R→ R e limitadano rectangulo-N compacto R, as seguintes afirmacoes sao equivalentes:

a) f e Riemann-integravel em R, e

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1.4. O Integral de Riemann 55

b) Os conjuntos Dn sao Jordan-mensuraveis e tem conteudo nulo.

Demonstracao. a) =⇒ b): Como f e integravel, para quaisquer n ∈ N eε > 0 existe uma particao P de R em rectangulos tal que

(1) Sd(f,P) − Sd(f,P) <ε

n.

Dado qualquer rectangulo r ∈ P, segue-se de 1.4.25 b) que

x ∈ int(r) =⇒ ωf (x) ≤ Oscf (int(r)) ≤ Oscf (r) = Mr −mr.

Definimos agora A = r ∈ P : Mr −mr <1n, B = r ∈ P : Mr −mr ≥ 1

n ,

A =⋃

r∈A

int(r), B =⋃

r∈B

r e B = R\A.

Observamos que ωf (x) < 1n para qualquer x ∈ A, e portanto Dn ⊆ B. Por

outro lado, e claro que B\B ⊆ ∂A e cN (∂A) = 0, donde

(2) cN (Dn) ≤ cN (B) = cN (B).

Para estimar cN (B), notamos primeiro que

(3) Sd(f,B) − Sd(f,B) =∑

r∈B

(Mr −mr)cN (r) ≥∑

r∈B

1

ncN (r) =

1

ncN (B).

Temos por outro lado de (1) que

(4) Sd(f,B) − Sd(f,B) ≤ Sd(f,P) − Sd(f,P) <ε

n.

Segue-se de (3) e (4) que cN (B) < ε, e de (2) que cN (Dn) < ε. Como ε earbitrario, concluımos que cN (Dn) = 0.

Para provar a implicacao b) =⇒ a), supomos que todos os conjuntos Dn

tem conteudo nulo. Observamos que:

• Fixado n e dado ε > 0, existe um conjunto elementar aberto U tal queDn ⊆ U e cN (U) < ε.

• T = R\U e compacto (e elementar) e ωf (x) < 1n para x ∈ T .

• Pelo lema 1.4.26, existe δ > 0 tal que se R e uma particao de R emrectangulos com diam(R) < δ entao

Sd(f,RT ) − Sd(f,RT ) ≤ 1

ncN (K), onde K =

r∈RT

r ⊇ T.

• Como f e limitada, existe M tal que |f(x)| ≤M para x ∈ R.

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56 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

• Sendo R = R\RT e U = R\K, e claro que U ⊆ U , donde cN (U) ≤cN (U) < ε, e R e uma particao de U . Temos portanto

Sd(f,R) − Sd(f,R) =Sd(f,RT ) − Sd(f,RT ) + Sd(f, R) − Sd(f, R)

≤ 1

ncN (K) + 2McN (U) ≤ 1

ncN (R) + 2Mε.

Como ε e n sao arbitrarios, concluımos que f e Riemann-integravel.

E facil adaptar a demonstracao do resultado anterior para obter umresultado intimamente relacionado com a definicao original do integral deRiemann. Deixamos a sua verificacao para o exercıcio 11.

Corolario 1.4.28. Se f : R → R e limitada no rectangulo-N compacto R,entao f e Riemann-integravel em R se e so se

Sd(f,P) − Sd(f,P) → 0 quando diam(P) → 0

Vimos que se f e Riemann-integravel em R entao os conjuntos Dn saoJordan-mensuraveis e tem conteudo nulo. Se ε > 0, existem conjuntos ele-mentares En ⊇ Dn tais que cN (En) < ε

2n . Podemos supor sem perda degeneralidade que os conjuntos En sao abertos e temos:

D ⊆∞⋃

n=1

En e

∞∑

n=1

cN (En) <

∞∑

n=1

ε

2n= ε.

Foi a proposito de conjuntos com esta propriedade que Borel introduziu(28)a nocao de conjunto de medida nula, ou conjunto nulo:

Definicao 1.4.29 (Conjunto Nulo). E ⊆ RN e um conjunto nulo se eso se para qualquer ε > 0 existem rectangulos abertos Rn tais que:

E ⊆∞⋃

n=1

Rn e∞∑

n=1

cN (Rn) < ε.

Exemplos 1.4.30.

1. Se f e Riemann-integravel em R, entao o conjunto D dos pontos de descon-tinuidade de f e evidentemente um conjunto nulo.

2. Qualquer conjunto numeravel E e nulo, e em particular Q e nulo. Sendox1, x2, · · · , xn, · · · os elementos de E, e dado ε > 0, tomamos 0 < ε′ < ε e,supondo para simplificar que E ⊂ R,

Un =]xn − ε′

2n+1, xn +

ε′

2n+1[, donde E ⊆

∞⋃

n=1

Un, e

∞∑

n=1

c(Un) = ε′ < ε.

28Em 1895, no artigo que ja referimos a proposito do teorema de Heine-Borel.

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1.4. O Integral de Riemann 57

3. Deve notar-se (exercıcio 8) que a definicao 1.4.29 nao se altera, se nela referir-mos rectangulos quaisquer, em lugar de rectangulos abertos. Por esta razao, einteiramente obvio que qualquer conjunto numeravel e de medida nula, ja quecada um dos rectangulos Rn se pode reduzir a um ponto.

E claro que qualquer conjunto Jordan-mensuravel de conteudo nulo enulo no sentido de Borel, mas o exemplo do conjunto dos racionais mostraque existem conjuntos nulos no sentido de Borel que nao sao Jordan-men-suraveis. A este respeito, registamos que

Proposicao 1.4.31. Se K ⊂ RN e compacto, entao K e nulo no sentidode Borel se e so se K e Jordan-mensuravel e cN (K) = 0.

Demonstracao. Suponha-se que K e compacto e nulo no sentido de Borel eseja ε > 0. Existem rectangulos abertos Rn tais que

K ⊆∞⋃

n=1

Rn e∞∑

n=1

cN (Rn) < ε.

Como K e compacto e os Rn’s sao abertos, existe um natural m tal que

K ⊆m⋃

n=1

Rn e

m∑

n=1

cN (Rn) ≤∞∑

n=1

cN (Rn) < ε.

E evidente que ∪mn=1Rn e elementar e segue-se imediatamente que K e

Jordan-mensuravel e tem conteudo nulo.

Lebesgue introduziu a sugestiva convencao de usar a expressao “quase emtoda a parte”, abreviada “qtp”, como sinonimo de “excepto num conjuntonulo”(29). Nesta terminologia, o teorema 1.4.27 enuncia-se de forma sucinta:

Teorema 1.4.32 (Integrabilidade e Continuidade). Se f : R→ R e limitadano rectangulo-N compacto R, entao

f e Riemann-integravel em R⇐⇒ f e contınua qtp em R.

Demonstracao. Resta-nos provar que se o conjunto D dos pontos de descon-tinuidade e nulo, entao f e Riemann-integravel. Recorde-se que

D =

∞⋃

n=1

Dn, onde Dn =

x ∈ R : ωf (x) ≥ 1

n

.

Os conjuntos Dn sao nulos no sentido de Borel, porque D e nulo, e saocompactos, pelo lema 1.4.25. Concluımos de 1.4.31 que os conjuntos Dn

tem conteudo nulo, e de 1.4.27 que f e Riemann-integravel.

29No frances original, diz-se “presque partout”, abreviado “pp”, e em ingles usa-se aexpressao “almost everywhere”, que se abrevia para “ae”.

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58 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Terminamos esta seccao com uma breve referencia a definicao de integralintroduzida por Riemann em 1854, que recorre ao que chamamos “somas deRiemann”. Dada uma particao P do rectangulo R, para calcular uma somade Riemann e necessario seleccionar em cada rectangulo r um ponto xr ∈ r,ou seja, fixar uma funcao “de escolha” φ : P → R tal que xr = φ(r) ∈ rpara qualquer r ∈ P. A soma de riemann depende de P e de φ e e dadapor

SR(f,P, φ) =∑

r∈P

f(φ(r))cN (r) =∑

r∈P

f(xr)cN (r).

A definicao original de Riemann de 1854 e a seguinte(30):

Definicao 1.4.33 (Integral de Riemann). Supondo que R e um rectangulolimitado e f : R → R, entao f e integravel (em R) se e so se existe α ∈ R

tal que SR(f,P, φ) → α quando diam(P) → 0(31). Neste caso,

Rf = α.

A definicao de Riemann e na realidade uma generalizacao de uma previadefinicao, formulada por Cauchy(32) em 1821, apenas para funcoes contınuasf : [a, b] → R. Cauchy demonstrou que, dada uma particao P de [a, b]determinada por pontos a = x0 < x1 < · · · < xn = b, se xk−1 ≤ x∗k ≤ xk

entao existe α ∈ R tal que

n∑

k=1

f(x∗k)(xk − xk−1) → α, quando diam(P) → 0.

O valor de α define assim o integral de f . Na terminologia de Riemann,podemos dizer que Cauchy demonstrou que as funcoes contınuas em interva-los limitados e fechados sao Riemann-integraveis. Em certo sentido, tambeme verdade que Riemann se limitou a considerar a classe de todas as funcoesas quais a definicao de Cauchy poderia ser aplicavel, uma generalizacao quehoje nos pode parecer pouco significativa. Mas, ao faze-lo, levou a discussaosobre as nocoes basicas da Analise, incluindo a propria ideia de “funcao”,a nıveis superiores de abstraccao e rigor. Pelo menos por esta razao, foicertamente um importante factor de progresso e renovacao na Matematicada segunda metade do seculo XIX.

30Neste como em muitos outros casos que temos referido, os trabalhos originais con-templam apenas funcoes reais definidas em intervalos. Os integrais multiplos so foramestudados com rigor bastante mais tarde, em particular por Jordan.

31Ou seja, para qualquer ε > 0 existe δ > 0 tal que para qualquer particao P e qualquer

funcao de escolha φ : P → R, temos |SR(f,P , φ) − α| < ε quando diam(P) < δ.32Augustin Louis Cauchy, 1789-1857, frances, foi um dos grandes matematicos de sem-

pre, como o atesta o facto do seu nome aparecer ligado a ideias fundamentais, em tantosdomınios distintos. O matematico Abel, que Cauchy tratou de forma particularmenteinjusta, disse dele que “e louco, mas e o unico que sabe como se deve fazer a Matematica”.

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1.4. O Integral de Riemann 59

A equivalencia entre as definicoes 1.4.33 e 1.4.4 resulta facilmente docorolario 1.4.28, mas deixamos o esclarecimento desta observacao para oexercıcio 11.

Exercıcios.

1. Calcule a oscilacao da funcao de Riemann.

2. Considere a funcao f , dada por:

f(x) =

sen( 1

sen( 1x)), quando x 6= 0, e sen( 1

x ) 6= 0,

0, em todos os outros casos.

Calcule a oscilacao ωf . A funcao f e integravel em [0, 1]?

3. Demonstre as alıneas a) e b) do lema 1.4.25.

4. Mostre que o teorema 1.3.13 e um caso particular do teorema 1.4.27.

5. Prove que se J ∈ J (RN ) e fechado, entao as funcoes contınuas em J saointegraveis em J .

6. Prove que se f e limitada no rectangulo compacto R, entao

R

f −∫

R

f =

R

ωf .

7. Prove que se os conjuntos An ⊂ RN sao nulos no sentido de Borel, entaoA = ∪∞

n=1An e igualmente nulo no mesmo sentido.

8. Mostre que a definicao 1.4.29 nao se altera se considerarmos rectangulosquaisquer, em lugar de rectangulos abertos.

9. Mostre que se E ∈ J (RN ), entao E e nulo no sentido de Borel se e so secN (E) = 0.

10. Seja D o conjunto onde f : R→ R e descontınua. Prove que

a) Se U ⊆ R e aberto, entao f−1(U) = (R ∩ V ) ∪ N , onde V e aberto eN ⊆ D.

b) Se f ≥ 0 e∫

R f = 0, entao f(x) = 0 qtp em R. sugestao: Mostre quex ∈ R : f(x) > 0 ⊆ D.

c) Se f(x) = 0 qtp em R e f e integravel em R entao∫

R f = 0. A hipotese“f e integravel em R” e mesmo necessaria?

11. Prove o corolario 1.4.28, e conclua que as definicoes de integral em 1.4.33 e1.4.4 sao equivalentes.

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60 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

1.5 Os Teoremas Fundamentais do Calculo

As operacoes de integracao e de diferenciacao sao inversas uma da outra.Esta ideia central da Analise, vislumbrada ja por alguns dos precursores deNewton e Leibnitz, e tradicionalmente descrita em dois resultados, ditos osTeoremas Fundamentais do Calculo. De forma por enquanto pouco precisa,estes teoremas reduzem-se aos seguintes enunciados, que descrevem respec-tivamente a diferenciacao de um integral e a integracao de uma derivada.

1.5.1 (1o Teorema Fundamental do Calculo).

d

dx

∫ x

af(t)dt = f(x)

1.5.2 (2o Teorema Fundamental do Calculo, ou Regra de Barrow(33)).

∫ x

aF ′(t)dt = F (x) − F (a)

Integrais indefinidos Funcoes integraveis

Diferenciacao

Integracao

Figura 1.5.1: Os Teoremas Fundamentais do Calculo.

Nenhum destes resultados e particularmente surpreendente de um pontode vista intuitivo. Supondo

F (x) =

∫ x

af(t)dt e h > 0,

entao devemos ter

F (x+ h) − F (x) =

∫ x+h

xf(t)dt ≃ f(x)h,

33De Isaac Barrow, 1630-1677, o primeiro professor da Universidade de Cambridgenomeado para a Catedra Lucasiana. Barrow tomou a extraordinaria iniciativa de se demi-tir, para dar o lugar ao seu aluno Newton, em quem justamente reconhecia qualidadesexcepcionais.

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1.5. Os Teoremas Fundamentais do Calculo 61

donde F ′(x) = limh→0F (x+h)−F (x)

h = f(x). Analogamente, se F ′(t) = f(t)e a = x0 < x1 < · · · < xn = x e uma particao do intervalo [a, x], entao

F (x) − F (a) =

n∑

k=0

[F (xk) − F (xk−1)] ≃n∑

k=0

f(xk−1)∆xk ≃∫ x

af(t)dt.

Nao e difıcil demonstrar resultados deste tipo usando a teoria de Riemann,desde que se coloquem suficientes hipoteses sobre a regularidade das funcoesf e F . Comecamos por provar:

Lema 1.5.3. Se f e Riemann-integravel em I, a ∈ I e F e dada em I por

F (x) =

∫ x

af(t)dt+ F (a), temos entao que:

a) F e uniformemente contınua em I, e

b) Se f e contınua em c ∈ I entao F ′(c) = f(c).

Demonstracao. A funcao F esta bem definida, porque f e integravel emqualquer subintervalo de I, e temos para quaisquer x, y ∈ I que

(1) F (y) − F (x) =

∫ y

xf(t)dt.

a) f e limitada em I, ou seja, existe M tal que |f(x)| ≤ M para x ∈ I.Supondo sem perda de generalidade que y > x, temos

|F (y) − F (x)| =

∣∣∣∣∫ y

xf(t)dt

∣∣∣∣ ≤∫ y

x|f(t)|dt ≤M |y − x|.

Concluımos que F e (uniformemente) contınua em I.

b) Sendo ρ > 0, designamos por Mρ e mρ respectivamente o supremo e oınfimo de f em Bρ(c) ∩ I. Se x ∈ Bρ(x) ∩ I e imediato verificar que

mρ ≤ F (x) − F (c)

x− c=

1

x− c

∫ x

cf(t)dt ≤Mρ

Se f e contınua em c temos de 1.4.25 que Mρ → f(c) e mρ → f(c) quandoρ→ 0, e e portanto obvio que

limx→c

F (x) − F (c)

x− c= f(c), ou seja, F ′(c) = f(c).

Combinando este lema com o teorema 1.4.32, obtemos imediatamente:

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62 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Teorema 1.5.4 (1o Teorema Fundamental do Calculo (I)). Se f e Riemann-integravel em I = [a, b] e F e dada em I por

F (x) =

∫ x

af(t)dt+ F (a),

entao F e contınua em I e F ′(x) = f(x) qtp em I.

E mais difıcil identificar hipoteses igualmente “naturais” para o 2o Teo-rema Fundamental, uma questao que tem sido fonte de problemas sofistica-dos muito interessantes. Demonstramos a seguir uma versao do 2o Teorema,por enquanto longe de ser o recıproco de 1.5.4, porque nao contempla a pos-sibilidade de F nao ser diferenciavel num conjunto “excepcional”.

Teorema 1.5.5 (2o Teorema Fundamental do Calculo (I)). Se F e contınuaem I = [a, b], diferenciavel em ]a, b[, F ′ = f e Riemann-integravel em I ec, d ∈ I entao(34)

F (d) − F (c) =

∫ d

cf(x)dx.

Demonstracao. Dada uma qualquer particao de [c, d] em intervalos Ik, ondesupomos que Ik tem extremos xk−1 < xk e c = x0 < x1 < · · · < xn = d,observamos que

F (d) − F (c) =n∑

k=0

[F (xk) − F (xk−1)],

porque a soma a direita e telescopica. Do Teorema de Lagrange (35), temosF (xk) − F (xk−1) = F ′(x∗k)(xk − xk−1), onde xk−1 < x∗k < xk, e portanto

F (d) − F (c) =n∑

k=0

f(x∗k)(xk − xk−1).

F (d) − F (c) e assim uma soma de Riemann da funcao f , e e claro que

Sd(f,P) ≤ F (d) − F (c) ≤ Sd(f,P).

Como a particao P e arbitraria, podemos tambem concluir que

∫ d

c

f ≤ F (d) − F (c) ≤∫ d

cf.

Como f e integravel, segue-se que F (d) − F (c) =

∫ d

cf(x)dx.

34Note que a existencia de F ′(x) nos pontos x = a e x = b e irrelevante.35Se F e contınua em [a, b] e diferenciavel em ]a, b[, existe θ tal que a < θ < b e

F (b) − F (a) = F ′(θ)(b− a). Este teorema tem o nome de Joseph-Louis Lagrange, (1736-1813), matematico frances de origem italiana, um dos primeiros professores das EscolasPolitecnica e Normal de Paris.

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1.5. Os Teoremas Fundamentais do Calculo 63

A respeito deste teorema, o proximo exemplo exibe uma funcao f quenao e integravel, apesar de ter uma primitiva contınua. E evidente desteexemplo que a hipotese de integrabilidade de f e indispensavel no resultadoque acabamos de provar. Entenda-se tambem do mesmo exemplo que a ope-racao de integracao e distinta da operacao de primitivacao e, em particular,a integracao e a diferenciacao nao sao exactamente operacoes inversas umada outra.

Exemplo 1.5.6.

Definimos g : R → R por

g(x) =

x2 sen( 1

x2 ), quando x 6= 0, e0, quando x = 0

.

A funcao g e diferenciavel em R e a sua derivada e dada por

g′(x) =

2x sen( 1

x2 ) − 2x cos( 1

x2 ), quando x 6= 0, e0, quando x = 0

.

A funcao g e diferenciavel em R, mas o integral da sua derivada g′ em qualquerintervalo I que contenha a origem nao existe, porque g′ e ilimitada em I.

De um ponto de vista “pratico”, deve ser em qualquer caso claro que o 2o

Teorema Fundamental e, antes do mais, um processo de calculo de integraispela determinacao de primitivas cuja importancia e difıcil de sobrestimar.Desta perspectiva, o enunciado em 1.5.5 e evidentemente pouco satisfatorio,porque e demasiado restritivo e portanto difıcil de aplicar directamente,excepto em casos muito simples. Em geral, e simplesmente impossıvel de-terminar uma “primitiva” F que seja diferenciavel e igual a integranda emtodo o intervalo de integracao, alias como o 1o Teorema fortemente sugere.No entanto, tal nao impede que a regra de Barrow se mantenha aplicavel.

Exemplos 1.5.7.

1. Seja f(x) = sgn(x) a funcao sinal de x, dada por

sgn(x) =

+1 para x ≥ 0, e−1 para x < 0.

A funcao sgn nao e contınua na origem, mas e integravel em qualquer intervalo[a, b]. Se F (x) = |x|, entao F ′(x) = sgn(x) para x 6= 0 e F (x) =

∫ x

a f(t)dt +F (a) para qualquer x.

2. Se f e a funcao de Riemann e F = 0, entao F e diferenciavel em R, masF ′(x) = f(x) apenas se x 6∈ Q. Apesar disso, temos novamente F (x) =∫ x

af(t)dt+F (a), para qualquer x. Este exemplo evidencia tambem que a con-

tinuidade da integranda e uma condicao suficiente, mas nao necessaria, para adiferenciabilidade do integral indefinido.

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64 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

E simples generalizar o teorema 1.5.5 para o caso em que a igualdadeF ′(x) = f(x) falha apenas num conjunto finito de pontos, o que bem en-tendido e suficiente para justificar calculos elementares como os referidos noexemplo 1.5.7.1. Deixamos para o exercıcio 2 a demonstracao da seguinteversao do 2o Teorema.

Teorema 1.5.8 (2o Teorema Fundamental do Calculo (II)). Se F e contınuaem I = [a, b], f e Riemann-integravel em I e F ′(t) = f(t) excepto numconjunto finito D, entao

F (x) − F (a) =

∫ x

af(t)dt.

Claro que mesmo nesta forma o 2o Teorema Fundamental e ainda insa-tisfatorio. E inteiramente evidente que, se a funcao f e Riemann-integravelno intervalo I, entao existem “primitivas” de f apropriadas ao calculo dointegral de f por aplicacao da regra de Barrow, ou seja, existem semprefuncoes contınuas F tais que F ′ = f qtp em I e que satisfazem

F (d) − F (c) =

∫ d

cf(x)dx, para quaisquer c, d ∈ I,

porque basta para isso tomar, e.g., F (x) =∫ xa f(t)dt. Seria aqui especial-

mente conveniente substituir em 1.5.8 a expressao “excepto num conjuntofinito D” por “qtp em I”, o que alias teria a virtude de transformar o 2o

Teorema num perfeito e elegante recıproco do 1o Teorema. No entanto, e sur-preendentemente, o exemplo seguinte revela que esta alteracao de hipotesesconduz a uma afirmacao incorrecta.

Exemplo 1.5.9.

A funcao aqui definida, a chamada “escada do diabo”, funcao de Can-

tor ou de Cantor-Lebesgue, e outro exemplo classico(36). Recorde-se queo conjunto de Cantor foi definido como C(I) = ∩∞

n=0Fn, onde os conjuntosFn formam uma sucessao decrescente obtida pelo processo de “remocao dointervalo medio” descrito em 1.3.3. Tomando I = F0 = [0, 1], entao o compri-mento de Fn e c(Fn) =

(23

)n. Sendo fn a funcao caracterıstica do conjunto

Fn, definimos as funcoes gn por

gn(x) =

(3

2

)n ∫ x

0

fn(t)dt, donde gn(1) =

(3

2

)n ∫ 1

0

fn(t)dt = 1.

As funcoes gn sao contınuas e crescentes, satisfazendo ainda gn(1) = 1. Afigura 1.5.2 ilustra os graficos das funcoes gn, para 0 ≤ n ≤ 5. E simplesmostrar que a sucessao gn converge uniformemente para uma funcao F , que econtınua e crescente, com F (0) = 0 e F (1) = 1, e F e a “escada do Diabo”.

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1.5. Os Teoremas Fundamentais do Calculo 65

g0 g1 g2

g3 g4 g5

Figura 1.5.2: |gn(x) − gn−1(x)| <1

2ne |gn(x) − F (x)| < 1

2n. Os segmentos

horizontais pertencem ao grafico de F .

Deixamos para o exercıcio 8 a verificacao detalhada do seguinte resultado:

Proposicao 1.5.10. A “escada do Diabo” F satisfaz F ′(x) = 0 quandox 6∈ C, onde C e o conjunto de Cantor.

Se F e a “escada do Diabo” e f e uma qualquer funcao limitada em R

tal que f(x) = 0 quando x 6∈ C, e evidente que f e Riemann-integravel eF ′(x) = f(x) quando x 6∈ C, ou seja, F ′(x) = f(x) excepto num conjuntode conteudo nulo. Apesar disso, e tambem evidente que

1 = F (1) − F (0) 6=∫ 1

0f(t)dt = 0.

A determinacao de “primitivas” F apropriadas ao calculo do integral deuma funcao integravel f por aplicacao da regra de Barrow revela-se, assim,um problema bem mais difıcil do que uma leitura rapida do 1o TeoremaFundamental na forma 1.5.4 nos pode fazer supor. Resumimos a questaocom que nos deparamos na seguinte forma:

36Para uma aplicacao talvez surpreendente, mas “pratica”, deste tipo de funcoes, veja-sepor exemplo o artigo Devil’s Staircase-Type Faceting of a Cubic Lyotropic Liquid Crystal,de Pawel Pieranski, Paul Sotta, Daniel Rohe, e Marianne Imperor-Clerc, em Phys. Rev.Lett. 84, 2409, de 13 de Marco de 2000.

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66 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Quando f e integravel em [a, b], existem funcoes F tais que F ′ = fqtp em [a, b]. Quais dessas funcoes satisfazem a regra de Barrow

F (b) − F (a) =

∫ b

af(x)dx?

Mais geralmente, que funcoes F sao integrais indefinidos?

Concluımos para ja, do exemplo da “escada do Diabo”, que

• Existem funcoes contınuas em toda a parte e diferenciaveis qtp (alias,diferenciaveis excepto num conjunto de conteudo nulo), como a funcaode Cantor-Lebesgue, que nao sao o integral da respectiva derivada.

• Dadas funcoes F e G contınuas em toda a parte e diferenciaveis qtp,e falso que

F ′(x) = G′(x) qtp =⇒ F (x) = G(x) + C,

porque F −G pode ser, em particular, a funcao de Cantor-Lebesgue.

• E portanto evidente que a expressao “excepto num conjunto finito D”em 1.5.8 nao pode ser substituıda por “qtp em I”.

Estudaremos adiante as solucoes encontradas pela teoria de Lebesguepara estas questoes, que envolvem de forma crucial a nocao de continuidadeabsoluta e o grande Teorema de Diferenciacao do proprio Lebesgue, desco-berto em 1904.

E tambem muito interessante reconhecer que o calculo do comprimentodo grafico de uma funcao F esta intimamente relacionado com a questaode saber se F e ou nao o integral da sua derivada. Para definir o compri-mento do grafico de F , observamos que, se F e uma funcao real definidapelo menos no intervalo J ⊆ R, a seleccao de um qualquer conjunto finitoP = x0, x1, · · · , xn ⊆ J determina uma linha poligonal L(F,P) inscritano grafico de F , formada pelos segmentos de recta que unem pontos Pk =(xk, F (xk)) consecutivos (ver a figura 1.5.3)(37). Supondo que x0 ≤ x1 ≤· · · ≤ xn, esta linha poligonal tem comprimento

s(L(F,P)) =n∑

k=1

√(xk − xk−1)2 + (F (xk) − F (xk−1))2

O comprimento da linha poligonal L(F,P) e uma aproximacao por de-feito do comprimento do grafico de F , sendo por isso o erro menor quandos(L(F,P)) e maior. Segue-se que a melhor aproximacao do comprimento dografico de F que podemos obter a partir destas linhas poligonais e o supremodos seus comprimentos, o que formalizamos na proxima definicao:

37Note-se a tıtulo de curiosidade que os graficos na figura 1.5.2 sao linhas poligonaisinscritas no grafico da “escada do diabo”.

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1.5. Os Teoremas Fundamentais do Calculo 67

P1

P2

P3

P4

P5

P6

P7 P8

P9P10

Figura 1.5.3: Aproximacao do grafico de F pela linha poligonal L(F,P).

Definicao 1.5.11 (Comprimento do grafico de F ). Se F : I → R e ointervalo J ⊆ I entao o comprimento do grafico de F em J e dado por(38)

ΛJ(F ) = sups(L(F,P)) : P ⊆ J,P finito .

Se ΛJ (F ) <∞ dizemos que o grafico de F e rectificavel em J .

Mostramos desde ja como calcular o comprimento do grafico de umafuncao que satisfaz as condicoes do 2o Teorema Fundamental na forma 1.5.5.E tambem possıvel mostrar que a formula em causa e valida desde que Fseja o integral da sua derivada F ′, mas deixamos o completo esclarecimentodesta questao para depois de desenvolvermos a teoria de Lebesgue, dada aespecial elegancia dos resultados que sao apenas possıveis nesse contexto.

Teorema 1.5.12. Se F e contınua em I = [a, b], diferenciavel em ]a, b[ eF ′ e integravel em I entao

ΛI(F ) =

∫ b

a

√1 + F ′(x)2dx.

Demonstracao. Dada uma qualquer particao P = x0, x1, · · · , xn do in-tervalo I = [a, b], onde a = x0 < x1 < · · · < xn = b, escrevemos ∆xk =xk − xk−1, yk = F (xk) e ∆yk = yk − yk−1, donde

s(L(F,P)) =n∑

k=1

√(∆xk)2 + (∆yk)2 =

n∑

k=1

1 +

(∆yk

∆xk

)2

∆xk.

38Esta definicao adapta-se sem dificuldades a curvas em RN , onde uma “curva” e aimagem de uma funcao F : I → RN e I ⊆ R e um intervalo.

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68 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Pelo Teorema de Lagrange, existe x∗k ∈]xk−1, xk[ tal que

∆yk

∆xk=F (xk) − F (xk−1)

xk − xk−1= F ′(x∗k) e portanto

s(L(F,P)) =n∑

k=1

√1 + F ′(x∗k)

2∆xk e uma soma de Riemann de g =√

1 + F ′2,

e temos

(1) Sd(√

1 + F ′2,P) ≤ s(L(F,P)) ≤ Sd(√

1 + F ′2,P)

Deixamos a conclusao desta demonstracao para o exercıcio 7.

Exemplos 1.5.13.

1. E facil mostrar que o teorema anterior e igualmente valido quando F satisfazapenas as hipoteses de 1.5.8. Como dissemos, o resultado mantem-se mesmo nocontexto da teoria de Riemann desde que a funcao F seja o integral indefinidoda sua derivada, mas a verificacao deste facto ja nao e tao simples.

2. O grafico de qualquer integral indefinido e rectificavel em intervalos limitados(exercıcio 3).

3. O grafico de qualquer funcao monotona e rectificavel em intervalos limitados(exercıcio 6). Em particular, a “escada do Diabo” e uma funcao contınua comgrafico rectificavel a qual a identidade do teorema 1.5.12 nao se aplica (exercıcio8), tal como nao se aplica o 2o Teorema Fundamental.

Descrevemos aqui mais um exemplo classico, devido a van der Waer-den(39), de uma funcao contınua em toda a parte que nao e diferenciavelem ponto nenhum. Este exemplo sugere fortemente que a usual nocao decontinuidade e pouco util para identificar as funcoes que sao “integraisindefinidos” mas, como veremos, ilustra tambem a existencia de funcoescontınuas com outras propriedades apenas aparentemente paradoxais:

• O grafico desta funcao nao e rectificavel em nenhum intervalo commais de um ponto (exercıcio 9), e em particular

• A funcao nao e monotona em nenhum intervalo com mais de um ponto.

Exemplo 1.5.14.

a funcao de van der Waerden: A funcao f0 : R → R dada por f0(x) =∣∣x− int(x+ 12 )∣∣, onde int(x) e a parte inteira de x, exprime a distancia de x

ao inteiro mais proximo. Observamos que

39De Bartel Leendert van der Waerden, 1903-1996, matematico holandes, grande al-gebrista contemporaneo, que estudou e ensinou na Alemanha ate a 2a Guerra Mundial.Era desde 1951 professor na Universidade de Zurique. O exemplo aqui referido foi publi-cado em 1930. Na literatura em lıngua inglesa, e comum identificar funcoes como a desteexemplo pela sigla ecnd, de “everywhere continuous nowhere differentiable”.

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1.5. Os Teoremas Fundamentais do Calculo 69

• f0 e uma funcao contınua, com perıodo 1.

• 0 ≤ f0(x) ≤ 12 e f0(k) = 0 para qualquer inteiro k ∈ Z.

Tomando fn(x) = 12n f0(2

nx) para n ≥ 0, temos igualmente

• fn e uma funcao contınua, com perıodo 12n ,

• 0 ≤ fn(x) ≤ 12n+1 , e fn( k

2n ) = 0, para qualquer k ∈ Z e n ∈ N.

A funcao de van der Waerden e definida por

f(x) =

∞∑

n=0

fn(x) donde 0 ≤ f(x) ≤∞∑

n=0

1

2n+1= 1.

A funcao de van der Waerden e contınua em R, porque as funcoes fn saocontınuas e a respectiva serie e uniformemente convergente. A figura 1.5.4ilustra os graficos das funcoes fn para 0 ≤ n ≤ 3 e sugere o grafico de f(40).

10∑

n=0

fn

f0

f1

f2f3

Figura 1.5.4: As funcoes fn(0 ≤ n ≤ 3) e

10∑

n=0

fn.

O grafico de cada funcao fn e “em dente de serra”, formado por segmentos derecta de declive ±1, e deste facto resulta que:

Proposicao 1.5.15. A funcao de van der Waerden nao e diferenciavel emponto nenhum.

Demonstracao. Fixado x ∈ R, se in = int(2nx) para n ∈ N entao:

an =in2n

≤ x <in + 1

2n= bn = an +

1

2ne an → x, bn → x.

Se a funcao f e diferenciavel em x teremos portanto:

limn→∞

f(bn) − f(an)

bn − an= f ′(x).

40Note que |f(x)−∑10

n=0fn| ≤

1

2048, diferenca que na escala desta figura e imperceptıvel.

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70 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

A funcao de van der Waerden e facil de calcular nos pontos da forma i2n com

i ∈ Z, porque para k ≥ n temos fk( i2n ) = 0. Dito doutra forma, a serie que

define a funcao f reduz-se nestes pontos a uma soma finita com n termos:

f(i

2n) =

n−1∑

k=0

fk(i

2n) e

f(bn) − f(an)

bn − an=

n−1∑

k=0

fk(bn) − fk(an)

bn − an=

n−1∑

k=0

ck,n.

Fixado k, os declives ck,n sao constantes para n > k, ou seja, ck,n = dk, ondedk = ±1, porque o grafico de fk (um “dente de serra”, como referimos) e linearem qualquer intervalo da forma [ i

2k+1 ,i+12k+1 ] com declive ±1. Temos assim

f(bn) − f(an)

bn − an=

n−1∑

k=0

dk.

Como dk = ±1 nao tende para zero quando k → ∞, o limite

limn→∞

f(bn) − f(an)

bn − an=

∞∑

k=0

dk,

nao pode existir e ser finito. Portanto, f nao e diferenciavel em x.

Exercıcios.

1. Suponha que o integral improprio(41)∫∞−∞ f(t)dt e convergente. A funcao

F (x) =∫ x

af(t)dt para x ∈ R e uniformemente contınua em R?

2. Demonstre a versao do 2o Teorema Fundamental indicada em 1.5.8.

3. Suponha que f e integravel no intervalo I, a ∈ I e F (x) =∫ x

af(t)dt para

x ∈ I. Mostre que o grafico de F e rectificavel em qualquer intervalo limitadoem I.

4. Mostre que o grafico da funcao definida no exemplo 1.5.6 nao e rectificavelno intervalo [0, 1], e portanto a funcao em causa nao e um integral indefinido.

5. Suponha que F e uma funcao crescente no intervalo I, e F (x) =∫ x

a f(t)dt+F (a), onde f e Riemann-integravel em I. Mostre que se A ⊆ I e c(A) = 0,entao c(F (A)) = 0. Prove igualmente que se A e nulo no sentido de Borel,entao F (A) e tambem nulo.

6. Suponha que f esta definida num intervalo compacto I. Mostre que

a) Se f e monotona em I entao o seu grafico e rectificavel em I.

b) Se x < y < z sao pontos de I entao Λ[x,z](f) = Λ[x,y](f) + Λ[y,z](f).

41O integral improprio de Riemann∫

−∞f(t)dt diz-se convergente se o integral de

Riemann F (x, y) =∫ y

xf(t)dt existe para quaisquer −∞ < x ≤ y < ∞ e a funcao F tem

limite finito quando x→ −∞ e y → +∞.

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1.6. O Problema de Borel 71

7. Complete a demonstracao de 1.5.12 (verifique as afirmacoes feitas no finaldo argumento apresentado, que envolvem somas de Darboux da integranda emcausa).

8. Considere a definicao da “escada do Diabo” F apresentada em 1.5.9.

a) Calcule o maximo de |gn(x)−gn−1(x)|. Conclua que a sucessao de funcoesgn converge uniformemente para uma funcao contınua e crescente F .

b) Demonstre a proposicao 1.5.10.

c) Calcule o integral de F sobre o intervalo [0, 1].

d) Calcule o comprimento do grafico de F no intervalo [0, 1].

e) Sendo C(I) o conjunto de Cantor, mostre que F (C(I)) = I. Concluadirectamente do exercıcio 5 que F nao e um integral indefinido.

f) Prove que F nao e diferenciavel em nenhum ponto de C(I).

9. Prove que o grafico da funcao de van der Waerden (exemplo 1.5.14) nao erectificavel em qualquer intervalo I nao trivial, i.e., com mais de um ponto.Conclua em particular que esta funcao nao e monotona em nenhum intervalonao trivial. sugestao: Na notacao do exemplo 1.5.14, seja

gm(x) =

m∑

n=0

fn(x).

Note que o grafico de gm e uma linha poligonal inscrita no grafico de f . SendoΓm o comprimento dessa linha no intervalo I = [0, 1], note que

Γm ≥ λm =

∫ 1

0

|g′m|.

Mostre que λm → ∞. Pode aqui ser conveniente usar a aproximacao de Stirlingpara o factorial de n, na forma:

limn→∞

n!en

nn√

2πn= 1

10. Sendo f a funcao de van der Waerden (exemplo 1.5.14) mostre que o con-junto onde f tem extremos locais e denso.

11. Suponha que f : I → R e diferenciavel em I e ε > 0. Mostre que existemfuncoes contınuas g : I → R que nao sao diferenciaveis em ponto nenhum de Ie satisfazem |f(x) − g(x)| < ε, para qualquer x ∈ I.

1.6 O Problema de Borel

E justo sublinhar que a nocao de “aditividade”, reconhecidamente na formaalgo vaga de princıpios como “o todo e a soma das partes”, e uma questaoja intensamente debatida por filosofos gregos da Antiguidade Classica, e.g.,em torno dos famosos paradoxos de Zenao. O chamado paradoxo da seta(42)

42“Imagine-se uma seta em voo. Em cada instante de tempo, que nao tem duracao, aseta nao se move. Como o tempo e uma sucessao de instantes, a seta nunca se move!”

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72 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

observa essencialmente que um segmento de recta de comprimento positivoe formado por pontos de comprimento zero. Portanto, neste caso nao erazoavel sustentar que “o comprimento do todo e a soma dos comprimentosdas partes”. O paradoxo do corredor(43) envolve por sua vez a particao deum segmento de recta numa famılia numeravel de subintervalos. A tıtulode ilustracao, considere-se a particao de I =]0, 1] dada por

P = Ik =]1

2k,

1

2k−1] : k ∈ N, onde c(I) = 1 =

∞∑

k=1

1

2k=

∞∑

k=1

c(Ik).

Pelo menos neste caso, a propriedade de aditividade e aplicavel desde quese considerem series em lugar das usuais somas com um numero finito deparcelas, ou seja, continua a ser verdade que “o comprimento do todo e asoma (da serie) dos comprimentos das partes”. Muito naturalmente, estefacto nao parece ter sido entendido pelos Antigos, que nunca dominaram anocao de limite, sem a qual e impossıvel o correcto tratamento de series,e nao terao suspeitado da subtil diferenca entre o infinito numeravel e oinfinito nao-numeravel(44), que e a verdadeira justificacao para a diferencade conclusoes nos dois paradoxos referidos.

Do nosso ponto de vista, o paradoxo do corredor e especialmente notavelporque a sua solucao sugere como se pode definir o “conteudo” de algunsconjuntos que nao sao Jordan-mensuraveis. A ideia em causa e a baseconceptual da moderna Teoria da Medida e aparece explicitamente na tese dedoutoramento de Borel. Consiste em observar que a aditividade do conteudose aplica igualmente a particoes infinitas numeraveis(45), um resultado quepode ser enunciado como se segue:

43O corredor deve correr uma distancia fixa. Demora um tempo finito a percorrer aprimeira metade, um tempo finito a percorrer metade do restante, e assim sucessivamente.O tempo da corrida e uma soma infinita de termos positivos, a qual se julgava dever atribuirum valor infinito. Ambos os paradoxos, entre muitos outros, sao atribuıdos ao filosofoZenao (de Eleia, no sul de Italia), que viveu no seculo V AC. Os paradoxos parecemter sido criados para exibir dificuldades logicas da ideia de “contınuo”, hoje ubıqua naMatematica, atraves de exemplos como a recta real R.

44Foi apenas em 1873 que Cantor esclareceu esta diferenca, provando em particular queQ e numeravel e R e nao-numeravel.

45A tese de Borel, de 1895, que curiosamente nao faz qualquer referencia a teoria daintegracao, introduz pelo menos tres ideias relacionadas entre si e fundamentais para essateoria: a aditividade do conteudo para particoes numeraveis (na realidade, o lema 1.6.2para intervalos), o teorema de Heine-Borel, e a nocao de conjunto de medida nula. Oteorema de Heine-Borel e indispensavel para provar a propriedade de aditividade referidae a definicao de conjunto de medida nula usa particoes numeraveis para atribuir uma“medida” a conjuntos que podem nao ser Jordan-mensuraveis. Esta ultima definicao temalias um domınio de aplicacao tao geral que cedo conduziu Borel a delicadas reflexoessobre a ideia de “conjunto”. Registe-se a tıtulo de curiosidade que o orientador de tese deBorel foi o ja referido Darboux.

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1.6. O Problema de Borel 73

Teorema 1.6.1. Se os conjuntos An ∈ J (RN ) sao disjuntos, entao

A =

∞⋃

n=1

An ∈ J (RN ) =⇒ cN (A) =

∞∑

n=1

cN (An).

Este teorema e uma consequencia imediata dos dois lemas que passamosa enunciar e demonstrar (1.6.2 e 1.6.3):

Lema 1.6.2. Dados conjuntos An ∈ J (RN ), entao

A ⊆∞⋃

n=1

An e A ∈ J (RN ) =⇒ cN (A) ≤∞∑

n=1

cN (An).

Demonstracao. Seja ε > 0. De acordo com 1.3.4, existem conjuntos ele-mentares K (compacto) e U (aberto) tais que

(i) K ⊆ A ⊆ U e cN (U\K) < ε donde cN (A) − ε < cN (K).

Pela mesma razao, existem conjuntos elementares Kn (compactos) e Un

(abertos), tais que Kn ⊆ An ⊆ Un e

cN (Un\Kn) <ε

2ne cN (Un) < cN (An) +

ε

2ndonde

(ii)∞∑

n=1

cN (Un) <∞∑

n=1

(cN (An) +

ε

2n

)=

∞∑

n=1

cN (An) + ε.

Como K e compacto, segue-se do teorema de Heine-Borel que existe m ∈ N

tal que

(iii) K ⊆ A ⊆∞⋃

n=1

An ⊆∞⋃

n=1

Un =⇒ K ⊆m⋃

n=1

Un.

Como o conteudo de Jordan e subaditivo, concluımos de (i), (ii) e (iii) que

cN (A) − ε < cN (K) ≤m∑

n=1

cN (Un) ≤∞∑

n=1

cN (Un) <

∞∑

n=1

cN (An) + ε.

Temos assim que

cN (A) − ε <

∞∑

n=1

cN (An) + ε, ou cN (A) <

∞∑

n=1

cN (An) + 2ε,

onde finalmente fazemos ε→ 0.

Lema 1.6.3. Se os conjuntos An ∈ J (RN ) sao disjuntos, entao

A ⊇∞⋃

n=1

An e A ∈ J (RN ) =⇒ cN (A) ≥∞∑

n=1

cN (An).

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74 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Demonstracao. Notamos que, como cN e aditivo,

Bk =

k⋃

n=1

An =⇒ cN (Bk) =

k∑

n=1

cN (An).

Como cN e monotono e Bk ⊆ A, temos tambem cN (Bk) ≤ cN (A), donde

k∑

n=1

cN (An) ≤ cN (A) para qualquer k ∈ N e portanto∞∑

n=1

cN (An) ≤ cN (A).

Conforme dissemos, e evidente que os lemas 1.6.2 e 1.6.3 estabelecem oteorema 1.6.1. Este ultimo resultado permite definir o “conteudo” de algunsconjuntos que nao sao Jordan-mensuraveis por razoes faceis de explicar.Observamos que, de acordo com 1.6.1, se os conjuntos An ∈ J (RN ) saodisjuntos e A =

⋃∞n=1An, entao uma das seguintes alternativas e sempre

valida:

1) A e Jordan-mensuravel e neste caso cN (A) =∞∑

n=1

cN (An), ou

2) A nao e Jordan-mensuravel e neste caso nao podemos ter

cN (A) =∞∑

n=1

cN (An),

apenas porque o lado esquerdo desta identidade nao esta definido.(Fazemos aqui a convencao natural de atribuir a serie a soma +∞,se esta divergir no sentido usual do termo.)

A ideia de Borel e muito simples: No caso 2),

a identidade cN (A) =

∞∑

n=1

cN (An) deve ser a definicao de cN (A).

Exemplo 1.6.4.

Seja A = Q = q1, q2, · · · , qn, · · · e An = qn. E obvio que os conjuntos An

sao Jordan-mensuraveis e c(An) = 0. O conjunto Q nao e Jordan-mensuravel,mas a ideia de Borel sugere que se defina c(Q) = 0.

E naturalmente necessario verificar que esta ideia nao conduz a ambi-guidades, mas isso resulta de uma adaptacao simples do argumento queutilizamos a proposito dos conjuntos elementares, ja na proposicao 1.1.9.

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1.6. O Problema de Borel 75

Lema 1.6.5. Se P = An : n ∈ N e P ′ = Bm : m ∈ N sao particoes doconjunto A ⊆ RN em conjuntos Jordan-mensuraveis, entao

∞∑

n=1

cN (An) =

∞∑

m=1

cN (Bm).

Demonstracao. Observamos que

A =

∞⋃

n=1

An =

∞⋃

m=1

Bm =⇒ An =

∞⋃

m=1

An ∩Bm e Bm =

∞⋃

n=1

An ∩Bm.

Como os conjuntos An ∩ Bm sao Jordan-mensuraveis e disjuntos e os con-juntos An e Bm sao Jordan-mensuraveis, obtemos de 1.6.1 que:

cN (An) =

∞∑

m=1

cN (An ∩Bm) e cN (Bm) =

∞∑

n=1

cN (An ∩Bm).

Segue-se imediatamente que

∞∑

n=1

cN (An) =

∞∑

n=1

∞∑

m=1

cN (An ∩Bm) =

∞∑

m=1

∞∑

n=1

cN (An ∩Bm) =

∞∑

m=1

cN (Bm).

A seguinte terminologia complementa a introduzida na seccao 1.2.

Definicao 1.6.6 (Funcoes σ-Aditivas e σ-Subaditivas). Seja S uma classede subconjuntos do conjunto X e λ : S → [0,+∞] uma funcao. Entao λ e

a) σ-aditiva se e so se, para quaisquer conjuntos An ∈ S disjuntos,

∞⋃

n=1

An ∈ S =⇒ λ(∞⋃

n=1

An) =∞∑

n=1

λ(An).

b) σ-subaditiva (46) se e so se para quaisquer conjuntos C,An ∈ S,

C ⊆∞⋃

n=1

An =⇒ λ(C) ≤∞∑

n=1

λ(An).

46 Recorde-se que a soma da serie∑

n=1λ(An) esta sempre definida, podendo, claro, ser

+∞. A nocao de σ-aditividade tambem se aplica a funcoes com valores reais ou complexos,mas, nestes casos, e necessario supor que as series em causa sao sempre convergentes nosentido usual do termo. E facil verificar que a nocao de σ-subaditividade requer λ ≥ 0(porque?), e mais uma vez a questao da convergencia da serie em questao e irrelevante.

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76 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Nesta terminologia, o teorema 1.6.1 afirma que o conteudo de Jordan cNe σ-aditivo na classe J (RN ), e o lema 1.6.2 diz que cN e σ-subaditivo namesma classe J (RN ). Deixamos como exercıcio a demonstracao do resultadoseguinte, que pode ser usado para exibir muitos outros exemplos de funcoesσ-aditivas e σ-subaditivas em classes de conjuntos apropriadas.

Teorema 1.6.7. Se R ⊆ RN e f : R→ R, entao o integral indefinido λ def e σ-aditivo em Jf (R). Se f ≥ 0 em R, entao λ e σ-subaditivo.

Exemplo 1.6.8.

Apresentamos aqui um conjunto aberto limitado que nao e Jordan-mensuravel.Seja D = q1, q2, · · · , qn, · · · = Q ∩ [0, 1] o exemplo de Dirichlet, ε > 0, econsiderem-se os conjuntos abertos

Un =]qn − ε

2n, qn +

ε

2n[ e U =

∞⋃

n=1

Un.

Como o conteudo de Jordan e σ-subaditivo, se U e Jordan-mensuravel entao:

c(U) ≤∞∑

n=1

c(Un) =

∞∑

n=1

ε

2n−1= 2ε.

E evidente que D ⊆ U e sabemos que c(D) = 1. Podemos assim concluir quec(U) ≥ 1. Segue-se que, se ε < 1

2 , entao U nao e Jordan-mensuravel. Note-sede passagem que U nao contem o intervalo [0, 1], contrariamente ao que a nossaintuicao nos pode fazer supor.

Qualquer uniao numeravel de conjuntos em E(RN ) ou J (RN ) e umauniao de conjuntos disjuntos na classe em questao, porque estas classes saosemi-algebras. A ideia de Borel permite por isso atribuir um “conteudo”, ou“extensao”, que designamos temporariamente por cN , pelo menos aos con-juntos que sao unioes numeraveis de conjuntos Jordan-mensuraveis, con-forme registamos na proxima definicao:

Definicao 1.6.9 (As classes Eσ(RN ) e Jσ(RN ) e a funcao cN ).

a) Jσ(RN ) e a classe formada pelos conjuntos que sao unioes numeraveisde conjuntos Jordan-mensuraveis em RN ,

b) Eσ(RN ) e a classe formada pelos conjuntos que sao unioes numeraveisde conjuntos elementares em RN . Os conjuntos E ∈ Eσ(RN ) dizem-seσ-elementares.

c) Se A ∈ Jσ(RN ) entao existem conjuntos An ∈ J (RN ) disjuntos taisque A =

⋃∞n=1An, e definimos

cN (A) =

∞∑

n=1

cN (An).

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1.6. O Problema de Borel 77

Exemplos 1.6.10.

1. Qualquer conjunto numeravel e σ-elementar. Se E = x1, x2, · · · , xn, · · · ,entao E = ∪∞

n=1En, onde os conjuntos En = xn sao elementares. Dado quecN (En) = 0, temos cN (E) = 0. Em particular, Q e σ-elementar.

2. Mais geralmente, E ⊆ RN e σ-elementar se e so se E e uma uniao numeravelde rectangulos limitados.

3. E facil verificar que RN e um conjunto σ-elementar, e cN (RN ) = ∞.

4. O conjunto (aberto) do exemplo 1.6.8 e σ-elementar, mas nao e Jordan-men-suravel.

5. A funcao cN e uma extensao(47) do conteudo de Jordan, i.e., se A ⊆ RN eJordan-mensuravel, entao cN (A) = cN (A).

6. Seja f : R → R limitada e contınua qtp no rectangulo compacto R, e D oconjunto de pontos de descontinuidade de f . Recorde-se que D e uma uniaonumeravel de conjuntos de conteudo nulo, donde D ∈ Jσ(RN ) e cN (D) = 0.

As observacoes seguintes sao uteis no que se segue.

Proposicao 1.6.11. Seja E ∈ Jσ(RN ). Temos entao:

a) Se E ∈ Eσ(R), entao c(E) = 0 ⇐⇒ E e numeravel.

b) cN (E) = 0 ⇐⇒ int(E) = ∅.

c) cN e σ-subaditiva em Jσ(RN ), ou seja, se E,Fn ∈ Jσ(RN ) entao

E ⊆∞⋃

n=1

Fn =⇒ cN (E) ≤∞∑

n=1

cN (Fn).

Demonstracao. Deixamos a verificacao de a) e b) para o exercıcio 9. Relati-vamente a c), consideramos particoes de E e dos conjuntos Fn em conjuntosJordan-mensuraveis Ei e Fnk, donde

E =∞⋃

i=1

Ei, Fn =∞⋃

k=1

Fnk.

Como os conjuntos E′m = ∪m

i=1Ei ⊆ E sao Jordan-mensuraveis, segue-se dolema 1.6.2 que

E′m ⊆

∞⋃

n=1

Fn =

∞⋃

n=1

∞⋃

k=1

Fnk =⇒ cN (E′m) ≤

∞∑

n=1

∞∑

n=1

cN (Fnk) =

∞∑

n=1

cN (Fn)

E imediato que cN (E′m) → cN (E), e portanto cN (E) ≤∑∞

n=1 cN (Fn).

47A funcao g : B → Y diz-se uma extensao de f : A→ X se e so se A ⊆ B, X ⊆ Y eg(x) = f(x) para qualquer x ∈ A.

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78 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Exemplos 1.6.12.

1. O conjunto de Cantor C(I) nao e σ-elementar porque tem conteudo nulo enao e numeravel.

2. O conjunto U = [0, 1] \C(I) e σ-elementar, porque U = ∪∞n=1En, onde En e

um conjunto elementar formado por 2n−1 subintervalos, cada um de compri-mento 1

3n . Repare-se por isso que Eσ(R) nao e uma semi-algebra.

O proximo teorema indica mais algumas propriedades das classes Eσ(RN )e Jσ(RN ) e da funcao cN :

Teorema 1.6.13. As classes Eσ(RN ) e Jσ(RN ) sao fechadas em relacao aunioes finitas ou numeraveis e interseccoes finitas, e a funcao cN e aditivae σ-aditiva em Jσ(RN ).

Demonstracao. Para mostrar que a classe Jσ(RN ) e fechada relativamentea unioes numeraveis, consideramos conjuntos En ∈ Jσ(RN ) e notamos queexistem conjuntos Enm ∈ J (RN ) tais que En = ∪∞

m=1Enm. Segue-se que

E =

∞⋃

n=1

En =

∞⋃

n=1

∞⋃

m=1

Enm

e uma uniao numeravel de conjuntos Enm ∈ J (RN ), i.e., E ∈ Jσ(RN ).(Note que este argumento se aplica sem alteracoes a classe Eσ(RN ).)

Para verificar a σ-aditividade de cN , supomos que os conjuntos En saodisjuntos e que para cada n os conjuntos Enm sao igualmente disjuntos. Eimediato da definicao de cN (E) e de cN (En) que

cN (E) = cN (

∞⋃

n=1

∞⋃

m=1

Enm) =

∞∑

n=1

∞∑

m=1

cN (Enm) =

∞∑

n=1

cN (En).

E muito simples verificar a aditividade de cN e o fecho das classes Eσ(RN )e Jσ(RN ) relativamente a interseccoes finitas.

De acordo com a observacao feita no exemplo 1.6.10.5 acima, e paraevitar sobrecarregar a notacao utilizada, passamos a escrever “cN (E)” emlugar de “cN (E)” mesmo quando E ∈ Jσ(RN ).

Exemplo 1.6.14.

Seja D o exemplo de Dirichlet e I = [0, 1]\D o conjunto dos irracionais em[0, 1]. Sabemos que D e σ-elementar, c(D) = 0 e c([0, 1]) = 1. Se I ∈ Jσ(R),segue-se pela propriedade de aditividade referida no teorema anterior que

1 = c([0, 1]) = c(I) + c(D) ⇒ c(I) = 1.

Sabemos que int(I) = ∅ e, como referimos acima, se I ∈ Jσ(R) entao c(I) = 0.Concluımos que I 6∈ Jσ(R). Em particular, Jσ(R) nao e uma semi-algebra.

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1.6. O Problema de Borel 79

E(RN ) J (RN )Eσ(RN )

Jσ(RN )

Figura 1.6.1: As classes E(RN ), Eσ(RN ), J (RN ) e Jσ(RN ).

O proximo exemplo e um conjunto perfeito muito semelhante ao de Can-tor, mas uma aparentemente ligeira modificacao na sua construcao faz comque nao pertenca a Jσ(R). Este conjunto revela que Jσ(R) nao contemtodos os conjuntos compactos, e pode ser usado, tal como o exemplo deDirichlet, para mostrar que Jσ(R) nao e uma semi-algebra.

Exemplo 1.6.15.

o conjunto de volterra(48) - O conjunto de Cantor C(I) (exemplo 1.3.9)e C(I) = ∩∞

n=0Fn, onde Fn e uma uniao de 2n intervalos fechados disjuntosIk,n, e F0 = I = [a, b] e o “intervalo inicial”. A sucessao de conjuntos Fn

foi definida recursivamente: dividimos cada subintervalo Ik,n de Fn em tresintervalos de igual comprimento 1

3c(Ik,n), e designamos por Jk,n o subintervalomedio (aberto) Jk,n ⊂ Ik,n. O conjunto Fn+1 resulta de extrair de Fn ossubintervalos Jk,n, i.e.,

Fn+1 = Fn\Un, onde Un =

2n⋃

k=1

Jk,n.

E claro que nada nos impede de extrair, em cada passo e de cada subintervaloIk,n, um intervalo aberto Jk,n, ainda centrado no ponto medio de Ik,n, masagora com comprimento c(Jk,n) 6= 1

3c(Ik,n). Exactamente como no procedi-mento original de Cantor, e facil verificar que (exercıcio 14)

V =

∞⋂

n=o

Fn e um conjunto perfeito nao-numeravel com interior vazio.

Sendo I = F0 o intervalo inicial, temos igualmente que

U = I\V =

∞⋃

n=0

Un e σ-elementar e aberto.

48Vito Volterra descobriu exemplos analogos a este e a “funcao de Volterra” descritamais adiante em 1881, quando era ainda estudante. Actualmente e comum dizer queconjuntos deste tipo sao “de Cantor”.

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80 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Para simplificar a notacao, escrevemos an = c(Jk,n). A escolha da sucessao an

e em larga medida arbitraria, mas para efeitos do presente exemplo e suficienteseleccionar primeiro um qualquer 0 ≤ ε < 1 e definir:

an =

1−ε3 c(I), se n = 0,

13an−1, se n > 0.

Dizemos que V e um conjunto de volterra, que passamos a designar porCε(I) (nesta notacao, o conjunto de Cantor do exemplo 1.3.9 e C0(I)). Oconjunto U e σ-elementar e por isso e facil calcular o seu conteudo. Cadaconjunto Un e formado por 2n subintervalos de comprimento an = 1−ε

3n+1 c(I),

donde c(Un) = (1 − ε) 2n

3n+1 c(I) e

c(U) =

∞∑

n=0

c(Un) = (1 − ε

3)c(I)

∞∑

n=0

(2

3

)n

= (1 − ε)c(I).

Designando o conjunto U por Uε(I) para maior clareza, observamos que, seCε(I) ∈ Jσ(RN ), entao

• c(I) = c(Cε(I)) + c(Uε(I)) ⇒ c(Cε(I)) = c(I) − (1 − ε)c(I) = εc(I), e

• Como Cε(I) tem interior vazio, temos c(Cε(I)) = 0.

Concluımos assim que Cε(I) 6∈ Jσ(RN ) quando ε > 0.

F0

F1

F2

F3

F4

U1 U2U2 U3U3U3U3 U4U4U4U4U4U4U4U4

Figura 1.6.2: A construcao de Volterra com ε = 14 .

A funcao cN : Jσ(RN ) → [0,∞] e claramente uma extensao nao-trivialdo conteudo de Jordan, mas os exemplos 1.6.14 e 1.6.15 revelam que nao eainda uma base satisfatoria para o desenvolvimento da teoria. Na verdade,quandoA ⊆ B ⊆ RN e cN (A) e cN (B) estao definidos, entao devemos ter, talcomo observamos acima, cN (B\A) = cN (B)−cN(A). No entanto, vimos emambos os exemplos referidos que podemos ter B\A 6∈ Jσ(RN ), mesmo queA,B ∈ Jσ(RN ). Em particular, estes exemplos sugerem que uma extensaoapropriada da funcao cN deve estar definida numa classe de conjuntos queseja uma semi-algebra, alem de ser fechada em relacao a unioes numeraveis.

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1.6. O Problema de Borel 81

Borel teve o enorme merito de analisar e identificar com total clarezaestas dificuldades e enunciar com muita precisao o problema que entendiadever ser resolvido, listando o que referia como “propriedades essenciais”(49)a satisfazer. Borel foi assim um notavel pioneiro do tipo de procedimentoque hoje chamamos de “axiomatico”.

1.6.16 (Problema de Borel). Determinar uma classe MN de sub-conjuntos de RN e uma funcao κN : MN → [0,∞] tais que:

a) A classe MN contem os conjuntos elementares.

b) Se E ⊂ RN e elementar entao κN (E) = cN (E).

c) MN e uma algebra fechada em relacao a unioes numeraveis.

d) κN e uma funcao σ-aditiva.

Repare-se que a referencia neste enunciado a uma algebra em vez de semi-algebra e facil de entender: como RN e σ-elementar, qualquer semi-algebraem RN fechada relativamente a unioes numeraveis e que contenha os con-juntos elementares contem RN , ou seja, e uma algebra.

E(RN )cN

κN = ?

Eσ(RN )

MN = ?

Figura 1.6.3: O Problema de Borel

Nao vamos descrever imediatamente a solucao que Borel descobriu paraeste problema(50). Estudamos para ja alguns resultados auxiliares impor-tantes, em especial o seguinte, descoberto por Cantor em 1883:

49As suas palavras, em Lecons sur la theorie des fonctions, sao muito claras: “... definir

os elementos novos que sao introduzidos a partir das suas propriedades essenciais, ou seja,

daquelas que sao estritamente indispensaveis aos raciocınios que se seguem”.50Veremos adiante que a classe MN = B(RN ) descoberta por Borel, formada pelos con-

juntos que hoje se dizem Borel-mensuraveis, e a menor solucao deste problema. Estaclasse e uma extensao de Eσ(RN ), mas nao contem todos os conjuntos Jordan-mensuraveis,facto que Borel conhecia e sublinhava com cuidado, porventura em sinal de prudente res-peito por Jordan, que gozava de grande influencia.

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82 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Teorema 1.6.17 (de Cantor). Qualquer aberto e uma uniao numeravel derectangulos abertos limitados e por isso e um conjunto σ-elementar.

Demonstracao. Seja Q(R) = ]q, r[: q, r ∈ Q a classe formada pelos inter-valos abertos de extremos racionais e, mais geralmente, considerem-se asclasses Q(RN ), formadas pelos rectangulos-N com vertices de coordenadasracionais, i.e., os rectangulos da forma I1 × I2 × · · · × IN , com Ik ∈ Q(R).Como Q e numeravel, as classes Q(RN ) sao igualmente numeraveis.

Se U ⊆ RN e um aberto e x ∈ U , existe um rectangulo aberto limitadoRx, tal que x ∈ Rx ⊆ U . Suponha-se que

Rx = I1 × I2 × · · · × IN , onde Ik =]ak, bk[ e x = (x1, x2, · · · , xN ) .

E claro que existem racionais qk e rk tais que

ak < qk < xk < rk < bk e Jk =]qk, rk[∈ Q(R).

E tambem evidente que

J1 × J2 × · · · × JN = Qx ∈ Q(RN ) e x ∈ Qx ⊆ Rx ⊆ U.

Concluımos assim que U =⋃

x∈U

Qx.

q1

q2

r1

r2

a1

a2

x1

x2

b1

b2

(x1, x2)

Qx

Rx

Figura 1.6.4: Os rectangulos Qx e Rx.

Os rectangulos Qx sao limitados e abertos e a classe U = Qx : x ∈ U ⊆Q(RN ). Como Q(RN ) e numeravel, a classe U so pode ser numeravel.

Do nosso ponto de vista nesta seccao e nos termos da definicao 1.6.9, con-cluımos que cN (U) esta definida para qualquer conjunto aberto U ⊆ RN .

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1.6. O Problema de Borel 83

Alem disso, e de acordo com as condicoes a) e c) no enunciado do “Pro-blema de Borel”, resulta que qualquer solucao MN deste problema contemnecessariamente todos os conjuntos abertos e todos os conjuntos fechados.

E muito interessante notar que o argumento usado para demonstrar1.6.17 e igualmente valido se substituirmos os intervalos abertos de extremosracionais ]q, r[ pelos correspondentes intervalos fechados, e portanto com-pactos, [q, r]. O proximo teorema indica esta e outras propriedades analogas,a demonstrar nos exercıcios desta seccao.

Teorema 1.6.18. Seja U ⊆ RN um aberto. Entao,

a) U e uma uniao numeravel de rectangulos compactos(51).

b) U e uma uniao numeravel de rectangulos limitados disjuntos.

c) Se N = 1, entao U e uma uniao numeravel de intervalos abertosdisjuntos(52).

O proximo exemplo, que chamamos de funcao de Volterra, e analogo aoque vimos em 1.5.6, porque e uma funcao diferenciavel em toda a parte cujaderivada nao e Riemann-integravel. Mais uma vez, a regra de Barrow nao eaplicavel a f = F ′ porque o integral de Riemann de f nao existe, apesar def ter uma primitiva. A funcao de Volterra e particularmente interessanteporque F ′ e limitada, o que sugere que o facto de F ′ nao ser integravel naoreflecte uma dificuldade “natural” como a do exemplo 1.5.6, mas reflecte emvez disso uma deficiencia da propria definicao do integral de Riemann(53).

Exemplo 1.6.19.

a funcao de volterra - Consideramos primeiro a funcao f definida por

f(x) =

x2 sen( 1

x ), se x 6= 0,0, se x = 0.

A funcao f e diferenciavel em R e a sua derivada e

f ′(x) =

2x sen( 1

x) − cos( 1x ), se x 6= 0,

0, se x = 0.

Por razoes evidentes, f ′ nao e contınua em 0, onde a respectiva oscilacao e 2.No entanto, f ′ e limitada em qualquer intervalo limitado.

51As unioes numeraveis de conjuntos compactos dizem-se conjuntos σ-compactos.52Este e o resultado descoberto por Cantor em 1883. Note (exercıcio 7) que esta de-

composicao em intervalos abertos disjuntos e unica.53O proprio Henri Lebesgue considerava este exemplo como uma das suas mais impor-

tantes motivacoes na busca de uma teoria de integracao mais geral do que a de Riemann.Como veremos mais adiante, a regra de Barrow e valida para a funcao de Volterra nateoria da integracao de Lebesgue. Veja-se alias no exercıcio 15 desta seccao que a regiaode ordenadas de F ′ e σ-elementar e o grafico de F e rectificavel.

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84 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Dado a > 0, podemos facilmente adaptar esta definicao para obter uma funcaog : R → R, nula fora do intervalo ]0, a[, diferenciavel em R, com derivadalimitada, mas descontınua nos pontos x = 0 e x = a, onde ωg′(0) = ωg′(a) = 2.Para isso, escolhemos um ponto 0 < b < a/2 tal que f ′(b) = 0 e tomamos

g(x) =

f(x), se 0 < x < b,f(b), se b ≤ x ≤ c = a− b,f(a− x), se c < x < a,0, se x 6∈ ]0, a[.

g e diferenciavel em R mas g′ e descontınua tanto em x = 0 como x = a, ondetem oscilacao igual a 2.

bb

c

c

f(b)

aa

Figura 1.6.5: Os grafico de g e g′.

Designamos por U = I\Cε(I) o complementar do conjunto de Volterra no inter-valo I e recordamos que U =

⋃∞n=1]an, bn[ e uma uniao numeravel de intervalos

abertos disjuntos, obviamente limitados. A definicao de g pode ser modificadapara obter uma funcao gn nula fora do intervalo ]an, bn[, diferenciavel em R,com derivada limitada, mas descontınua nos pontos x = an e x = bn, onde aoscilacao e 2. A funcao de volterra F e entao dada por:

F (x) =

∞∑

n=1

gn(x).

Deixamos para o exercıcio 15 mostrar que

• F e diferenciavel em R, com F ′(x) = 0 quando x 6∈ U , e

• F ′ e descontınua em todos os pontos de Cε(I) e por isso nao e Riemann-integravel em I quando ε > 0.

No entanto, e em ultima analise, este exemplo apenas ilustra novamentea fragilidade da integrabilidade de Riemann em relacao a operacoes de pas-sagem ao limite. Afinal de contas, F ′ e o limite pontual de uma sucessao de

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1.6. O Problema de Borel 85

funcoes Riemann-integraveis, porque

F ′(x) = limh→0

F (x+ h) − F (x)

h= lim

n→∞

F (x+ 1n) − F (x)1n

= limn→∞

gn(x), onde gn(x) = n(F (x+1

n) − F (x)).

As funcoes gn sao Riemann-integraveis desde que F o seja, mas daqui naopodemos concluir a integrabilidade da funcao limite F ′, como bem sabemos.

Observamos ainda, para posterior referencia, que a proposicao 1.3.12 segeneraliza sem dificuldades de maior as classes Eσ(RN ) e Jσ(RN ):

Lema 1.6.20. Se U ∈ Jσ(RN) e V ∈ Jσ(RM ), entao

a) Fecho em relacao ao produto: U × V ∈ Jσ(RN+M ) e

cN+M (U × V ) = cN (U)cM (V ).

b) Invariancia sob translaccoes: Se x ∈ RN entao U + x ∈ Jσ(RN ) e

cN (U + x) = cN (U),

c) Invariancia sob reflexoes: Se W e uma reflexao de U num dos hiper-

planos xk = 0, entao W ∈ Jσ(RN ) e cN (W ) = cN (U).

Estas afirmacoes sao igualmente verdadeiras substituindo Jσ(RN ), Jσ(RM )e Jσ(RN+M ) respectivamente por Eσ(RN ), Eσ(RM ) e Eσ(RN+M ).

Demonstracao. As afirmacoes b) e c) sao consequencias imediatas de 1.3.12.Para provar a), supomos que

U =∞⋃

n=1

Un e V =∞⋃

m=1

Vm,

onde os conjuntos Un ∈ J (RN ) e Vm ∈ J (RM ) formam particoes, respecti-vamente, de U e de V . E evidente que

U × V =

(∞⋃

n=1

Un

)

×(

∞⋃

m=1

Vm

)

=

∞⋃

n=1

∞⋃

m=1

Un × Vm,

e segue-se de 1.3.12 que

Un × Vm ∈ J (RN+M ) e cN+M (Un × Vm) = cN (Un)cM (Vm).

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86 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

Concluımos que U × V ∈ Jσ(RN+M ). Como os conjuntos Un × Vm formamuma particao de U × V , temos

cN+M (U × V ) =

∞∑

n=1

∞∑

m=1

cN+M (Un × Vm) =

∞∑

n=1

∞∑

m=1

cN (Un)cM (Vm) =

=

∞∑

n=1

cN (Un)

∞∑

m=1

cM (Vm) = cN (U)cM (V ).

A adaptacao destes argumentos a conjuntos σ-elementares e muito simples.

Exercıcios.

1. Seja C uma classe de conjuntos tal que ∅ ∈ C e λ : C → [0,+∞] uma funcaoσ-aditiva em C.

a) Mostre que λ(∅) = 0, ou λ e identicamente +∞.

b) Prove que λ e aditiva.

2. Seja S uma semi-algebra de conjuntos e λ : S → [0,+∞] uma funcao aditiva.Mostre que λ e σ-aditiva se e so se λ e σ-subaditiva.

3. Prove que qualquer conjunto numeravel tem conteudo nulo.

4. Mostre que E ∈ Jσ(RN ) e nulo no sentido de Borel se e so se cN (E) = 0.

5. Suponha que 0 ≤ anm ≤ ∞ para quaisquer n,m ∈ N e prove que

∞∑

n=1

( ∞∑

m=1

anm

)=

∞∑

m=1

( ∞∑

n=1

anm

).

6. Sendo R ⊆ RN e f : R → R Riemann-integravel em R, mostre que o integralindefinido λ de f e σ-aditivo em Jf (R). (teorema 1.6.7).

7. Demonstre o teorema 1.6.18. sugestao: No caso de c) e dado x ∈ U , seja Ixa uniao de todos os intervalos abertos abertos V tais que x ∈ V ⊆ U . Mostreque os conjuntos Ix formam uma famılia de intervalos abertos disjuntos, queso pode ser numeravel. Mostre em particular que a decomposicao referida emc) e unica.

8. Prove que, se E ∈ J (R), entao E tem subconjuntos que nao sao Jordan-mensuraveis se e so se c(E) > 0. sugestao: Mostre que qualquer intervaloaberto nao-vazio contem subconjuntos que nao sao Jordan-mensuraveis.

9. Prove que se E ∈ Jσ(RN ) entao cN(E) = 0 se e so se int(E) = ∅. Mostreigualmente que se E ∈ Eσ(R), entao cN (E) = 0 se e so se E e numeravel.

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1.6. O Problema de Borel 87

10. Mostre que as classes Eσ(RN ) e Jσ(RN ) sao fechadas em relacao a inter-seccoes finitas. Estas classes sao fechadas em relacao a interseccoes numeraveis?

11. Verifique que cN e monotona, aditiva e subaditiva em Jσ(RN ).

12. Suponha que E ∈ Jσ(RN ) e limitado e prove que cN (E) ≤ cN(E) ≤ cN (E).

13. Determine o cardinal da classe dos abertos em RN . (54)

14. Considere o conjunto de Volterra Cε(I) (exemplo 1.6.15).

a) O conjunto Fn e elementar e e formado por 2n intervalos. Sendo J umdesses 2n subintervalos, mostre que J ∩ Cε(I) = Cδ(J), onde δ e umparametro que deve calcular. Conclua em particular que J\Cε(I) e σ-elementar e calcule o seu conteudo.

b) Mostre que Cε(I) e perfeito nao-numeravel e tem interior vazio.

c) Calcule c(Cε(I)), c(Cε(I)), c(Uε(I)) e c(Uε(I)).

15. Verifique as afirmacoes feitas no texto a proposito da funcao de Volterra.Em particular, mostre que

a) g e diferenciavel em R e g′ e limitada em R, com oscilacao 2 em 0 e a.

b) F e diferenciavel em R, com F ′ limitada em R e F ′(x) = 0 para x 6∈ U .sugestao: Suponha que x 6∈ U e estabeleca a desigualdade seguinte:

∣∣∣∣F (x+ h) − F (x)

h

∣∣∣∣ ≤ |h|.

c) O grafico de F e rectificavel em [0, 1].

d) F ′ e descontınua em Cε(I). sugestao: Recorde que qualquer ponto deCε(I) e limite de sucessoes de pontos fronteira dos Fn.

e) F ′ nao e Riemann-integravel, i.e., a sua regiao de ordenadas nao e Jordan-mensuravel, mas e um conjunto σ-elementar limitado. Como definiria ecalcularia o integral de F ′ em I?

16. Considere a funcao f definida tal como a “escada do diabo”, mas utilizandoo conjunto de Volterra Cε(I) com ε > 0 em vez do conjunto de Cantor C0(I).Calcule o comprimento do grafico de f no intervalo I = [0, 1]. Pode existiralguma funcao Riemann-integravel g que satisfaca f ′(x) = g(x) qtp em I?Quais sao os possıveis valores de f ′(x) nos pontos onde esta derivada exista?

17. O conjunto U do exemplo 1.6.8 e Jordan-mensuravel quando ε = 12?

18. Seja U ainda o aberto referido no exemplo 1.6.8 e F a funcao de Volterranula fora de U . O que pode concluir sobre a integrabilidade de F ′?

54Usamos as seguintes designacoes para cardinais infinitos: ℵ0 e o cardinal de N, ℵ1 e ocardinal de R, ℵ2 e o cardinal de P(R), ℵ3 e o cardinal de P(P(R)), etc.

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88 Capıtulo 1. Integrais de Riemann

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Capıtulo 2

A Medida de Lebesgue

As dificuldades tecnicas associadas ao integral de Riemann, algumas dasquais temos vindo a apontar, eram bem conhecidas no final do seculo XIX,mas certamente prevalecia a opiniao que eram inevitaveis, e inultrapassaveis.Apenas um grupo restrito de jovens matematicos(1) parece ter-se apercebido,por volta de 1900, que era possıvel e desejavel alargar a classe das funcoesas quais atribuımos um integral, e que dessa forma se podiam ultrapassaralgumas das limitacoes do integral de Riemann. Por um lado, os traba-lhos de Jordan e Peano tinham revelado que este problema se reduz aode alargar a classe de conjuntos aos quais atribuımos um conteudo. Poroutro lado, e como vimos, Borel tinha descoberto que certos conjuntos quenao sao Jordan-mensuraveis podem ser “medidos” usando particoes infinitasnumeraveis em rectangulos, e tinha igualmente identificado com muito rigore clareza o que ele proprio considerava como as “propriedades essenciais” asatisfazer por qualquer possıvel extensao do conteudo de Jordan.

Em 1902, o entao jovem professor de liceu Henri Leon Lebesgue apresen-tou a sua propria definicao de conjuntos mensuraveis e de medida, numaexcepcional tese de doutoramento, com o tıtulo “Integral, area, volume”,que submeteu a Universidade de Nancy. A ideia de Lebesgue combinavade forma muito natural o trabalho de Jordan com o de Borel, retomandoa ideia de aproximacao usada por Jordan, mas substituindo os conjuntoselementares pelos conjuntos σ-elementares, cuja medida Lebesgue calculavapela tecnica de Borel. Os conjuntos mensuraveis “no sentido de Lebesgue”dizem-se conjuntos de Lebesgue, ou conjuntos Lebesgue-mensuraveis,e formam a classe L(RN ), que inclui a classe J (RN ). A medida de Lebes-

gue designa-se “mN”, ou apenas “m”, e uma funcao mN : L(RN ) → [0,∞],e e uma extensao do conteudo de Jordan cN .

1Alem de Henri Leon Lebesgue, 1875-1941, formado em 1897 pela Ecole NormaleSuperieure, donde conhecia Borel, pelo menos o matematico italiano Giuseppe Vitali,1875-1941, na altura assistente na Scuola Normale de Pisa, e o matematico ingles WilliamHenry Young, 1863-1942, entao em Gottingen.

89

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90 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Em 1913, Radon(2) deu um passo decisivo no caminho da generalizacaocrescente, ao aperceber-se que a medida de Lebesgue e apenas um exemplode um tipo de objecto matematico que hoje tem o nome generico de medida,e que qualquer medida pode ser utilizada para definir integrais de funcoes.Na realidade, as ideias de Borel, Lebesgue e Radon, acompanharam, e fre-quentemente precederam, a vaga de fundo de abstraccao que comecou avarrer os mais diversos domınios da Matematica no inıcio do seculo XX, erapidamente conduziram a identificacao de uma base axiomatica apropriadapara a chamada Teoria da Medida.

Na teoria axiomatica da medida, os conjuntos mensuraveis sao, sim-plesmente, elementos de algebras de conjuntos de um tipo especial, ditasσ-algebras, das quais a classe L(RN ), descoberta por Lebesgue, e apenasum exemplo, se bem que de importancia capital. As medidas sao funcoesaditivas definidas em σ-algebras, mas para as quais a propriedade de adi-tividade e ainda valida para particoes numeraveis.

O principal objectivo deste Capıtulo e a definicao da medida de Lebesguepropriamente dita, e a identificacao das suas propriedades mais relevantes.Aqui introduzimos tambem a base axiomatica da Teoria da Medida, umadas mais importantes ferramentas de trabalho em todo este texto, e que emmuitos aspectos simplifica desde ja o nosso estudo da medida de Lebesgue.

2.1 Espacos Mensuraveis e Medidas

Esta seccao apresenta algumas das ideias mais basicas da Teoria da Medida,todas relacionadas com a nocao de σ-aditividade, e em grande parte su-geridas pelo enunciado do “Problema de Borel”. A primeira definicao queapresentamos resume-se alias a abstrair a condicao (c) desse problema:

Definicao 2.1.1 (σ-Algebra). Seja M uma classe de subconjuntos em X.Dizemos que M e uma σ-algebra (em X) se e so se M e uma algebra deconjuntos fechada em relacao a unioes numeraveis, i.e.,

E1, E2, · · · , En, · · · ∈ M =⇒ E =

∞⋃

n=1

En ∈ M.

Exemplos 2.1.2.

1. Nesta terminologia, a condicao c) do Problema de Borel pode enunciar-se:“MN e uma σ-algebra em RN”.

2. Sendo I = [0, 1], a classe J (I) e uma algebra, mas o conjunto de DirichletD = Q ∩ I mostra que J (I) nao e fechada em relacao a unioes numeraveis, eportanto nao e uma σ-algebra.

2 Johann Radon (1887-1956), matematico austrıaco. Foi professor em diversas uni-versidades alemas, e terminou a sua carreira na Universidade de Viena, onde se tinhadoutorado em 1910.

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2.1. Espacos Mensuraveis e Medidas 91

3. A classe Jσ(RN ) e fechada em relacao a unioes numeraveis, mas nao e umaσ-algebra, porque nao e uma semi-algebra.

4. Qualquer semi-algebra em RN que contenha os rectangulos limitadas e sejafechada em relacao a unioes numeraveis contem necessariamente o proprioconjunto RN . E por isso uma algebra e uma σ-algebra.

5. De acordo com o teorema de Cantor (1.6.17), qualquer σ-algebra em RN

que contenha os rectangulos limitadas contem todos os conjuntos abertos eportanto todos os conjuntos fechados.

6. Sendo X um qualquer conjunto, a classe de todos os subconjuntos deX , designada P(X), e, por razoes obvias, a maior σ-algebra em X . A classe∅, X e a menor σ-algebra em X .

A definicao 2.1.1 e complementada pela seguinte:

Definicao 2.1.3 (Espaco Mensuravel, Conjuntos Mensuraveis). Um espaco

mensuravel e um par (X,M), onde M e uma σ-algebra no conjunto X.Se E ⊆ X, dizemos que E e M-mensuravel se e so se E ∈ M.

Quando a σ-algebra M e obvia do contexto da discussao, dizemos ape-nas que o conjunto E e “mensuravel”, em vez de “M-mensuravel”. Daspropriedades seguintes, apenas o fecho em relacao a interseccoes numeraveisrequer ainda demonstracao, o que fica como exercıcio.

Teorema 2.1.4 (Propriedades Algebricas de σ-Algebras). Se M e umaσ-algebra em X, i.e., se (X,M) e um espaco mensuravel, temos:

a) ∅, X ∈ M.

b) Fecho em relacao a diferenca: E, F ∈ M =⇒ E\F ∈ M.

c) Fecho em relacao a unioes e interseccoes, finitas e numeraveis:

En ∈ M,∀n∈N =⇒m⋃

n=1

En,

m⋂

n=1

En,

∞⋃

n=1

En,

∞⋂

n=1

En ∈ M.

O objectivo da teoria da medida e o estudo de funcoes σ-aditivas, definidasem σ-algebras, e sao estas as funcoes que chamamos medidas.

Definicao 2.1.5 (Medidas: Reais, Complexas e Positivas). Supondo queY = R, Y = C ou Y = [0,+∞] e (X,M)) e um espaco mensuravel, dizemosque µ e uma medida se e so se µ : M → Y e uma funcao σ-aditiva comµ(∅) = 0(3). A medida µ diz-se, respectivamente, real, complexa oupositiva se Y = R, Y = C ou Y = [0,+∞]. A medida positiva µ e finita

se e so se µ(E) 6= ∞ para todos os E ∈ M.

3Esta condicao so nao se segue automaticamente da σ-aditividade quando Y = [0,+∞],e nesse caso e equivalente a condicao de µ nao ser constante e igual a +∞.

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92 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Observacoes 2.1.6.

1. As medidas reais nao-negativas sao as medidas positivas finitas.

2. Se π e ν sao medidas positivas finitas, entao µ = π − ν e uma medida real.

3. Qualquer medida complexa α e da forma α = µ+ iλ, onde µ e λ sao medidasreais.

4. So as medidas positivas podem tomar valores infinitos, e mesmo neste casoapenas o valor +∞.

As relacoes entre estes tipos de medidas ilustram-se na figura 2.1.1.

Positivas

finitas

Reais Complexas

Positivas

Figura 2.1.1: Tipos de medidas.

Demonstraremos mais adiante o chamado Teorema da Decomposicao deHahn-Jordan. Este resultado mostra que qualquer medida real µ e da formaµ = µ+ − µ−, onde µ+ e µ− sao medidas positivas finitas. De acordo comas observacoes acima e o teorema de Hahn-Jordan, as medidas positivas saonaturalmente elementos base da teoria da Medida.

Exemplos 2.1.7.

1. A distribuicao de dirac δ, definida em P(R) por

δ(A) =

1, se 0 ∈ A, e0, se 0 6∈ A,

e uma medida em P(R), e diz-se, tambem, a medida de dirac. Conforme refe-rimos no exemplo 1, e frequentemente utilizada para representar a distribuicaode massa associada a um unico ponto material, de massa unitaria, colocadona origem. Mais geralmente, se X e um conjunto e x0 ∈ X , a distribuicao deDirac (em x0) define-se por

δx0(A) =

1, se x0 ∈ A, e0, se x0 6∈ A,

e e uma medida em P(X).

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2.1. Espacos Mensuraveis e Medidas 93

2. Sendo X um conjunto, o cardinal e uma medida em P(X). O cardinale uma medida positiva, que e finita se e so se o conjunto X e finito. Diz-se,frequentemente, a medida de contagem, e e aqui designada por “#”.

3. Uma medida de probabilidade π no conjunto X 6= ∅ e, simplesmente,uma medida positiva satisfazendo a condicao π(X) = 1. Em certo sentido, elegıtimo dizer que a Teoria das Probabilidades nao passa de um subcapıtulo daTeoria da Medida! Um dos exemplos mais simples de medida de probabilidaderesulta de tomar π(E) = #(E)/#(X), para qualquer E ∈ P(X), onde X eum conjunto finito. Neste caso, os diversos elementos de X correspondem aacontecimentos igualmente provaveis, o que e o modelo mais comum no estudode muitas questoes elementares sobre, por exemplo, jogos de azar com car-tas e dados. A propria medida de Dirac e um exemplo trivial de medida deprobabilidade.

4. O usual pente de Dirac em R e a medida positiva π(E) = #(E ∩ Z).

Definicao 2.1.8 (Espaco de Medida). Um espaco de medida e um terno(X,M, µ), onde (X,M) e um espaco mensuravel e µ e uma medida positivadefinida em M.

Exemplos 2.1.9.

1. (R,P(R), δ) e um espaco de medida.

2. O espaco da medida de contagem em N e (N,P(N),#).

3. Um espaco de probabilidade e um espaco de medida (X,M, µ) em queµ(X) = 1, ou seja, em que µ e uma medida de probabilidade. Neste caso, etradicional dizer que os conjuntos mensuraveis, i.e., os conjuntos E ∈ M, saoos acontecimentos.

Utilizaremos, no que se segue, a seguinte terminologia:

Definicao 2.1.10 (Espaco de Medida Finito, σ-Finito). O espaco de medida(X,M, µ) diz-se finito se e so se µ e finita. Diz-se σ-finito, se e so seexistem conjuntos Xn ∈ M, tais que

µ(Xn) <∞ e X =∞⋃

n=1

Xn.

Dizemos tambem neste ultimo caso que a medida µ e σ-finita.

Exemplos 2.1.11.

1. Qualquer espaco de probabilidades e um espaco de medida finito, porque,neste caso, µ(X) = 1.

2. O espaco (N,P(N),#) da medida de contagem em N e σ-finito mas nao efinito. Sendo Xn = 1, 2, · · · , n, e claro que #(N) = +∞, #(Xn) < +∞ eN =

⋃∞n=1Xn.

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94 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

3. O pente de Dirac (exemplo 2.1.7.4) e uma medida σ-finita que nao e finita.

4. O espaco da medida de contagem (X,P(X),#), em qualquer conjunto Xinfinito nao-numeravel, nao e σ-finito. Basta notar que, se os conjuntos Xn ⊆X tem medida finita, i.e., se sao conjuntos finitos, entao o conjunto ∪∞

n=1Xn efinito, ou infinito numeravel, e portanto X 6= ∪∞

n=1Xn.

Os proximos teoremas indicam propriedades validas para qualquer me-dida, que utilizaremos quase constantemente no que se segue. Comecamospor resumir alguns dos resultados elementares que ja apresentamos ate aqui.

Teorema 2.1.12. Seja µ uma medida definida na σ-algebra M em X. Seos conjuntos E,F,E1, E2, · · · , En, · · · sao M-mensuraveis, temos:

a) µ(∅) = 0.

b) Aditividade e σ-aditividade: Se os conjuntos En sao disjuntos,

µ(

m⋃

n=1

En) =

m∑

n=1

µ(En) e µ(

∞⋃

n=1

En) =

∞∑

n=1

µ(En).

Se µ e nao-negativa, i.e., se µ e uma medida positiva, temos ainda:

c) Monotonia: E ⊆ F =⇒ µ(E) ≤ µ(F ).

d) Subaditividade e σ-subaditividade:

µ(m⋃

n=1

En) ≤m∑

n=1

µ(En) e µ(∞⋃

n=1

En) ≤∞∑

n=1

µ(En).

Recordamos que o conjunto R = [−∞,+∞] se diz a “recta acabada”,

e escrevemos analogamente R+

= [0,+∞]. Qualquer sucessao monotona emR converge para algum α ∈ R, e introduzimos aqui as seguintes convencoes:

• Se a sucessao de termo geral xn e crescente, entao α = supxn, eescrevemos “xn ր α”.

• Quando a sucessao e decrescente, α = inf xn, e escrevemos “xn ց α”.

Se os conjuntos En formam uma sucessao crescente, escrevemos

En ր E, onde se entende que E =

∞⋃

n=1

En.

Se os conjuntos En formam uma sucessao decrescente, escrevemos

En ց E, onde se entende que E =∞⋂

n=1

En.

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2.1. Espacos Mensuraveis e Medidas 95

Se os conjuntos En sao M-mensuraveis e formam uma sucessao crescente,e possıvel usar indirectamente a σ-aditividade de µ para calcular a medidado conjunto ∪∞

n=1En.

Teorema 2.1.13 (da Convergencia Monotona de Lebesgue). Se os conjun-tos En ∈ M e En ր E, entao E ∈ M e µ(En) → µ(E).

Demonstracao. Sendo Fk+1 = Ek+1\Ek e F1 = E1, notamos que os conjun-tos Fk sao disjuntos e verificam

En =

n⋃

k=1

Fk e E =

∞⋃

n=1

En =

∞⋃

k=1

Fk.

Como os conjuntos Fk sao disjuntos e µ e aditiva e σ-aditiva, temos

µ(En) = µ(n⋃

k=1

Fk) =n∑

k=1

µ(Fk) e µ(E) = µ(∞⋃

k=1

Fk) =∞∑

k=1

µ(Fk).

E portanto obvio que µ(En) → µ(E).

Se os conjuntos En formam uma sucessao decrescente, temos

Teorema 2.1.14. Se os conjuntos En ∈ M e En ց E, entao E ∈ M. Se,alem disso, µ(E1) 6= +∞, entao µ(En) → µ(E).

Demonstracao. Os conjuntos Fn = E1\En sao M-mensuraveis e formamuma sucessao crescente. Portanto,

µ(Fn) → µ(

∞⋃

n=1

Fn), ou seja, µ(E1\En) → µ(

∞⋃

n=1

(E1\En)).

Por outro lado,

∞⋃

n=1

(E1\En) = E1\∞⋂

n=1

En =⇒ µ(E1\En) → µ(E1\∞⋂

n=1

En).

Dado que En ⊆ E1 e ∩∞n=1En ⊆ E1, se todos os conjuntos em causa tem

medida finita, e claro que

µ(En) = µ(E1) − µ(E1\En) e µ(

∞⋂

n=1

En) = µ(E1) − µ(E1\∞⋂

n=1

En).

Obtemos imediatamente que µ(En) → µ(∞⋂

n=1

En).

A hipotese adicional µ(E1) 6= +∞, referida no teorema anterior, so naoe automaticamente satisfeita quando µ e uma medida positiva. O exemploseguinte mostra que, neste caso, a hipotese e indispensavel.

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96 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Exemplo 2.1.15.

Considerem-se os conjuntos En = k ∈ N : k ≥ n no espaco de medida (decontagem) (N,P(N),#). E claro que

En ց∞⋂

n=1

En = ∅ mas #(En) = +∞ nao converge para #(∅) = 0.

Exercıcios.

1. Seja X um conjunto infinito. Diga, para cada um dos exemplos seguintes,se a funcao de conjuntos em causa µ : P(X) → [0,+∞] e aditiva, subaditiva,σ-aditiva, σ-subaditiva.

a) µ(E) = 0, se E e finito, com µ(E) = 1, se E e infinito,

b) µ(E) = 0, se E e finito, com µ(E) = +∞, se E e infinito.

2. Suponha que M e uma σ-algebra em X e E1, E2, · · · , En, · · · sao conjuntosem M. Prove que E = ∩∞

n=1En pertence igualmente a M (Teorema 2.1.4).

3. Suponha que µ e uma medida definida na σ-algebra M e E e M-mensuravel.Prove que a funcao λ definida por λ(F ) = µ(F ∩E) e igualmente uma medida.

4. Em cada um dos casos seguintes, prove que a funcao µ : P(X) → [0,+∞]dada e uma medida na σ-algebra P(X).

a) A medida de contagem #.

b) a medida de Dirac δx0, onde x0 ∈ X .

5. Suponha que (X,M) e um espaco mensuravel e µ e uma medida complexadefinida em M. Prove que

a) Existem medidas reais α e β tais que µ = α+ iβ.

b) µ(∅) = 0.

c) µ e aditiva.

6. Suponha que, para cada n ∈ N, µn : Mn → [0,+∞] e uma medida positivana σ-algebra Mn em X . Considere

M =

∞⋂

n=1

Mn e µ : M → [0,+∞] dada por µ(E) =

∞∑

n=1

µn(E), para E ∈ M.

Prove que M e uma σ-algebra em X e µ e uma medida positiva em M.

7. (O Lema de Borel-Cantelli)(4): Seja (X,M, µ) um espaco de medida.Suponha que os conjuntos En sao M-mensuraveis e

∑∞n=1 µ(En) <∞. Sendo

4De Borel, e Francesco Paolo Cantelli, 1875-1966, matematico italiano, professor naUniversidade de Roma.

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2.2. A Medida de Lebesgue 97

E o conjunto dos x ∈ X que pertencem a um numero infinito de conjuntosEn’s, prove que E ∈ M e µ(E) = 0. Sugestao: Prove primeiro que

E =∞⋂

n=1

∞⋃

k=n

Ek.

8. Existe alguma σ-algebra infinita numeravel? Sugestao: Comece por provarque qualquer σ-algebra infinita contem uma famılia infinita de conjuntos men-suraveis disjuntos.

2.2 A Medida de Lebesgue

Passamos a descrever a solucao do Problema de Borel descoberta por Le-besgue, que envolve:

• A classe L(RN ), dos conjuntos ditos Lebesgue-mensuraveis, e

• A medida de Lebesgue mN , que e uma funcao mN : L(RN ) → [0,+∞].

Notamos primeiro que qualquer solucao (MN , κN ) do Problema de Borel euma extensao do conteudo de Jordan tal como o definimos em 1.6.9 paraa classe dos conjuntos σ-elementares:

• Por um lado, como MN e uma σ-algebra que contem os conjuntoselementares, temos necessariamente Eσ(RN ) ⊂ MN .

• Por outro lado, se E ∈ Eσ(RN ), existem conjuntos elementares disjun-tos En tais que E =

⋃∞n=1En, donde

κN (E) =

∞∑

n=1

κN (En) =

∞∑

n=1

cN (En) = cN (E).

Como RN e σ-elementar, e tambem claro que qualquer subconjunto de RN

pode ser aproximado por excesso por conjuntos σ-elementares, i.e.,

Se E ⊆ RN , existe U ∈ Eσ(RN ) tal que E ⊆ U.

Se κN (E) e uma qualquer solucao do Problema de Borel, temos entao, pormonotonia,

κN (E) ≤ κN (U) = cN (U).

Concluımos que cN (U) e uma aproximacao por excesso de κN (E), i.e.,

κN (E) e minorante do conjuntocN (U) : E ⊆ U,U ∈ Eσ(RN )

.

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98 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Como ja mencionamos, a proxima definicao (de Lebesgue) para o quehoje chamamos de medida exterior de Lebesgue resulta da definicao de Jor-dan e Peano para o conteudo exterior pela simples substituicao dos conjun-tos elementares pelos conjuntos σ-elementares. Resume-se a observar que amelhor aproximacao por excesso que podemos calcular para κN (E) usandoapenas conjuntos σ-elementares e

infcN (U) : E ⊆ U,U ∈ Eσ(RN )

.

Definicao 2.2.1 (Medida Exterior de Lebesgue ). A medida exterior de

Lebesgue em RN e a funcao m∗N : P(RN ) → [0,+∞], dada por

m∗N (E) = inf

cN (U) : E ⊆ U,U ∈ Eσ(RN )

.

A proxima proposicao compara a medida exterior de Lebesgue com oconteudo interior, exterior, e com a funcao cN .

Proposicao 2.2.2. Se E ⊆ RN , entao

a) Se E e limitado, cN (E) ≤ m∗N (E) ≤ cN (E),

b) Se E ∈ J (RN ), m∗N (E) = cN (E).

Demonstracao. Sendo E limitado, consideramos os conjuntos

A = cN (K) : K ⊆ E,K ∈ E(RN ), B = cN (U) : U ⊇ E,U ∈ E(RN ) e

C = cN (U) : U ⊇ E,U ∈ Eσ(RN ).a) E evidente que B ⊆ C, e portanto m∗

N (E) = inf C ≤ inf B = cN (E).Para provar que cN (E) ≤ m∗

N (E), supomos que K ⊆ E ⊆ U , onde K eelementar e U e σ-elementar. Existem conjuntos elementares disjuntos Un

tais que U =⋃∞

n=1 Un, e segue-se da σ-subaditividade de cN que

cN (K) ≤∞∑

n=1

cN (Un) = cN (U), ou seja,

cN (K) e minorante de C, donde cN (K) ≤ inf C = m∗N (E). Temos assim

que m∗N (E) e majorante de A, e concluımos que m∗

N (E) ≥ supA = cN (E).

b) E uma consequencia evidente de a).

Exemplos 2.2.3.

1. O conjunto Q e σ-elementar, e portanto 0 ≤ m∗(Q) ≤ c1(Q) = 0, ou seja,m∗(Q) = 0. Note-se que escrevemos m∗ em vez de m∗

1.

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2.2. A Medida de Lebesgue 99

2. Sendo D = Q ∩ [0, 1] o exemplo de Dirichlet, temos

0 = c(D) = c1(D) = m∗(D) < c(D) = 1.

As propriedades mais essenciais da medida exterior da Lebesgue sao asseguintes, que veremos mais adiante serem a base da definicao axiomaticade “medida exterior”.

Proposicao 2.2.4. Dados E,En, F ⊆ RN , temos:

a) Monotonia: Se E ⊆ F entao m∗N (E) ≤ m∗

N (F ),

b) m∗N (∅) = 0,

c) σ-subaditividade: E ⊆∞⋃

n=1

En =⇒ m∗N (E) ≤

∞∑

n=1

m∗N (En).

Demonstracao. As afirmacoes em a) e b) sao muito faceis de verificar. Rela-tivamente a c), dados conjuntos σ-elementares Un tais que En ⊆ Un, temos

E ⊆∞⋃

n=1

En ⊆∞⋃

n=1

Un = U.

O conjunto U e σ-elementar, e segue-se de 1.6.11 c) (σ-subaditividade) que:

m∗N (E) ≤ cN (U) ≤

∞∑

n=1

cN (Un).

Como os conjuntos Un sao arbitrarios, podemos agora concluir que:

m∗N (E) ≤

∞∑

n=1

m∗N (En).

Observacao 2.2.5.

A medida exterior de Lebesgue coincide com o conteudo de Jordan em Jσ(RN ):

Se E ∈ Jσ(RN ), existem conjuntos disjuntos En ∈ J (RN ) tais que

E =∞⋃

n=1

En, donde m∗N(E) ≤

∞∑

n=1

m∗N (En), de 2.2.4.

Segue-se de 2.2.2 que

(1)

∞∑

n=1

m∗N (En) =

∞∑

n=1

cN (En) = cN (E), e por isso m∗N (E) ≤ cN(E).

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100 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Por outro lado, como Fm =⋃m

n=1En e Jordan-mensuravel e Fm ⊆ E, temos

(2) m∗N(E) ≥ m∗

N (Fm) = cN (Fm) =m∑

n=1

cN (En) →∞∑

n=1

cN (En) = cN (E).

Concluımos de (1) e (2) que cN (E) = m∗(E).

E por vezes conveniente calcular a medida exterior de Lebesgue usandoprocedimentos distintos do que optamos por referir em 2.2.1.

Proposicao 2.2.6. Dado E ⊆ RN , temos:

m∗N (E) = inf

∞∑

n=1

cN (Rn) : E ⊆∞⋃

n=1

Rn, Rn rectangulo limitado

,

infcN (U) : E ⊆ U ⊆ RN , U aberto

.

Demonstracao. Escrevemos para simplificar

R =

∞∑

n=1

cN (Rn) : E ⊆∞⋃

n=1

Rn, Rn rectangulo limitado

,

A =cN (U) : E ⊆ U ⊆ RN , U aberto

.

Dados rectangulos limitados Rn tais que E ⊆ ⋃∞n=1Rn, deve ser claro que

existem rectangulos limitados disjuntos Rn tais que

(1) E ⊆∞⋃

n=1

Rn = U =

∞⋃

n=1

Rn onde

∞∑

n=1

cN (Rn) = cN (U) ≤∞∑

n=1

cN (Rn).

O conjunto U e σ-elementar, e temos assim que

(2) m∗N (E) ≤ cN (U) ≤

∞∑

n=1

cN (Rn) donde m∗N (E) ≤ inf R.

Qualquer conjunto σ-elementar U e uma uniao numeravel de rectangulos Rn

disjuntos, e como cN (U) =∑∞

n=1 cN (Rn) ≥ inf R, segue-se tambem que

m∗N (E) ≥ inf R, ou seja, m∗

N (E) = inf R.

E facil verificar que, dado ε > 0, existem rectangulos abertos R′n ⊇ Rn tais

que cN (R′n\Rn) < ε/2n. O conjunto V =

⋃∞n=1R

′n e aberto e portanto

inf A ≤ cN (V ) ≤∞∑

n=1

cN (R′n) ≤

∞∑

n=1

[cN (Rn) +

ε

2n

]= cN (U) + ε.

Como inf A ≤ cN (U)+ε, concluımos que inf A ≤ m∗N (E)+ε, e fazemos ε→ 0

para obter inf A ≤ m∗N (E). Por outro lado, qualquer aberto e σ-elementar,

donde e obvio que m∗N (E) ≤ inf A, e portanto m∗

N (E) = inf A.

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2.2. A Medida de Lebesgue 101

Observacao 2.2.7.

Segue-se do resultado anterior que E e um conjunto nulo no sentido de Borelse e so se m∗

N (E) = 0.

A medida exterior de Lebesgue providencia apenas uma aproximacao porexcesso da medida de Lebesgue. Lebesgue descobriu, igualmente, uma apro-ximacao por defeito apropriada, dita hoje a medida interior de Lebes-

gue, e definiu os conjuntos Lebesgue-mensuraveis, imitando Jordan e Peano,como os conjuntos cujas medidas interior e exterior de Lebesgue sao iguais.No entanto, nao se deve inferir da relativa facilidade com que introduzimosa medida exterior de Lebesgue que a definicao da correspondente medidainterior e imediata, e deixamos para os exercıcios 8 e 10 desta seccao verificarque esta questao nao e trivial, e a sua solucao esta longe das ideias de Jordane Peano. Preferimos aqui nao seguir exactamente o procedimento originalde Lebesgue, e observar que:

Seja qual for a “correcta” definicao de medida interior de Lebesgue,devemos ter, para os conjuntos Lebesgue-mensuraveis, que

mN (E) = m∗N (E),

exactamente como temos, para os conjuntos Jordan-mensuraveis, que

cN (E) = cN (E).

De acordo com esta observacao, a medida exterior m∗N deve coincidir

com a medida positiva mN na classe dos conjuntos Lebesgue-mensuraveisL(RN ) e sera portanto σ-aditiva em L(RN ). Por outras palavras, a medidaexterior de Lebesgue e aditiva na classe L(RN ). Por esta razao, e em vez denos ocuparmos da definicao da medida interior de Lebesgue, propomo-nosresolver o seguinte problema:(5)

2.2.8 (O Problema “Facil” de Lebesgue). Determinar uma σ-algebraMN ⊇ E(RN ) onde a medida exterior de Lebesgue seja aditiva.

Comecamos o nosso estudo detalhado do problema “facil” de Lebesgue2.2.8 por uma observacao muito simples, sugerida pela figura 2.2.1.

5Recorde alias do exercıcio 2 da seccao 1.6 que a medida exterior, que e σ-subaditiva,e tambem σ-aditiva em qualquer semi-algebra onde seja aditiva.

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102 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

E

R

R ∩ E

R\E

Figura 2.2.1: Decomposicao do rectangulo R.

Proposicao 2.2.9. Se MN e solucao do problema 2.2.8 entao, para qual-quer E ∈ MN e qualquer rectangulo-N limitado R, temos:

cN (R) = m∗N (R ∩ E) +m∗

N (R\E).

Demonstracao. Seja MN uma solucao do problema 2.2.8. Temos entao:

(1) R ∩ E,R\E ∈ MN , porque MN e uma semi-algebra que contem oconjunto E e o rectangulo limitado R.

(2) m∗N (R) = m∗

N (R ∩ E) +m∗N (R\E), porque m∗

N e aditiva em MN , osconjuntos R ∩ E e R\E sao disjuntos e R = (R ∩ E) ∪ (R\E).

(3) cN (R) = m∗N (R) = m∗

N (R ∩ E) +m∗N (R\E), de acordo com 2.2.2.

A condicao referida em 2.2.9 pode ser reformulada de diversas maneiras,e e especialmente util reconhecer que o rectangulo R pode ser substituıdopor um qualquer subconjunto arbitrario de RN . Neste caso, esta reformu-lacao e uma consequencia directa e quase trivial da definicao da medidaexterior de Lebesgue. No entanto, a medida exterior de Lebesgue e, comoja mencionamos, apenas um exemplo concreto de uma nocao mais abstractade medida exterior e, nesse contexto mais geral, o resultado abaixo sugereideias muito uteis para a definicao e estudo de outras medidas de interesse.

Proposicao 2.2.10. Se E ⊆ RN as seguintes afirmacoes sao equivalentes:

a) cN (R) = m∗N (R∩E)+m∗

N (R\E), para qualquer rectangulo-N limitadoR.

b) m∗N (F ) = m∗

N (F ∩ E) +m∗N (F\E), para qualquer F ⊆ RN .

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2.2. A Medida de Lebesgue 103

Demonstracao. E evidente que b) ⇒ a) e portanto limitamo-nos a provarque a) ⇒ b). Recordamos que m∗

N e subaditiva, donde

m∗N (F ) ≤ m∗

N (F ∩ E) +m∗N (F\E).

Por esta razao, temos a provar apenas a desigualdade

m∗N (F ) ≥ m∗

N (F ∩ E) +m∗N (F\E).

Considerem-se rectangulos limitados Rn tais que F ⊆ ∪∞n=1Rn. E claro que

F ∩ E ⊆∞⋃

n=1

(Rn ∩ E) e F\E ⊆∞⋃

n=1

(Rn\E).

Como m∗N e σ-subaditiva, sabemos que

m∗N (F ∩ E) ≤

∞∑

n=1

m∗N (Rn ∩ E) e m∗

N (F\E) ≤∞∑

n=1

m∗N (Rn\E).

Adicionando as desigualdades precedentes, obtemos

m∗N (F ∩ E) +m∗

N (F\E) ≤∞∑

n=1

[m∗N (Rn ∩ E) +m∗

N (Rn\E)].

Por hipotese, temos m∗N (Rn ∩E) +m∗

N (Rn\E) = cN (Rn). Concluımos que

m∗N (F ∩ E) +m∗

N (F\E) ≤∞∑

n=1

cN (Rn).

Segue-se da proposicao 2.2.6 que m∗N (F ∩ E) +m∗

N (F\E) ≤ m∗N (F ).

As definicoes fundamentais da teoria de Lebesgue sao as seguintes:

Definicao 2.2.11 (Conjuntos de Lebesgue, Medida de Lebesgue). SendoE ⊆ RN ,

a) E diz-se Lebesgue-mensuravel (em RN ) se e so se(6)

m∗N (F ) = m∗

N (F ∩ E) +m∗N (F\E), para qualquer F ⊆ RN .

b) L(RN ) e a classe dos conjuntos Lebesgue-mensuraveis em RN .

6O trabalho original de Lebesgue contemplava conjuntos E ⊆ I , onde I e um intervalolimitado. A medida interior de E e neste caso c(I)−m∗(I\E), e a igualdade entre medidainterior e medida exterior e a identidade c(I) = m∗(E) +m∗(I\E), que e claramente umcaso especial da aqui referida. Por outras palavras, a ideia original de Lebesgue estavacertamente muito proxima da que aqui optamos por seguir.

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104 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

c) A medida de Lebesgue mN : L(RN ) → [0,∞] e a restricao de m∗N

a L(RN ).

Exemplos 2.2.12.

1. RN e Lebesgue-mensuravel: Tomando E = RN na definicao 2.2.11, e claroque F ∩ E = F e F\E = ∅, donde

m∗N (F ∩ E) +m∗

N (F\E) = m∗N (F ) +m∗

N (∅) = m∗N (F ).

2. Qualquer conjunto com medida exterior nula e Lebesgue-mensuravel: Se F ⊆RN em∗

N (E) = 0 e entaom∗N (F ∩E) = 0, porque F∩E ⊆ E em∗

N e monotona.Temos assim que

m∗N (F ∩E) +m∗

N (F\E) = m∗N (F\E) ≤ m∗

N(F ).

Por outro lado, e como m∗N e subaditiva, temos

m∗N (F ∩ E) +m∗

N (F\E) ≥ m∗N (F ).

3. O conjunto Q dos racionais e Lebesgue-mensuravel: porque tem medida ex-terior nula, como vimos no exemplo 2.2.3.

4. Qualquer conjunto Jordan-mensuravel e Lebesgue-mensuravel: seE ∈ J (RN )e R e um rectangulo-N limitado entao

cN (R) = cN (R ∩ E) + cN (R\E) = m∗N (R ∩E) +m∗

N (R\E).

5. A classe L(RN ) e fechada relativamente a complementacoes: porque a con-dicao em 2.2.11 a) e evidentemente simetrica em E e Ec.

Passamos a mostrar que L(RN ) e solucao do problema “facil” de Lebes-gue, comecando por alguns resultados parciais mais faceis de estabelecer:

Proposicao 2.2.13. Sejam A,B ⊆ RN :

a) L(RN ) e uma algebra.

b) Aditividade:

A ∩B = ∅ e A ∈ L(RN ) =⇒ m∗N (A ∪B) = m∗

N (A) +m∗N (B).

c) Em particular, se A1, · · · , An ∈ L(RN ) sao disjuntos entao

n⋃

k=1

Ak ∈ L(RN) e m∗N (

n⋃

k=1

Ak) =n∑

k=1

m∗N (Ak).

Demonstracao. Vimos nos exemplos 2.2.12 que RN ∈ L(RN ) e que L(RN )e fechada relativamente a complementacoes. Basta-nos por isso provar queL(RN ) e fechada em relacao a interseccao (ver figura 2.2.2).

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2.2. A Medida de Lebesgue 105

R

A B

A ∩B

R ∩A\B

R\A

Figura 2.2.2: R\(A ∩B) = (R ∩A\B) ∪ (R\A).

a) Usamos 2.2.11 a) de duas formas:

(1) E = A e F = R⇒ m∗N (R) = m∗

N (R ∩A) +m∗N (R\A).

(2) E = B e F = R∩A⇒ m∗N (R∩A) = m∗

N (R∩A∩B)+m∗N(R∩A\B).

Usamos (2) em (1), para obter:

(3) m∗N (R) = m∗

N (R ∩A ∩B) +m∗N (R ∩A\B) +m∗

N (R\A).

Como sugerido na figura 2.2.2, temos R\(A∩B) = (R\A)∪(R∩A\B),e portanto, como a medida exterior e subaditiva,

(4) m∗N (R\(A ∩B)) ≤ m∗

N (R ∩A\B) +m∗N (R\A).

Segue-se agora de (3) e (4) que

m∗N (R) ≥ m∗

N (R ∩A ∩B) +m∗N (R\(A ∩B)),

e concluımos que A ∩B ∈ L(RN ).

b) Tomamos E = A e F = A ∪B em 2.2.11 a), e obtemos

m∗N (A ∪B) = m∗

N ((A ∪B) ∩A) +m∗N ((A ∪B)\A).

E claro que (A ∪B) ∩A = A e (A ∪B)\A = B, ou seja,

m∗N (A ∪B) = m∗

N (A) +m∗N (B).

c) Segue-se de uma inducao evidente que se os conjuntos A1, · · · , An ∈L(RN ) sao disjuntos, entao

n⋃

k=1

Ak ∈ L(RN ) e m∗N (

n⋃

k=1

Ak) =n∑

k=1

m∗N (Ak).

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106 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

O proximo teorema mostra que L(RN ) e efectivamente uma solucao doproblema “facil” de Lebesgue, dita a σ-algebra de Lebesgue.

Teorema 2.2.14. m∗N e σ-aditiva em L(RN ) e L(RN ) e uma σ-algebra.

Demonstracao. Dados conjuntos En ∈ L(RN ), definimos

E =

∞⋃

n=1

En e Fn =

n⋃

k=1

Ek.

Os conjuntos Fn sao Lebesgue-mensuraveis, porque L(RN ) e uma algebra(2.2.13 c)), e podemos supor que os conjuntos En sao disjuntos sem perdergeneralidade (porque?). Para provar que m∗

N e σ-aditiva em L(RN ), basta-nos notar que

∞∑

n=1

m∗N (En) ≥ m∗

N (E) ≥ m∗N (Fn) =

n∑

k=1

m∗N (Ek) →

∞∑

n=1

m∗N (En).

Para verificar que E ∈ L(RN ), seja R um rectangulo limitado. Observamosprimeiro que, como Fn ∈ L(RN ) e E ⊇ Fn, temos

(i) cN (R) = m∗N (R ∩ Fn) +m∗

N (R\Fn) ≥ m∗N (R ∩ Fn) +m∗

N (R\E).

Como os conjuntos R∩Ek sao mensuraveis e disjuntos, usamos a σ-aditividadeque acabamos de demonstrar para obter

(ii) m∗N (R ∩ Fn) =

n∑

k=1

m∗N (R ∩Ek) →

∞∑

n=1

m∗N (R ∩ En) = m∗

N (R ∩ E).

Concluımos de (i) e (ii) que cN (R) ≥ m∗N (R ∩E) +m∗

N (R\E), o que, comoja observamos, garante que E e Lebesgue-mensuravel.

Usando o resultado anterior, registamos desde ja que:

Observacoes 2.2.15.

1. A classe L(RN ) contem as classes Eσ(RN ) e Jσ(RN ): Qualquer conjunto Jor-dan-mensuravel e Lebesgue-mensuravel, como vimos no exemplo 2.2.12.4. ComoL(RN ) e uma σ-algebra, e claro que Eσ(RN ) ⊆ Jσ(RN ) ⊆ L(RN ).

2. Os conjuntos abertos sao Lebesgue-mensuraveis, porque sao σ-elementares.Os conjuntos fechados, que sao os respectivos complementares, sao igualmenteLebesgue-mensuraveis, porque L(RN ) e uma algebra.

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2.2. A Medida de Lebesgue 107

3. O conjunto do exemplo 1.6.8 e Lebesgue-mensuravel: O conjunto e da forma

Uε =

∞⋃

n=1

]qn − ε

2n, qn +

ε

2n[,

onde q1, q2, · · · , qn, · · · sao os racionais de [0, 1]. Uε e Lebesgue-mensuravel,porque e aberto, mas nao e Jordan-mensuravel, pelo menos quando ε < 1/2,

4. O conjunto de Volterra Cε(I) e Lebesgue-mensuravel, porque e fechado. Sen-do Uε(I) = I\Cε(I), temos m(Uε(I)) = (1−ε)c(I), e como m(I) = m(Cε(I))+m(Uε(I)) e claro que m(Cε(I)) = εc(I). Recorde que Cε(I) 6∈ Jσ(RN ) quandoε > 0.

5. (L(RN ),mN ) e uma solucao do problema de Borel. Poderao existir outrassolucoes (MN , κN ) do problema de Borel com κN 6= m∗

N , mas teremos sempreκn(E) ≤ m∗

N (E) para qualquer E ∈ MN .

6. L(RN ) e a maior solucao do problema “facil” de Lebesgue, como verificamosna proposicao 2.2.9.

O proximo resultado revela uma relacao essencial entre os conjuntos Le-besgue-mensuraveis e os conjuntos abertos: os conjuntos Lebesgue-mensu-raveis sao os que podem ser aproximados por excesso por conjuntos abertoscom erro arbitrariamente pequeno, sendo este erro quantificado pela medidaexterior do conjunto diferenca.

Teorema 2.2.16. E ∈ L(RN ) se e so se para qualquer ε > 0 existe umconjunto aberto U ⊆ RN tal que E ⊆ U e m∗

N (U\E) < ε.

Demonstracao. Consideramos as afirmacoes

(1) ∀ε>0 ∃U⊆RN tal que U e aberto, E ⊆ U e m∗N (U\E) < ε, e

(2) E ∈ L(RN ).

• (1) ⇒ (2): Existem neste caso abertos Un ⊇ E tais que m∗N (Un\E) <

1/n, e definimos B =⋂∞

n=1 Un. Note-se que (figura 2.2.3)

B ∈ L(RN ), B ⊇ E e B\E ⊆ Un\E.Como m∗

N (B\E) ≤ m∗N (Un\E) < 1/n → 0, temos m∗

N (B\E) = 0, eportanto B\E ∈ L(RN ), donde E = B\(B\E) ∈ L(RN).

• (2) ⇒ (1): E conveniente separar o argumento em dois subcasos,

a) mN (E) < +∞: de acordo com 2.2.6, existe para qualquer ε > 0um aberto U tal que E ⊆ U , e

m∗N (E) = mN (E) ≤ cN (U) = mN (U) ≤ mN (E) + ε.

Temos de 2.2.13 b) quemN (U) = mN (E)+mN (U\E), e portanto

m∗N (U\E) = mN (U\E) = mN (U) −mN (E) < ε.

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108 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

b) mN (E) = +∞: tomamos En = E∩Rn, onde Rn e, por exemplo, orectangulo formado pelos x = (x1, · · · , xN ) com |xk| ≤ n. ComoEn ∈ L(RN ) e tem medida finita, temos de a) que existe umaberto Un ⊇ En tal que mN (Un\En) < ε/2n. E claro que

E =

∞⋃

n=1

En ⊆∞⋃

n=1

Un = U , e U\E =

∞⋃

n=1

(Un\E) ⊆∞⋃

n=1

(Un\En).

U e aberto, e como a medida exterior e σ-subaditiva, temos

m∗N (U\E) ≤ mN (

∞⋃

n=1

Un\En) ≤∞∑

n=1

mN (Un\En) <∞∑

n=1

ε

2n< ε.

E B

Un

Um

Figura 2.2.3: Os conjuntos E, B, e os abertos Un.

O teorema anterior e muitas vezes utilizado na forma

Corolario 2.2.17. E ∈ L(RN ) se e so se existem conjuntos abertos Un ⊆RN tais que E ⊆ Un e m∗

N (Un\E) → 0, donde mN (Un) → mN (E). Osconjuntos Un podem sempre ser supostos formar uma sucessao decrescente.

Demonstracao. De acordo com o teorema anterior, E ∈ L(RN ) se e so seexiste uma sucessao de abertos Un ⊇ E tais que m∗

N (Un\E) → 0. A sucessaopode ser suposta decrescente, porque podemos substituir os conjuntos Un

pelos conjuntos Vn = ∩nk=1Uk. Temos ainda que

mN (E) ≤ mN (Un) = mN (E) +mN (Un\E) =⇒ mN (Un) → mN (E).

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2.2. A Medida de Lebesgue 109

Este corolario permite-nos obter facilmente um resultado de unicidadeparcial para as solucoes do Problema de Borel.

Corolario 2.2.18. Se (MN , κN ) e solucao do Problema de Borel, entaoκN (E) = m∗

N (E) para qualquer E ∈ MN ∩ L(RN ).

Demonstracao. Qualquer solucao κN do Problema de Borel coincide com cNnos rectangulos limitados, e portanto, por σ-subaditividade, κN (U) = cN (U)para qualquer aberto U ⊆ RN . Como κN e monotona, temos ainda, paraqualquer E ∈ MN ,(7)

κN (E) ≤ infmN (U) : E ⊆ U , U aberto = m∗N (E)

De acordo com 2.2.17, se E ∈ MN ∩ L(RN ) existem conjuntos abertosUn ⊇ E tais que mN (Un\E) → 0, e notamos que

κN (E) + κN (Un\E) = κN (Un) = mN (Un) = mN (E) +mN (Un\E).

Dado que κN (Un\E) ≤ m∗N (Un\E) = mN (Un\E), e claro que κN (Un\E) →

0, e concluımos que κN (E) = mN (E).

Antes de generalizar a proposicao 1.3.12, sobre produtos cartesianos, ea invariancia do conteudo sob translacoes e reflexoes, aos conjuntos Lebes-gue-mensuraveis, investigamos as correspondentes propriedades da medidaexterior de Lebesgue.

Proposicao 2.2.19. Sejam E ⊆ RN , F ⊆ RM e x ∈ RN . Seja ainda R areflexao de E no hiperplano xk = 0. Temos entao:

a) Invariancia sob translacoes: m∗N (E + x) = m∗

N (E).

b) Invariancia sob reflexoes: m∗N (R) = m∗

N (E).

c) Medida exterior do produto: m∗N+M (E × F ) ≤ m∗

N (E) ×m∗M (F ).(8)

Demonstracao. A verificacao de a) e de b) e um exercıcio muito simples.Por exemplo, e muito facil mostrar que

cN (U) : E ⊆ U,U ∈ Eσ(RN )

=cN (V ) : E + x ⊆ V, V ∈ Eσ(RN )

,

porque os conjuntos V sao da forma V = (U + x), e cN (U + x) = cN (U).Para provar c), sejam Un ⊆ RN e Vn ⊆ RM conjuntos abertos tais que

Un ⊇ E,Vn ⊇ F, cN (Un) → m∗N (E) e cM (Vn) → m∗

M(F ).

7Existem solucoes do problema de Borel que nao sao solucoes do problema “facil” deLebesgue, i.e., para as quais existem conjuntos E ∈ MN tais que κN (E) < m∗

N (E).Veremos adiante que as solucoes do problema “facil” de Lebesgue se dizem as solucoes

regulares do problema de Borel.8Temos na realidade que m∗

N+M (E × F ) = m∗N(E) ×m∗

M (F ), mas so estabeleceremosesta afirmacao no proximo Capıtulo.

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110 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

E claro que E × F ⊆ Un × Vn, e portanto, usando o lema 1.6.20, temos

(i) m∗N+M (E × F ) ≤ cN+M (Un × Vn) = cN (Un)cM (Vn) → m∗

N (E)m∗M (F ),

desde que o produto m∗N (E)m∗

M (F ) nao corresponda a uma indeterminacaodo tipo (0)(∞).

Suponha-se agora que o produto m∗N (E) × m∗

M (F ) e da forma 0 × ∞, eque m∗

N (E) = 0 e m∗M (F ) = ∞ (o argumento para o caso m∗

N (E) = ∞ em∗

M (F ) = 0 e inteiramente analogo). Definimos os conjuntos auxiliares

Fn = y ∈ F : ‖y‖ ≤ n , donde F =∞⋃

n=1

Fn e E × F =∞⋃

n=1

E × Fn.

Os conjuntos Fn tem medida exterior finita, porque sao limitados. Segue-sede (i) que m∗

N+M (E × Fn) = 0 ×m∗M (Fn) = 0 e portanto

m∗N+M(E × F ) ≤

∞∑

n=1

m∗N+M (E × Fn) = 0.

Exemplo 2.2.20.

Se E ⊂ RN tem medida exterior nula e F ⊆ RM e arbitrario, entao E × Fe Lebesgue-mensuravel, porque tem medida exterior nula, como acabamos deverificar.

Podemos agora generalizar a proposicao 1.3.12 aos conjuntos Lebesgue-mensuraveis.

Teorema 2.2.21. Sejam A ∈ L(RN ) e B ∈ L(RM ).

a) Invariancia sob translaccoes: Se x ∈ RN , A+ x ∈ L(RN) e

mN (A+ x) = mN (A),

b) Invariancia sob reflexoes: Se C e a reflexao de A no hiperplano xk =

0, entao C ∈ L(RN ), e mN (A) = mN (C), e

c) Fecho em relacao ao produto: A×B ∈ L(RN+M ) e

mN+M (A×B) = mN (A) ×mM (B).

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2.2. A Medida de Lebesgue 111

Demonstracao. As afirmacoes a) e b) sao consequencias muito simples dascorrespondentes afirmacoes em 2.2.19 e a sua verificacao fica para o exercıcio12. Passamos a provar apenas a afirmacao c).

De acordo com 2.2.17, existem conjuntos abertos Un ⊇ A e Vn ⊇ B, taisque mN (Un\A) → 0 e mM (Vn\B) → 0. Notamos que

Un × Vn e aberto, A×B ⊆ Un × Vn e

(Un × Vn)\(A ×B) = [Un × (Vn\B)] ∪ [(Un\A) × Vn].

Se os conjuntos A e B tem ambos medida finita, deve ser claro que

m∗N+M (Un × (Vn\B)) → 0 e m∗

N+M ((Un\A) × Vn) → 0, e portanto

m∗N+M ((Un × Vn)\(A ×B)) → 0.

Segue-se do corolario 2.2.17 que A×B e Lebesgue-mensuravel e

mN+M (Un × Vn) → mN+M (A×B).

E tambem claro que mN+M (Un × Vn) = cN (Un)cM (Vn) → mN (A)mM (B) etemos assim que

mN+M (A×B) = mN (A)mM (B).

Se A ou B tem medida infinita, basta-nos considerar os conjuntos An =x ∈ A : ||x|| < n e Bn = x ∈ B : ||x|| < n, e notar que An ր A,Bn ր B e An × Bn ր A × B. Aplicando o teorema da convergenciamonotona 2.1.13 e o resultado que demonstramos para conjuntos de medidafinita, concluımos que A×B e mensuravel e(9)

mN+M (An ×Bn) = mN (An)mM (Bn) ր mN (A)mM (B) = mN+M(A×B).

Relativamente a produtos de conjuntos, a seguinte proposicao e tambemutil. E alias valida para qualquer B ∈ L(RM ) (ver o exercıcio 14), e comoja dissemos e mesmo valida para quaisquer conjuntos, observacao que seraverificada no proximo Capıtulo.

Proposicao 2.2.22. Se A ⊆ RN e B ⊆ RM e um rectangulo-M entaom∗

N+M(A×B) = m∗N (A)mM (B).

9Neste caso nao ha qualquer indeterminacao, porque se mN (A)mM(B) = (0)(∞) entaomN(An)mM (Bn) = 0 para qualquer n.

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112 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Demonstracao. Temos a provar que m∗N+M (A × B) ≥ m∗

N (A) × mM(B).Supomos primeiro que B e um rectangulo compacto. Dado um aberto U ⊇A×B, sabemos que

U =

∞⋃

n=1

Rn × Tn, onde Rn ⊂ RN e Tn ⊂ RM sao rectangulos abertos.

Fixado x ∈ A, notamos que a classe T = Tn : x ∈ Rn e, por razoes obvias,uma cobertura aberta do compacto B. Existe por isso uma subcoberturafinita T ′ = Tn1

, Tn2, · · · , Tnk

⊆ T de B. Observamos que

Qx =

k⋂

i=1

Rni=⇒ Qx ×B ⊆

k⋃

i=1

Rni× Tni

⊆ U.

O conjunto V =⋃

x∈A

Qx e aberto, e A × B ⊆ V × B ⊆ U. E evidente que

m∗N (A) ≤ mN (V ) e portanto

m∗N (A)mM (B) ≤ mN (V )mM (B) = mN+M(V ×B) ≤ mN+M (U).

Por outras palavras, m∗N (A)mM (B) ≤ mN+M (U) para qualquer aberto U ⊇

A × B, donde m∗N (A)mM (B) ≤ m∗

N+M (A × B). Deixamos como exercıcioa generalizacao deste resultado para qualquer conjunto mensuravel B.

A

B

A×B U

Qx

x

Qx ×B

Figura 2.2.4: Qx ×B ⊆ U .

Exercıcios.

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2.2. A Medida de Lebesgue 113

1. Prove que a medida exterior de Lebesgue e invariante sob translaccoes, e con-clua que a classe dos conjuntos Lebesgue-mensuraveis e igualmente invariantesob translaccoes.

2. Prove que qualquer conjunto numeravel E ⊆ RN verifica m∗N (E) = 0.

3. Determine conjuntos E ⊆ R tais que

c(E) < m∗(E) = c(E) e c(E) < m∗(E) < c(E).

4. Prove que se m∗N (E) = 0 entao qualquer subconjunto de E e Lebesgue-

mensuravel.

5. Prove que se I ⊆ R e um intervalo ilimitado entao I ∈ L(R) e m(I) = +∞.

6. Prove que R\Q e Lebesgue-mensuravel, com m(R\Q) = ∞.

7. Prove que se K e compacto, entao m∗N (K) = cN (K).

8. Mostre que podemos ter mN (E) > 0 e intE = ∅.

9. Determine o cardinal das classes J (RN ) e L(RN ). sugestao: Considere oconjunto de Cantor.

10. Podemos definir a medida interior de Lebesgue do conjunto E ⊆ RN usandosupcN(K) : K ∈ Eσ(E)?

11. Suponha que E ⊆ R ⊂ RN , e R e um rectangulo limitado. Mostre que E eLebesgue-mensuravel se e so se m∗

N (E) +m∗N (R\E) = cN(R).(10)

12. Complete a demonstracao do teorema 2.2.21.

13. Generalize a propriedade de σ-aditividade da medida de Lebesgue da seguinteforma: suponha que os conjuntos En ⊆ RN sao mensuraveis e disjuntos, e con-sidere quaisquer conjuntos An ⊆ En. Mostre que:

m∗(∞⋃

n=1

An) =∞∑

n=1

m∗(An).

Aproveite para mostrar que se os conjuntos Fn sao mensuraveis e Fn ր F entaom∗

N (A ∩ Fn) ր m∗N (A ∩ F ) para qualquer A ⊆ RN . sugestao: Considere

primeiro o caso de uma uniao finita.

14. Seja A ⊆ RN e B ∈ L(RM ). Mostre que m∗N+M (A×B) = m∗

N (A)mM (B).sugestao: Use a proposicao 2.2.22, e suponha primeiro que B e aberto. Podeser conveniente usar o exercıcio anterior.

10Mostramos assim que a definicao original de Lebesgue, aplicavel apenas a conjuntoslimitados, e nesse caso equivalente a definicao que referimos em 2.2.11.

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114 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

15. Suponha que∑∞

n=1 |cn| < ∞, seja D = xn : n ∈ N um conjunto infinitonumeravel em R, e considere a funcao f : R → R nula fora de D, tal quef(xn) = cn.

a) Prove que f ′(x) = 0 qtp em R. sugestao: Aplique o lema de Borel-Cantelli aos conjuntos:

An,k =

x ∈ R :

|cn||x− xn|

>1

k

, e Ak =

∞⋂

m=1

∞⋃

n=m

An,k.

b) Mostre que a conclusao anterior e igualmente valida desde que, paraqualquer intervalo limitado I, e tomando K = n ∈ N : xn ∈ I, se tenha

n∈K

|cn| <∞.

2.3 Os Espacos de Borel e de Lebesgue

Passamos a definir os conjuntos de Borel a que ja aludimos diversas vezes,e esclarecemos a relacao entre estes conjuntos e os conjuntos Lebesgue-mensuraveis. Nao usamos aqui a definicao original de Borel, que e cons-trutiva(11), e bastante complexa. Sabemos hoje que os conjuntos de Borelformam a menor σ-algebra em RN que contem os conjuntos abertos, e estefacto permite uma definicao muito mais sucinta. Precisamos apenas deprovar um resultado abstracto preliminar:

Proposicao 2.3.1. Se Mα : α ∈ J e uma famılia nao-vazia de σ-algebrasem X, a classe M = ∩a∈JMα e uma σ-algebra em X.

Demonstracao. Sabemos que qualquer σ-algebra Mα ⊇ ∅,X, e portantoM ⊇ ∅,X. Em particular, M 6= ∅. Para verificar que M e fechada emrelacao a complementacao, basta-nos notar que, como cada σ-algebra Mα

e fechada em relacao a complementacao,

A ∈ M ⇔ A ∈ Mα,∀α∈J ⇒ Ac ∈ Mα,∀α∈J ⇔ Ac ∈ M.

Analogamente, e para demonstrar que M e fechado em relacao a unioes nu-meraveis, observamos que cada σ-algebra Mα e fechada em relacao a unioesnumeraveis, donde

An ∈ M ⇐⇒ An ∈ Mα,∀α∈J =⇒∞⋃

n=1

An ∈ Mα,∀α∈J ⇐⇒∞⋃

n=1

An ∈ M.

11A opcao de Borel parece ter sido motivada, pelo menos parcialmente, por razoes filoso-ficas. Borel revela algum desconforto com nocoes demasiado abstractas da ideia de “con-junto”, e prefere referir conjuntos que podem ser definidos usando apenas rectangulos, eoperacoes de interseccao, uniao e complementacao sobre famılias numeraveis de conjuntos.Naturalmente, este facto nao o impede de reconhecer que a sua propria definicao deconjunto de medida nula nao se coaduna com estas reservas.

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2.3. Os Espacos de Borel e de Lebesgue 115

Se C e uma famılia inteiramente arbitraria de subconjuntos de X, entaoa σ-algebra P(X) que contem todos os subconjuntos de X contem certa-mente todos os conjuntos em C. Portanto, existem sempre σ-algebras de Xque contem todos os conjuntos em C. A interseccao de todas as σ-algebrasque contem C e, de acordo com a proposicao anterior, a menor σ-algebrade X que contem C (porque?). Introduzimos por isso:

Definicao 2.3.2 (σ-Algebra Gerada pela Classe C). Se C e uma classe desubconjuntos do conjunto X, a interseccao de todas as σ-algebras em X quecontem a classe C diz-se a σ-algebra gerada por C.

Exemplo 2.3.3.

Se C = E, onde E ⊆ X , a σ-algebra gerada por C e M = ∅, E,Ec, X.

Definimos os conjuntos Borel-mensuraveis usando 2.3.2, com X = RN ,e sendo C a classe dos subconjuntos abertos de RN :

Definicao 2.3.4 (Conjuntos Borel-Mensuraveis). A σ-algebra gerada pelossubconjuntos abertos de RN diz-se a σ-algebra de borel, e designa-sepor B(RN). Os conjuntos em B(RN ) dizem-se borel-mensuraveis, ouconjuntos de borel.(12)

Exemplos 2.3.5.

1. Qualquer conjunto aberto (ou fechado) e Borel-mensuravel. Em particular,sendo S ⊆ RN um conjunto qualquer, o seu interior, exterior e fronteira saosempre Borel-mensuraveis.

2. O conjunto de Cantor C(I) e o conjunto de Volterra Cε(I) sao Borel-mensu-raveis, porque sao fechados.

3. Se os conjuntos Un sao abertos, entao G = ∩∞n=1Un e Borel-mensuravel,

apesar de G nao ser necessariamente aberto, ou fechado. Analogamente, se osconjuntos Fn sao fechados, entao F = ∪∞

n=1Fn e Borel-mensuravel, apesar deF nao ser necessariamente fechado, ou aberto.

4. Se B = x1,x2, · · · ,xn, · · · e um conjunto numeravel em RN , tomamosFn = xn (um conjunto fechado, logo Borel-mensuravel), e notamos queB = ∪∞

n=1Fn e Borel-mensuravel.

Os conjuntos dos tipos mencionados em 2.3.5.3 tem nomes especiais:

Definicao 2.3.6 (Conjuntos Fσ e Gδ). Se E ⊆ RN , dizemos que

a) E e um conjunto Fσ , ou de tipo Fσ , se e so se E e a uniao de umafamılia numeravel de fechados, e

12Esta definicao e aplicavel em qualquer espaco topologico (X,O): sendo O a famıliados conjuntos abertos em X, B(X) e a σ-algebra gerada por O.

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116 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

b) E e um conjunto Gδ , ou de tipo Gδ, se e so se E e a interseccao deuma famılia numeravel de abertos.(13)

Exemplos 2.3.7.

1. De acordo com 1.6.18, qualquer conjunto aberto em RN e um conjunto Fσ.

2. O conjunto dos racionais e um conjunto Fσ, porque e numeravel.

3. O conjunto dos irracionais e um conjunto Gδ, porque e o complementar dumconjunto Fσ .

Sabemos que L(RN ) e uma σ-algebra que contem os abertos. Como aσ-algebra de Borel e a menor σ-algebra que contem os abertos, temos

Corolario 2.3.8. B(RN ) ⊆ L(RN ).

Note-se em particular que

• Se MN e solucao do problema de Borel, temos B(RN) ⊆ MN , porqueMN e uma σ-algebra que contem os abertos.

• Se MN e solucao do problema de Lebesgue, temos B(RN) ⊆ MN ⊆L(RN ), porque (RN ,MN ,mN ) e uma solucao do problema de Borel,e porque L(RN ) e a maior solucao do problema de Lebesgue.

• Veremos na proxima seccao que B(RN ) 6= L(RN ) 6= P(RN ).

Vimos no teorema 2.2.16 que os conjuntos Lebesgue-mensuraveis podemser aproximados por excesso por conjuntos abertos. Obtemos a seguir maisalguns tipos de aproximacoes de conjuntos Lebesgue-mensuraveis, mostran-do em particular que estes conjuntos:

• Podem ser aproximados por defeito por conjuntos fechados, e

• Diferem de conjuntos Borel-mensuraveis por conjuntos de medida nula.

Teorema 2.3.9. As seguintes afirmacoes sao equivalentes:

a) E ⊆ RN e Lebesgue-mensuravel.

b) Para qualquer ε > 0, existem F (fechado), e U (aberto), tais que

F ⊆ E ⊆ U , e mN (U\F ) < ε.

c) Existem A,B ∈ B(RN ), onde A e um Fσ, e B um Gδ, tais que

A ⊆ E ⊆ B e mN (B\A) = 0.

13 As letras “s” (σ) e “d” (δ) sao as iniciais de “uniao” e “interseccao” na lıngua alema.

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2.3. Os Espacos de Borel e de Lebesgue 117

Demonstracao. a) ⇒ b) SeE e Lebesgue-mensuravel entao Ec e, igualmente,Lebesgue-mensuravel. Dado ε > 0 temos, de acordo com 2.2.16, que

• Existe um aberto U tal que E ⊆ U e mN (U\E) < ε2 , e

• Existe um aberto V tal que Ec ⊆ V e mN (V \Ec) < ε2 .

E claro que F = V c e fechado e F ⊆ E. Basta-nos agora notar que

U\F = (U\E) ∪ (E\F ) = (U\E) ∪ (V \Ec) ⇒ mN (U\F ) <ε

2+ε

2= ε.

b) ⇒ c): Se n ∈ N, existem conjuntos Fn (fechado) e Un (aberto) tais que

Fn ⊆ E ⊆ Un e mN (Un\Fn) <1

n.

Os conjuntos A = ∪∞n=1Fn e B = ∩∞

n=1Un sao, respectivamente, um Fσ eum Gδ , temos A ⊆ E ⊆ B e B\A ⊆ Un\Fn, donde

mN (B\A) ≤ mN (Un\Fn) <1

n, para qualquer n⇒ mN (B\A) = 0.

c) ⇒ a): E = A ∪ D, onde D = E\A ⊆ B\A. A e Borel-mensuravel,logo Lebesgue-mensuravel, e D e Lebesgue-mensuravel, porque m∗

N (D) = 0.Segue-se que E e Lebesgue-mensuravel.

Os conjuntos com medida finita podem ainda ser aproximados por con-juntos compactos, e mesmo por conjuntos elementares:

Teorema 2.3.10. Se E ⊆ RN e m∗N (E) < +∞, entao as seguintes afirmacoes

sao equivalentes:

a) E e Lebesgue-mensuravel.

b) Para qualquer ε > 0, existem K (compacto) e U (aberto) tais que

K ⊆ E ⊆ U e mN (U\K) < ε.

c) Para qualquer ε > 0, existe um conjunto elementar J tal que (14)

m∗N (E∆J) < ε.

Demonstracao. E evidente de 2.3.9 que b) ⇒ a), e deixamos para o exercıcio5 mostrar que a) ⇒ b), ou seja, que o conjunto fechado referido em 2.3.9pode ser substituıdo por um compacto.

14 Se A e B sao conjuntos, o conjunto A∆B = (A\B)∪(B\A) e a diferenca simetrica

de A e B.

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118 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Para provar que b) ⇒ c), notamos que o aberto U e uma uniao nu-meravel de rectangulos abertos limitados Rn. Os rectangulos Rn formam,por razoes obvias, uma cobertura aberta do compacto K. Existe por issouma subcobertura finita de K por rectangulos R1, · · · , Rm, e o conjuntoJ = ∪m

n=1Rn e elementar. Observamos que (ver figura 2.3.1)

K ⊆ E ⊆ U e K ⊆ J ⊆ U =⇒ E∆J ⊆ U\K =⇒ m∗N (E∆J) < ε.

U E

J

K

Figura 2.3.1: E∆J ⊆ U\K

• m∗N (E\A) ≤ m∗

N (E\Jn) <ε

2n, donde m∗

N (E\A) = 0, e

• m∗N (A\E) = m∗

N (

∞⋃

n=1

(Jn\E)) ≤∞∑

n=1

m∗N (Jn\E) <

∞∑

n=1

ε

2n= ε

B = A∪(E\A) e Lebesgue-mensuravel, contem E em∗N (B\E) < ε. Provamos

assim que, para qualquer ε > 0, existe um conjunto Lebesgue-mensuravelB ⊇ E tal que m∗

N (B\E) < ε. E facil concluir daqui que E e igualmenteLebesgue-mensuravel (exercıcio 5).

As propriedades dos conjuntos Jordan- e Lebesgue-mensuraveis relacio-nadas com produtos cartesianos e com a invariancia sob translaccoes e re-flexoes, que vimos em 1.3.12 e 2.2.21, sao tambem comuns aos conjuntos deBorel.

Teorema 2.3.11. Sejam A ∈ B(RN ), B ∈ B(RM ) e x ∈ RN .

a) Fecho em relacao ao produto: A×B ∈ B(RN+M ).

b) Invariancia sob translaccoes: A+ x ∈ B(RN).

c) Invariancia sob reflexoes: Se C e a reflexao de A no hiperplano xk =

0, entao C ∈ B(RN ).

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2.3. Os Espacos de Borel e de Lebesgue 119

Demonstracao. Demonstramos aqui a), deixando as observacoes em b) e c)para o exercıcio 9. Suponha-se primeiro que U ⊆ RN e um conjunto aberto,e considere-se a classe de conjuntos BU , dada por:

BU =V ⊆ RM : U × V ∈ B(RN+M)

.

Deve ser claro que neste caso

(1) A classe BU contem todos os subconjuntos abertos de RM .

Temos, por razoes obvias, que

V =

∞⋃

m=1

Vm ⇒ U × V =

∞⋃

m=1

U × Vm.

Se os conjuntos Vm ∈ BU , entao os conjuntos U×Vm sao Borel-mensuraveis.Como B(RN+M) e uma σ-algebra, e claro que, neste caso, U×V e igualmenteBorel-mensuravel. Por outras palavras,

(2) A classe BU e fechada em relacao a unioes numeraveis.

Por outro lado, temos que U × V c = (U × V )c ∩(U × RM

). Se V ∈ BU ,

entao (U × V )c e Borel-mensuravel, porque e o complementar do conjuntoBorel-mensuravel U × V . Sendo U aberto, deve ser evidente que U × RM eaberto, e concluımos que U × V c e Borel-mensuravel. Temos assim,

(3) A classe BU e fechada em relacao a complementacoes.

Podemos concluir de (1), (2) e (3) que:

(4) A classe BU e uma σ-algebra que contem os abertos, e portanto contemos conjuntos Borel-mensuraveis. Dito doutra forma,

(5) Se U ∈ RN e aberto e B ∈ B(RM ), entao U ×B ∈ B(RN+M ).

Para terminar a demonstracao de a), supomos que B ∈ B(RM ) e considera-mos a classe de conjuntos B∗

B dada por:

B∗B =

U ⊆ RN : U ×B ∈ B(RN+M)

.

Como vimos em (5), a classe B∗B contem os abertos de RN , e e simples

adaptar os argumentos acima para mostrar que esta classe e, tambem, umaσ-algebra:

• U =⋃∞

n=1 Un ⇒ U × B =⋃∞

n=1 Un × B e, por isso, B∗B e fechada em

relacao a unioes numeraveis.

• U c × B = (U ×B)c ∩(RN ×B

), donde B∗

B e fechada em relacao acomplementacoes.

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120 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Podemos concluir, mais uma vez, que

(6) A classe B∗B e uma σ-algebra que contem os abertos, e portanto contem

os conjuntos Borel-mensuraveis. Dito doutra forma,

(7) Se A ∈ B(RN ) e B ∈ B(RM), entao A×B ∈ B(RN+M).

Vimos em 2.2.6 que a medida exterior de Lebesgue pode ser calculadarecorrendo apenas a conjuntos abertos. Como os conjuntos abertos saomensuraveis, esta observacao pode ser reformulada como se segue:

Teorema 2.3.12. Se E ∈ L(RN ), entao

mN (E) = infmN (U) : E ⊆ U ⊆ RN , U aberto

.

Esta propriedade da medida de Lebesgue e na realidade partilhada pormuitas outras medidas definidas em RN , e e por isso conveniente introduzira seguinte:

Definicao 2.3.13 (Medida Regular). Seja µ uma medida positiva definidana σ-algebra M ⊇ B(RN). Dizemos que µ e regular(15) em N ⊆ M se eso se

µ(E) = infµ(U) : E ⊆ U,U ⊆ RN aberto

, para qualquer E ∈ N .

Se N e uma σ-algebra, dizemos tambem que o espaco (RN ,N , µ) e regular.

Exemplos 2.3.14.

1. A medida de Lebesgue e regular em L(RN ).

2. A medida de Dirac e regular em P(R).

3. Se a medida µ e o cardinal, temos inf µ(U) : E ⊆ U,U aberto = +∞ paraqualquer E 6= ∅, porque qualquer aberto nao-vazio e nao-numeravel. Comoqualquer conjunto finito e Borel-mensuravel, µ nao e regular em B(RN).

4. O pente de Dirac dado por µ(E) = #(E ∩ Z) e regular. Em contrapartida,o pente dado por λ(E) = #(E ∩ Q) nao e regular.

5. As solucoes do problema “facil” de Lebesgue sao as solucoes regulares doproblema de Borel.

15Mais exactamente, esta propriedade diz-se a regularidade exterior da medida µ.Esta nocao e efectivamente aplicavel em qualquer espaco topologico (X,O), e a qualquermedida µ definida numa σ-algebra M ⊇ B(X) ⊇ O, tal como a de regularidade interior,que e a afirmacao que µ(E) = supµ(K) : K ⊆ E,K compacto . A distincao entreregularidade, regularidade interior e regularidade exterior nao e especialmente importanteem RN , e em particular deve estabelecer-se no exercıcio 4 a regularidade interior da medidade Lebesgue, mas e mais relevante noutros espacos topologicos.

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2.3. Os Espacos de Borel e de Lebesgue 121

Veremos mais adiante que muitas das propriedades da medida de Le-besgue indicadas nesta seccao, depois de convenientemente reformuladas,sao comuns a todas as medidas regulares σ-finitas definidas em B(RN ), eem especial sao comuns a todas as medidas que sao finitas em conjuntoscompactos de RN .(16)

Se E e um conjunto Lebesgue-mensuravel de medida nula e F ⊆ E,sabemos que F e igualmente Lebesgue-mensuravel, por razoes muito simples.Esta e uma propriedade do espaco de Lebesgue que nao e partilhada portodos os espacos de medida, e introduzimos a este respeito a

Definicao 2.3.15 (Espaco Completo). O espaco (X,M, µ) e completo see so se todos os subconjuntos de conjuntos de medida nula sao mensuraveis,ou seja, se µ(C) = 0 e N ⊆ C ⇒ N ∈ M, donde µ(N) = 0. Dizemostambem que a medida µ e completa.

Exemplos 2.3.16.

1. O espaco de medida de Lebesgue e completo.

2. Veremos na proxima seccao que o espaco de Borel nao e completo.

E facil mostrar que qualquer espaco de medida (X,M, µ) tem uma ex-tensao completa. Comecamos por definir a classe de conjuntos(17)

Mµ = E ⊆ X : Existem A,B ∈ M tais que A ⊆ E ⊆ B e µ(B\A) = 0 .

Passamos a verificar que a medida dos conjuntos A e B referidos acimadepende apenas do conjunto E ∈ Mµ. Sejam A1, A2, B1, B2 ∈ M tais que

Ai ⊆ E ⊆ Bi e µ(Bi\Ai) = 0 para i = 1 e i = 2.

Com A′ = A1 ∪A2 e B′ = B1 ∩B2, temos por razoes obvias que

Ai ⊆ A′ ⊆ E ⊆ B′ ⊆ Bi donde µ(Ai) = µ(A′) = µ(B′) = µ(Bi).

Definimos µ : Mµ → R+ tomando µ(E) = µ(A), sempre supondo queA ⊆ E ⊆ B, A,B ∈ M e µ(B\A) = 0, e observamos que µ e uma evidenteextensao de µ.

Teorema 2.3.17 (Menor Extensao Completa). (X,Mµ, µ) e a menor ex-tensao completa de (X,M, µ). Mais especificamente,

a) (X,Mµ, µ) e uma extensao completa de (X,M, µ),

16Estas propriedades sao tambem frequentes em medidas definidas em σ-algebras B(X)noutros espacos topologicos, mas a sua aplicabilidade depende de condicoes adicionaissobre o espaco X.

17Quando M = B(RN ) e µ = mN , e claro que Mµ = L(RN), como vimos em 2.3.9.

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122 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

b) Qualquer extensao completa de (X,M, µ) e uma extensao de (X,Mµ, µ),

c) Se (X,N , ρ) e uma extensao de (X,M, µ), entao ρ(E) = µ(E), paraos conjuntos E ∈ N ∩Mµ.

N

µ

µM

N ρ

ρ

ρ

Figura 2.3.2: Extensoes do espaco (X,M, µ)

Demonstracao. Comecamos por mostrar que (X,Mµ, µ) e um espaco demedida.

(1) Mµ e fechada em relacao a unioes numeraveis: Supomos que os con-juntos En ∈ Mµ, ou seja, existem conjuntos An, Bn ∈ M tais que:

An ⊆ En ⊆ Bn e µ(Bn\An) = 0.

Sendo E =⋃∞

n=1En, A =⋃∞

n=1An e B =⋃∞

n=1Bn, e claro que A ⊆E ⊆ B, A,B ∈ M, e

B\A ⊆∞⋃

n=1

(Bn\An) , donde 0 ≤ µ(B\A) ≤∞∑

n=1

µ(Bn\An) = 0.

Concluımos que E ∈ Mµ.

(2) µ e σ-aditiva em Mµ: Se os conjuntos En sao disjuntos, entao osconjuntos An sao igualmente disjuntos, e temos

µ(E) = µ(A) = µ(

∞⋃

n=1

An) =

∞∑

n=1

µ(An) =

∞∑

n=1

µ(En).

(3) Mµ e fechada em relacao a unioes numeraveis: Se A ⊆ E ⊆ B eµ(B\A) = 0 entao Bc ⊆ Ec ⊆ Ac e Ac\Bc = B\A.

Provamos assim que (X,Mµ, µ) e um espaco de medida e uma extensao de(X,M, µ). Deixamos a conclusao da demonstracao para o exercıcio 6.

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2.3. Os Espacos de Borel e de Lebesgue 123

Aproveitamos para sumarizar aqui diversas propriedades interessantesdas solucoes dos problemas de Borel e de Lebesgue.

Observacoes 2.3.18. Se (MN , κN ) e solucao do problema de Borel, entao:

1. Unicidade: κN (E) = mN (E), para qualquer E ∈ MN ∩ L(RN ). Em par-ticular, κN (E) = mN(E) quando E ∈ B(RN). Esta observacao e o corolario2.2.18.

2. Solucoes regulares: Se κN e regular, i.e., se κN e solucao do problema “facil”

de Lebesgue, entao κN e uma restricao demN , tal como definida em L(RN )(18).

Em particular, (L(RN ),mN ) e a maior solucao regular do problema de Borel.Esta observacao e, como notamos, consequencia imediata de 2.2.9 e 2.2.10.

3. Solucoes completas: Se κN e completa, entao κN e uma extensao de mN , tal

como definida em L(RN ). (L(RN ),mN ) e portanto a menor solucao completado problema de Borel. Esta observacao resulta do teorema 2.3.17 e da c) doteorema 2.3.9.

4. (L(RN ),mN ) e a unica solucao completa e regular do problema de Borel,como e evidente de 2. e 3. acima.

Exemplo 2.3.19.

o conjunto de Volterra generalizado - Introduzimos aqui um outroexemplo interessante, que e uma uniao numeravel de conjuntos de Volterra nosentido em que estes conjuntos foram definidos em 1.6.15, e e por isso Borel-mensuravel.

Comecamos por observar que o procedimento usado para definir o conjuntode Volterra Cε(I) e igualmente aplicavel mesmo quando o conjunto inicial I euma uniao numeravel de intervalos disjuntos In, i.e.,

Se I =

∞⋃

n=1

In, tomamos Cε(I) =

∞⋃

n=1

Cε(In), e temos ainda m(Cε(I)) = εm(I).

Sendo Jn = Cε(In) ⊂ In, e claro que I\Cε(I) =⋃∞

n=1(In\Jn). Deve notar-seque o conjunto In\Jn e uma uniao numeravel de intervalos abertos disjuntos,independentemente do tipo de cada um dos intervalos In, e portanto o conjuntoI\Cε(I) e tambem uma uniao numeravel de intervalos abertos disjuntos. Estaoperacao pode assim ser aplicada recursivamente, i.e.,

• Fixamos um “intervalo inicial” U1 = I = [a, b].

• Seleccionamos uma sucessao de reais 0 < εn < 1.

• Definimos, para n ∈ N, Fn = Cεn(Un), e Un+1 = Un\Fn.

18Registe-se, a este respeito, as extensoes nao regulares da medida de Lebesguea σ-algebras M ⊃ L(RN), M 6= L(RN ), descobertas em 1950 (Kakutani,S. e Oxtoby,J., Construction of a non-separable invariant extension of the Lebesgue measure space, eKodaira, K., Kakutani, S., A non-separable translation invariant extension of the Lebesgue

measure space, ambos em Ann. of Math. (2) 52, (1950).

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124 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

O exemplo que desejamos introduzir aqui e o conjunto

F (I) =∞⋃

n=1

Fn, e referimos igualmente G(I) =∞⋂

n=1

Un.

O mecanismo de definicao do conjunto G(I) e analogo ao que usamos paradefinir os conjuntos de Cantor e de Volterra. A diferenca esta em que, emvez de extrair, em cada passo, uma uniao finita de “intervalos medios”, aquiextraımos, em cada passo, uma uniao numeravel de conjuntos de Volterra. Poresta razao, para n > 1 os conjuntos Un sao abertos que nao sao elementares.Segue-se que G(I) e de tipo Gδ, F (I) e de tipo Fσ, e G(I) e F (I) sao Borel-mensuraveis. Note-se de passagem que os conjuntos ∪N

n=1Fn sao compactos.

U1 U2 U3 U4

F1 = Cε1(U1)

F2 = Cε2(U2)

F3 = Cε3(U3)

F4 = Cε4(U4)

Figura 2.3.3: Fn = Cεn(Un), Un+1 = Un\Fn, F (I) =

∞⋃

n=1

Cεn(Un).

A medida dos conjuntos G(I) e F (I) depende da sucessao ε1, ε2, · · · , mas emqualquer caso m(F (I)) =

∑∞n=1m(Fn). Fixado 0 < ε < 1, podemos tomar

ε1 = 12ε, e e simples definir εn para n > 1 de forma a que(19)

m(Fn) =1

2m(Fn−1) =

1

2nεc(I), que resulta de εn+1 =

1

2

εn

1 − εn.

Passamos a escrever Fε(I) e Gε(I), e obtemos:

m(Fε(I)) =

∞∑

n=1

1

2nεc(I) = εc(I), e m(Gε(I)) = (1 − ε)c(I).

O que torna este exemplo notavel e a seguinte propriedade, aparentementeparadoxal: qualquer subintervalo nao-trivial de I intercepta tanto Fε(I) comoGε(I) em conjuntos de medida positiva. Registamos este facto na:

19Se ε1 = 1

2ε < 1

2e εn+1 = 1

2

εn

1−εne facil mostrar que εn ց 0, mas e tambem simples

calcular explicitamente o valor de εn.

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2.3. Os Espacos de Borel e de Lebesgue 125

Proposicao 2.3.20. Se J ⊆ I, e c(J) > 0, entao

m(J ∩ Fε(I)) > 0 e m(J ∩Gε(I)) > 0.

Demonstracao. Apenas esbocamos a demonstracao, deixando os detalhespara o exercıcio 7. E necessario verificar cada uma das seguintes afirmacoes:

(1) O interior de Gε(I) e vazio, e portanto Fε(I) e denso em I, porqueo comprimento de cada um dos intervalos abertos que constituem Un

nao excede 1/3n.

(2) Sendo Un =⋃∞

k=1 In,k, e tomando K = In,k, existe ε′ > 0 tal queFε(I) ∩K = Fε′(K) e Gε(I) ∩K = Gε′(K). Temos em particular

m(Fε(I) ∩K) = ε′c(K) > 0 e m(Gε(I) ∩K) = (1 − ε′)c(K) > 0

O calculo de ε′, que depende de ε e de n, fica como exercıcio.

(3) Se ∅ 6= J ⊂ I e aberto entao existem naturais n′, k′ tais que In′,k′ ⊂ J .

• De acordo com (1), Fε(I) e denso em I e portanto se ∅ 6= J ⊂ Ientao existe x ∈ J ∩ Fε(I).

• Como Fε(I) =⋃∞

n=1 Fn, e claro que existe n tal que x ∈ Fn.Fn =

⋃∞k=1Cεn(In,k), e portanto existe k tal que x ∈ Cεn(In,k).

• O conjunto Cεn(In,k) e um conjunto de Volterra “normal”. Resta-nos mostrar que, como x ∈ J , entao J contem um dos intervalosabertos que constituem o conjunto In,k\Cεn(In,k) ⊂ Un+1. Esseintervalo e claramente do tipo In+1,k′.

Observamos agora que J∩Fε(I) ⊇ In+1,k′∩Fε(I) e J∩Gε(I) ⊇ In+1,k′∩Gε(I)e aplicamos (2).

Conforme referimos no Capıtulo anterior, existem nocoes sobre a “ex-tensao” de conjuntos que nao sao baseadas na Teoria da Medida, mas usamem lugar dela conceitos de natureza topologica, sobretudo o de densidade,e estao associadas as chamadas categorias de Baire(20), que afloramosaqui. Comecamos por observar que, deste ponto de vista topologico, osconjuntos E ⊆ RN mais “insignificantes” sao os que satisfazem a condicaoint(E) = ∅, i.e., os que nao sao densos em nenhum conjunto aberto nao-vazio. Dizemos por isso que estes conjuntos sao raros(21), e apresentamosa seguir alguns exemplos deste tipo de conjuntos:

20Rene-Louis Baire, 1874-1932, matematico frances, foi professor nas universidades deMontpellier e de Dijon. As suas obras mais conhecidas sao Theorie des Nombres Irra-

tionels, des Limites et de la Continuite, de 1905, e Lecons sur les Theories Generales de

l’Analyse, de 1907-1908. A definicao de “categorias de Baire” (2.3.22) e naturalmenteaplicavel em qualquer espaco topologico.

21O termo “raro” tem sido usado em Portugues, mas afasta-se um pouco da terminologiausada noutras lınguas para designar o mesmo tipo de conjuntos: “nowhere dense”, “nulle

part dense”, “denso en ninguna parte”, etc.

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126 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Exemplos 2.3.21.

1. Os conjuntos finitos.

2. Os conjuntos de conteudo nulo.

3. Qualquer conjunto fechado de interior vazio, em particular os conjuntos deCantor e de Volterra.

As seguintes definicoes devem-se a Baire.

Definicao 2.3.22 (Categorias de Baire). E ⊆ RN e de primeira catego-

ria se e so se E e uma uniao numeravel de conjuntos raros. Caso contrario,E e de segunda categoria.

E facil apresentar exemplos de conjuntos de primeira categoria:

Exemplos 2.3.23.

1. Qualquer conjunto numeravel, em particular Q. Note que um conjunto deprimeira categoria pode ser denso.

2. O conjunto de pontos de descontinuidade de uma funcao Riemann-integravel,porque e uma uniao numeravel de conjuntos de conteudo nulo. Mais geral-mente, qualquer conjunto nulo em Jσ(RN ) e um conjunto de primeira catego-ria.

3. O conjunto Fε(I) do exemplo 2.3.19, porque e uma uniao numeravel de con-juntos de Volterra, no sentido do exemplo 1.6.15.

O principal resultado sobre categorias de Baire deve-se ao proprio Baire,e e hoje usualmente enunciado em termos abstractos numa das seguintesformas:(22)

Teorema 2.3.24 (de Baire). Seja X um espaco metrico completo, ou umespaco de Hausdorff(23) localmente compacto. Temos entao que:

a) A interseccao de qualquer famılia numeravel de conjuntos abertos den-sos em X e um conjunto denso em X.

b) X e de segunda categoria.

22Note que o teorema e valido quando X e um qualquer subconjunto fechado de RN ,em particular quando X = RN .

23Felix Hausdorff, 1868-1942, matematico alemao de origem judaica, criou as basesda Topologia Geral. Forcado a reformar-se em 1935 pelo regime nazi, suicidou-se com afamılia mais proxima em 1942, para evitar o transporte para um dos campos de extermınio.

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2.3. Os Espacos de Borel e de Lebesgue 127

Sendo certo que os conjuntos nulos e os conjuntos de primeira categoriasao, em certo sentido, “pequenos”, deve ser claro que estas nocoes sao dis-tintas(24). Por exemplo, o conjunto Fε(I) do exemplo 2.3.19 e de primeiracategoria, mas e difıcil sustentar a “pequenez” de Fε(I) do ponto de vista daTeoria da Medida! Existem tambem conjuntos de segunda categoria que saonulos, como passamos a mostrar. Em particular, existem conjuntos nulosque nao pertencem a Jσ(RN ), o que certamente nao e um facto obvio.

Exemplos 2.3.25.

1. Tal como no exemplo 1.6.8, tomamos

Uε =

∞⋃

n=1

]qn − ε

2n, qn +

ε

2n[,

onde q1, q2, · · · , qn, · · · sao agora todos os racionais de R. Tomamos

Vk = U1/k e G =

∞⋂

k=1

Vk, donde m(Vk) <2

ke m(G) = 0.

Sendo F = R\G = Gc, e claro que F e um conjunto de primeira categoria (V ck

e raro, porque e fechado e nao contem qualquer racional). E facil verificar quea uniao (finita ou numeravel) de conjuntos de primeira categoria e ainda deprimeira categoria. Como R e de segunda categoria (pelo teorema de Baire),segue-se que G nao pode ser de primeira categoria. G e portanto um conjuntonulo de segunda categoria.(25)

2. Continuando o exemplo anterior, observamos que R = F ∪G, ou seja, R e auniao de um conjunto nulo com um conjunto de primeira categoria, observacaoque mostra mais uma vez como estas nocoes devem ser interpretadas e usadascom precaucao.

24Existe, apesar disso, um resultado fascinante de dualidade entre os conjuntos deprimeira categoria e os conjuntos nulos (que requer a hipotese do contınuo!), e que sedeve a Sierpinski e ao extraordinario matematico hungaro Paul Erdos, 1913-1996. A re-ferencia essencial aqui e o livro Measure and Category, de 1971, do ja mencionado JohnOxtoby. Erdos e um dos personagens mais interessantes da Matematica do seculo XX,em nome de quem se inventou o “numero de Erdos” (o numero de Erdos de um qualquermatematico e 1 se esse matematico publicou um artigo com Erdos, e de n+ 1 se publicouum artigo com algum matematico com numero de Erdos n). Mais de 1.000 matematicosatingiram o numero de Erdos 1! Entre muitas outras ideias originais e saudavelmenteexcentricas, Erdos e recordado pelo seu mıtico e divino “Livro”, onde Deus supostamenteescreveu as demonstracoes “correctas” para todos os teoremas relevantes da Matematica(Erdos achava mais importante acreditar na existencia do Livro do que na existencia deDeus!). Recomenda-se vivamente a obra O Homem Que So Gostava de Numeros, de PaulHoffman, ja publicada em Portugues.

25Este facto parece ter sido usado por ilustres matematicos dos finais do seculo XIX paraatacar as ideias de Borel, precisamente por permitirem considerar como “insignificantes”conjuntos de segunda categoria. Curiosamente, a primeira aplicacao que Borel deu a suadefinicao de medida nula, na sua tese de doutoramento, envolveu um conjunto de segundacategoria.

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128 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Exercıcios.

1. Mostre que os conjuntos elementares sao de tipo Gδ.

2. Supondo que f : K → R e limitada no rectangulo-N compacto K, mostreque o conjunto de pontos de descontinuidade de f e um Fσ.

3. Qual e a σ-algebra gerada em RN pelos conjuntos finitos?

4. Prove que seE ∈ L(RN ) entaomN (E) = supmN(K) : K ⊆ E,K compacto ,o que dizemos ser a regularidade interior da medida de Lebesgue.

5. Conclua a demonstracao do teorema 2.3.10. sugestao:

• Verifique que se F e um conjunto fechado com medida finita entao existemconjuntos compactosKn ր tais queKn ⊆ F e mN (F\Kn) → 0. Concluaque 2.3.10 a) ⇒ 2.3.10 b).

• Para concluir a demonstracao, mostre que se existem conjuntos men-suraveisBn ⊇ E tais quem∗

N (Bn\E) → 0 entaoE e Lebesgue-mensuravel.

6. Complete a demonstracao do teorema 2.3.17.

7. Este exercıcio diz respeito ao exemplo 2.3.19, e a proposicao 2.3.20.

a) Mostre que εn =1

2

ε

2n−1(1 − ε) + εց 0, quando ε < 1. Calcule o valor

de ε′ referido no ponto (2) da demosntracao de 2.3.20.

b) Cada conjunto Un e uma uniao numeravel de intervalos disjuntos In,k.Calcule αn = maxc(In,k) : k ∈ N e mostre que αn → 0 quando n→ ∞.Conclua que G(I) tem interior vazio.

c) Calcule m(Fε(I)∩ In,k) > 0 e m(Gε(I)∩ In,k) > 0, para quaisquer n, k ∈N.

d) Para provar o ponto (3) da demonstracao de 2.3.20, mostre que se J e umintervalo aberto, Cε(I) ∩ J 6= ∅ e I\Cε(I) = Uε(I) =

⋃∞n=1 In, onde os

I ′ns sao intervalos abertos disjuntos nao-vazios, entao existe um intervaloIn ⊂ J .

8. Determine uma funcao f : R → R tal que, se g(x) = f(x) qtp em R, entao ge descontınua em todos os pontos x ∈ R. sugestao: Suponha primeiro que fe a funcao caracterıstica de Fε(I).

9. Conclua a demonstracao do teorema 2.3.11.

10. Mostre que o complementar de um conjunto raro e denso, mas o comple-mentar de um conjunto denso nao e necessariamente raro. O que pode dizersobre o complementar de um conjunto de primeira categoria?

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2.4. Conjuntos Nao-Mensuraveis 129

11. Suponha que a) do teorema 2.3.24 e valido quando X e um subconjuntofechado de RN , e mostre que nesse caso qualquer rectangulo com medida po-sitiva e um conjunto de segunda categoria em RN .

2.4 Conjuntos Nao-Mensuraveis

E facil enunciar multiplas questoes sobre os problemas de Borel e de Lebesguepara as quais ainda nao obtivemos qualquer tipo de resposta:

• Existem conjuntos que nao sao Lebesgue-mensuraveis, ou seja, temosL(RN ) 6= P(RN )?

• Existem conjuntos Lebesgue-mensuraveis que nao sao Borel-mensura-veis, ou seja, temos B(RN ) 6= L(RN )?

• Existem solucoes do problema de Borel definidas na classe P(RN )?

Veremos nesta seccao que as duas primeiras questoes acima tem respostaafirmativa, i.e.,

B(RN ) 6= L(RN ) 6= P(RN ).

Relativamente a ultima questao, passamos a estudar um problema analogo,mas reforcado com a usual invariancia sob translaccoes, enunciado peloproprio Lebesgue em 1904, e que aqui chamamos(26):

2.4.1 (O Problema “Difıcil” de Lebesgue). Determinar uma funcao m :P(R) → [0,∞] com as seguintes propriedades:

1. Normalizacao: Se I e um intervalo de extremos a, b, m(I) = b− a.

2. Invariancia sob translaccoes: Se x e um real e E ⊆ R,

m(E + x) = m(E).

3. σ-aditividade: Se En e uma sucessao de conjuntos disjuntos em R,

m(∞⋃

n=1

En) =∞∑

n=1

m(En).

Vitali(27) rapidamente descobriu que este problema nao tem solucao,pelo menos no contexto da Teoria dos Conjuntos tal como e normalmenteconcebida hoje.

26 Em “Lecons Sur L’Integration et La Recherche de Fonctions Primitives”, de H. Le-besgue, Paris 1904 e 1928. Lebesgue enunciou a condicao 1. na forma (equivalente) de“m([0, 1]) 6= 0”.

27 Vitali, G.: Sul problema della misura dei gruppi di punti di una retta. Bologna(1905). De Giuseppe Vitali, 1875-1941, matematico italiano, professor nas Universidadesde Padua e Bolonha. Tambem publicado em “Moderna Teoria Delle Funzioni di Variabile

Reale”, de G.Vitali e G.Sansone, 1935, Parte 1, pp. 58-60 da edicao de 1943.

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130 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Exemplo 2.4.2.

o exemplo de Vitali: A relacao ∼ definida em R por

x ∼ y ⇔ x− y ∈ Q

e de equivalencia. Fixado um real x, a classe de equivalencia de x e o conjunto[x] = x+ q : q ∈ Q e, por isso, tem representantes (elementos) em qualquerintervalo aberto nao-vazio. Em particular, existe um racional q tal que

−x < q < −x+ 1, i.e., 0 < x+ q < 1.

Se tomarmos v = x+ q, entao x ∼ v e v ∈ ]0, 1[. Por outras palavras,

2.4.3. Qualquer classe de equivalencia [x] tem pelo menos um representante vno intervalo ]0, 1[.

De acordo com o axioma da escolha, (28)

2.4.4. Existe um conjunto V que contem exactamente um representante decada classe de equivalencia [x], representante esse sempre em ]0, 1[.

Sendo r1, · · · , rn, · · · os racionais de ] − 1, 1[, definimos

Vn = V + rn = v + rn : v ∈ V , e G =

∞⋃

n=1

Vn.

Provamos, em seguida, que

2.4.5. Os conjuntos Vn sao disjuntos entre si, i.e., Vn ∩ Vm 6= ∅ ⇒ n = m.

Demonstracao. Se x ∈ Vn ∩ Vm, existe v ∈ V tal que v + rn = x, porquex ∈ Vn, e existe tambem v∗ ∈ V tal que v∗ + rm = x, porque x ∈ Vm. Mas

x = v + rn = v∗ + rm ⇒ v − v∗ = rm − rn ∈ Q ⇒ v ∼ v∗ ⇒ [v] = [v∗].

Como V tem exactamente um representante de cada classe [v], temos v = v∗

e rn = rm, donde n = m.

Suponha-se que o Problema 2.4.1 tem solucao. Como m e invariante sobtranslaccoes (propriedade 2), temos m(Vn) = m(V ). Como os conjuntos Vn

sao disjuntos entre si, temos, por σ-aditividade, (propriedade 3), que:

m(G) =

∞∑

n=1

m(Vn) =

∞∑

n=1

m(V ).

Concluımos que m(G) so pode tomar um de dois valores, dependendo do valorde m(V ):

(1) m(V ) 6= 0 =⇒ m(G) = +∞, ou

(2) m(V ) = 0 =⇒ m(G) = 0.

28Ver nota complementar sobre o axioma da escolha, no final desta seccao.

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2.4. Conjuntos Nao-Mensuraveis 131

Demonstramos que o problema “difıcil” de Lebesgue nao tem solucao, verifi-cando que qualquer uma destas alternativas conduz a contradicoes. Provamosprimeiro que a alternativa (1) e impossıvel:

2.4.6. G ⊆] − 1, 2[, donde m(G) ≤ m(] − 1, 2[) = 3 < +∞.

Demonstracao. Basta observar que V ⊆ ]0, 1[ e −1 < rn < +1, donde Vn ⊆] − 1, 2[ e G ⊆] − 1, 2[. Como m e monotona, temos m(G) ≤ m(] − 1, 2[) e, deacordo com 1. (Normalizacao), m(] − 1, 2[) = 3.

Provamos, finalmente, que a alternativa (2) e igualmente impossıvel, porque

2.4.7. ]0, 1[⊆ G, donde 1 ≤ m(G) e m(G) 6= 0.

Se x ∈ ]0, 1[, existe algum v ∈ V que e equivalente a x, porque V contem umrepresentante de qualquer classe, incluindo [x]. Naturalmente, x = v+ r, onder ∈ Q. Sabemos tambem que v ∈ ]0, 1[. Como tambem x ∈ ]0, 1[, e claro quer = x− v ∈] − 1, 1[. Por outras palavras, existe um natural n tal que r = rn ex ∈ Vn, donde x ∈ G.

Como acabamos de ver, o problema 2.4.1 nao tem solucao, ou seja, naoe possıvel atribuir um comprimento a todos os subconjuntos da recta real demodo a satisfazer as tres propriedades que indicamos. Como tambem vimos,a medida de Lebesgue satisfaz as condicoes (1), (2) e (3) do Problema 2.4.1,pelo que podemos concluir, desde ja, que L(R) 6= P(R). Por outras palavras,

Existem subconjuntos de R que nao sao Lebesgue-mensuraveis.

A medida de Lebesgue e invariante sob translaccoes, e sabemos que se V eLebesgue-mensuravel entao V +x e igualmente Lebesgue-mensuravel. Segue-se imediatamente que

o conjunto V do exemplo de Vitali nao e Lebesgue-mensuravel.

Deixamos como exercıcio verificar que o argumento de Vitali pode ser adap-tado para demonstrar o seguinte

Teorema 2.4.8. Existem conjuntos nao-mensuraveis VE ⊆ E ⊆ R se e sose m∗

N (E) > 0.

Aproveitamos para uma breve descricao do chamado axioma da es-

colha da Teoria dos Conjuntos, e para esclarecer um pouco melhor o seupapel na definicao do exemplo de Vitali. Uma das maneiras de enunciar esteaxioma e a seguinte:

2.4.9 (Axioma da Escolha). Seja F uma famılia de conjuntos nao-vazios, eT = ∪C∈FC. Entao existe uma funcao f : F → T tal que f(C) ∈ C, paraqualquer C ∈ F .

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132 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Intuitivamente, a funcao f “escolhe” um elemento de cada conjunto Cque pertence a famılia F , e daı o nome do axioma. E por isso comumreferirmo-nos a f como uma “funcao de escolha”.

No caso do exemplo de Vitali, comecamos por tomar Cx = [x]∩]0, 1[ paraqualquer x ∈ R. Temos, entao, (porque?)

Para qualquer x ∈ R, Cx = y ∈ ]0, 1[: x ∼ y , Cx 6= ∅, e ainda

T =⋃

x∈R

Cx =]0, 1[.

Seja agora F = Cx : x ∈ R. Pelo axioma da escolha, existe uma funcaof : F →]0, 1[ tal que f(C) ∈ C, para qualquer C ∈ F . O conjunto A usadono exemplo de Vitali e, exactamente,

A = f(F) = f(C) : C ∈ F .Este conjunto verifica as seguintes propriedades:

(1) A contem um representante de cada classe de equivalencia: Se x ∈ R,existe a ∈ A tal que a ∼ x: basta considerar a = f(Cx).

(2) A contem apenas um representante de cada classe de equivalencia: Sea, a∗ ∈ A, entao a = f(C), e a∗ = f(C∗). Se a 6= a∗ entao C 6= C∗.Como a e a∗ pertencem a classes de equivalencia distintas, nao podemser equivalentes entre si.

A relacao entre o axioma da escolha e o problema “difıcil” de Lebesguee uma questao delicada, e nao completamente compreendida, envolvendo osfundamentos da Teoria dos Conjuntos. Sabe-se (29) que a existencia de umasolucao para o problema “difıcil” de Lebesgue e compatıvel com a negacaodo axioma da escolha, mas nao e consequencia dessa negacao. Existem,mesmo, diferencas subtis em questoes semelhantes em RN , dependendo dadimensao N . Por exemplo, se substituirmos no problema de Lebesgue aσ-aditividade pela aditividade, entao existem solucoes em R e R2(30), mas,sempre como consequencia do axioma da escolha, nao ha solucao em R3. Aeste respeito, e conhecido o:

2.4.10 (Paradoxo de Banach-Tarski). (31) Se A e uma esfera em R3 de raioR, existem conjuntos Cn,Dn, 1 ≤ n ≤ 6, tais que:

29 Solovay, R.M.: A model of set-theory in which every set of reals is Lebesgue measur-

able, Ann. of Math. 92 (1970).30Banach, S. “Sur le Probleme de la Mesure”, Fundamenta Mathematicae, 1923, 4, pp.6-

33. Stefan Banach, 1892-1945, polaco, foi um dos grandes matematicos do seculo XX. Asua tese de doutoramento (1920), intitulada “Sobre Operacoes em Conjuntos Abstractos

e as suas Aplicacoes a Equacoes Integrais” e frequentemente tomada como marcando acriacao da Analise Funcional.

31 Alfred Tarski, 1902-1983, tambem de origem polaca, foi professor nas Universidadesde Varsovia e Harvard, e associou-se a Universidade de Berkeley, na California, desde 1942.O trabalho original de Banach e Tarski e “Sur la decomposition des ensembles de points

en parties respectivement congruentes”, Fundamenta Mathematicae, 1924, 6, pp.244-277.

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2.4. Conjuntos Nao-Mensuraveis 133

a) Os conjuntos Cn sao disjuntos, e a sua uniao e a esfera A,

b) Os conjuntos Dn sao disjuntos, e a sua uniao consiste em duas esferasdisjuntas B e C, cada uma de raio R.

c) Os conjuntos Cn e Dn sao isometricos (i.e., existem funcoes bijectivasfn : Cn → Dn tais que ‖f(x) − f(y)‖ = ‖x − y‖).

Eσ(RN ) Jσ(RN )

L(RN )

B(RN )

Figura 2.4.1: Relacoes entre classes de subconjuntos de RN .

E muito interessante reconhecer que L(R) 6= P(R) implica B(R) 6= L(R).Antes de estabelecermos este facto, provamos alguns resultados auxiliaresque nos serao tambem uteis mais adiante, quando estudarmos outras medi-das na recta real.

Lema 2.4.11. Se f : R → R e contınua e crescente e M e uma σ-algebraem R que contem os intervalos (e.g., M = B(R) ou M = L(R)), entao aclasse A = E ∈ R : f(E) ∈ M e uma σ-algebra que contem B(R).

Demonstracao. E claro que B(R) ⊆ M, e passamos a mostrar que A e umaσ-algebra que contem os intervalos, para concluir que B(R) ⊆ A. Notamosprimeiro que:

(1) A contem todos os intervalos: As funcoes contınuas transformam in-tervalos em intervalos(32), e por hipotese qualquer intervalo pertencea M.

(2) A e fechada para unioes numeraveis: Para qualquer funcao f , temos

f

(∞⋃

n=1

En

)=

∞⋃

n=1

f (En) .

32Esta afirmacao e o classico Teorema do Valor Intermedio.

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134 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

A funcao f pode nao ser injectiva, e designamos por N o conjunto dosy ∈ R para os quais a equacao y = f(x) tem multiplas solucoes x ∈ R

(os pontos y ∈ N correspondem a segmentos horizontais no grafico def). Temos entao:

(3) N e finito ou infinito numeravel, donde N e Borel-mensuravel: y ∈ Nse e so se existem x1 6= x2 tais que f(x1) = f(x2) = y. Supomossem perda de generalidade que x1 < x2 e notamos que, como f ecrescente, temos f(x) = y para qualquer x ∈ [x1, x2]. Existe por issoum racional ry tal que x1 < ry < x2, donde f(ry) = y (figura 2.4.2).A funcao ψ : N → Q dada por ψ(y) = ry e obviamente injectiva, eportanto o cardinal de N nao excede o cardinal de Q.

y

y′

y′′

x1 x2ry ry′ ry′′

Figura 2.4.2: Os pontos y, y′, y′′ ∈ N , e os pontos ry, ry′ , ry′′ ∈ Q

(4) A e fechada para complementacoes: Dado E ⊆ R, o conjunto K =f(E) ∩ f(Ec) ⊆ N , por razoes evidentes, e K e finito ou infinitonumeravel, de acordo com (3). Segue-se que K e Borel-mensuravel,donde K ∈ M. Como f(E)∪f(Ec) = f(R), temos entao (figura 2.4.3)

f(Ec) = [f(R)\f(E)] ∪K

f(R) e um intervalo, porque R o e, e f(E) ∈ M quando E ∈ A.Podemos neste caso concluir que f(Ec) ∈ M, ou seja, Ec ∈ A.

Concluımos de (1), (2) e (4) que A e uma σ-algebra que contem os intervalos,e portanto A contem os abertos e os conjuntos Borel-mensuraveis.

Tomando M = B(R) concluımos em particular que as funcoes contınuascrescentes transformam conjuntos Borel-mensuraveis em conjuntos Borel-mensuraveis, ou seja,

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2.4. Conjuntos Nao-Mensuraveis 135

f(Ec)f(E) K = f(E) ∩ f(Ec)

Figura 2.4.3: f(Ec) = [f(R)\f(E)] ∪K, e K ⊆ N e numeravel.

Teorema 2.4.12. Se f : R → R e uma funcao contınua crescente e E ∈B(R) entao f(E) ∈ B(R).

Exemplo 2.4.13.

O resultado anterior permite-nos apresentar um conjunto E nulo, e por issoLebesgue-mensuravel, que nao e Borel-mensuravel. Usamos um engenhosoargumento indirecto, que combina diversos exemplos que ja mencionamos: a“escada do diabo” F (1.5.9), o conjunto de Cantor C (1.3.9), e o exemplo deVitali V (2.4.4). Limitamo-nos a observar que:

a) Como F (C) = [0, 1] e V ⊂ [0, 1], existe E ⊂ C tal que F (E) = V .

b) E ⊂ C e um conjunto Jordan-mensuravel de conteudo nulo, e portantoE e Lebesgue-mensuravel. C e evidentemente um conjunto de Borel demedida nula.

c) Pelo teorema 2.4.12, se E ∈ B(R) entao F (E) ∈ B(R).

d) V = F (E) nao e Borel-mensuravel, ja que nem sequer e Lebesgue-men-suravel. Segue-se de c) que E nao e Borel-mensuravel.

Mostramos assim que

• Existem conjuntos Lebesgue-mensuraveis que nao sao Borel-mensuraveis,

• Existem conjuntos Jordan-mensuraveis que nao sao Borel-mensuraveis,

• O espaco de Borel nao e completo, e

• E possıvel que uma funcao contınua transforme conjuntos Lebesgue-men-suraveis em conjuntos nao-mensuraveis.

Exemplo 2.4.14.

O Exemplo de Sierpinski(33): Retomamos a relacao de equivalencia referidano exemplo de Vitali, ou seja, se x, y ∈ R, entao x ∼ y se e so se x − y ∈ Q.Notamos que, se x 6∈ Q, entao x 6∼ −x, ou seja, as classes de equivalencia

33Este exemplo e uma adaptacao do apresentado em Sierpinski, W. Sur un probleme

conduisant a un ensemble non mesurable. Fund. Math. 10 (1927) 177-179. WaclawSierpinski, 1882-1969, professor na Universidade de Varsovia, foi um dos mais produtivosmatematicos polacos do seculo XX.

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136 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

[x] e [−x] sao distintas, porque x − (−x) = 2x ∈ Q e equivalente a x ∈ Q.Designamos o conjunto de todas as classes [x] por R/Q (34).

• Consideramos a famılia W = [x], [−x] : x ∈ R, e mais uma vezusamos o axioma de escolha para seleccionar em cada conjunto [x], [−x]uma das classes de equivalencia que o constituem (claro que quando x ∈ Q

existe apenas uma classe para seleccionar, que e [0]). Mais precisamente,observamos que existe uma funcao “de escolha” f : W → R/Q tal quef(ω) ∈ ω para qualquer ω ∈ W .

• O exemplo de Sierpinski e o conjunto S = x ∈ R : [x] ∈ f(W ),ou seja, e formado pelos reais cujas classes de equivalencia foram selec-cionadas pela funcao de escolha f . Note-se que, se r ∈ Q,

(1) S + r = S e Sc + r = Sc, e

(2) Se x 6∈ Q, entao r + x ∈ S ⇐⇒ r − x ∈ Sc.

E facil obter de (2) que a reflexao do conjunto S em qualquer racionale o conjunto Q ∪ Sc, e a reflexao de Sc em qualquer racional e o conjuntoS\Q. Como a medida exterior de Lebesgue e invariante sob reflexoes e Q eum conjunto nulo, podemos alargar esta observacao para

Lema 2.4.15. Se I e um intervalo de extremos racionais, entao

m∗(S ∩ I) = m∗(Sc ∩ I).

Demonstracao. Seja F = I\Q, q ∈ Q o ponto medio do intervalo I, e F− eF+ os conjuntos formados pelos pontos de F respectivamente a esquerda ea direita de q, ou seja,

F− = x ∈ F : x < q e F+ = x ∈ F : x > q.

Sendo ρ : R → R a reflexao em q, i.e., ρ(q + x) = q − x, notamos que

q + x ∈ S ∩ F+ ⇐⇒ q − x ∈ Sc ∩ F−, ou seja, Sc ∩ F− = ρ(S ∩ F+)

q + x ∈ Sc ∩ F+ ⇐⇒ q − x ∈ S ∩ F−, ou seja, Sc ∩ F+ = ρ(S ∩ F−)

Como a medida exterior de Lebesgue e invariante sob reflexoes, temos

m∗(Sc ∩ F−) = m∗(S ∩ F+) e m∗(Sc ∩ F+) = m∗(S ∩ F−).

Os conjuntos F+ e F− sao mensuraveis, disjuntos e F = F+∪F−, e portanto

m∗(S ∩ F ) = m∗(S ∩ F+) +m∗(S ∩ F−) =

= m∗(Sc ∩ F−) +m∗(Sc ∩ F+) = m∗(Sc ∩ F ).

m∗(I\F ) = 0, donde m∗(S∩I) = m∗(S∩F ) = m∗(Sc∩F ) = m∗(Sc∩I).34R/Q e na verdade um grupo quociente do grupo aditivo dos reais, porque Q e um

subgrupo normal de R, mas nao usamos esse facto aqui.

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2.4. Conjuntos Nao-Mensuraveis 137

A medida exterior de Lebesgue e tambem invariante sob translaccoes, oque nos permite obter

Lema 2.4.16. Se I e um intervalo de extremos racionais entao m∗(S∩I) =λ m(I), onde λ = m∗(S ∩ [0, 1]) ≥ 1/2.

Demonstracao. No que se segue, I e J sao intervalos de extremos racionais.Comecamos por mostrar que

(i) m(I) = m(J) =⇒ m∗(S ∩ I) = m∗(S ∩ J).

E claro que se m(I) = m(J) entao J e uma translaccao de I, e no casopresente existe r ∈ Q tal que J = I + r. Notamos em (2) que S e Sc

sao invariantes sob translaccoes racionais, e concluımos que S ∩ J e umatranslaccao de S ∩ I, ja que

(S ∩ I) + r = (S + r) ∩ (I + r) = S ∩ J , donde m∗(S ∩ I) = m∗(S ∩ J).

Mostramos agora que, se n ∈ N,

(ii) m(I) = n m(J) =⇒ m∗(S ∩ I) = n m∗(S ∩ J).

E claro que existe uma particao de I em n subintervalos I1, I2, · · · , In, cadaum de extremos racionais e comprimento m(J), e temos assim que

m∗(S ∩ I) =

n∑

k=1

m∗(S ∩ Ik) =

n∑

k=1

m∗(S ∩ J) = n m∗(S ∩ J).

Para terminar, continuamos a supor que I e um intervalo de extremosracionais, e notamos sucessivamente de (i) e (ii) que

• Se m(I) = n entao m∗(S ∩ I) = n m∗(S ∩ [0, 1]) = n λ,

• Se m(I) = 1/n entao m∗(S ∩ I) = λ/n, e

• Em qualquer caso, m∗(S ∩ I) = λ m(I).

E evidente que m∗(S ∩ [0, 1]) ≤ 1, i.e., λ ≤ 1, mas temos tambem

m(I) ≤ m∗(S ∩ I) +m∗(Sc ∩ I) = 2λ m(I) =⇒ λ ≥ 1/2.

Os resultados anteriores podem ser generalizados na seguinte forma:

Lema 2.4.17. Se E ∈ L(R) entao m∗(S ∩ E) = m∗(Sc ∩ E) = λ m(E).

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138 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Demonstracao. Observamos primeiro que se A ⊂ B sao conjuntos men-suraveis e T e um conjunto arbitrario entao

m∗(T ∩B) = m∗(T ∩A) +m∗(T ∩ (B\A)) ≤ m∗(T ∩A) +m(B\A).

Em particular, se m(B\A) < ε entao

(i) m∗(T ∩A) ≤ m∗(T ∩B) ≤ m∗(T ∩A) + ε.

Se I e um qualquer intervalo limitado e evidente que existem intervalos deextremos racionais In ⊇ I tais que m(In\I) → 0. Tomando em (i) A = I eB = In obtemos m∗(T ∩ In) → m∗(T ∩ I). Concluımos dos lemas 2.4.15 e2.4.16 que

(ii) Se I e um intervalo limitado entao m∗(S ∩ I) = λ m(I) = m∗(Sc ∩ I).

E imediato generalizar (ii) para intervalos ilimitados.

Qualquer aberto U ⊆ R e uma uniao numeravel de intervalos disjuntosIn. De acordo com o exercıcio 13 da seccao 2.2 e (ii) temos

m∗(S ∩ U) =∞∑

n=1

m∗(S ∩ In) =∞∑

n=1

λ m(In) = λ m(U).

A mesma observacao e valida substituindo S por Sc e portanto

(iii) Se U e um aberto entao m∗(S ∩ U) = λ m(I) = m∗(Sc ∩ U).

A conclusao da demonstracao e parte do exercıcio 5.

O principal resultado sobre o exemplo de Sierpinski e o seguinte:

Teorema 2.4.18. Se E ∈ L(R) entao m∗(S ∩ E) = m∗(Sc ∩ E) = m(E).Em particular, S nao e Lebesgue-mensuravel.

Demonstracao. Sabemos que 1/2 ≤ λ ≤ 1, e provamos que na realidadeλ = 1, argumentando por contradicao. Supomos assim que m∗(S ∩ [0, 1]) =λ < 1.

E claro que existe um aberto U ⊇ S ∩ [0, 1] tal que m(U) < 1, e consid-eramos o conjunto K = [0, 1]\U . Notamos que K e fechado, m(K) > 0 eK ∩ S = ∅, e concluımos que λ = 1, porque

0 6= λ m(K) = m∗(S ∩K) = m∗(∅) = 0 e impossıvel.

Para mostrar que S nao e mensuravel, argumentamos igualmente porcontradicao: Se S e mensuravel e E e tambem mensuravel com 0 < m(E) <∞ entao m(E) = m(S ∩E) +m(Sc ∩E) = 2 m(E), o que e impossıvel.

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2.5. Medidas Exteriores 139

O conjunto de Sierpinski S permite-nos construir outros exemplos inte-ressantes, alguns dos quais referidos no proximo teorema, cuja demonstracaodeixamos para o exercıcio 5.

Teorema 2.4.19. Definimos a classe M e a funcao µ : M → [0,∞] por

M = (E ∩ S) ∪ (F ∩ Sc) : E,F ∈ L(R) e

µ(A) =1

2m∗(A ∩ S) +

1

2m∗(A ∩ Sc).

Temos entao que (R,M, µ) e um espaco de medida, uma extensao nao trivialdo espaco de Lebesgue e uma solucao nao regular do Problema de Borel.

Exercıcios.

1. Mostre que o conjunto A referido na discussao do exemplo de Vitali nao eLebesgue-mensuravel.

2. Mostre que o conjunto A indicado na discussao do exemplo de Vitali podeser definido de modo que m∗(A) < ε, onde ε > 0 e arbitrario.

3. Adapte a definicao do exemplo de Vitali para obter um subconjunto nao-mensuravel de um qualquer conjunto E ⊆ RN com m∗

N (E) > 0. Conclua queE tem subconjuntos nao-mensuraveis se e so se m∗

N (E) > 0.

4. Suponha que f : R → R e uma funcao contınua crescente. Prove que ftransforma conjuntos nulos em conjuntos nulos se e so se transforma conjuntosLebesgue-mensuraveis em conjuntos Lebesgue-mensuraveis.

5. Este exercıcio refere-se ao exemplo de Sierpinski S:

a) Mostre que m∗(S ∩ E) = m∗(Sc ∩ E) = λ m(E) para qualquer E ∈ R,para concluir a demonstracao do lema 2.4.17. sugestao: Recorde que aafirmacao esta demonstrada quando E e um aberto.

b) Mostre que os conjuntos T ⊆ S com m∗(T ) > 0 nao sao Lebesgue-mensuraveis. Observe que se m(E) > 0 entao E ∩ S e um subconjuntode E que nao e Lebesgue-mensuravel, o que e outra forma de esclarecera questao do exercıcio 3.

c) Qual e a σ-algebra gerada por S e pelos conjuntos elementares?

d) Demonstre o teorema 2.4.19. sugestao: Verifique que M e uma σ-algebra e µ e uma medida.

2.5 Medidas Exteriores

A medida exterior de Lebesgue e apenas um exemplo concreto de uma classede funcoes σ-subaditivas, ditas medidas exteriores, que tem um papel auxi-liar, mas importante, na Teoria da Medida. Sao definidas como se segue:

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140 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Definicao 2.5.1 (Medidas Exteriores). A funcao λ : P(X) → [0,+∞] diz-seuma medida exterior em X se e so se λ e σ-subaditiva, e λ(∅) = 0.

A principal restricao na definicao anterior e, para alem da σ-subaditi-vidade, o facto de λ estar definida para todos os subconjuntos de X. Aimportancia das medidas exteriores resulta, como veremos nesta seccao, deque qualquer medida exterior λ determina uma σ-algebra de conjuntos, ditosλ-mensuraveis, e a restricao de λ a essa classe e sempre uma medida. Deforma mais sucinta,

Qualquer medida exterior determina um espaco de medida.

Exemplos 2.5.2.

1. A funcao λ : P(X) → [0,+∞], dada por

λ(E) =

0, se E = ∅, e1, se E 6= ∅,

e uma medida exterior. A funcao λ nao e aditiva, e nao e uma medida, exceptonos casos triviais em que X e vazio, ou tem apenas um elemento.

2. Se R e um subconjunto limitado de RN , o conteudo exterior de Jordan estadefinido para qualquer subconjunto E de R, e vimos, nos exercıcios do ca-pıtulo anterior, que e uma funcao subaditiva. Deixamos para os exercıciosdesta seccao verificar que, no entanto, o conteudo exterior de Jordan nao eσ-subaditivo, e, portanto, nao e uma medida exterior em R.

O proximo resultado e muito simples de provar.

Teorema 2.5.3. Qualquer medida exterior e monotona e subaditiva.

Utilizaremos com alguma frequencia o seguinte procedimento de definicaode medidas exteriores.

Teorema 2.5.4. Seja X um conjunto, S uma classe de subconjuntos de X,e λ : S → [0,∞] uma funcao. Suponha-se que:

a) ∅ ∈ S, e λ(∅) = 0,

b) Existem conjuntos Sn ∈ S, tais que X = ∪∞n=1Sn(35), e

c) λ∗ : P(X) → [0,∞] e dada por

λ∗(E) = inf

∞∑

n=1

λ(Sn) : E ⊆∞⋃

n=1

Sn, Sn ∈ S.

35Dizemos neste caso que S e uma cobertura sequencial de X.

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2.5. Medidas Exteriores 141

Entao λ∗ e uma medida exterior em X.

Demonstracao. Como ∅ ∈ S, tomamos Sn = ∅ para qualquer n ∈ N, paraconcluir que λ∗(∅) = 0. Para provar que λ∗ e σ-subaditivo, consideramosconjuntos E,En ⊆ X, onde

E ⊆∞⋃

n=1

En.

Dado ε > 0 arbitrario, existem conjuntos Smn, com n,m ∈ N, tais que

En ⊆∞⋃

m=1

Smn, e λ∗(En) ≤∞∑

m=1

λ(Smn) ≤ λ∗(En) +ε

2n.

A famılia Smn : n,m ∈ N e uma cobertura numeravel de E por conjuntosem S, i.e., E ⊆ ∪∞

n=1 ∪∞m=1 Smn, e portanto

λ∗(E) ≤∞∑

n=1

∞∑

m=1

λ(Smn) ≤∞∑

n=1

[λ∗(En) +ε

2n] ≤ ε+

∞∑

n=1

λ∗(En).

Fazendo ε→ 0, obtemos o resultado pretendido.

Exemplos 2.5.5.

1. Designando por R(RN ) a classe dos rectangulos-N limitados, e claro queR(RN ) e uma cobertura sequencial de X = RN . A medida exterior de Lebes-gue em RN pode ser obtida fazendo S = R(RN ), e λ = cN .

2. Generalizando o exemplo anterior, qualquer funcao λ : R(RN ) → [0,∞] quesatisfaca λ(∅) = 0 determina uma medida exterior λ∗ em RN , dada por

λ∗(E) = inf

∞∑

n=1

λ(Rn) : E ⊆∞⋃

n=1

Rn, Rn ∈ R(RN )

.

3. A classe F(R) formada pelos intervalos da forma ]a, b] e uma cobertura se-quencial de R. Vimos no exemplo 1.2.5.5 que qualquer funcao F : R → R

determina uma funcao λ : F(R) → R, dada por λ(]a, b]) = F (b) − F (a). Su-pondo que F e crescente, a funcao λ∗ : P(R) → [0,∞], dada por

λ∗(E) = inf

∞∑

n=1

[F (bn) − F (an)] : E ⊆∞⋃

n=1

]an, bn],

e uma medida exterior em R.

4. Dados espacos de medida (X,M, µ) e (Y,N , ν), e por vezes convenientedefinir uma medida “produto” em X × Y , que aqui designaremos por µ ⊗ ν.Esta medida deve ser tal que(36)

se A ∈ M e B ∈ N entao (µ⊗ ν)(A ×B) = µ(A)ν(B).

36Note que a condicao indicada e especialmente natural quando os espacos em causasao espacos de probabilidade independentes.

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142 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Para definir a medida µ⊗ ν, consideraremos primeiro a classe S formada pelosconjuntos que sao produtos cartesianos da forma A×B, com A ∈ M e B ∈ N .Esta classe contem o conjunto X×Y , e e portanto uma cobertura sequencial deX×Y . Definimos λ : S → [0,∞] por λ(A×B) = µ(A)ν(B). A medida exteriorλ∗ determinada pela funcao λ nos termos do teorema 2.5.4 sera utilizada paradefinir os conjuntos mensuraveis em X × Y e a medida µ⊗ ν.

5. Seja µ uma medida positiva em RN definida numa σ-algebra M que contemos abertos. Se E ⊆ RN , definimos µ∗(E) = infµ(U) : E ⊆ U,U aberto .E facil verificar que µ∗ e uma medida exterior (exercıcio 5), e notamos dadefinicao 2.3.13 que µ e regular em N ⊆ M se e so se µ(E) = µ∗(E), paraqualquer E ∈ N .

Os resultados desta seccao sao como dissemos aplicaveis a qualquer me-dida exterior, e devem-se sobretudo a Caratheodory(37). Dada uma medidaexterior µ∗, propomo-nos aqui:

• Definir os conjuntos ditos “µ∗-mensuraveis”,

• Mostrar que µ∗ e aditiva na classe dos conjuntos µ∗-mensuraveis, e

• Provar que a classe dos conjuntos µ∗-mensuraveis e uma σ-algebra.

Deve ser claro que neste caso a restricao de µ∗ a classe dos conjuntos µ∗-mensuraveis e uma medida, ou seja, a medida exterior µ∗ determina umespaco de medida, como referimos no inıcio desta seccao. Comecamos porabstrair do problema “facil” de Lebesgue (2.2.8) o que chamamos:

2.5.6 (Problema de Caratheodory). Dada uma medida exterior µ∗ em X,determinar uma σ-algebra M onde µ∗ seja aditiva.

Resolveremos este problema usando uma ideia directamente sugeridapela definicao 2.2.11.

Definicao 2.5.7 (Conjuntos µ∗-Mensuraveis). Dada uma medida exteriorµ∗ em X, o conjunto E ⊆ X diz-se µ∗-mensuravel se e so se

µ∗(F ) = µ∗(F ∩ E) + µ∗(F\E), para qualquer conjunto F em X.

Designamos a classe dos conjuntos µ∗-mensuraveis por Mµ∗ .

Exemplos 2.5.8.

1. No caso da medida exterior de Lebesgue, os conjuntos m∗N -mensuraveis sao,

evidentemente, os conjuntos que sao Lebesgue-mensuraveis no sentido de 2.2.11.

37 Constantin Caratheodory (1873-1950), matematico alemao, professor na Universidadede Munique.

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2.5. Medidas Exteriores 143

2. A medida de Dirac δ num qualquer conjunto X esta definida em toda a classeP(X), e e σ-subaditiva, porque e σ-aditiva. E, portanto, tambem uma medidaexterior. Neste caso, qualquer conjunto E ⊆ X e δ-mensuravel, porque sendoδ aditiva em P(X), a condicao em 2.5.7 e satisfeita por qualquer E ⊆ X .

3. Se X 6= ∅ e um conjunto e E ⊆ X , definimos

µ∗(E) =

0, se E = ∅, e1, se E 6= ∅.

E simples verificar que µ∗ e uma medida exterior no conjunto X (trata-se doexemplo 2.5.2.1 referido atras). Sendo E ⊆ X µ∗-mensuravel, tomamos F = Xem 2.5.7, para concluir que µ∗(X) = µ∗(E) + µ∗(Ec).

ComoX 6= ∅, sabemos que µ∗(X) = 1, e a igualdade anterior so pode ser validase µ∗(E) = 0 ou µ∗(Ec) = 0, ou seja, se E = ∅ ou Ec = ∅ ( i.e., se E = X).Por outras palavras, os unicos conjuntos que podem ser µ∗-mensuraveis sao ∅e X . Como estes conjuntos sao sempre µ∗-mensuraveis (porque?), neste casoos conjuntos µ∗-mensuraveis reduzem-se exactamente a ∅ e X .

Passamos a demonstrar que Mµ∗ e sempre uma algebra, utilizandouma adaptacao obvia do argumento que usamos na proposicao 2.2.13.

Teorema 2.5.9. A classe Mµ∗ e uma algebra em X, i.e.,

a) X ∈ Mµ∗ ,

b) Fecho em relacao a complementacao: A ∈ Mµ∗ =⇒ Ac ∈ Mµ∗ , e

c) Fecho em relacao a interseccao: A,B ∈ Mµ∗ =⇒ A ∩B ∈ Mµ∗.

Demonstracao. Deixamos as demonstracoes de a) e b) como exercıcio. Paraprovar c), temos a mostrar que se A,B ∈ Mµ∗ entao A∩B ∈ Mµ∗ , ou seja,

µ∗(F ) = µ∗(F ∩ (A ∩B)) + µ∗(F ∩ (A ∩B)c), para qualquer F ⊆ X.

Como µ∗ e, por hipotese, subaditiva, temos apenas que mostrar que

µ∗(F ) ≥ µ∗(F ∩ (A ∩B)) + µ∗(F ∩ (A ∩B)c).

Para estimar µ∗(F ∩ (A ∩B)c), notamos que

F ∩ (A ∩B)c = (F ∩Ac) ∪ (F ∩A ∩Bc).

(Observe-se a figura 2.2.2). Como µ∗ e subaditiva, temos

µ∗(F ∩Ac) + µ∗(F ∩A ∩Bc) ≥ µ∗(F ∩ (A ∩B)c).

Somando µ∗(F ∩A ∩B) a ambos os membros desta desigualdade, temos

(i ) µ∗(F ∩Ac) + µ∗(F ∩A ∩B) + µ∗(F ∩A ∩Bc) ≥≥ µ∗(F ∩A ∩B) + µ∗(F ∩ (A ∩B)c).

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144 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Como B ∈ Mµ∗ e F ∩ A ⊆ X, usamos a definicao 2.5.7, com B em vezde E e F ∩A em vez de F , para concluir que

µ∗(F ∩A ∩B) + µ∗(F ∩A ∩Bc) = µ∗(F ∩A).

A desigualdade (i) pode, portanto, escrever-se na forma

(ii) µ∗(F ∩Ac) + µ∗(F ∩A) ≥ µ∗(F ∩A ∩B) + µ∗(F ∩ (A ∩B)c).

Como A ∈ Mµ∗ e F ⊆ X, temos µ∗(F ∩Ac))+µ∗(F ∩A) = µ∗(F ), e segue-sefinalmente de (ii) que µ∗(F ) ≥ µ∗(F ∩A ∩B) + µ∗(F ∩ (A ∩B)c).

E extremamente simples mostrar que a funcao µ∗ e aditiva na algebraMµ∗ , e e sobretudo de sublinhar que, para que seja valida a identidade

µ∗(A ∪B) = µ∗(A) + µ∗(B), com A e B disjuntos,

basta que um dos conjuntos A e B seja µ∗-mensuravel.

Lema 2.5.10. Se A e B sao disjuntos e A ∈ Mµ∗ , entao

µ∗(A ∪B) = µ∗(A) + µ∗(B).

Demonstracao. Utilizamos a definicao 2.5.7, com A no lugar de E e A ∪Bno lugar de F . Sendo A e B disjuntos, temos

(A ∪B) ∩A = A e (A ∪B)\A = B,

donde, como A e mensuravel, se segue que

µ∗(A ∪B) = µ∗((A ∪B) ∩A) + µ∗((A ∪B)\A) = µ∗(A) + µ∗(B).

Este resultado pode ser generalizado, fazendo intervir um segundo con-junto arbitrario C, que tambem nao necessita ser µ∗-mensuravel.

A B

C

Figura 2.5.1: B e C sao arbitrarios, A ∈ Mµ∗ .

Proposicao 2.5.11. Se A e B sao disjuntos, C ⊆ X e A ∈ Mµ∗, entao

µ∗(C ∩ (A ∪B)) = µ∗(C ∩A) + µ∗(C ∩B).

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2.5. Medidas Exteriores 145

Demonstracao. Consideramos o conjunto D dado por:

D = C ∩ (A ∪B) = (C ∩A) ∪ (C ∩B).

Por hipotese, A ∈ Mµ∗ , donde temos, mais uma vez, que

µ∗(D) = µ∗(D ∩A) + µ∗(D\A).

Como, obviamente, D ∩A = C ∩A, e D\A = C ∩B, concluımos que

µ∗(D) = µ∗(D ∩A) + µ∗(D ∩B).

Este ultimo resultado generaliza-se, por um simples argumento de inducaofinita, ao seguinte:

Corolario 2.5.12. Se os conjuntos En ∈ Mµ∗ sao disjuntos e F ⊆ X,entao

µ∗(

m⋃

n=1

(F ∩En)) =

m∑

n=1

µ∗(F ∩En) e em particular µ∗(

m⋃

n=1

En) =

m∑

n=1

µ∗(En).

E claro do lema 2.5.10 que a funcao µ∗ e aditiva na algebra Mµ∗ . Prova-mos a seguir uma forma generalizada da propriedade de σ-aditividade(38),com a particularidade muito interessante de nao necessitarmos supor, no seuenunciado, que o conjunto E = ∪∞

n=1En e µ∗-mensuravel.

Teorema 2.5.13. Se os conjuntos En ∈ Mµ∗ sao disjuntos e F ⊆ X, entao

µ∗(

∞⋃

n=1

(F ∩En)) =

∞∑

n=1

µ∗(F ∩En) e em particular µ∗(

∞⋃

n=1

En) =

∞∑

n=1

µ∗(En).

Demonstracao. Mais uma vez, temos a provar apenas que

µ∗(F ∩ E) ≥∞∑

n=1

µ∗(F ∩ En).

Tomamos Em = ∪mn=1En. Usamos o corolario 2.5.12, com Em no lugar de

E, para concluir que µ∗(F ∩ Em) =∑m

n=1 µ∗(F ∩ En). Notamos que

Em ⊆ E ⇒ F ∩ Em ⊆ F ∩E ⇒m∑

n=1

µ∗(F ∩En) = µ∗(F ∩ Em) ≤ µ∗(F ∩E).

Obtemos, finalmente, que

limm→+∞

m∑

n=1

µ∗(F ∩ En) ≤ µ∗(F ∩ E), i.e.,

∞∑

n=1

µ∗(F ∩ En) ≤ µ∗(F ∩ E).

38Recorde o exercıcio 13 da seccao 2.2.

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146 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

Ja demonstramos para qualquer medida exterior µ∗ que:

• Mµ∗ e uma algebra,

• µ∗ e aditiva, e portanto σ-aditiva, em Mµ∗ .

Para mostrar que Mµ∗ e solucao do Problema 2.5.6, resta-nos provar que

• Mµ∗ e uma σ-algebra, i.e., e fechada em relacao a unioes numeraveis.

E precisamente o facto de termos demonstrado o teorema anterior semsupor que ∪∞

n=1En ∈ Mµ∗ que agora nos permite provar que, na realidade,temos sempre ∪∞

n=1En ∈ Mµ∗ . Comecamos por verificar esta afirmacao, nocaso especial de uma famılia de conjuntos disjuntos.

Lema 2.5.14. Se os conjuntos En ∈ Mµ∗ sao disjuntos, entao

E =∞⋃

n=1

En ∈ Mµ∗ .

Demonstracao. Sendo F ⊆ X arbitrario, temos a provar que

µ∗(F ) ≥ µ∗(F ∩ E) + µ∗(F ∩Ec).

Definimos, novamente, Em = ∪mn=1En, e notamos que Em ∈ Mµ∗ , porque

Mµ∗ e uma algebra. Temos portanto µ∗(F ) = µ∗(F ∩ Em) + µ∗(F ∩ Ecm).

E evidente da monotonia de µ∗ que

µ∗(F ) = µ∗(F ∩ Em) + µ∗(F ∩ Ecm) ≥ µ∗(F ∩ Em) + µ∗(F ∩ Ec).

De acordo com 2.5.12, temos µ∗(F ∩ Em) =∑m

n=1 µ∗(F ∩ En) e, por isso,

µ∗(F ) ≥m∑

n=1

µ∗(F ∩ En) + µ∗(F ∩Ec).

Fazendo m→ +∞, obtemos µ∗(F ) ≥∞∑

n=1

µ∗(F ∩En) + µ∗(F ∩ Ec).

Observamos finalmente de 2.5.13 que µ∗(F ∩ E) =∑∞

n=1 µ∗(F ∩ En), e

concluımos assim que µ∗(F ) ≥ µ∗(F ∩ E) + µ∗(F ∩Ec).

O principal resultado desta seccao e agora quase evidente.

Teorema 2.5.15. Mµ∗ e uma σ-algebra e a restricao de µ∗ a Mµ∗ e umamedida positiva.

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2.5. Medidas Exteriores 147

Demonstracao. Para verificar que Mµ∗ e fechada em relacao a unioes nu-meraveis, supomos que os conjuntos En ∈ Mµ∗ , e definimos

E1 = E1 e, para m > 1, Em = Em\m−1⋃

n=1

En.

Os conjuntos Em pertencem a Mµ∗ , porque Mµ∗ e uma algebra. Estesconjuntos sao, evidentemente, disjuntos. Como E =

⋃∞n=1 En =

⋃∞n=1En,

concluımos de 2.5.14 que E ∈ Mµ∗ , i.e., Mµ∗ e uma σ-algebra.

Exercıcios.

1. Mostre que, se µ∗ e uma medida exterior e µ∗(E) = 0, entao F ⊆ E ⇒ F eµ∗-mensuravel e µ(F ) = 0.

2. Complete a demonstracao do teorema 2.5.9.

3. Se R e um subconjunto limitado de RN , o conteudo exterior de Jordan estadefinido para qualquer subconjunto E de R. Verifique que o conteudo exteriorde Jordan, apesar de subaditivo, nao e σ-subaditivo e portanto nao e umamedida exterior em R.(Exemplo 2.5.2.2)

4. Em cada um dos casos seguintes, prove que a funcao µ∗ : P(X) → [0,+∞]dada e uma medida exterior e descreva os conjuntos µ∗-mensuraveis.

a) µ∗(E) = #(E).

b) µ∗(E) =

0, se E e finito ou numeravel,1, se E e nao-numeravel.

(Suponha, aqui, X infinito nao-numeravel.)

5. Seja µ uma medida positiva em RN definida numa σ-algebra M que contemos abertos. Sendo µ∗(E) = infµ(U) : E ⊆ U,U aberto , mostre que µ∗ euma medida exterior.

6. Suponha que µ∗ e uma medida exterior emX , F ⊆ X , e λ∗ : P(X) → [0,+∞]e dada por λ∗(E) = µ∗(E ∩ F ). Mostre que λ∗ e uma medida exterior. Quale a relacao entre os conjuntos µ∗-mensuraveis e os conjuntos λ∗-mensuraveis?

7. Suponha que µ∗n : P(X) → [0,+∞] e uma medida exterior para qualquer

n ∈ N e prove que µ∗, dada por µ∗(E) =∑∞

n=1 µ∗n(E), e igualmente uma

medida exterior em X .

8. Dado o espaco de medida (X,M, µ), definimos a funcao λ∗ : P(X) → [0,+∞]por λ∗(E) = inf µ(S) : E ⊆ S, S ∈ M. Prove as seguintes afirmacoes:

a) λ∗ e uma medida exterior e, sendo Mλ∗ a classe dos conjuntos λ∗-mensuraveis, M ⊆ Mλ∗ ,

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148 Capıtulo 2. A Medida de Lebesgue

b) λ∗(F ) = 0 se e so se existe E ∈ M tal que F ⊆ E e µ(E) = 0. Emparticular, (X,M, µ) e completo se e so se λ∗(E) = 0 ⇒ E ∈ M.

c) Se o espaco (X,M, µ) e finito e λ e a restricao de λ∗ a Mλ∗ , prove que(X,Mλ∗ , λ) = (X,Mµ, µ), tal como este espaco foi definido em 2.3.17.

d) Mostre que a conclusao da alınea anterior e ainda valida, supondo apenasque o espaco (X,M, µ) e σ-finito.

e) Verifique que, quando (X,M, µ) nao e σ-finito, podemos ter (X,Mλ∗ , λ) 6=(X,Mµ, µ).

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Capıtulo 3

Integrais de Lebesgue

A exposicao que se segue e, em certo sentido, uma adaptacao directa dasideias de Jordan e Peano apresentadas no Capıtulo 1: resulta destas pelasimples substituicao do conteudo de Jordan pela medida de Lebesgue. A cor-respondente definicao do integral e a que Lebesgue chamava de “geometrica”,e tem como principal vantagem a de tornar evidente a relacao entre algunsdos principais resultados da Teoria da Medida e da Teoria da Integracao.

Neste contexto, as funcoes Lebesgue-mensuraveis sao as funcoes cujasregioes de ordenadas sao conjuntos Lebesgue-mensuraveis. Analogamente,as funcoes Borel-mensuraveis sao aquelas cujas regioes de ordenadas sao con-juntos Borel-mensuraveis. Os respectivos integrais de Lebesgue sao definidosusando a medida de Lebesgue das suas regioes de ordenadas, e dizem-se, porisso, “em ordem a medida de Lebesgue”.

Estabelecemos muito rapidamente algumas das propriedades mais rele-vantes do integral de Lebesgue, usando frequentemente argumentos conheci-dos do Capıtulo 1. As vantagens tecnicas do integral de Lebesgue comecaraoa tornar-se aparentes quando estudarmos os resultados classicos sobre limi-tes e integrais, hoje conhecidos como o teorema da convergencia monotona,ou de Beppo Levi, e o teorema da convergencia dominada, ou de Lebesgue.Estes resultados sao centrais na moderna teoria da integracao, e sao re-flexos directos das “propriedades essenciais” identificadas no enunciado doProblema de Borel.

Estudamos, em seguida, o teorema de Fubini-Lebesgue. Este teoremaestabelece a mensurabilidade das seccoes de qualquer conjunto mensuravel, eexprime a medida desse conjunto como o integral da medida das suas seccoes,convenientemente escolhidas. Um corolario directo, mas fundamental, doteorema de Fubini-Lebesgue permite-nos caracterizar as funcoes mensura-veis de uma forma mais conveniente para o desenvolvimento da teoria: asfuncoes mensuraveis sao limites de sucessoes de funcoes simples mensuraveis.Os integrais destas funcoes simples desempenham, na teoria de Lebesgue, opapel das somas de Darboux na teoria de Riemann.

149

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150 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

A aproximacao de funcoes mensuraveis por funcoes simples, combinadacom a relativa facilidade de estudo das proprias funcoes simples, vai-nosainda permitir provar neste Capıtulo mais algumas propriedades impor-tantes das funcoes mensuraveis e dos respectivos integrais. Repetimos aquiargumentos conhecidos do Capıtulo 1 mas, neste caso, os teoremas sobre in-tegracao e passagem ao limite conduzem-nos a resultados muito elegantes efaceis de aplicar, em particular sobre a integracao de series. Como corolariodestes, obtemos uma versao preliminar do classico Teorema de Riesz-Fischer.

Terminamos o Capıtulo estudando a aproximacao de funcoes mensuraveispor funcoes contınuas. Como veremos, os resultados associados a esta ques-tao reflectem, essencialmente, os que ja estudamos sobre a aproximacao deconjuntos mensuraveis por conjuntos fechados e por conjuntos abertos, ouseja, reflectem a regularidade da medida de Lebesgue.

3.1 O Integral de Lebesgue

A figura 3.1.1 e o ponto de partida da teoria de Lebesgue, como o foi paraa teoria de Riemann. E de notar que, em resultado directo de substituir os

E

fR

RN

RN+1

Ω+

Ω−

Figura 3.1.1:

EfdmN = mN+1(Ω

+) −mN+1(Ω−)

conjuntos Jordan-mensuraveis, e o conteudo de Jordan, pelos conjuntos Le-besgue-mensuraveis, e pela medida de Lebesgue, as nossas definicoes basicaspassam a ser aplicaveis a funcoes ilimitadas, ou mesmo com valores infinitos,e podendo ser, alem disso, diferentes de zero em conjuntos igualmente ili-mitados. Em particular, e como veremos, muitos dos integrais que se dizemimproprios na teoria de Riemann sao integrais de Lebesgue, no sentido aquidefinido.

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3.1. O Integral de Lebesgue 151

Definicao 3.1.1 (Funcoes mensuraveis, Integrais de Lebesgue). Se E ⊆S ⊆ RN , e f : S → R, entao

a) f e lebesgue-mensuravel em E se e so se o conjunto ΩE(f) e Lebes-gue-mensuravel em RN+1. Analogamente, f e borel-mensuravel

em E se e so se o conjunto ΩE(f) e Borel-mensuravel em RN+1.

b) Se f e Lebesgue-mensuravel em E, e pelo menos um dos conjuntosΩ+

E(f) e Ω+E(f) tem medida finita, o integral de lebesgue de f

(em ordem a mN ) em E e dado por∫

EfdmN =

Ef(x)dx = mN+1(Ω

+E(f)) −mN+1(Ω

−E(f)).

c) f e lebesgue-somavel em E se e so f e Lebesgue-mensuravel em E,e mN+1(ΩE(f)) <∞.

E evidente que as funcoes Borel-mensuraveis sao Lebesgue-mensura-veis, e e simples exibir funcoes Lebesgue-mensuraveis, e mesmo Riemann-integraveis, que nao sao Borel-mensuraveis (exercıcio 4).

Exemplificamos abaixo o calculo de alguns integrais de Lebesgue:

Exemplos 3.1.2.

1. Funcoes Riemann-integraveis: A funcao f : E → R e Riemann-integravelem E se e so se ΩE(f) e Jordan-mensuravel. Neste caso, ΩE(f) e, evidente-mente, Lebesgue-mensuravel, e portanto f e Lebesgue-mensuravel em E. Ointegral de Riemann de f sobre E e dado por∫

E

f = cN+1(Ω+E(f)) − cN+1(Ω

−E(f)) = mN+1(Ω

+E(f)) −mN+1(Ω

−E(f)).

Por outras palavras, qualquer integral de Riemann e um integral de Lebesgue,e o integral de Lebesgue e uma extensao do integral de Riemann, tal como amedida de Lebesgue e uma extensao do conteudo de Jordan.

2. Se os conjuntos An ր B ⊆ RN e a funcao f esta definida pelo menos emB, e evidente que ΩAn

(f) ր ΩB(f). Em particular, se f e mensuravel enao-negativa em cada conjunto An entao segue-se do teorema da convergenciamonotona de Lebesgue que f e mensuravel em B e

An

f = mN (ΩAn(f)) = mN (ΩAn

(f)) ր mN (ΩB(f)) =

B

fdmN .

Esta observacao permite-nos calcular multiplos exemplos de integrais de Le-besgue que nao sao integrais de Riemann:

a) f(x) = 1√x≥ 0 e Riemann-integravel em An =] 1

n , 1], e B = ∪∞n=1An =

]0, 1]. Concluımos que f e Lebesgue-mensuravel em ]0, 1], e que

∫ 1

0

1√xdm = lim

n→∞

∫ 1

1n

1√xdx = lim

n→∞2√x∣∣x=1

x= 1n

= limn→∞

2

(1 − 1√

n

)= 2.

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152 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

b) A funcao f(x) = e−x e Riemann-integravel em An = [0, n] ր [0,+∞[, e

An

e−xdx =

∫ n

0

e−xdx = 1 − e−n → 1 =

∫ ∞

0

e−xdx.

O integral a direita e um integral de Lebesgue, e f e Lebesgue-somavelem [0,∞[.

3. A funcao de Dirichlet dir em R nao e Riemann-integravel em nenhum inter-valo nao-trivial. No entanto, dir e a funcao caracterıstica dos racionais Q, e,portanto, a sua regiao de ordenadas e ΩR(dir) = Q×]0, 1[. O conjunto ΩR(dir)e Borel-mensuravel, porque e um produto cartesiano de conjuntos Borel-men-suraveis. Temos, ainda, m2(ΩR(dir)) = 0 × 1 = 0. Concluımos que a funcaode Dirichlet e Borel-mensuravel, e

R

dir dm = 0.

4. Mais geralmente, se f e a funcao caracterıstica de um conjunto E ⊆ RN

Borel-mensuravel (respectivamente, Lebesgue-mensuravel), entao f e uma funcaoBorel-mensuravel (respectivamente, Lebesgue-mensuravel), e o seu integral ea medida do conjunto E:

RN

fdmN = mN (E).

5. integrais improprios de Riemann: As definicoes de integral que referimosno Capıtulo 1 nao contemplam a integracao de funcoes que sao ilimitadas naregiao de integracao e/ou que sao diferentes de zero em regioes de integracaoilimitadas. Apesar disso, e ainda antes da introducao da teoria de Lebesgue,os chamados integrais improprios de Riemann foram usados para ultrapassareste tipo de dificuldades, pelo menos em alguns casos particulares(1). A suadefinicao (quando a regiao de integracao B ⊆ RN , N > 1) supoe que

i) Existem conjuntos Jordan-mensuraveis An ր B, tais que f e Riemann-integravel, no sentido usual, em cada conjunto An.

ii) Existe α ∈ R tal que, se a sucessao de conjuntos An satisfaz i), entao

α = limn→∞

An

f

iii) Neste caso, o integral improprio de Riemann de f em B e dado por:

B

f = α = limn→∞

An

f

1O integral improprio diz-se de primeira especie se a integranda e ilimitada, e desegunda especie se a regiao de integracao e ilimitada. Os integrais improprios simul-taneamente de 1a e 2a especie dizem-se mistos. Cauchy introduziu integrais impropriosem R, mas em RN a teoria e mais complexa, e deve-se sobretudo ao matematico alemaoHarnack, que a desenvolveu nos finais do seculo XIX.

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3.1. O Integral de Lebesgue 153

Quando f ≥ 0, e de acordo com a observacao no exemplo 2, a condicao ii) eautomatica, e o valor de α e o integral de Lebesgue de f em B. Dito doutraforma, se f ≥ 0 e a condicao i) e satisfeita, o integral improprio de Riemann def em B existe, e e o integral de Lebesgue de f em B. Temos assim que qualquerintegral improprio de Riemann de uma funcao nao-negativa e um integral deLebesgue, e pode ser calculado usando uma qualquer sucessao de conjuntosJordan-mensuraveis que satisfaca i).

Deixamos para o exercıcio 5 a analise do caso em que f muda de sinal, masresumimos aqui as principais conclusoes:

• O integral improprio de f existe, e e finito, no sentido indicado acima,se e so se o integral improprio de |f | tambem existe, e e finito. Dizemosneste caso que o integral improprio de Riemann de f e absolutamente

convergente e, mais uma vez, qualquer integral improprio de Riemannabsolutamente convergente e um integral de Lebesgue.

• Se f : R → R, o integral improprio de f pode existir no sentido quereferimos no exercıcio 1 da seccao 1.5 sem ser absolutamente convergente.Neste caso, f nao e Lebesgue-somavel, e o seu integral de Lebesgue naoesta definido.

No que se segue, e para simplificar a nossa terminologia, escreveremoscom frequencia “B-mensuravel”, e “L-mensuravel”, em lugar de “Borel-men-suravel”, e “Lebesgue-mensuravel”. Usaremos esta convencao com funcoes,e com conjuntos. Por outro lado, muitos dos teoremas, demonstracoes edefinicoes que estudamos sao aplicaveis, sem qualquer alteracao, quando aexpressao “Lebesgue-mensuravel” e substituıda, em todas as suas ocorrencias,por “Borel-mensuravel”. E este o caso da propria definicao de funcao “Le-besgue-mensuravel/Borel-mensuravel”, que apresentamos em 3.1.1 a). Maisuma vez para simplificar a nossa terminologia, e evitar repeticoes obvias etriviais, convencionamos que, ate mencao em contrario, a utilizacao da ex-pressao “mensuravel”, sem mais qualificativos, no contexto de um teorema,demonstracao, ou definicao, significa que esta pode ser identicamente sub-stituıda, em todas as suas ocorrencias nesse mesmo contexto, tanto por “L-mensuravel”, como por “B-mensuravel”. Tambem ate mencao em contrario,a palavra “somavel” entende-se como “Lebesgue-somavel”, no sentido de3.1.1 c). Seguimos estas convencoes ja na proxima definicao, que generaliza

3.1.1 a funcoes vectoriais f : S → RM

.

Definicao 3.1.3 (Funcoes Vectoriais: Mensurabilidade e Integral). Se E ⊆S ⊆ RN , e f : S → R

M, donde f = (f1, f2, · · · , fM ), com fk : S → R, entao

a) f e mensuravel em E se e so se as funcoes fk sao mensuraveis emE, para 1 ≤ k ≤M , no sentido de 3.1.1.

b) f e somavel em E se e so as funcoes fk sao somaveis em E.

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154 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

c) Se f e mensuravel em E, o integral de lebesgue de f (em ordema mN ) em E e dado por

EfdmN =

(∫

Ef1dmN ,

Ef2dmN , · · · ,

EfMdmN

),

sempre que todos os integrais de Lebesgue a direita estao definidos.

Exemplo 3.1.4.

funcoes mensuraveis complexas: Seja f : RN → C uma funcao complexa,donde f(x) = u(x) + iv(x), com u, v : RN → R. A funcao f e mensuravel see so se as funcoes u, e v sao mensuraveis, e o integral de f e dado por

E

fdmN =

E

udmN + i

E

vdmN ,

sempre que existem os integrais de u e de v no conjunto E.

Se as funcoes f e g estao definidas pelo menos no conjunto E ⊆ RN ,dizemos que f e g sao equivalentes em E, e escrevemos “f ≃ g”, se e sose f(x) = g(x), qtp em E. Note-se a seguir que a substituicao de umafuncao por outra que lhe seja equivalente, ou seja, a modificacao dos seusvalores num conjunto de medida nula, nao altera a sua L-mensurabilidadenem o valor do respectivo integral. Em particular, a L-mensurabilidade def em E pode ser decidida mesmo quando f esta apenas definida qtp em E:

Proposicao 3.1.5. Sejam G ⊆ E ⊆ RN , f : E → R, g : G → R, ondemN (E\G) = 0 e f ≃ g em G. Temos entao:

a) f e L-mensuravel em E ⇐⇒ g e L-mensuravel em G. Neste caso,

b) O integral de f em E existe ⇐⇒ o integral de g em G existe, e

EfdmN =

GgdmN .

Demonstracao. Se D = x ∈ G : f(x) 6= g(x) ∪ (E\G) entao mN (D) = 0.Seja F a “faixa vertical” em RN+1 dada por F = D×R. Temos mN+1(F ) =mN (D)m1(R) = 0, e e facil verificar que

ΩE(f)∆ΩG(g) = (ΩE(f)\ΩG(g)) ∪ (ΩG(g)\ΩE(f)) ⊆ F.

As regioes de ordenadas de f e g diferem assim por um conjunto nulo.Concluımos que ΩF (f) e L-mensuravel se e so se ΩE(g) e L-mensuravel, eneste caso os integrais de f (em F ) e g (em E) sao iguais, sempre que algumdeles exista.

Observacoes 3.1.6.

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3.1. O Integral de Lebesgue 155

1. A relacao “f ≃ g” e efectivamente de equivalencia, por exemplo na classedas funcoes reais definidas em E ⊆ RN . Deve ser evidente que e reflexiva, ouseja, f ≃ f , e simetrica, i.e., f ≃ g ⇐⇒ g ≃ f . Para verificar que a relacao etransitiva, suponha-se que f ≃ g e g ≃ h, e sejam A = x ∈ E : f(x) 6= g(x)e B = x ∈ E : g(x) 6= h(x). Como A∪B tem medida nula e f(x) = g(x) =h(x) quando x 6∈ A ∪B, e claro que f ≃ h.

2. Se fn(x) → f(x) qtp em E e gn ≃ fn tambem em E, entao gn(x) → f(x)qtp em E. Para verificar esta afirmacao, sejam

B = x ∈ E : limn→∞

fn(x) = f(x), An = x ∈ E : fn(x) 6= gn(x), A =

∞⋃

n=1

An.

Os conjuntos An e C = E\B sao nulos por hipotese, e e claro que A e A ∪ Csao igualmente nulos. Temos alem disso que

x 6∈ A ∪ C =⇒ gn(x) = fn(x) → f(x), ou seja, gn(x) → f(x) qtp em E.

3. As seguintes observacoes sao uteis, e.g., na demonstracao das proposicoes3.1.9 e 3.1.10.

a) Se f e L-mensuravel em E e f(x) ≥ 0 qtp em E, entao existe uma funcaof ≃ f tal que f e L-mensuravel em E e f(x) ≥ 0 para qualquer x ∈ E.Basta considerar

f(x) =

f(x), se f(x) ≥ 00, se f(x) < 0

b) Se f e g sao L-mensuraveis em E e f(x) ≤ g(x) qtp em E, existemfuncoes f ≃ f e g ≃ g, ambas L-mensuraveis em E, tais que f(x) ≤ g(x)para qualquer x ∈ E. Tome-se agora

f(x) =

f(x), se f(x) ≤ g(x)0, se f(x) > g(x)

g(x) =

g(x), se f(x) ≤ g(x)0, se f(x) > g(x)

4. A proposicao 3.1.5 nao e valida para funcoes B-mensuraveis: se f ≃ g eg e B-mensuravel entao f pode nao ser B-mensuravel (exercıcio 4), porque oespaco de Borel (RN ,B(RN ),mN ) nao e completo.

Se E ⊆ RN e f : RN → R, e evidente que as regioes de ordenadas de fem E, e de fχE em RN , sao iguais. Concluımos que

Proposicao 3.1.7. Se E ⊆ RN , e f : RN → R, entao

a) f e mensuravel em E se e so se fχE e mensuravel em RN .

b) Se f e mensuravel em E, e algum dos seguintes integrais existe, ooutro existe igualmente, e

EfdmN =

RN

fχEdmN .

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156 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

O resultado seguinte inclui a usual desigualdade triangular. A sua de-monstracao, uma adaptacao directa da de 1.4.7), e o exercıcio 9.

Proposicao 3.1.8. Se E ⊆ RN , e f : E → R, entao

a) f e mensuravel em E se e so se as funcoes f+ e f− sao mensuraveisem E. Neste caso, a funcao |f | e mensuravel em E, e

E|f | dmN =

Ef+dmN +

Ef−dmN .

b) f e somavel em E se e so se as funcoes f+ e f− sao somaveis em E.Neste caso,

EfdmN =

Ef+dmN −

Ef−dmN , e

∣∣∣∣∫

EfdmN

∣∣∣∣ ≤∫

E|f | dmN .

As duas proposicoes seguintes indicam as propriedades fundamentais demonotonia do integral de Lebesgue, em relacao a regiao de integracao, e emrelacao a funcao integranda.

Proposicao 3.1.9. Se E ⊆ RN , f : E → R e mensuravel em E, e F ⊆ Ee mensuravel, entao f e mensuravel em F . Se f ≥ 0 qtp, temos ainda

FfdmN ≤

EfdmN .

Demonstracao. Se G = F × R, e claro que ΩF (f) = ΩE(f) ∩ G ⊆ ΩE(f).Como os conjuntos ΩE(f) e G sao mensuraveis, segue-se que ΩF (f) e men-suravel, i.e., f e mensuravel em F . Caso f ≥ 0 qtp, seja f a funcao definidacomo na observacao 3.1.6.3 a). Temos entao

FfdmN =

Ff dmN = mN+1(Ω

+F (f)) ≤ mN+1(Ω

+E(f)), e

mN+1(Ω+E(f)) =

Ef dmN =

EfdmN .

Proposicao 3.1.10. Se E ⊆ RN , f, g : E → R sao mensuraveis em E,f(x) ≤ g(x) qtp em E, e os integrais de f e de g em E existem, entao

EfdmN ≤

EgdmN .

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3.1. O Integral de Lebesgue 157

Demonstracao. Supomos primeiro que f(x) ≤ g(x), para qualquer x ∈ E.Temos, entao, Ω+

E(f) ⊆ Ω+E(g) e Ω−

E(g) ⊆ Ω−E(f), donde se segue que

EfdmN =mN+1(Ω

+E(f)) −mN+1(Ω

−E(f)) ≤

≤mN+1(Ω+E(g)) −mN+1(Ω

−E(g)) =

EgdmN .

Para adaptar este argumento ao caso em que f(x) ≤ g(x) apenas qtp emE, consideramos funcoes f e g definidas como em 3.1.6.3 b). Aplicando oresultado que acabamos de provar a f e g, temos

EfdmN =

EfdmN ≤

EgdmN =

EgdmN .

As seguintes propriedades sao faceis de estabelecer (exercıcio 6), e seraoutilizadas com muita frequencia:

Proposicao 3.1.11. Se f ≥ 0 e uma funcao mensuravel em E ⊆ RN , entao

a) f e somavel em E =⇒ f e finita qtp em E.

b)∫E fdmN = 0 ⇐⇒ f ≃ 0 em E.

Note-se em particular que se f : E → R e somavel entao existe f : E → R

tal que f ≃ f .A mensurabilidade e o integral da funcao f no conjunto E foram definidos

em termos do conjunto ΩE(f) = Ω+E(f) ∪ Ω−

E(f), onde

Ω+E(f) = (x, y) ∈ RN+1 : x ∈ E, 0 < y < f(x), e

Ω−E(f) = (x, y) ∈ RN+1 : x ∈ E, 0 > y > f(x).

O grafico de f em E e GE(f) = (x, y) ∈ RN+1 : x ∈ E, y = f(x). E evi-dente que ΩE(f) nao inclui quaisquer pontos de GE(f), mas na realidade ainclusao ou exclusao de pontos do grafico de f no conjunto ΩE(f) e em largamedida irrelevante porque, como veremos, o grafico de uma funcao mensu-ravel tem sempre medida nula(2). Em alternativa a ΩE(f), considerem-seos conjuntos ΣE(f) = Σ+

E(f) ∪ Σ−E(f), onde

Σ+E(f) = (x, y) ∈ RN+1 : x ∈ E, e 0 < y ≤ f(x), e

Σ−E(f) = (x, y) ∈ RN+1 : x ∈ E, e 0 > y ≥ f(x).

Notamos que ΓE(f) = ΣE(f)\ΩE(f) ⊆ GE(f), porque ΓE(f) e o grafico def no subconjunto de E onde f(x) 6= 0. Passamos a provar:

2Alias, analogamente ao que ocorre para as funcoes Riemann-integraveis, cujo graficoe sempre um conjunto de conteudo nulo.

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158 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Teorema 3.1.12. Se E ⊆ RN , e f : E → R, entao

a) ΩE(f) e mensuravel se e so se ΣE(f) e mensuravel.

b) Se f e mensuravel entao ΓE(f) e mensuravel e mN+1(GE(f)) = 0.Em particular, mN+1(ΣE(f)) = mN+1(ΩE(f)).

Demonstracao. Seja g a funcao definida por g(x) = f(x), quando x ∈ E, eg(x) = 0, quando x 6∈ E. A funcao g e mensuravel em RN , e definimos

Ω = ΩE(f) = ΩRN (g),Σ = ΣE(f) = ΣRN (g), e Γ = ΓE(f) = ΓRN (g).

Mostramos primeiro que:

(1) Se g ≥ 0 e Ω e mensuravel entao Σ e mensuravel:

O conjunto Ωn = (x, y + 1n) : (x, y) ∈ Ω e uma translacao vertical

de Ω. Ωn e mensuravel, e mN+1(Ωn) = mN+1(Ω). ∆n = Ω ∪ Ωn emensuravel e ∆n ց Σ, donde Σ e mensuravel.

(2) Se g ≥ 0 e Σ e mensuravel entao Ω e mensuravel:

Σn = (x, y − 1n) : (x, y) ∈ Σ e uma translacao vertical de Σ, e e por

isso mensuravel. O conjunto ∆n = Σn ∩ Σ e mensuravel e ∆n ր Ω,donde Ω e mensuravel. Notamos de passagem que

(3) Se g ≥ 0 entao mN+1(∆n) → mN+1(Ω), porque ∆n ր Ω.

As implicacoes (1) e (2) concluem a demonstracao de a) para g ≥ 0.

Provamos agora b), mantendo a restricao g ≥ 0. Um calculo simplesmostra que

(4) mN+1(Σ) = mN+1(Σn) = mN+1(∆n) +mN+1 (Σn\Σ) e

(5) (Σn\Σ) ⊆ E×] − 1n , 0]

Supondo que E tem medida exterior finita, podemos concluir de (5) quemN+1 (Σn\Σ) → 0, e segue-se entao de (4) que mN+1(∆n) → mN+1(Σ), ede (3) que mN+1(Ω) = mN+1(Σ).

Se suposermos alem disso que g e somavel, podemos ainda concluir quemN+1(Γ) = mN+1(Σ) −mN+1(Ω) = 0. Estabelecemos assim em particular

(6) m∗N (E) <∞ e g somavel =⇒ mN+1(Σ) = mN+1(Ω) e mN+1(Γ) = 0.

Para eliminar as restricoes que fizemos sobre E e g, consideramos rectanguloslimitados Rk ր RN , onde k ∈ N, e definimos

gk(x) =

0, se x 6∈ Rk

mink, g(x), se x ∈ Rk

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3.1. O Integral de Lebesgue 159

A funcao gk e mensuravel, porque ΩRN (gk) = ΩRN (g) ∩ (Rk×]0, k[). Comogk e limitada (nao excede k) e e nula fora de Rk, e obvio que e somavel.Escrevendo para simplificar

Ωk = ΩRN (gk), Σk = ΣRN (gk) e Γk = ΓRN (gk), temos de (6) que

(7) mN+1(Γk) = mN+1(Σk) −mN+1(Ωk) = 0.

Notamos que Σk ր Σ, Ωk ր Ω e Γ ⊆ ⋃∞k=1 Γk, donde

mN+1(Σ) = mN+1(Ω) e mN+1(Γ) = 0.

O conjuntoGE(f)\ΓE(f) e nulo em RN+1, e por isso e L-mensuravel. Segue-se que GE(f) e L-mensuravel e tem medida nula. Observe-se tambem quequando g muda de sinal basta aplicar os resultados ja obtidos a g+ e g−.

A nocao de integral indefinido de Lebesgue pode tambem ser introduzidapor uma adaptacao obvia do que fizemos a proposito do integral de Riemann.Supondo f : E → R, onde E ⊆ RN , seja Lf (E) a classe dada por:

Lf (E) = A ⊆ E : f e L-mensuravel em A e

Af existe

O integral indefinido de Lebesgue de f e a funcao λ : Lf (E) → R,onde:

λ(E) =

EfdmN .

Teorema 3.1.13. Seja f : E → R mensuravel em E ⊆ RN , onde f ≥ 0 qtpem E e/ou f e somavel em E. Temos entao que

a) L(E) ⊆ Lf (E) e Lf (E) e uma σ-algebra em E,

b) λ e uma medida em Lf (E),

c) Para qualquer E ∈ L(E), mN (E) = 0 =⇒ λ(E) = 0.

Demonstracao. Se f ≥ 0 qtp em E e/ou f e somavel em E e A ⊆ E, deveser claro que

∫A f existe se e so se f e mensuravel em A, ou seja,

Lf (E) = A ⊆ E : f e mensuravel em A

a) Se B,An ∈ Lf (E), os conjuntos ΩB(f) e ΩAn(f) sao L-mensuraveis.Para mostrar que Lf (E) e uma σ-algebra em E, consideramos C = E\B eA =

⋃∞n=1An, e notamos que ΩC(f) e ΩA(f) sao L-mensuraveis, porque

ΩC(f) = ΩE(f)\ΩB(f) e ΩA(f) =∞⋃

n=1

ΩAn(f).

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160 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

A inclusao L(E) ⊆ Lf (E) foi estabelecida em 3.1.9.

b) Consideramos apenas o caso f ≥ 0 qtp em E. E evidente que λ ≥ 0 eλ(∅) = 0, e supomos que os conjuntos An referidos em a) sao disjuntos. Osconjuntos ΩAn(f) sao igualmente disjuntos, e temos

Af = mN+1(ΩA(f)) = mN+1(

∞⋃

n=1

ΩAn(f)) =∞∑

n=1

mN+1(ΩAn(f)), ou

λ(A) =

Af =

∞∑

n=1

mN+1(ΩAn(f)) =

∞∑

n=1

An

f =

∞∑

n=1

λ(An).

Concluımos que λ e uma medida positiva.

Deixamos a conclusao da demonstracao para o exercıcio 10.

Exercıcios.

1. Seja f : RN → R contınua em RN , e E ⊆ RN B-mensuravel. Prove que f eBorel-mensuravel em E.

2. Mostre que se E ⊆ RN , e mN (E) = 0, entao qualquer funcao f : RN → R esomavel em E, e

∫EfdmN = 0.

3. Em cada um dos seguintes casos, diga

• Se f e B-mensuravel em E, e

• Se o integral∫

Ef existe, como um integral improprio de Riemann e/ou

como um integral de Lebesgue.

a) f(x) = 1x2 , E = [1,+∞[.

b) f(x) = log(|x|), E = [−1,+1].

c) f(x) = 1x , E = [0,+∞[.

d) f(x) = sen xx , E = [0,+∞[.

e) f(x) = (+∞) dir(x), E = R.

f) f(x, y) = log(x2 + y2), E = B1(0).

g) f(x) = g′(x), onde g(x) = x2 sen( 1x2 ), para x 6= 0, e g(0) = 0, com

E = [−1, 1].

4. Prove que a funcao de Volterra (exemplo 1.6.19) satisfaz a regra de Barrow,se o integral de F ′ for interpretado no sentido da definicao 3.1.1.

5. Suponha que f : RN → R e Riemann-integravel em qualquer E ∈ J (RN ).

a) Mostre que f e contınua qtp em RN .

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3.1. O Integral de Lebesgue 161

b) Prove que o integral improprio de Riemann de f em RN existe e e finitose e so se e absolutamente convergente.

c) Mostre que as funcoes f : RN → R com integral improprio de Riemannem RN absolutamente convergente formam um espaco vectorial, onde ointegral improprio e uma transformacao linear.

d) Prove que o integral improprio de Riemann de f em RN existe e e finito see so se f e somavel em RN , e neste caso o integral improprio de Riemannde f e o integral de Lebesgue de f .

e) Determine uma funcao f : R → R tal que o integral improprio de Rie-mann

∫∞−∞ f(x)dx (no sentido referido no exercıcio 1 da seccao 1.5) existe

e e finito, mas f nao e somavel.

6. Demonstre a proposicao 3.1.11. sugestao: Sendo Fα = x ∈ E : f(x) ≥ αe α > 0, aplique a proposicao 2.2.22 ao conjunto Fα × ]0, α[.

7. Mostre que E ⊆ RN e L-mensuravel se e so se χE e L-mensuravel, e nessecaso, ∫

RN

χEdmN = mN (E).

sugestao: Recorde a demonstracao da proposicao 2.2.22.

8. Seja f : R → R Lebesgue-mensuravel.

a) Se f ≃ g e g e contınua em R, f e sempre contınua qtp?

b) Se f e contınua qtp, existe sempre g contınua em R tal que f ≃ g?

9. Demonstre a proposicao 3.1.8. sugestao: Como referido no texto, adaptea demonstracao de 1.4.7.

10. Complete a demonstracao do teorema 3.1.13.

11. Seja f : R → R somavel, e F (x) =∫ x

−∞ fdm. Mostre que F e uniforme-

mente contınua em R. Generalize este resultado para RN . sugestao: Mostreque F e contınua em R e tem limites em ±∞.

12. Seja f ≥ 0 uma funcao L-mensuravel em RN e λ : Lf (RN ) → [0,∞] orespectivo integral indefinido de Lebesgue.

a) Mostre que λ e uma medida completa.

b) λ e sempre regular em B(RN)? sugestao: Considere o integral in-definido de f(x) = 1/x2 em R, e o conjunto E = 0.

c) Suponha que f e somavel em qualquer compacto K ⊂ RN (dizemosneste caso que f e localmente somavel em RN ). Mostre que o integralindefinido λ e regular em L(RN ).

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162 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

3.2 Limites, Mensurabilidade e Integrais

As vantagens tecnicas do integral de Lebesgue sobre o integral de Riemanntornam-se evidentes quando reconhecemos a facilidade com que a teoria deLebesgue trata diversas operacoes de passagem de limite. Esta facilidadeadvem, naturalmente, das propriedades da propria medida de Lebesgue eda classe dos conjuntos Lebesgue-mensuraveis. A tıtulo de exemplo, vimosna seccao anterior que o integral indefinido de Lebesgue e uma medida,simplesmente porque a medida de Lebesgue tambem o e (3.1.13). Veremosnesta seccao como os teoremas sobre sucessoes monotonas de conjuntos men-suraveis (2.1.13 e 2.1.14) tem como consequencia directa tres resultadosclassicos sobre integrais e limites:

• O teorema de Beppo Levi,

• O lema de Fatou, e

• O teorema da convergencia dominada de Lebesgue.

R

RN

f

g

Figura 3.2.1: ΩE(m) = ΩE(f) ∩ ΩE(g),ΩE(M) = ΩE(f) ∪ ΩE(g)

Os resultados referidos aplicam-se, essencialmente sem quaisquer alteracoes,tanto a funcoes Lebesgue-mensuraveis, como a funcoes Borel-mensuraveis,porque resultam de propriedades comuns a qualquer espaco de medida. Poresta razao, e como veremos mais adiante, o seu domınio de aplicabilidade emuito mais geral do que esta primeira exposicao poderia fazer supor.

Notamos ainda no Capıtulo 1 que, se f e g sao funcoes nao-negativas, asregioes de ordenadas das funcoes

m(x) = minf(x), g(x) e M(x) = maxf(x), g(x)

sao, respectivamente, a interseccao e a uniao das regioes de ordenadas de f ede g. Convenientemente generalizada, esta observacao e valida para qualquerfamılia numeravel de funcoes e e a chave para mostrar que a mensurabilidadede funcoes e sempre preservada em operacoes de passagem ao limite.

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3.2. Limites, Mensurabilidade e Integrais 163

Lema 3.2.1. Dadas funcoes fn : E → R, onde E ⊆ RN , sejam

g(x) = supfn(x) : n ∈ N, e h(x) = inffn(x) : n ∈ N.Temos entao:

a) ΩE(g+) =

∞⋃

n=1

ΩE(f+n ), e ΣE(g−) =

∞⋂

n=1

ΣE(f−n ), e

b) ΣE(h+) =

∞⋂

n=1

ΣE(f+n ), e ΩE(h−) =

∞⋃

n=1

ΩE(f−n ).

Demonstracao. Supomos primeiro que fn ≥ 0 para qualquer n e escrevemospara simplificar:

Ωn = ΩE(fn),Ω = ΩE(g),Σn = ΣE(fn) e Σ = ΣE(h).

Notamos como obvio que

(1) Ω ⊇∞⋃

n=1

Ωn e Σ ⊆∞⋂

n=1

Σn.

Temos agora

(2) Se (x, y) ∈ Ω entao 0 < y < g(x), e existe n tal que 0 < y < fn(x) ≤g(x), ou seja, (x, y) ∈ Ωn. Segue-se assim que Ω ⊆ ⋃∞

n=1 Ωn.

(3) Se (x, y) ∈ ⋂∞n=1 Σn entao 0 < y ≤ fn(x) para qualquer n, e portanto

0 < y ≤ h(x), ou seja, (x, y) ∈ Σ. Por outras palavras,⋂∞

n=1 Σn ⊆ Σ.

Concluımos de (1), (2) e (3) que

Ω =

∞⋃

n=1

Ωn e Σ =

∞⋂

n=1

Σn.

Se as funcoes fn mudam de sinal, o lema resulta de aplicar as observacoesque acabamos de provar, depois de observar (ver exercıcio 1) que

g+ = sup f+n , g

− = inf f−n , h+ = inf f+

n e h− = sup f−n .

O proximo teorema e uma consequencia directa deste lema.

Teorema 3.2.2. Se as funcoes fn : E → R sao mensuraveis em E, entaoas seguintes funcoes sao mensuraveis em E:

a) g(x) = supfn(x) : n ∈ N, h(x) = inffn(x) : n ∈ N,b) G(x) = lim sup

n→∞fn(x) e H(x) = lim inf

n→∞fn(x).

Se f(x) = limn→∞

fn(x) para qualquer x ∈ E, entao f e mensuravel em E, e

se a convergencia e apenas valida qtp, entao f e L-mensuravel em E.

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164 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Demonstracao. Para verificar a) no que diz respeito a funcao g, observamosque, de acordo com o lema anterior,

ΩE(g+) =

∞⋃

n=1

ΩE(f+n ) e ΣE(g−) =

∞⋂

n=1

ΣE(f−n ).

• Como as funcoes fn sao mensuraveis, os conjuntos ΩE(f+n ) e ΣE(f−n )

sao mensuraveis.

• Como os conjuntos ΩE(f+n ) e ΣE(f−n ) sao mensuraveis, os conjuntos

ΩE(g+) e ΣE(g−) sao mensuraveis, porque as unioes e interseccoesnumeraveis de conjuntos mensuraveis sao conjuntos mensuraveis.

Concluımos que as funcoes g+ e g− sao mensuraveis, ou seja, g e mensuravel.O caso da funcao h e inteiramente analogo, e resulta de recordar que

ΣE(h+) =∞⋂

n=1

ΣE(f+n ) e ΩE(h−) =

∞⋃

n=1

ΩE(f−n ).

A alınea b) deste teorema e uma consequencia directa de a). Tomamos

gn(x) = supfk(x) : k ≥ n e hn(x) = inffk(x) : k ≥ n,

e observamos de a) que gn e hn sao mensuraveis. E uma propriedade ele-mentar das sucessoes numericas que

G(x) = lim supn→∞

fn(x) = limn→∞

gn(x) = infgn(x) : n ∈ N, e

H(x) = lim infn→∞

fn(x) = limn→∞

hn(x) = suphn(x) : n ∈ N.

Concluımos que as funcoes G e H sao mensuraveis, ainda em consequenciade a). A afirmacao final e uma consequencia obvia deste facto, porque

f(x) = limn→∞

fn(x) em E =⇒ f(x) = G(x) = H(x) em E,

e se a convergencia e valida apenas qtp entao f ≃ G em E.

Vimos logo no inıcio do capıtulo 1 que a operacao de integracao naopode ser sempre trocada com a de passagem ao limite. Existem no entantocircunstancias razoavelmente gerais onde essa troca e possıvel, e passamosa enunciar e demonstrar um conjunto de resultados de grande importanciaque formalizam e tornam precisa esta observacao. Estes resultados sao, emlarga medida, consequencia directa do teorema da convergencia monotonade Lebesgue (2.1.13), ou seja, da propriedade “essencial” de σ-aditividade.

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3.2. Limites, Mensurabilidade e Integrais 165

Teorema 3.2.3 (Teorema de Beppo Levi). (3) Se as funcoes fn : E →[0,+∞] sao mensuraveis em E ⊆ RN e formam uma sucessao crescente,entao fn(x) ր f(x), onde f e mensuravel em E e

Elim

n→∞fndmN = lim

n→∞

EfndmN .

Demonstracao. Sabemos que f(x) = supfn(x) : n ∈ N e mensuravel, deacordo com 3.2.2, precisamente porque

ΩE(f) =

∞⋃

n=1

ΩE(fn).

As funcoes fn ≥ 0 formam uma sucessao crescente, donde ΩE(fn) ր ΩE(f).Segue-se do teorema da convergencia monotona (2.1.13) que

mN+1(ΩE(fn)) → mN+1(ΩE(f)), ou seja,

EfndmN →

EfdmN .

Exemplo 3.2.4.

Seja f a funcao nula fora de ]0, 1[, e tal que f(x) = 1√x, quando 0 < x < 1.

Observamos no exemplo 3.1.2.2 que o integral∫ 1

0 f(x)dx existe e e igual a 2.Sendo Q ∩ ]0, 1[ = q1, q2, · · · , consideramos

gn(x) =

n∑

k=1

1

2kf(x− qk) ր g(x) =

∞∑

k=1

1

2kf(x− qk).

E relativamente simples verificar (ver, por exemplo, o exercıcio 5 da seccao

anterior) que as funcoes gn sao B-mensuraveis, os integrais∫ 2

0gn(x)dx existem,

e podem ser calculados como integrais improprios de Riemann:∫ 2

0

gndm =

∫ 2

0

gn(x)dx =

n∑

k=1

1

2k

∫ 2

0

f(x− qk)dx =

n∑

k=1

1

2k−1ր 1.

Concluımos do teorema de Beppo Levi que g e B-mensuravel e∫ 2

0gdm = 1.

Em particular, g e finita qtp, um facto que a partida pode parecer difıcil deestabelecer. A funcao G(x) =

∫ x

−∞ gdm pode ser calculada integrando a serietermo-a-termo, e e dada por

G(x) =

∞∑

n=1

1

2nF (x− qn), onde F (x) =

∫ x

−∞fdm =

0, se x ≤ 02√x, se 0 ≤ x ≤ 1

2, se x ≥ 1.

Note-se que g e ilimitada em qualquer subintervalo nao trivial de [0, 1], e por-tanto o seu integral de Lebesgue nao e um integral improprio de Riemann.

3Beppo Levi, 1875-1961, matematico italiano de origem judaica, estudou em Turim,onde teve como professores, entre outros, Vito Volterra e Giuseppe Vitali. Foi professor dasuniversidades de Cagliari, Parma e Bolonha, donde foi demitido em 1938 pelo regime deMussolini. Emigrou para a Argentina em 1939, e teve um papel central no desenvolvimentoda Matematica no seu paıs de adopcao. Este teorema foi publicado em 1906.

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166 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

O teorema de Beppo Levi e aplicavel a sucessoes decrescentes de funcoes,desde que as funcoes em causa sejam somaveis a partir de certa ordem.

Teorema 3.2.5 (Teorema de Beppo Levi (II)). Se as funcoes fn : E →[0,+∞] sao mensuraveis em E ⊆ RN e formam uma sucessao decrescente,entao fn(x) ց f(x), onde f e mensuravel em E. Se f1 e somavel, entao

Elim

n→∞fndmN = lim

n→∞

EfndmN .

Demonstracao. f(x) = inffn(x) : n ∈ N e mensuravel, de acordo com3.2.2, porque

ΣE(f) =

∞⋂

n=1

ΣE(fn).

As funcoes fn ≥ 0 formam uma sucessao decrescente, donde ΣE(fn) ցΣE(f). Como f1 e somavel temos mN+1(ΣE(f1)) < +∞ e concluımos de2.1.14 e 3.1.12 que:

mN+1(ΣE(fn)) → mN+1(ΣE(f)), i.e.,

EfndmN →

EfdmN .

O limite inferior de uma sucessao de funcoes e sempre o limite de umasucessao crescente, a qual podemos aplicar o teorema de Beppo Levi. Obte-mos, assim, a desigualdade conhecida como

Lema 3.2.6 (Lema de Fatou). (4) Se as funcoes fn : E → [0,+∞] saomensuraveis em E ⊆ RN , entao

Elim infn→∞

fndmN ≤ lim infn→∞

EfndmN .

Demonstracao. Conforme notamos na demonstracao de 3.2.2,

se hn(x) = inffk(x) : k ≥ n entao hn(x) ր lim infn→∞

fn(x).

Como hn ≥ 0, segue-se do teorema de Beppo Levi que

(1)

EhndmN →

Elim infn→∞

fndmN .

Da monotonia do integral em relacao a integranda segue-se que∫

EhndmN ≤

EfkdmN , para qualquer k ≥ n, ou

4 Pierre Joseph Louis Fatou, 1878-1929, matematico frances. Fatou referiu um lemamuito semelhante a este num artigo publicado em 1906.

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3.2. Limites, Mensurabilidade e Integrais 167

(2)

EhndmN ≤ inf

EfkdmN : k ≥ n.

Deve ser claro das observacoes feitas na demonstracao de 3.2.2 que

inf∫

EfkdmN : k ≥ n → lim inf

n→∞

EfndmN .

Passando ao limite na desigualdade (2) e usando (1), obtemos∫

Elim infn→∞

fndmN ≤ lim infn→∞

EfndmN .

Deixamos como exercıcio a seguinte versao do lema de Fatou para olimite superior de uma sucessao de funcoes, que e consequencia de 3.2.5.

Teorema 3.2.7 (Lema de Fatou (II)). Se as funcoes fn : E → [0,+∞] saomensuraveis em E ⊆ RN , e existe uma funcao somavel F : E → [0,+∞] talque fn(x) ≤ F (x), qtp em E, entao

lim supn→∞

EfndmN ≤

Elim sup

n→∞fndmN .

Este resultado, e o lema de Fatou, permitem-nos obter uma versao pre-liminar do que e, seguramente, um dos resultados mais centrais da teoriada integracao de Lebesgue.

Teorema 3.2.8 (Teorema da Convergencia Dominada de Lebesgue). (5)Suponha-se que

a) As funcoes fn : E → R sao L-mensuraveis em E,

b) Existe uma funcao somavel F : E → [0,+∞] tal que |fn(x)| ≤ F (x),qtp em E, e

c) f(x) = limn→∞

fn(x) qtp em E.

Neste caso, f e L-mensuravel e somavel em E, e∫

EfdmN = lim

n→∞

EfndmN .

Demonstracao. Supomos que as funcoes fn sao nao-negativas, deixando ocaso geral para os exercıcios. Os limites superior e inferior da sucessao dosintegrais de fn existem sempre, e satisfazem

lim infn→∞

EfndmN ≤ lim sup

n→∞

EfndmN ≤

EFdmN <∞.

5Publicado por Lebesgue, em 1908.

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168 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Aplicamos os teoremas 3.2.6 e 3.2.7 a sucessao de funcoes fn, para obter∫

Elim infn→∞

fndmN ≤ lim infn→∞

EfndmN ≤

≤ lim supn→∞

EfndmN ≤

Elim sup

n→∞fndmN .

O resultado e agora imediato, porque, por hipotese,

lim infn→∞

fn ≃ lim supn→∞

fn ≃ f em E.

Observacoes 3.2.9.

1. No enunciado do teorema de Beppo Levi podemos supor que as desigualdades0 ≤ fn(x) ≤ fn+1(x) e a relacao fn(x) ր f(x) sao validas apenas qtp em E.Definindo os conjuntos An e A por

An = x ∈ E : fn(x) < 0 ou fn+1(x) < fn(x) e A =

∞⋃

n=1

An,

e claro que mN (A) = 0. Definindo tambem

gn(x) =

fn(x), se x 6∈ A0, se x ∈ A

temos 0 ≤ gn(x) ≤ gn+1(x) e gn(x) ր g(x) para qualquer x ∈ E. E imediatoque gn ≃ fn em E, e portanto as funcoes gn e g sao L-mensuraveis em E.E tambem claro que se x 6∈ A entao fn(x) = gn(x) → g(x), e em particularg ≃ f em E. Segue-se do teorema de Beppo Levi na forma 3.2.3 que

E

fndmN =

E

gndmN →∫

E

gdmN =

E

fdmN .

2. E igualmente simples adaptar de forma analoga o enunciado do teorema deBeppo Levi (II).

Deve tambem notar-se que estes resultados sobre limites e integrais saocom frequencia indispensaveis ao estudo de funcoes definidas como integraisparametricos, ou seja, funcoes φ dadas por expressoes do tipo:

φ(x) =

Ef(x,y)dy.

Por exemplo, supondo que x ∈ A ⊆ RN , y ∈ E ⊆ RM e f e contınua emA × E, a questao da continuidade de φ em x0 ∈ A reduz-se ao estudo daidentidade

limx→x0

Ef(x,y)dy =

Elim

x→x0

f(x,y)dy =

Ef(x0,y)dy.

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3.2. Limites, Mensurabilidade e Integrais 169

Para aplicar resultados que enunciamos e demonstramos para sucessoes defuncoes a problemas deste tipo, deve recordar-se que a usual definicao delimite de funcoes pode formular-se em termos de limites de sucessoes, e.g.,:

3.2.10. Se f : U → R, U ⊆ RN e aberto e a ∈ U , entao limx→a f(x) = b see so se, para qualquer sucessao com termo geral xn ∈ U\a,

xn → a =⇒ f(xn) → b.

A tıtulo de ilustracao, seja I ⊆ R aberto, E ⊆ R e f : I×E → R. Para cadas ∈ I, definimos fs : I → R por fs(t) = f(s, t). Suponha-se que ψ : E → R

e somavel em E e, para qualquer s ∈ I, fs e mensuravel em E e |fs| ≤ ψ.Se s0 ∈ I, temos entao que

lims→s0

f(s, t) = g(t) =⇒∫

Ef(s, t)dt →

Eg(t)dt.

Para provar esta afirmacao, basta considerar sucessoes sn → s0, e aplicar oteorema 3.2.8 as funcoes gn dadas por gn(t) = f(sn, t).

Exemplos 3.2.11.

1. continuidade de um integral parametrico: Vimos ja que a funcaodada por ψ(t) = e−t2 e somavel em R. Estudamos agora a continuidade dointegral parametrico dado por(6)

F (s) =

R

e−t2 cos(st)dt.

Com f(s, t) = e−t2 cos(st), temos |f(s, t)| = |e−t2 cos(st)| ≤ e−t2 = ψ(t) e, emparticular, F esta definida em R. Temos igualmente para qualquer s0 ∈ R quef(s, t) → f(s0, t) quando s → s0, porque f e contınua em R2. Podemos porisso concluir que

lims→s0

F (s) =

R

lims→s0

e−t2 cos(st)dt =

R

e−t2 cos(s0t)dt = F (s0)

2. derivada de um integral parametrico: Quando ω > 0, o integral

G(ω) =

∫ ∞

0

e−ωt sen(t2)dt

e um integral improprio de Riemann absolutamente convergente, porque

|e−ωt sen(t2)| ≤ e−ωte

∫ ∞

0

e−ωtdt =1

ω.

6Este integral e, como veremos, a parte real da transformada de Fourier de ψ.Note do exercıcio 9 que podemos facilmente estabelecer a sua continuidade uniforme emR sem invocar o teorema 3.2.8.

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170 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Para calcular a derivada de G, consideramos o quociente

G(ω + s) −G(ω)

s=

∫ ∞

0

e−(ω+s)t − e−ωt

ssen(t2)dt =

∫ ∞

0

e−st − 1

se−ωt sen(t2)dt.

Repare-se que neste calculo o limite em questao e calculado com ω > 0 fixo.Um calculo elementar mostra que

f(s, t) =e−st − 1

se−ωt sen(t2) → −te−ωt sen(t2) quando s→ 0 e,

supondo agora que |s| ≤ ω/2, temos igualmente

|f(s, t)| = |e−st − 1

se−ωt sen(t2)| ≤ te−ωt/2 = ψ(t).

A funcao ψ e tambem somavel em E = [0,∞[ (porque?), e podemos portantoconcluir de 3.2.8 que

G′(ω) = lims→0

∫ ∞

0

e−(ω+s)t − e−ωt

ssen(t2)dt = −

∫ ∞

0

te−ωt sen(t2)dt.

Exercıcios.

1. Suponha que fn : E → R, g(x) = supfn(x) : n ∈ N e h(x) = inffn(x) :n ∈ N. Mostre que

g+(x) = supf+n (x) : n ∈ N, g−(x) = inff−

n (x) : n ∈ N, e

h+(x) = inff+n (x) : n ∈ N, h−(x) = supf−

n (x) : n ∈ N.

2. Mostre que o teorema de Beppo Levi e valido para funcoes fn : E → R,desde que

∫Ef1dmN > −∞.

3. Mostre que a regiao de ordenadas da funcao g definida no exemplo 3.2.4 eσ-elementar, e portanto g e Borel-mensuravel.

4. Demonstre o teorema 3.2.7.

5. Mostre que a desigualdade estrita e possıvel no lema de Fatou e em 3.2.7.

6. O Lema de Fatou (II) tem como uma das hipoteses a condicao

(i) fn(x) ≤ F (x), qtp em E, onde F e somavel em E.

Verifique se esta condicao pode ser substituıda por

(ii)∫

E fndmN < K <∞, para qualquer n ∈ N.

7. Demonstre o teorema da convergencia dominada para fn : E → R.

8. Suponha que f : R → R e diferenciavel em R, e mostre que f ′ e B-mensuravelem R.

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3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 171

9. Verifique os detalhes dos calculos indicados na discussao dos exemplos 3.2.11.Mostre igualmente que a funcao F e uniformemente contınua em R sem invocaro teorema 3.2.8.

10. Calcule

limn→+∞

∫ n

0

(1 − x

n

)n

ex2 dx.

11. Calcule a derivada da funcao

F (s) =

∫ ∞

0

e−t

tsen(st)dt.

3.3 O Teorema de Fubini-Lebesgue

A teoria de integracao de Lebesgue inclui uma solucao particularmente ele-gante para o problema do calculo da medida de um conjunto por integracaoda medida das suas seccoes. Trata-se do Teorema de Fubini-Lebesgue(7),que passamos a estudar.

As seccoes de um conjunto E ⊆ RN resultam de intersectar E com“planos” de dimensao M < N de tipo especial. Antes de apresentarmosuma definicao mais precisa desta nocao de seccao, e conveniente analisarmosalguns casos mais especıficos.

Exemplos 3.3.1.

1. Se E ⊆ R2, as seccoes de E resultam fixar uma das duas coordenadas dospontos de E, ou seja, de intersectar E com rectas horizontais ou verticais (verfigura 3.3.1). Designando por α e β, respectivamente, as rectas com equacoesx = a e y = b, obtemos os conjuntos

Ea1 = E ∩ α = (a, y) : (a, y) ∈ E e Eb

2 = E ∩ β = (x, b) : (x, b) ∈ E

E no entanto mais conveniente considerar as projeccoes destes conjuntos em R

como as verdadeiras “seccoes” de E, ou seja, tomar como seccoes os conjuntos

Ea1 = y ∈ R : (a, y) ∈ E e Eb

2 = x ∈ R : (x, b) ∈ E

Repare-se que neste caso Eti e o conjunto formado pelos pontos de E com

coordenada i igual a t e Eti e a projeccao (evidente) de Et

i em R.

2. Se E ⊆ R3, e escrevendo x ∈ R3 na forma x = (x1, x2, x3), as seccoes de Eobtem-se agora de fixar uma ou duas das coordenadas dos pontos de E, ou seja,

7De Guido Fubini, 1879-1943, matematico italiano de origem judaica, refugiado nosEUA em 1939, depois de demitido da sua posicao na Universidade de Turim. A versaomoderna deste teorema foi descoberta no perıodo 1906-1907 por Fubini e Beppo Levi, maso princıpio subjacente, dito “de Cavalieri”, do matematico italiano Bonaventura FrancescoCavalieri, 1598 - 1647, ja era conhecido por Arquimedes.

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172 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

x = a

y = b

Eb2

Ea1

E

Figura 3.3.1: Ea1 e Eb

2 sao seccoes do conjunto E.

de intersectar E com planos paralelos a um dos planos coordenados (equacaoxi = a) ou com rectas paralelas a dois dos planos coordenados (sistema xi = ae xj = b). Adaptando a notacao introduzida no exemplo anterior, temos, e.g.,

Ec3 = (x, y) ∈ R2 : (x, y, c) ∈ E e E

(a,b)(1,2) = z ∈ R3 : (a, b, z) ∈ E

a) Se E ⊂ R3 e a esfera centrada na origem de raio 4, entao E√

33 e o cırculo

unitario em R2, porque

E√

33 = (x, y) ∈ R2 : x2 + y2 + 3 ≤ 4 = (x, y) ∈ R2 : x2 + y2 ≤ 1.

Analogamente, a seccao E(0,

√3)

(1,3) e o intervalo [−1,+1], porque

E(0,

√3)

(1,3) = y ∈ R : 0 + y2 + 3 ≤ 4 = y ∈ R : y2 ≤ 1 = [−1,+1].

b) Se E ⊂ R3 e a regiao de ordenadas de f : R2 → R dada por f(x, y) =x2 + |y|, entao E−1

2 e a regiao de ordenadas em R da funcao que podemosdesignar g = f−1

2 : R → R, dada por f−11 (x) = f(x,−1) = g(x) = x2 + 1,

porque

E√

31 = (y, z) ∈ R2 : 0 < z < f(

√3, y) = (y, z) ∈ R2 : 0 < z < 3 + |y|

Neste caso, as seccoes do tipo Eλ3 tem um significado muito particular,

porque, e.g.,

E13 = (x, y) ∈ R2 : 0 < 1 < f(x, y) = f−1(]1,∞])

Por palavras, a seccao Eλ3 e o conjunto onde f > λ. As seccoes do tipo

E(a,b)(1,2) sao especialmente simples, porque sao sempre intervalos:

E(a,b)(1,2) = z ∈ R : 0 < λ < f(a, b) =]0, f(a, b)[

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3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 173

3. Quando a dimensao do espaco em causa e superior a 3, a variedade de con-juntos a que podemos chamar “seccoes” e ainda maior. Supondo E ⊆ R5,e razoavel fixar, por exemplo, a 2a e a 4a coordenada, o que corresponde aintersectar E com um “plano” de dimensao 3, para obter uma seccao do tipo

E(a,b)(2,4) = (x, y, z) ∈ R3 : (x, a, y, b, z) ∈ E.

As usuais funcoes “de projeccao” πi : RN → R, onde 1 ≤ i ≤ N eπi(x) = xi quando x = (x1, x2, · · · , xN ), sao uteis para tornarmos estasnocoes mais precisas. Na realidade, e facil ver que se E ⊆ R2 entao, quando(i, j) = (1, 2) e quando (i, j) = (2, 1),

Eai = π−1

i (a) ∩ E e Eai = πj

(Ea

i

)= πj

(π−1

i (a) ∩ E)

O caso de seccoes de conjuntos em espacos de dimensao superior a 2 re-quer no entanto a generalizacao das nocoes de ındice i e de projeccao πi

subjacentes a observacao que acabamos de fazer para R2.

Definicao 3.3.2 (Indices e projeccoes). Um ındice-K (em RN ) e um K-tuplo de naturais I = (i1, i2, · · · , iK), onde 1 ≤ i1 < i2 < · · · < iK ≤ N .Dizemos neste caso que a funcao πI : RN → RK dada por

πI(x) = (πi1(x), · · · , πiK (x)).

e uma projeccao. Sendo N = K + M , o ındice complementar de I,designado Ic, e o ındice-M formado pelos naturais j1 < · · · < jM ≤ N quenao estao em i1, i2, · · · , iK.Exemplo 3.3.3.

Se N = 5 e I = (2, 4), temos Ic = (1, 3, 5). Repare-se que a seccao de E ⊆ R5

referida no exemplo 3.3.1.3 e

E(a,b)(2,4) = πIc

(π−1I (E)

)

Qualquer elemento x ∈ RN fica unicamente determinado pelas suas pro-jeccoes t = πI(x) ∈ RK e y = πIc(x) ∈ RM , porque as componentes de x

resultam de uma simples permutacao das componentes de u = (t,y). E porisso conveniente introduzir

Definicao 3.3.4. Seja I um ındice-K em RN e N = K +M . As funcoesΠI : RN → RK × RM e ρI : RK × RM → RN (8) sao dadas por

ΠI(x) = (πI(x), πIc(x)) e ρI = Π−1I .

8Os sımbolos πI e ρI nao incluem qualquer referencia ao espaco RN subjacente, paranao sobrecarregar excessivamente a notacao, mas note que esta opcao causa ambiguidade.

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174 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

x = ρI(t,y) ⇐⇒ (t,y) = ΠI(x) ⇐⇒ t = πI(x) e y = πIc(x).

Exemplos 3.3.5.

1. Se I = (2, 4), πI : R5 → R2 e dada por

πI(x) = (x2, x4), onde x = (x1, x2, x3, x4, x5).

Neste caso, Ic = (1, 3, 5), πIc : R5 → R3 e πIc(x) = (x1, x3, x5). A funcaoρI : R2 × R3 → R5 e dada por

ρI(t,y) = ρI((t1, t2), (y1, y2, y3)) = (y1, t1, y2, t2, y3).

2. As seccoes de um dado conjunto E podem ser facilmente expressas em termosdas funcoes de projeccao que acabamos de referir. Se E ⊆ R2 e x0, y0 ∈ R entao

x ∈ R : (x, y0) ∈ E = π1(π−12 (y0) ∩ E), e

y ∈ R : (x0, y) ∈ E = π2(π−11 (x0) ∩E).

3. Se E ⊆ R3 e y0 ∈ R, entao

(x, z) ∈ R2 : (x, y, z) ∈ E = π(1,3)(π−12 (y0) ∩ E).

4. Se E ⊆ R5 e (y0, u0) ∈ R2, e escrevendo α = (2, 4), αc = (1, 3, 5), entao

(x, z, v) ∈ R3 : (x, y0, z, u0, v) ∈ E = π(1,3,5)(π−1(2,4)(u0, v0) ∩ E).

A definicao seguinte formaliza estas ideias.

Definicao 3.3.6 (Seccoes de E ⊆ RN ). Seja E ⊆ RN , I = (i1, i2, · · · , iK)um ındice-K em RN , t ∈ RK , e M = N −K. Dizemos entao que o conjunto

EtI = πIc(π−1

I (t) ∩ E) = y ∈ RM : ρI(t,y) ∈ E.

e uma seccao-M de E, ou mais simplesmente uma seccao de E.

Exemplos 3.3.7.

1. Seja Ω ⊂ R3 a regiao de ordenadas de f : R2 → R. Escrevemos os pontos deR3 na forma v = (x, y, z) e observamos que se f ≥ 0 entao:

• Ωx0

1 = π(2,3)((x0, y, z) ∈ Ω) = (y, z) : 0 < z < f(x0, y) e a regiao deordenadas da funcao gx0

: R → R, dada por gx0(y) = f(x0, y).

• Ωy0

2 = π(1,3)((x, y0, z) ∈ Ω) = (x, z) : 0 < z < f(x, y0) e a regiao deordenadas da funcao hy0

: R → R, dada por hy0(x) = f(x, y0).

• Ωz0

3 = π(1,2)((x, y, z0) ∈ Ω) = (x, y) : 0 < z0 < f(x, y) e o conjuntode pontos onde f e maior do que z0.

• Ω(x0,y0)(1,2) = π3((x0, y0, z) ∈ Ω = z : 0 < z < f(x0, y0)

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3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 175

R

R

Rx0

z = f(x0, y) = fx0(y)

Figura 3.3.2: A seccao Ωx0

1 e a regiao de ordenadas de fx0.

• Ω(x0,z0)(1,3) = π2((x0, y, z0) ∈ Ω = y : 0 < z0 < f(x0, y) e o conjunto onde

a funcao fx0dada por fx0

(t) = f(x0, t) e maior do que z0.

• Ω(y0,z0)(2,3) = π1((x, y0, z0) ∈ Ω = x : 0 < z0 < f(x, y0) e o conjunto onde

a funcao fy0 dada por fy0(t) = f(t, y0) e maior do que z0.

2. Considere-se a bola S =x ∈ RN : ‖x‖ ≤ R

⊂ RN e seja y ∈ RK , onde

K < N e ‖y‖ < R. Se I e um qualquer ındice-K, e facil reconhecer que aseccao Sy

I e igualmente uma bola, dada por

Sy

I =z ∈ RN−K : ‖z‖2 + ‖y‖2 ≤ R2

=

z ∈ RN−K : ‖z‖2 ≤√R2 − ‖y‖2

.

Se as seccoes EtI ⊆ RM sao mensuraveis, podemos determinar as respec-

tivas medidas AI(t) = mM(EtI) e AI e uma funcao em RK . O teorema de

Fubini-Lebesgue que passamos a enunciar garante que, se o conjunto E eL-mensuravel, entao o integral de AI existe e e a medida de E.

Teorema 3.3.8 (Teorema de Fubini-Lebesgue (I)). Seja E ∈ L(RN), 1 ≤K < N , t ∈ RK , M = N −K e seja ainda I = (i1, i2, · · · , iK) um ındice-Kem RN . Temos entao que

a) Os conjuntos EtI ⊂ RM sao L-mensuraveis, para quase todo o t ∈ RK ,

b) A funcao AI(t) = mM (EtI) e L-mensuravel em RK e

RK

AIdmK = mN (E).

Exemplo 3.3.9.

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176 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Designamos por E a regiao de ordenadas da funcao f : R2 → R dada porf(x, y) = log(x2 + y2), no conjunto B1(0). Se z < 0, as seccoes Ez

3 saocırculos, de raio r = e

z2 , donde A3(z) = πez . Supondo provado o teorema

3.3.8, a medida do conjunto E e dada, portanto, por

m3(E) =

∫ 0

−∞A3(z)dm =

∫ 0

−∞πezdm,

que pode ser calculado como um integral improprio de Riemann. Temos, assim,

m3(E) = limz→−∞

∫ 0

z

πetdm = limz→−∞

π et∣∣0z

= π.

ACRESCENTAR AQUI O EXEMPLO DA LEI DE GAUSS A DUAS DI-MENSOES: Considere-se a funcao f(x, y) = ex2.y2, e seja Bn = Bn(0) a bolacentrada na origem com raio n. A funcao f e Riemann-integravel em Bn, epodemos calcular o respectivo integral usando, por exemplo, as seccoes obtidascom z constante: Como Bn . R2, concluımos que o integral de Lebesgue def em R2 e igual a . Observe-se que o mesmo calculo, mas executado agoracom os conjuntos An = [.n, n] ¡¿ [.n, n], conduz necessariamente ao mesmoresultado, i.e., Obtemos assim a identidade classica:

O teorema de Fubini-Lebesgue e imediato quando E e um rectangulo-N .Suponha-se que E = R = I1 × · · · IN , onde os conjuntos Ik sao intervalosem R, e seja I um ındice-K em RN , com I = (i1, i2, · · · , iK), e Ic =(j1, j2, · · · , jM ). E natural dizer que os conjuntos

RI = πI(R) = Ii1 × · · · IiK ⊆ RK e RIc = πIc(R) = Ij1 × · · · IjM⊆ RM

sao projeccoes deR, e e evidente quemN (R) = mK(RI)mM (RIc). O calculodas seccoes Rt

I e da funcao AI e muito simples, e conduz a

RtI =

RIc, quando t ∈ RI

∅, quando t 6∈ RIdonde At

I =

mM (RIc), quando t ∈ RI

0, quando t 6∈ RI

Concluımos que∫

Rk

AI(t)dmK =

RI

mM (RIc)dmK = mM (RIc)mK(RI) = mN (R).

Note que podemos escrever AI(t) = mM (RIc)χRI(t), e portanto a

funcao AI e multipla da funcao caracterıstica de RI . Obtivemos assimo seguinte resultado preliminar:

Lema 3.3.10. Seja R um rectangulo-N , e I um ındice-K em RN . Sejamainda RI e RIc as projeccoes acima referidas. Temos entao que:

a) As seccoes RtI sao rectangulos-M para qualquer t ∈ RK , sendo que

RtI = RIc quando t ∈ RI, e Rt

I = ∅ quando t 6∈ RI . Portanto,

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3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 177

b) AI = mM (RIc)χRIe B-mensuravel, e

Rk

AI(t)dmK = mN (R).

Usaremos com frequencia as seguintes observacoes elementares.

Lema 3.3.11. Suponha-se que I e um ındice-K em RN e t ∈ RK . SeEα ⊆ RN para qualquer α ∈ J , temos:

a) Se A =⋃

α∈J

Eα, entao AtI =

α∈J

(Eα)tI .

b) Se B =⋂

α∈J

Eα, entao BtI =

α∈J

(Eα)tI .

c) Se E ⊆ RN entao (Ec)tI =

(Et

I

)c.

Demonstracao. Provamos apenas a), a tıtulo de exemplo. Seja ρI : RK ×RM → RN a bijeccao definida em 3.3.4. Notamos que

y ∈ AtI ⇔ ρI(t,y) ∈

α∈J

Eα ⇔ Existe α ∈ J tal que ρI(t,y) ∈ Eα ⇔

⇔ Existe α ∈ J tal que y ∈ (Eα)tI ⇔ y ∈⋃

α∈J

(Eα)tI .

As restantes afirmacoes sao tambem de verificacao imediata.

Para demonstrar o teorema de Fubini-Lebesgue (I) na forma 3.3.8, prova-remos sucessivamente lemas auxiliares (3.3.12 a 3.3.15) aplicaveis a conjun-tos E de diversos tipos, comecando pelo caso em que E ⊂ RN e elementar.Em todos estes resultados, supomos que

E ⊆ RN , I e um ındice-K em RN , t ∈ RK e N = K +M.

Lema 3.3.12. Se E e elementar entao:

a) Os conjuntos EtI ⊆ RM sao elementares para qualquer t ∈ RK .

b) A funcao AI dada por AI(t) = mM (EtI) e B-mensuravel em RK , e

RK

AI(t)dmK = mN (E).

Demonstracao. Como E e elementar, existe uma particao R de E em rectan-gulos limitados disjuntos. Notamos do lema anterior que

E =⋃

R∈R

R =⇒ EtI =

R∈R

RtI .

Notamos agora que

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178 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

• Como as seccoes RtI sao rectangulos (lema 3.3.10), e claro que as

seccoes EtI sao elementares, o que prova a).

• Os rectangulos RtI sao disjuntos (com t e I fixos), e portanto

AI(t) = mM(EtI) =

R∈R

mM (RtI).

Tal como no lema 3.3.10, se RI = πI(R) e RIc = πIc(R), entao

AI(t) =∑

R∈R

mM (RtI) =

R∈R

mM (RIc)χRI(t).

A funcao AI e assim uma combinacao linear de funcoes caracterısticasde rectangulos limitados, a sua regiao de ordenadas e elementar, e AI

e B-mensuravel. O calculo do seu integral (que existe no sentido deRiemann e se reduz a uma soma de Darboux)(9) e imediato:

RK

AI(t)dmK =∑

R∈R

RK

mM (RIc)χRI(t)dmK =

=∑

R∈R

mK(RI)mM (RIc) =∑

R∈R

mN (R) = mN (E).

Passamos a considerar o caso dos conjuntos σ-elementares:

Lema 3.3.13. Se E e σ-elementar entao:

a) Os conjuntos EtI ⊂ RM sao σ-elementares para qualquer t ∈ RK .

b) A funcao AI dada por AI(t) = mM (EtI) e B-mensuravel em RK , e

RK

AIdmK = mN (E).

Demonstracao. E e uma uniao numeravel de rectangulos limitados Rj , e

E =∞⋃

j=1

Rj =⇒ EtI =

∞⋃

j=1

(Rj)t

I .

Os conjuntos (Rj)t

I sao rectangulos limitados, portanto EtI e tambem σ-

elementar e a funcao AI(t) = mM (EtI) esta definida em RK . Consideramos

os conjuntos elementares auxiliares Un =⋃n

j=1Rj, e observamos que:

(1) Un ր E, donde mN (Un) → mN (E), e

(2) (Un)tI ր Et

I , donde mM ((Un)tI) → mM(EtI), para qualquer t ∈ RK .

9Recorde que ainda nao estabelecemos a aditividade do integral de Lebesgue em relacaoa integranda!

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3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 179

Definimos An,I(t) = mM

((Un)t

I

)e AI(t) = mM

(Et

I

). Como Un e ele-

mentar, segue-se de 3.3.12 que An,I e B-mensuravel, e e claro de (2) queAn,I(t) ր AI(t) = mM

(Et

I

)e AI e B-mensuravel. Concluımos:

(3) Do teorema de Beppo Levi:

RK

An,IdmK →∫

RK

AIdmK .

(4) De 3.3.12 e (1):

RK

An,IdmK = mN (Un) → mN (E).

Temos de (3) e (4) que

RK

AdmK = mN (E).

Consideramos em seguida o caso:

Lema 3.3.14. Se E e de tipo Gδ e mN (E) <∞ entao:

a) Os conjuntos EtI ⊆ RM sao de tipo Gδ para qualquer t ∈ RK .

b) A funcao AI dada por AI(t) = mM (EtI) e L-mensuravel em RK , e

RK

AIdmK = mN (E).

Demonstracao. Existem conjuntos abertos Un de medida finita tais que

(i) Un ց E, donde mN (Un) → mN (E).

Definimos An,I(t) = mM ((Un)tI), e observamos do lema 3.3.13, e (i), que

(ii)

RK

An,IdmK = mN (Un) → mN (E).

As funcoes An,I sao evidentemente somaveis, e em particular a funcao A1,I

e finita qtp. E tambem claro que

E =

∞⋂

n=1

Un =⇒ EtI =

∞⋂

n=1

(Un)tI , i.e., (Un)tI ց EtI , e Et

I e um Gδ.

A funcao AI(t) = mM (EtI) esta, portanto, definida para qualquer t ∈ RK .

Como A1,I(t) < ∞ e finita qtp, temos An,I(t) ց AI(t) qtp, e segue-se doteorema de Beppo Levi (II) que AI e L-mensuravel, e

(iii)

RK

An,IdmK →∫

RK

AIdmK .

O resultado segue-se de comparar (ii) e (iii).

O caso dos conjuntos de medida nula e um corolario directo do anterior.

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180 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Lema 3.3.15. Se E ⊆ RN e mN (E) = 0 entao:

a) Os conjuntos EtI sao nulos para quase todo o t ∈ RK .

b) A funcao AI dada por AI(t) = mM (EtI) e nula qtp em RK , donde AI

e L-mensuravel, e

RK

AIdmK = mN (E) = 0.

Demonstracao. E claro que existe um conjuntoB de tipoGδ tal quemK(B) =0 e E ⊆ B. Sendo AI(t) = mM (Bt

I), temos do lema anterior que

RK

AIdmK = mN (B) = 0, donde AI ≃ 0 em RK .

Como EtI ⊆ Bt

I , e evidente que

AI(t) = 0 ⇐⇒ mM(BtI) = 0 =⇒ mM (Et

I) = 0 ⇐⇒ AI(t) = 0.

Concluımos que AI ≃ 0 em RK , o que termina a demonstracao.

Provamos finalmente o teorema de Fubini-Lebesgue (I) para conjuntoscom medida finita.

Demonstracao. Recordamos que existe um conjunto B ⊇ E, de tipo Gδ, talque mN (B − E) = 0. Com Z = B − E, temos

B = E ∪ Z, e BtI = Et

I ∪ ZtI .

Os conjuntos BtI sao de tipo Gδ, como observamos em 3.3.14, e vimos, em

3.3.15, que ZtI e um conjunto nulo, qtp em RK . Concluımos assim que Et

I

e L-mensuravel qtp em RK , e

AI(t) = mM (EtI) ≃ mM(Bt

I) = AI(t), em RK .

Supondo que mN (E) < ∞, temos tambem que mN (B) < ∞, e segue-se dolema 3.3.14 que a funcao AI , e portanto AI , sao L-mensuraveis, e

RK

AIdmk =

RK

AIdmk = mN (B) = mN (E).

Deixamos a generalizacao para conjuntos de medida infinita para o exercıcio2.

O teorema de Fubini refere-se usualmente ao calculo de integrais mul-tiplos por iteracao de integrais de mais baixa dimensao. Dada uma funcao

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3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 181

f definida em RN+M , e supondo x ∈ RN e y ∈ RM , o teorema de Fubiniesclarece condicoes em que sao validas as identidades:

RN+M

f(x,y)dxdy =

RM

(

RN

f(x,y)dx)dy =

RN

(

RM

f(x,y)dy)dx.

Claro que esta e apenas um caso especial entre muitas identidades analogas,e por exemplo se N = 1 e M = 2 temos igualmente

R3

f(x, y, x)dxdydz =

R2

(

R

f(x, y, z)dy)dxdz =

R

(

R2

f(x, y, z)dxdz)dy.

Adaptamos a notacao ja introduzida para seccoes de conjuntos ao problemade designar funcoes quando fixamos alguns dos seus argumentos.

Exemplos 3.3.16.

1. Dados x, z ∈ R, seja g(y) = f(x, y, z). E natural escrever g = f(x,z)(1,3) .

2. Dado y ∈ R, se h(x, z) = f(x, y, z) entao escrevemos h = fy2 .

Mais geralmente, se f : RN → R, I e um ındice-K em RN , N = K +Me t ∈ RK , entao f t

I : RM → R e a funcao dada por

f tI(y) = f(x) onde πI(x) = t e πIc(x) = y, i.e., f t

I(y) = f(ρI(t,y)),

onde ρI : RK × RM → RN e a bijeccao referida na definicao 3.3.4. E facilmostrar que a regiao de ordenadas da funcao f t

I e uma seccao da regiao deordenadas de f (figura 3.3.2), e na realidade

Se E = ΩRN (f) entao ΩRM (f tI) = Et

I .

As formas mais classicas do teorema de Fubini sao por isso corolarios directosdo teorema 3.3.8, e podemos desde ja demonstrar um resultado aplicavel afuncoes mensuraveis nao negativas.

Teorema 3.3.17 (Teorema de Fubini-Lebesgue (II)). Se f : RN → [0,+∞]e L-mensuravel, I e um ındice-K em RN e N = K +M entao

a) As funcoes f tI sao L-mensuraveis em RM , para quase todo o t ∈ RK .

b) Sendo A(t) =∫

RM f tIdmM , entao A e L-mensuravel em RK , e

RK

A(t)dmK =

RN

f(x)dmN .

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182 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Demonstracao. Consideramos a regiao de ordenadas de f , i.e.,

E = ΩRN (f) =(x, z) ∈ RN+1 : x ∈ RN e 0 < z < f(x)

.

E e L-mensuravel, porque f e L-mensuravel. Conforme ja observamos, I etambem um ındice-K em RN+1, e se t ∈ RK temos

EtI = ΩRM (f t

I).

Como a seccao EtI e L-mensuravel para quase todo o t ∈ RK , e evidente

que f tI e igualmente L-mensuravel para quase todo o t ∈ RK , e a funcao AI

dada por

AI(t) = mM+1(EtI) = mM+1(ΩRM (f t

I)) =

RM

f tIdmM ,

que esta definida qtp em RK , e tambem L-mensuravel. Sempre de acordocom o teorema de Fubini-Lebesgue na forma 3.3.8, temos finalmente que

RN

fdmN = mN+1(E) =

RK

AIdmK =

RK

(∫

RM

f tIdmM

)dmK .

Exemplo 3.3.18.

A aplicacao mais simples deste resultado corresponde ao caso em que escreve-mos os elementos de RN na forma (x,y) com x ∈ RK e y ∈ RM e tomamosI = (1, 2, · · · ,K), ou seja,

fxI (y) = f(x,y), AI(x) =

RM

fxI dmM =

RM

f(x,y)dy

RN

f(x,y)dmN =

RK

AIdmK =

RK

(∫

RM

f(x,y)dy

)dx.

Tomando Π = (K + 1,K + 2, · · · , N), que e um ındice-M , temos entao

fy

Π(x) = f(x,y), AΠ(y) =

RK

fy

ΠdmK =

RK

f(x,y)dx

RN

f(x,y)dmN =

RM

AΠdmM =

RM

(∫

RK

f(x,y)dx

)dy.

O teorema de Fubini-Lebesgue para funcoes somaveis e, igualmente, umcorolario simples deste ultimo resultado. No entanto, requer para a suademonstracao a aditividade do integral de Lebesgue, que ainda nao estabe-lecemos. Sera por isso enunciado e demonstrado apenas na seccao 3.5. Ademonstracao desse resultado utilizara o seguinte corolario de 3.3.17.

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3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 183

Corolario 3.3.19. Se f : RN → R e L-mensuravel, entao f e somavelse e so se existe um ındice-K em RN , aqui designado I, tal que a funcaoAI : RM → R, onde M = N −K, dada por

AI(t) =

RM

|f |tIdmM e somavel.

Neste caso, se Π e um qualquer ındice-P em RN , e N = P +Q, temos que

a) As funcoes f tΠ sao somaveis em RQ, para quase todo o t ∈ RP , e

b) ∫

RP

(∫

RQ

|f |tΠdmQ

)dmP =

RN

|f(x)|dmN .

Demonstracao. Se I e um ındice-K em RN tal que

AI(t) =

RM

|f |tIdmM e somavel em RK ,

segue-se do teorema 3.3.17 que f e somavel em RN .Se f e somavel, Π e um qualquer ındice-P em RN , N = P +Q, e t ∈ RP ,

temos de acordo com o teorema 3.3.17 que

AΠ(t) =

RQ

|f |tIdmQ =⇒∫

RP

AI(t)dmP =

RN

|f |dmN <∞.

Segue-se imediatamente que AΠ e finita qtp em RP , ou seja, as funcoes f tΠ

sao somaveis em RQ, para quase todo o t ∈ RP .

A seguinte consequencia do teorema de Fubini-Lebesgue e menos obvia,mas muito util, como veremos na proxima seccao. A propriedade em causanao tem paralelo na teoria de Riemann, como ja sabemos.

Teorema 3.3.20. Seja E ⊆ RN , e f : E → R uma funcao L-mensuravelem E. Entao os conjuntos F (λ) = x ∈ E : f(x) > λ e G(λ) = x ∈ E :f(x) < −λ sao L-mensuraveis para quaisquer λ ≥ 0.

Demonstracao. Quando λ > 0 e claro que

• F (λ) e uma seccao de Ω+E(f) =

(x, y) ∈ RN+1 : x ∈ E e 0 < y < f(x)

.

• G(λ) e uma seccao de Ω−E(f) =

(x, y) ∈ RN+1 : x ∈ E e 0 > y > f(x)

.

Concluımos de 3.3.8 que F (λ) e G(λ) sao L-mensuraveis, para quasetodo o λ > 0, e existe por isso uma sucessao λn ց λ ≥ 0 tais que F (λn) eG(λn) sao L-mensuraveis. E simples constatar que, se λn ց λ, entao

F (λ) =

∞⋃

n=1

F (λn), e G(λ) =

∞⋃

n=1

G(λn).

Concluımos que F (λ) e G(λ) sao L-mensuraveis, para qualquer λ ≥ 0.

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184 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

λ

R

RN

F (λ)

Figura 3.3.3: F (λ) = x ∈ RN : f(x) > λ e uma seccao da regiao deordenadas de f .

O teorema de Fubini-Lebesgue tem um enunciado mais simples para con-juntos e funcoes Borel-mensuraveis. Apresentaremos e demonstraremos maisadiante uma versao abstracta deste teorema esclarecendo esta observacao,mas introduzimos desde ja o seguinte resultado, que e relativamente facil deprovar (exercıcio 3).

Teorema 3.3.21. Se E e B-mensuravel, os conjuntos Eti sao B-mensura-

veis, para todo o t ∈ RK . Se f : E → R e B-mensuravel, entao os conjuntosF (λ) = x ∈ E : f(x) > λ e G(λ) = x ∈ E : f(x) < −λ sao B-mensu-raveis para qualquer λ ≥ 0.

Observe-se de passagem que os conjuntos F (λ) e G(λ) sao imagens in-versas de intervalos de tipo especial, ou seja,

F (λ) = f−1 (]λ,+∞]) e G(λ) = f−1([−∞,−λ[).

Estudaremos na proxima seccao a classe de conjuntos cuja imagem inversapor uma funcao mensuravel e mensuravel. O exercıcio 6 desta seccao indicapara ja outros tipos de intervalos que pertencem a essa classe.

Exercıcios.

1. Send f somavel em E, prove que as seguintes afirmacoes sao equivalentes:

a) f ≃ 0 em E.

b)∫

F fdmN = 0, para qualquer conjunto L-mensuravel F ⊆ E.

2. Conclua a demonstracao do teorema de Fubini-Lebesgue, generalizando oresultado para conjuntos de medida infinita.

3. Demonstre o teorema 3.3.21. sugestao: Mostre que a classe dos conjuntosE ⊆ RN tais que as seccoes Et

I sao Borel-mensuraveis e uma σ-algebra quecontem os abertos.

4. Mostre que χE e B-mensuravel se e so se E e B-mensuravel. Aproveite paramostrar que existem funcoes Riemann-integraveis que nao sao Borel-mensura-veis e funcoes f ≃ 0 em R que nao sao Borel-mensuraveis.

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3.3. O Teorema de Fubini-Lebesgue 185

5. Sendo f : RN → [0,+∞] L-mensuravel, e F (λ) = x ∈ RN : f(x) > λ,definimos φ(λ) = mN (F (λ)) para λ ≥ 0. Mostre que φ e L-mensuravel, e

∫ ∞

0

φdm =

RN

fdmN .

Prove que se f e somavel entao λφ(λ) ≤ A <∞.

6. Sendo f : E → R mensuravel, mostre que os seguintes conjuntos sao mensu-raveis.

a) f−1([λ,+∞]) e f−1([−∞,−λ]), se λ > 0.

b) f−1(λ) (que e um conjunto de nıvel de f), se λ 6= 0.

c) A imagem inversa f−1(I) de qualquer intervalo I ⊆ R, desde que 0 6∈ I.

sugestao: No caso em que f e B-mensuravel, deve usar o teorema 3.3.21.

7. Seja f : E → R uma funcao mensuravel em E, e S = x ∈ E : f(x) 6= 0.a) Prove que S e mensuravel.

b) Prove que f e mensuravel em F ⊆ E se e so se F = A ∪N , onde A ⊆ Se mensuravel, e N ∩ S = ∅.

c) Suponha que f ≥ 0 em E, e mostre que o integral indefinido de f e umamedida regular em Lf (E) = A ⊆ E : f e L-mensuravel em A.falso!

8. Considere a funcao f : RN → [0,+∞[ dada por f(x) = e−|x|2 . Calcule∫RN fdmN . sugestao: Considere primeiro o caso N = 2.

9. Calcule o integral∫

RN |x|2e−|x|2dmN .

10. Suponha que f : RN → R e somavel, seja λ o respectivo integral indefinido,e En = x ∈ RN : f(x) > n.

a) Prove que mN (En) → 0, e λ(En) → 0, quando n→ ∞.

b) Mostre que para qualquer ε > 0 existe δ > 0 tal que

mN (E) < δ =⇒∣∣∣∣∫

E

fdmN

∣∣∣∣ ≤∫

E

|f |dmN < ε.

c) Suponha que N = 1, e F (x) =∫ x

−∞ fdm. Mostre que para qualquerε > 0 existe δ > 0 tal que, se os intervalos Ik =]xk, yk[ sao disjuntos,1 ≤ k ≤ n,(10)

n∑

k=1

(yk − xk) < δ =⇒n∑

k=1

|F (yk) − F (xk)| < ε.

10Esta propriedade e mais forte do que a continuidade uniforme, como os exemplos emd) e e) mostram, e foi primeiro observada por Harnack, ainda no seculo XIX, a propositode integrais improprios absolutamente convergentes. Diz-se continuidade absoluta,conforme proposto por Vitali em 1905.

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186 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

d) Verifique que a funcao dada por f(x) = x sen(1/x) para x 6= 0 nao verificaa propriedade descrita na alınea anterior no intervalo ]0, 1].

e) Verifique que a “escada do diabo”, que e uniformemente contınua em R,nao verifica a propriedade referida no intervalo [0, 1].

3.4 Funcoes Mensuraveis

y1

y2

y3

y4

E1

E3

E2

E4

f

s

Figura 3.4.1: Aproximacao do integral de f por uma soma finita.

Os integrais de Lebesgue podem ser aproximados por somas finitas, quegeneralizam as somas inferiores de Darboux referidas no Capıtulo 1. Curio-samente, a tecnica utilizada, descoberta por Lebesgue e ilustrada na figura3.4.1, utiliza, tal como na teoria de Riemann, particoes em intervalos, masagora no contradomınio da funcao f . Sendo f : E → [0,+∞] uma funcaomensuravel, onde E ⊆ RN , consideramos uma particao finita 0 < y1 ≤y2 ≤ · · · ≤ yn < +∞ do intervalo [0,+∞]. Recordamos que os conjuntosF (λ) = x ∈ E : f(x) > λ sao mensuraveis quando λ ≥ 0, e definimos osconjuntos (ver figura 3.4.1):

Ek =

F (yk)\F (yk+1) = x ∈ E : yk < f(x) ≤ yk+1, se 1 ≤ k < n

F (yn) = x ∈ E : yn < f(x), se k = n.

Os conjuntos Ek ⊆ RN sao claramente mensuraveis e disjuntos. Considera-mos igualmente os correspondentes conjuntos Rk = Ek×]0, yk[⊆ RN+1, queestao contidos na regiao de ordenadas Ω de f . Como a medida de Rk e dadapor mN+1(Rk) = ykmN (Ek) e estes conjuntos sao tambem disjuntos, deve

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3.4. Funcoes Mensuraveis 187

ser evidente que

mN+1

(n⋃

k=1

Rk

)≤ mN+1(Ω), i.e.,

n∑

k=1

mN+1(Rk) =n∑

k=1

ykmN (Ek) ≤∫

Ef.

A soma∑n

k=1 ykmN (Ek)(11) e na verdade um integral de Lebesgue de

uma funcao de tipo muito especial. Definindo s : E → R por

s(x) =

yk, se x ∈ Ek

0, se x 6∈n⋃

k=1

Ek

,

e claro que s e mensuravel em E, porque⋃n

k=1Rk e a regiao de ordenadasde s em E, e temos por isso

Es = mN+1

(n⋃

k=1

Rk

)=

n∑

k=1

mN+1(Rk) =

n∑

k=1

ykmN (Ek).

A funcao s aproxima f por defeito, e e o que chamamos uma

Definicao 3.4.1 (Funcao simples). Se E ⊆ S ⊆ RN , e s : S → R, entaodizemos que s e uma funcao simples em E se e so se s assume um numerofinito de valores em E, i.e., se e so se o conjunto s(E) e finito.

Quando s e uma funcao simples em E entao s assume nesse conjunto nvalores distintos α1 < α2 < · · · < αn e os conjuntos Ak = x ∈ E : s(x) =αk sao disjuntos. Mais geralmente, diremos que os conjuntos disjuntosE1, E2, · · · , Em formam uma particao apropriada a funcao simples s see so se s e constante em cada um dos conjuntos Ek, e e nula fora da suauniao. Neste caso, s e uma combinacao linear das funcoes caracterısticasdos conjuntos Ek (restritas a E), porque se s(x) = βk quando x ∈ Bk entao

s =

m∑

k=1

βkχEk.

As funcoes simples mensuraveis podem caracterizar-se da seguinte forma:

Lema 3.4.2. Se s e simples em E, entao s e mensuravel em E se e soexiste uma particao apropriada a s formada por conjuntos mensuraveis.

Demonstracao. Seja s simples e mensuravel. Se s e nula nada temos aprovar, e supomos assim que s assume n valores nao nulos α1 < α2 < · · · <αn, alem de poder eventualmente assumir tambem o valor zero. Sendo

11As somas de Darboux mencionadas anteriormente sao tambem somas da forma∑n

k=1ykmN(Ek), mas nesse caso os conjuntos Ek sao rectangulos limitados.

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188 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Ak = x ∈ E : s(x) = αk, os conjuntos A1, A2, · · · , An formam umaparticao apropriada a s, porque sao disjuntos e s e nula fora desses conjun-tos. Sabemos do teorema de Fubini-Lebesgue que as seccoes da regiao deordenadas de s sao mensuraveis, e e facil verificar que neste caso os conjuntosAk sao mensuraveis.Supomos agora que existe uma particao apropriada a s formada pelos con-juntos mensuraveis disjuntos E1, E2, · · · , Em tais que s(x) = βk quandox ∈ Ek. A regiao de ordenadas de s em E e dada por

ΩE(s) =m⋃

k=1

Rk, onde Rk = Ek × Ik e Ik =

]0, βk [, se βk > 0∅, se βk = 0, e]βk, 0[, se βk < 0.

Concluımos que ΩE(s) e uma uniao finita de conjuntos mensuraveis Rk, e emensuravel, assim como a funcao s.

Quando s e uma funcao simples mensuravel, passamos a dizer que P =A1, A2, · · · , An e uma particao apropriada a funcao s apenas quandoP e formada por conjuntos mensuraveis. Para evitar a introducao de ındicessuperfluos, designaremos o valor da funcao s no conjunto c ∈ P por sc.

Exemplos 3.4.3.

1. A funcao de Dirichlet e uma funcao simples mensuravel, porque e a funcaocaracterıstica do conjunto mensuravel Q.

2. Mais geralmente, as funcoes simples mensuraveis sao combinacoes linearesfinitas de funcoes caracterısticas de conjuntos mensuraveis.

Os integrais de Lebesgue de funcoes simples mensuraveis sao efectiva-mente somas finitas semelhantes a somas de Darboux.

Proposicao 3.4.4. Seja s : E → R simples e mensuravel em E ⊆ RN . SeP e uma particao apropriada a s entao:

a) s e somavel em E se e so se∑

c∈P

|sc|mN (c) < +∞.

b) Se o integral de s em E existe, em particular se s ≥ 0 qtp em E, ouse s e somavel em E, entao

EsdmN =

c∈P

scmN (c).

Demonstracao. Se s e uma funcao simples nao-negativa, o conjunto Ω−E(s)

e vazio, e o conjunto Ω+E(s) e a uniao (finita) dos produtos cartesianos dis-

juntos Rc = c×]0, sc[, onde supomos sem perda de generalidade que sc > 0para c ∈ P. Temos neste caso

mN+1(Rc) = mN+1 (c×]0, sc[) = mN (c)m1(]0, sc[) = scmN (c).

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3.4. Funcoes Mensuraveis 189

sc

sc′

sc′′

c c′

c′′

Rc

Rc′

Rc′′

mN (c)

Figura 3.4.2: mN+1(Rc) = |sc|mN (c)

Concluımos que

EsdmN = mN+1(

c∈P

Rc) =∑

c∈P

mN+1(Rc) =∑

c∈P

scmN (c).

Deixamos as restantes afirmacoes para o exercıcio 1.

Exemplo 3.4.5.

Num caso como o da figura 3.4.1, existe uma particao P apropriada a funcaos ≤ f formada por rectangulos limitados r, e o integral de s e uma soma(inferior) de Darboux de f , ja que

r∈PαrmN(r) =

r∈PαrcN (r), onde αr = inff(x) : x ∈ r.

As seguintes propriedades elementares das funcoes simples mensuraveis,e do respectivo integral de Lebesgue, sao muito faceis de estabelecer e seraodepois generalizadas a outras funcoes mensuraveis.

Proposicao 3.4.6. Seja E ⊆ RN , c ∈ R, e s, t : S → R funcoes simplesmensuraveis em E. Temos entao:

a) cs, s+, s−, |s|, s+ t, e st sao simples, e mensuraveis em E.

Se s e t sao nao-negativas em E, ou se s e t sao somaveis em E, temosainda

b) Aditividade:

E(s+ t)dmN =

EsdmN +

EtdmN .

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190 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

c) Homogeneidade:

E(cs)dmN = c(

EsdmN ).

Demonstracao. Sejam P e Q particoes apropriadas, respectivamente, a s ea t. A particao P e apropriada a qualquer uma das funcoes cs, s+, s−, e |s|,que sao, por isso, simples e mensuraveis. Sendo

A =⋃

r∈P

r ⊇ x ∈ E : s(x) 6= 0, B =⋃

r∈Q

r ⊇ x ∈ E : t(x) 6= 0,

juntamos o conjunto B\A (onde s = 0) a P para formar P ′ e juntamos A\B(onde t = 0) a Q para formar Q′. O refinamento comum R = p ∩ q : p ∈P ′, q ∈ Q′ e uma particao apropriada as funcoes s + t e st, que sao, porisso, simples e mensuraveis.

Se s e t sao nao-negativas, e c ≥ 0, entao s + t e cs sao, tambem, nao-negativas. Segue-se de 3.4.4 b) que:

(i)

E(s+ t)dmN =

r∈R

(s+ t)rmN (r) =∑

r∈R

(sr + tr)mN (r) =

r∈R

srmN (r) +∑

r∈R

trmN (r) =

EsdmN +

EtdmN .

Se s e t sao somaveis entao |s+ t| e somavel, porque |s + t| ≤ |s| + |t|, e

E|s+ t| dmN ≤

E(|s| + |t|) dmN =

E|s| dmN +

E|t| dmN ,

de acordo com (i). Concluımos, novamente de 3.4.4 b), que (i) tambem evalida para funcoes simples somaveis.

O proximo teorema introduz uma outra caracterizacao das funcoes mensu-raveis, e permite com frequencia estabelecer propriedades destas funcoes porgeneralizacao das correspondentes propriedades das funcoes simples mensu-raveis. De acordo com este resultado,

as funcoes mensuraveis sao limites pontuais de sucessoes de funcoessimples mensuraveis.

Teorema 3.4.7. Se f : E → R, onde E ⊆ RN , entao f e mensuravelem E se e so existe uma sucessao de funcoes simples mensuraveis em E,sn : E → R tais que sn(x) → f(x), e |sn(x)| ր |f(x)|, para qualquer x ∈ E.Neste caso, se f ≥ 0 ou se f e somavel temos ainda que

EsndmN →

EfdmN .

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3.4. Funcoes Mensuraveis 191

Demonstracao. Se existe uma sucessao de funcoes simples mensuraveis sn,tais que sn(x) → f(x), para qualquer x ∈ E, entao f e mensuravel, deacordo com o teorema 3.2.2. Como |sn(x)| ր |f(x)|, aplicamos o Teoremade Beppo Levi (se f ≥ 0) ou o Teorema da Convergencia Dominada deLebesgue (se f e somavel) para obter

EsndmN →

EfdmN .

Supomos, portanto, que f e mensuravel em E, e passamos a definir a su-cessao de funcoes simples mensuraveis sn em causa. Consideramos primei-ro o caso f ≥ 0, e recordamos do inıcio desta seccao que, dados pontos0 < y1 < · · · < ym < +∞, e facil determinar uma funcao simples mensuravels ≤ f tomando

s =

m∑

k=1

ykχEk, onde Ek = f−1(]yk, yk+1]) se k < m e Em = f−1(]ym,+∞]).

Escrevendo P = y1, y2, · · · , ym, designamos por ∆(P) o maximo compri-mento dos intervalos [yk, yk+1], ou seja, ∆(P) = maxyk+1−yk : 1 ≤ k < m.Definimos aqui a sucessao de funcoes sn a partir de uma sucessao apropriadade particoes Pn = yn,k : 1 ≤ k ≤ mn, onde 0 < yn,k < yn,k+1. Os detalhesda definicao de Pn sao em larga medida irrelevantes, e para efeitos destademonstracao e apenas necessario garantir que:

(1) As particoes Pn resultam de sucessivos refinamentos, i.e., Pn ⊂ Pn+1,

(2) maxPn ր +∞ e minPn ց 0, e

(3) ∆(Pn) → 0.

Estas condicoes sao satisfeitas tomando, por exemplo,

minPn =1

2n,maxPn = n e yn,k =

k

2n, 1 ≤ k ≤ n2n, donde mn = n2n.

Por outras palavras, dividimos o intervalo ]0, n] em n2n subintervalos decomprimento 1

2n , do tipo ] k2n ,

k+12n ], onde 0 ≤ k < n2n. A correspondente

funcao sn : E → [0,+∞[ e dada por

sn =n2n∑

k=1

k

2nχEn,k

, com En,k =

x ∈ E : k2n < f(x) ≤ k+1

2n , se k < n2n

x ∈ E : f(x) > n, se k = n2n

As funcoes sn sao simples e mensuraveis, e e quase evidente que

(4) Como Pn ⊂ Pn+1, temos sn(x) ≤ sn+1(x) para qualquer x ∈ E.

Para mostrar que sn(x) → f(x), consideramos os seguintes casos:

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192 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

(5) Se f(x) = 0, entao sn(x) = 0 → 0 = f(x).

(6) Se f(x) = +∞, entao sn(x) = n→ +∞ = f(x).

(7) Se 0 < f(x) < +∞ e n > f(x) existe k < n2n tal que

k

2n< f(x) ≤ k + 1

2n, donde sn(x) ≤ f(x) < sn(x)+

1

2ne sn(x) → f(x).

Concluımos de (4) a (7) que sn(x) ր f(x) para qualquer x ∈ E.

Se f : E → R e mensuravel, existem funcoes simples mensuraveisun(x) ր f+(x) e vn(x) ր f−(x), donde sn(x) = un(x) − vn(x) → f(x)para qualquer x ∈ E. E claro que

|sn(x)| = |un(x) − vn(x)| = un(x) + vn(x) ր f+(x) + f−(x) = |f(x)|.

Sublinhe-se que a demonstracao do teorema anterior nao usa directamente amensurabilidade da funcao f , mas apenas a mensurabilidade dos conjuntosf−1(]λ,+∞]) e f−1([−∞,−λ[) para λ > 0. Podemos por isso provar

Lema 3.4.8. Se f : E → R, onde E ⊆ RN , entao as seguintes afirmacoessao equivalentes:

a) f e mensuravel em E,

b) f−1(]λ,+∞]) e f−1([−∞,−λ[) sao mensuraveis para qualquer λ > 0,

c) Existem funcoes simples mensuraveis sn : E → R tais que sn(x) →f(x) para qualquer x ∈ E.

Demonstracao. Notamos apenas que

• a) ⇒ b), de acordo com 3.3.20 e 3.3.21.

• b) ⇒ c), de acordo com a demonstracao do teorema 3.4.7.

• c) ⇒ a), de acordo com 3.2.2.

Passamos a estabelecer diversas propriedades basicas da classe das funcoesmensuraveis e do integral de Lebesgue. Baseamo-nos aqui em larga medidana aproximacao de integrais de Lebesgue por integrais de funcoes simples,que como ja dissemos substitui a aproximacao de integrais de Riemann porsomas de Darboux.

Teorema 3.4.9. Se f, g : E → R sao mensuraveis em E e c ∈ R, entao

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3.4. Funcoes Mensuraveis 193

a) As funcoes fg e cf sao mensuraveis em E.

b) As funcoes f + g e f − g sao mensuraveis nos conjuntos onde estaodefinidas. Em particular,

c) Se f, g ≥ 0 em E, entao f + g e mensuravel em E.

d) Se f e g sao finitas em E, entao f + g e f − g sao mensuraveis em E.

Demonstracao. Existem funcoes simples mensuraveis sn, tn tais que

sn(x) → f(x), tn(x) → g(x), |sn(x)| ր |f(x)|, e |tn(x)| ր |g(x)|.

Temos sn(x)tn(x) → f(x)g(x), para qualquer x ∈ E, ja que a indeter-minacao 0 × ∞ pode ser trivialmente levantada(12). Concluımos que fge uma funcao mensuravel em E. Temos tambem csn(x) → cf(x), paraqualquer x ∈ E, o que termina a verificacao de a).

Os casos da soma e da diferenca sao semelhantes, e ilustramos o tipo deargumento necessario com a soma, que esta definida em E\F , onde

F = x ∈ E : |f(x)| = ∞, e g(x) = −f(x) .

Deixamos para o exercıcio 7 verificar que o conjunto F e mensuravel. Supo-mos as funcoes sn e tn definidas como na demonstracao de 3.4.7, e observa-mos que

• Quando x ∈ E\F , e obvio que sn(x) + tn(x) → f(x) + g(x).

• Quando x ∈ F , temos f(x) = +∞ e g(x) = −∞, ou f(x) = −∞e g(x) = +∞. No primeiro caso, sn(x) = n e tn(x) = −n, e nosegundo caso sn(x) = −n e tn(x) = n. Em ambos os casos, temossn(x) + tn(x) = 0 → 0.

Concluımos que sn(x) + tn(x) → h(x) para qualquer x ∈ E, onde h emensuravel em E e a funcao f + g e a restricao de h a E\F . Como h e nulafora de E\F , temos ainda que h = f + g e mensuravel em E\F .

As afirmacoes c) e d) sao consequencias evidentes de b).

A aditividade e homogeneidade do integral, estabelecidas em 3.4.6 paraas funcoes simples, podem ser generalizadas como se segue.

Teorema 3.4.10. Sejam f, g : E → R mensuraveis em E, e c ∈ R. Sef, g ≥ 0 em E, ou se f e g sao finitas e somaveis em E, entao

a) Aditividade:

E(f + g)dmN =

EfdmN +

EgdmN .

12Recorde que fg esta definido em E, e convencionamos que 0 × (±∞) = 0.

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194 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

b) Homogeneidade:

E(cf)dmN = c

(∫

EfdmN

).

Demonstracao. De acordo com o teorema 3.4.7, existem funcoes simplesmensuraveis sn e tn tais que sn(x) → f(x), tn(x) → g(x), |sn(x)| ր |f(x)|e |tn(x)| ր |g(x)|. Por outro lado, a aditividade do integral de funcoessimples (estabelecida na proposicao 3.4.6) permite-nos concluir que

(1)

E(sn + tn)dmN =

EsndmN +

EtndmN →

EfdmN +

EgdmN .

Para terminar a verificacao de a), basta-nos mostrar que

(2)

E(sn + tn)dmN →

E(f + g)dmN .

Notamos que sn + tn → f + g para qualquer x ∈ E, e dividimos a demon-stracao de (2) em dois casos:

(i) Se f e g sao nao-negativas, entao sn + tn ր f +g, e (2) e consequenciada propriedade de Beppo Levi.

(ii) Se as funcoes f e g sao somaveis, entao |sn+tn| ≤ |sn|+ |tn| ≤ |f |+ |g|,e a funcao |f | + |g| e somavel, porque, de acordo com (i),

E(|f | + |g|)dmN =

E|f |dmN +

E|g|dmN <∞.

A afirmacao (2) resulta agora do teorema da convergencia dominadade Lebesgue.

A propriedade de homogeneidade pode provar-se para qualquer funcaof para a qual exista o respectivo integral de Lebesgue (exercıcio 5).

Provamos a aditividade do integral para funcoes somaveis apenas quandoestas sao finitas na regiao de integracao, mas esta restricao e em certo sentidosuperflua. Qualquer funcao somavel e finita qtp, e portanto a soma f + gesta definida, e e mensuravel e finita em F ⊆ E, onde mN (E\F ) = 0. Se he mensuravel em E e h ≃ f + g em F , e evidente que

EhdmN =

FhdmN =

F(f + g)dmN =

=

FfdmN +

FgdmN =

EfdmN +

EgdmN .

Veremos na proxima seccao como tornear estas dificuldades usando classesde equivalencia determinadas pela relacao “≃”.

Registe-se ainda o seguinte corolario do teorema 3.4.7:

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3.4. Funcoes Mensuraveis 195

Corolario 3.4.11. Se f e somavel em E ⊆ RN e ε > 0 existe uma funcao

s, simples e somavel em E, tal que

E|f − s|dmN < ε.

Demonstracao. Como vimos em 3.4.7, existem funcoes simples mensuraveissn tais que sn → f , e |sn| ≤ |f |. A funcao |f − sn| esta definida e emensuravel em E, e e tambem somavel, porque

|f − sn| ≤ |f | + |sn| ≤ 2|f |.

Como |f − sn| → 0, segue-se do teorema da convergencia dominada que∫E |f − sn|dmN → 0, o que conclui a demonstracao.

Os dois resultados seguintes sao ainda consequencias do teorema 3.4.7.O primeiro e um complemento interessante do teorema 3.2.2, e a sua de-monstracao e referida nos exercıcios 8 e 9. A demonstracao do segundo estaesbocada no exercıcio 10.

Teorema 3.4.12. Se as funcoes fn : E → R sao mensuraveis em E ⊆ RN ,F ⊆ E e o conjunto onde existe lim

n→∞fn(x) e f(x) = lim

n→∞fn(x) para x ∈ F ,

entao f e mensuravel em F .

Teorema 3.4.13. f : E → R e L-mensuravel em E se e so se existe umafuncao g : E → R, B-mensuravel em E, tal que g ≃ f em E.

A definicao de “funcao mensuravel” que usamos ate aqui e a definicaooriginal de Lebesgue, mas nao e a unica possıvel, e e util conhecer e exploraroutras alternativas. Recorde-se do lema 3.4.8 que f : E → R e mensuravelse e so se, para qualquer λ > 0,

f−1(A) e mensuravel quando A =]λ,∞] e quando A = [−∞,−λ[.

Propomo-nos agora estudar a classe dos conjuntos A ⊆ R com imageminversa f−1(A) mensuravel, e comecamos com um lema abstracto.

Lema 3.4.14. Seja (X,M) um espaco mensuravel, E ∈ M um conjuntoM-mensuravel, Y um conjunto qualquer, e f : E → Y uma funcao. Se

A =A ⊆ Y : f−1(A) ∈ M

,

entao A e uma σ-algebra em Y .

Demonstracao. Basta-nos observar que:

• Como f−1(Y ) = E ∈ M, temos Y ∈ A.

• f−1(Ac) = E\f−1(A), donde A ∈ A ⇒ Ac ∈ A.

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196 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

• f−1

(∞⋃

n=1

An

)=

∞⋃

n=1

f−1(An) e, por isso,

An ∈ A ⇒ f−1(An) ∈ M ⇒∞⋃

n=1

f−1(An) ∈ M ⇒∞⋃

n=1

An ∈ A.

Este lema pode ser aplicado a funcoes f : E → R, supondo que E ⊆ RN

e mensuravel, e conduz facilmente a

Teorema 3.4.15. Seja E ⊆ RN um conjunto mensuravel. Se f : E → R,entao as seguintes condicoes sao equivalentes:

a) x ∈ E : f(x) > λ e mensuravel, para qualquer λ ∈ R.

b) f−1(I) e mensuravel, para qualquer intervalo I ⊆ R.

c) f e mensuravel em E.

Demonstracao. A classe A = A ⊆ R : f−1(A) e mensuravel e uma σ-algebra em R, pelo lema 3.4.14.

a) ⇒ b): A σ-algebra A contem os intervalos ]λ,∞], para qualquer λ ∈ R.Portanto contem igualmente:

• Os intervalos ]α, β] =]α,∞]\[β,∞], para quaisquer α, β ∈ R.

• Os conjuntos β =

∞⋂

n=1

]β − 1

n, β], para qualquer β ∈ R.

Deixamos como exercıcio mostrar que A contem todos os intervalos I ⊆ R.

b) ⇒ c): A σ-algebra A contem evidentemente os intervalos [−∞,−λ[ e]λ,∞], para qualquer λ. Concluımos do lema 3.4.8 que f e mensuravel emE.

c) ⇒ a): Sabemos de 3.4.8 que a σ-algebra A contem os intervalos[−∞,−λ[ e ]λ,∞], para qualquer λ > 0. Deixamos como exercıcio mostrarque A contem os intervalos da forma ]λ,∞], para qualquer λ ∈ R.

O resultado anterior pode tambem ser adaptado como se segue.

Teorema 3.4.16. Se E ⊆ RN e mensuravel e f : E → RM , entao f emensuravel se e so se f−1(B) e mensuravel, para qualquer B ∈ B(RM).

Demonstracao. Consideramos novamente a classe

A =B ⊆ RM : f−1(B) e mensuravel

.

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3.4. Funcoes Mensuraveis 197

Supomos primeiro que f = (f1, f2, · · · , fM ) e mensuravel: Seja B = I1 ×I2 × · · · × IM um rectangulo aberto, onde os conjuntos Ik sao intervalosabertos. Como cada funcao fk e mensuravel, temos

f−1(B) = x ∈ E : fk(x) ∈ Ik, 1 ≤ k ≤ n =

M⋂

k=1

f−1k (Ik) e mensuravel.

Concluımos que a σ-algebra A contem todos os rectangulos abertos, e con-sequentemente, todos os conjuntos Borel-mensuraveis.

Supomos agora que f−1(B) e mensuravel, para qualquer B ∈ B(RM ): SendoB = I1 × I2 × · · · × IM , onde Ik = R, para k 6= j, e Ij = I e um intervaloarbitrario, o conjunto B e B-mensuravel, e portanto f−1(B) e mensuravel.Como

f−1(B) = x ∈ E : fk(x) ∈ Ik =

M⋂

k=1

f−1k (Ik) = f−1

j (I),

concluımos que fj e mensuravel, para qualquer j, donde f e mensuravel.

Podemos ainda mostrar que a composicao de uma funcao B-mensuravelcom qualquer funcao mensuravel e mensuravel:

Corolario 3.4.17. Seja E ⊆ RN mensuravel e f = (f1, f2, · · · , fM) : E →RM mensuravel em E. Se g : RM → R e B-mensuravel em RM , entao acomposta h = g f e mensuravel em E.

Demonstracao. Se A ⊆ R e B-mensuravel, entao B = g−1(A) e B-mensura-vel, e portanto h−1(A) = f−1(g−1(A)) = f−1(B) e mensuravel, e a funcaoh e mensuravel.

E muito comum usar a afirmacao a) no teorema 3.4.15 como a definicaode “funcao mensuravel”, supondo que a funcao em causa esta definida numconjunto mensuravel. Esta alternativa tem as seguintes vantagens:

• Torna evidente que as funcoes contınuas sao Borel-mensuraveis,

• E directamente aplicavel a funcoes f : E → RM , mesmo quando E ⊆X, onde (X,M) e um espaco mensuravel “arbitrario”.

O seu principal inconveniente, e uma das razoes pela qual nao foi aqui adop-tada, e a de obscurecer as relacoes muito directas que existem entre as nocoesde mensurabilidade para conjuntos, e para funcoes, e entre as nocoes de me-dida para conjuntos, e integral para funcoes. Veremos no Capıtulo 5 como adefinicao 3.1.1, que adoptamos neste texto, pode ser generalizada para umqualquer espaco de medida (X,M, µ).

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198 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Aproveitamos para estabelecer uma versao da desigualdade de Jensen(13).Recordamos para isso alguns factos elementares relacionados com as nocoesde convexidade, e concavidade, tais como se aplicam a funcoes reais devariavel real.

f

g

xx yy αx + (1 − α)yαx + (1 − α)y

f(x)

f(y)

f(αx+ (1 − α)y)

g(x)

g(y)

g(αx+ (1 − α)y)αf(x) + (1 − α)f(y)

αg(x) + (1 − α)g(y)

Figura 3.4.3: f (a esquerda) e convexa, g (a direita) e concava.

Definicao 3.4.18 (Funcoes Convexas, Concavas). Se f : I → R estadefinida num intervalo I ⊆ R, entao f e convexa em I se e so se

s, t ∈ I, α, β ≥ 0, e α+ β = 1 =⇒ f(αs+ βt) ≤ αf(s) + βf(t).

A funcao f diz-se concava se e so se −f e convexa.(14)

O significado geometrico destas definicoes e ilustrado na figura 3.4.3: fe convexa se e so se o seu grafico esta sob qualquer uma das suas cordas, econcava se o seu grafico esta sobre as respectivas cordas.

Deixamos para o exercıcio 14 a demonstracao do seguinte resultado aux-iliar:

Lema 3.4.19. Se f e convexa no intervalo aberto I entao f e contınua emI e

Se x < y < z ∈ I, entaof(y) − f(x)

y − x≤ f(z) − f(y)

z − y.

Teorema 3.4.20 (Desigualdade de Jensen). Seja I ⊆ R um intervalo abertoe φ uma funcao real convexa em I. Se E ⊆ RN , mN (E) <∞, f : E → R esomavel em E e f(E) ⊆ I, entao

φ

(1

mN (E)

EfdmN

)≤ 1

mN (E)

Eφ(f)dmN .

13De Johan Jensen, 1859-1925, matematico dinamarques.14z = αs+βt diz-se uma combinacao convexa de s e t. Note-se que se f tem segunda

derivada f ′′ entao e concava se e so se f ′′ ≤ 0.

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3.4. Funcoes Mensuraveis 199

Demonstracao. Definimos

α =1

mN (E)

Ef(x)dmN e K = inf

y>α

φ(y) − φ(α)

y − α.

Supondo que x < α < y, segue-se facilmente do lema 3.4.19 que

φ(α) − φ(x)

α− x≤ K ≤ φ(y) − φ(α)

y − α.

Temos assim que φ(y) − φ(α) ≥ K(y − α), para qualquer y ∈ R. Tomandoagora y = f(x), concluımos que

φ(f(x)) ≥ φ(α) +K(f(x) − α), para qualquer x ∈ R.

A funcao φ f e mensuravel, pelo corolario 3.4.17, e e facil verificar que oseu integral em E esta definido. Temos portanto:

Eφ(f(x))dmN ≥ φ(α)mN (E) +K

E(f(x) − α)dmN = φ(α)mN (E).

Exercıcios.

1. Complete a demonstracao de 3.4.4.

2. Mostre que as funcoes simples mensuraveis em RN formam o menor espacovectorial que contem as funcoes caracterısticas dos conjuntos mensuraveis.

3. Suponha que f : E → R e mensuravel, e finita qtp. Mostre que existe umafuncao mensuravel g : E → R tal que f ≃ g.

4. Seja s : RN → R uma funcao simples mensuravel nao-negativa, ou somavel,em RN . Supondo que s assume os valores α1, α2, · · · , αn, respectivamente, nosconjuntos mensuraveis A1, A2, · · · , An, e E ∈ L(RN ), mostre que

E

sdmN =n∑

k=1

αkmN (Ak ∩ E).

5. Mostre que se o integral de Lebesgue∫

EfdmN existe e c ∈ R entao o integral∫

E

(cf)dmN tambem existe, e

E

(cf)dmN = c

(∫

E

fdmN

).

6. Sendo f : R → R L-mensuravel e diferenciavel qtp, mostre que a derivada f ′

e L-mensuravel.

7. Mostre que o conjunto F referido na demonstracao de 3.4.9 e mensuravel.

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200 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

8. Sendo f, g : E → R mensuraveis, mostre que D = x ∈ E : f(x) 6= g(x) emensuravel, e que se E e mensuravel entao x ∈ E : f(x) = g(x) e tambemmensuravel. sugestao: Mostre que existe uma funcao mensuravel h : E → R

tal que D = x ∈ E : h(x) 6= 0.

9. Demonstre o teorema 3.4.12. Mostre que o conjunto onde o limite existe emensuravel, desde que o conjunto E seja mensuravel. sugestao: Aplique oexercıcio anterior as funcoes lim sup

n→∞fn e lim inf

n→∞fn.

10. Mostre que f e L-mensuravel em E se e so se existe uma funcao g, B-mensuravel em E, tal que f ≃ g em E. sugestao: Existem funcoes simplesL-mensuraveis sn tais que sn(x) → f(x) para qualquer x ∈ E. Observeque existem funcoes simples B-mensuraveis tn tais que sn ≃ tn em E, dondetn(x) → f(x) qtp em E.

11. Conclua a demonstracao de 3.4.15.

12. Sendo f : RN → RM

mensuravel, e g(x) = |f(x)|, prove que g e mensura-vel. Supondo que o integral a esquerda existe, demonstre ainda a desigualdadetriangular, na forma: ∣∣∣∣

E

fdmN

∣∣∣∣ ≤∫

E

|f | dmN .

13. Prove que se E ⊆ RN , e f : E → [0,+∞] e mensuravel em E, entao∫

E

fdmN = sup

E

sdmN : s simples e mensuravel, com s ≤ f

.

14. Demonstre o lema 3.4.19. sugestao: Sendo m(u, v) o declive da corda quepassa pelos pontos do grafico de f com abcissas u e v, observe que m(x, y) ≤m(x, z) ≤ m(y, z).

15. A funcao φf referida na demonstracao do teorema 3.4.20 e necessariamentesomavel em E? O seu integral esta sempre definido?

3.5 Funcoes Somaveis

O estudo das funcoes finitas qtp e simplificado identificando (i.e., tratandocomo um unico objecto) funcoes mensuraveis que diferem entre si num con-junto de medida nula. Esta identificacao resume-se a considerar, no lugar doespaco de todas as funcoes mensuraveis e finitas qtp f : E → R, o respectivoconjunto quociente pela relacao “≃”, que designaremos aqui F(E). Poroutras palavras, se F (E) e o conjunto de todas as funcoes mensuraveis efinitas qtp f : E → R, e se para f ∈ F (E) temos [f ] = g ∈ F (E) : g ≃ fentao

F(E) =F (E)

≃ = [f ] : f ∈ F (E) .

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3.5. Funcoes Somaveis 201

Dadas classes de equivalencia [f ], [g] ∈ F(E), existem representantes f ∈ [f ]e g ∈ [g], i.e., funcoes f ≃ f e g ≃ g, tais que f , g : E → R, e podemospor isso definir [f ] + [g] = [f + g]. Se c ∈ R, podemos definir directamentec[f ] = [cf ]. E muito simples verificar que, com estas operacoes algebricas,

Teorema 3.5.1. F(E) e um espaco vectorial.

Repare-se que se f : F → R e mensuravel e finita qtp em F ⊆ E, ondemN (E\F ) = 0, entao f determina uma unica classe em F(E), de acordocom a proposicao 3.1.5. Podemos por isso usar o sımbolo “[f ]”, mesmoquando f nao esta definida em todo o conjunto E. Em geral, escreveremosmesmo apenas f , no lugar de [f ]. Bem entendido, devemos sempre verificarque as nocoes que associamos a uma qualquer classe [f ] sao efectivamenteindependentes do representante f escolhido.

Exemplos 3.5.2.

1. A soma [f ]+ [g] = [f+g] esta bem definida, porque se f ≃ f∗ e g ≃ g∗ entaof + g ≃ f∗ + g∗. Repare-se que a soma [f ] + [g] esta bem definida, mesmo quea soma usual f + g esteja apenas definida qtp em E, o que resolve a questaoda soma de funcoes somaveis que mencionamos na seccao anterior.

2. E razoavel referirmo-nos a classes de equivalencia “somaveis”, e ao respectivointegral, porque se uma dada classe tem um representante somavel f , entaoqualquer outro representante da mesma classe e igualmente somavel, e tem omesmo integral. Em particular, o integral esta bem definido no conjunto dasclasses somaveis.

3. A convergencia pontual qtp esta tambem bem definida em F(E). Por outraspalavras,

f(x) = limn→∞

fn(x) qtp em E e fn ≃ fn =⇒ f(x) = limn→∞

fn(x), qtp em E.

Se as classes [f ] e [g] sao somaveis, e c ∈ R, e claro que [f + g] e [cf ] saosomaveis, i.e., as classes de funcoes somaveis formam um subespaco vectorialde F(E).

Definicao 3.5.3 (Espaco L1). L1(E) e formado pelas classes de funcoesf : E → R somaveis, i.e.,

L1(E) =

[f ] ∈ F(E) : ‖f‖1 =

E|f |dmN <∞

.

A funcao ‖[f ]‖1 = ‖f‖1 =∫E |f |dmN e uma norma em L1(E), e L1(E)

e um espaco vectorial normado, porque

• Se f, g ∈ L1(E), a desigualdade ‖f+g‖1 ≤ ‖f‖1+‖g‖1 e a desigualdadetriangular.

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202 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

• Se f ∈ L1(E) e c ∈ R, e obvio que ‖cf‖1 = |c|‖f‖1.

• ‖f‖1 = 0 ⇐⇒ f ≃ 0 ⇐⇒ [f ] = [0].

Como em qualquer espaco vectorial normado, uma sucessao de termogeral fn ∈ L1(E) diz-se

• convergente (em L1) se e so se existe f ∈ L1(E) tal que ‖fn − f‖1 →0, quando n→ ∞, e

• fundamental ou de Cauchy (em L1) se e so se ‖fn − fm‖1 → 0,quando n,m→ ∞.

De acordo com o teorema 3.4.10, podemos dizer que φ(f) =∫E fdmN

e um funcional linear em L1(E). E obvio da desigualdade triangularusual que

|φ(f) − φ(g)| = |φ(f − g)| =

∣∣∣∣

E(f − g) dmN

∣∣∣∣ ≤∫

E|f − g| dmN = ‖f − g‖1 ,

e portanto φ e tambem um funcional linear contınuo(15). O teoremada convergencia dominada de Lebesgue (3.2.8) pode ser reforcado como sesegue, e o exercıcio 6 revela que esta observacao nao e trivial.

Teorema 3.5.4 (Teorema da Convergencia Dominada de Lebesgue). Sendofn ∈ L1(E), suponha-se que

• Existe uma funcao somavel F : E → [0,+∞] tal que |fn(x)| ≤ F (x),qtp em E, e

• f(x) = limn→∞

fn(x), qtp em E.

Temos entao:

a) f ∈ L1(E),

b) fn → f em L1, e em particular,

c)

EfndmN →

EfdmN , quando n→ ∞.

Demonstracao. Podemos supor, sem perda de generalidade (porque?), que

• As funcoes fn e F sao finitas em E,

• f(x) = limn→∞

fn(x), para qualquer x ∈ E, e

• |fn(x)| ≤ F (x), tambem para qualquer x ∈ E.

15L1(E) e em geral um espaco vectorial de dimensao infinita, e como tal existem trans-formacoes lineares em L1(E) que nao sao contınuas.

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3.5. Funcoes Somaveis 203

f e L-mensuravel em E, e e somavel e finita em E porque |f(x)| ≤ F (x).Como as funcoes gn = |fn − f | satisfazem gn ≤ 2F , e lim

n→∞gn(x) = 0,

segue-se de 3.2.8 que

limn→∞

EgndmN = lim

n→∞

E|fn − f |dmN = 0.

Exemplo 3.5.5.

a transformada de fourier: Se f : R → R e somavel, a sua transformadade Fourier e a funcao T (f) : R → C dada por:

T (f)(ω) =

∫ ∞

−∞f(x)e−iωxdm =

∫ ∞

−∞f(x) cos(ωx)dm−i

∫ ∞

−∞f(x) sen(ωx)dm.

A funcao T (f) esta bem definida, porque a integranda acima e mensuravel, porser um produto de funcoes mensuraveis, e somavel, dado que

∣∣f(x)e−iωx∣∣ ≤

|f(x)|. Por outro lado, se ωn → ω, segue-se da continuidade da exponencialcomplexa que f(x)e−iωnx → f(x)e−iωx.

Concluımos do teorema da convergencia dominada de Lebesgue que T (f)(ωn) →T (f)(ω). Por outras palavras, a transformada de Fourier de uma funcaosomavel e uma funcao contınua. O exercıcio 3 refere mais algumas propriedadesda transformada de Fourier.

A aditividade do integral para somas finitas de funcoes mensuraveis nao-negativas, ou para somas finitas em L1(E), estabelece-se facilmente porinducao. A sua generalizacao a series de funcoes nao-negativas e sur-preendentemente simples, e livre dos problemas tecnicos existentes na teoriade Riemann:

Qualquer serie de funcoes mensuraveis nao-negativas pode ser integradatermo-a-termo.

A demonstracao deste facto e uma ligeira adaptacao do argumento que uti-lizamos a proposito do exemplo 3.2.4.

Teorema 3.5.6. Se as funcoes fn : E → [0,+∞] sao mensuraveis em E,

entao a funcao

∞∑

n=1

fn e mensuravel em E, e

E

(∞∑

n=1

fn

)

dmN =

∞∑

n=1

(∫

EfndmN

).

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204 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Demonstracao. Observamos que

gm(x) =

m∑

n=1

fn(x) ր f(x), onde f(x) =

∞∑

n=1

fn(x).

Como gm ≥ 0, segue-se, do teorema de Beppo Levi, que∫

EgmdmN ր

EfdmN .

Pela aditividade do integral para somas finitas,∫

EgmdmN =

E(

m∑

n=1

fn)dmN =m∑

n=1

(

EfndmN ) ր

∞∑

n=1

(

EfndmN ).

Exemplos 3.5.7.

1. Se as funcoes fn ≥ 0 sao somaveis em RN , tomamos an =∫

RN fndmN , esupomos sem perda de generalidade que an > 0. Escolhemos uma qualquerserie convergente

∑∞n=1 bn com bn > 0. De acordo com o resultado anterior,

f(x) =∞∑

n=1

bnanfn(x) =⇒

RN

fdmN =∞∑

n=1

bnan

RN

fn(x) =∞∑

n=1

bn <∞.

E muito facil obter por este processo muitos exemplos semelhantes a 3.2.4.

2. O teorema anterior pode tambem ser usado para analisar a convergenciapontual de uma serie de funcoes fn ≥ 0. Como

RN

( ∞∑

n=1

fn(x)

)dmN =

∞∑

n=1

RN

fn(x)dmN , entao

∞∑

n=1

RN

fn(x)dmN <∞ =⇒ f(x) =

∞∑

n=1

fn(x) e somavel e por isso e finita qtp.

Temos em particular que

∞∑

n=1

RN

fn(x)dmN <∞ =⇒∞∑

n=1

fn(x) converge qtp.

3. A ideia acima e aplicavel a funcoes somaveis fn : RN → R, desde que

∞∑

n=1

RN

|fn(x)| dmN =∞∑

n=1

‖fn‖1 <∞.

Observamos que

g(x) =

∞∑

n=1

|fn(x)| =⇒∫

RN

g(x)dmN =

∞∑

n=1

RN

|fn(x)| dmN <∞.

A serie f(x) =

∞∑

n=1

fn(x) converge absolutamente qtp, porque g e finita qtp.

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3.5. Funcoes Somaveis 205

As series de funcoes somaveis nao sao automaticamente integraveistermo-a-termo, como as de funcoes mensuraveis nao-negativas, mas temos,mesmo assim, o seguinte resultado:

Teorema 3.5.8. Dadas funcoes L-mensuraveis fn : E → R, se

∞∑

n=1

(∫

E|fn|dmN

)=

∞∑

n=1

‖fn‖1 < +∞,

entao:

a) A serie

∞∑

n=1

fn(x) converge absolutamente qtp em E,

b) A funcao f(x) =

∞∑

n=1

fn(x) e L-mensuravel e somavel em E,

c)

∥∥∥∥∥

m∑

n=1

fn − f

∥∥∥∥∥1

=

E|

m∑

n=1

fn − f |dmN → 0, e em particular,

d)

E

(∞∑

n=1

fn

)

dmN =

∞∑

n=1

(∫

EfndmN

).

Demonstracao. Observamos no exemplo 3.5.7.3 que a funcao g, dada porg(x) =

∑∞n=1 |fn(x)|, e somavel, e finita qtp, porque

EgdmN =

∞∑

n=1

E|fn|dmN <∞.

Por outras palavras, a serie∑∞

n=1 fn(x) converge absolutamente qtp em E.Definindo gm(x) =

∑mn=1 fn(x), temos:

• gm(x) →∑∞n=1 fn(x), qtp em E.

• |gm(x)| ≤ g(x).

Podemos assim aplicar o teorema da convergencia monotona de Lebesgue,na forma 3.5.4, a sucessao de funcoes gm. Usando ainda a aditividade dointegral para somas finitas, temos:

E

∞∑

n=1

fndmN = limm→∞

EgmdmN = lim

m→∞

m∑

n=1

EfndmN =

∞∑

n=1

EfndmN .

O teorema 3.5.8 pode ser parcialmente reformulado com se segue:

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206 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Corolario 3.5.9. Se fn ∈ L1(E) entao

∞∑

n=1

‖fn‖1 < +∞ =⇒ existe f ∈ L1(E) tal que

∥∥∥∥∥

m∑

n=1

fn − f

∥∥∥∥∥1

→ 0.

Se an ∈ R, a serie de termos reais∑∞

n=1 an diz-se absolutamente conver-gente se e so se

∑∞n=1 |an| < ∞. Sabemos que neste caso a serie

∑∞n=1 an

e igualmente convergente, o que e alias um dos mais comuns criterios deconvergencia de series reais. Por analogia com as series reais, e quandofn ∈ L1(E), dizemos que a serie

∞∑

n=1

fn e absolutamente convergente em L1 quando∞∑

n=1

‖fn‖1 < +∞.

O corolario 3.5.9 pode resumir-se dizendo que

As series absolutamente convergentes em L1 sao convergentes em L1.

Podemos usar este facto para mostrar que L1(E) e um espaco de banach,i.e., e um espaco vectorial normado em que as sucessoes de Cauchy, oufundamentais, sao convergentes.

Teorema 3.5.10 (de Riesz-Fischer). L1(E) e um espaco de Banach.(16)

Demonstracao. Se a sucessao de termo geral fn ∈ L1(E) e de Cauchy, i.e.,‖fn − fm‖1 → 0, quando n,m→ ∞, entao existem (porque?) naturais

nk ր ∞ tais que n,m ≥ nk ⇒ ‖fn − fm‖1 ≤ 1

2k.

Temos ‖fnk− fk‖1 → 0, e tomamos gk = fnk+1

− fnk, donde

‖gk‖1 =∥∥fnk+1

− fnk

∥∥1≤ 1

2k, e

∞∑

k=1

‖gk‖1 ≤ 1.

A serie∑∞

k=1 gk e telescopica, e portanto∑m

k=1 gk = fnm+1− fn1

. Con-cluımos de 3.5.9 que existe g ∈ L1(E) tal que

∥∥∥∥∥

m∑

k=1

gk − g

∥∥∥∥∥1

→ 0, ou seja,∥∥fnm+1

− fn1− g∥∥

1.

Definindo f = fn1+ g, temos ‖fnk

− f‖1 → 0. Observamos finalmente que

‖fk − f‖1 ≤ ‖fk − fnk‖1 + ‖fnk

− f‖1 → 0.

16Este resultado e uma versao preliminar do Teorema de Riesz-Fischer.

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3.5. Funcoes Somaveis 207

Concluımos aqui a apresentacao do teorema de Fubini-Lebesgue, comum enunciado aplicavel a funcoes somaveis.

Teorema 3.5.11 (Teorema de Fubini-Lebesgue (III)). Seja f : RN → R

uma funcao somavel, I um ındice-K em RN , N = K + M e t ∈ RK .Temos, entao,

a) As funcoes f tI : RM → R sao somaveis para quase todos os t ∈ RK .

b) Sendo AI(t) =

RM

f tIdmM entao AI e somavel em RK e

RK

AIdmK =

RK

(∫

RM

f tIdmM

)dmK =

RN

fdmN .

Deixamos a demonstracao para o exercıcio 7.

Exemplos 3.5.12.

1. Supondo que f e somavel e I = (1, 2, · · · ,K), ou I = (K+1,K+2, · · · , N),escrevemos os elementos x ∈ RN na forma x = (t,y) com t ∈ RK e y ∈ RM ,para concluir que

RN

fdmN =

RK

(∫

RM

f(t,y)dy

)dt =

RM

(∫

RK

f(t,y)dt

)dy.

2. produto de convolucao: Se f, g : RN → R, e por vezes util formar orespectivo produto de convolucao, que e a funcao f ∗ g dada por:

(f ∗ g) (x) =

RN

f(x − y)g(y)dmN .

Se f e g sao L-mensuraveis, e x esta fixo, a funcao h(y) = f(x − y) e L-mensuravel, e o produto hg e, igualmente, L-mensuravel. Por outro lado,existe uma funcao B-mensuravel f ≃ f em RN e, para efeitos do calculo dointegral indicado acima, podemos substituir a funcao f por f , sem modificar oresultado final, i.e., sem alterar a funcao f ∗ g. Supomos, assim, e sem perdade generalidade, que f e B-mensuravel. A funcao G : R2N → R, dada porF (x,y) = f(x − y) e B-mensuravel em R2N (porque?). Concluımos, assim,que a funcao F : R2N → R, dada por F (x,y) = f(x−y)g(y), e L-mensuravelem R2N . Em particular, o teorema de Fubini, na forma 3.5.11, e aplicavel afuncao F .

Deixamos para o exercıcio 9 explorar esta ideia, para verificar que, se f e gsao somaveis, entao a funcao f ∗ g esta bem definida qtp em RN , e somavel, esatisfaz:

‖f ∗ g‖1 ≤ ‖f‖1 ‖g‖1 .

Sendo T a transformada de Fourier que definimos no exemplo 3.5.5, podemosainda mostrar que T (f ∗ g) = T (f)T (g).

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208 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Exercıcios.

1. Mostre que se f(x) = limn→∞ fn(x), qtp em E, e fn ≃ fn, entao temostambem f(x) = limn→∞ fn(x), qtp em E.

2. Suponha que B1(E) e o quociente do espaco das funcoes f : E → R B-mensuraveis pela relacao “≃”, e L1(E) e o quociente do espaco das funcoesf : E → R, finitas qtp e L-mensuraveis, pela relacao analoga. Qual e a relacaoentre B1(E) e L1(E)?

3. Supondo que f : R → R e somavel, designamos aqui por T (f) a transformadade Fourier da funcao f . Demonstre os seguintes resultados:

a) Se f(x) = f(x− x0), entao T (f)(ω) = T (f)(ω)e−iωx0.

b) Se a funcao h dada por h(x) = xf(x) e somavel, entao T (f) e difer-enciavel, e T (f)′ = −iT (h).

4. Seja f(x) = x−13 , para x 6= 0. Dada uma enumeracao dos racionais, Q =

q1, · · · , qn, · · · , mostre que a serie∑∞

n=11

n2 f(x−qn) converge absolutamenteqtp em R. Mostre que f(x) =

∑∞n=1

1n2 f(x − qn) e Borel-mensuravel no con-

junto onde a serie converge simplesmente.

5. Considere o espaco L1(R). Mostre que

a) Qualquer classe em L1(R) tem representantes B-mensuraveis f : R → R.

b) Existem classes em L1(R) cujos representantes sao descontınuos em todaa parte.

c) Existem classes em L1(R) cujos representantes sao ilimitados em qualquerintervalo aberto nao-vazio em R.

6. Consideramos aqui uma sucessao de funcoes fn tais que∫

E

fndm→∫

E

fdm para qualquer E ⊆ X mensuravel,

mas onde nao e verdade que∫

X

|fn − f |dm→ 0.

Tomamos E ⊆ X = [0, 2π], fn(x) = sennx, e f = 0. Prove o seguinte:

a) Se E e um intervalo ou um conjunto elementar, entao∫

E fndm→ 0.

b) Se E e um conjunto mensuravel, entao∫

E fndm → 0.

c) Suponha que g e somavel, e prove que∫

Xgfndm→ 0. (17)

d) Calcule limn→+∞

X

|fn|dm.

17 Este resultado, que e importante na teoria das series de Fourier, diz-se o Lema de

Riemann-Lebesgue.

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3.6. Continuidade e Mensurabilidade 209

e) Calcule limn→+∞

E

f2ndm, quando E e mensuravel. Sugestao: Considere

tambem as funcoes cos2 nx.

f) Prove que se nk ր ∞ entao sennkx diverge qtp.

7. Demonstre o teorema de Fubini-Lebesgue na forma 3.5.11.

8. Calcule os dois integrais iterados para as funcoes indicadas. O que podeconcluir?

a) f(x, y) =x− y

(x+ y)3 , em [0, 1] × [0, 1].

b) g(x, y) =xy

(x2 + y2)2 , em [−1, 1]× [−1, 1].

9. Suponha que as funcoes f , g, e h sao somaveis em RN . Mostre que

a) O produto de convolucao (Exemplo 3.5.12.2)

(f ∗ g)(x) =

RN

f(x − y)g(y)dmN ,

esta bem definido (qtp em RN) e f ∗ g e uma funcao somavel em RN ,porque

‖f ∗ g‖1 ≤ ‖f‖1 ‖g‖1 .

sugestao: Considere a funcao F (x,y) = f(x − y)g(y), e aplique oteorema de Fubini.

b) O produto de convolucao e comutativo e associativo.

c) Sendo T a transformada de Fourier, temos T (f ∗ g) = T (f)T (g).sugestao: Use o teorema de Fubini.

3.6 Continuidade e Mensurabilidade

Vimos como as funcoes mensuraveis podem ser aproximadas por funcoessimples mensuraveis. Mostramos nesta seccao que as funcoes mensuraveispodem ser tambem aproximadas por funcoes contınuas. Veremos que estefacto e consequencia essencialmente dos seguintes tres resultados:

• A ja referida aproximacao de funcoes mensuraveis por funcoes simples,

• A regularidade da medida de Lebesgue, sobretudo na forma do teorema2.3.10 b), e

• Um resultado de natureza topologica, aqui a proposicao 3.6.1, que eum corolario do chamado Lema de Urysohn.

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210 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Designamos o conjunto das funcoes contınuas de suporte compacto

f : RN → R por Cc(RN )(18). Designaremos por C0(R

N ) o conjunto dasfuncoes contınuas f : RN → R com limite nulo quando |x| → ∞, e porCk

c (RN ), onde k ∈ N, a classe das funcoes de suporte compacto, que saocontinuamente diferenciaveis ate a ordem k ∈ N. C∞

c (RN ) e a classe dasfuncoes contınuas de suporte compacto que tem derivadas contınuas de qual-quer ordem. Usaremos a mesma notacao para qualquer conjunto U ⊆ RN ,e.g., Ck

c (U) e a classe das funcoes de suporte compacto em U , que sao con-tinuamente diferenciaveis ate a ordem k ∈ N.

O corolario do “Lema de Urysohn” aqui utilizado e o seguinte:

Proposicao 3.6.1. Se K ⊆ U ⊆ RN , onde K e compacto e U e aberto,entao existe f ∈ Cc(R

N ) tal que χK ≤ f ≤ χU .(19)

Demonstracao. Dado x ∈ K, existem rectangulos abertos limitados Rx eSx tais que

x ∈ Rx ⊂ Rx ⊂ Sx ⊂ Sx ⊂ U.

Existe portanto uma subcobertura finita de K por rectangulos Rxi , onde1 ≤ i ≤ m. E simples mostrar que (exercıcio 2)

(i) Existem funcoes gi ∈ Cc(RN ) tais que χRxi

≤ gi ≤ χSxi≤ χU .

Seja g : RN → R dada por

g(x) =m∑

i=1

gi(x), donde g ≥ χK , e g tem suporte compacto em U.

Sendo agora h : R → [0, 1] uma qualquer funcao contınua e crescente, comh(0) = 0 e h(1) = 1, tomamos f(x) = h(g(x)).

Esta proposicao, combinada com a regularidade da medida de Lebesgue,permite mostrar que as funcoes caracterısticas de conjuntos de medida finitapodem ser aproximadas por funcoes contınuas de suporte compacto.

Proposicao 3.6.2. Se E ⊆ RN e um conjunto mensuravel de medida finita,e ε > 0, existe f ∈ Cc(R

N ) tal que

0 ≤ f ≤ 1, e mN (x ∈ RN : f(x) 6= χE(x)) < ε.

18O suporte da funcao f e o fecho do conjunto onde a funcao nao e nula.19O “Lema de Urysohn” da Topologia Geral e um exemplo de uma propriedade de

separacao. Dados conjuntos fechados A e B disjuntos num espaco topologico normal

X, o Lema garante a existencia de uma funcao contınua f : X → [0, 1] tal que A ⊆f−1(1) e B ⊆ f−1(0). O resultado deve-se a Pavel Urysohn, 1898 - 1924, matematicoucraniano, que apesar da sua morte tragica ainda muito jovem deu importantes contributosa entao nascente Topologia. Deve notar-se no exercıcio 3 que no caso da proposicao aquiapresentada podemos na verdade seleccionar f ∈ C∞

c (RN).

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3.6. Continuidade e Mensurabilidade 211

Demonstracao. De acordo com o teorema 2.3.10 b), existem conjuntos

K ⊆ E ⊆ U,K compacto, U aberto, e mN (U\K) < ε.

Pela proposicao anterior, existe f ∈ Cc(RN ) tal que χK ≤ f ≤ χU , e deve

ser evidente que:

x ∈ RN : f(x) 6= χE(x)

⊆ U\K.

Exploramos aqui diversas consequencias desta proposicao, que sao emcada caso resultados sobre a aproximacao de funcoes mensuraveis por funcoescontınuas. E conveniente para ja mostrar que as funcoes mensuraveis limi-tadas, que sao como sabemos limites de sucessoes de funcoes simples men-suraveis, podem ser tambem expressas como series uniformemente conver-gentes de funcoes simples mensuraveis.

Teorema 3.6.3. Se f : E → [0,M ] e mensuravel e M < ∞, existemconjuntos mensuraveis Tn ⊆ E tais que, se tn = M

2nχTn , entao

f(x) =

∞∑

n=1

tn(x).

Em particular, a serie indicada converge uniformemente para f .

Demonstracao. Sendo g = f/M , existem funcoes simples sn : E → R+,n ∈ N, definidas como na demonstracao de 3.4.7, e tais que sn(x) ր g(x).Definimos s0 = 0 e, para n ∈ N, tn = sn − sn−1 ≥ 0. E evidente que

∞∑

n=1

tn(x) = limn→∞

sn(x) = g(x) = f(x)/M , para qualquer x ∈ E.

Como 0 ≤ g(x) < 1, para qualquer x ∈ E, e facil mostrar (exercıcio 1) quetn = sn − sn−1 so toma os valores 0 e 1/2n, ou seja,

tn =1

2nχTn , onde Tn =

2n−1−1⋃

k=1

En,2k+1, e f(x) =

∞∑

n=1

M

2nχTn(x).

O proximo resultado e um teorema classico sobre a aproximacao defuncoes mensuraveis por funcoes contınuas.

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212 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

Teorema 3.6.4 (Teorema de Vitali-Luzin). (20) Seja f : RN → R umafuncao mensuravel limitada, que e nula fora de um conjunto de medidafinita. Se ε > 0 e |f(x)| ≤ M para qualquer x ∈ RN , entao existe g ∈Cc(R

N ) tal que

0 ≤ |g(x)| ≤M , e mN

(x ∈ RN : f(x) 6= g(x)

)< ε.

Demonstracao. Supomos primeiro que 0 ≤ f(x) ≤ 1, e f(x) = 0 quandox 6∈ U , ondemN (U) <∞. Supomos sem perda de generalidade que U ⊂ RN

e um aberto. Observamos de 3.6.3 que existem funcoes simples mensuraveistn : RN → [0, 1], tais que

f(x) =

∞∑

n=1

tn(x), onde tn =1

2nχTn .

Os conjuntos Tn sao mensuraveis e de medida finita, e estao contidos emU . Pela proposicao 3.6.2, existem funcoes hn : RN → [0, 1], contınuas e desuporte compacto em U , tais que

mN (En) <ε

2n+1, onde En =

x ∈ RN : hn(x) 6= χTn(x)

.

E claro que∞∑

n=1

1

2nhn(x) ≤

∞∑

n=1

1

2n= 1,

e portanto a serie a esquerda converge uniformemente. Concluımos que afuncao h dada por h(x) =

∑∞n=1

12nhn(x) e contınua, e 0 ≤ h ≤ 1. Deve

ser tambem claro que h(x) = 0 quando x 6∈ U . Por outro lado, e tomandoE =

⋃∞n=1En, temos mN (E) < ε/2 e

x 6∈ E ⇒ hn(x) = χTn(x), para qualquer n ∈ N ⇒ f(x) = h(x).

Temos por outras palavras que

mN

(x ∈ RN : f(x) 6= g(x)

)≤ mN (E) < ε/2.

Como mN (U) <∞, existe um compacto K ⊂ U tal que mN (U\K) < ε/2, eexiste igualmente uma funcao h0 ∈ Cc(R

N ) tal que χK ≤ h0 ≤ χU . Tomamosfinalmente g = hh0, que e contınua e de suporte compacto em U . Dado queg(x) 6= h(x) apenas quando x ∈ U\K, temos

x ∈ RN : f(x) 6= g(x)

⊆ E ∪ (U\K)

Temos assim que mN (x ∈ RN : g(x) 6= f(x)) < ε. Deixamos para oexercıcio 4 generalizar a demonstracao para o caso |f(x)| ≤M .

20De Nikolai Luzin, 1883-1950, matematico russo, professor da Universidade deMoscovo, onde alias teve Urysohn como aluno.

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3.6. Continuidade e Mensurabilidade 213

O resultado anterior pode ser adaptado a casos em que f e ilimitadae/ou nao e nula no complementar de um conjunto de medida finita, masnaturalmente perdendo alguns aspectos da sua conclusao. Por exemplo,

Corolario 3.6.5. Seja f : RN → R mensuravel, finita qtp, e nula no com-plementar de um conjunto de medida finita. Entao para qualquer ε > 0existe g ∈ Cc(R

N ) tal que

mN

(x ∈ RN : f(x) 6= g(x)

)< ε.

Demonstracao. Seja Fn = x ∈ RN : |f(x)| ≥ n, donde Fn ց A, ondeA = x ∈ RN : |f(x)| = ∞ e nulo. Como os conjuntos Fn tem medidafinita, temos mN (Fn) → 0, e existe k tal que mN (Fk) < ε/2.

Com h = fχF ck, e pelo teorema de Vitali-Luzin, existe g ∈ Cc(R

N ) talque

mN

(x ∈ RN : h(x) 6= g(x)

)< ε/2.

E claro que mN

(x ∈ RN : f(x) 6= g(x)

)< ε.

Eliminando a hipotese sobre o conjunto onde f 6= 0, podemos ainda obtero seguinte resultado, cuja demonstracao deixamos para o exercıcio (5).

Corolario 3.6.6. Seja f : RN → R uma funcao mensuravel e finita qtp.Entao para qualquer ε > 0 existe uma funcao contınua g : RN → R tal que

mN

(x ∈ RN : f(x) 6= g(x)

)< ε.

Este corolario pode agora ser usado para mostrar que as funcoes mensu-raveis e finitas qtp sao limites de sucessoes de funcoes contınuas.

Corolario 3.6.7. Se f : RN → R e finita qtp, entao f e L-mensuravel see so se existem funcoes contınuas fn : RN → R tais que fn(x) → f(x) qtpem RN .

Demonstracao. Pelo corolario 3.6.6, existem funcoes contınuas fn tais que

mN (En) <1

2n, onde En =

x ∈ RN : fn(x) 6= f(x)

.

Considerem-se os conjuntos

E =∞⋂

k=1

∞⋃

n=k

En =∞⋂

k=1

Fk, onde Fk =∞⋃

n=k

En.

Note-se que mN (Fk) → 0 e Fk ց E, donde mN (E) = 0(21). Para finalizareste argumento, resta-nos observar que:

x 6∈ E ⇔ ∃k∈N tal que x 6∈ Fk ⇔ ∃k∈N tal que n ≥ k ⇒ x 6∈ En ⇔21Esta e mais uma aplicacao do lema de Borel-Cantelli que referimos no exercıcio 7 da

seccao 2.1.

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214 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

⇔ ∃k∈N tal que n ≥ k ⇒ fn(x) = f(x).

Dito doutra forma, quando x 6∈ E entao fn(x) → f(x). Como vimosque mN (E) = 0, podemos concluir que fn(x) → f(x) qtp em R.

Sabemos ja que que as funcoes somaveis podem ser aproximadas porfuncoes simples, e aproveitamos agora este facto para mostrar que podemtambem ser aproximadas por funcoes contınuas de suporte compacto:

Corolario 3.6.8. Se f : RN → R e somavel e ε > 0, entao existe g ∈Cc(R

N ) tal que ‖f − g‖1 < ε.

Demonstracao. De acordo com 3.4.11, existe uma funcao simples s ∈ L1(RN )tal que ‖f − s‖1 < ε/2. E claro que s e nula no complementar de um con-junto de medida finita, e existe M < ∞ tal que |s(x)| ≤ M para qualquerx ∈ RN .

Pelo teorema 3.6.4, existe g ∈ Cc(RN ) com |g(x)| ≤M para x ∈ RN , e

mN (x ∈ RN : s(x) 6= g(x)

) < ε/4M.

Escrevemos E =x ∈ RN : s(x) 6= g(x)

, e notamos como obvio que

|s(x) − g(x)| ≤ 2M para x ∈ E, donde

‖s− g‖1 =

E|s− g| ≤ 2Mε/4M = ε/2.

Concluımos que ‖f − g‖1 ≤ ‖f − s‖1 + ‖s− g‖1 < ε.

Exemplo 3.6.9.

Designamos tambem por Cc(RN ) o subespaco de L1(RN ) formado pelas classes

de equivalencia de funcoes contınuas de suporte compacto. O resultado anteriorpode exprimir-se dizendo que

Cc(RN ) e denso em L1(RN ).

Se designarmos por R1(RN ) o subespaco formado pelas classes de equivalenciade funcoes f : RN → R tais que o integral improprio de Riemann

∫RN f(x)dx

e absolutamente convergente, e evidente que R1(RN ) ⊇ Cc(RN ), e portanto

R1(RN ) e igualmente denso em L1(RN ).

Ja vimos que L1(RN ) e completo, i.e., e um espaco de Banach. ComoR1(RN ) e denso em L1(RN ), concluımos que L1(RN ) e o espaco completodeterminado por R1(RN ). Por outras palavras, o espaco L1(RN ) esta para oespaco R1(RN ) exactamente como o conjunto R esta para o conjunto Q.

Exercıcios.

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3.6. Continuidade e Mensurabilidade 215

1. Complete o calculo da funcao tn = sn − sn−1 referido na demonstracao de3.6.3. sugestao: Observe que En−1,k = En,2k ∪ En,2k+1.

2. Para completar a demonstracao de 3.6.1, mostre que dados rectangulos aber-tos limitados R e S, tais que R ⊂ R ⊂ S, existe uma funcao contınua f ,0 ≤ f ≤ 1, tal que f(x) = 1 para x ∈ R, e f(x) = 0 para x 6∈ S, donde f temsuporte compacto. sugestao: Comece por provar a afirmacao em R.

3. Verifique que a funcao f : R → R dada por f(x) = e−1

x2 para x > 0,e por f(x) = 0 para x ≤ 0 e de classe C∞. Conclua que g ∈ C∞

c (R), seg(x) = f(x)f(1 − x). Aproveite para mostrar que podemos supor no exercıcioanterior que f e de classe C∞.

4. Conclua a demonstracao do teorema de Vitali-Luzin (3.6.4) tomando agoracomo hipotese que |f | ≤ M . Verifique tambem que, se E ⊆ U , onde U e umaberto, entao a funcao g pode ser suposta ter suporte compacto em U .

5. Demonstre o corolario 3.6.6. sugestao: Recorde que RN e σ-compacto.

6. Seja f : RN → R uma funcao L-mensuravel e somavel. Prove que

limy→0

RN

|f(x + y) − f(x)| dmN = 0.

sugestao: Suponha primeiro que f e contınua de suporte compacto.

7. Mostre que C0(RN ) e um espaco de Banach, com a norma “de L∞”, dada

por ‖f‖∞ = sup|f(x)| : x ∈ RN

. Prove que Cc(R

N ) e denso em C0(RN ),

com esta norma.

8. continuidade da transformada de Fourier: Prove que se f ∈ L1(R) eT (f) e a sua transformada de Fourier, entao T (f) ∈ C0(R), onde aqui C0(R

N )designa a classe das funcoes contınuas com valores complexos, tais que |f(x)| →0, quando ‖x‖ → ∞. Aproveite para mostrar que T : L1(R) → C0(R) e umoperador (uniformemente) contınuo, porque

‖T (f)− T (g)‖∞ ≤ ‖f − g‖1 .

sugestao: Sabemos que T (f) e contınua. Comece por mostrar que ‖T (f)‖∞ ≤‖f‖1. Considere a funcao fα(x) = f(x − π

α ), e a respectiva transformada deFourier Fα. Aplique o exercıcio 6 a diferenca fα − f .

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216 Capıtulo 3. Integrais de Lebesgue

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Capıtulo 4

Outras Medidas

A teoria da medida nao se esgota com o estudo da medida de Lebesgue, nema teoria da integracao se esgota com o estudo dos integrais “em ordem amedida de Lebesgue”. Estudamos neste Capıtulo outros espacos de medida,deixando para mais tarde a questao da definicao de “integrais de Lebesgue”em ordem a qualquer medida.

Comecamos por complementar as ideias e resultados gerais sobre medi-das que referimos no capıtulo 2. E indispensavel aqui esclarecer a estruturadas medidas reais, i.e., provar o Teorema da Decomposicao de Hahn-Jordan,que mostra que as medidas reais sao diferencas de medidas positivas finitas,e leva ao conceito de variacao total de uma medida.

Vimos que qualquer integral indefinido de Lebesgue e uma medida. Estasmedidas gozam de uma propriedade especial, dita continuidade absoluta, queestudaremos no que se segue. Esta ideia, primeiro referida por Harnack(1)nos finais do seculo XIX, a proposito dos integrais improprios de Riemannde 1a especie que ele proprio estudou, e formalmente definida por Vitaliem 1905, quando lhe atribuiu o nome que hoje utilizamos, e aplicavel amedidas e a funcoes, e e a chave para o entendimento actual dos TeoremasFundamentais do Calculo.

Muitos dos exemplos relevantes nas aplicacoes envolvem medidas de-finidas pelo menos na classe B(RN), que chamaremos aqui “medidas deLebesgue-Stieltjes”. A questao da sua regularidade e frequentemente muitoimportante, e provaremos diversos resultados sobre este assunto. Veremosem particular que qualquer medida definida em B(RN ) e finita nos conjuntoscompactos tem uma unica extensao regular completa, um facto que usaremosrepetidamente no que se segue. Mostraremos tambem que as medidas deLebesgue-Stieltjes regulares e σ-finitas tem propriedades muito semelhantesas da medida de Lebesgue, tal como as estudamos no Capıtulo 2.

As medidas de Lebesgue-Stieltjes localmente finitas na recta real saoespecialmente faceis de caracterizar e estudar, e estao associadas a funcoes

1Carl Gustav Axel Harnack, 1851-1888.

217

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218 Capıtulo 4. Outras Medidas

reais de variavel real, que chamaremos as suas funcoes de distribuicao. Estadualidade entre medidas e funcoes enriquece simultaneamente a teoria damedida e a teoria das funcoes. Introduzimos e estudamos aqui as classesdas funcoes de variacao limitada e das funcoes absolutamente contınuas, eprovamos um resultado classico sobre funcoes absolutamente contınuas: oTeorema de Banach-Zaretsky.

Terminamos o Capıtulo provando o grande Teorema de Diferenciacaode Lebesgue, a partir do “Lema do Sol Nascente” de F.Riesz, e obtemosfinalmente versoes modernas dos Teoremas Fundamentais do Calculo em R,relacionando estes resultados com uma das questoes mais centrais da Teoriada Medida: a de caracterizar as medidas que sao integrais indefinidos.

4.1 A Decomposicao de Hahn-Jordan

Qualquer funcao real f : X → R pode ser decomposta na forma f = f+−f−,onde f+ e f− sao as funcoes f+ = fχP e f− = −fχN e P e N sao osconjuntos P = x ∈ X : f(x) > 0 e N = x ∈ X : f(x) < 0. E claroque f+ e f− sao positivas e distintas de zero em conjuntos disjuntos. Antesde apresentarmos uma decomposicao analoga a esta para medidas reais, enecessario introduzir uma nocao auxiliar:

Definicao 4.1.1 (Medida Concentrada em S). Se µ e uma medida definidaem M e S ∈ M, dizemos que µ esta concentrada em S se e so se µ(E) =µ(E ∩ S) para qualquer E ∈ M.

X

E\S

S

E ∩ S

Figura 4.1.1: µ concentrada em S ⇐⇒ µ(E) = µ(E ∩ S) para E ∈ M.

Provamos nesta seccao que qualquer medida real µ e a diferenca de duasmedidas positivas finitas, µ = µ+−µ−, que estao concentradas em conjuntosdisjuntos. Esta e a chamada decomposicao de Jordan, que simplifica oestudo de medidas reais e complexas, porque o reduz em larga medida aoestudo de medidas positivas finitas. A decomposicao de Hahn de µ,que e, como veremos, essencialmente equivalente a de Jordan, e formadapor conjuntos disjuntos P e N = P c tais que µ+ e µ− estao concentradasrespectivamente em P e em N .

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4.1. A Decomposicao de Hahn-Jordan 219

Exemplos 4.1.2.

1. A medida de Dirac em R esta concentrada em A = 0. Esta igualmenteconcentrada em B = [0, 1], ou mais geralmente em qualquer conjunto C talque A ⊆ C.

2. A medida de Lebesgue em R esta concentrada no conjunto dos irracionais.Podemos tambem dizer que m esta concentrada em R\Z, em R\ 0, etc.

3. Se f e mensuravel e nao-negativa, ou somavel, o respectivo integral indefinidoesta concentrado no conjunto

x ∈ RN : f(x) 6= 0

(ver o exercıcio 7).

No que se segue nesta seccao, salvo mencao em contrario, supomos quetodas as medidas referidas estao definidas num dado espaco mensuravel(X,M). Observamos desde ja que, como os exemplos acima tornam evi-dente, o conjunto onde uma dada medida esta concentrada nao e unico. Adeterminacao dos conjuntos onde µ esta concentrada e alias equivalente aidentificacao dos:

Definicao 4.1.3 (Conjuntos µ-Nulos). E ∈ M e µ-nulo se e so se, paraqualquer F ∈ M, temos F ⊆ E ⇒ µ(F ) = 0.

Temos, portanto, que E e µ-nulo se e so se e mensuravel e todos osseus subconjuntos mensuraveis tem medida nula. Quando µ e uma medidapositiva, esta condicao reduz-se, por razoes obvias, a condicao µ(E) = 0.

Exemplos 4.1.4.

1. Seja A = ]−1, 0[, B = ]0, 1[, e µ(E) = m(E ∩ A) − m(E ∩ B). Entaoµ([−1, 1]) = 0, mas [−1, 1] nao e µ-nulo, porque, por exemplo, A ⊂ [−1, 1], eµ(A) 6= 0.

2. A funcao f(x) = e−|x| sen(x) e somavel em R. Se µ e o seu integral indefinido,entao µ([−π, π]) = 0, mas [−π, π] nao e µ-nulo, porque µ([0, π]) > 0.

Usamos expressoes como “µ-quase em toda a parte”, abreviada “µ-qtp”,para significar “excepto num conjunto µ-nulo”. Quando a medida µ e obviado contexto, em especial quando µ e a medida de Lebesgue, eliminamos oprefixo “µ” destas expressoes.

Exemplos 4.1.5.

1. A funcao f(x) = x e nula, δ-qtp.

2. Sendo µ o integral indefinido de uma funcao f : R → R somavel, o conjuntodos racionais e µ-nulo. Mais geralmente, qualquer conjunto nulo e µ-nulo.

Deixamos para o exercıcio 1 mostrar que

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220 Capıtulo 4. Outras Medidas

Proposicao 4.1.6. µ esta concentrada em S se e so se Sc e µ-nulo.

No caso de uma medida µ definida pelo menos em B(RN ), e apesar doque dissemos acima, e possıvel identificar o menor conjunto fechado onde µesta concentrada, e e este conjunto que se diz o suporte da medida µ(2).

Teorema 4.1.7. Se µ e uma medida definida pelo menos em B(RN ), V =U ⊆ RN : U e aberto e µ-nulo

, V =

⋃U∈V U e F = V c, temos que

a) V e o maior conjunto aberto µ-nulo,

b) µ esta concentrada no conjunto fechado F = V c e

c) Se G ⊂ F e fechado e G 6= F , entao µ nao esta concentrada em G.Em particular, se µ ≥ 0 e finita entao µ(G) < µ(F ).

A demonstracao deste resultado e o exercıcio 13.

Exemplos 4.1.8.

1. No caso da medida de Lebesgue, qualquer aberto U ⊆ RN nao-vazio satisfazmN (U) > 0. Portanto, V =

U ⊆ RN : U e aberto e nulo

= ∅ e V = ∅,

donde F = RN . Por outras palavras, o suporte de mN e RN .

2. Se δ e a medida de Dirac na origem, entao V = R\0 e evidentemente omaior aberto δ-nulo, e portanto F = 0, ou seja, o suporte de δ e 0.

3. No caso do exemplo 4.1.4.1, e facil ver que F = [−1,+1].

4. Se µ e o exemplo 4.1.4.2, entao F = R.

Podemos agora introduzir a

Definicao 4.1.9 (Decomposicao de Jordan). Uma decomposicao de jor-

dan da medida real µ e um par (π, ν) de medidas positivas finitas tais que

• µ(E) = π(E) − ν(E), para qualquer E ∈ M, e

• π e ν estao concentradas em conjuntos disjuntos.

Exemplos 4.1.10.

1. Se A e B sao quaisquer conjuntos disjuntos em L(R) com medida finita eµ(E) = m(E ∩ A) −m(E ∩ B), e facil ver que as medidas dadas por π(E) =m(E ∩A) e ν(E) = m(E ∩B) sao uma decomposicao de Jordan para µ.

2. Se f : RN → R e somavel em RN e µ, π e ν sao, respectivamente, os integraisindefinidos de f , f+ e de f−, entao π e ν sao medidas positivas finitas e

µ(E) =

E

f =

E

f+ −∫

E

f− = π(E) − ν(E).

Observamos que

2Referiremos na seccao 4.4 a generalizacao desta ideia a contextos mais gerais.

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4.1. A Decomposicao de Hahn-Jordan 221

• π e ν estao concentradas, respectivamente, em P =x ∈ RN : f(x) > 0

e N =x ∈ RN : f(x) < 0

,

• P e N sao, evidentemente, conjuntos disjuntos.

Concluımos que (π, ν) e uma decomposicao de Jordan de µ. Em particular,a decomposicao de Jordan do integral indefinido de f corresponde a usualdecomposicao f = f+ − f−.

As medidas π e ν que formam uma qualquer decomposicao de Jordanestao concentradas em conjuntos disjuntos P e N . E claro que N e π-nulo, porque esta contido no complementar de P , e P e ν-nulo, porque estacontido no complementar de N . Introduzimos a este respeito a seguinteterminologia:

Definicao 4.1.11 (Medidas Singulares). Se π esta concentrada num con-junto ν-nulo, π diz-se singular (em relacao a ν), e escrevemos π⊥ν.

No caso de medidas em RN , dizemos simplesmente que π e singular, semmais qualificativos, quando π e singular em relacao a medida de Lebesgue.A demonstracao do seguinte resultado nao apresenta quaisquer dificuldades:

Proposicao 4.1.12. π⊥ν se e so se π e ν estao concentradas em conjuntosdisjuntos. Em particular, π⊥ν se e so se ν⊥π.

Exemplos 4.1.13.

1. A medida de Dirac δ em R e singular (em relacao a medida de Lebesgue),porque tem suporte em S = 0, e S e um conjunto m-nulo.

2. A medida de Lebesgue e singular em relacao a medida de Dirac, porque amedida de Lebesgue esta concentrada em B = R\ 0 = Ac e δ(B) = 0.

3. Note-se que as medidas de Lebesgue e de Dirac estao concentradas em con-juntos disjuntos mas nao tem suportes disjuntos.

Supondo que (π, ν) e uma decomposicao de Jordan da medida µ onde πesta concentrada num conjunto ν-nulo P , e claro que ν esta concentrada noconjunto π-nulo N = P c. Notamos que:

• Se E ⊆ P entao µ(E) ≥ 0, porque µ(E) = π(E)− ν(E) = π(E) ≥ 0, e

• Se E ⊆ N entao µ(E) ≤ 0, porque µ(E) = π(E)−ν(E) = −ν(E) ≤ 0.

Por outras palavras, todos os subconjuntos de P tem medida nao-negativa,e todos os subconjuntos de N tem medida nao-positiva. Os conjuntos comestas propriedades designam-se:

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222 Capıtulo 4. Outras Medidas

Definicao 4.1.14 (Conjuntos µ-Positivos, µ-Negativos). Sendo µ uma me-dida real, dizemos que E ∈ M e µ-positivo (respectivamente, µ-negativo)se e so se para qualquer F ∈ M temos F ⊆ E ⇒ µ(F ) ≥ 0 (respectivamente,µ(F ) ≤ 0).

Exemplos 4.1.15.

1. O conjunto ∅ e simultaneamente µ-positivo, µ-negativo e µ-nulo.

2. Se µ e o exemplo 4.1.4.1, e facil ver que A = [−1, 0] e µ-positivo e B = [0,+1]e µ-negativo.

3. Se µ e o integral indefinido da funcao somavel f e E e mensuravel, entao E eµ-positivo (respectivamente, µ-negativo) se e so se f(x) ≥ 0 (respectivamente,f(x) ≤ 0) qtp em E.

A demonstracao das seguintes propriedades e o exercıcio 4.

Proposicao 4.1.16. Seja µ uma medida real e P,Q,Pn ∈ M.

a) P e µ-positivo e Q ⊆ P =⇒ Q e µ-positivo e µ(Q) ≤ µ(P ),

b) P e µ-negativo e Q ⊆ P =⇒ Q e µ-negativo e µ(Q) ≥ µ(P ),

c) Pn µ-positivo para qualquer n ∈ N =⇒

P =

∞⋃

n=1

Pn e µ-positivo e µ(P ) ≥ µ(Pn), para qualquer n ∈ N.

Sempre supondo que (π, ν) e uma decomposicao de Jordan da medida µ,π esta concentrada no conjunto ν-nulo P e N = P c, os conjuntos P e Nformam uma particao de X onde P e µ-positivo e N e µ-negativo, o que nosconduz a seguinte

Definicao 4.1.17 (Decomposicao de Hahn). Se µ e uma medida real eP,N ∈ M, o par (P,N) e uma decomposicao de Hahn para µ se e so se

P e µ-positivo, N e µ-negativo, X = P ∪N e P ∩N = ∅.

Podemos portanto dizer que se µ tem uma decomposicao de Jordan entaotem igualmente uma decomposicao de Hahn. E tambem muito facil mostrarque se µ tem uma decomposicao de Hahn entao tem necessariamente umadecomposicao de Jordan. Para isso, e supondo que (P,N) e uma decom-posicao de Hahn, definimos

π(E) = µ(E ∩ P ) e ν(E) = −µ(E ∩N).

As medidas π e ν sao positivas e finitas, π⊥ν e temos (figura 4.1.2)

µ(E) = µ(E ∩ P ) + µ(E ∩N) = π(E) − ν(E), i.e., µ = π − ν.

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4.1. A Decomposicao de Hahn-Jordan 223

P

N X

E ∩NE ∩ P

Figura 4.1.2: µ(E) = µ(E ∩ P ) + µ(E ∩N) = π(E) − ν(E).

Se µ tem uma decomposicao de Hahn (P,N), e ainda muito simples mostrarque µ tem mınimo e maximo finitos, que sao exactamente os valores µ(N) eµ(P ). Basta notar que, como P e µ-positivo e N e µ-negativo, segue-se daproposicao 4.1.16 que, para qualquer E ∈ M,

0 ≤ µ(E ∩ P ) ≤ µ(P ) e µ(N) ≤ µ(E ∩N) ≤ 0.

Concluımos que

µ(N) ≤ µ(E ∩N) ≤ µ(E ∩ P ) + µ(E ∩N) ≤ µ(E ∩ P ) ≤ µ(P ),

ou seja, µ(N) ≤ µ(E) ≤ µ(P ), e µ tem maximo em P e mınimo em N .

A tecnica que vamos utilizar para estabelecer a existencia de decomposicoesde Hahn e de Jordan e sugerida por esta observacao elementar. Tem osseguintes passos essenciais:

(I) Mostrar que qualquer medida real µ tem maximo na classe dos con-juntos µ-positivos,

(II) Provar que se o maximo referido em (1) e atingido no conjunto P entaoN = P c e µ-negativo, i.e., (P,N) e uma decomposicao de Hahn de µ.

A proxima proposicao corresponde ao passo (I) acima indicado:

Proposicao 4.1.18. Se µ e uma medida real entao existe um conjunto µ-positivo P tal que µ(P ) = max µ(Q) : Q ∈ M, Q µ-positivo .

Demonstracao. O conjunto ∅ e µ-positivo, e portanto a classe dos conjuntosµ-positivos nao e vazia. Temos em particular que

0 ≤ α = sup µ(Q) : Q ∈ M, Q µ-positivo ≤ ∞.

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224 Capıtulo 4. Outras Medidas

Existem naturalmente conjuntos µ-positivosQn tais que µ(Qn) → α, e temosde 4.1.16 c) que

P =

∞⋃

n=1

Qn e µ-positivo e µ(P ) ≥ µ(Qn), para qualquer n.

Como µ(Qn) ≤ µ(P ) ≤ α e µ(Qn) → α e evidente que µ(P ) = α.

Antes de mostrar que N = P c e µ-negativo, que e o passo (II) quereferimos, precisamos de estabelecer um resultado auxiliar, alias com umargumento muito interessante, onde provamos que qualquer conjunto commedida estritamente positiva contem um subconjunto µ-positivo, tambemcom medida estritamente positiva.

Lema 4.1.19. Se µ(E) > 0, existe um conjunto µ-positivo P ⊆ E comµ(P ) ≥ µ(E) > 0.

Demonstracao. Dado A ∈ M, seja ν(A) = inf µ(F ) : F ∈ M, F ⊆ A(3).Notamos que ν(A) ≤ 0, porque podemos sempre tomar F = ∅. Observamosigualmente que

(1) A e µ-positivo se e so se ν(A) = 0.

(2) Se B ⊆ A e B ∈ M entao ν(B) ≥ ν(A).

Notamos tambem que se ν(A) > −∞ entao

(3) Existe B ⊆ A tal que ν(B) ≤ 1

2ν(A).

Basta-nos considerar dois casos:

• Se ν(A) = 0 entao podemos tomar B = ∅, e

• se ν(A) < 0 entao ν(A)/2 > ν(A) = inf µ(F ) : F ∈ M, F ⊆ A.

Se ν(A) = −∞ a observacao (3) e obviamente falsa, porque µ(B) 6= −∞,mas neste caso existe B ⊆ A tal que µ(B) ≤ −1. Concluımos que

(4) Se A ∈ M, entao existe B ⊆ A tal que B ∈ M e

µ(B) ≤ max

−1,

1

2ν(Pn)

.

Definimos duas sucessoes de conjuntos Pn e Fn por inducao como sesegue (ver figura 4.1.3):

3Veremos imediatamente a seguir que −ν e na realidade uma das medidas que formama decomposicao de Jordan de µ.

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4.1. A Decomposicao de Hahn-Jordan 225

F1

F2

F3

F4

P1 = E P2 P3 P4

Figura 4.1.3: F =

∞⋃

n=1

Fn, P =

∞⋂

n=1

Pn e E = P ∪ F .

(a) P1 = E e,

para qualquer n ∈ N,

(b) Para a sucessao dos Fn, e de acordo com (4), seleccionamos um con-junto Fn ∈ M tal que

(5) Fn ⊆ Pn e µ(Fn) ≤ max

−1,

1

2ν(Pn)

≤ 0.

(c) Para a sucessao dos Pn, tomamos Pn+1 = Pn\Fn.

Deve ser evidente que os conjuntos Fn sao disjuntos e os conjuntos Pn for-mam uma sucessao decrescente, onde

Pn ց P =

∞⋂

n=1

Pn e E = P ∪ F com F =

∞⋃

n=1

Fn.

Como µ(Fn) ≤ 0 e os conjuntos Fn sao disjuntos, temos

(6) −∞ < µ(F ) =

∞∑

n=1

µ(Fn) ≤ 0 e µ(Fn) → 0.

Para n suficientemente grande temos de (6) que µ(Fn) > −1 e de (5) que

(7) 0 ≥ ν(Pn)

2≥ µ(Fn) → 0, ou seja, ν(Pn) → 0.

Como P ⊆ Pn, obtemos de (2) e de (7) que 0 ≥ ν(P ) ≥ ν(Pn) → 0. Temosassim que ν(P ) = 0, i.e., P e µ-positivo. Para concluir a demonstracao,notamos que µ(P ) = µ(E) − µ(F ) ≥ µ(E) > 0, porque E = P ∪ F .

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226 Capıtulo 4. Outras Medidas

Passamos a demonstrar o principal resultado desta seccao:

Teorema 4.1.20 (da Decomposicao de Hahn-Jordan). Qualquer medidareal tem decomposicoes de Hahn e de Jordan.

P

N = X\P X

E P ∗

Figura 4.1.4: Demonstracao de 4.1.20.

Demonstracao. De acordo com 4.1.18, existe um conjunto µ-positivo P talque

µ(P ) = α = max µ(E) : E ∈ M, E µ-positivo < +∞.

A demonstracao resume-se a mostrar que N = X\P e µ-negativo, conformedissemos na observacao (II) acima, e argumentamos por contradicao.

Se N nao e µ-negativo, existe E ⊆ N com µ(E) > 0. De acordo com4.1.19, existe neste caso um conjunto µ-positivo P ∗ ⊆ E com µ(P ∗) > 0. Oconjunto P ∪ P ∗ e portanto µ-positivo e µ(P ∪ P ∗) = µ(P ) + µ(P ∗) > α, oque contradiz a definicao de α.

Concluımos assim que N e µ-negativo e (P,N) e uma decomposicao deHahn para µ. Por esta razao, e como ja observamos, existe tambem umadecomposicao de Jordan (π, ν) para µ, onde as medidas em causa sao dadaspor π(E) = µ(E ∩ P ) e ν(E) = −µ(E ∩N).

A questao da unicidade destas decomposicoes e bastante mais simplesde analisar, e por isso a sua verificacao fica para os exercıcios 5 e 6.

Teorema 4.1.21. Seja µ uma medida real, e suponha-se que (π, ν) e (P,N)sao, respectivamente, decomposicoes de Jordan e de Hahn para µ. Entao,

a) Se π∗ e ν∗ sao medidas positivas finitas tais que µ = π∗ − ν∗, entaoπ ≤ π∗ e ν ≤ ν∗.

b) Em particular, se (π∗, ν∗) e uma decomposicao de Jordan de µ, entaoπ∗ = π, e ν = ν∗.

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4.1. A Decomposicao de Hahn-Jordan 227

c) Se (P ∗, N∗) e uma decomposicao de Hahn para µ, entao P ∩ N∗ eP ∗ ∩N sao µ-nulos.

Sendo µ uma medida real, a respectiva decomposicao de Jordan (π, ν)existe, de acordo com o resultado acima, e e unica, de acordo com 4.1.21.Passamos a escrever µ+, em lugar de π, e µ−, em lugar de ν.

Exercıcios.

1. Prove que µ esta concentrada em S se e so se Sc e µ-nulo (proposicao 4.1.6).

2. Demonstre a proposicao 4.1.12.

3. Sendo I = [0, 2] e J = [1, 3], determine decomposicoes de Jordan e de Hahnpara a medida µ dada por µ(E) = m(E ∩ I) −m(E ∩ J).

4. Seja µ uma medida real no espaco mensuravel (X,M). Demonstre 4.1.16,ou seja:

a) Se P e µ-positivo, Q ∈ M, e Q ⊆ P , entaoQ e µ-positivo, e µ(Q) ≤ µ(P ).

b) Se P e µ-negativo, Q ∈ M, e Q ⊆ P , entao Q e µ-negativo, e µ(Q) ≥µ(P ).

c) Se Pn e µ-positivo para qualquer n ∈ N, entao ∪∞n=1Pn e µ-positivo, e

µ(∪∞n=1Pn) ≥ µ(Pn).

5. Mostre que, se µ : M → R e uma medida real, (π, ν) e uma decomposicaode Jordan para µ, e π∗, ν∗ : M → [0,+∞[ sao medidas positivas finitas taisque µ = π∗ − ν∗, entao π ≤ π∗ e ν ≤ ν∗. Em particular, a decomposicao deJordan de (X,M, µ) e unica (teorema 4.1.21, a), e b)).

6. Prove que se (P,N) e (P ′, N ′) sao decomposicoes de Hahn de (X,M, µ),entao P ∩N ′ e P ′ ∩N sao µ-nulos (teorema 4.1.21, b)).

7. Seja f : RN → R localmente somavel, e µ o respectivo integral indefinido.

a) Mostre que µ esta concentrada em P =x ∈ RN : f(x) > 0

quando

f ≥ 0.

b) Suponha agora que f = f+ − f− muda de sinal em RN , e e somavel emRN . Sejam π e ν os integrais indefinidos de f+ e f−. Mostre que (π, ν)e a decomposicao de Jordan de µ = π − ν.

c) Continuando a alınea anterior, as medidas π, ν e µ estao definidas res-pectivamente nas σ-algebras Lf+ , Lf− , e Lf . Mostre que Lf = L|f | =Lf+ ∩ Lf− .

8. Sendo n ∈ N, suponha que δn e a medida de Dirac com suporte em n, e

µ =∞∑

n=1

(−1)n

2nδn.

Determine decomposicoes de Jordan e de Hahn para a medida µ.

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228 Capıtulo 4. Outras Medidas

9. Seja λ o integral indefinido de f(x) = e−x2

sen(πx), e µ a medida referida noexercıcio anterior. Determine decomposicoes de Jordan e de Hahn para λ+ µ.

10. Seja µ uma medida real no espaco (X,M) e E ∈ M. Mostre que

a) µ+(E) = sup µ(F ) : F ∈ M, F ⊆ E, e

b) µ−(E) = − inf µ(F ) : F ∈ M, F ⊆ E.

11. Existe alguma medida real µ tal que µ([a, b]) =

∫ b

a

sen(x)

xdx?

12. Suponha que µ e uma medida real em B(R), e f(x) = µ(] −∞, x]). Proveque f(x) = g(x) − h(x), onde g e h sao funcoes crescentes e limitadas em R.

13. Demonstre o teorema 4.1.7. sugestao: Verifique que pode substituira classe V referida no teorema 4.1.7 pela classe (numeravel) formada pelosrectangulos abertos com vertices de coordenadas racionais que sao µ-nulos.

14. Suponha que Q = q1, · · · , qn, · · · e

µ =

∞∑

n=1

(−1)n

2nδqn

.

Determine decomposicoes de Jordan e de Hahn para a medida µ. Mostre que(dependendo da enumeracao dos racionais em causa) os suportes de µ+ e deµ− podem ser iguais.

15. Suponha que µ e o integral indefinido de uma funcao somavel f . As medidasµ+ e µ− podem ter o mesmo suporte?

4.2 A Variacao Total de uma Medida

A nocao de variacao total de uma medida real ou positiva µ e analoga ade oscilacao de uma funcao real, num dado conjunto. Se µ esta definida naσ-algebra M, temos

Definicao 4.2.1 (Variacao Total). A variacao total de µ e a funcao |µ|definida em M por:(4)

|µ| (E) = sup µ(F ) : F ⊆ E,F ∈ M− inf µ(F ) : F ⊆ E,F ∈ M .4A utilizacao do sımbolo |µ| para designar a variacao total de µ e tradicional, mas e

ambıgua, porque se presta a confusoes com o simples valor absoluto da funcao µ. Conven-cionamos a este respeito que o valor absoluto de µ(E) sera sempre designado por |µ(E)|.

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4.2. A Variacao Total de uma Medida 229

Conforme sugerido no exercıcio 10 da seccao anterior, a variacao total deuma medida real µ calcula-se facilmente das suas decomposicoes de Jordane de Hahn. Sempre supondo que F ⊆ E e F ∈ M, temos

µ(F ) = µ+(F ) − µ−(F ) ≤ µ+(F ) ≤ µ+(E) = µ(E ∩ P ),

e analogamente

µ(F ) = µ+(F ) − µ−(F ) ≥ −µ−(F ) ≥ −µ−(E) = µ(E ∩N).

Podemos assim concluir que

max µ(F ) : F ⊆ E,F ∈ M = µ(E ∩ P ) = µ+(E), e

min µ(F ) : F ⊆ E,F ∈ M = µ(E ∩N) = −µ−(E).

A variacao total de µ em E e portanto dada por |µ| (E) = µ+(E) + µ−(E),ou seja, |µ| = µ+ + µ−. Passamos tambem a dizer que µ+ e µ− sao, respec-tivamente, a variacao positiva e a variacao negativa de µ. Note-se que |µ|,µ+ e µ− sao medidas positivas, que sao finitas quando µ e uma medidareal. Quando µ e positiva, e claro que a variacao total de µ pode ser definidacomo em 4.2.1, mas nesse caso temos obviamente µ = |µ|, e esta medida naoe necessariamente finita.

Exemplos 4.2.2.

1. Se f : RN → R e somavel e µ e o respectivo integral indefinido, entao µ+ eµ− sao os integrais indefinidos de f+ e f−. A variacao total de µ e portantodada por

|µ|(E) = µ+(E) + µ−(E) =

E

f+ +

E

f− =

E

(f+ + f−) =

E

|f |.

Por outras palavras, a variacao total |µ| e o integral indefinido de |f |.

2. Se µ = δ1 − δ−1, entao a decomposicao de Jordan de µ e (δ1, δ−1), donde|µ| = δ1 + δ−1.

3. Observe-se ainda que

µ =

∞∑

n=1

(−1)n

2nδn ⇒ µ+ =

∞∑

n=1

1

22nδ2n, µ

− =

∞∑

n=1

1

22n−1δ2n−1 e |µ| =

∞∑

n=1

1

2nδn.

A variacao total de uma medida real pode ser tambem calculada pela:

Proposicao 4.2.3. Se µ e uma medida real, ou positiva, entao

|µ| (E) = sup

∞∑

n=1

|µ(En)| : En ∈ M, E =

∞⋃

n=1

En, En’s disjuntos

.

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230 Capıtulo 4. Outras Medidas

Demonstracao. O resultado e evidente quando µ e uma medida positiva. Seµ e uma medida real entao temos para qualquer particao En que

∞∑

n=1

|µ(En)| =

∞∑

n=1

|µ+(En) − µ−(En)| ≤∞∑

n=1

(µ+(En) + µ−(En)

)=

= µ+(E) + µ−(E) = |µ| (E), i.e.,

sup

∞∑

n=1

|µ(En)| : En ∈ M, E =

∞⋃

n=1

En, En’s disjuntos

≤ |µ| (E).

Por outro lado, e supondo que (P,N) e uma decomposicao de Hahn para µ,tomamos E1 = E ∩ P,E2 = E ∩N e En = ∅, para n > 2, donde

∞∑

n=1

|µ(En)| = |µ(E1)| + |µ(E2)| = µ(E ∩ P ) + µ(E ∩N) =

= µ+(E) + µ−(E) = |µ| (E), e

|µ| (E) ≤ sup

∞∑

n=1

|µ(En)| : En ∈ M, E =

∞⋃

n=1

En, En’s disjuntos

.

De acordo com este resultado, podemos substituir a definicao 4.2.1 pelaseguinte, agora aplicavel a qualquer medida real, positiva ou complexa:

Definicao 4.2.4 (Variacao Total). Se µ e uma medida (positiva, real oucomplexa) definida em M, a variacao total de µ e a funcao |µ| : M →[0,∞], dada por:

|µ| (E) = sup

∞∑

n=1

|µ(En)| : En ∈ M, E =

∞⋃

n=1

En, En’s disjuntos

.

Exemplo 4.2.5.

Podemos definir “pentes de Dirac” em qualquer conjunto X , e na σ-algebraP(X). Dado um conjunto numeravel S = x1, x2, · · · , xn, · · · ⊆ X e umasucessao de reais ou complexos c1, c2, · · · , se existe uma medida π concentradaem S e tal que π(xn) = cn, escrevemos

π =∞∑

n=1

cnδxne temos π(E) =

n∈IE

cn, onde IE = n ∈ N : xn ∈ E e E ⊆ X.

Deixamos para o exercıcio 1 verificar que a medida π existe se e so se se verificaum dos seguintes casos:

• cn ≥ 0 para qualquer n ∈ N, ou

• a serie∑∞

n=1 cn e absolutamente convergente.

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4.2. A Variacao Total de uma Medida 231

Dizemos entao que π e um “pente de Dirac”, ou uma medida discreta. Avariacao total de π e dada por:

|π| (E) =∑

n∈IE

|cn| .

O proximo teorema agrupa algumas observacoes elementares, todas demuito simples verificacao. Note-se que mesmo quando µ e uma medidacomplexa e ainda verdade que |µ| e uma medida positiva finita.

Teorema 4.2.6. Se µ e uma medida real ou complexa, entao:

a) |µ(E)| ≤ |µ| (E) ≤ |µ| (F ), para quaisquer E,F ∈ M com E ⊆ F .

b) E e µ-nulo ⇐⇒ |µ| (E) = 0.

c) |µ| e uma medida positiva finita, donde µ e de variacao limitada.

d) µ esta concentrada em S ⇐⇒ |µ| esta concentrada em S.

e) Se µ e λ sao medidas reais (resp., complexas) e c ∈ R (resp., c ∈ C),entao µ+λ e cµ sao medidas reais (resp., complexas). Em particular,o conjunto das medidas reais (resp., complexas) definidas em (X,M)e um espaco vectorial real (resp., complexo).(5)

Demonstracao. Para provar a), tomamos na definicao (4.2.4) E1 = E eEn = ∅ para n > 1, para concluir que |µ(E)| ≤ |µ| (E). E igualmente facilverificar que se E ⊆ F entao |µ| (E) ≤ |µ| (F ).

Se |µ| (E) = 0, F ∈ M e F ⊆ E segue-se de a) que µ(F ) = 0, e portanto Ee µ-nulo. Por outro lado, se E e µ-nulo entao e obvio da definicao (4.2.4)que |µ| (E) = 0.

Deixamos para o exercıcio 2 a demonstracao de c). Supondo verificad estaafirmacao, e evidente que d) e equivalente a b).

A afirmacao e) resume propriedades elementares de series convergentes.

A medida µ diz-se de variacao limitada se e so se |µ| (X) < +∞, sendoclaro que apenas as medidas positivas, que alias coincidem com a sua variacaototal, podem nao ter variacao limitada. Passamos a designar por M(M, Y )o espaco das medidas µ : M → Y , onde Y = R ou Y = C, que por vezessimplificamos para M(M) quando Y e evidente do contexto, e deixamospara os exercıcios 4 e 5 a verificacao do seguinte resultado:

5As medidas reais (resp., complexas) em (X,M) sao funcoes µ : M → R (resp.,µ : M → C) de tipo especial, e formam assim um subespaco do espaco de todas as funcoesf reais (resp., complexas) definidas em M. Este ultimo designa-se usualmente por RM

(resp., CM).

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232 Capıtulo 4. Outras Medidas

Proposicao 4.2.7. A aplicacao definida em M(M,C) por ‖µ‖ = |µ| (X) euma norma, e com esta norma M(M,C) e um espaco de Banach complexo.Analogamente, M(M,R) e um espaco de Banach real.

Observacoes 4.2.8.

1. Se µ e o integral indefinido de uma funcao somavel f : RN → R, entao

‖µ‖ = |µ| (RN ) =

RN

|f |dmN = ‖f‖1 .

2. Seja M(B(RN )) o espaco de Banach formado por todas as medidas reaisdefinidas em B(RN), que se diz o espaco das medidas de Borel(6). Ooperador Ψ : L1(RN ) → M(B(RN)) que associa a cada classe [f ] o integralindefinido de f e linear e preserva normas, de acordo com a observacao acima.O espaco de Banach M(B(RN)) contem por isso um subespaco de Banachisomorfo a L1(RN ). Dizemos portanto que o espaco de Banach M(B(RN))e uma extensao do espaco de Banach L1(RN ), se bem que esta afirmacaopressuponha que “identificamos”, ou seja, tratamos como se fossem o mesmoobjecto, tanto a classe [f ] como o seu integral indefinido(7).

Aproveitamos para generalizar a medidas reais e complexas a nocao demedida completa que introduzimos em 2.3.15:

Definicao 4.2.9 (Medida Completa). A medida µ e completa se e so setodos os subconjuntos de conjuntos µ-nulos sao mensuraveis, i.e., se e so seo espaco (X,M, |µ|) e completo, no sentido de 2.3.15.

Exemplos 4.2.10.

1. O integral indefinido de f e completo, se tomarmos M = Lf .

2. Se µ e uma medida complexa definida em M, a sua menor extensao completaesta definida da forma obvia na σ-algebra Mµ = M|µ|, dada por:

Mµ = E ⊆ X : Existem A,B ∈ M, A ⊆ E ⊆ B, |µ|(B\A) = 0 .

Exercıcios.

6Mais geralmente, se X e um espaco topologico, as medidas definidas em B(X) dizem-sede Borel em X.

7Os elementos de M(B(RN )) sao tambem distribuicoes, que por vezes se chamamfuncoes generalizadas. Esta terminologia reflecte exactamente a identificacao entrefuncoes e os respectivos integrais indefinidos, no sentido que certas medidas sao (i.e., cor-respondem a) funcoes “normais”, e outras sao apenas “funcoes generalizadas”. O espacoM(B(RN )) e igualmente referido num dos celebres Teoremas de Representacao de Riesz,neste texto o teorema 5.5.11, que alias identifica os elementos de M(B(RN )) com um tipoespecial de distribuicoes.

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4.2. A Variacao Total de uma Medida 233

1. Recorde o exemplo 4.2.5. Verifique que existe uma medida π concentrada emS e tal que π(xn) = cn se e so se cn ≥ 0, ou a serie

∑∞n=1 cn e absolutamente

convergente, e calcule a variacao total de π.

2. Conclua a demonstracao do teorema 4.2.6. Sugestao: Para provar c),comece por mostrar que |µ| e σ-subaditiva.

3. Seja µ uma medida definida no espaco mensuravel (X,M). Prove que

a) |µ| = 0 se e so se µ = 0,

b) Se λ e uma medida definida em M, entao µ⊥λ⇔ |µ| ⊥ |µ|.

4. Seja V = M(M,C) o espaco vectorial das medidas complexas definidas em(X,M), com as operacoes obvias de soma e produto por escalares. Sendoµ, λ ∈ V , e α ∈ C, mostre que

a) |µ+ λ| ≤ |µ| + |λ|, e |αµ| = |α| |µ|.b) ‖µ‖ = |µ| (X) e uma norma em V , i.e., V e um espaco vectorial normado.

c) Suponha que µ = α+ iβ, onde α e β sao medidas reais. Mostre que

max‖α‖, ‖β‖ ≤ ‖µ‖ ≤ ‖α‖ + ‖β‖.

Sendo µn = αn + iβn, onde αn e βn sao medidas reais, conclua que

‖µn − µ‖ → 0 ⇐⇒ ‖αn − α‖ → 0 e ‖βn − β‖ → 0.

d) Podemos tambem adoptar no espaco(8) V a norma da convergencia uni-forme, dada por ‖µ‖∞ = sup|µ(E)| : E ∈ M. Mostre que neste casoestas normas sao equivalentes, i.e., existem numeros reais positivos nao-nulos a, b tais que

a‖µ‖∞ ≤ ‖µ‖ ≤ b‖µ‖∞, para qualquer µ ∈ V .

sugestao: Suponha que µ e real, e use a sua decomposicao de Hahn.

e) Mostre que podemos ter µn(E) → µ(E) para qualquer E ∈ M semque ‖µn − µ‖ → 0, ou seja, existem sucessoes em V que convergem pon-tualmente, mas nao convergem no sentido de qualquer das normas quereferimos. sugestao: Recorde o exercıcio 6 da seccao 3.5.

5. Continuando o exercıcio anterior, mostre que V e um espaco de Banach.sugestao: Pode ser conveniente proceder da seguinte forma:

a) Mostre que se ‖µn − µm‖ → 0 entao µn converge uniformemente parauma funcao limitada µ : M → C.

b) Prove que µ e uma funcao aditiva, e use o facto de ‖µn − µ‖∞ → 0 paraconcluir que µ e σ-aditiva, ou seja, e uma medida.

c) Conclua que ‖µn − µ‖ → 0, e portanto V e um espaco de Banach.

8V e um subespaco do espaco das funcoes limitadas f : M → C.

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234 Capıtulo 4. Outras Medidas

6. Seja ainda V o espaco vectorial das medidas complexas definidas em (X,M),com as operacoes ja referidas.

a) Sendo λ ∈ V , mostre que U = µ ∈ V : µ⊥λ e um subespaco vectorialnormado de V . U e um espaco de Banach?

b) Verifique que o conjunto W formado pelas medidas discretas e igualmenteum espaco vectorial normado de V . W e um espaco de Banach?

4.3 Medidas Absolutamente Contınuas

Sabemos que se a medida µ e o integral indefinido de Lebesgue da funcaof , entao:

mN (E) = 0 =⇒ µ(E) = 0.

Introduzimos a nocao de continuidade absoluta para exprimir esta relacaoentre medidas. O exemplo que acabamos de mencionar e especialmentesimples, porque mN e uma medida positiva, mas e facil frasear a definicaocorrespondente de modo a ser aplicavel a qualquer tipo de medidas.

Definicao 4.3.1 (Continuidade Absoluta). Se µ e λ sao medidas em M,dizemos que µ e absolutamente contınua (em relacao a λ) e escrevemosµ ≪ λ se e so se qualquer conjunto λ-nulo e igualmente µ-nulo. Quando λe a medida de Lebesgue, e usual omitir a referencia “em relacao a λ”.

Exemplos 4.3.2.

1. Como dissemos acima, se a medida µ e o integral indefinido da funcao f emRN , entao µ≪ mN .

2. A medida de Dirac nao e absolutamente contınua. Por exemplo, o conjuntoA = 0 e m-nulo, mas nao e δ-nulo.

3. Se µ e uma medida real em (X,M), temos µ ≪ |µ|, µ+ ≪ |µ| e µ− ≪ |µ|.Em particular, |µ| = 0 se e so se µ = 0, ou seja,

|µ| (X) = 0 ⇐⇒ µ(E) = 0 para qualquer E ∈ M.

A continuidade absoluta de µ em relacao a λ pode ser expressa de diver-sas formas equivalentes, e analisaremos algumas delas nos exercıcios. Ob-servamos desde ja que

Teorema 4.3.3. Se µ e λ sao medidas em M, entao:

µ≪ λ⇔ |µ| ≪ |λ| ⇔ Para qualquer E ∈ M, |λ| (E) = 0 ⇒ |µ| (E) = 0.

O resultado seguinte generaliza o exercıcio 10 da seccao 3.3 a qualquermedida complexa.

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4.3. Medidas Absolutamente Contınuas 235

Teorema 4.3.4. Se µ e λ sao medidas em M e µ e de variacao limitada,entao µ≪ λ se e so se

(1) ∀ε>0 ∃δ>0 ∀E∈M |λ|(E) < δ =⇒ |µ(E)| < ε.

Demonstracao. Supomos primeiro que a condicao (1) e falsa, i.e.,

∃ε>0 ∀δ>0 ∃E∈M tal que |λ|(E) < δ e |µ(E)| ≥ ε.

Passamos a provar que µ nao e absolutamente contınua em relacao a λ.Para isso, notamos que existem conjuntos En tais que

|λ|(En) <1

2ne |µ(En)| ≥ ε, donde |µ| (En) ≥ ε.

Consideramos os conjuntos

Fn =

∞⋃

k=n

Ek e F =

∞⋂

n=1

Fn onde Fn ց F.

Recordamos do lema de Borel-Cantelli que

∞∑

n=1

|λ|(En) <∞ =⇒ |λ|(F ) = 0, ou seja, F e λ-nulo.

Por outro lado, como Fn ց F e, por hipotese, |µ| e uma medida finita,temos que |µ|(Fn) → |µ|(F )|. E claro que En ⊆ Fn, e por isso

|µ|(Fn) ≥ |µ|(En) ≥ |µ(En)| ≥ ε =⇒ |µ|(F )| ≥ ε > 0.

E portanto evidente que F e λ-nulo mas nao e µ-nulo, ou seja, µ nao e absolu-tamente contınua em relacao a λ. Deixamos a conclusao desta demonstracao,que envolve verificar que (1) ⇒ µ≪ λ, para o exercıcio 4.

Exercıcios.

1. Sendo µ e λ medidas definidas em M, quais destas afirmacoes sao equiva-lentes a µ≪ λ?

a) Para qualquer E ∈ M, λ(E) = 0 ⇒ µ(E) = 0.

b) Para qualquer E ∈ M, |λ| (E) = 0 ⇒ µ(E) = 0.

c) Para qualquer E ∈ M, |λ| (E) = 0 ⇒ |µ| (E) = 0.

d) Para qualquer P ∈ M, se λ esta concentrada em P entao µ esta concen-trada em P .

2. Considere as medidas dadas em M = P(R) por µ1(E) = δ(E), µ2(E) =#(E ∩ Z) e µ3(E) = #(E ∩ Q). Mostre que µ1 ≪ µ2 ≪ µ3.

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236 Capıtulo 4. Outras Medidas

3. Sejam µ e λmedidas definidas em M. Dizemos que (µa, µs) e a decomposicao

de lebesgue de µ em ordem a λ se e so se µa e µs sao medidas definidas emM tais que

µ = µa + µs, com µa ≪ λ e µs⊥λ.Prove que esta decomposicao, a existir, e unica(9). Conclua em particular que

µ≪ λ e µ⊥λ =⇒ µ = 0.

4. Sejam µ e λ medidas definidas em M, onde µ e de variacao limitada.

a) Prove que se µ e λ satisfazem a condicao (1) referida no teorema 4.3.4entao µ≪ λ, o que conclui a demonstracao do referido teorema.

b) Prove que se µ e absolutamente contınua em relacao a λ e |λ|(En) → 0entao µ(En) → 0.

c) Verifique que a afirmacao b) e falsa se µ nao e de variacao limitada.

5. Sendo µ o integral indefinido da funcao somavel (ou nao-negativa) f : RN →R, mostre que mN ≪ µ se e so se f(x) 6= 0 qtp.

6. Seja V o espaco vectorial normado das medidas complexas definidas em(X,M) referido no exercıcio 4 da seccao anterior. Dado λ ∈ V , mostre queU = µ ∈ V : µ≪ λ e um subespaco de Banach de V .

4.4 Medidas Regulares

Passamos a dizer que µ e uma medida de Lebesgue-Stieltjes se e so se µesta definida numa σ-algebra M ⊇ B(RN ). Recorde-se que se M = B(RN )dizemos tambem que µ e uma medida de Borel(10). A nocao de regula-ridade (exterior) foi definida em 2.3.13 para medidas de Lebesgue-Stieltjespositivas, onde indicamos exemplos destas medidas, regulares ou nao.

Exemplos 4.4.1.

1. Se f ≥ 0 e localmente somavel, o respectivo integral indefinido e uma medidade Lebesgue-Stieltjes σ-finita e regular.

2. Se f(x) = x−2 em R, e µ e o integral indefinido de f , entao µ e σ-finita, masnao e regular em B(R), porque

µ(0) = 0 6= infµ(U) : 0 ∈ U ⊆ R, U aberto = ∞.

3. Conforme ja observamos, o cardinal em RN e uma medida de Lebesgue-Stieltjes que nao e regular nos conjuntos finitos nao-vazios.

9A existencia deste tipo de decomposicoes sera estabelecida, mais adiante, no Teoremade Radon-Nikodym-Lebesgue.

10E tambem comum dizer que a restricao da medida de Lebesgue a σ-algebra de Borele A medida de Borel.

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4.4. Medidas Regulares 237

Para estudar a possıvel regularidade de uma medida de Borel µ ≥ 0, econveniente introduzir a funcao µ∗ : P(RN ) → [0,∞] dada por

µ∗(E) = inf µ(U) : E ⊆ U,U aberto ,

que e uma medida exterior, como vimos no exemplo 2.5.5.5. E claro que µe regular em N ⊆ M se e so se µ(E) = µ∗(E) para qualquer E ∈ N , masexibimos ja multiplos exemplos em que µ 6= µ∗. Deixamos para o exercıcio1 a demonstracao das seguintes relacoes entre µ e µ∗:

Lema 4.4.2. Se µ e uma medida de Lebesgue-Stieltjes positiva definida naσ-algebra M entao

a) µ(E) ≤ µ∗(E) para qualquer E ∈ M.

b) µ(U) = µ∗(U), para qualquer aberto U ⊆ RN .

A teoria desenvolvida no Capıtulo II mostra que µ∗ determina a σ-algebrados conjuntos µ∗-mensuraveis, que designaremos Lµ(RN ), e sabemos queE ⊆ RN e µ∗-mensuravel se e so se

µ∗(F ) = µ∗(F ∩ E) + µ∗(F\E), para qualquer F ⊆ RN .

A restricao de µ∗ a Lµ(RN ) e, como sabemos, uma medida, que neste casoe evidentemente regular, e que designaremos por µr. Temos naturalmenteque, em geral, M 6= Lµ(RN ) e µ 6= µr.

Muitos dos argumentos que utilizamos no Capıtulo II no estudo da me-dida de Lebesgue sao facilmente adaptados a este contexto mais abstracto.Por exemplo, na demonstracao de a) na proposicao seguinte basicamenterepetimos ideias utilizadas na proposicao 2.2.10.

Lema 4.4.3. Se µ e uma medida de Lebesgue-Stieltjes positiva entao:

a) E ∈ Lµ(RN ) se e so se

(1) µ(U) = µ∗(U ∩ E) + µ∗(U\E), para qualquer aberto U ⊆ RN .

b) B(RN ) ⊆ Lµ(RN ), ou seja, µr e uma medida de Lebesgue-Stieltjes.

Demonstracao. a) Qualquer conjunto µ∗-mensuravel satisfaz a condicao (1),tendo em conta a definicao de Lµ(RN ) e 4.4.2 b). Suponha-se portanto queE satisfaz a condicao referida e F ⊆ RN . Dado qualquer aberto U tal queF ⊆ U ⊆ RN , e claro que:

µ∗(F ∩ E) + µ∗(F\E) ≤ µ∗(U ∩E) + µ∗(U\E) = µ(U).

Segue-se que µ∗(F ∩E) + µ∗(F\E) ≤ µ∗(F ) e portanto E e µ∗-mensuravel.

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238 Capıtulo 4. Outras Medidas

b) Para provar que B(RN) ⊆ Lµ(RN ), e suficiente estabelecer que qual-quer aberto V ⊆ RN e µ∗-mensuravel. De acordo com a) e com 4.4.2 b),basta-nos verificar que, se U e V sao abertos, donde U ∩V e tambem aberto,temos:

(2) µ(U) ≥ µ∗(U ∩ V ) + µ∗(U\V ) = µ(U ∩ V ) + µ∗(U\V ).

Recordamos de 1.6.18 que existem conjuntos compactos Kn ր V , e obser-vamos que

U\Kn e aberto e U\Kn ⊇ U\V =⇒ µ(U\Kn) ≥ µ∗(U\V )

Como µ e uma medida, temos

µ(U) = µ(U ∩Kn) + µ(U\Kn) ≥ µ(U ∩Kn) + µ∗(U\V ).

E claro que µ(U ∩Kn) ր µ(U ∩ V ), donde obtemos (2).

Exactamente como concluımos no Capıtulo II que a medida de Lebesguee a maior solucao regular do Problema de Borel, podemos estabelecer que

Corolario 4.4.4. Se µ esta definida e e regular na σ-algebra A entao A ⊆Lµ(RN ) e µ e uma restricao de µr.

Demonstracao. Se E ∈ A e U e aberto, e dado que µ = µ∗ em A, temos

µ(U) = µ(U ∩ E) + µ(U\E), i.e., µ(U) = µ∗(U ∩E) + µ∗(U\E),

ou seja, E ∈ Lµ(RN ).

O proximo lema identifica conjuntos E ∈ M∩L(RN ) para os quais temosµ(E) = µr(E) = µ∗(E), ou seja, conjuntos onde a medida µ e necessaria-mente regular.

Lema 4.4.5. Seja µ uma medida de Lebesgue-Stieltjes positiva. Se µ∗(E) <+∞ e E ∈ M∩ Lµ(RN ) entao µ(E) = µr(E) = µ∗(E).

Demonstracao. Existem conjuntos abertos Un ⊆ RN tais que

E ⊆ Un e µ(Un) = µr(Un) → µ∗(E) = µr(E).

Podemos supor sem perda de generalidade que

µ(Un) = µr(Un) < +∞ e Un ց B =

∞⋂

n=1

Un, onde e obvio que B ⊇ E.

Aplicamos o teorema da convergencia monotona de Lebesgue as medidas µe µr para concluir que

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4.4. Medidas Regulares 239

• Como Un ց B, temos µ(Un) → µ(B) e µr(Un) → µr(B). Comoµ(Un) → µr(E) e µ(Un) = µr(Un), segue-se que

µr(E) = µ(B) = µr(B) < +∞ e µr(B\E) = 0 = µ∗(B\E).

• Como 0 ≤ µ(B\E) ≤ µ∗(B\E) = 0, e claro que µ(B\E) = 0 e por-tanto µ(E) = µ(B) = µr(E).

E evidente do lema anterior que se µ e uma medida de Borel positivafinita, por exemplo se µ e uma medida de probabilidade, entao µ e regular.Veremos imediatamente a seguir que o mesmo resultado e valido se µ e finitaem conjuntos compactos(11), caso em que µ se diz localmente finita.

Exemplos 4.4.6.

1. A medida de Lebesgue e localmente finita.

2. O integral indefinido de uma funcao localmente somavel e nao negativa euma medida positiva localmente finita.

3. O pente de Dirac em R dado por π(E) = #(E ∩ Z) e uma medida positivalocalmente finita.

4. O integral indefinido de f(x) = x−2 e uma medida σ-finita que nao e local-mente finita e nao e regular em B(R).

Teorema 4.4.7. Qualquer medida de Lebesgue-Stieltjes positiva, localmentefinita e definida em M e regular em M∩Lµ(RN ) ⊇ B(RN ). Em particular,qualquer medida de Borel positiva e localmente finita e regular.

Demonstracao. Seja E ∈ M∩Lµ(RN ) e Bn a bola aberta de raio n e centrona origem. E claro que

E ∩Bn ∈ M∩ Lµ(RN ) e µ∗(E ∩Bn) ≤ µ(Bn+1) ≤ µ(Bn+1) < +∞.

Segue-se do lema 4.4.5 que µ(E ∩ Bn) = µr(E ∩ Bn). Como E ∩ Bn րE, concluımos que µ(E) = µr(E) quando E ∈ M ∩ Lµ(RN ). Por outraspalavras, µ e regular em M∩Lµ(RN ) ⊇ B(RN ).

A questao da aproximacao de conjuntos mensuraveis por conjuntos aber-tos e, como sabemos, muito relevante no estudo da medida de Lebesgue, ee natural procurar resultados analogos para outras medidas de Lebesgue-Stieltjes. A proxima proposicao deve ser comparada com o teorema 2.2.16.

11No contexto de RN , os conjuntos compactos podem ser substituıdos nesta definicaopor conjuntos elementares, ou limitados. A referencia a compactos reflecte a adaptacaoda definicao a outros espacos topologicos.

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240 Capıtulo 4. Outras Medidas

Proposicao 4.4.8. Se µ e uma medida de Lebesgue-Stieltjes positiva, σ-finita e regular em M, entao as seguintes afirmacoes sao equivalentes:

a) E ∈ Lµ(RN ),

b) Para qualquer ε > 0 existe um aberto U ⊇ E tal que µ∗(U\E) < ε,

c) E = B\N , onde B e de tipo Gδ e µ∗(N) = 0.

Demonstracao. Como µ e σ-finita, existem conjuntos Xn ∈ M tais queXn ր RN e µ(Xn) < +∞. Como µ e regular, existem abertos Vn ⊇ Xn taisque µ(Vn) < +∞ e Vn ր RN .

a) ⇒ b): Dado ε > 0, existem abertos Un ⊇ E ∩ Vn tais que

µ(Un) < µ∗(E ∩ Vn) +ε

2n, ja que µ∗(E ∩ Vn) ≤ µ(Vn) < +∞.

Como µ(Un) = µ∗(Un) e Un, E ∩ Vn ∈ Lµ(RN ), concluımos que

µ∗(Un\(E ∩ Vn)) = µ(Un) − µ∗(E ∩ Vn) <ε

2n.

Se U =⋃∞

n=1 Un entao E ⊆ U , U e aberto e

µ∗(U\E) ≤∞∑

n=1

µ∗(Un\E ∩ Vn) < ε

b) ⇒ c): Existem abertos Un tais que E ⊆ Un e µ∗(Un\E) < 1n . Tomamos

B =⋂∞

n=1 Un e notamos que

E ⊆ B, B e de tipo Gδ e µ∗(B\E) = 0.

c) ⇒ a): Se E = B\N onde B ∈ B(RN ) ⊆ Lµ(RN ) e µ∗(N) = 0, entaoN,E ∈ Lµ(RN ).

Podemos adaptar o teorema 2.3.18 a este contexto mais geral:

Corolario 4.4.9. Se µ e uma medida de Borel positiva, σ-finita e regular(e.g., se µ e localmente finita) entao µr e a maior extensao regular de µ, amenor extensao completa de µ, e a unica extensao completa e regular deµ.

Demonstracao. Vimos em 4.4.3 c) que µr e a maior extensao regular de µ.Por outro lado, e facil concluir de 4.4.8 c) que qualquer extensao completade µ esta definida pelo menos em Lµ(RN ), e coincide com µ nessa classe deconjuntos.

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4.4. Medidas Regulares 241

E por vezes util aplicar estas ideias na seguinte forma:

Corolario 4.4.10. Sejam µ e λ medidas de Lebesgue-Stieltjes positivas elocalmente finitas, definidas respectivamente em M e N . Se µ e λ coincidemnos conjuntos abertos, entao coincidem igualmente em qualquer conjuntoE ∈ M∩N ∩ Lµ(RN ).

Exemplo 4.4.11.

Sejam f e g funcoes nao-negativas, e localmente somaveis em R. Suponha-

se que∫ b

afdm =

∫ b

agdm, para quaisquer a, b ∈ R. Designando por φ e γ

respectivamente os integrais indefinidos de f e de g na σ-algebra L(R), e claroque φ(U) = γ(U), para qualquer aberto U , e tanto φ como γ sao localmentefinitas. De acordo com o resultado anterior, φ e γ coincidem na σ-algebraL(R), i.e.,

∫E fdm =

∫E gdm, para qualquer E ∈ L(R). Temos por isso que

f ≃ g.

O proximo resultado e uma generalizacao de 2.3.9 e 2.3.10.

Teorema 4.4.12. Se µ e uma medida de Lebesgue-Stieltjes positiva, σ-finitae regular em M entao as seguintes afirmacoes sao equivalentes:

a) E ∈ Lµ(RN ).

b) Para qualquer ε > 0 existem F (fechado), e U (aberto), tais que F ⊆E ⊆ U , e µ(U\F ) < ε.(12)

c) Existem A,B ∈ B(RN ) tais que A ⊆ E ⊆ B e µ(B\A) = 0.

Demonstracao. E uma adaptacao directa das ideias em 2.3.9 e 2.3.10:

a) ⇒ b): De acordo com a proposicao 4.4.8, existem abertos U ⊇ E eV ⊇ Ec tais que

µ∗(U\E) <ε

2e µ∗(V \Ec) <

ε

2.

Tomamos F = V c, e notamos que F ⊆ E ⊆ U e µ(U\F ) < ε.

b) ⇒ c): Existem conjuntos fechados Fn e abertos Un tais que

Fn ⊆ E ⊆ Un e µ(Un\Fn) <1

n.

Tomamos A =⋃∞

n=1 Fn e B =⋂∞

n=1 Un, donde

A,B ∈ B(RN ), A ⊆ E ⊆ B, e µ(B\A) = 0.

12A regularidade interior de µ e a condicao µ(E) = supµ(K) :K ⊆ E, K compacto .Como RN e σ-compacto, este resultado mostra que em RN a regularidade exterior implicaa regularidade interior para medidas σ-finitas.

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242 Capıtulo 4. Outras Medidas

c) ⇒ a): Temos E = B\N , onde N ⊆ B\A, e recordamos a proposicao4.4.8.

Tal como no caso da medida de Lebesgue, podemos complementar esteteorema 4.4.12 com as seguintes observacoes:

Teorema 4.4.13. Se µ e uma medida de Lebesgue-Stieltjes positiva, σ-finitae regular, e µ∗(E) < +∞, entao as seguintes afirmacoes sao equivalentes:

a) E ∈ Lµ(RN ).

b) Para qualquer ε > 0, existem K (compacto) e U (aberto) tais que

K ⊆ E ⊆ U e µ(U\K) < ε.

c) Para qualquer ε > 0, existe J ∈ E(RN ) tal que µ∗(E∆J) < ε.

E util adaptar as ideias expostas nesta seccao a medidas de Lebesgue-Stieltjes reais ou complexas. A regularidade destas medidas pode ser definidacomo se segue:

Definicao 4.4.14. Seja µ uma medida de Lebesgue-Stieltjes, definida pelomenos em A. Dizemos que µ e regular em A se e so se |µ| e regular emA, no sentido da definicao 2.3.13.

Como as medidas complexas sao limitadas, e muito facil verificar asseguintes observacoes, que deixamos como exercıcio:

Lema 4.4.15. Seja µ uma medida de Lebesgue-Stieltjes complexa, definidapelo menos em A. Entao µ e regular em A se e so se, para qualquer E ∈ A,existem conjuntos abertos Un ⊇ E tais que |µ|(Un\E) → 0. Em particular,

a) Se µ e real, entao µ e regular se e so se µ+ e µ− sao regulares, e

b) Se µ = α + iβ e complexa, onde α e β sao medidas reais, entao µ eregular se e so se α e β sao regulares.

De acordo com 4.4.9, quando µ e uma medida de Borel complexa entao |µ|tem uma unica extensao regular e completa, que esta definida na σ-algebraL|µ|(R

N ). Para simplificar a notacao, escrevemos:

Lµ(RN ) = L|µ|(RN ) =

E ⊆ RN : ∃A,B∈B(RN ) A ⊆ E ⊆ B, |µ| (B\A) = 0

.

O proximo lema relaciona as extensoes regulares de uma medida real µcom as extensoes regulares da sua variacao total |µ|.

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4.4. Medidas Regulares 243

Lema 4.4.16. Seja µ uma medida de Borel real e ρ uma extensao regularde µ. Entao |ρ|, ρ+ e ρ− sao extensoes regulares, respectivamente, de |µ|,µ+ e µ−.

Demonstracao. Designamos por A o domınio de definicao de ρ, e por λ arestricao de |ρ| a B(RN ). E claro que |ρ| e uma extensao finita e regular deλ, e segue-se de 4.4.10 que A ⊆ Lλ(RN ), onde

Lλ(RN ) =E ⊆ RN : ∃A,B∈B(RN )A ⊆ E ⊆ B,λ(B\A) = 0

.

A medida ρ tem uma decomposicao de Hahn na σ-algebra A ⊆ Lλ(RN ).Por outras palavras, as medidas ρ+ e ρ− estao concentradas em conjuntosdisjuntos P,N ∈ Lλ(RN ). Existem, por isso, conjuntos A+, B+, A−, B− ∈B(RN) tais que

A+ ⊆ P ⊆ B+, A− ⊆ N ⊆ B−, e λ(B+\A+) = λ(B−\A−) = 0.

Sendo (ρ+, ρ−) a decomposicao de Jordan de ρ, concluımos que ρ+ e ρ−

estao concentradas, respectivamente, em A+ e A−, que sao disjuntos e Borel-mensuraveis. Como µ = ρ = ρ+ − ρ− em B(RN), as restricoes de ρ+ e ρ−

a B(RN ) formam a unica decomposicao de Jordan de µ em B(RN), i.e.,coincidem com µ+ e µ− em B(RN ). Portanto ρ+, ρ− e |ρ| sao extensoes deµ+, µ− e |µ|. A regularidade de ρ+ e ρ− resulta do lema 4.4.15.

O proximo teorema adapta para medidas complexas em B(RN ) ideiasja referidas para medidas positivas. Mais uma vez, estas medidas sao uni-camente determinadas em B(RN ) pelos seus valores nos conjuntos abertos,mas notem-se a este respeito as observacoes feitas no exercıcio 4.

Teorema 4.4.17. Se µ e uma medida complexa de Borel entao:

a) µ e regular em B(RN ).

b) µ tem uma unica extensao completa e regular µr, definida em Lµ(RN ).

As extensoes nao regulares de medidas complexas podem ter propriedadessurpreendentes, e indicamos um exemplo interessante no exercıcio 11. Esseexercıcio mostra em particular que λ pode ser extensao de uma medidacomplexa µ sem que |λ| seja extensao de |µ|.

Como ja referimos, a nocao de regularidade e aplicavel a medidas definidasem qualquer espaco topologico. Os teoremas demonstrados nesta seccaoforam-no sempre no contexto de RN , mas nao e difıcil generaliza-los. Naverdade, so invocamos propriedades especıficas de RN nas demonstracoes de

• 4.4.3, quando referimos que os abertos (em particular RN ) sao σ-compactos (Teorema de Cantor 1.6.18), e

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244 Capıtulo 4. Outras Medidas

• 4.4.7, porque utilizamos a compacidade de Bn.

E na verdade facil mostrar que os teoremas desta seccao sao aplicaveis pelomenos em qualquer espaco topologico localmente compacto onde os abertossejam σ-compactos.

Recorde ainda que a nocao de suporte de uma medida de Lebesgue-Stieltjes foi referida a proposito do teorema 4.1.7. O exercıcio 9 adapta estanocao a medidas regulares definidas em espacos topologicos mais gerais.

Exercıcios.

1. Seja µ ≥ 0 uma medida de Lebesgue-Stieltjes em RN , e µ∗ : P(RN ) → [0,∞]dada por µ∗(E) = inf µ(U) : E ⊆ U,U aberto . Prove as afirmacoes a), b) ec) da proposicao 4.4.2.

2. Suponha que µ e regular, mas nao e σ-finita, e mostre que µr nao e neces-sariamente a menor extensao completa de µ.

3. Mostre que existem medidas σ-finitas distintas em B(R), que coincidem nosconjuntos abertos.

4. Suponha que µ e λ sao medidas de Borel, e considere as afirmacoes:

a) µ(U) = λ(U), para qualquer aberto U .

b) µ(U) = λ(U), para qualquer rectangulo compacto U .

c) µ(U) = λ(U), para qualquer rectangulo aberto limitado U .

Mostre que se µ e λ sao medidas complexas entao todas as afirmacoes acimasao equivalentes. E se µ e λ sao medidas positivas? A resposta depende de µe λ serem σ-finitas?

5. Demonstre o corolario 4.4.10.

6. Seja f ≥ 0 uma funcao Riemann-integravel em qualquer rectangulo limitadode RN , e λ : J (RN ) → R o seu integral indefinido de Riemann. Mostre que ointegral indefinido de Lebesgue em Lf e a unica extensao regular e completade λ.

7. Demonstre o teorema 4.4.13.

8. Demonstre o lema 4.4.15.

9. Suponha que µ e uma medida positiva num qualquer espaco topologico X ,definida numa σ-algebra M ⊇ B(X). Seja U a uniao de todos os abertosµ-nulos, e F = U c. Mostre que se µ e regular, no sentido em que

µ(E) = supµ(K) : K ⊆ E,K compacto para qualquer E ∈ B(X),

entao F e o menor conjunto fechado onde µ esta concentrada. E este conjuntoque se diz neste caso o suporte de µ.

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4.5. Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R 245

10. Recorde o teorema 2.3.17, sobre a menor extensao completa de um dadoespaco de medida. Mostre que quando µ e uma medida de Borel regular eσ-finita temos, usando a notacao de 2.3.17,

Bµ(RN ) = Lµ(RN ) e µ = µr.

11. Recorde o teorema 2.4.18 e o exercıcio 5 da mesma seccao. Na notacao doexercıcio referido, considere a medida real µ(U) = ρ(U ∩A)−ρ(U ∩B). Mostreque µ e uma extensao nao regular da medida de Borel nula. Porque razao esteexemplo nao contradiz o teorema 4.4.17?

4.5 Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R

As medidas de Lebesgue-Stieltjes localmente finitas sao faceis de descreverem termos das respectivas funcoes de distribuicao. No caso mais simples,que e o de uma medida µ finita em R, consideramos a funcao dada porf(x) = µ(] −∞, x]), e observamos que

(4.5.1) µ(]a, b]) = f(b) − f(a), para quaisquer a ≤ b ∈ R.

Dizemos que f e funcao de distribuicao da medida µ se e so se satisfaz4.5.1, e e facil verificar que

• Se µ e localmente finita em R, existe uma funcao f : R → R quesatisfaz 4.5.1.

• As funcoes de distribuicao de µ sao da forma g(x) = f(x) + C, ondeC ∈ R e arbitrario.

• A funcao f determina a medida µ unicamente em B(R). Dizemos queµ e a medida de Lebesgue-Stieltjes determinada por f , ou a derivada

generalizada de f(13).

A expressao “derivada generalizada”, analoga a de “funcao generalizada”,tem origem na Teoria das Distribuicoes. Repare-se que se a funcao f ediferenciavel qtp e satisfaz a regra de Barrow, entao

µ(]a, b]) = f(b) − f(a) =

∫ b

af ′dm, para quaisquer a ≤ b ∈ R.

Neste caso, e claro que a medida µ e o integral indefinido da derivada usualde f(14). Mais uma vez identificando a funcao f ′ com o respectivo integralindefinido, podemos dizer que a derivada de f no sentido usual coincide

13Diz-se tambem “derivada no sentido das distribuicoes”.14Como µ e o integral indefinido de f ′ coincidem nos intervalos, coincidem igualmente

em B(RN ), e em qualquer σ-algebra onde ambas sejam regulares.

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246 Capıtulo 4. Outras Medidas

com a derivada generalizada de f se e so se a funcao f satisfaz a regra deBarrow. Dito doutra forma, o objectivo do 2o Teorema Fundamental doCalculo pode resumir-se como se segue:

Esclarecer as condicoes em que µ(E) =

Ef ′dm.

Exemplos 4.5.1.

1. A funcao f(x) = x e funcao de distribuicao da medida de Lebesgue em R,i.e., a medida m e a derivada generalizada de f . Note-se que m e o integralindefinido da derivada usual de f , e e absolutamente contınua.

2. Se µ e o integral indefinido de g(x) = ex2

, que e localmente somavel em R,podemos tomar para f , por exemplo, a funcao dada por

f(x) =

∫ x

0

gdm, donde f(b) − f(a) =

∫ b

a

gdm.

µ e o integral indefinido de g, que e a derivada usual de f , e e mais uma vezabsolutamente contınua.

3. A funcao de Heaviside e funcao de distribuicao da medida de Dirac δ, i.e., δ ea derivada generalizada da funcao de Heaviside. A medida de Dirac nao e umintegral indefinido, porque a funcao de Heaviside nao e contınua. A derivadausual da funcao de Heaviside e nula qtp, e δ e uma medida singular.

Como dissemos, e facil mostrar que se µ e uma medida localmente finitaem R entao existem funcoes f que satisfazem a identidade 4.5.1. No entanto,se encararmos esta identidade como um problema em que f e um dado e µe a incognita, ja nao e tao simples caracterizar as funcoes f para as quais oproblema tem solucao. Enunciamos este problema, para posterior referencia,como o

4.5.2 (Problema de Stieltjes). Dada uma funcao f : R → R, determinar umaσ-algebra Sf contendo os intervalos do tipo ]a, b] e uma medida µ definidaem Sf tal que µ e f satisfazem 4.5.1.

A resolucao do problema de Stieltjes pode ser muito util, em particularno contexto da Teoria das Probabilidades. Recorde-se que se X e umavariavel aleatoria real, entao a sua funcao distribuicao de probabilidade ea funcao f : R → R, tal que f(x) e a probabilidade do acontecimentoX ∈ R : X ≤ x. A figura 4.5.1 exibe o exemplo classico do dado ideal,onde a funcao f e uma funcao em escada. A probabilidade do acontecimentoX ∈ R : a < X ≤ b e dada por f(b) − f(a), mas a teoria deve esclarecer:

• Quais sao os subconjuntos de R aos quais podemos associar uma pro-babilidade, i.e., quais sao os acontecimentos, e

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4.5. Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R 247

1

1 2 3 4 5 6

Figura 4.5.1: Distribuicao de probabilidade do dado ideal.

• Como calcular a probabilidade do acontecimento A, quando A nao eum intervalo do tipo ]a, b].

Qualquer medida µ que coincida com a probabilidade nos intervalos]a, b] e solucao de um problema de Stieltjes, e pode ser usada para resolverquestoes da Teoria das Probabilidades com tecnicas e resultados da Teoriada Medida.

m(E)

m(f(E))

y = f(x)

Figura 4.5.2: µ(E) = m(f(E)), quando f e contınua e crescente.

Comecamos por mostrar que o problema de Stieltjes tem sempre solucaoquando f e crescente e contınua, revisitando e expandindo ideias que intro-duzimos a proposito do exemplo 2.4.13 (ver figura 4.5.2). Este resultadoe interessante, em especial porque revela, como veremos, a existencia algoinesperada de medidas que nao sao integrais indefinidos, e tambem nao sao“pentes de Dirac”. Dada uma qualquer funcao f : R → R, consideramos a

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248 Capıtulo 4. Outras Medidas

classe dos conjuntos cuja imagem e mensuravel, i.e.,

Sf = E ⊆ R : f(E) ∈ L(R) .

Podemos definir µf : Sf → [0,∞] por µf (E) = m(f(E)), e notamos que sef e contınua e crescente e E =]a, b] e um intervalo de extremos a ≤ b entao

• f(E) e um intervalo de extremos f(a) e f(b), pelo que E ∈ Sf , e

• µf (E) = m(f(E)) = f(b) − f(a).

Por outras palavras, a funcao µf satisfaz a identidade 4.5.1, e e solucao doproblema de Stieltjes para a funcao f se e so se (R,Sf , µf ) e um espaco demedida, o que passamos a verificar no proximo teorema.

Teorema 4.5.3. Se f : R → R e contınua e crescente entao:

a) Sf e uma σ-algebra e B(R) ⊆ Sf .

b) µf e uma medida positiva.

c) m∗(f(E)) = inf µf (U) : E ⊆ U,U aberto para qualquer E ⊆ R.

d) (R,Sf , µf ) e a unica solucao completa e regular do problema 4.5.2.

Demonstracao. a) e uma consequencia directa do lema 2.4.11. Para provarb), notamos como obvio que µf (∅) = 0 e µf e monotona. A funcao µf etambem σ-subaditiva, porque

µfF

(∞⋃

n=1

En

)= m(f

(∞⋃

n=1

En

)) = m

(∞⋃

n=1

f(En)

)≤

≤∞∑

n=1

m(f(En)) =∞∑

n=1

µf (En)

Recordamos da demonstracao de 2.4.11 que

• Se f e crescente, entao o conjuntoN , formado pelos y ∈ R para os quaisa equacao f(x) = y tem multiplas solucoes, e numeravel e portantonulo.

Se A e B sao disjuntos, entao F (A)∩F (B) esta contido em N , e e portantonulo. Supondo que A,B ∈ Sf , temos entao

µf (A ∪B) = m(f(A ∪B)) = m(f(A) ∪ f(B)) =

= m(f(A)) +m(f(B)) −m(f(A) ∩ f(B)) = µf (A) + µf (B).

Dito doutra forma, µf e aditiva, alem de monotona e σ-subaditiva, e e porisso σ-aditiva (a) do exercıcio 3).

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4.5. Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R 249

Para verificar c), seja E ⊆ R e considerem-se conjuntos abertos Vn taisque

Vn ⊇ F (E) e m(Vn) → m∗(f(E)).

Os conjuntos Un = f−1(Vn) ⊇ E sao abertos (porque?) e f(E) ⊆ f(Un) ⊆Vn. Concluımos que

m∗(f(E)) ≤ m(f(Un)) = µf (Un) ≤ m(Vn) → m∗(f(E)),

donde µf (Un) → m∗(f(E)). E claro em qualquer caso que

m∗(f(E)) ≤ inf µf (U) : E ⊆ U,U aberto ,

pelo que a igualdade em c) esta estabelecida. Finalmente, se E ∈ Sf etambem imediato que

µf (E) = m(f(E)) = m∗(f(E)) = inf µf (U) : E ⊆ U,U aberto .

A verificacao de d) e a b) do exercıcio 3.

Exemplo 4.5.4.

Considere-se a funcao

f(x) =

1π arcsen(x) + 1

2 , para − 1 ≤ x ≤ +1,0, para x < −1, e1, para x > 1.

f e uma funcao contınua e crescente, e a respectiva medida de Lebesgue-Stieltjes µf e uma medida de probabilidade. Na verdade, sabendo que um“oscilador harmonico linear” qualquer(15), por exemplo, um pendulo simples,se desloca em unidades normalizadas de acordo com x = sen(t), podemosconcluir que µf (E) e a probabilidade do acontecimento “x ∈ E”, quando ooscilador e observado num instante de tempo t escolhido ao acaso.

A “escada do Diabo” e uma funcao contınua e crescente na recta real, aqual podemos naturalmente aplicar o teorema 4.5.3.

Exemplo 4.5.5.

a medida de cantor, designada aqui ξ, e a medida de Lebesgue-Stieltjesdeterminada pela “escada do Diabo”, e e uma medida de probabilidade.

A seguinte propriedade de ξ e particularmente relevante no que se segue:

Proposicao 4.5.6. ξ e uma medida singular, porque tem suporte no con-junto de Cantor C.

15“Classico”, por oposicao a “quantico”. No caso quantico, a determinacao da funcaof requer a solucao previa da equacao de Schrodinger apropriada.

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250 Capıtulo 4. Outras Medidas

Demonstracao. E claro que ξ(R) = ξ(]0, 1]) = f(1) − f(0) = 1, e portantoξ esta concentrada em I = [0, 1]. Por outro lado, sendo U = I\C, sabemosque U = ∪∞

n=1 ]an, bn[ e um conjunto aberto, e a “escada do Diabo” f econstante em cada um dos intervalos [an, bn]. Notamos como evidente que0 = f(bn) − f(an) = ξ(]an, bn]) ≥ ξ(]an, bn[) ≥ 0. Segue-se assim que:

ξ(U) =∞∑

n=1

ξ(]an, bn[) = 0, e ξ(C) = ξ(C) + ξ(U) = ξ(C ∪ U) = ξ(I) = 1

Concluımos que ξ esta concentrada em C, e e por isso singular.

Registe-se deste exemplo que a derivada generalizada de uma funcaocontınua pode ser uma medida singular nao-nula, que por esta razao nao eum integral indefinido.

O proximo lema indica condicoes necessarias para a existencia de solucoesdo problema de Stieltjes aplicaveis a qualquer funcao F .

Lema 4.5.7. Se o problema de Stieltjes para f tem solucao µ, entao:

a) A funcao f e contınua a direita em R,

b) O limite de f a esquerda de x e f(x) − µ(x), e, em particular

c) f e contınua em x se e so se µ(x) = 0.

Demonstracao. Deixamos para o exercıcio 2 as afirmacoes b) e c). Paraprovar a), supomos que In =]a, xn], onde os xn decrescem para a. Comoos conjuntos In ց ∅, e µ(In) 6= ∞, temos µ(In) = f(xn) − f(a) → 0, i.e.,f(xn) → f(a).

Repare-se que se µ e um “pente de Dirac” e f e uma sua funcao dedistribuicao, entao existem pontos x1, x2, · · · , tais que µ(xn) 6= 0, e fnao e contınua em qualquer um destes pontos. Em particular, a medida deCantor ξ, que como vimos nao e um integral indefinido, tambem nao e um“pente de Dirac”, porque e a derivada generalizada de uma funcao contınua.Mostraremos a seguir, ainda nesta seccao, que na realidade todas as medidaspositivas localmente finitas em R sao da forma µ = µc + µd, onde qualqueruma destas medidas pode ser nula, e:

• µc, dita a parte contınua de µ, e a derivada generalizada de umafuncao contınua crescente, que dizemos ser uma medida contınua, e

• µd, dita a parte discreta de µ, e uma serie ou soma finita de medidasde Dirac (um pente de Dirac), i.e., e uma medida discreta.

Exemplo 4.5.8.

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4.5. Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R 251

Seja f(x) = x + int(x), onde int(x) e a usual “parte inteira” do real x. Aderivada generalizada de f e dada por:

µ(E) = m(E) +∑

n∈Z

δn(E),

onde δn e a medida de Dirac em x = n, com δn(n) = 1. A medida ρ =∑n∈Z

δn e o pente de Dirac propriamente dito. A medida de Lebesgue e aparte contınua de µ, e ρ e a sua parte discreta.

Estabeleceremos a existencia da decomposicao µ = µc+µd provando umacorrespondente decomposicao para funcoes: qualquer funcao monotona f eda forma f = g + s, onde g e s sao monotonas, g e contınua, e s e o quedizemos ser uma funcao discreta(16), i.e., e uma soma, ou serie, de funcoesdo tipo da funcao de Heaviside. Mais exactamente,

Definicao 4.5.9 (Funcao Discreta). s : R → R e uma funcao discreta

se e so se existem sucessoes de reais xn, an, yn, bn, tais que

s(x) =

∞∑

n=1

hn(x) para x ∈ R, onde hn(x) =

an, para x < xn,yn, para x = xn,bn, para x > xn.

As funcoes g e s dizem-se, respectivamente, a parte contınua e aparte discreta, de f . Os pontos xn referidos em 4.5.9 sao, como veremos,os pontos de descontinuidade de f .

x1x1x1 x2x2x2

d1

d1

d2

d2

f = g + s Parte contınua g Parte discreta s

Figura 4.5.3: Parte contınua e parte discreta de F .

Qualquer funcao monotona f : R → R tem, por razoes elementares,limites laterais em qualquer ponto a ∈ R e limites em ±∞. Supondo porexemplo que f e crescente e a ∈ R, temos na verdade

f(a+) = limxցa

f(x) = inff(x) : x > a e analogamente

f(a−) = limxրa

f(x) = supf(x) : x < a.

16Estas funcoes dizem-se tambem de saltos, por vezes na forma latina “saltus”.

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252 Capıtulo 4. Outras Medidas

Temos igualmente, com S = supf(x) : x ∈ R e I = inff(x) : x ∈ R, que

f(+∞) = limx→+∞

f(x) = S e f(−∞) = limx→−∞

f(x) = I.

Caso f seja decrescente devemos apenas trocar as referencias a sup e a infnas identidades acima. Note-se tambem que os limites em a ∈ R sao finitos,por razoes obvias, mas e claro que f(+∞) e/ou f(−∞) podem ser infinitos.Sendo x ∈ R, escrevemos tambem

∆f(x) = f(x+) − f(x−).

Provamos agora que:

Proposicao 4.5.10. Qualquer funcao monotona e contınua excepto numconjunto numeravel.

Demonstracao. Supomos sem perda de generalidade que f : R → R e cres-cente. Designamos por D o conjunto onde f e descontınua. Sendo x ∈ R,definimos Ix =]f(x−), f(x+)[, donde D = x ∈ R : Ix 6= ∅. Temos, entao:

• Se x 6= y entao Ix e Iy sao disjuntos (supondo x < y, e obvio queF (x+) ≤ F (y−)).

Para cada x ∈ D escolhemos um racional qx no intervalo Ix, definindo destaforma uma funcao injectiva f : D → Q, dada por f(x) = qx. Concluımosque D e numeravel.

Teorema 4.5.11. Se F : R → R e monotona em R, existem funcoesmonotonas g, s : R → R, tais que g e contınua, s e discreta e F = g+ s. Asfuncoes g e s sao unicas, a menos de uma constante aditiva.

Demonstracao. Supomos F : R → R crescente em R, e contınua exceptoem D = x1, x2, · · · , xn, · · · . Para simplificar o argumento, supomos Flimitada, e contınua a direita, em R. (Deixamos o caso geral para o exercıcio6). Definimos bn = F (xn) − F (x−n ). Sendo D∩]x, y] = xnk

: k ∈ N, e facilverificar que

(i)

∞∑

k=1

bnk≤ F (y) − F (x), e

∞∑

n=1

bn ≤ limy→∞

F (y) − limx→−∞

F (x) <∞.

Seja agora δxn a medida de Dirac no ponto xn, com δxn(xn) = bn > 0. Eclaro que ρ =

∑∞n=1 δxn e tambem uma medida positiva, que e igualmente

finita, de acordo com (i). A funcao de distribuicao s de ρ e dada por

s(x) = ρ(]−∞, x]) =∞∑

n=1

δxn(]−∞, x]) =∞∑

n=1

hn(x), com hn(x) = δxn(]−∞, x]).

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4.5. Medidas de Lebesgue-Stieltjes em R 253

Em particular, s e uma funcao discreta crescente. De acordo com 4.5.7 a) eb), s e contınua a direita em R, e

(ii) s(xn) − s(x−n ) = ρ(xn) = δxn(xn) = bn = F (xn) − F (x−n ).

Definimos g(x) = F (x)− s(x), donde g e, igualmente, contınua a direita emR. Concluımos de (ii) que

g(xn) − g(x−n ) = [F (xn) − F (x−n )] − [s(xn) − s(x−n )] = 0.

Concluımos que g e tambem contınua a esquerda em R, logo contınua emR. Note-se ainda que g e crescente, porque, sendo D∩]x, y] = xnk

: k ∈ N,segue-se de (i) que

s(y) − s(x) =

∞∑

k=1

bnk≤ F (y) − F (x) =⇒ g(x) ≤ g(y).

Se g1 + s1 = g2 + s2, onde as funcoes gi sao contınuas, e as funcoes si

discretas, entao h = g1 − g2 = s2 − s1 e uma funcao contınua e discreta, eportanto h e, evidentemente, constante.

O proximo corolario usa a decomposicao em parte contınua e parte dis-creta para mostrar que o problema de Stieltjes tem solucao para F crescentequando F e contınua a direita.

Corolario 4.5.12. Seja F : R → R crescente, e contınua a direita em R.Suponha-se, ainda, que

• F e contınua excepto em D = x1, · · · , xn, · · · ,

• δxn e a medida de Dirac com δxn (xn) = F (xn) − F (x−n ),

• F = g + s e a decomposicao de F referida em 4.5.11,

• Sg = E ⊆ R : g(E) ∈ L(R), e µF : Sg → [0,∞] e dada por

µF (E) = m(g(E)) +∞∑

n=1

δxn(E) = µg(E) +∞∑

n=1

δxn(E).

Entao (R,Sg, µF ) e a unica solucao completa e regular do problema 4.5.2.

Demonstracao. (R,Sg, µF ) e uma solucao do problema de Stieltjes 4.5.2,porque e um espaco de medida, de acordo com 4.5.3, e

µF (]a, b]) = g(b) − g(a) + s(b) − s(a) = F (b) − F (a).

E muito simples verificar que (R,Sg, µF ) e completo e regular.

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254 Capıtulo 4. Outras Medidas

Combinado com o lema 4.5.7, este resultado encerra a analise do pro-blema de Stieltjes quando F e crescente: e agora claro que neste caso oproblema de Stieltjes tem solucao se e so se F e contınua a direita em R.Veremos na proxima seccao as condicoes em que o problema de Stieltjes temsolucao quando F nao e crescente.

Exercıcios.

1. Mostre que qualquer medida positiva em R localmente finita e derivada ge-neralizada de F : R → R. Mostre igualmente que:

a) Se as funcoes F e G tem a mesma derivada generalizada µ entao G(x) =F (x) + C, para qualquer x ∈ R.

b) Se F : R → R e crescente e tem uma derivada generalizada µ, entao µ eunica em B(R), e regular em B(R).

2. Suponha que o problema 4.5.2 tem uma solucao µ para a funcao F .

a) Prove que se an → b pela esquerda entao F (an) → F (b)−µ(b). Concluaque F e contınua em b se e so se µ(b) = 0. (Lema 4.5.7).

b) Suponha que µ e uma medida real, e prove que existem os limites

limx→−∞

F (x), e limx→+∞

F (x).

c) Em que condicoes temos µ(]a, b[) = µ(]a, b]) = µ([a, b[) = µ([a, b])?

3. Conclua a demonstracao de 4.5.3. sugestao:

a) Verifique que µF e σ-aditiva, adaptando o argumento usado em 2.2.14.

b) Mostre que (R,SF , µF ) e completo.

4. Seja F : R → R a “escada do Diabo”, e ξ a respectiva medida de Lebesgue-Stieltjes. Mostre que o conjunto de Cantor e o suporte de ξ.

5. Suponha que F : R → R e crescente e contınua. Mostre que L(R) ⊆ SF se eso se F transforma conjuntos nulos em conjuntos nulos, i.e., se e so se

m(E) = 0 =⇒ m∗(F (E)) = 0.

6. Conclua a demonstracao de 4.5.11. Em particular, prove a afirmacao (i) dademonstracao referida, e mostre que o resultado e igualmente valido quando fnao e limitada nem contınua a direita.

7. Determine as partes contınua e discreta da funcao F definida abaixo, e darespectiva medida de Lebesgue-Stieltjes.

F (x) =

0, para x < 0,2x+ 1, para 0 ≤ x < 3, ex2, para x ≥ 3.

8. Determine uma funcao crescente, contınua a direita na recta real, e descon-tınua nos racionais. Determine igualmente uma funcao contınua, diferenciavelem x se e so se x e irracional.

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4.6. Funcoes de Variacao Limitada 255

4.6 Funcoes de Variacao Limitada

A analise do problema de Stieltjes quando F nao e crescente e facilitada pelaintroducao da classe das funcoes de variacao limitada. Suponha-se para issoque µ e uma medida real, e F uma sua funcao de distribuicao. Sabemosque µ tem variacao total limitada, e este facto restringe de forma muitosignificativa a funcao F , como passamos a mostrar.

Se I e um intervalo, qualquer conjunto finito P = x0, · · · , xn ⊂ I, ondesupomos xk ր, determina uma particao finita de J =]x0, xn] em subinter-valos Ik =]xk−1, xk], com 1 ≤ k ≤ n. Como µ e de variacao limitada, temos

n∑

k=1

|F (xk) − F (xk−1)| =

n∑

k=1

|µ(Ik)| ≤ |µ| (J) ≤ |µ| (R) < +∞.

Podemos assim concluir que

sup

n∑

k=1

|F (xk) − F (xk−1)| : x0 < x1 < x2 < · · · < xn, xk ∈ R

< +∞.

Definicao 4.6.1 (Funcoes de Variacao Limitada). Se F : S → R e I ⊆ S ⊆R e um intervalo, a variacao total de F em I, designada VF (I), e dadapor

VF (I) = sup

n∑

k=1

|F (xk) − F (xk−1)| : x0 < x1 < x2 < · · · < xn, xk ∈ I.

F diz-se de variacao limitada em I se e so se VF (I) < +∞. BV (I) e aclasse das funcoes F : I → R de variacao limitada em I, e NBV (R) (17) e asubclasse de BV (R) formada pelas funcoes que satisfazem ainda a condicaoF (x) → 0 quando x→ −∞.

Exemplos 4.6.2.

1. Se F : R → R e a funcao de Heaviside, entao∑n

k=1 |F (xk) − F (xk−1)| e 1,se x0 < 0 e xn ≥ 0, ou 0, caso contrario. Portanto, VF (R) = 1.

2. Se F (x) =∫ x

a fdm, onde f e somavel, entao F e de variacao limitada, porquese P = x0, · · · , xn ⊂ I, entao

n∑

k=1

|F (xk) − F (xk−1)| =n∑

k=1

|∫ xk

xk−1

fdm| ≤n∑

k=1

∫ xk

xk−1

|f |dm ≤∫

I

|f |dm.

3. A funcao f(x) = x sen(1/x) (com f(0) = 0) e contınua, e portanto uniforme-mente contınua, em [0, 2π]. Apesar disso, f nao e de variacao limitada em[0, 2π] (exercıcio 10).

17BV e NBV sao iniciais para as expressoes inglesas “Bounded Variation” e “NormalizedBounded Variation”.

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256 Capıtulo 4. Outras Medidas

4. Sendo f : [a, b] → R, e relativamente simples verificar que f e de variacaolimitada em I se e so se o grafico de f e rectificavel (exercıcio 8).

Para simplificar a notacao, e supondo que P = x0, x1, · · · , xn, ondex0 ≤ x1 ≤ · · · ≤ xn, escrevemos

SV (f,P) =n∑

k=1

|f(xk) − f(xk−1)|, e Vf (x) = Vf (]−∞, x]) .

Registamos como evidente que

• P ⊆ P ′ =⇒ SV (f,P) ≤ SV (f,P ′).

• Vf e sempre uma funcao crescente.

• Se I = [x, y] entao Vf (I) ≥ |f(y) − f(x)|.

• f e de variacao limitada se e so se Vf e limitada. Neste caso, f elimitada.

Passamos a demonstrar

Lema 4.6.3. Sendo f : R → R entao:

a) Se y ≥ x, entao Vf (y) = Vf (x) + Vf ([x, y]) ≥ Vf (x) + |f(y) − f(x)|.

b) Lema de Jordan: f ∈ BV (R) se e so se existem funcoes crescentes elimitadas g, h : R → R tais que f = g − h.

c) Se f ∈ BV (R) entao f e contınua a direita em x se e so se Vf econtınua a direita em x.

Demonstracao. a) Dados conjuntos finitos P1 ⊂ ]−∞, x] e P2 ⊂ [x, y] e claroque P = P1 ∪ P2 ∪ x e um subconjunto finito de ] −∞, y], e

SV (f,P1) + SV (f,P2) = SV (f,P) ≤ Vf (y).

Como P1 e P2 sao arbitrarios, concluımos que

(i) Vf (x) + Vf ([x, y]) ≤ Vf (y).

Por outro lado, se P e um subconjunto finito de ]−∞, y], tomamos P ′ =P ∪ x, P1 = P ′ ∩ ]−∞, x] e P2 = P ′ ∩ [x, y]. Temos entao que

SV (f,P) ≤ SV (f,P ′) = SV (f,P1) + SV (f,P2) ≤ Vf (x) + Vf ([x, y]) .

Como P e arbitrario, concluımos desta vez que

(ii) Vf (y) ≤ Vf (x) + Vf ([x, y]) ,

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4.6. Funcoes de Variacao Limitada 257

As desigualdades em (i) e (ii) e a observacao ja referida que |f(y)− f(x)| ≤Vf ([x, y]) estabelecem a afirmacao em a).

Para demonstrar b), suponha-se primeiro que f ∈ BV (R). As funcoes fe Vf sao limitadas, e definimos

g =1

2(Vf + f) e h =

1

2(Vf − f) donde f = g − h e Vf = g + h.

Tanto g como h sao limitadas, e a desigualdade Vf (y)−Vf (x) ≥ |f(y) − f(x)|mostra que g e h sao ambas crescentes.

Suponha-se agora que f = g − h onde g e h sao funcoes limitadas ecrescentes, e note-se que SV (f,P) ≤ SV (g,P) + SV (h,P), para qualquerconjunto finito P ⊂ R. Temos portanto Vf (R) ≤ Vg(R) + Vh(R) <∞.

A demonstracao de c) e o exercıcio 3.

Podemos finalmente estabelecer a existencia de solucoes do problema deStieltjes 4.5.2, quando a funcao em causa nao e crescente.

Teorema 4.6.4. Se f : R → R, entao as seguintes afirmacoes sao equiva-lentes:

a) f e de variacao limitada e contınua a direita em R, e

b) Existe uma medida real µ tal que µ(]a, b]) = f(b)−f(a), para quaisquera ≤ b ∈ R.

Neste caso, as medidas |µ|, µ+ e µ− sao as derivadas generalizadas de Vf ,g = 1

2 (Vf + f) e h = 12(Vf − f).(18)

Demonstracao. Comecamos por provar que a) ⇒ b): Recorde-se da demon-stracao do lema anterior que as funcoes g e h sao crescentes e limitadas.Como f e contınua a direita, notamos tambem de c) no mesmo lema que Vf

e contınua a direita, e segue-se que g e h sao igualmente contınuas a direita.O problema de Stieltjes tem solucao para as funcoes g e h, conforme

verificamos em 4.5.12. Sendo π e ν as derivadas generalizadas de g e h, edado que f = g − h e Vf = g + h, e entao claro que

• π e ν sao medidas finitas,

• µ = π − ν e a derivada generalizada de f , e

• τ = π + ν e a derivada generalizada de Vf .

Se µ = µ+ − µ− e a decomposicao de Jordan de µ, temos do teorema4.1.21 que µ+ ≤ π e µ− ≤ ν. Notamos que

18A igualdade entre medidas aqui referida pressupoe a seleccao previa de um domınio dedefinicao apropriado e comum. Recorde que a igualdade e valida em qualquer σ-algebraonde as medidas em causa sejam regulares, por exemplo, em Lµ(R).

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258 Capıtulo 4. Outras Medidas

• |µ|(]x, y]) ≤ τ(]x, y]) = Vf (y) − Vf (x), porque µ+ ≤ π e µ− ≤ ν, e

• Vf (y)− Vf (x) = Vf ([x, y]) e Vf ([x, y]) ≤ |µ|(]x, y]), como notamos noinıcio desta seccao.

Concluımos que τ(I) = |µ|(I) para qualquer intervalo I =]x, y], donde sesegue que τ = |µ|. Segue-se igualmente que π = µ+ e ν = µ−.

Para mostrar que b) ⇒ a), observe-se que f e contınua a direita pelo lema4.5.7, e e de variacao limitada porque, como notamos, Vf (R) ≤ ‖µ‖.

Passamos a analisar em mais detalhe as funcoes de variacao limitada quesao contınuas. Comecamos por provar que a variacao total de uma funcaocontınua pode ser calculada como se segue:

Lema 4.6.5. Se f e contınua em R, I ⊆ R e um intervalo, e P(I) e afamılia de todas as particoes finitas de I em intervalos, entao

(1) Vf (I) = sup

i∈R

m(f(i)) : R ∈ P(I)

.

Temos alem disso que, se I e um intervalo compacto,

(2) diam(R) → 0 =⇒∑

i∈R

m(f(i)) → Vf (I).

Demonstracao. Supomos I = [a, b], e escrevemos

Φ(I) = sup

i∈R

m(f(i)) : R ∈ P(I)

.

Para evitar sobrecarregar a notacao, usaremos aqui o mesmo sımbolo paradesignar uma particao R de I em subintervalos, e para designar o conjuntodos extremos dos subintervalos em R (a continuidade de f torna irrelevantesaber a que subintervalo pertence cada extremo). Notamos que

• Sendo R uma particao de I, entao

(i) SV (f,R) ≤∑

i∈R

m(f(i)) ≤ Φ(I), donde se segue que Vf (I) ≤ Φ(I).

• Dado um subintervalo i ∈ R, sejam xi e yi pontos onde f atinge oseu maximo e mınimo no fecho i. Seja R′ o refinamento de R com ospontos xi e yi. Um momento de reflexao mostra que

Vf (I) ≥ SV (f,R′) ≥∑

i∈R

|f(yi) − f(xi)| =∑

i∈R

m(f(i)),

donde Vf (I) ≥ Φ(I), e concluımos de (i) que Vf (I) = Φ(I).

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4.6. Funcoes de Variacao Limitada 259

Para provar (2), suponha-se Vf (I) < ∞ e ε > 0. Sendo R0 ⊂ I umaqualquer particao fixa tal que

(ii) SV (f,R0) > Vf (I) − ε/2,

definimos n como o numero de pontos em R0. Como I e compacto, f euniformemente contınua em I, e existe δ > 0 tal que

|x− y| < δ ⇒ |f(x) − f(y)| < ε/4n.

Provamos em seguida que se adicionarmos um ponto a qualquer particaocom diametro inferior a δ, a soma SV aumenta menos de ε

2n , ou seja,

(iii) Se R e uma particao de I, diam(R) < δ, z ∈ I e R′ = R∪ z, entao

SV (R, f) ≤ SV (R′, f) ≤ SV (R, f) +ε

2n

Para verificar esta afirmacao, supomos sem perda de generalidade quez 6∈ R e x, y ∈ R sao pontos consecutivos de R tais que x < z < y. Temosneste caso que

SV (f,R′) = SV (f,R) − |f(x) − f(y)| + |f(x) − f(z)| + |f(z) − f(y)|.

Como |x− y| < δ, e obvio que |x− z| < δ e |z − y| < δ, donde

SV (f,R′) − SV (f,R) = −|f(x) − f(y)| + |f(x) − f(z)| + |f(z) − f(y)| ≤

≤ |f(x) − f(z)| + |f(z) − f(y)| < ε/2n.

Seja finalmente R′′ = R ∪ R0, que resulta de adicionar n pontos a R, eobserve-se de (ii) e (iii) que

Vf (I) − ε/2 < SV (f,R0) ≤ SV (f,R′′) < SV (f,R) +ε

2.

Dito doutra forma, temos para qualquer particao R com diam(R) < δ que

Vf (I) − ε < SV (f,R) ≤∑

i∈R

m(f(i)) ≤ Vf (I).

Dada uma funcao f : X → R, a respectiva indicatriz de Banach ea funcao B : R → [0,+∞] que conta, para cada y, as solucoes da equacaof(x) = y. Por outras palavras, B e dada por

B(y) = # (x ∈ X : f(x) = y) .

Aproveitamos o anterior lema 4.6.5 para demonstrar o seguinte resultadoclassico, que e mais um processo de calculo da variacao total de funcoes con-tınuas.

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260 Capıtulo 4. Outras Medidas

Teorema 4.6.6 (de Banach-Vitali). Se f e contınua em I = [a, b] e B : R →[0,+∞] e a sua indicatriz de Banach, entao B e B-mensuravel e

∫RBdm =

Vf (I). Em particular, f ∈ BV (I) ⇐⇒ B ∈ L1(R).

Demonstracao. Seja P uma particao de I em intervalos, i ∈ P e Ai a funcaocaracterıstica da imagem de i, que e o intervalo f(i). Observe-se que

y = f(x) tem solucoes x ∈ i⇐⇒ y ∈ f(i) ⇐⇒ Ai(y) = 1.

Sendo B a indicatriz de Banach, note-se em particular que

B(y) ≥∑

i∈P

Ai(y).

A desigualdade acima e uma igualdade exactamente quando nenhum inter-valo i contem mais do que uma solucao da equacao y = f(x). A soma a di-reita e uma funcao que passamos a designar BP , envolve apenas funcoes car-acterısticas de intervalos, que sao Borel-mensuraveis, e e obvio que

∫RAi =

m(f(i)). Temos assim que

(i) BP =∑

i∈P

Ai e Borel-mensuravel, e

R

BP =∑

i∈P

m(f(i)).

A seguinte observacao e totalmente elementar:

(ii) Se R e um refinamento de P entao BP ≤ BR ≤ B.

Se B(y) ≥ N , i.e., se a equacao y = f(x) tem pelo menos N solucoesx1, · · · , xN , tomamos δ = min|xk − xm| : k 6= m. Se o diametro daparticao R e inferior a δ, entao cada intervalo i ∈ R contem no maximouma das N solucoes, e portanto BR(y) ≥ N . Por outras palavras,

(iii) Se B(y) ≥ N entao existe δ > 0 tal que diam(R) < δ ⇒ BR(y) ≥ N.

Dado n ∈ N, seja Pn a particao do intervalo I em 2n subintervalos In,k de

igual comprimento (b−a)2n . Observamos que

(iv) Pn+1 e um refinamento de Pn e diam(Pn) → 0.

De acordo com (i) e (iv), segue-se de 4.6.5 que

(v)

R

BPn → Vf (I).

De acordo com (ii), (iii) e (iv) as funcoes BPn ≤ B formam uma sucessaocrescente, e BPn ր B. Pelo teorema de Beppo Levi, B e Borel-mensuravel,e concluımos usando (v) que

R

BPn →∫

R

B = Vf (I).

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4.6. Funcoes de Variacao Limitada 261

Existem outras identidades semelhantes a (1) no lema 4.6.5, e estabele-cemos aqui o seguinte resultado:

Teorema 4.6.7. Se f ∈ BV (R) ∩ C(R), µ e a sua derivada generalizada eE ∈ B(R), entao

|µ| (E) = sup

∞∑

n=1

m∗(f(En)) : E =

∞⋃

n=1

En, En’s ∈ B(R) disjuntos

.

Lema 4.6.8.

Demonstracao. Comecamos por mostrar que

(i) m∗(f(E)) ≤ |µ| (E), para qualquer E ∈ B(R).

• Se E e um conjunto elementar, entao existe uma famılia finita P for-

mada por intervalos disjuntos e tal que E =⋃

i∈P

i. E claro que

m(f(E)) ≤∑

i∈P

m(f(i)) ≤ |µ|(E).

• Se E e um conjunto aberto existem conjuntos elementares En ր E,donde f(En) ր f(E), m(f(En)) → m(f(E)) e |µ(En) → |µ|(E).Temos entao

m(f(En)) ≤ |µ|(En) =⇒ m(f(E)) ≤ |µ|(E).

• Se E ∈ B(R) existem abertos Un ⊇ E tais que |µ| (Un) → |µ| (E), e eobvio que

m∗(f(E)) ≤ m(f(Un)) ≤ |µ|(Un) → |µ| (E).

Estabelecemos assim (i) e definimos agora Ψ : B(R) → [0,∞] por:

Ψ(E) = sup

∞∑

n=1

m∗(f(En)) : E =∞⋃

n=1

En, En’s ∈ B(R) disjuntos

.

Como os conjuntos En’s sao disjuntos, concluımos de (i) que

∞∑

n=1

m∗(f(En)) ≤∞∑

n=1

|µ| (En) = |µ| (E), donde

(ii) Ψ(E) ≤ |µ| (E) para qualquer E ∈ B(R).

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262 Capıtulo 4. Outras Medidas

Quando E = I e um intervalo, e evidente de 4.6.5 que |µ|(I) ≤ Ψ(I), esegue-se de (ii) que

(iii) Ψ(I) = |µ| (I) para qualquer intervalo I ⊆ R.

Suponha-se que A,B ∈ B(R) sao disjuntos. Dadas particoes A =⋃∞

n=1An,e B =

⋃∞n=1Bn, a famılia dos conjuntos An e Bn e uma particao de A ∪B,

pelo que

Ψ(A ∪B) ≥∞∑

n=1

m∗(f(An)) +∞∑

n=1

m∗(f(Bn)).

Como as particoes referidas sao arbitrarias, temos ainda

(iv) A,B ∈ B(R) e A ∩B = ∅ =⇒ Ψ(A ∪B) ≥ Ψ(A) + Ψ(B).

Considerem-se particoes de E =⋃∞

k=1Ak =⋃∞

n=1En, e note-se que

En =

∞⋃

k=1

Ak ∩ En =⇒∞∑

k=1

m∗(f(Ak ∩ En)) ≤ Ψ(En), e

f(Ak) =∞⋃

n=1

f(Ak ∩ En) ⇒ m∗(f(Ak)) ≤∞∑

n=1

m∗(f(Ak ∩ En)).

Obtemos imediatamente:

∞∑

k=1

m∗(f(Ak)) ≤∞∑

n=1

∞∑

k=1

m∗(f(Ak ∩ En)) ≤∞∑

n=1

Ψ(En).

Como a particao formada pelos Ak’s e arbitraria, estabelecemos:

(v) Ψ(E) ≤∞∑

n=1

Ψ(En),

Para concluir a demonstracao, registamos que

• (iv) e (v) =⇒ Ψ e uma medida positiva em B(R).

• (ii) =⇒ Ψ e finita, e portanto regular, em B(R).

• (iii) =⇒ Ψ = |µ| nos intervalos compactos.

Segue-se que Ψ e |µ| coincidem nos abertos, e em B(R).

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4.6. Funcoes de Variacao Limitada 263

4.6.1 Funcoes Absolutamente Contınuas

Tal como observamos a proposito da nocao de variacao total, e facil adaptar adefinicao de continuidade absoluta para ser directamente aplicavel a funcoes.Suponha-se que f e funcao distribuicao de uma medida real µ absolutamentecontınua em R. De acordo com 4.3.4,

para qualquer ε > 0, existe δ > 0 tal que m(E) < δ ⇒ |µ| (E) < ε.

Se E = ∪nk=1Ik, onde I1, · · · , In sao intervalos disjuntos, e Ik tem extremos

xk ≤ yk, temos m(E) =∑n

k=1(yk − xk), e por isso:

n∑

k=1

(yk − xk) < δ ⇒n∑

k=1

|f(yk) − f(xk)| =

n∑

k=1

|µ(Ik)| ≤ |µ| (E) < ε.

A definicao seguinte regista estas observacoes:

Definicao 4.6.9 (Funcoes Absolutamente Contınuas). Se f : I → R ondeI ⊆ R e um intervalo, dizemos que f e absolutamente contınua em I see so se para qualquer ε > 0 existe δ > 0 tal que, para quaisquer intervalosdisjuntos I1, · · · , In em I, onde Ik tem extremos xk ≤ yk, temos

n∑

k=1

(yk − xk) < δ ⇒n∑

k=1

|f(yk) − f(xk)| < ε.

Exemplos 4.6.10.

1. Se a funcao g : R → R e somavel, entao a funcao f(x) =∫ x

−∞ gdm e funcaodistribuicao de uma medida absolutamente contınua em R, e portanto f e umafuncao absolutamente contınua em R, como alias verificamos directamente noexercıcio 10 da seccao 3.3.

2. Se f satisfaz uma condicao de Lipschitz (19) em I, i.e., se existe uma constanteK tal que |f(x)− f(y)| ≤ K|x− y|, e evidente que f e absolutamente contınuaem I.

3. A funcao f(x) = sen(x) satisfaz uma condicao de Lipschitz em R com K = 1,e portanto e absolutamente contınua em R.

4. E facil verificar que a “escada do diabo” e uniformemente contınua em R,mas nao e absolutamente contınua.

5. Qualquer funcao absolutamente contınua e uniformemente contınua (e o cason = 1, na definicao 4.6.9.)

As ideias que referimos no lema 4.6.5 podem ser tambem utilizadas parareformular a definicao acima.

19Rudolf Lipschitz, 1832-1903, matematico alemao, professor na Universidade de Bona.

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264 Capıtulo 4. Outras Medidas

Lema 4.6.11. Se f : I → R onde I ⊆ R e um intervalo, entao f e absolu-tamente contınua em I se e so se para qualquer ε > 0 existe δ > 0 tal que,para qualquer famılia finita P de intervalos disjuntos i ⊆ I, temos

i∈P

m(i) < δ ⇒∑

i∈P

m(f(i)) < ε.

Demonstracao. Se f satisfaz a condicao referida neste lema e claro que f eabsolutamente contınua nos termos da definicao 4.6.9. Basta observar quese o intervalo i tem extremos xk e yk entao |f(yk) − f(xk)| ≤ m(f(i)).

Suponha-se por outro lado que f e absolutamente contınua. Dada umafamılia P de intervalos disjuntos e sendo xi e yi os extremos de i, temos:

i∈P

m(i) < δ ⇒∑

i

|f(yi) − f(xi)| < ε.

A funcao f tem maximo e mınimo no intervalo [xi, yi], e designamos por ui

e vi pontos do intervalo [xi, yi] onde ocorrem estes extremos, com ui ≤ vi.Definimos ji =]ui, vi[ e observamos que os intervalos ji formam igualmenteuma famılia de intervalos disjuntos em I. Notamos como evidente quem(ji) ≤ m(i) e |f(vi) − f(ui)| = m(f(i)), e concluımos que:

i

m(i) < δ ⇒∑

i∈P

m(ji) < δ ⇒∑

i∈P

m(f(i)) =∑

i∈P

|f(ui) − f(vi)| < ε.

Podemos agora mostrar que as funcoes absolutamente contınuas sao devariacao limitada em intervalos compactos:

Teorema 4.6.12. Se f e absolutamente contınua no intervalo I ⊆ R entaof e de variacao limitada em qualquer subintervalo compacto J ⊆ I.

Demonstracao. Seja J = [a, b] ⊆ I ⊆ R. Como f e absolutamente contınuaem I, existe δ1 > 0 tal que, para qualquer famılia P de intervalos disjuntosem I, temos:

(1)∑

i∈P

m(i) < δ ⇒∑

i∈P

m(f(i)) < 1.

Como J e limitado, e evidente que existe uma particao finita de J em in-tervalos disjuntos j, cada um dos quais com comprimento inferior a δ1.Designamos esta particao por Q, e supomos que e constituıda por N subin-tervalos. Supomos ainda que R e uma qualquer particao de J , e definimosP = Q ∪ R e, para qualquer j ∈ Q, Pj = j ∩ P. Pj e uma particao dosubintervalo j, e e imediato de (1) que

i∈Pj

m(i) = m(j) < δ1 ⇒∑

i∈Pj

m(f(i)) < 1.

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4.6. Funcoes de Variacao Limitada 265

Resta-nos notar que

i∈R

m(f(i)) ≤∑

i∈P

m(f(i)) =∑

j∈Q

i∈Pj

m(f(i)) < N.

E assim evidente que Vf (J) ≤ N , i.e., f e de variacao limitada em J .

Exemplos 4.6.13.

1. A funcao f(x) = x sen(1/x) (com f(0) = 0) e uniformemente contınua em[0, 1], mas nao e de variacao limitada em [0, 1]. Portanto, f nao e absoluta-mente contınua em [0, 1].

2. A funcao f(x) = senx e absolutamente contınua em R, e portanto e devariacao limitada em qualquer intervalo limitado. Nao e no entanto de variacaolimitada em R.

Completamos agora o teorema 4.6.4 para o caso em que a medida µ eabsolutamente contınua. O proximo teorema sera usado na proxima seccaopara mostrar que as funcoes absolutamente contınuas sao precisamente asfuncoes que sao integrais indefinidos de funcoes somaveis.

Teorema 4.6.14. Se f ∈ BV (R)∩C(R), entao f e absolutamente contınuaem R se e so se a sua derivada generalizada µ≪ m.

Demonstracao. Temos apenas a provar que, se f : R → R e de variacaolimitada e absolutamente contınua em R, entao µ≪ m.

De acordo com o lema 4.6.11, dado ε > 0 existe δ > 0 tal que, paraqualquer famılia finita de intervalos disjuntos i ⊆ I, temos

i∈P

m(i) < δ ⇒∑

i∈P

m(f(i)) < ε.

Seja E ⊂ R um conjunto elementar com m(E) < δ, da forma E =∪n

k=1Ik, onde I1, · · · , In em R sao intervalos disjuntos. Supondo que Pk euma qualquer particao de Ik em intervalos, e obvio que P = ∪n

k=1Pk e umaparticao de E em intervalos, e

n∑

k=1

i∈Pk

m(i) = m(E) < δ ⇒n∑

k=1

i∈Pk

m(f(i)) < ε.

A anterior desigualdade e valida para quaisquer particoes Pk dos intervalosIk, e portanto e claro de 4.6.5 que

m(E) < δ =⇒n∑

k=1

Vf (Ik) ≤ ε =⇒ |µ|(E) =

n∑

k=1

|µ|(Ik) =

n∑

k=1

Vf (Ik) ≤ ε.

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266 Capıtulo 4. Outras Medidas

Se U ⊆ R e aberto, existem conjuntos elementares En ր U , donde m(En) ≤m(U) e |µ|(En) ր |µ|(U), e concluımos que

m(U) < δ =⇒ m(En) < δ =⇒ |µ|(En) ≤ ε =⇒ |µ|(U) ≤ ε.

Finalmente, se E ∈ B(R) e m(E) < δ existem abertos U ⊇ E tais queδ > m(U), e portanto ε ≥ |µ|(U) ≥ |µ|(E), i.e., µ≪ |µ| ≪ m.

Concluımos esta seccao com uma caracterizacao classica das funcoesabsolutamente contınuas, o teorema de Banach-Zaretski.

Podemos finalmente provar o

Teorema 4.6.15 (de Banach-Zaretsky). (20) Se f ∈ BV (R)∩C(R), entaof e absolutamente contınua em R se e so se m(E) = 0 =⇒ m(f(E)) = 0.

Demonstracao. Supomos sem perda de generalidade que E ∈ B(RN ). Se fe absolutamente contınua, temos de 4.6.14 que µ ≪ |µ| ≪ m, e usamos oteorema 4.6.7 para concluir que

m(E) = 0 =⇒ |µ| (E) = 0 e m∗(f(E)) ≤ |µ| (E) = 0 =⇒ m∗(f(E)) = 0.

Suponha-se agora que m(E) = 0 =⇒ m(f(E)) = 0. Temos de 4.6.7 que

|µ| (E) = sup

∞∑

n=1

m∗(f(En)) : E =

∞⋃

n=1

En, En’s ∈ B(R) disjuntos

.

E claro que m(E) = 0 ⇒ m∗(f(En)) = 0 ⇒ |µ| (E) = 0, i.e., µ≪ m.

Deixamos para o exercıcio 16 a demonstracao de

Corolario 4.6.16. Se f ∈ BV (R)∩C(R), entao f e absolutamente contınuaem R se e so se E ∈ L(R) =⇒ f(E) ∈ L(R).

Exercıcios.

1. Sendo f : R → R, mostre que

a) P ⊆ P ′ =⇒ SV (f,P) ≤ SV (f,P ′).

b) Vf e uma funcao crescente.

c) f e de variacao limitada (e limitada) se e so se Vf e limitada.

2. Prove que as funcoes de variacao limitada tem limites laterais em todos ospontos.

3. Demonstre a alınea b) do lema 4.6.3. sugestao: Suponha que f ∈ BV (R)e contınua a direita em x ∈ R. Note que

20De Banach e M.A.Zaretsky (ou Zarecki), 1903-1930, matematico russo.

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4.6. Funcoes de Variacao Limitada 267

• Dado ε > 0, existe δ > 0 tal que:

x < y < x+ δ =⇒ |f(y) − f(x)| < ε

2.

• Sendo I = [x, y0] onde x < y0 < x + δ, existe um conjunto P =x0, x1, · · · , xn ⊆ I com x = x0 < x1 < · · · < xn e tal que

Vf (I) ≥ SV (f,P) > Vf (I) − ε

2

Mostre que se R e um subconjunto finito de [x, x1] entao SV (f,R) < ε.

4. Prove que qualquer funcao contınuamente diferenciavel e de variacao limitadaem qualquer intervalo limitado.

5. Se f e Riemann-integravel f e necessariamente de variacao limitada? E se fe de variacao limitada f e necessariamente Riemann-integravel?

6. Generalize as afirmacoes 4.5.11 e 4.5.12 para funcoes de variacao limitada.

7. Sendo f a “escada do Diabo”, determine decomposicoes de Jordan e de Hahnpara a derivada generalizada µ de F , onde

F (x) =

x2 − f(x), para 0 ≤ x ≤ 1,0, para x < 0, e para x > 1.

Determine igualmente composicoes de Jordan e de Hahn para a derivada gene-ralizada λ de G(x) = F (x)+H(x)−H(x−1), onde H e a funcao de Heaviside.Calcule ‖µ‖, e ‖λ‖.

8. Suponha que f ∈ BV (R), e mostre que o grafico de f tem comprimento finitoem qualquer intervalo limitado.

9. Demonstre o lema 4.6.11. sugestao: Adapte o argumento utilizado nademonstracao do lema 4.6.5.

10. Mostre que a funcao f(x) = x sen(1/x) nao e de variacao limitada em ]0, 2π].

11. Para que valores de a > 0 e que f(x) = xa sen(1/x) e de variacao limitadaem ]0, 2π]?

12. Mostre que a funcao de van der Waerden (exemplo 1.5.14) nao e de variacaolimitada.

13. Seja I = [0, 1]. Determine funcoes contınuas f, g, h : I → R, f, g, h 6∈ BV (I),tais que:

a) f e diferenciavel em I.

b) g′ ≃ 0 em I.

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268 Capıtulo 4. Outras Medidas

c) m(E) = 0 =⇒ m(h(E)) = 0.(21)

14. Prove que se f e absolutamente contınua e g satisfaz uma condicao deLipschitz entao a composta g f e absolutamente contınua.

15. Mostre que as funcoes absolutamente contınuas no intervalo I formam umespaco vectorial. O produto de funcoes absolutamente contınuas e sempreabsolutamente contınuo?

16. Demonstre o teorema 4.6.16. Sugestao: Prove que se E e fechado (respec-tivamente, de tipo Fσ) entao f(E) e fechado (respectivamente, de tipo Fσ).Conclua em particular que se f e absolutamente contınua em I e E ∈ L(I)entao f(E) ∈ L(R).

17. Prove que a composicao de funcoes absolutamente contınuas e absolutamen-te contınua, se for de variacao limitada (Teorema de Fichtenholz).

18. Seja AC(R) a classe das funcoes absolutamente contınuas em R.

a) Mostre que AC(R), BV (R), e NBV (R) sao espacos vectoriais, e queNBV (R) e um espaco vectorial normado, com norma ‖f‖ = Vf (R).

b) Prove que NBV (R) e AC(R) ∩ NBV (R) sao espacos de Banach, comesta norma.

c) Mostre que se ‖fn − f‖ → 0 entao ‖fn − f‖∞ → 0, mas que a implicacaoinversa e em geral falsa.

4.7 Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R

Provamos no Capıtulo 1 que os integrais indefinidos de Riemann sao diferen-ciaveis qtp, porque as respectivas integrandas, que sao Riemann-integraveis,sao necessariamente contınuas qtp. Este argumento e evidentemente inapli-cavel quando a integranda e apenas Lebesgue-somavel, porque estas funcoespodem ser descontınuas em toda a parte.

A generalizacao dos Teoremas Fundamentais do Calculo ao contexto dateoria de Lebesgue exige por isso um resultado completamente novo paraestabelecer a diferenciabilidade dos integrais indefinidos: o grande Teoremade Diferenciacao de Lebesgue, de 1904, certamente um dos resultados maisimportantes e originais da Analise Real, e que passamos a estudar.

4.7.1 O Teorema de Diferenciacao de Lebesgue

Em 1932, F.Riesz descobriu um resultado auxiliar relativamente elementar,de natureza geometrica, que simplifica muito a demonstracao do teorema dediferenciacao de Lebesgue.

21Note que o Teorema de Banach-Zaretsky nao e valido sem a hipotese f ∈ BV (R).

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 269

a b1 a2 b2 a3 b3 a4 b4 b

Figura 4.7.1: Lema do Sol Nascente.

Para entender o resultado de Riesz, supomos que g : R → R e umafuncao, I = ]a, b[ e um intervalo aberto limitado, e consideramos o conjunto

D = x ∈ I : Existe y ∈ I tal que y > x e g(y) > g(x) .

O lema de Riesz diz-se “do Sol Nascente” porque o conjunto acima definidosugere a regiao a sombra numa cadeia de montanhas ao nascer do Sol. O seuenunciado e surpreendentemente simples, e registe-se que a unica hipotesesobre a funcao g e, por enquanto, a sua continuidade:

Lema 4.7.1 (de Riesz, “do Sol Nascente”). Se g ∈ C(R), I =]a, b[ e umintervalo limitado e D = x ∈ I : Existe y ∈ I tal que y > x e g(y) > g(x)entao D =

⋃∞n=1]an, bn[, onde os intervalos In =]an, bn[ sao disjuntos, e

g(bn) ≥ g(an).

Demonstracao. O conjunto D e aberto, por razoes obvias, e portanto e umauniao de intervalos abertos disjuntos In =]an, bn[. Fixado x ∈]an, bn[⊆ D,seja M o maximo da funcao g no intervalo [x, b]. Notamos que:

• g(x) < M , porque existe y ∈]x, b[ tal que g(y) > g(x).

• Se c = infy ∈ [x, b] : g(y) = M, entao g(c) = M .

• c 6∈ D, porque nao pode existir y ∈]c, b] com g(y) > M .

• Temos [x, c[⊂ D, mesmo que c = b, porque se x′ < c entao g(x′) < g(c).

Concluımos que c = bn e g(bn) > g(x) e, por continuidade, g(bn) ≥ g(an).(22)

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270 Capıtulo 4. Outras Medidas

aa

aa

bb

bb

a1a1

a1a1

a2a2

a2a2

a3a3

a3a3

a4a4

a4a4

b1b1

b1b1

b2b2

b2b2

b3b3

b3b3

b4b4

b4b4

Dαs+(f, I)

Dαs−(f, I)

Dαi+(f, I)

Dαi−(f, I)

Figura 4.7.2: α e o declive dos “raios de Sol”.

E facil adaptar o Lema de Riesz para o caso em que os “raios de Sol”nao sao horizontais. A figura 4.7.2 sugere os seguintes conjuntos (23):

(1) Dαs+(f, I) =

x ∈ I : ∃y∈I tal que y > x, e f(y)−f(x)

y−x > α

(2) Dαi+(f, I) =

x ∈ I : ∃y∈I tal que y > x, e f(y)−f(x)

y−x < α

(3) Dαs−(f, I) =

x ∈ I : ∃y∈I tal que y < x, e f(y)−f(x)

y−x > α

(4) Dαi−(f, I) =

x ∈ I : ∃y∈I tal que y < x, e f(y)−f(x)

y−x < α

Estes conjuntos estao associados a qualquer funcao f definida pelo menos nointervalo I. Com estas convencoes, o conjunto que referimos no lema de Riesze D = D0

s+(g, I). A adaptacao de 4.7.1 a qualquer um dos conjuntos agoraindicados e imediata, e resulta de uma mudanca de variavel apropriada.Interessam-nos para ja os casos (1) e (4), e provamos para isso:

Lema 4.7.2 (de Riesz (II)). Se f ∈ C(R), I = ]a, b[ e limitado e α ∈ R,entao

a) Dαs+(f, I) =

∞⋃

n=1

]an, bn[, os In =]an, bn[ sao disjuntos e f(bn)−f(an)bn−an

≥ α.

22Apesar de tal nao ser necessario para os nossos fins, podemos mostrar que g(an) =g(bn), excepto possivelmente se an = a, como e referido no exercıcio 2.

23Usamos os ındices s+, s−, i+ e i− para indicar se o declive da recta que passa pelospontos de abcissas x e y e superior ou inferior a α, e indicar o sinal algebrico de y − x.

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 271

b) Dαi−(f, I) =

∞⋃

n=1

]cn, dn[, os In =]cn, dn[ sao disjuntos e f(dn)−f(cn)dn−cn

≤ α.

Demonstracao. Para estabelecer a), definimos g(x) = f(x)−αx, e observa-mos que, quando y > x,

f(y) − f(x)

y − x> α⇐⇒ g(y) > g(x), ou seja, Dα

s+(f, I) = D0s+(g, I).

Temos assim que

Dαs+(f, I) = D0

s+(g, I) =∞⋃

n=1

]an, bn[, onde g(bn) ≥ g(an).

Notamos finalmente que

g(bn) ≥ g(an) ⇐⇒ f(bn) − f(an)

bn − an≥ α.

Para provar b), definimos agora g(x) = f(−x)+αx. Com y < x, e portanto−y > −x, temos entao

f(x) − f(y)

x− y< α⇐⇒ g(−y) > g(−x), ou seja, −D0

s+(g,−I) = Dαi−(f, I).

Mais uma vez pelo Lema 4.7.1, concluımos que

D0s+(g,−I) =

∞⋃

n=1

] − dn,−cn[, onde g(−cn) ≥ g(dn).

Dito de forma equivalente, temos

Dαi−(f, I) =

∞⋃

n=1

]cn, dn[, ondef(dn) − f(cn)

dn − cn≤ α.

Quando f e uma funcao contınua e crescente, a respectiva derivada ge-neralizada µ e o lema de Riesz na forma de 4.7.2 providenciam estimativasmuito uteis para a medida dos conjuntos Dα

s+(f, I) e Dαi−(f, I)).

Proposicao 4.7.3. Se f ∈ C(R) e crescente, µ e a respectiva derivadageneralizada, I ⊆ R e um intervalo aberto limitado e α ≥ 0 entao

a) α m(Dαs+(f, I)) ≤ µ(I).

b) µ(Dαi−(f, I)) ≤ α m (I).

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272 Capıtulo 4. Outras Medidas

a ba1 a2 a3b1 b2 b3

Figura 4.7.3: A medida da regiao “a sombra”, que em(Dαs+(f, I)), e limitada

pela “altura da montanha”, que e µ(I), a dividir por α.

Demonstracao. a) De acordo com 4.7.2, temos

Dαs+(f, I) =

∞⋃

n=1

]an, bn[ , e f(bn) − f(an) ≥ α(bn − an).

Sendo In =]an, bn[, a desigualdade f(bn)− f(an) ≥ α(bn −an) e obviamenteequivalente a µ(In) ≥ αm(In). Como os intervalos In sao disjuntos, temos

µ(Dαs+(f, I)) =

∞∑

n=1

µ(In) ≥∞∑

n=1

αm(In) = αm(Dαs+(f, I))),

e portanto µ(I) ≥ µ(Dαs+(f, I)) ≥ αm(Dα

s+(f, I)).b) Recordamos que

Dαi−(f, I) =

∞⋃

n=1

]cn, dn[ , e f(dn)−f(cn) ≤ α(dn−cn), i.e., µ(Jn) ≤ αm(Jn).

Os intervalos Jn =]cn, dn[ sao novamente disjuntos, e portanto

µ(Dαi−(f, I)) =

∞∑

n=1

µ(Jn) ≤∞∑

n=1

αm(Jn) = αm(Dαi−(f, I)) ≤ αm(I).

Para estudar a diferenciabilidade de f introduzimos as chamadas deri-

vadas de Dini, que sao quatro limites (a esquerda, a direita, superior einferior) associados ao calculo da derivada de f em cada ponto x:

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 273

Definicao 4.7.4 (Derivadas de Dini). Dada f : R → R, as derivadas de

Dini de f sao as funcoes f ′s+, f′i+ , f

′s−, f

′i− : R → R dadas por:

f ′s+(x) = lim suph→0+

f(x+ h) − f(x)

h, f ′i+(x) = lim inf

h→0+

f(x+ h) − f(x)

h

f ′s−(x) = lim suph→0−

f(x+ h) − f(x)

h, f ′i−(x) = lim inf

h→0−

f(x+ h) − f(x)

h

Exemplos 4.7.5.

1. Seja f : R → R a funcao dada por

f(x) =

k + x(a+ b sen(1/x), se x > 0k + x(c+ d sen(1/x), se x < 0k, se x = 0

Supondo que a, b, c, d ∈ R+, temos (ver figura 4.7.4):

f ′s+(0) = a+ b, f ′

i+(x) = a− b, f ′s−(x) = c+ d e f ′

i−(0) = c− d.

f ′s+(0) = a+ b

f ′i+(0) = a− b

f ′s−(0) = c+ d

f ′i−(0) = c− d

Figura 4.7.4: Derivadas de Dini do exemplo 4.7.5.1 em x = 0.

2. Se f e a funcao de Dirichlet dir, temos

f ′s+ = −f ′

i− = (∞)(1 − f), f ′s− = −f ′

i+ = (∞)f.

3. f ′(x) existe se e so se

f ′s+(x) = f ′

i+(x) = f ′s−(x) = f ′

i−(x).

f e diferenciavel em x se e so se f ′(x) existe e |f ′(x)| 6= +∞.

4. E evidente que f ′s+(x) ≥ f ′

i+(x)(x) e f ′s−(x) ≥ f ′

i−(x), para qualquer x ∈ R.

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274 Capıtulo 4. Outras Medidas

E muito facil verificar o seguinte

Lema 4.7.6. Se f : R → R, I e um intervalo aberto e x ∈ I entao

f ′s+(x) > α =⇒ x ∈ Dαs+(f, I) e f ′i−(x) < α =⇒ x ∈ Dα

i−(f, I).

Se a funcao f e diferenciavel no intervalo I = [a, b], sabemos do teoremade Lagrange que existe c ∈ I tal que

f(b) − f(a)

b− a= f ′(c).

Neste caso, se α ≤ f ′(x) ≤ β para x ∈ I e f tem uma derivada generalizadaµ, e obvio que

α ≤ µ(I)

m(I)=f(b) − f(a)

b− a≤ β, i.e., αm(I) ≤ µ(I) ≤ βm(I).

O proximo teorema e uma generalizacao profunda e muito interessante destaobservacao elementar. E independente de qualquer hipotese sobre a diferen-ciabilidade da funcao f ou sobre a natureza do conjunto E em causa.

Teorema 4.7.7. Se f ∈ C(R) e crescente, α ≥ 0 e E ⊂ R entao(24)

a) f ′s+(x) ≥ α para qualquer x ∈ E =⇒ α m∗(E) ≤ µ∗(E).

b) f ′i−(x) ≤ α para qualquer x ∈ E =⇒ α m∗(E) ≥ µ∗(E).

Demonstracao. a) Supomos sem perda de generalidade que α > 0 e consi-deramos primeiro o caso m∗(E) < ∞. Seja U = ∪∞

n=1In ⊇ E um abertocom medida finita, onde os conjuntos In sao intervalos abertos disjuntoslimitados. E claro que

(1) E ⊆ U =⇒ E =∞⋃

n=1

E ∩ In =⇒ m∗(E) ≤∞∑

n=1

m∗(E ∩ In).

Se α > β > 0 temos f ′s+(x) > β em E. Segue-se de 4.7.6 que

E ∩ In ⊆ Dβs+(f, In), donde β m∗(E ∩ In) ≤ β m(Dβ

s+(f, In)).

Temos de 4.7.3 a) que β m(Dβs+(f, In)) ≤ µ(In) e usamos (1) para obter

β m∗(E) ≤∞∑

n=1

β m∗(E ∩ In) ≤∞∑

n=1

µ(In) = µ(U).

Concluımos que β m∗(E) ≤ µ∗(E) para β < α, donde α m∗(E) ≤ µ∗(E).Finalmente, se m∗(E) = ∞ basta aplicar o resultado ja obtido aos conjuntosEn = E ∩ [−n, n], porque m∗(En) ր m∗(E).

24Recorde que a medida exterior µ∗ e dada por µ∗(E) = infµ(U) : E ⊆ U , U aberto .

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 275

b) Ainda com U = ∪∞n=1In ⊇ E e m(U) <∞, observamos agora que

(2) E =

∞⋃

n=1

E ∩ In =⇒ µ∗(E) ≤∞∑

n=1

µ∗(E ∩ In).

Se β > α ≥ 0 temos f ′i−(x) < β em E, e portanto E ∩ In ⊆ Dβi−

(f, In), maisuma vez de 4.7.6. Concluımos de 4.7.3 b) e de (2) que

µ∗(E) ≤∞∑

n=1

µ∗(E ∩ In) ≤∞∑

n=1

µ(Dβi−

(f, In)) ≤∞∑

n=1

βm(In) = βm(U).

Segue-se que µ∗(E) ≤ βm∗(E) para β > α, donde µ∗(E) ≤ αm∗(E). Sem∗(E) = ∞ o resultado so nao e obvio para α = 0, mas se En = E ∩ [−n, n]temos µ∗(En) = 0 para qualquer n, e portanto µ∗(E) = 0.

Apesar da sua simplicidade algo enganadora, o teorema 4.7.7 conduzquase directamente ao grande Teorema de Diferenciacao de Lebesgue.

Corolario 4.7.8. Se f ∈ C(R) e crescente entao

a) Se S = x ∈ R : f ′s+(x) = ∞ entao m(S) = 0.

b) Se E = x ∈ R : f ′s+(x) ≥ α > β ≥ f ′i−(x) entao m(E) = µ(E) = 0.

c) Se A = x ∈ R : f ′s+(x) > f ′i−(x) entao m(A) = µ(A) = 0.

d) Se B = x ∈ R : f ′s−(x) > f ′i+(x) entao m(B) = µ(B) = 0.

Demonstracao. a) Dado n ∈ N, temos f ′s+(x) > n para qualquer x ∈ S. SeI e um intervalo aberto limitado de extremos a < b, segue-se de 4.7.7 a) que

n m∗(S ∩ I) ≤ µ∗(S ∩ I) ≤ µ(I) = f(b) − f(a).

Temos assim que

m∗(S ∩ I) ≤ f(b) − f(a)

n→ 0 =⇒ m(S ∩ I) = 0 =⇒ m(S) = 0.

b) Seja En = x ∈ E : |x| ≤ n, e observe-se de 4.7.7 que

αm∗(En) ≤ µ∗(En) ≤ βm∗(En), donde (β − α)m∗(En) ≥ 0.

Como β−α < 0 e obvio quem∗(En) = 0 e portanto µ∗(En) = 0. Concluımosque m(En) = µ(En) = 0 para qualquer n ∈ N, donde m(E) = µ(E) = 0.

c) Dada uma enumeracao q1, q2, · · · , qn, · · · dos racionais q ≥ 0, seja

An,k =

x ∈ R : f ′s+(x) ≥ qn +

1

k> qn ≥ f ′i−(x)

.

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276 Capıtulo 4. Outras Medidas

Segue-se de b) que m(An,k) = µ(An,k) = 0 e basta-nos reconhecer que

A =∞⋃

n=1

∞⋃

k=1

An,k donde m(A) = µ(A) = 0.

d) Seja h a funcao contınua e crescente dada por h(x) = −f(−x), e λ arespectiva derivada generalizada. Deixamos para o exercıcio 4 verificar que(ver figura 4.7.5)

h′i−(−x) = f ′i+(x), h′s+(−x) = f ′s−(x) e µ∗(E) = λ∗(−E).

Em particular, B = −C, onde C = x ∈ R : h′s+(x) > h′i−(x), m(C) =λ(C) = 0 de acordo com c), e m(B) = m(C) = µ(B) = λ(C) = 0.

f ′s+(x0)

f ′i+(x0)

f ′s−(x0)

f ′i−(x0)

h′s+(−x0)

h′i+(−x0)

h′s−(−x0)

h′i−(−x0)

Figura 4.7.5: h(x) = −f(−x) =⇒ f ′s−(x) = h′s+(−x) e f ′i+(x) = h′i−(−x)

Podemos finalmente provar

Teorema 4.7.9 (da Diferenciacao de Lebesgue). Se f ∈ C(R) e crescenteem R entao f e diferenciavel qtp em R.

Demonstracao. Considerem-se os conjuntos ja referidos no corolario 4.7.8:

A =x ∈ R : f ′s+(x) > f ′i−(x)

, B = x ∈ R : f ′s−(x) > f ′i+(x),

e S =x ∈ R : f ′s+(x) = ∞

.

Provamos em 4.7.8 que m(A ∪B ∪ S) = 0. Se x 6∈ A ∪B ∪ S, temos:

f ′s+(x) ≤ f ′i−(x), f ′s−(x) ≤ f ′i+(x) e f ′s+(x) <∞.

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 277

E evidente que f ′i−(x) ≤ f ′s−(x) e f ′i+(x) ≤ f ′s+(x) para qualquer x ∈ R.Temos assim que

x 6∈ A ∪B ∪ S =⇒ f ′s+(x) ≤ f ′i−(x) ≤ f ′s−(x) ≤ f ′i+(x) ≤ f ′s+(x) <∞.

Concluımos que as funcoes f ′s+, f ′i− , f ′s− e f ′i+ sao iguais e finitas fora doconjunto A ∪B ∪ S. Por outras palavras, f e diferenciavel qtp em R.

Exemplos 4.7.10.

1. Se f e uma funcao contınua de variacao limitada entao e, como sabemos,uma diferenca de funcoes contınuas crescentes, e e por isso diferenciavel qtp.Em particular,

• as funcoes absolutamente contınuas sao diferenciaveis qtp em R,

• os integrais indefinidos sao diferenciaveis qtp, mesmo que a funcao inte-granda seja descontınua em toda a parte.

2. Se f : R → R satisfaz uma condicao de Lipschitz, entao f e absolutamentecontınua em R, pelo que e igualmente diferenciavel qtp em R. Esta observacao eum caso particular do Teorema de Rademacher(25): Se f satisfaz uma condicaode Lipschitz num aberto U ⊆ RN entao f e diferenciavel qtp em U .

4.7.2 A Decomposicao de Lebesgue

Continuamos a supor que f e contınua e crescente em R e µ e a respec-tiva derivada generalizada. Passamos a estabelecer algumas propriedadesauxiliares de µ e do seu domınio de definicao “natural”, que e a classe(26)

Sf = E ⊆ R : f(E) ∈ L(R).

Lema 4.7.11. Seja f ∈ C(R) crescente e µ a respectiva derivada generali-zada. Se D = x ∈ R : f ′(x) existe e 0 < f ′(x) < ∞ e D∞ e o conjuntoonde f ′(x) = ∞, entao

a) µ esta concentrada em S = D ∪D∞.

b) Se m(E) = 0 e E ∩D∞ = ∅ entao µ(E) = 0.

c) Se E ∈ L(R) e E ∩D∞ = ∅ entao E ∈ Sf .

d) D∞ ∈ Sf ∩ L(R).

25De Hans Rademacher, 1892-1969, um dos grandes matematicos do seculo XX. Deorigem alema, foi professor nas Universidades de Hamburgo e Breslau, mas foi forcado peloregime nazi a abandonar a Alemanha em 1934, em resultado da sua actividade polıtica afavor da paz e dos direitos humanos. Emigrou para os Estados Unidos, onde foi professorda Universidade da Pensilvania.

26Recorde de 4.5.3 que (R,Sf , µ) e a unica solucao completa e regular do Problema deStieltjes para f .

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278 Capıtulo 4. Outras Medidas

Demonstracao. a) Tal como no corolario 4.7.8, tomamos

A = x ∈ R : f ′s+(x) > f ′i−(x) e B = x ∈ R : f ′s−(x) > f ′i+(x).

Recordamos de 4.7.8 que m(A) = µ(A) = m(B) = µ(B) = 0. SendoC = x ∈ R : f ′(x) = 0, concluımos de 4.7.7 b) que µ(C) = 0. E assimevidente que A ∪ B ∪ C e µ-nulo, ou seja, µ esta concentrada no seu com-plementar, que e o conjunto S = D ∪D∞.

b) Tomamos F = E ∩D e observamos de a) que

µ∗(E) = µ∗(E ∩ (D ∪D∞) = µ∗(E ∩D) = µ∗(F ).

Como Fk = x ∈ F : f ′(x) < k ⊆ E, e obvio que m(Fk) = 0. Segue-se de4.7.7 b) que µ∗(Fk) ≤ k m(Fk) = 0, ou seja, µ∗(Fk) = 0 = µ(Fk). Dado queFk ր F , podemos concluir que µ(F ) = 0 = µ(E). Em particular, E ∈ Sf .

c) Temos E = A ∪ N , onde A ∈ B(R) e m(N) = 0. E claro que A ∈ Sf ,porque B(R) ⊆ Sf , e vimos em a) que N ∈ Sf . Segue-se que E ∈ Sf .

d) D∞ e L-mensuravel, porque m(D∞) = 0. Portanto Dc∞ e L-mensuravel,

e segue-se de b) que Dc∞ ∈ Sf , donde D∞ ∈ Sf .

f ′

nao existef ′ = 0

0 < f ′ <∞f ′ = ∞

D∞ D

Figura 4.7.6: µ esta concentrada onde f ′ existe e nao e nula.

E muito interessante reconhecer que o teorema anterior contem implıcitaa decomposicao de Lebesgue de µ em ordem a medida de Lebesgue.Definindo λ(E) = µ(E\D∞) e ν(E) = µ(E ∩D∞), temos

µ(E) = µ(E\D∞) + µ(E ∩D∞) = λ(E) + ν(E), para E ∈ Sf .

Basta-nos notar que

• λ≪ m: de acordo com 4.7.11 b), m(E) = 0 ⇒ λ(E) = 0, e

• ν⊥m: ν esta concentrada em D∞ e m(D∞) = 0.

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 279

Esta observacao torna-se especialmente relevante com o proximo teorema,que revela que λ e o integral indefinido de f ′.

Teorema 4.7.12. Se f ∈ C(R) e crescente entao f ′ e localmente somavel e

Ef ′dm = µ(E ∩D), onde E ∈ L(R) e D = x ∈ R : 0 < f ′(x) <∞.

Temos em particular

Ef ′dm ≤ µ(E), para qualquer E ∈ Sf .

Demonstracao. Seja Dk = x ∈ D : |x| ≤ k e f ′(x) ≤ k para k ∈ N.Existem funcoes simples mensuraveis sn ≥ 0 tais que sn(x) ր f ′(x) paraqualquer x ∈ Dk, e sabemos que

(1)

E∩Dk

sndm→∫

E∩Dk

f ′dm, quando E ∈ L(R).

Supomos como usualmente que temos, para 1 ≤ i ≤ k2n,

sn(x) =i− 1

2nquando x ∈ An,i = x ∈ E ∩Dk :

i− 1

2n< f ′(x) ≤ i

2n.

Notamos que E ∩Dk =

k2n⋃

i=1

An,i e segue-se do teorema 4.7.7 que

i− 1

2nm(An,i) ≤ µ(An,i) ≤

i

2nm(An,i) =

i− 1

2nm(An,i) +

1

2nm(An,i).

Somando as anteriores desigualdades em i, obtemos imediatamente

E∩Dk

sndm ≤ µ(E ∩Dk) ≤∫

E∩Dk

sndm +1

2nm(E ∩Dk).

Como m(Dk) <∞ temos∫E∩Dk

sndm→ µ(E ∩Dk), e segue-se de (1) que

µ(E ∩Dk) =

E∩Dk

f ′dm.

O teorema resulta agora de notar que E ∩Dk ր E ∩D.

O proximo resultado esta assim verificado.

Teorema 4.7.13 (da Decomposicao de Lebesgue). Se f ∈ C(R) e crescente,a decomposicao de Lebesgue da sua derivada generalizada µ e

µ(E) =

Ef ′dm + µ(E ∩D∞), para qualquer E ∈ Sf .

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280 Capıtulo 4. Outras Medidas

E simples adaptar o resultado anterior as funcoes contınuas de variacaolimitada, que sao como sabemos diferencas de funcoes crescentes contınuas.Deixamos a demonstracao do seguinte resultado para o exercıcio 7:

Teorema 4.7.14. Se f ∈ C(R) ∩BV (R) e µ e a respectiva derivada gene-ralizada, f e diferenciavel qtp, f ′ e somavel, ‖f ′‖1 ≤ ‖µ‖ e a decomposicaode Lebesgue de µ e

µ(E) =

Ef ′dm+ µ(E ∩D), para qualquer E ∈ Sf ,

onde m(D) = 0 e Sf e o domınio de definicao de µ.

O teorema da decomposicao de Lebesgue permite-nos identificar mul-tiplas circunstancias de interesse pratico onde podemos aplicar a regra deBarrow.

Exemplos 4.7.15.

1. A funcao de Volterra f e diferenciavel em toda a parte e a sua derivadae limitada, pelo que f satisfaz uma condicao de Lipschitz. Portanto f e devariacao limitada e D∞ = ∅. Segue-se do teorema anterior que f satisfaz aregra de Barrow.

2. Se f e diferenciavel em toda a parte, nao se segue do teorema da decom-posicao de Lebesgue que a regra de Barrow seja aplicavel, porque f pode naoser de variacao limitada (como vimos no exercıcio 13 da seccao 4.6).

3. Se f e de variacao limitada, nao e necessario que seja diferenciavel em toda aparte para que possamos usar a regra de Barrow. Por exemplo, se o conjuntoD∞ e finito ou numeravel entao µ(D∞) = 0, porque µ e uma medida contınua,e portanto µ(xn) = 0 para qualquer xn ∈ D∞. Segue-se mais uma vez queµ e o integral indefinido de f ′.

Bem entendido, o resultado mais tradicional sobre a aplicacao da regrade Barrow e o 2o Teorema Fundamental do Calculo, que e tambemum corolario directo do teorema da decomposicao de Lebesgue. Comecamospor apresentar uma sua versao algo abstracta, que e essencialmente um casoparticular do chamado Teorema de Radon-Nikodym, discutido no proximoCapıtulo. Note-se que se reduz a uma consequencia trivial do teorema daDecomposicao de Lebesgue.

Teorema 4.7.16 (2o Teorema Fundamental). Seja µ a derivada generali-zada de uma funcao f : R → R. Se µ ≪ m, ou seja, se f e absolutamentecontınua, entao µ e o integral indefinido de f ′.

Demonstracao. Sabemos que

µ(E) =

Ef ′(x)dx+ µ(E ∩ T ) onde m(T ) = 0.

E claro que T e µ-nulo porque µ≪ m, e temos Sf = Lf (R) (porque?).

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 281

Passamos a enunciar e demonstrar uma versao mais “classica”:

Teorema 4.7.17 (Regra de Barrow). Se f : I → R e absolutamente contı-nua no intervalo compacto I entao f e diferenciavel qtp em I, f ′ e somavelem I, e

f(b) − f(a) =

∫ b

af ′(x)dx, para quaisquer a ≤ b ∈ I.

Demonstracao. Definimos f em toda a recta real tomando f(x) = f(a) parax < a e f(x) = f(b), para x > b. E claro que f e de variacao limitada e abso-lutamente contınua em R, e sabemos de 4.7.16 que µ e o integral indefinidode f ′. Em particular,

f(b) − f(a) = µ(]a, b]) =

∫ b

af ′dm.

O 1o Teorema Fundamental pode ser enunciado como o converso exactodesta afirmacao.

Teorema 4.7.18 (1o Teorema Fundamental). Seja I um intervalo compactoe f : I → R somavel em I. Dado a ∈ I, seja F (x) =

∫ xa fdm, para x ∈ I.

Entao F e absolutamente contınua em I e F ′(x) = f(x) qtp em I.

Demonstracao. Tomamos f(x) = 0 quando x 6∈ I, para definir F em R. Eevidente que F e entao absolutamente contınua e de variacao limitada emR, e consideramos a respectiva derivada generalizada µ. Notamos que:

• µ e o integral indefinido de f , por razoes obvias, e

• µ e o integral indefinido de F ′, pelo 2o Teorema Fundamental.

Segue-se naturalmente que F ′ ≃ f .

Veremos adiante como resultados deste tipo se podem generalizar a con-textos mais abstractos. Observe-se desde ja que, quando µ e a derivadageneralizada de uma funcao real f e f ′(x) existe, entao temos, por exemplo,

f ′(x) = limh→0

f(x+ h) − f(x− h)

2h= lim

h→0

µ(Bh(x))

m(Bh(x)).

Esta observacao sugere considerar razoes da forma µ(Eh)/λ(Eh) quando µ eλ sao medidas num mesmo espaco mensuravel e estudar o respectivo limitesupondo que Eh ց x quando h → 0. Esse e efectivamente o caminhoque conduz a versoes mais gerais do 1o Teorema Fundamental do Calculoe a nocao de derivada de Radon-Nikodym, que encontraremos no proximoCapıtulo.

Os teoremas fundamentais adaptam-se e/ou generalizam-se facilmente aoutros casos, e ilustramos este facto com alguns exemplos.

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282 Capıtulo 4. Outras Medidas

Diferenciacao (q.t.p.)

Integracao (de Lebesgue)

Funcoesabsolutamente

contınuas

Funcoeslocalmentesomaveis

Figura 4.7.7: Os Teoremas Fundamentais do Calculo segundo Lebesgue.

Exemplos 4.7.19.

1. Se f e absolutamente contınua em R, entao f ′ pode ser apenas localmentesomavel em R. Mesmo neste caso, e claro que a regra de Barrow se aplica emqualquer intervalo compacto.

2. Se µ e uma medida absolutamente contınua e localmente finita em R entaoµ e a derivada generalizada de uma funcao contınua f e

µ(E) =

E

f ′dm, para qualquer E ∈ L(R).

Em particular, as medidas absolutamente contınuas e localmente finitas sao osintegrais indefinidos de funcoes localmente somaveis.

Referimos a seguir outras aplicacoes dos Teoremas Fundamentais:

Exemplos 4.7.20.

1. Comprimento do grafico de f : As observacoes que fizemos no CapıtuloI (definicao 1.5.11 e teorema 1.5.12) sao aplicaveis neste contexto mais geral,e deixamos como exercıcio mostrar que se f tem derivada generalizada µ, e asua variacao total tem parte singular νs, entao o comprimento do grafico de fno intervalo I e dado por

I

√1 + f ′(x)2dx+ νs(I).

Em particular, a formula do teorema 1.5.12 e valida se e so se f e uma funcaoabsolutamente contınua, i.e., se e so se f satisfaz a regra de Barrow.

2. diferenciacao de integrais parametricos: Os Teoremas Fundamentaisdo Calculo podem ser combinados com o teorema de Fubini para derivar inte-grais parametricos. A tıtulo de exemplo, suponha-se que o integral parametricoem causa e da forma

F (s) =

E

f(s, t)dt, para s ∈ I = [s0, s0 + ε].

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 283

Suponha-se ainda que as funcoes f t2 satisfazem a regra de Barrow, ou seja,

f(s, t) = f(s0, t) +

∫ s

s0

∂f

∂s(u, t)du

Se a funcao ∂f∂s e somavel em E × I, temos entao

F (s) = F (s0) +

E

(∫ s

s0

∂f

∂s(u, t)du

)dt =

∫ s

s0

(∫

E

∂f

∂s(u, t)dt

)du.

A diferenciacao de F e portanto a diferenciacao de um integral indefinido, e eimediata pelo 1o Teorema Fundamental do Calculo.

Aproveitamos para introduzir mais um exemplo interessante, uma funcaocontınua e crescente com derivada nula qtp, como a escada do Diabo, masque e alem disso estritamente crescente.

Exemplo 4.7.21.

a funcao de Hellinger(27) : Fixamos 0 < α < 1, α 6= 12 , e definimos

uma sucessao de funcoes fn : [0, 1] → [0, 1], cada uma estritamente crescentee contınua. Consideramos os pontos Pn = k

2n : 0 ≤ k ≤ 2n, e notamos quePn ⊆ Pn+1. O grafico da funcao fn e um segmento de recta entre cada doispontos consecutivos de Pn (ver figura 4.7.8). Passamos a definir os valoresfn( k

2n ), para 0 ≤ k ≤ 2n:

• f0(0) = 0, e f0(1) = 1, ou seja, f0(x) = x, para qualquer 0 ≤ x ≤ 1,

• fn+1(k2n ) = fn( k

2n ), ou seja, se x ∈ Pn, entao fn+1(x) = fn(x), e

• fn+1(2k+12n+1 ) = αfn( k

2n ) + (1 − α)fn(k+12n ), ou seja, se x e o ponto medio

de [ k2n ,

k+12n ], fn+1(x) e uma combinacao convexa dos valores de fn, nos

extremos desse mesmo intervalo.

A figura 4.7.8 exibe as funcoes f1, f2, f3 e f10. A funcao de Hellinger hα

e definida por hα(x) = limn→∞ fn(x). E evidente que hα( k2n ) = fn( k

2n ), ouseja, os vertices do grafico de fn sao pontos do grafico de hα.

E muito simples provar as seguintes afirmacoes (exercıcio 5):

(1) Cada funcao fn e estritamente crescente, e

(2) Se n ≤ m e k−12n < x < k

2n , onde 0 < k ≤ 2n, entao

fn(k − 1

2n) < fn(x) < fm(x) < fn(

k

2n), ou

0 < fm(x) − fn(x) < fn(k

2n) − fn(

k − 1

2n).

(3) fn(x) → hα(x) para qualquer 0 ≤ x ≤ 1, onde 0 ≤ hα(x) ≤ 1, e hα eestritamente crescente.

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284 Capıtulo 4. Outras Medidas

1

4

1

2

3

41

9

16

3

4

15

16

Figura 4.7.8: Exemplo de Hellinger, α = 14 : as funcoes f1, f2, f3 e f10.

Figura 4.7.9: Os grafico de fm, m ≥ 3, e de hα estao na zona sombreada.

A figura 4.7.9 ilustra a afirmacao (2) para n = 3.

Se um dado segmento no grafico de fn tem declive δ, entao um calculo simplesmostra que os dois segmentos correspondentes no grafico de fn+1 tem declives2(1−α)δ (o segmento a esquerda) e 2αδ (o segmento a direita). A observacaoseguinte resulta de observar que o grafico de f0 tem evidentemente declive 1.

(4) f ′n so toma os valores δ = 2nαi(1 − α)n−i, onde 0 ≤ i ≤ n.

Repare-se tambem que, supondo α < 1/2, o segmento mais a esquerda nografico de fn tem o declive maximo δ = 2n(1 − α)n, e e portanto no intervalo0 < x < 1

2n que a estimativa apresentada em (2) e maior, e igual a (1 − α)n.Podemos por isso adaptar (2) para

27Ernst David Hellinger, 1883-1950, matematico alemao, nascido na actual Polonia. Deascendencia judaica, chegou a estar preso no campo de Dachau, mas emigrou para osEUA em 1938. Ensinou em Gottingen, Marburg e Frankfurt, e nos EUA na NorthwesternUniversity e no Instituto de Tecnologia do Illinois.

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 285

(5) Se n ≤ m, entao 0 ≤ fm(x) − fn(x) < (1 − α)n. Em particular, fn(x) →hα(x) uniformemente, e a funcao hα e contınua.

hα e diferenciavel qtp, porque e contınua e crescente, mas temos ainda

(6) Se hα e diferenciavel em x entao h′α(x) = 0.

Demonstracao. Seja x ∈]0, 1[ um ponto de diferenciabilidade de hα. Tomamos

kn = int(x2n), dondekn

2n≤ x <

kn + 1

2n, an =

kn

2nր x e bn =

kn + 1

2nց x.

As funcoes hα e fn coincidem em an e bn, e temos de acordo com (4):

δn =hα(bn) − hα(an)

bn − an=fn(bn) − fn(an)

bn − an= 2nain(1 − a)n−in → h′α(x).

Se h′α(x) 6= 0, e evidente que δn+1

δn→ 1. Por outro lado, temos

δn+1

δn= 2α 6= 1 ou

δn+1

δn= 2(1 − α) 6= 1.

E assim impossıvel que h′α(x) 6= 0, ou seja, so podemos ter h′α(x) = 0.

A derivada generalizada de hα diz-se a medida de Hellinger, e designa-seaqui por ηα.

Dizemos que a funcao f e singular se e so se f ′ ≃ 0. Notamos que afuncao de Hellinger, alias como a de Cantor, sao funcoes contınuas singularesque nao sao constantes. O teorema da decomposicao de Lebesge permiterelacionar as funcoes e as medidas singulares:

Teorema 4.7.22. Se f ∈ BV (R)∩C(R) entao a respectiva derivada gene-ralizada µ e singular se e so se f e singular.

4.7.3 Diferenciacao de Funcoes de Variacao Limitada

Os resultados sobre diferenciabilidade que acabamos de apresentar sao naverdade validos para quaisquer funcoes de variacao limitada, independente-mente de hipoteses sobre a sua continuidade, e foi alias com esta generalidadeque Riesz demonstrou o seu “Lema do Sol Nascente”.

A nocao de semi-continuidade e util neste contexto. Dizemos que f esemi-contınua superior em A ⊆ RN se e so se, para qualquer α ∈ R,

x ∈ A : f(x) < α = A ∩ U , onde U ⊆ RN e aberto.

Observacoes 4.7.23.

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286 Capıtulo 4. Outras Medidas

1. Deixamos como exercıcio verificar que f : A → R e semi-contınua superiorem A se e so se(28)

lim supx→x0

f(x) = f(x0), para qualquer x ∈ A.

2. Se f : A→ R e semi-contınua superior em A, xn ∈ A, f(xn) → α e xn → x0

entao f(x0) ≥ α, porque

f(xn) → α ≤ lim supx→x0

f(x) = f(x0).

3. Se f : R → R e existem sempre os limites laterais f(x+) e f(x−) (porexemplo, se f ∈ BV (R)), entao e claro que

lim supx→x0

f(x) = maxf(x0), f(x+0 ), f(x−0 )

e portanto f e semi-contınua superior em R se e so se f(x) ≥ maxf(x+), f(x−)para qualquer x ∈ R.

4. Se f : R → R e crescente entao existem os limites laterais f(x+) e f(x−) etemos f(x−) ≤ f(x) ≤ f(x+). Segue-se da observacao anterior que f e semi-contınua superior em R se e so se f(x) = f(x+), ou seja, se e so se f e contınuaa direita em R.

O proximo lema e uma variante do classico Teorema de Weierstrass sobreextremos de funcoes contınuas:

Lema 4.7.24. Se f : RN → R e semi-contınua superior em RN e K ⊆ RN

e compacto entao f tem maximo em K.

Demonstracao. Os conjuntos Un = x ∈ RN : f(x) < n formam umacobertura aberta de K. Esta cobertura inclui uma subcobertura finita deK, donde se segue que f e majorada em K.

Sendo k = supf(x) : x ∈ K, existe uma sucessao xn ∈ K tal quef(xn) → k. Pelo teorema de Bolzano-Weiertrass, podemos supor que xn →x0 ∈ K. Temos f(x0) ≤ k porque x0 ∈ K, e tambem f(x0) ≥ k, conformea observacao 4.7.23.2.

O Lema de Riesz na forma de 4.7.1 pode ser generalizado como se segue:

Lema 4.7.25. Se g ∈ BV (R) e semi-contınua superior e I =]a, b[ e umintervalo limitado entao

D0s+(g, I) =

∞⋃

n=1

]an, bn[,

onde os intervalos ]an, bn[ sao disjuntos e g(bn) ≥ g(a+n ).

28Nos termos da definicao 1.4.23, o valor de f no ponto x0 afecta o calculo delim supx→x0

f(x). Caso esse valor seja excluıdo do calculo, a identidade acima deve sersubstituıda pela desigualdade lim supx→x0

f(x) ≤ f(x0).

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 287

Demonstracao. Repetimos o argumento usado em 4.7.1 com ligeiras modi-ficacoes. E facil verificar que D0

s+(g, I) e aberto, e portanto e uma uniao deintervalos abertos disjuntos In =]an, bn[. Pode por exemplo observar-se que,para cada y ∈ I, o conjunto x ∈ I : x < y e g(x) < g(y) e obviamenteaberto, porque g e semi-contınua superior.

A semi-continuidade de g em I e o conjunto D0s+(g, I) nao dependem do

valor g(b), e supomos para simplificar que g(b) = g(b−). Fixado x ∈]an, bn[,e sendo M o maximo da funcao g no intervalo [x, b], que existe de acordocom o lema anterior, resta-nos notar mais uma vez que:

(1) g(x) < M , porque existe y ∈]x, b[ tal que g(y) > g(x): Evidente.

(2) Se c = infy ∈ [x, b] : g(y) = M, entao g(c) = M : De 4.7.23.2.

(3) c 6∈ D0s+(g, I), porque nao existe y ∈]c, b] com g(y) > M : Evidente.

(4) [x, c[⊂ D0s+(g, I): De acordo com (2), temos g(t) < g(c) para qualquer

x < t < c. A afirmacao e assim imediata quando c ∈ I. Se c 6∈ I entaoe claro que c = b, e temos para qualquer x < t < b que g(t) < g(b−),donde se segue facilmente que existe t < t′ < b tal que g(t) < g(t′), ouseja, t ∈ D0

s+(g, I).

(5) c = bn e g(a+n ) ≤ g(bn): os intervalos [x, c[ e [x, bn[ estao ambos

contidos em D0s+(g, I), e e claro que c, bn 6∈ D0

s+(g, I). Temos portantoque c = bn. Como g(x) < g(bn), temos ainda que g(a+

n ) ≤ g(bn). Estadesigualdade e verdadeira mesmo quando bn = b e para a funcao goriginal, porque para essa funcao temos g(b−) ≤ g(b).

No que se segue, quando f ∈ BV (R) designamos por f a funcao dada porf(x) = maxf(x), f(x+), f(x−). Passamos tambem a designar por C(f, I)o conjunto de pontos de continuidade da funcao f no intervalo I. O seguintelema e inteiramente elementar:

Lema 4.7.26. Se f ∈ BV (R) entao

a) f(x+) = f(x+) e f(x−) = f(x−) para qualquer x ∈ R.

b) C(f, I) ⊆ C(f , I) para qualquer intervalo I ⊆ R.

c) f e de variacao limitada e semi-contınua superior em R.

Demonstracao. Deixamos a verificacao de a) como exercıcio. Para provarb), usamos a) para concluir que

f(x) = f(x+) = f(x−) =⇒ f(x) = f(x+) = f(x−).

A semicontinuidade superior de f resulta de a) e da observacao 4.7.23.3.

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288 Capıtulo 4. Outras Medidas

Como f ∈ BV (R), existem funcoes crescentes limitadas g e h tais quef = g−h. Deixamos como exercıcio verificar que g e h podem ser redefinidasnos pontos de descontinuidade de f para obter funcoes crescentes limitadasg e h tais que f = g − h, donde concluımos que f ∈ BV (R).

Podemos agora estabelecer uma versao do Lema de Riesz para funcoesde variacao limitada, onde escrevemos para simplificar S = S ∩ C(f, I):

Lema 4.7.27 (de Riesz (III)). Se g ∈ BV (R) e I = ]a, b[ e limitado, existeum conjunto (numeravel) N ⊆ I\C(g, I) tal que

D0s+(g, I) ∪N = D0

s+(g, I) =∞⋃

n=1

]an, bn[.

Os intervalos ]an, bn[ sao disjuntos e g(bn) ≥ g(a+n ) = g(a+

n ).

Demonstracao. Se x ∈ D0s+(g, I) ∩ C(f, I) entao existe y ∈ I tal que

y > x e g(y) > g(x) donde g(y) ≥ g(y) > g(x) = g(x).

Concluımos assim que D0s+(g, I) = C(g, I) ∩D0

s+(g, I) ⊆ D0s+(g, I).

Suponha-se agora que x ∈ D0s+(g, I), i.e., existe y ∈ I tal que

y > x e g(y) > g(x) ≥ g(x).

Temos portanto g(y) > g(x) ou g(y+) > g(x) ou g(y−) > g(x) e, em qualquerum destes casos, e claro que x ∈ D0

s+(g, I). Como

D0s+(g, I) = N ∪

(C(g, I) ∩D0

s+(g, I))

e D0s+(g, I) ⊆ D0

s+(g, I),

o conjunto N e numeravel, porque so contem pontos de descontinuidade deg. As restantes observacoes resultam de aplicar 4.7.25 a funcao g.

Passamos a adaptar o Lema de Riesz na versao 4.7.2 a funcoes de variacaolimitada como se segue:

Lema 4.7.28 (de Riesz (IV)). Se f ∈ BV (R) e I = ]a, b[ e limitado entaoexistem conjuntos (numeraveis) N,N ′ ⊆ I\C(f, I) tais que

a) Dαs+(f, I)∪N = Dα

s+(f , I) =

∞⋃

n=1

]an, bn[ e f(bn)−f(a+n ) ≥ α (bn − an) ,

b) Dαi−(f, I)∪N ′ = Dα

i−(f , I) =∞⋃

n=1

]cn, dn[ e f(d−n )−f(cn) ≤ α (dn − cn) .

Os intervalos ]an, bn[ e ]cn, dn[ formam famılias disjuntas.

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 289

D0s+(g, I)

D0s+(g, I)

C(g, I)

D0s+(g, I)

Figura 4.7.10: Os conjuntos D0s+(g, I), D0

s+(g, I) e C(g, I).

Demonstracao. Para estabelecer a), definimos g(x) = f(x)−αx. E claro queg(x) = f(x) − αx, C(f, I) = C(g, I), Dα

s+(f, I) = D0s+(g, I) e Dα

s+(f , I) =D0

s+(g, I). Temos de 4.7.27 que

D0s+(g, I) ∪N = D0

s+(g, I) =

∞⋃

n=1

]an, bn[, com g(bn) ≥ g(a+n ) e portanto

Dαs+(f, I) ∪N = Dα

s+(f , I) =∞⋃

n=1

]an, bn[, com f(bn) − f(a+n ) ≥ α(bn − an).

Para provar b), utilizamos h(x) = f(−x) + αx. Temos neste caso h(x) =f(−x) + αx, C(f, I) = −C(h,−I), Dα

i−(f, I) = −D0s+(h,−I) e Dα

i−(f , I) =−D0

s+(g,−I). De acordo com 4.7.27,

D0s+(h,−I)∪(−N ′) = D0

s+(g,−I) =∞⋃

n=1

]−dn,−cn[, com h(−cn) ≥ h(−d+n ).

Como h(−x+) = f(x−) − αx,

Dαi−(f, I) ∪N ′ = Dα

i−(f , I) =

∞⋃

n=1

]cn, dn[, com f(cn) − αcn ≥ f(d−n ) − αdn

Quando f e crescente e limitada, f e crescente e contınua a direita, e temderivada generalizada µ. A proposicao 4.7.3 sofre apenas alteracoes subtis:

Proposicao 4.7.29. Se f : R → R e crescente, I ⊆ R e um intervalo abertolimitado, µ e a derivada generalizada de f e α ≥ 0 entao

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290 Capıtulo 4. Outras Medidas

a) α m(Dαs+(f, I)) ≤ µ(I).

b) µ(Dαi−(f, I)) ≤ α m (I).

Demonstracao. Podemos supor que f(x) = f(b−) para x ≥ b e f(x) = f(a+)para x ≤ a. Os seguintes calculos sao imediatos do lema 4.7.28:

αm(Dαs+(f, I)) = αm(Dα

s+(f , I)) = α

∞∑

n=1

(bn − an) ≤

≤∞∑

n=1

[f(bn) − f(a+

n )]

= µ

(∞⋃

n=1

]an, bn]

)

≤ µ(I).

Temos analogamente (onde observamos que µ(]c, d[) = f(d−) − f(c)),

µ(Dαi−(f, I)) ≤ µ(Dα

i−(f , I)) =∞∑

n=1

[f(d−n ) − f(cn)

]≤

≤∞∑

n=1

α(dn − cn) = αm(Dαi−(f , I))) ≤ αm(I).

O lema 4.7.6 pode tomar a seguinte forma, de demonstracao imediata:

Lema 4.7.30. Se f ∈ BV (R), I e um intervalo aberto e x ∈ C(f, I) entao

f ′s+(x) > α =⇒ x ∈ Dαs+(f , I) e f ′i−(x) < α =⇒ x ∈ Dα

i−(f , I).

O teorema 4.7.7 pode ser facilmente adaptado a quaisquer funcoes crescentes.

Teorema 4.7.31. Se f : R → R e crescente, µ e a derivada generalizadade f , α ≥ 0 e E ⊆ C(f,R) entao

a) f ′s+(x) ≥ α para qualquer x ∈ E =⇒ α m∗(E) ≤ µ∗(E).

b) f ′i−(x) ≤ α para qualquer x ∈ E =⇒ α m∗(E) ≥ µ∗(E).

Demonstracao. O argumento e uma adaptacao evidente do utilizado para4.7.7, invocando naturalmente 4.7.29 e 4.7.30 em lugar de 4.7.3 e 4.7.6.

A seguinte adaptacao do corolario 4.7.8 e tambem simples.

Corolario 4.7.32. Se f : R → R e crescente e µ e a derivada generalizadade f entao

a) Se S = x ∈ R : f ′s+(x) = ∞ entao m(S) = 0.

b) Se E = x ∈ R : f ′s+(x) ≥ α > β ≥ f ′i−(x) entao m(E) = µ(E) = 0.

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 291

c) Se A = x ∈ R : f ′s+(x) > f ′i−(x) entao m(A) = µ(A) = 0.

d) Se B = x ∈ R : f ′s−(x) > f ′i+(x) entao m(B) = µ(B) = 0.

Demonstracao. a): Tomando S = S∩C(f,R), o argumento original de 4.7.8mostra que m(S) = 0. Como o conjunto R\C(f, I) e numeravel, e claro quem(S) = 0.

b) e c): O argumento original e aplicavel substituindo R por C(f, I).d): Tomamos mais uma vez h(x) = −f(−x), mas neste caso λ e a

derivada generalizada de h. O argumento original continua aplicavel, porquee ainda verdade que µ∗(E) = λ∗(−E).

Os teoremas de diferenciacao e de decomposicao de Lebesgue podemser reformulados para eliminar as hipoteses de continuidade com que foraminicialmente obtidos. A tıtulo de exemplo, temos

Teorema 4.7.33 (de Decomposicao de Lebesgue (II)). Seja f : R → R umafuncao crescente e µ a derivada generalizada de f . Seja ainda T = x ∈C(f,R) : f ′(x) = +∞ e D = x ∈ R : f(x+) 6= f(x−). Existem entaouma medida contınua singular λ e uma medida discreta σ tais que

µ(E) =

Ef ′(x)dx+ λ(E) + σ(E),

onde λ(E) = µ(E ∩ T ) e σ(E) = µ(E ∩D). Em particular, existem funcoescrescentes g, s e d tais que f = g + s + d, g e absolutamente contınua, s econtınua e singular e d e discreta.(29)

Deve ser claro que f = (g + s) + d e a decomposicao em parte contınuae parte discreta mencionada em 4.5.11, e se ρ e o integral indefinido de f ′

entao µ = ρ + (λ + σ) e a decomposicao de Lebesgue de µ. E interessanteverificar que as funcoes em causa sao todas diferenciaveis qtp e s′ ≃ d′ ≃ 0.

Exercıcios.

1. Prove que (i) ⇔ (ii) ⇒ (iii), onde as afirmacoes (i), (ii) e (iii) sao as seguintes:

(i) Existe α′ > α e uma sucessao xn ց x tal que f(xn)−f(x)xn−x → α′ > α.

(ii) lim suphց0f(x+h)−f(x)

h > α.

(iii) x ∈ Dαs+(I), sempre que x ∈ I.

2. Mantendo as hipoteses e notacao do lema 4.7.2, mostre que se an < x < bn,entao f(x) < f(bn), e se an > a, entao f(an) = f(bn). Como se pode adaptaro lema 4.7.2 para o caso em que I nao e limitado?

3. Demonstre o corolario 4.7.2.

29As funcoes f ∈ BV (R) para as quais s = 0 formam o espaco SBV (R), de Simple

Bounded Variation, na terminologia introduzida por E. De Giorgi e L.Ambrosio em 1988.

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292 Capıtulo 4. Outras Medidas

4. Supondo h(x) = −f(−x), mostre que f ′i+(x) = h′i−(−x), e f ′

s−(x) = h′s+(−x).

5. Demonstre as afirmacoes (2) e (3), relativas ao exemplo de Hellinger.

6. Existem funcoes contınuas que nao sao monotonas em nenhum intervalo nao-trivial?

7. Demonstre o teorema 4.7.14.

8. Como descreve as medidas absolutamente contınuas e σ-finitas em R?

9. Mostre que se f ∈ BV (R)∩C(R) e x ∈ R : |f ′(x)| = ∞ e numeravel entaof satisfaz a regra de Barrow.

10. Mostre que ηα⊥ηβ quando α 6= β.

11. Seja f : R → R a funcao dada por f(x) = 1 + x, para x ≥ 0, com f(x) = 0para x ≤ 0. Determine a decomposicao de Lebesgue da derivada generalizadade f .

12. Seja F a escada do Diabo, e

f(x) =

0, se x < 0,cos(πx) + F (x), se 0 ≤ x < 1,0, se x ≥ 1.

Qual e a decomposicao de Lebesgue da derivada generalizada de f?

13. A “escada do diabo” foi definida usando o conjunto de Cantor. Substituindonesta definicao o conjunto de Cantor pelo exemplo de Volterra Cε(I), com ε >0, seja Fε a correspondente “escada”, e ξε a respectiva derivada generalizada.Qual e a decomposicao de Lebesgue de ξε?

14. Suponha que as funcoes fn : R → R sao crescentes, e a serie f(x) =∑∞n=1 fn(x) converge em R. Prove que f ′ ≃ ∑∞

n=1 f′n. sugestao: Use a

unicidade da decomposicao de Lebesgue. Este resultado diz-se o Teorema de

diferenciacao de Fubini ou, mais coloquialmente, o “pequeno” teorema deFubini.

15. Mostre que qualquer funcao discreta de variacao limitada e singular.

16. Suponha que f : [0, 1] → [0, 1] e uma funcao contınua, estritamente cres-cente, e singular. Mostre que a medida de Lebesgue-Stieltjes determinada pelainversa f−1 : [0, 1] → [0, 1] e singular.

17. Mostre que f : R → R e semi-contınua superior em A ⊆ R se e so sef(a) = lim supx→a f(x), para qualquer a ∈ A.

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4.7. Os Teoremas Fundamentais do Calculo em R 293

18. Suponha que a medida real µ e a derivada generalizada de f , e sejam g eh funcoes distribuicao de µ+ e µ−. Sendo F = g + h, prove que F ′ ≃ |f ′| eg′h′ ≃ 0.

19. Mostre que se f e g sao L-mensuraveis entao h = f g nao e necessariamentemensuravel. sugestao: Determine uma funcao g contınua e estritamentecrescente tal que g(A) = B, onde A nao e mensuravel, e m(B) = 0.

20. Complete a demonstracao do lema 4.7.26, estabelecendo as identidadesf(x+) = f(x+) e f(x−) = f(x−). Mostre ainda que f ∈ BV (R).

21. Complete a demonstracao do lema 4.7.32, verificando que µ∗(E) = λ∗(−E).

22. Suponha que f ∈ BV (R) ∩C(R), seja µ a respectiva derivada generalizadae λ(I) o comprimento do grafico de f no intervalo I. Prove que

maxm(I), |µ|(I) ≤ λ(I) ≤ m(I) + |µ|(I).

Aproveite para generalizar o resultado que provamos sobre o comprimento dografico da escada do diabo, ou seja, mostre que se f e singular entao

λ(I) = m(I) + |µ|(I).

23. Suponha que a medida real µ e a derivada generalizada de f , e mostre queexiste uma medida positiva λ tal que λ(I) e o comprimento do grafico de f nointervalo I. Calcule a decomposicao de Lebesgue de λ, tal como indicada noexemplo 4.7.20.1, e verifique em particular que a classica formula

λ(I) =

I

√1 + f ′2dx

e valida se e so se f e absolutamente contınua.

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294 Capıtulo 4. Outras Medidas

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Capıtulo 5

Outros Integrais de Lebesgue

Passamos neste Capıtulo ao estudo de integrais de Lebesgue de funcoesdefinidas num espaco de medida arbitrario (X,M, µ), de que a aplicacaomais evidente e a Teoria das Probabilidades. Na realidade, quando (X,M, µ)e um espaco de probabilidades, as funcoes mensuraveis dizem-se, normal-mente, variaveis aleatorias, e o integral de uma variavel aleatoria em ordema medida de probabilidade µ e o seu valor medio, ou expectavel.

A regiao de ordenadas de uma funcao definida num conjunto “arbitrario”X e um subconjunto de X × R. Para atribuir um integral a uma funcaodeste tipo, e necessario atribuir uma medida apropriada a subconjuntos deX × R. Veremos que a teoria desenvolvida nos Capıtulo anteriores permitea definicao de um espaco de medida com suporte em X×R, obtido, por umprocedimento muito natural, a partir dos espacos (X,M, µ) e (R,L(R),m).

Mostraremos em seguida que as propriedades mais significativas dos in-tegrais de Lebesgue “em ordem a medida de Lebesgue” sao validas, essen-cialmente sem modificacao, neste contexto muito geral, reduzindo a teoriadesenvolvida no Capıtulo anterior a um caso particular. Demonstramosuma versao abstracta do teorema de Fubini-Lebesgue, aplicavel a funcoesdefinidas em X × Y , onde (X,M, µ) e (Y,N , λ) sao espacos de medidaquaisquer, e estudamos o classico Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue,que generaliza o 2o Teorema Fundamental do Calculo e o Teorema da De-composicao de Lebesgue.

Terminamos o capıtulo com o que e, sobretudo, uma ligeira introducaoao vastıssimo domınio da Analise Funcional. Introduzimos aqui diversosexemplos de espacos de (classes de) funcoes mensuraveis, fundamentais emmultiplas aplicacoes da Analise Real a outros ramos da Matematica, e aoutras areas cientıficas, e discutimos questoes tecnicas sofisticadas, susci-tadas pelo estudo destes espacos. Consideramos, em particular, a genera-lizacao de nocoes topologicas que conhecemos de RN , incluindo a definicaode criterios de convergencia de sucessoes nestes espacos, e o estudo dosrespectivos espacos duais, que sao constituıdos pelas suas transformacoes

295

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296 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

lineares contınuas. Estes espacos duais sao indispensaveis a adaptacao dasideias e metodos do Calculo Diferencial em RN para o contexto de espacosde funcoes, que e o Calculo de Variacoes. E difıcil subestimar a importanciadesta area, tendo em conta que as mais importantes teorias da Fısica moder-na se baseiam em princıpios variacionais. Os resultados aqui apresentadossao, sem qualquer duvida, dos mais significativos e relevantes da AnaliseReal, e sao uma magnıfica ilustracao da superioridade tecnica da teoria daintegracao de Lebesgue.

5.1 A Medida µ ⊗ m

Ω+

Ω−D∞

fR

X

X × R

Figura 5.1.1:∫E fdµ =?

Dado um qualquer espaco de medida (X,M, µ), propomo-nos agora iden-tificar as funcoes f : X → R, ditas “M−mensuraveis”, e definir integraisde Lebesgue “em ordem a medida µ”, para uma subclasse apropriada dasfuncoes M-mensuraveis. O principal obstaculo tecnico a vencer e, natural-mente, a indispensavel generalizacao da identidade

EfdmN = mN+1(Ω

+E(f)) −mN+1(Ω

−E(f)).

No caso de f : X → R, os conjuntos Ω+E(f) e Ω−

E(f) sao dados por

Ω+E(f) = (x, y) ∈ X × R : x ∈ E, e 0 < y < f(x), e

Ω−E(f) = (x, y) ∈ X × R : x ∈ E, e 0 > y > f(x).

Os conjuntos Ω+E(f) e Ω−

E(f) sao evidentemente subconjuntos de X × R

e, por isso, a definicao de∫E fdµ exige uma resposta previa as seguintes

questoes:

5.1.1. Dado o espaco de medida (X,M, µ),

(1) Que subconjuntos de X × R sao “mensuraveis” em algum sentido ra-zoavel do termo?

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5.1. A Medida µ⊗m 297

(2) Qual a “medida” desses subconjuntos “mensuraveis” de X × R?

Exemplos 5.1.2.

1. Na teoria das probabilidades, e dado um espaco de probabilidades (X,M, µ),as funcoes M-mensuraveis dizem-se variaveis aleatorias. Tipicamente, te-mosX = RN , M = B(RN), e as variaveis aleatorias sao, como veremos imedia-tamente a seguir, as funcoes borel-mensuraveis. O integral de f em ordema µ e o chamado valor medio, ou expectavel, de f .

2. Quando X = N, as funcoes f : X → R sao simplesmente as sucessoes reais.Consideramos a σ-algebra M = P(N), com a medida de contagem (cardinal)µ = #. Veremos que as funcoes M-mensuraveis sao aqui todas as sucessoes

reais. Veremos tambem que o integral de f : N → R “em ordem a #” e∑∞n=1 f(n), sempre que esta serie e absolutamente convergente.

3. Os “integrais de Stieltjes” sao, como veremos, integrais em ordem amedidas de Lebesgue-Stieltjes. Por exemplo, se f ≥ 0 e Borel-mensuravel emR, e ξ e a medida de Cantor, o integral

R

fdξ

e um integral de Stieltjes. A medida de Cantor e de probabilidade, e nestesentido o integral acima e o valor expectavel de f .

Para entender a referencia ao nome de Stieltjes neste contexto, recorde-se que

os integrais de Riemann∫ b

a g(x)dx sao limites de somas “de Riemann”, do tipo

n∑

k=1

g(x∗k)(xk − xk−1).

Stieltjes substituiu os factores ∆xk = (xk−xk−1) por F (xk)−F (xk−1), onde Fe uma funcao arbitraria, e considerou o limite correspondente, quando existe,como o integral que hoje dizemos de “Riemann-Stieltjes”:

∫ b

a

g(x)dF = limdiam(P)→0

n∑

k=1

g(x∗k)(F (xk) − F (xk−1)).

A definicao de Stieltjes generaliza a de Riemann, porque esta ultima correspon-de a escolha F (x) = x. Na terminologia actual, Stieltjes substituiu a medidade Lebesgue m(Ik) do intervalo Ik =]xk−1, xk] pela medida µ(Ik), onde µ ea derivada generalizada de F . Foi assim o primeiro matematico a estudarintegrais que hoje reconhecemos como sendo em ordem a uma medida µ 6= m.

A resposta as questoes colocadas em 5.1.1 e surpreendentemente simples,e resulta de adaptar a afirmacao feita em 2.2.21 a), ou seja,

A ∈ L(RN) e B ∈ L(RM ) =⇒ A×B ∈ L(RN+M ), e

mN+M (A×B) = mN (A)mM (B).

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298 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Abstraımos daqui o princıpio de que o produto cartesiano de conjuntos men-suraveis deve ser mensuravel, e a sua medida deve ser o produto das medidasdos conjuntos em causa. Mais precisamente, se A ⊆ X e M-mensuravel ese B ⊆ R e, pelo menos, Borel-mensuravel, entao

5.1.3. A×B deve ser “mensuravel” em X × R, com “medida” dada por

ρ(A×B) = µ(A)m(B).

A medida ρ, a existir, esta definida pelo menos na σ-algebra gerada emX × R pelos conjuntos da forma A×B, onde A ∈ M e B ∈ B(R).

E conveniente introduzir esta σ-algebra num contexto um pouco maisgeral, que nos sera util mais adiante, quando definirmos o produto de quais-quer dois espacos de medida (X,M, µ) e (Y,N , ν).

Definicao 5.1.4 (Produto de σ-algebras). Se (X,M) e (Y,N ) sao espacosmensuraveis, designamos por M ⊗N a σ-algebra gerada em X × Y pelosconjuntos da forma A×B, onde A ∈ M e B ∈ N .

Exemplo 5.1.5.

Para calcular o produto de σ-algebras de Borel, recordamos que

A ∈ B(RN) e B ∈ B(RM ) =⇒ A×B ∈ B(RN+M ).

A σ-algebra B(RN+M ) e assim uma das σ-algebras que contem os conjuntosda forma A×B, com A ∈ B(RN) e B ∈ B(RM ), e portanto

B(RN ) ⊗ B(RM ) ⊆ B(RN+M ).

Por outro lado, se U ⊆ RN e V ⊆ RM sao abertos, e evidente que U ×V ∈ B(RN) ⊗ B(RM ), por definicao. E facil concluir daqui que a σ-algebraB(RN) ⊗ B(RM ) contem todos os abertos de RN+M . Como B(RN+M ) e, pordefinicao, a menor σ-algebra que contem todos os abertos de RN+M , temos

B(RN+M ) ⊆ B(RN) ⊗ B(RM ), donde B(RN) ⊗ B(RM ) = B(RN+M).

Dado um espaco de medida (X,M, µ), podemos utilizar a σ-algebraM ⊗ B(R) para identificar os conjuntos “mensuraveis” em X × R. E umproblema um pouco mais difıcil mostrar que existe, alem disso, uma medidaρ, definida em M⊗B(R), e satisfazendo a identidade em 5.1.3, i.e., tal queρ(A×B) = µ(A)m(B), quando A ∈ M, e B ∈ B(R).

Exemplo 5.1.6.

Seja (X,M, µ) = (RN ,L(RN ),mN ) o espaco de Lebesgue. Neste caso, temos,certamente,

M⊗B(R) = L(RN ) ⊗ B(R) ⊆ L(RN ) ⊗ L(R) ⊆ L(RN+1).

Podemos, por razoes evidentes, tomar para ρ a restricao da medida de LebesguemN+1 a σ-algebra L(RN ) ⊗ B(R).

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5.1. A Medida µ⊗m 299

Demonstraremos, nesta seccao, o seguinte resultado:

Teorema 5.1.7 (Espaco com suporte em X×R). Se (X,M, µ) e um espacode medida, entao existe uma medida µ⊗m definida em M⊗B(R), tal que(µ⊗m)(A×B) = µ(A)m(B),∀A∈M∀B∈B(R).

Antes de demonstrar este teorema, mostramos como este resultado nospermite definir integrais de Lebesgue “em ordem a medida µ”, para funcoesf : X → R, ditas, neste caso, “M-mensuraveis”.

Definicao 5.1.8 (Integrais em ordem a medida µ). Seja E ⊆ S ⊆ X, ef : S → R.

a) f e M-mensuravel em E se e so se ΩE(f) ∈ M⊗B(R).

b) Se f e M-mensuravel em E, e pelo menos um dos conjuntos Ω+E(f)

e Ω−E(f) tem medida (µ⊗m) finita, o integral de Lebesgue de f

(em ordem a µ) em E e dado por

Efdµ = (µ⊗m)(Ω+

E(f)) − (µ⊗m)(Ω−E(f)).

c) Se f e M-mensuravel em E, entao f e µ-somavel em E se e so se(µ⊗m) (ΩE(f)) <∞.

Exemplos 5.1.9.

1. o espaco de borel: Se (X,M, µ) = (RN ,B(RN),mN ) e o espaco de Borel,ja vimos que

M⊗B(R) = B(RN+1).

Por esta razao, as funcoes B(RN)-mensuraveis, de acordo com a definicaoacima, sao as funcoes Borel-mensuraveis, que introduzimos em 3.1.1.

A medida mN ⊗ m coincide com a medida mN+1, pelo menos na classe dosconjuntos elementares, e sabemos do Capıtulo 2 que neste caso mN ⊗ m =mN+1, em toda a σ-algebra B(RN+1).

Concluımos que a definicao acima inclui, como caso particular, a definicao3.1.1, quando esta ultima e aplicada a funcoes borel-mensuraveis.

2. o espaco das sucessoes reais: Trata-se, como vimos no exemplo 5.1.2.2,do espaco (N,P(N),#), onde # e a medida de contagem. E simples verificarque qualquer sucessao f : N → R e M-mensuravel. Suponha-se, para isso, quef(n) = an, An = n, e os intervalos In sao dados por:

In =

]0, an[, se an > 0,∅, se an = 0,]an, 0[, se an < 0.

A regiao de ordenadas de f e ΩN(f) =⋃∞

n=1An × In, e notamos que:

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300 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

• Os conjuntos An × In sao P(N)⊗B(R)-mensuraveis, porque An ∈ P(N),In e um intervalo, e P(N)⊗B(R) contem, por definicao, todos os conjuntosdeste tipo, e

• ΩN(f) e uma uniao numeravel de conjuntos P(N)⊗B(R)-mensuraveis, eportanto e P(N) ⊗ B(R)-mensuravel.

Se f e nao-negativa, podemos calcular imediatamente o seu integral. Como(# ⊗m) e uma medida,

N

fd# =(# ⊗m)(ΩN(s)) = (# ⊗m)(∞⋃

n=1

An × In) =

=

∞∑

n=1

(# ⊗m)(An × In) ==

∞∑

n=1

#(An) ×m(]0, an[) =

∞∑

n=1

an.

Por outras palavras, a soma de uma serie de termos nao-negativos e tambemum integral de Lebesgue (em ordem a medida de contagem). Se f muda desinal, temos entao ∫

X

|f |d# =∞∑

n=1

|an|,

e as funcoes #-somaveis correspondem as series absolutamente convergentes.E simples mostrar que, para as funcoes #-somaveis, temos igualmente

X

fd# =

∞∑

n=1

an.

A questao da mensurabilidade das seccoes de conjuntos mensuraveis ede importancia fundamental, conforme vimos no Capıtulo anterior, quandoestudamos o teorema de Fubini-Lebesgue e as suas multiplas consequencias.No que se segue, se E ⊆ X × Y , x ∈ X, e y ∈ Y , consideramos apenasseccoes dos tipos Ex = y ∈ Y : (x, y) ∈ E, e Ey = x ∈ X : (x, y) ∈ E.Demonstraremos mais adiante uma versao (5.7.6) muito geral do teorema deFubini-Lebesgue, mas podemos provar imediatamente o seguinte resultado.

Teorema 5.1.10. Sejam (X,M) e (Y,N ) espacos mensuraveis quaisquer.Se E ∈ M⊗N , i.e., se E e M⊗N -mensuravel, entao

a) Para qualquer x ∈ X, a seccao Ex ⊆ Y e N -mensuravel, e

b) Para qualquer y ∈ Y , a seccao Ey ⊆ X e M-mensuravel.

c) Se E ⊆ X, f : E → R e M-mensuravel, e λ ≥ 0, entao os conjuntos

F (λ) = x ∈ E : f(x) > λ, e G(λ) = x ∈ E : f(x) < −λ

sao M-mensuraveis para qualquer λ.

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5.1. A Medida µ⊗m 301

Demonstracao. Seja A a classe formada por todos os conjuntos E ⊆ X×Y ,cujas seccoes Ex e Ey sao mensuraveis, nos espacos apropriados.

A = E ⊆ X × Y : Ex ∈ N ,∀x∈X , e Ey ∈ M,∀y∈Y .

Observamos que:

(i) A classe A contem todos os conjuntos do tipo A × B, com A ∈ M eB ∈ N : Basta notar que:

(A×B)x =

B, se x ∈ A∅, se x 6∈ A,

, e (A×B)y =

A, se y ∈ B∅, se y 6∈ B,

(ii) A classe A e uma σ-algebra: Observamos que:

(Ec)x = (Ex)c , (Ec)y = (Ey)c , e,

Se E =∞⋃

n=1

En, entao Ex =∞⋃

n=1

(En)x, e Ey =∞⋃

n=1

(En)y.

Como M e N sao σ-algebras, deve ser claro que

E ∈ M⊗N ⇒ Ec ∈ M⊗N , e En ∈ M⊗N ⇒∞⋃

n=1

En ∈ M⊗N .

Como a classe M⊗N e, por definicao, a menor σ-algebra que contemtodos os conjuntos do tipo A × B, com A ∈ M e B ∈ N , e A e, tambem,uma σ-algebra que contem estes conjuntos, concluımos que M⊗N ⊆ A, oque demonstra a) e b).

A demonstracao de c) fica para o exercıcio 8.

Exemplo 5.1.11.

o espaco de Lebesgue: O produto de σ-algebras de Lebesgue nao e umaσ-algebra de Lebesgue. Sabemos que

A ∈ L(RN ) e B ∈ L(RM ) =⇒ A×B ∈ L(RN+M ),

e, por esta razao, continua a ser valida a conclusao:

L(RN ) ⊗ L(RM ) ⊆ L(RN+M ).

No entanto, existem conjuntos E ∈ L(RN+M ) cujas seccoes nao sao, todas,Lebesgue-mensuraveis. Por exemplo, se A tem medida nula, entao A × B eLebesgue-mensuravel, mesmo que B o nao seja. Concluımos, deste facto, e doteorema anterior, que

(i) L(RN ) ⊗ L(RM ) 6= L(RN+M ).

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302 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Aplicando a definicao 5.1.8 ao espaco de Lebesgue (RN ,L(RN ),mN ), entao

(ii) f : RN → R e L(RN )-mensuravel ⇔ ΩRN (f) ∈ L(RN ) ⊗ L(R), e

Aplicando a definicao “original” 3.1.1, temos

(iii) f : RN → R e L-mensuravel ⇔ ΩRN (f) ∈ L(RN+1).

Apesar de L(RN )⊗L(R) 6= L(RN+1), a discrepancia entre (ii) e (iii) e apenasaparente, e deixamos como exercıcio (12) verificar que

ΩRN (f) ∈ L(RN+1) =⇒ ΩRN (f) ∈ L(RN ) ⊗ L(R).

Por outras palavras, a classe das funcoes L-mensuraveis, no sentido de 3.1.1, ea classe das funcoes L(RN )-mensuraveis, no sentido de 5.1.8.

As ideias sobre funcoes simples generalizam-se, sem qualquer dificuldade,ao contexto mais geral de um espaco (X,M, µ). Tal como nos espacos deBorel e de Lebesgue, temos

Lema 5.1.12. Se s : S → R e simples em E ⊆ S ⊆ X, entao s e M-men-

suravel em S se e so se existe uma particao finita P do conjunto A =x ∈ E : s(x) 6= 0, em conjuntos M-mensuraveis, P = A1, A2, · · · , An,tais que s e constante em cada conjunto Ai.

Continuamos a dizer que a particao P e apropriada a funcao s, noconjunto E, se e formada por conjuntos mensuraveis, s e constante em cadaconjunto em P, e P e uma cobertura do conjunto A. As formulas parao calculo de integrais de funcoes simples que vimos em 3.4.4 mantem-seinalteradas:

Proposicao 5.1.13 (Integrais de funcoes simples). Seja s : S → R simplesM-mensuravel em S, e P = A1, A2, · · · , An uma particao apropriada as. Se s(x) = αi quando x ∈ Ai, entao:

a) s e somavel em S se e so se∑n

i=1 |αi|µ(Ai) < +∞.

b) Se o integral de s em ordem a µ existe,∫S sdµ =

∑ni=1 αiµ(Ai).

Demonstracao. Demonstramos apenas b), e para o caso s ≥ 0. Como Ai ∈M, os conjuntos Ri = Ai×]0, αi[ sao M⊗B(R)-mensuraveis. temos

ΩE(s) = Ω+E(s) =

n⋃

i=1

Ai×]0, αi[, donde

Esdµ = (µ⊗m)(ΩE(s)) =

n∑

i=1

(µ⊗m)(Ai×]0, αi[) =

n∑

i=1

αiµ(Ai).

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5.1. A Medida µ⊗m 303

Exemplo 5.1.14.

espacos de probabilidade: Seja (X,M, µ) um espaco de probabilidades, es : X → R uma variavel aleatoria simples. Suponha-se que s assume os valoresa1, a2, · · · , an, respectivamente, nos conjuntos A1, A2, · · · , An. Na terminolo-gia usual da teoria das probabilidades, temos:

• O conjunto Ai e o acontecimento “s(x) = ai”,

• µ(Ai) e a probabilidade de Ai, i.e., a probabilidade de “s(x) = ai”.

O integral de s em ordem a µ e

X

sdµ =

n∑

i=1

αiµ(Ai),

e e claramente o valor medio (ou expectavel) da variavel aleatoria s.

O teorema 5.1.7 nao contem nenhuma afirmacao sobre a unicidade damedida µ ⊗ m. Portanto, nao e por enquanto claro se a definicao 5.1.8 eambıgua, no que diz respeito ao valor do integral de uma funcao em ordema medida µ. No entanto, e obvio do lema 5.1.13 que essa ambiguidade naoexiste para funcoes simples M-mensuraveis. Veremos no teorema 5.2.11 queas funcoes M-mensuraveis podem ser aproximadas por funcoes simples M-mensuraveis, o que nos permitira mostrar que o integral tal como definidoem 5.1.8 e unico.

Antes de passarmos a demonstracao do teorema 5.1.7, notamos que estee mais um “problema de extensao”, analogo aos problemas de Borel, deLebesgue, e de Stieltjes. Num problema deste tipo, dada uma classe C desubconjuntos de um conjunto fixo S, e uma funcao λ : C → [0,+∞] definidaapenas para os conjuntos em C, pretende-se determinar um espaco de medida(S,A, ρ) que seja extensao de (S, C, λ), i.e., tal que

A ⊇ C e ρ(E) = λ(E), para qualquer E ∈ C.

As ideias que usamos para resolver o problema “facil” de Lebesgue po-dem ser adaptadas para resolver problemas mais gerais, desde que certashipoteses auxiliares apropriadas sejam satisfeitas. A tecnica base nao sofrequalquer modificacao, e consiste em

• Usar a funcao “original” λ para definir uma medida exterior λ∗,

• Considerar a σ-algebra Mλ∗ , formada pelos conjuntos λ∗-mensuraveis,

• Tomar ρ igual a restricao da medida exterior λ∗ a σ-algebra A = Mλ∗ .

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304 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

P(S)

Mλ∗

C

λ∗

ρ

λ

Figura 5.1.2: As funcoes λ : C → [0,+∞], ρ : Mλ∗ → [0,+∞], e λ∗ :P(S) → [0,+∞].

Teorema 5.1.15. Seja C ⊆ P(S), e λ : C → [0,+∞] uma funcao naoidenticamente +∞, e σ-aditiva em C. Supomos que C e uma semi-algebraem S, e uma cobertura sequencial de S. Definimos λ∗ : P(S) → [0,∞] por

λ∗(E) = inf

∞∑

n=1

λ(En) : E ⊆∞⋃

n=1

En, com En ∈ C.

Temos entao que

a) λ∗ e uma medida exterior em S, e portanto a restricao de λ∗ a classeMλ∗ , formada pelos conjuntos λ∗-mensuraveis, e uma medida ρ.

b) ρ e uma extensao de λ, i.e., C ⊆ Mλ∗ , e ρ(E) = λ(E), para qualquerE ∈ C.

Demonstracao. a) e imediato de 2.5.4 e 2.5.15. Para verificar b), mostramosprimeiro que

(i) λ∗(E) = λ(E), para qualquer E ∈ C:

Demonstracao. Se E ∈ C, podemos tomar, na definicao de λ∗(E),E1 = E, e, para n > 1, En = ∅. Obtemos imediatamente queλ∗(E) ≤ λ(E). Por outro lado, como λ e σ-aditiva na semi-algebra C,e igualmente σ-subaditiva em C, e, portanto, se E,En ∈ E , temos

E ⊆∞⋃

n=1

En =⇒ λ(E) ≤∞∑

n=1

λ(En) =⇒ λ(E) ≤ λ∗(E).

Concluımos que λ∗(E) = λ(E), quando E ∈ C.

Deixamos como exercıcio a seguinte afirmacao, analoga a 2.2.10:

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5.1. A Medida µ⊗m 305

(ii) E ∈ Mλ∗ ⇔ λ(C) = λ∗(C ∩ E) + λ∗(C ∩ Ec), para qualquer C ∈ C.

(iii) C ⊆ Mλ∗ .

Demonstracao. Se E,C ∈ C, entao C ∩ E,C ∩ Ec ∈ C, porque C euma semi-algebra. Como λ∗(C) = λ(C) para C ∈ C, e λ e aditiva emC, temos λ∗(C ∩ E) + λ∗(C ∩ Ec) = λ(C ∩ E) + λ(C ∩ Ec) = λ(C).Concluımos de (ii) que C ⊆ Mλ∗ , o que termina a verificacao de b).

Se C e uma algebra em S, o teorema (5.1.15) pode enunciar-se como o:

Corolario 5.1.16 (Teorema de Extensao de Hahn (1)). Se C e uma algebraem S, λ : C → [0,∞], e λ(∅) = 0, entao existe um espaco de medida (S,A, ρ)que e extensao de (S, C, λ) se e so se λ e σ-aditiva em C.

Demonstracao. Basta observar que se C e uma algebra em S, entao e umacobertura sequencial de S.

Exemplo 5.1.17.

A definicao que demos da medida de Lebesgue e uma aplicacao directa doteorema 5.1.15. Neste caso, temos S = RN , podemos tomar C = E(RN ), ouC = J (RN ), e e claro que λ = cN e o conteudo de Jordan.

Designamos por R a classe dos conjuntos da forma A×B, onde A ∈ M eB ∈ B(R), que chamaremos aqui “rectangulos”, e definimos λ : R → [0,+∞]por λ(A × B) = µ(A)m(B). Para demonstrar o teorema 5.1.7, seguiremosos seguintes passos:

• Provamos que λ e σ-aditiva em R. Usaremos aqui o teorema de BeppoLevi, tal como se aplica no espaco de Lebesgue usual.

• Introduzimos a classe C = E , dos conjuntos que sao unioes finitas de“rectangulos” em R, que diremos serem conjuntos “elementares”.

• Definimos λ em toda a classe E , usando a aditividade de λ em R.

• Mostramos que E e uma algebra em S = X × R, e usamos o teoremade extensao de Hahn.

Proposicao 5.1.18. λ e σ-aditiva, e portanto aditiva, na classe R.

1 Hans Hahn, austrıaco, 1879-1934, mais conhecido pelo “Teorema de Hahn-Banach”da Analise Funcional.

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306 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Demonstracao. Supomos que An ∈ M, Bn ∈ B(R), e os “rectangulos”An ×Bn sao disjuntos. Temos a provar que, se A ∈ M, B ∈ B(R), e

A×B =∞⋃

n=1

An ×Bn, entao µ(A)m(B) =∞∑

n=1

µ(An)m(Bn).

As seccoes destes conjuntos, para y ∈ R fixo, sao muito faceis de determinar.

(An ×Bn)y =

An, se y ∈ Bn,∅, se y 6∈ Bn,

, e (A×B)y =

A, se y ∈ B,∅, se y 6∈ B.

As seguintes identidades sao trivialmente validas para qualquer y ∈ R:

µ((A×B)y) = µ(A)χB(y), e µ((An ×Bn)y) = µ(An)χBn(y).

As seccoes (An ×Bn)y sao, tambem, conjuntos disjuntos, e

(A×B)y =

∞⋃

n=1

(An ×Bn)y, donde

µ((A×B)y) =∞∑

n=1

µ((An ×Bn)y), i.e., µ(A)χB(y) =∞∑

n=1

µ(An)χBn(y).

Esta ultima identidade pode ser integrada termo-a-termo, de acordo com oteorema de Beppo Levi, porque e uma serie de funcoes Borel-mensuraveis,nao-negativas. Temos, por isso:

µ(A)m(B) =

∞∑

n=1

µ(An)m(Bn), ou λ(A×B) =

∞∑

n=1

λ(An ×Bn).

Sendo E a classe dos conjuntos que sao unioes finitas de conjuntos em R,e que dizemos conjuntos “elementares”, notamos agora que, analogamenteao que observamos em 1.1.9, e em 1.1.10, temos:

Proposicao 5.1.19. Se E e “elementar”, i.e., se E ∈ E entao

a) E e uma uniao finita de “rectangulos” em R disjuntos, e

b) Se P = A1 × B1, A2 × B2, · · · , Am × Bm e Q = C1 × D1, C2 ×D2, · · · , Cn ×Dn sao particoes de E em “rectangulos” em R, entao

m∑

j=1

λ(Aj ×Bj) =

n∑

k=1

λ(Ck ×Dk).

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5.1. A Medida µ⊗m 307

Demonstracao. Basta-nos observar que a classe R e fechada em relacao ainterseccoes, e a diferenca de dois conjuntos em R e uma uniao disjuntafinita de conjuntos em R. A demonstracao pode, portanto, ser concluıdacomo no caso de 1.1.9.

Tal como no Capıtulo 1, alargamos a definicao de λ aos conjuntos “ele-mentares”:

Definicao 5.1.20. Se E ∈ E e P = A1×B1, A2×B2, · · · , An ×Bn e umaparticao de E em conjuntos de R, definimos

λ(E) =n∑

j=1

λ(Aj ×Bj) =n∑

j=1

µ(Aj)m(Bj).

O seguinte resultado e uma consequencia quase trivial de 5.1.18:

Proposicao 5.1.21. λ e σ-aditiva, e portanto aditiva, na algebra E.

Segue-se do teorema de extensao de Hahn (5.1.16) que

Teorema 5.1.22. Existe um espaco de medida (X × R,N , ρ) tal que

R ⊆ E ⊆ N , e ρ(E) = λ(E), para qualquer E ∈ E .

Como a σ-algebra N referida acima contem a classe R, e claro que

M⊗B(R) ⊆ N .

A medida ρ esta assim definida, em particular, em M⊗B(R), e designamospor µ⊗m a sua restricao a M⊗B(R). Esta observacao termina a demons-tracao do teorema 5.1.7. Note-se para posterior referencia que

5.1.23. Se E ∈ M⊗B(R) entao

µ⊗m(E) = inf∞∑

n=1

µ(An)m(Bn) : E ⊆∞⋃

n=1

An ×Bn, An ∈ M, Bn ∈ B(R).

Algumas propriedades elementares do integral de Lebesgue resultam dainvariancia da medida de Lebesgue, em relacao a translaccoes, e reflexoes.As propriedades de invariancia da medida µ ⊗ m sao mais limitadas, eresumem-se em geral ao que chamaremos aqui de invariancia em relacaoa “translaccoes verticais”, e a “reflexoes em X”. Para definir este tipo de“translaccoes” e “reflexoes”, seja A ⊆ X×R (ver a figura 5.1.3). Escrevemosos pontos de X × R na forma (x, y), onde x ∈ X, e y ∈ R. Se z ∈ R, entao

• B = (x, y + z) ∈ X × R : (x, y) ∈ A e uma translacao vertical

de A, e

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308 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

A

B

C

z

R

X

Figura 5.1.3: translacao e reflexao de A.

• C = (x,−y) ∈ X × R : (x, y) ∈ A e a reflexao de A em X.

Proposicao 5.1.24. Seja A ⊆ X × R, e B e C como descrito acima.

a) Invariancia sob translaccoes verticais: B e M ⊗B(R)-mensuravel see so se A e M⊗B(R)-mensuravel, e neste caso µ⊗m(A) = µ⊗m(B).

b) Invariancia sob reflexoes em X: C e M⊗B(R)-mensuravel se e so seA e M⊗B(R)-mensuravel, e neste caso µ⊗m(A) = µ⊗m(C).

Demonstracao. A invariancia da classe M⊗B(R) em relacao as operacoesindicadas e o exercıcio 11. A invariancia da medida ρ em relacao as mesmasoperacoes e uma consequencia directa da evidente invariancia da medidaexterior λ∗ em relacao a essas operacoes.

Exercıcios.

1. Complete a demonstracao de 5.1.15. sugestao: Tem apenas que provar aafirmacao (ii) referida na demonstracao.

2. Seja S = 1, 2, 3, C = ∅, 1 , 2, 3 , S, e λ : C → [0,+∞[ dada porλ(E) = #(E). Definimos λ∗ : P(X) → [0,+∞[ por:

λ∗(E) = inf

∞∑

n=1

λ(En) : E ⊆∞⋃

n=1

En, com En ∈ C, para qualquer n ∈ N

.

a) Determine a classe Mλ∗ dos conjuntos λ∗-mensuraveis.

b) Prove que Mλ∗ nao e a maior algebra onde existe uma extensao de λ.

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5.2. Funcoes Mensuraveis e Integrais 309

3. Mantendo a notacao de 5.1.15, mostre que

a) Mλ∗ e a maior σ-algebra que contem C, e onde λ∗ e uma medida.

Se o espaco (S,Mλ∗ , ρ) e σ-finito, temos ainda

b) ρ e a unica extensao de λ a σ-algebras A ⊆ Mλ∗ , e

c) (S,Mλ∗ , ρ) e a menor extensao completa de λ.

4. Sendo f : R → R, calcule o integral de f em R, em ordem a medida de Dirac.

5. Calcule o integral da funcao de Dirichlet em R, em ordem a medida de Cantor.

6. Considere o espaco (N,P(N),#), e sejam f, g : N → [0,∞] sucessoes naonegativas. Seja ainda λ o integral indefinido de g. Mostre que

N

fdλ =

N

fgd#.

7. Se E ⊆ X, e µ(E) = 0, e necessariamente verdade que qualquer funcaof : E → R e µ-somavel em E, e

∫E fdµ = 0?

8. Mostre que, se f : E → [0,∞] e M-mensuravel e λ ≥ 0, entao os conjuntosF (λ) = x ∈ E : f(x) > λ e G(λ) = x ∈ E : f(x) < −λ sao M-mensuraveis(5.1.10 c)).

9. Mostre que se s : X → R e simples, e f(X) = a1, · · · , an, entao f e M-mensuravel se e so se os conjuntos Ak = f−1(ak) sao M-mensuraveis (Lema5.1.12).

10. Mostre que se s : X → R e simples e assume os valores a1, a2, · · · , an

respectivamente nos conjuntos mensuraveis A1, A2, · · · , An, e E ∈ M, entaotemos

∫E sdµ =

∑nk=1 akµ(Ak ∩E), desde que s seja nao-negativa, ou somavel.

11. Mostre que M⊗B(R) e sempre fechada em relacao a translaccoes verticaise reflexoes em X .

12. Mostre que ΩRN (f) ∈ L(RN+1) =⇒ ΩRN (f) ∈ L(RN ) ⊗ L(R). (5.1.11).

13. Se o espaco (X,M, µ) e completo, o espaco (X × R,M⊗B(R), µ⊗m) esempre completo?

5.2 Funcoes Mensuraveis e Integrais

As propriedades elementares do integral de Lebesgue, tal como demonstra-das na seccao 3.1, mantem-se essencialmente inalteradas. Para generalizar osrespectivos enunciados para o contexto de um espaco de medida arbitrario(X,M, µ), basta em geral supor que as funcoes em causa estao definidas

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310 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

em subconjuntos de X, substituir as referencias a medida de Lebesgue mN

por referencias a µ, e ler as expressoes “mensuravel” e “somavel”, respectiva-mente, como “M-mensuravel” e “µ-somavel”. Esta observacao e igualmentevalida para definicoes, e usamos como exemplo 3.1.3:

Definicao 5.2.1 (Funcoes Vectoriais: Mensurabilidade e Integral). Se E ⊆S ⊆ X, e f : S → R

M, donde f = (f1, f2, · · · , fM ), com fk : S → R, entao

a) f e M-mensuravel em E se e so se as funcoes fk sao M-mensuraveisem E, para 1 ≤ k ≤M , no sentido de 5.1.8.

b) f e µ-somavel em E se e so as funcoes fk sao µ-somaveis em E.

c) Se f e M-mensuravel em E, o integral de lebesgue de f (emordem a µ) em E e dado por

Efdµ =

(∫

Ef1dµ,

Ef2dµ, · · · ,

EfMdµ

),

sempre que todos os integrais de Lebesgue a direita estao definidos.

Exemplo 5.2.2.

funcoes mensuraveis complexas: Seja f : X → C uma funcao complexa,donde f(x) = u(x) + iv(x), com u, v : X → R. A funcao f e M-mensuravelse e so se as funcoes u, e v sao M-mensuraveis, e o integral de f e dado por

E

fdµ =

E

udµ+ i

E

vdµ,

sempre que existem os integrais de u e de v no conjunto E.

Em particular, os enunciados e demonstracoes dos resultados 3.1.7 a3.1.13 nao requerem qualquer alteracao substancial. Ilustramos este factocom a proposicao 3.1.13, que pode ser ligeiramente simplificada com termi-nologia introduzida no Capıtulo anterior.

Teorema 5.2.3. Se f : X → R e M-mensuravel, e se f ≥ 0 µ-qtp, ou se fe µ-somavel, e

λ(E) =

Efdµ, para qualquer E ∈ M,

entao λ e uma medida em M, e λ≪ µ.

Demonstracao. Provamos este teorema apenas para f nao-negativa. Paramostrar que λ e uma medida positiva basta-nos provar que λ e σ-aditiva, ja

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5.2. Funcoes Mensuraveis e Integrais 311

que λ(∅) = 0. Consideramos conjuntos disjuntos e M-mensuraveis En taisque E =

⋃∞n=1En, e observamos que:

ΩE(f) =

∞⋃

n=1

ΩEn(f), onde os conjuntos ΩEn(f) sao disjuntos, donde

(µ⊗m)(ΩE(f)) =∞∑

n=1

(µ⊗m)(ΩEn(f)), i.e., λ(E) =∞∑

n=1

λ(En).

Como ΩE(f) ⊆ E × R, e claro que, se µ(E) = 0, entao

0 ≤ λ(E) = (µ⊗m)(ΩE(f)) ≤ (µ⊗m)(E × R) = µ(E)m(R) = 0.

Alguns dos enunciados que apresentamos nao sao validos para qualquerespaco de medida, e requerem entre as suas hipoteses propriedades mais es-pecıficas do espaco em causa. Por exemplo, a propriedade 3.1.5 e valida seo espaco (X,M, µ) for completo, e o teorema 3.1.12 e valido para espacosσ-finitos. Em certos casos, pode ser vantajoso enfraquecer as conclusoes,sem perder generalidade nas hipoteses. Por exemplo, o teorema 3.1.12 podeser modificado como se segue

Teorema 5.2.4. Seja E ⊆ X, e f : E → R. Entao(2)

ΩE(f) ∈ M⊗B(R) ⇐⇒ ΣE(f) ∈ M⊗B(R) =⇒(µ⊗m)(ΩE(f)) = (µ⊗m)(ΣE(f)).

Os teoremas sobre limites e integrais que estudamos na seccao 3.2 sao,essencialmente, corolarios do teorema da convergencia monotona para me-didas, que e valido para qualquer medida. Estes resultados sao por issoaplicaveis em qualquer espaco de medida (X,M, µ).

O lema 3.2.1 e independente do domınio de definicao das funcoes emcausa, ou seja, e aplicavel a funcoes fn : E → R, com E ⊆ X. O teorema3.2.2, que e sobretudo um corolario deste lema, pode agora ser enunciadocomo se segue:

Teorema 5.2.5. Se as funcoes fn : E → R sao M-mensuraveis em E ⊆ X,entao as funcoes definidas como se segue sao M-mensuraveis em E:

g(x) = supfn(x) : n ∈ N, h(x) = inffn(x) : n ∈ N,G(x) = lim sup

n→∞fn(x),H(x) = lim inf

n→∞fn(x)

Se f(x) = limn→∞

fn(x) para qualquer x ∈ E entao f e M-mensuravel em E.

2Os conjuntos ΣE(f) = Σ+

E(f) ∪ Σ−

E(f) definem-se por

Σ+

E(f) = (x, y) ∈ X × R : x ∈ E, e 0 < y ≤ f(x),

Σ−

E(f) = (x, y) ∈ X × R : x ∈ E, e 0 > y ≥ f(x).

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312 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Este teorema, combinado com o teorema da convergencia monotona deLebesgue para medidas, conduz directamente aos classicos resultados sobrelimites e integrais, correspondentes aos teoremas 3.2.3 a 3.2.7, que nao temqualquer alteracao nos respectivos enunciados:

Teorema 5.2.6 (Teorema de Beppo Levi). Se as funcoes fn : E → [0,+∞]sao M-mensuraveis em E ⊆ X, e formam uma sucessao crescente, entaof(x) = limn→∞ fn(x) e M-mensuravel em E, e

Elim

n→∞fndµ = lim

n→∞

Efndµ.

Teorema 5.2.7 (Teorema de Beppo Levi (II)). Se as funcoes fn : E →[0,+∞] sao M-mensuraveis em E ⊆ X, e formam uma sucessao decres-cente, entao f(x) = limn→∞ fn(x) e M-mensuravel em E, e se algumafuncao fn e µ-somavel, entao

Elim

n→∞fndµ = lim

n→∞

Efndµ.

Lema 5.2.8 (Lema de Fatou). Se as funcoes fn : E → [0,+∞] sao M-mensuraveis em E ⊆ X, entao

Elim infn→∞

fndµ ≤ lim infn→∞

Efndµ.

Teorema 5.2.9 (Lema de Fatou (II)). Se as funcoes fn : E → [0,+∞] saoM-mensuraveis em E ⊆ X, e existe uma funcao µ-somavel F : E → [0,+∞]tal que fn(x) ≤ F (x), µ-qtp em E, entao

lim supn→∞

Efndµ ≤

Elim sup

n→∞fndµ.

Estes resultados provam-se com adaptacoes obvias dos argumentos queapresentamos em 3.2. Ilustramos esta afirmacao com a demonstracao doteorema de Beppo Levi.

Demonstracao. Sabemos que f(x) = supfn(x) : n ∈ N e M-mensuravel,de acordo com 5.2.5. Sabemos igualmente que

Ω+E(f) =

∞⋃

n=1

Ω+E(fn).

Como os conjuntos Ω+E(fn) formam uma sucessao crescente, segue-se, do

teorema da convergencia monotona para medidas 2.1.13, que

(µ⊗m)(Ω+E(fn)) → (µ⊗m)(Ω+

E(f)), i.e.,

Efndµ →

Efdµ.

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5.2. Funcoes Mensuraveis e Integrais 313

A proposicao 3.4.6, sobre funcoes simples mensuraveis, mantem-se inal-terada, exactamente com a mesma demonstracao:

Proposicao 5.2.10. Seja E ⊆ S ⊆ X, c ∈ R, e s, t : S → R funcoessimples M-mensuraveis em E. Temos entao:

a) cs, s+, s−, |s|, s+ t, e st sao simples, e M-mensuraveis em E.

Se s e t sao nao-negativas em E, ou se s e t sao µ-somaveis em E,temos ainda

b) Aditividade:∫E(s + t)dµ =

∫E sdµ+

∫E tdµ.

c) Homogeneidade:∫E(cs)dµ = c(

∫E sdµ).

Os resultados sobre funcoes mensuraveis que estudamos em 3.4 resultam,em larga medida, das funcoes mensuraveis serem limites de funcoes simplesmensuraveis, como provamos em 3.4.7. Este ultimo resultado e tambemvalido em qualquer espaco de medida.

Teorema 5.2.11. Se f : E → R, onde E ⊆ X, entao f e M-mensuravelse e so existe uma sucessao de funcoes simples M-mensuraveis sn : E → R

tais que sn(x) → f(x), e |sn(x)| ր |f(x)|. Neste caso, e se f ≥ 0, ou se fe µ-somavel, temos ainda que

Esndµ →

Efdµ.

O teorema 3.4.9, sobre operacoes algebricas que envolvem funcoes comvalores em R, nao requer qualquer adaptacao:

Teorema 5.2.12. Se f, g : E → R sao M-mensuraveis, entao

a) A funcao fg e M-mensuravel em E.

b) As funcoes f+g e f−g sao M-mensuraveis, nos conjuntos onde estaodefinidas.

O teorema 5.2.13 e uma versao abstracta de 3.4.10, e e um corolariodirecto de 5.2.11, tal como 3.4.10 e um corolario de 3.4.7.

Teorema 5.2.13. Sejam f, g : E → R M-mensuraveis em E, e c ∈ R. Sef, g ≥ 0 em E, ou se f e g sao finitas e µ-somaveis em E, entao

a) Aditividade:∫E(f + g)dµ =

∫E fdµ+

∫E gdµ.

b) Homogeneidade:∫E(cf)dµ = c

(∫E fdµ

).

O teorema 3.4.12, sobre limites de sucessoes de funcoes mensuraveis, etambem completamente geral.

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314 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Teorema 5.2.14. Se as funcoes fn : E → R sao M-mensuraveis em E ⊆X, F ⊆ E e o conjunto onde existe limn→∞ fn(x), e f : F → R e dada porf(x) = limn→∞ fn(x), entao f e M-mensuravel em F .

Os diversos criterios de mensurabilidade que vimos em 3.4.15, e aplicaveisa funcoes definidas em conjuntos mensuraveis, nao sofrem qualquer alteracao.

Teorema 5.2.15. Seja E ⊆ X um conjunto M-mensuravel. Se f : E → R,entao as seguintes condicoes sao equivalentes:

a) x ∈ E : f(x) > λ e M-mensuravel, para qualquer λ ∈ R.

b) f−1(I) e M-mensuravel, para qualquer intervalo I ⊆ R.

c) f e M-mensuravel em E.

O resultado em 3.4.17, relativo a composicao com funcoes Borel-mensu-raveis, e aplicavel independentemente da natureza da σ-algebra M:

Teorema 5.2.16. Seja E ⊆ RN um conjunto M-mensuravel, e f1, f2,· · · , fM : E → R funcoes M-mensuraveis em E. Se f = (f1, f2, · · · , fM ),e g : RM → R e Borel-mensuravel, entao a composta h = g f e M-mensuravel em E.

A relacao “≃” de equivalencia entre funcoes, i.e., de igualdade qtp, efacilmente generalizavel a espacos de medida arbitrarios. Se f, g : X → R,dizemos que f ≃ g se e so se µ(x ∈ X : f(x) 6= g(x) = 0. Designaremospor Fµ(E) o espaco das classes de equivalencia de funcoes f : E → R M-mensuraveis em E, e por L1

µ(E) o correspondente espaco das classes defuncoes µ-somaveis. Este espaco e um espaco vectorial normado, com anorma ‖f‖1 =

∫E |f | dµ.

Exemplo 5.2.17.

o espaco ℓ1: Se µ e a medida de contagem, entao a relacao ≃ e a igualdadeusual, i.e., f ≃ g ⇔ f = g. O espaco Fµ(N) e o conjunto de todas as sucessoesreais, e o espaco L1

µ(N) e formado pelas sucessoes reais tais que∑∞

n=1 |f(n)| <∞. Este espaco e usualmente designado por ℓ1.

O Teorema da Convergencia Dominada pode enunciar-se como se segue:

Teorema 5.2.18 (Teorema da Convergencia Dominada de Lebesgue). Sendofn ∈ L1

µ(E), suponha-se que existe uma funcao somavel F : E → [0,+∞] talque |fn(x)| ≤ F (x), µ-qtp em E, e limn→∞ fn(x) existe µ-qtp em E. Sejaainda f(x) = limn→∞ fn(x) onde este limite existe. Temos entao

a) f ∈ L1µ(E),

b) fn → f em L1µ(E), e em particular,

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5.2. Funcoes Mensuraveis e Integrais 315

c)∫E fndµ→

∫E fdµ, quando n→ ∞.

Demonstracao. Supomos sem perda de generalidade que

• As funcoes fn e F sao finitas em E,

• f(x) = limn→∞ fn(x), para qualquer x ∈ E, e

• |fn(x)| ≤ F (x), tambem para qualquer x ∈ E.

A funcao f e M-mensuravel em E. Como |f(x)| ≤ F (x), concluımos que f eµ-somavel e finita em E. Consideramos as funcoes auxiliares gn = |fn−f | ≥0, e aplicamos o Lema de Fatou (II), para concluir que

lim supn→∞

E|fn − f |dµ ≤ 0, ou lim

n→∞

E|fn − f |dµ = 0.

Segue-se da desigualdade triangular que

0 ≤∣∣∣∣∫

Efndµ−

Efdµ

∣∣∣∣ ≤∫

E|fn − f | dµ→ 0.

Os teoremas sobre a integracao de series de funcoes mensuraveis naosofrem modificacoes, e L1

µ(E) e sempre um espaco de Banach.

Teorema 5.2.19. Se as funcoes fn : E → [0,+∞] sao M-mensuraveis,entao ∫

E

(∞∑

n=1

fn

)dµ =

∞∑

n=1

(∫

Efndµ

).

Teorema 5.2.20. Suponha-se que fn ∈ L1µ(E) e

∞∑

n=1

‖fn‖1 =

∞∑

n=1

(

E|fn|dµ) < +∞.

Temos entao que:

a) A serie∑∞

n=1 fn(x) converge absolutamente µ-qtp em E,

b) Existem funcoes M-mensuraveis f : E → R tais que f(x) =∑∞

n=1 fn(x),µ-qtp em E, e

c) Se f : E → R e M-mensuravel em E e f(x) =∑∞

n=1 fn(x), µ-qtp emE, entao f e µ-somavel em E, e

limm→∞

E|f −

m∑

n=1

fn(x)|dµ = 0, donde

E(

∞∑

n=1

fn)dµ =

∞∑

n=1

(

Efndµ).

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316 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Corolario 5.2.21. Se fn ∈ L1µ(E) e

∑∞n=1 ‖fn‖1 < +∞, entao existe f ∈

L1µ(E) tal que ‖∑m

n=1 fn − f‖1 → 0. Em particular, L1µ(E) e um espaco de

Banach.

Vimos na seccao 3.6 diversos resultados sobre a aproximacao de funcoesmensuraveis por funcoes contınuas, dos quais o principal e o teorema deVitali-Luzin. Estes resultados podem ser facilmente adaptados a qualquermedida de Lebesgue-Stieltjes regular e σ-finita, e sao validos em particularpara qualquer medida de Lebesgue-Stieltjes localmente finita, como e o casoda propria medida de Lebesgue.

Supomos entao que µ e uma medida positiva σ-finita, definida e regularem M ⊇ B(RN). O argumento utilizado para demonstrar o corolario 3.6.2e aplicavel a µ, de acordo com o corolario 4.4.12 e), e temos portanto

Lema 5.2.22. Sendo E ⊆ RN um conjunto mensuravel com µ(E) < ∞, eε > 0, existe f ∈ Cc(R

N ) tal que

0 ≤ f ≤ 1, e µ(x ∈ RN : f(x) 6= χE(x)) < ε.

E simples generalizar o teorema 3.6.3 para qualquer espaco de medida,e obtemos assim uma versao mais geral do:

Teorema 5.2.23 (de Vitali-Luzin). Seja f : RN → [0, 1] uma funcao M-mensuravel que e nula no complementar de um conjunto de medida finita.Se ε > 0, entao existe g ∈ Cc(R

N ) tal que

0 ≤ g ≤ 1, e µ(

x ∈ RN : f(x) 6= g(x))

< ε.

Os corolarios do teorema de Vitali-Luzin que apresentamos na seccao3.6 sao aplicaveis com adaptacoes obvias ao presente contexto. Deve notar-se apenas que 3.6.7 requer uma modificacao mais significativa, porque so evalido para medidas completas. Podemos enuncia-lo como se segue, supondoque (RN ,Mµ, µ) e a menor extensao completa do espaco de medida original:

Corolario 5.2.24. Seja f : RN → R finita µ-qtp. Temos entao,

a) Se f e M-mensuravel existem funcoes contınuas fn : RN → R taisque fn(x) → f(x) µ-qtp em RN .

b) f e Mµ-mensuravel se e so se existem funcoes contınuas fn : RN → R

tais que fn(x) → f(x) µ-qtp em RN .

Aproveitamos para generalizar a nocao de integral de Lebesgue em ordema medida positiva µ para o caso em que µ e real (ou complexa) no espaco(X,M), e f e uma funcao M-mensuravel.

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5.2. Funcoes Mensuraveis e Integrais 317

Definicao 5.2.25 (Integral em ordem a medidas reais). Se f : X → R eM-mensuravel em E ⊆ X, e µ e uma medida real em M, o integral de fem E, em ordem a µ e dado por:

Efdµ =

Efdµ+ −

Efdµ−,

se os integrais em ordem as medidas positivas µ+ e µ− estao definidos, e aexpressao acima nao conduz a indeterminacoes.

Dizemos que f e µ-somavel em E se e so se∣∣∫

E fdµ∣∣ <∞.

Exemplos 5.2.26.

1. Se µ e uma medida real entao f e µ-somavel em E se e so se f e |µ|-somavelem E, no sentido da definicao 5.1.8.

2. Se µ e uma medida complexa entao µ = α+ iβ, onde α e β sao medidas reais,e podemos definir ∫

X

fdµ =

X

fdα+ i

X

fdβ,

sempre que os integrais a direita estao definidos.

3. Se µ e uma medida real entao L1µ(E) = L1

|µ|(E), e o integral definido φ :

L1µ(E) → R, dado por φ(f) =

∫Efdµ e uma transformacao linear. Se µ e

positiva a transformacao e tambem monotona, i.e., f ≤ g ⇒ φ(f) ≤ φ(g).

E interessante observar que, na expressao∫X fdµ, podemos considerar,

em alternativa, a funcao f como fixa, e a medida µ como variavel. Porexemplo, se f : E → R e mensuravel e limitada em E, entao e µ-somavel,qualquer que seja a medida real µ definida em M.

Exemplos 5.2.27.

1. Seja M(B(RN)) o espaco de todas as medidas reais definidas em B(RN).Se f : RN → R e B-mensuravel e limitada em E ⊆ RN , podemos definirΨ : M(B(RN )) → R por

Ψ(µ) =

E

fdµ.

2. Em particular, se f ∈ C0(RN ) e µ ∈M(B(RN)), podemos definir

〈f, µ〉 =

RN

fdµ.

φ(f) = 〈f, µ〉 e um funcional linear em C0(RN ), e o teorema 5.2.28 mostra que

φ e contınuo na norma de L∞. Mostra igualmente que Ψ(µ) = 〈f, µ〉 e umfuncional linear contınuo no espaco de Banach M(B(RN )).(3)

3Um dos famosos Teoremas de Representacao de Riesz afirma que todos os funcionaislineares contınuos no espaco de Banach C0(R

N) (com a norma de L∞) sao da formaφ(f) = 〈f, µ〉, com µ ∈M(B(RN )), conforme veremos mais adiante.

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318 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

O proximo teorema indica algumas identidades sugeridas por estas ob-servacoes. A respectiva demonstracao e o exercıcio 9.

Teorema 5.2.28. Seja f : X → R uma funcao M-mensuravel, e µ e λmedidas definidas em (X,M). Temos entao:

a) Aditividade: Se f , µ e λ sao nao-negativas, ou se f e µ-somavel eλ-somavel, ∫

Xfd (µ+ λ) =

Xfdµ+

Xfdλ.

b) Homogeneidade: Se f , µ e c ∈ R sao nao-negativos, ou se f e µ-somavel e c ∈ R, ∫

Xfd (cµ) = c

(∫

Xfdµ

).

c) Desigualdade Triangular: Se f e µ-somavel,

∣∣∣∣

Xfdµ

∣∣∣∣ ≤∫

X|f | d(|µ|).

d) Continuidade: Supondo que ‖f‖∞ = sup|f(x)| : x ∈ X < ∞, esendo ‖µ‖ = |µ|(X) <∞, entao f e µ-somavel, e

∣∣∣∣

Xfdµ

∣∣∣∣ ≤ ‖f‖∞ ‖µ‖ .

Exercıcios.

1. Seja (X,Mµ, µ) a menor extensao completa de (X,M, µ). Prove que f :E → R e Mµ-mensuravel em E se e so se existe uma funcao g : E → R,M-mensuravel em E, tal que g ≃ f em E.

2. Prove que o grafico da funcao M-mensuravel f tem medida µ⊗m nula, desdeque o espaco (X,M, µ) seja σ-finito, ou a funcao f seja µ-somavel. sugestao:suponha primeiro que µ(X) < +∞.

3. Considere o espaco (R,P(R),#), e a funcao f : R → R dada por f(x) = x.

a) Determine a medida (# ⊗m)(GE(f)).

b) Determine as funcoes A(x) = m(GE(f)x), e B(y) = #(GE(f)y). Deter-mine igualmente os integrais

∫RAd#, e

∫RBdm.

4. Dado um espaco (X,M, µ), considere uma funcao M-mensuravel f : X →[0,+∞], e seja λ o respectivo integral indefinido. Mostre que se g : X →[0,+∞] e M-mensuravel entao

∫Egdλ =

∫Egfdµ. Se g : X → R e µ-somavel

temos necessariamente que g : X → R e λ-somavel? sugestao: Suponhaprimeiro que g e simples.

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5.3. O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue 319

5. Sejam µ e ν medidas em M, e µ a menor extensao completa de µ.

a) Qual e a relacao entre os espacos L1µ e L1

µ?

b) Sendo δn a usual medida de Dirac no ponto n ∈ N, o que sao os espacosL1

δ0(R), L1

∆n(R), e L1

∆(R), quando

∆n =

n∑

k=1

δk e ∆ =

∞∑

n=1

δn?

6. Suponha que f : X → R e µ-somavel. Prove que para qualquer ε > 0 existeδ > 0 tal que, para qualquer conjunto M-mensuravel E,

µ(E) < δ =⇒∣∣∣∣∫

E

fdµ

∣∣∣∣ ≤∫

E

|f |dµ < ε.

7. Suponha que o espaco (X,M, µ) e completo, f : X → R, e f(x) = 0, µ-qtpem X . A funcao f e sempre M-mensuravel?

8. Sejam f, g : R → R funcoes crescentes e contınuas a direita, com derivadasgeneralizadas µ e λ.

a) Mostre que se f e g sao contınuas entao e valida a seguinte formula deintegracao por partes:

∫ b

a

fdλ+

∫ b

a

gdµ = f(b)g(b) − f(a)g(a)

b) A formula anterior e valida, mesmo que f e/ou g nao sejam contınuas?

c) Supondo que µ e λ sao medidas reais, a formula anterior e valida, quandof e g sao contınuas?

d) Suponha que h : R → R e B-mensuravel, e prove a seguinte formula deintegracao por substituicao:

E

h fdµ =

f(E)

hdm

9. Demonstre o teorema 5.2.28. Pode ser conveniente provar primeiro:

a) Se f e simples, mensuravel e nao negativa, e µ e λ sao medidas positivas,entao

∫X fd (µ+ λ) =

∫X fdµ+

∫X fdλ.

b) Se f e mensuravel e nao negativa, e µ e λ sao medidas positivas, entao∫X fd (µ+ λ) =

∫X fdµ+

∫X fdλ.

5.3 O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue

Dado um espaco de medida (X,M, µ), e uma funcao M-mensuravel f nao-negativa, ou µ-somavel, o respectivo integral indefinido, dado por

λ(E) =

Efdµ, para qualquer E ∈ M,

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320 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

e sempre uma medida λ≪ µ, como vimos em 5.2.3. Bastante mais difıcil deesclarecer e a questao de saber se qualquer medida λ≪ µ e, efectivamente,um integral indefinido em ordem a µ. A resposta (afirmativa) a esta questaoe o Teorema de Radon-Nikodym (4), que sera discutido e demonstrado nestaseccao, e que se pode resumir informalmente como se segue:

As medidas absolutamente contınuas sao os integrais indefinidos.

Veremos, simultaneamente, que qualquer medida λ definida em (X,M) podeser decomposta de forma unica como uma soma λ = λa+λs de duas medidas,onde λa e absolutamente contınua em relacao a µ, e λs e singular em relacaoa µ. Esta afirmacao e o Teorema da Decomposicao de Lebesgue, e o par(λa, λs) e a Decomposicao de Lebesgue de λ em relacao a µ.

Exemplos 5.3.1.

1. A medida de Dirac δ, no espaco de Lebesgue (R,L(R),m), nao e um integralindefinido, porque δ e singular em relacao a m.

2. A medida de Cantor ξ nao e um integral indefinido no espaco (R,L(R),m),porque ξ e igualmente singular. Se λ = m + ξ + δ, entao a decomposicao deLebesgue de λ e (m, ξ + δ).

A decomposicao de Lebesgue foi mencionada no exercıcio 3 da seccao4.2. Define-se formalmente como se segue:

Definicao 5.3.2 (Decomposicao de Lebesgue ). Se λ e µ sao medidas em(X,M), uma decomposicao de lebesgue de λ em relacao a µ e um parde medidas (λa, λs) em (X,M), tais que:

a) λ = λa + λs, e

b) λa ≪ µ, e λs⊥µ.

O seguinte resultado deve ser conhecido, do exercıcio mencionado:

Proposicao 5.3.3. Sejam λ e µ medidas em (X,M).

a) Se λ≪ µ e λ⊥µ, entao λ = 0,

b) Se (λa, λs) e (λ∗a, λ∗s) sao decomposicoes de Lebesgue de λ em relacao

a µ, entao λa = λ∗a, e λs = λ∗s.

No que se segue nesta seccao, todas as medidas mencionadas estaodefinidas num espaco mensuravel fixo (X,M). O nosso principal objectivoe a demonstracao de:

4 De Radon e Otto M. Nikodym, 1889-1974, matematico polaco, e colaborador deRadon.

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5.3. O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue 321

Teorema 5.3.4 (de Radon-Nikodym-Lebesgue (I)). Se λ e µ sao medidaspositivas σ-finitas, existe uma funcao M-mensuravel f : X → [0,+∞] euma medida positiva ν⊥µ tal que

λ(E) =

Efdµ+ ν(E) para qualquer E ∈ M.

Como o integral indefinido da funcao f e uma medida absolutamentecontınua em relacao a µ, este teorema estabelece tambem a existencia dadecomposicao de Lebesgue de λ em relacao a µ. A unicidade desta decom-posicao e a proposicao 5.3.3, e portanto a medida ν e a classe de equivalenciade f em Fµ(X) sao unicos.

Antes de demonstrarmos o teorema 5.3.4 exploramos algumas das suasconsequencias mais imediatas. Se λ≪ µ, obtemos:

Teorema 5.3.5 (de Radon-Nikodym (I)). Se λ e µ sao medidas positivasσ-finitas, e λ ≪ µ, existe uma funcao M-mensuravel f : X → [0,+∞] talque

λ(E) =

Efdµ, para qualquer E ∈ M.

Demonstracao. De acordo com 5.3.4, existe uma funcao M-mensuravel f :X → [0,+∞] e uma medida positiva ν⊥µ tal que

λ(E) =

Efdµ+ ν(E), para qualquer E ∈ M.

Como λ ≪ µ, o par (λ, 0) e a (unica) decomposicao de Lebesgue de λ. Epor isso evidente que ν = 0.

Os resultados anteriores sao facilmente adaptados a medidas reais.

Teorema 5.3.6 (de Radon-Nikodym-Lebesgue (II)). Se µ e uma medidapositiva σ-finita, e λ e uma medida real, existe f ∈ L1

µ(X) e uma medidareal ν⊥µ tal que

λ(E) =

Efdµ+ ν(E) para qualquer E ∈ M.

Demonstracao. Sendo λ = λ+ − λ− a decomposicao de Jordan de λ, e claroque λ+ e λ− sao medidas positivas finitas em (X,M). O teorema 5.3.4e aplicavel as medidas λ+ e λ−, donde existem funcoes M-mensuraveisf+, f− : X → [0,+∞], e medidas positivas ν+, ν−⊥µ tais que

λ±(E) =

Ef±dµ+ ν±(E), para qualquer E ∈ M.

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322 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

E claro que as funcoes f+, f− e f = f+ − f− sao µ-somaveis, as medidas ν+

e ν− sao finitas, ν = ν+ − ν− e uma medida real, ν⊥µ, e

λ(E) =

Efdµ+ ν(E), para qualquer E ∈ M.

Deixamos como exercıcio a demonstracao de

Teorema 5.3.7 (de Radon-Nikodym (II)). Se µ e uma medida positivaσ-finita, λ e uma medida real, e λ≪ µ, existe f ∈ L1

µ(X) tal que

λ(E) =

Efdµ, para qualquer E ∈ M.

A funcao f que ocorre na decomposicao de Lebesgue diz-se:

Definicao 5.3.8 (Derivada de Radon-Nikodym). Se λ, µ, e ν sao medidas,e

λ(E) =

Efdµ+ ν(E),

e a decomposicao de Lebesgue de λ em ordem a µ, dizemos que f e aderivada de Radon-Nikodym de λ em ordem a µ, e escrevemos f = dλ

dµ .

Exemplos 5.3.9.

1. Considere-se, no espaco (R,B(R),m), a medida λ = ρ + ξ, onde ξ e a me-dida de Cantor, e ρ e o integral indefinido da funcao exponencial f(x) = ex.Como ρ e absolutamente contınua, e ξ e singular, entao λ = ρ+ ξ e a decom-posicao de Lebesgue de λ em ordem a µ, e a derivada de Radon-Nikodym dλ

dme, evidentemente, a funcao exponencial.

2. Como ξ e singular, a derivada de Radon-Nikodym dξdm e nula.

A nocao de derivada de Radon-Nikodym e aplicavel em circunstanciasmuito gerais(5), e onde a derivada no sentido usual do termo pode nao terqualquer significado. Podemos no entanto comparar a derivada usual deuma funcao f : R → R com a derivada de Radon-Nikodym da sua deriva-da generalizada µ, supondo que µ existe. Deve ser claro que do Capıtuloanterior que

5Cauchy parece ter tido algumas nocoes intuitivas sobre este conceito, e a ideia decontinuidade absoluta, ja em 1841. Discutiu de forma algo vaga a ideia de “magnitudescoexistentes”, mas o exemplo que utilizou e muito sugestivo: a massa e o volume de umcorpo, onde, na terminologia moderna, a massa e a medida λ, o volume e a medida µ, e ea medida de Lebesgue, e a derivada de Radon-Nikodym e a funcao “densidade”.

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5.3. O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue 323

• O Teorema da Decomposicao de Lebesgue (4.7.13 e 4.7.14) e o teoremade Radon-Nikodym-Lebesgue para medidas na recta real, e mostra queneste caso dµ

dm = f ′.

• Se µ e uma medida absolutamente contınua na recta real, entao

– O 1o Teorema Fundamental do Calculo afirma que dµdm = f ′, e

– O 2o Teorema Fundamental do Calculo e essencialmente o teo-rema de Radon-Nikodym.

Passamos a demonstracao do teorema 5.3.4, que organizamos numa sequen-cia de resultados parciais auxiliares. O argumento que utilizamos baseia-senuma observacao muito natural: supondo que λ e µ sao medidas positivasem (X,M), e temos

λ(E) =

Efdµ+ ν(E), para qualquer E ∈ M,

onde ν e tambem uma medida positiva, e evidente que

(5.3.1)

Efdµ ≤ λ(E), para qualquer E ∈ M.

E por isso razoavel procurar a derivada de Radon-Nikodym de λ em ordema µ na classe das funcoes que satisfazem a desigualdade 5.3.1, e e de esperarque esta derivada seja a maior solucao para esta desigualdade.

Definicao 5.3.10. Seja Dλ a classe das funcoes M-mensuraveis g : X →[0,+∞] tais que

Egdµ ≤ λ(E) para qualquer E ∈ M.

E facil obter sucessoes crescentes em Dλ.

Lema 5.3.11. Se gk ∈ Dλ e fn = maxgk : k ≤ n, entao fn ∈ Dλ.

Demonstracao. Basta-nos considerar n = 2, por razoes obvias. Se g =f2 = maxg1, g2, entao g e uma funcao M-mensuravel e nao-negativa, e osconjuntos F1 = x ∈ X : g(x) = g1(x), e F2 = F c

1 sao mensuraveis. E claroque f(x) = g2(x) para x ∈ F2. Portanto, e sendo E ∈ M, temos:

Egdµ =

E∩F1

gdµ +

E∩F2

gdµ =

E∩F1

g1dµ +

E∩F2

g2dµ ≤

≤λ(E ∩ F1) + λ(E ∩ F2) = λ(E),

dado que g1, g2 ∈ Dλ, e λ e uma medida. Concluımos que g ∈ Dλ.

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324 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Como Dλ 6= ∅, podemos introduzir a seguinte definicao auxiliar:

Definicao 5.3.12. A funcao π : M → [0,∞] e dada por

π(E) = sup∫

Egdµ : g ∈ Dλ.

E evidente que π(E) ≤ λ(E) para qualquer E ∈ M. Provamos a seguirque π e o integral indefinido de uma funcao f ∈ Dλ, sob a hipotese adicionalde λ e µ serem medidas finitas.

Lema 5.3.13. Se λ e µ sao medidas positivas finitas, existe f ∈ Dλ tal queπ(E) =

∫E fdµ para E ∈ M.

Demonstracao. Como π(X) = sup∫X gdµ : g ∈ Dλ, existem funcoes gn ∈

Dλ tais que∫X gndµ → π(X). Definimos fn = maxg1, g2, g3, · · · , gn, e

notamos que as funcoes fn ∈ Dλ, de acordo com 5.3.11.As funcoes fn sao mensuraveis, nao-negativas, e fn(x) ր f(x). Segue-se,

do teorema de Beppo Levi, que f e uma funcao mensuravel nao-negativa, e

Efndµր

Efdµ, para qualquer E ∈ M.

Como∫E fndµ ≤ λ(E), para qualquer E ∈ M, temos

∫E fdµ ≤ λ(E), i.e.,

f ∈ Dλ.

Para mostrar que π e o integral indefinido de f , note-se primeiro que, paraE = X, temos: ∫

Xfndµր π(X) =

Xfdµ.

Seja E ∈ M, e g ∈ Dλ. Sendo h = maxf, g, segue-se de 5.3.11 que h ∈ Dλ.Por definicao de π, temos

Efdµ+

Ec

fdµ =

Xfdµ = π(X) ≥

Xhdµ ≥

Egdµ +

Ec

fdµ.

Concluımos que

π(E) ≥∫

Efdµ ≥

Egdµ, para qualquer E ∈ M, e qualquer g ∈ Dλ.

E assim evidente que π(E) =∫E fdµ, i.e., π e o integral indefinido de f .

Acabamos de provar que π e um integral indefinido, e e, por isso, umamedida absolutamente contınua em relacao a µ. Para concluir a demons-tracao de 5.3.4, para o caso em que λ e µ sao medidas positivas finitas,resta-nos mostrar que a diferenca ν = λ− π e singular em relacao a µ.

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5.3. O Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue 325

Lema 5.3.14. Se λ e µ sao medidas positivas finitas, e π e definido por5.3.12, entao ν = λ− π e uma medida positiva finita, e ν⊥µ.

Demonstracao. λ e π sao medidas positivas finitas e λ ≥ π, donde ν = λ−πe uma medida positiva finita. Consideramos as medidas reais νn = ν− 1

nµ, edesignamos por (Pn, Nn) uma decomposicao de Hahn para νn. Registamosque

(1) Se P =

∞⋃

n=1

Pn e N =

∞⋂

n=1

Nn, entao X = P ∪N , e P ∩N = ∅.

Como N ⊆ Nn para qualquer n, temos

νn(N) = ν(N) − 1

nµ(N) ≤ 0, ou ν(N) ≤ 1

nµ(N).

Fazendo n→ +∞, obtemos ν(N) = 0, e portanto

(2) ν esta concentrada em P.

Seja agora f a funcao referida no lema 5.3.13, cujo integral indefinido e π.Consideramos a funcao hn = f + 1

nχPn , e notamos que hn e uma funcaomensuravel nao-negativa. Designamos o integral indefinido de hn por φn.Provamos em seguida que hn pertence a Dλ, ou seja, que φn(E) ≤ λ(E)para qualquer E ∈ M. Como π = λ− ν, um calculo simples mostra que

φn(E) = π(E) +1

nµ(E ∩ Pn) = λ(E) − ν(E) +

1

nµ(E ∩ Pn) =

= λ(E) − ν(E ∩Nn) − ν(E ∩ Pn) +1

nµ(E ∩ Pn) =

= λ(E) − ν(E ∩Nn) − νn(E ∩ Pn).

Como ν ≥ 0 e Pn e νn-positivo, temos ν(E ∩ Nn) ≥ 0 e νn(E ∩ Pn) ≥ 0.Portanto,

φn(E) = λ(E) − ν(E ∩Nn) − νn(E ∩ Pn) ≤ λ(E), ou seja, hn ∈ Dλ.

Concluımos que µ(Pn) = 0, porque

Xhndµ =

Xfdµ+

1

nµ(Pn) ≤ π(X) =

Xfdµ.

Como P = ∪∞n=1Pn, e claro que µ(P ) = 0, i.e.,

(3) µ esta concentrada em N.

Segue-se de (1), (2) e (3) que ν⊥µ.

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326 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

A demonstracao do Teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue para medidasσ-finitas e uma generalizacao relativamente simples destes argumentos.

Demonstracao. Se as medidas µ e λ sao σ-finitas, existem conjuntos M-mensuraveis Xn, que podemos supor disjuntos, tais que

X =

∞⋃

n=1

Xn, onde µ(Xn) < +∞, e λ(Xn) < +∞.

Definimos medidas λn, e µn, por

λn(E) = λ(E ∩Xn), e µn(E) = µ(E ∩Xn).

As medidas λn e µn sao finitas, e estao concentradas em Xn. Existem, porisso, funcoes M-mensuraveis nao-negativas fn : X → [0,+∞], e medidaspositivas finitas νn, em ambos os casos concentradas em Xn, tais que

λn(E) =

Efndµn + νn(E), para qualquer E ∈ M, e νn⊥µn.

E simples verificar que∫E fndµn =

∫E fndµ. Temos, portanto,

(1) λn(E) =

Efndµ+ νn(E), para qualquer E ∈ M.

Definimos

f(x) =

∞∑

n=1

fn(x), e ν(E) =

∞∑

n=1

νn(E).

Segue-se de (1) que:

(2) λ(E) =∞∑

n=1

λ(E ∩Xn) =∞∑

n=1

λn(E) =

E

∞∑

n=1

fndµ+

∞∑

n=1

νn(E) =

Efdµ+ ν(E).

Deixamos para o exercıcio 3 verificar que ν⊥µ, o que termina a demonstracaode 5.3.4.

Exemplo 5.3.15.

O teorema de Radon-Nikodym-Lebesgue nao e, em geral, valido, se as medidasem causa nao sao σ-finitas. Deixamos para o exercıcio 1 o estudo dos casosλ = m, e µ = #, bem como λ = #, e µ = m.

Exercıcios.

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5.4. Os Espacos Lp 327

1. Considere a medida de contagem # e a medida de Lebesgue m, ambasdefinidas em L(R). Existem decomposicoes de Lebesgue de # (respectiva-mente, m) em relacao a m (respectivamente, #)?

2. Demonstre 5.3.7.

3. Para concluir a demonstracao do teorema de Radon-Nikodym esbocada acima,mostre que:

a)∫

E fndµn =∫

E fndµ.

b) ν⊥µ.

4. Suponha que λ e µ sao medidas positivas σ-finitas, e λ≪ µ.

a) Mostre que se f e M-mensuravel, e nao-negativa, entao∫

X fdλ =∫

X f dλdµdµ.

b) Prove que se f ∈ L1λ(X) entao f dλ

dµ ∈ L1µ(X) e

∫Xfdλ =

∫Xf dλ

dµdµ.

c) Mostre que µ≪ λ se e so se dλdµ 6= 0, µ-qtp, e que neste caso dλ

dµdµdλ = 1.

5. Suponha que λ, ν e µ sao medidas positivas σ-finitas, e λ≪ ν.

a) Prove que dλdµ = dλ

dνdνdµ .

b) Suponha que λ nao e absolutamente contınua em relacao a ν. A conclusaoanterior mantem-se valida?

6. Suponha que µ, ν, λ, e λn sao medidas positivas σ-finitas.

a) Prove que d(λ+ν)dµ = dλ

dµ + dνdµ .

b) Prove, mais geralmente, que (6)

d

( ∞∑

n=1

λn

)=

∞∑

n=1

dλn

dµ.

5.4 Os Espacos Lp

Na discussao que se segue, identificamos ( i.e., tratamos como um unicoobjecto) funcoes mensuraveis que diferem entre si num conjunto de medidanula. Sendo (X,M, µ) um espaco de medida fixo, introduzimos

Definicao 5.4.1 (Funcoes Equivalentes). Se f, g : X → R sao M-mensura-veis, entao f e g dizem-se equivalentes, e escrevemos f ≃ g, quando

µ(x ∈ X : f(x) 6= g(x)) = 0, i.e., se e so se f(x) = g(x) µ-qtp.

6Esta e uma forma abstracta do Teorema de Diferenciacao de Fubini para series defuncoes crescentes, a que tambem chamamos o “pequeno teorema de Fubini”.

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328 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Podemos demonstrar facilmente que a relacao “≃” e de equivalencia,no conjunto de todas as funcoes mensuraveis f : X → R. Por esta razao, con-sideramos o conjunto quociente, formado pelas classes de equivalenciade todas as funcoes mensuraveis f : X → R, que designaremos aqui Fµ(X).E muito simples verificar que (7)

Teorema 5.4.2. Fµ(X) e um espaco vectorial.

Diz-se frequentemente que Fµ(X) e o espaco das (classes de) funcoesmensuraveis, definidas e finitas qtp em X, porque qualquer funcao M-men-suravel definida µ-qtp, e finita tambem µ-qtp, determina uma unica classeem Fµ(X), mesmo quando o espaco (X,M, µ) nao e completo.

Teorema 5.4.3. Seja f : E → R M-mensuravel, e finita µ-qtp em E. Seµ(Ec) = 0, entao:

a) Existe g : X → R, M-mensuravel em E, tal que g(x) = f(x), µ-qtpem E, e

b) Se h : X → R e M-mensuravel em X, e h(x) = f(x) µ-qtp em E,entao h ≃ g.

Demonstracao. a) A funcao f : X → R, que coincide com f no conjunto E,e e nula em Ec, e mensuravel em X. Como H = x ∈ E : |f(x)| = ∞ emensuravel, a funcao g = fχHc e mensuravel. E obvio que f(x) = g(x), sex 6∈ Ec ∪H, onde µ(Ec ∪H) = 0, i.e., f(x) = g(x), µ-qtp em E.

b) Os conjuntos A = x ∈ E : g(x) 6= f(x) e B = x ∈ E : h(x) 6= f(x)sao mensuraveis, e tem medida nula. Como x ∈ X : h(x) 6= g(x) ⊆Ec ∪A ∪B, e obvio que g ≃ h.

A classe de equivalencia de f e designada por [f ], mas, em geral, escre-veremos simplesmente f , no lugar de [f ]. Bem entendido, teremos semprede verificar que as nocoes que associamos a uma qualquer classe [f ] saoefectivamente independentes do representante f escolhido. Por exemplo, sef ≃ g, e f e somavel, e evidente que g e igualmente somavel, e, portanto, erazoavel referirmo-nos a classes de equivalencia “somaveis”.

Introduzimos imediatamente a seguir uma famılia de subespacos de Fµ(X),ditos os espacos Lp, com 1 ≤ p ≤ ∞, que designaremos por Lp

µ(X). Estesespacos sao definidos em termos das chamadas normas Lp. A norma Lp

da classe [f ] pode ser calculada a partir de qualquer representante f , edesigna-se por ‖f‖p.

7O conjunto F (X), de todas as funcoes mensuraveis f : X → R, e, como sabemos, umespaco vectorial real. A classe N(X), de todas as funcoes mensuraveis f : N → R que saonulas µ-qtp e, claramente, um subespaco vectorial de F (X). E facil mostrar que Fµ(X) eo quociente F (X)/N(X).

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5.4. Os Espacos Lp 329

Definicao 5.4.4 (Norma Lp, Espacos Lp). Se 1 ≤ p < ∞, e f : X → R eM-mensuravel, entao (8)

‖f‖p =

(∫

X|f |p dµ

) 1

p

.

Lpµ(X) e formado pelas classes de funcoes com norma Lp finita, i.e.,

Lpµ(X) =

[f ] ∈ Fµ(X) : ‖f‖p <∞

Veremos que Lpµ(X) e, efectivamente, um espaco vectorial normado, com

a norma indicada. Esta afirmacao e, em qualquer caso, quase evidente parap = 1, onde a norma e dada por

‖[f ]‖1 = ‖f‖1 =

X|f |dµ.

Recorde-se, a este respeito, as seguintes observacoes, que fizemos num con-texto mais restrito ja no Capıtulo 1, agora reforcadas com os resultados daseccao anterior, e a afirmacao final.

• Se f, g ∈ L1µ(E), a desigualdade ‖f+g‖1 ≤ ‖f‖1+‖g‖1 e a desigualdade

triangular usual,

• Se f ∈ L1µ(E) e α ∈ R, a identidade ‖αf‖1 = |α|‖f‖1 resulta directa-

mente de 5.2.13, e

• ‖f‖1 = 0 ⇐⇒ f ≃ 0 ⇐⇒ [f ] = [0].

A definicao do espaco L∞µ (X) requer a introducao de algumas nocoes

auxiliares.

Definicao 5.4.5 (Majorantes e Minorantes Essenciais). Dizemos que M emajorante ( respectivamente, minorante) essencial da funcao f se eso se f(x) ≤M , (respectivamente, f(x) ≥M) µ-qtp em X.

Exemplo 5.4.6.

No espaco (R,L(R),m), qualquer M ≥ 0 e majorante essencial da funcao deDirichlet, porque a funcao de Dirichlet e nula qtp em R.

Funcoes equivalentes tem exactamente os mesmos majorantes e mino-rantes essenciais, e portanto estas nocoes sao aplicaveis a elementos deFµ(X). Deixamos para o exercıcio 2 a demonstracao de:

8Seguimos a convencao natural de tomar (∞)α = ∞, desde que α > 0.

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330 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Proposicao 5.4.7. Se f : X → R e M-mensuravel, e A e o conjunto dosmajorantes essenciais de f , entao o conjunto A tem mınimo.

Definicao 5.4.8 (Norma L∞, Espaco L∞). Se f : X → R e M-mensuravel,o menor majorante essencial de |f | designa-se ‖f‖∞, e diz-se a norma L∞

da classe [f ]. Definimos ainda L∞µ (X) = [f ] ∈ Fµ(X) : ‖f‖∞ <∞.

Deixamos tambem como exercıcio a demonstracao do seguinte resultado:

Proposicao 5.4.9. L∞µ (X) e um espaco vectorial normado, com a norma

L∞ definida em 5.4.8.

Exemplos 5.4.10.

1. Designaremos o espaco LpmN

(E) por Lp(E), quando E ⊆ RN e um conjuntoLebesgue-mensuravel.

2. Se (X,M, µ) = (N,P(N),#), e tradicional designar o espaco Lp#(N) por ℓp.

Por exemplo, ℓ2 e o espaco das sucessoes reais tais que∑∞

n=1 x2n <∞, e ℓ∞ e

o espaco das sucessoes reais limitadas.

3. RN e um espaco Lp, para qualquer 1 ≤ p ≤ ∞.

Os espacos Lp, com 1 < p < ∞, sao igualmente espacos vectoriais nor-mados, mas a demonstracao deste resultado requer a previa verificacao dasdesigualdades ditas de Holder(9), e de Minkowski(10).

Lema 5.4.11. Se f, g : X → R sao funcoes M-mensuraveis e α ∈ R, entao

a) ‖αf‖p = |α| ‖f‖p.

b) ‖f‖p = 0 ⇔ f(x) = 0, µ-q.t.p. em X ⇔ [f ] = [0].

c) ‖f‖p + ‖g‖p <∞ =⇒ ‖f + g‖p ≤ ‖(|f | + |g|)‖p <∞.

d) Em particular, Lpµ(X) e um subespaco vectorial de Fµ(X).

Demonstracao. As afirmacoes a) e b) sao evidentes, para qualquer 1 ≤ p ≤∞, assim como c), para p = ∞. Passamos a provar c), para p < ∞. Comoa funcao φ(t) = tp e convexa para t ≥ 0, tomamos s = |f(x)|, t = |g(x)|, eα = β = 1

2 , para concluir que

1

2p(|f(x)| + |g(x)|)p =

( |f(x)| + |g(x)|2

)p

≤ 1

2(|f(x)|p + |g(x)|p) .

9Otto Ludwig Holder, 1859-1937, matematico alemao com o nome associado a estadesigualdade, e ao teorema de Jordan-Holder da Teoria dos Grupos. Ensinou nas univer-sidades de Gottingen e Tubingen.

10Hermann Minkowsky, 1864-1909, matematico alemao, professor em Gottingen, com onome indissociavelmente ligado ao espaco-tempo quadridimensional da teoria da Relativi-dade Restrita.

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5.4. Os Espacos Lp 331

A integracao desta desigualdade conduz imediatamente a

1

2p‖ |f | + |g| ‖p

p ≤ 1

2‖f‖p

p +1

2‖g‖p

p <∞.

Repare-se que as funcoes f e g sao, necessariamente, finitas µ-qtp, e podemossupor, sem perda de generalidade, que f + g e finita e esta definida em todaa parte. Como |f + g| ≤ |f | + |g|, e claro que ‖f + g‖p ≤ ‖|f | + |g|‖p < ∞.A afirmacao d) e um corolario imediato de a) e c).

Usaremos aqui a seguinte terminologia:

Definicao 5.4.12 (Expoentes Conjugados). Se 1 ≤ p, q ≤ ∞, entao p e qsao expoentes conjugados se e so se 1

p + 1q = 1, onde tomamos 1

∞ = 0.

Observe-se que o unico valor de p que e conjugado de si proprio e p = 2.Esta observacao esta relacionado com o facto do espaco L2 ser o unico espacoLp que e euclidiano(11).

Lema 5.4.13. Se p e q sao expoentes conjugados, 1 < p <∞, entao

0 ≤ x, y ≤ ∞ =⇒ xy ≤ 1

pxp +

1

qyq.

Demonstracao. A desigualdade so nao e evidente se 0 < x, y < ∞. Nestecaso, como a funcao logaritmo e concava, e 1

p + 1q = 1, um calculo simples

mostra que

log(1

pxp +

1

qyq) ≥ 1

plog(xp) +

1

qlog(yq) = log(xy).

A funcao logaritmo e crescente, e por isso 1px

p + 1qy

q ≥ xy.

O proximo teorema generaliza a desigualdade de Cauchy-Schwarz(12)para quaisquer expoentes conjugados.

Teorema 5.4.14 (Desigualdade de Holder). Se f, g : X → R sao M-mensuraveis, e p e q sao expoentes conjugados, 1 ≤ p ≤ ∞, entao

‖fg‖1 ≤ ‖f‖p ‖g‖q .

Demonstracao. A desigualdade e evidente se ‖f‖p ‖g‖q = ∞, e e muitosimples de estabelecer se ‖f‖p ‖g‖q = 0, porque, neste ultimo caso, temos

11O espaco vectorial normado V e euclidiano se e so se a respectiva norma e dada por

‖v‖ = (v • v)12 , onde o sımbolo “•” representa um produto interno em V.

12A desigualdade de Cauchy-Schwarz para integrais e a desigualdade de Holder comp = q = 2.

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332 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

fg = 0, µ-qtp. Supomos por isso que 0 < ‖f‖p ‖g‖q < ∞. Tomamos

F (x) = |f(x)|‖f‖p

, e G(x) = |g(x)|‖g‖q

. De acordo com o lema 5.4.13, temos

F (x)G(x) ≤ 1

pF (x)p +

1

qG(x)q.

Integramos esta desigualdade, e como ‖F‖p = ‖G‖q = 1, obtemos:

‖FG‖1 ≤ 1

p‖F‖p

p +1

q‖G‖q

q =1

p+

1

q= 1.

Finalmente, e como‖fg‖1

‖f‖p‖g‖q= ‖FG‖1 ≤ 1, temos ‖fg‖1 ≤ ‖f‖p ‖g‖q.

Outra das consequencias do teorema anterior e a seguinte desigualdade:

Teorema 5.4.15 (Desigualdade de Minkowski). Se 1 ≤ p ≤ ∞, entao

f, g ∈ Lpµ(X) ⇒ f + g ∈ Lp

µ(X), e ‖f + g‖p ≤ ‖f‖p + ‖g‖p .

Demonstracao. Limitamo-nos a considerar aqui os casos 1 < p < ∞. Defi-nimos h = (|f | + |g|)p−1, e registamos que

(|f | + |g|)p = h|f | + h|g|.A desigualdade de Holder aplicada aos produtos h|f | e h|g| conduz a:

(1)

X(|f | + |g|)pdµ =

Xh|f |dµ+

Xh|g|dµ ≤ ‖h‖q ‖f‖p + ‖h‖q ‖g‖p .

O lado esquerdo desta desigualdade e naturalmente dado por:

(2)

X(|f | + |g|)pdµ = ‖ |f | + |g| ‖p

p .

Como (p− 1)q = p, temos

‖h‖qq =

X(|f | + |g|)(p−1)q dµ =

X(|f | + |g|)p dµ = ‖ |f | + |g| ‖p

p , ou

(3) ‖h‖q =(‖ |f | + |g| ‖p

) pq.

Usando (2) e (3) na desigualdade (1), obtemos

‖ |f | + |g| ‖pp ≤

(‖ |f | + |g| ‖p

) pq(‖f‖p + ‖g‖p

).

E claro que nada temos a provar se ‖|f | + |g|‖p = 0. Caso contrario, dividi-

mos a desigualdade anterior por(‖ |f | + |g| ‖p

) pq, e notamos que p− p

q = 1,

donde‖f + g‖p ≤ ‖|f | + |g|‖p ≤ ‖f‖p + ‖g‖p .

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5.4. Os Espacos Lp 333

Este resultado, associado ao lema 5.4.11, torna o seguinte corolario essen-cialmente evidente.

Corolario 5.4.16. Lpµ(X) e um espaco vectorial normado com a norma

de Lpµ(X). Em particular, L2

µ(X) e um espaco euclidiano, com o produtointerno f • g =

∫X fgdµ.

As nocoes topologicas basicas, que devem ser conhecidas pelo menosdo espaco RN , adaptam-se facilmente ao contexto de um qualquer espacovectorial normado.

Definicao 5.4.17 (Topologia em V). Sejam V e W espacos vectoriais nor-mados reais. Se v ∈ V (respectivamente, w ∈ W), designamos por ‖v‖(respectivamente, ‖w‖′), as correspondentes normas.

a) A bola aberta de centro em v e raio ε > 0 e o conjunto Bε(v) =u ∈ V : ‖u − v‖ < ε.

b) O conjunto U ⊆ V e aberto se e so se, para qualquer v ∈ U , existeε > 0 tal que Bε(v) ⊆ U . Se U e aberto, e v ∈ U , dizemos que U euma vizinhanca de v. A famılia O = U ⊆ V : U e aberto em V ea topologia do espaco V.

c) A sucessao de termo geral vn ∈ V converge para v ∈ V se e so se‖vn − v‖ → 0, quando n → ∞. Em particular, se f, fn ∈ Lp

µ(X), e‖fn − f‖p → 0, dizemos que fn converge para f em Lp.

d) A sucessao de termo geral vn ∈ V e fundamental se e so se

‖vn − vm‖ → 0, quando n,m→ ∞.

e) A funcao f : V → W e contınua em v ∈ V se e so se para qualquerε > 0 existe δ > 0 tal que ‖u − v‖ < δ ⇒ ‖f(u) − f(v)‖′ < ε.

Usaremos no que se segue, e sem mais comentarios, nocoes que se derivamdestas sem qualquer dificuldade, como, por exemplo, as de interior, exterior,fronteira, e fecho de qualquer conjunto U ⊆ V.

Exemplos 5.4.18.

1. O teorema da convergencia dominada de Lebesgue pode ser enunciado comose segue: Se fn → f pontualmente em X, e existe g ∈ L1

µ(X) tal que |fn(x)| ≤g(x) µ-qtp em X, entao fn tambem converge para f em L1. Um resultadoanalogo e valido em Lp (exercıcio 4).

2. O integral definido φ : L1µ(X) → R e um funcional contınuo em L1

µ(X):

|φ(f) − φ(g)| =

∣∣∣∣∫

X

fdµ−∫

X

gdµ

∣∣∣∣ ≤∫

X

|f − g|dµ = ‖f − g‖1 .

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334 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

3. Seja U ⊂ L1(R) formado pelas classes de funcoes que tem algum represen-tante f ∈ Cc(R). E usual escrever U = Cc(R), nao distinguindo “funcoes” de“classes de equivalencia” de funcoes, para evitar sobrecarregar a notacao uti-lizada (13). Com esta convencao, o corolario 3.6.8 afirma que Cc(R) e denso

em L1(R), i.e., Cc(R) = L1(R).

4. Deixamos para o exercıcio 7 verificar que, se 1 ≤ p, q < ∞, entao Lpµ(X) ∩

Lqµ(X) e denso em Lp

µ(X).

E muito interessante observar que as definicoes apresentadas em 5.4.17c), d) e e), dependem apenas da topologia do espaco em causa, i.e., da famıliaformada pelos conjuntos abertos, e nao da norma utilizada para definir essatopologia. Com efeito:

Proposicao 5.4.19. Mantendo a notacao em 5.4.17, temos:

a) vn → v se e so se, para qualquer vizinhanca U de v, existe p ∈ N talque n > p =⇒ vn ∈ U .

b) A sucessao de termo geral vn e fundamental se e so se, para qualquervizinhanca U de 0 ∈ V, existe p ∈ N tal que n,m > p =⇒ (vn −vm) ∈U .

c) A funcao f : V → W e contınua em v ∈ V se e so se para qualquervizinhanca W de f(v) em W existe uma vizinhanca V de v em V talque f(V ) ⊆W .

Por esta razao, duas normas definidas no mesmo espaco vectorial dizem-se equivalentes se determinam a mesma topologia. Esta nocao e irrele-vante no estudo dos espacos de dimensao finita, porque todas as normasnum mesmo espaco sao automaticamente equivalentes. A situacao e dra-maticamente diferente nos espacos de dimensao infinita, o que introduz umacomplexidade e riqueza de resultados muito interessante na teoria.

Exemplos 5.4.20.

1. Lpµ(X)∩Lq

µ(X) e um subespaco vectorial, tanto de Lpµ(X), como de Lq

µ(X).No entanto, em geral, as normas de Lp e de Lq geram topologias distintasem Lp

µ(X) ∩ Lqµ(X). Por exemplo, se gn e a funcao caracterıstica do intervalo

[0, 1n ] no intervalo X = [0, 1], entao fn =

√ngn → 0, com a norma de L1, ou

“em L1”, mas a sucessao diverge em L∞, porque ‖fn‖∞ =√n → ∞. Por

outras palavras, as topologias determinadas em L1(X)∩L∞(X) pelas normasde L1(X) e de L∞(X) sao diferentes.

2. Vimos atras que Cc(RN ) e denso em L1(RN ), i.e., Cc(RN ) = L1(RN ), na

topologia de L1. E relativamente simples mostrar que Cc(RN ) = C0(RN ), na

topologia de L∞ (exercıcio 5).

13E relevante observar que se f, g ∈ Cc(RN) e f ≃ g entao f = g, ou seja, a funcao

φ : Cc(RN) → L1(RN ) dada por φ(f) = [f ] e injectiva.

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5.4. Os Espacos Lp 335

3. Se x ∈ RN , temos ‖x‖∞ ≤ ‖x‖p ≤ N1p ‖x‖∞. Segue-se daqui que todas as

normas Lp em RN sao equivalentes.

O seguinte resultado relaciona as sucessoes convergentes com as sucessoesfundamentais.

Lema 5.4.21. Seja V um espaco vectorial normado. Entao

a) Qualquer sucessao convergente em V e fundamental.

b) Qualquer sucessao fundamental em V com pelo menos uma subsucessaoconvergente e necessariamente convergente.

Demonstracao. Para provar a afirmacao b), supomos que a sucessao determo geral xn e fundamental, e tem uma subsucessao de termo geral yn =xkn → y. Como a sucessao de naturais de termo geral kn e estritamentecrescente, e a sucessao original e fundamental, temos ‖xn − yn‖ → 0. Ob-servamos agora que:

‖xn − y‖ ≤ ‖xn − yn‖ + ‖yn − y‖ → 0.

A demonstracao de a) e parte do exercıcio 8.

No espaco RN , as sucessoes fundamentais sao convergentes, mas e sim-ples dar exemplos de espacos vectoriais normados com sucessoes fundamen-tais que divergem.

Exemplo 5.4.22.

Seja hn a funcao caracterıstica do intervalo [ 1n , 1], e ϕ(x) = 1√

x. Considere-se

a sucessao de funcoes ϕn = hnϕ, no espaco L1(X) ∩ L∞(X), com a norma deL1(X), onde X = [0, 1]. E claro que a sucessao converge em L1 para a funcaoϕ 6∈ L1(X) ∩ L∞(X). Portanto, a sucessao e fundamental, mas divergente, noespaco L1(X) ∩ L∞(X), com a norma de L1(X).

Os espacos vectoriais normados em que todas as sucessoes fundamentaisconvergem sao classificados como se segue:

Definicao 5.4.23 (Espacos de Banach, Espacos de Hilbert). O espaco vec-torial normado V diz-se um espaco de banach se e so se as sucessoesfundamentais em V convergem em V. Um espaco de hilbert(14) e umespaco de Banach euclidiano.

14David Hilbert, 1862-1943, alemao, professor em Gottingen, um dos grandes matema-ticos de sempre, tem o seu nome associado a celebre lista de problemas que apresentouno Congresso da Matematica de 1900, como um desafio as capacidades dos matematicosdo seculo que entao se iria iniciar. O seu problema no8, sobre a chamada “Hipotese deRiemann”, e talvez o mais famoso problema da Matematica a espera de solucao.

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336 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Como sugerimos a proposito do teorema sobre a integracao de series defuncoes somaveis, o criterio usual de convergencia de series reais (“qualquerserie absolutamente convergente e convergente”), pode ser adaptado paracaracterizar os espacos de Banach.

Teorema 5.4.24. Se V e um espaco vectorial normado, entao as seguintesafirmacoes sao equivalentes:

a) V e um espaco de Banach.

b) Qualquer serie absolutamente convergente em V e convergente, i.e., sevn ∈ V,

∞∑

n=1

‖vn‖ < +∞ =⇒ Existe v ∈ V tal que limm→∞

∥∥∥∥∥

m∑

n=1

vn − v

∥∥∥∥∥ = 0.

Demonstracao. Deixamos a implicacao “a) ⇒ b)” para o exercıcio 9. Paraprovar que “b) ⇒ a)”, supomos que a sucessao de termo geral xn ∈ V efundamental, donde:

Para qualquer k ∈ N, existe nk ∈ N tal que n,m ≥ nk ⇒ ‖xn − xm‖ < 1

2k.

Supomos sem perda de generalidade que a sucessao de termo geral nk eestritamente crescente, e consideramos a subsucessao de termo geral yk =xnk

, e a sucessao auxiliar de termo geral zk = yk+1 − yk. E claro que

m∑

k=1

zk = ym+1 − y1, e∞∑

k=1

‖zk‖ <∞∑

k=1

1

2k< +∞.

De acordo com b), existe z ∈ V tal que ‖z −∑mk=1 zk‖ → 0. Por outras

palavras, temos ym = xnm → z+y1, quando m→ ∞, e a sucessao de termogeral xn tem uma subsucessao convergente. Concluımos do lema 5.4.21 quea sucessao fundamental de termo geral xn converge.

O resultado que provamos anteriormente sobre series de funcoes somaveise generalizavel a qualquer espaco Lp

µ(X).

Teorema 5.4.25. Se fn ∈ Lpµ(X), e

∑∞n=1 ‖fn‖p <∞, entao:

a) A serie f(x) =∑∞

n=1 fn(x) converge absolutamente µ-qtp em X.

b) ‖f‖p ≤∑∞n=1 ‖fn‖p, donde f ∈ Lp

µ(X), e

c) As somas parciais∑m

n=1 fn convergem para f em Lpµ(X), i.e.,

limm→∞

∥∥∥∥∥

m∑

n=1

fn − f

∥∥∥∥∥p

= 0.

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5.4. Os Espacos Lp 337

Demonstracao. Supomos 1 ≤ p < ∞, e deixamos o caso p = ∞ comoexercıcio. Observamos que

gm(x) =

m∑

n=1

|fn(x)| ր∞∑

n=1

|fn(x)| = g(x), donde gm(x)p ր g(x)p.

Segue-se da propriedade de Beppo Levi que ‖gm‖p → ‖g‖p. Temos ainda,da desigualdade de Minkowski, que:

‖gm‖p ≤m∑

n=1

‖fn‖p ≤∞∑

n=1

‖fn‖p <∞, donde ‖g‖p ≤∞∑

n=1

‖fn‖p <∞.

Concluımos que g e finita µ-qtp, o que estabelece a).Para provar b), definimos f(x) =

∑∞n=1 fn(x), onde podemos supor que

a serie converge, e e finita, em todo o conjunto X. A funcao f e mensuravel,e temos:

‖f‖p =

∥∥∥∥∥

∞∑

n=1

fn

∥∥∥∥∥p

≤∥∥∥∥∥

∞∑

n=1

|fn|∥∥∥∥∥

p

= ‖g‖p ≤∞∑

n=1

‖fn‖p <∞.

Aplicamos a afirmacao b) a cauda da serie∑∞

n=1 fn, para concluir que

∥∥∥∥∥

m∑

n=1

fn − f

∥∥∥∥∥p

=

∥∥∥∥∥

∞∑

n=m+1

fn

∥∥∥∥∥p

≤∞∑

n=m+1

‖fn‖p → 0, quando m→ ∞.

O resultado seguinte e, certamente, um dos mais importantes resultadosda teoria de integracao de Lebesgue, e um dos seus sucessos tecnicos maissignificativos. E uma consequencia evidente dos teoremas 5.4.24 e 5.4.25.

Corolario 5.4.26 (Teorema de Riesz-Fischer). (15) Lpµ(X) e um espaco de

Banach. Em particular, L2µ(X) e um espaco de Hilbert.

Exercıcios.

1. Prove que a relacao ≃ e de equivalencia. Prove que se f ≃ f∗, g ≃ g∗ ec ∈ R, entao f + g ≃ f∗ + g∗, fg ≃ f∗g∗, e cf ≃ cf∗.

2. Demonstre as proposicoes 5.4.7 e 5.4.9, relativas aos espacos L∞.

3. Demonstre o teorema 5.4.25 para o caso p = ∞.

15Ernst Fischer, 1875-1954, matematico alemao de origem austrıaca, foi professor emErlangen e Colonia. Este teorema foi provado para L2 quase simultaneamente por Riesze por Fischer em 1907. Riesz definiu os espacos Lp para p > 1 em 1910, e descobriu quesao espacos de Banach, para qualquer p.

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338 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

4. Generalize o teorema da convergencia dominada de Lebesgue para o espacoLp. sugestao: Suponha |fn| ≤ g, onde g ∈ Lp, e fn(x) → f(x), qtp em X .

5. Mostre que o fecho de Cc(RN ) na topologia de L∞(RN ) e o espaco C0(R

N ).

6. Demonstre as seguintes afirmacoes, relativas aos espacos Lpµ(X):

a) Se µ(X) <∞, e p < q, entao Lqµ(X) ⊆ Lp

µ(X).

b) Se p < q < r, e f ∈ Lpµ(X) ∩ Lr

µ(X), entao f ∈ Lqµ(X).

c) Se p < q, entao ℓp ⊆ ℓq, Lp(R)\Lq(R) 6= ∅, e Lq(R)\Lp(R) 6= ∅.

7. Seja Sµ(X) ⊆ Fµ(X) o conjunto das classes que tem um representante sim-ples. Supondo 1 ≤ p, q <∞, prove que:

a) Sµ(X) ∩ Lpµ(X) e um subespaco denso de Lp

µ(X).

b) Lpµ(X) ∩ Lq

µ(X) e denso em Lpµ(X).

c) Sµ(X) ∩ L∞µ (X) e denso em L∞

µ (X).

d) Existe um conjunto numeravel, denso em Lp(RN ).

8. Complete a demonstracao do lema 5.4.21.

9. Complete a demonstracao do teorema 5.4.24, provando a implicacao “a) ⇒b)”. sugestao: Mostre que a sucessao de somas parciais e fundamental.

5.5 Teoremas de Representacao de Riesz

A generalizacao das ideias e metodos do Calculo Diferencial, conhecidas doespaco RN , para um espaco vectorial normado V “arbitrario”, em parti-cular para os espacos Lp

µ(X), utiliza transformacoes lineares T : V → R

apropriadas. Estas transformacoes devem aproximar funcoes ϕ : V → R,de forma a que ϕ(x + y) = ϕ(x) + T (y) + ‖y‖∆(x,y), onde ∆(x,y) → 0,quando y → 0.

As transformacoes lineares em espacos vectoriais normados de dimensaofinita sao automaticamente funcoes contınuas. Recorde-se que T : RN → R

e linear se e so se T (x) = a • x, onde a ∈ RN , e “•” designa o produtointerno usual. No caso dos espacos vectoriais de dimensao infinita, e noseguimento das observacoes que fizemos acima sobre a existencia de normasque nao sao equivalentes, nao e razoavel esperar que qualquer transformacaolinear seja contınua, e e necessario distinguir:

Definicao 5.5.1 (Dual Algebrico, Dual Topologico). Seja V um espacovectorial normado.

a) O dual algebrico de V e o conjunto de todas as transformacoeslineares f : V → R.

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5.5. Teoremas de Representacao de Riesz 339

b) O dual topologico de V e o conjunto V∗ de todas as transformacoeslineares contınuas f : V → R.

Exemplos 5.5.2.

1. Se V = L1(R) ∩ L∞(R), e φ : V → R e dada por φ(f) =∫

Rfdm, e evidente

que φ e linear. Sendo fn a funcao caracterıstica de [0, n2], e gn = 1nfn, entao

φ(gn) = n → ∞, e ‖gn‖∞ = 1n → 0. Se considerarmos em V a topologia de

L∞, entao φ nao e contınua, i.e., φ pertence ao dual algebrico, mas nao aodual topologico.

2. No mesmo espaco, e supondo que E ∈ L(R) tem medida finita, a funcaoϕ : V → R dada por ϕ(f) =

∫E fdm e linear, e contınua. Basta observar que

|ϕ(f) − ϕ(g)| ≤∫

E

|f − g| dm ≤ ‖f − g‖∞m(E).

3. ϕ : V → R e diferenciavel em V se e so se existe uma funcao Dϕ : V → V∗

tal que, para todo o x ∈ V,

limy→0

ϕ(x + y) − ϕ(x) −Dϕ(x)(y)

‖y‖ = 0

Teorema 5.5.3. Seja V um espaco vectorial normado, e φ : V → R umatransformacao linear. Entao:

a) φ e contınua se e so se ‖φ‖ = sup |φ(x)| : ‖x‖ ≤ 1 < ∞. Nessecaso, temos

|φ(x)| ≤ ‖φ‖ ‖x‖ , para qualquer x ∈ V.

b) O dual topologico V∗ e um espaco de Banach, com norma dada por‖φ‖ = sup |φ(x)| : ‖x‖ ≤ 1.

Demonstracao. Para provar a), seja φ : V → R uma transformacao linear.

(i) Suponha-se que φ e contınua, em particular contınua em 0 ∈ V. Exis-te por isso δ > 0 tal que ‖x‖ ≤ δ ⇒ |φ(x)| ≤ 1. Dado x 6= 0,consideramos y = δ

‖x‖x. Observamos que

1 ≥ |φ(y)| =δ

‖x‖ |φ(x)| , e |φ(x)| ≤ 1

δ‖x‖ .

Segue-se que ‖φ‖ = sup |φ(x)| : ‖x‖ ≤ 1 ≤ 1δ < ∞, e e muito facil

mostrar que |φ(x)| ≤ ‖φ‖ ‖x‖, para qualquer x ∈ V.

(ii) Suponha-se que ‖φ‖ = sup |φ(x)| : ‖x‖ ≤ 1 < ∞, donde mais umavez |φ(x)| ≤ ‖φ‖ ‖x‖. Se y ∈ V, entao

|φ(x) − φ(y)| = |φ(x − y)| ≤ ‖φ‖ ‖x − y‖ .

E portanto evidente que φ e (uniformemente) contınua em V.

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340 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Para mostrarmos que V∗ e um espaco de Banach, e necessario verificarprimeiro que ‖φ‖ = sup |φ(x)| : ‖x‖ ≤ 1 e uma norma em V∗, o que dei-xamos para o exercıcio 1.

Dada uma sucessao fundamental em V∗, de termo geral φn, e x ∈ V, asucessao real de termo geral φn(x) e fundamental em R, e existe por issolimn→∞ φn(x), porque:

|φn(x) − φm(x)| = |(φn − φm) (x)| ≤ ‖φn − φm‖ ‖x‖ → 0.

Podemos portanto definir φ : V → R por φ(x) = limn→∞ φn(x), e e simplesverificar que φ e linear. Como ‖φn − φm‖ < M , temos |φ(x) − φm(x)| ≤M ‖x‖, e portanto |φ(x)| = |φ(x) − φm(x) + φm(x)| satisfaz

|φ(x)| ≤ |φ(x) − φm(x)| + |φm(x)| ≤ (M + ‖φm‖) ‖x‖

Concluımos que φ e contınua, e V e um espaco de Banach.

Exemplos 5.5.4.

1. Se p e q sao expoentes conjugados, e g ∈ Lqµ(X), podemos definir T :

Lpµ(X) → R por T (f) =

∫Xfgdµ, de acordo com a desigualdade de Holder.

Ainda de acordo com a mesma desigualdade, e claro que T e uma transformacaolinear contınua em Lp, e ‖T ‖ ≤ ‖g‖q.

2. Se µ e uma medida real em B(RN), podemos definir T : Cc(RN ) → R por

T (f) =∫

RN fdµ. Temos neste caso que (16)

|T (f)| ≤ ‖f‖∞ |µ|(RN ) = ‖f‖∞ ‖µ‖ .

Concluımos que T e uma transformacao linear contınua em Cc(RN ), com a

topologia de L∞.

A identificacao de transformacoes lineares apropriadas definidas numdado espaco normado e um problema muito interessante, e apresentamosa seguir alguns resultados classicos desta natureza. Precisaremos de usarno que segue a nocao de particao de unidade, que passamos a introduzir.Note-se que a demonstracao da sua existencia e uma adaptacao engenhosado argumento que introduzimos com a proposicao 3.6.1, que como dissemose por sua vez uma forma do Lema de Urysohn.

Teorema 5.5.5 (Existencia de particoes da unidade). Se K ⊆ RN e com-pacto, e C = U1, · · · , Um uma cobertura de K por abertos em RN , entaoexistem funcoes h1, · · · , hm : RN → [0, 1] tais que:(17)

16Recorde do Capıtulo 4 que a funcao ‖µ‖ = |µ|(X) e uma norma no espaco vectorialde todas as medidas reais definidas em (X,M).

17Dizemos neste caso que a famılia de funcoes h1, · · · , hm e uma particao da unidade

em K subordinada a cobertura C.

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5.5. Teoremas de Representacao de Riesz 341

a) hn ∈ Cc(RN ) tem suporte compacto em Un, e

b) h1(x) + h2(x) + · · ·hm(x) = 1, para qualquer x ∈ K.

Demonstracao. Se x ∈ K entao existe pelo menos um aberto Un tal quex ∈ Un, e existe igualmente um rectangulo aberto limitado Rx tal que

x ∈ Rx ⊂ Rx ⊂ Un.

A famılia D = Rx : x ∈ K e uma cobertura aberta de K, e existe por issouma subcobertura finita de K por rectangulos Rx1

, · · · , Rxp . Agrupamos osrectangulos Rxi

⊂ Un, ou seja, tomamos

Kn =⋃

i∈In

Rxi, In = i : Rxi

⊂ Un donde K ⊆m⋃

n=1

Kn.

De acordo com a proposicao 3.6.1, existem funcoes gn ∈ Cc(RN ) tais que

χKn ≤ gn ≤ χUn . Tomamos

h1 = g1, h2 = (1 − g1)g2, · · · , hm = (1 − g1)(1 − g2) · · · (1 − gm−1)gm.

Repare-se que 0 ≤ hn ≤ 1 e uma funcao contınua de suporte compacto, cujosuporte esta contido no de gn, e portanto esta contido em Un. Por outrolado, e observando que

h = h1 + h2 + · · · + hm = 1 − (1 − g1)(1 − g2) · · · (1 − gm),

concluımos que h = 1 em cada um dos conjuntos Kn, porque quando x ∈ Kn

temos certamente 1 − gn(x) = 0.

Se µ e uma medida positiva localmente finita, ou real, definida em B(RN ),podemos definir uma correspondente transformacao linear (um funcionallinear) no espaco Cc(R

N ) por:

Tµ(f) =

RN

fdµ

Dizemos que o funcional T : Cc(RN ) → R e crescente sempre que:

f ≤ g em RN =⇒ T (f) ≤ T (g).

Deve ser claro que se µ e positiva entao Tµ e crescente. O proximo teoremamostra que todos os funcionais crescentes em Cc(R

N ) sao da forma Tµ, comµ positiva, e refere igualmente que a aplicacao µ 7→ Tµ e injectiva na classedas medidas positivas localmente finitas.

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342 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Teorema 5.5.6 (Teorema de Representacao de Riesz (I)). Se T : Cc(RN ) →

R e uma transformacao linear crescente entao existe uma medida positivalocalmente finita µ definida em B(RN ) tal que

T (f) = Tµ(f) =

RN

fdµ(18).

Temos ainda que se µ 6= µ′ entao Tµ 6= Tµ′ .

Demonstracao. Supomos que U ⊆ RN e aberto, e designamos por F (U) oconjunto das funcoes f ∈ Cc(R

N ), com suporte compacto em U , e tais que0 ≤ f ≤ 1 em RN . Definimos ainda

• Se ∅ 6= U ⊆ RN e aberto, τ(U) = sup T (f) : f ∈ F (U), e τ(∅) = 0.

• Para qualquer E ⊆ RN , µ∗(E) = inf τ(U) : E ⊆ U,U , aberto .Note-se como quase obvio que, se U e aberto, entao µ∗(U) = τ(U). Observe-se tambem que, de um ponto de vista por enquanto apenas heurıstico, parececlaro que µ(U) deve coincidir com τ(U), e portanto µ∗ deve ser uma medidaexterior, e µ so pode ser a medida determinada por essa medida exterior.E o que passamos a mostrar ser verdade, demonstrando uma sequencia deresultados parciais, numerados de (i) ate (vi).

(i) τ e aditiva e σ-subaditiva na classe dos conjuntos abertos.

Demonstracao. Supomos que U 6= ∅ e Un sao abertos, e

U ⊆∞⋃

n=1

Un.

Seja f ∈ F (U), com suporte compacto K ⊆ U . A famılia Un : n ∈ Ne uma cobertura aberta de K, e existe por isso m ∈ N tal que

K ⊆m⋃

n=1

Un.

Pelo teorema 5.5.5, existe uma particao da unidade em K subordina-da a cobertura U1, U2, · · · , Um, e formada por funcoes h1, h2, · · · , hm,onde hn ∈ F (Un). Tomando fn = fhn, e claro que

m∑

n=1

fn = f

m∑

n=1

hn = f e fn ∈ F (Un).

Como T e linear e τ ≥ 0, concluımos que

f ∈ F (U) =⇒ T (f) =m∑

n=1

T (fn) ≤m∑

n=1

τ(Un) ≤∞∑

n=1

τ(Un).

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5.5. Teoremas de Representacao de Riesz 343

Segue-se que τ(U) ≤∑∞n=1 τ(Un), i.e., τ e σ-subaditiva.

A aditividade de τ e agora mais simples de estabelecer. Suponha-seque U1, · · · , Um sao abertos e disjuntos, e U = ∪m

n=1Un. Quaisquerque sejam as funcoes fn ∈ F (Un), e claro que f =

∑mn=1 fn ∈ F (U),

donde

m∑

n=1

T (fn) = T (f) ≤ τ(U), e por isso

m∑

n=1

τ(Un) ≤ τ(U).

Como provamos acima que τ(U) ≤∑mn=1 τ(Un), e evidente que

m∑

n=1

τ(Un) = τ(U).

Temos assim que τ e aditiva.

(ii) µ∗ e uma medida exterior, e E ⊆ RN e µ∗-mensuravel se e so seτ(U) = µ∗(U ∩E) + µ∗(U − E), para qualquer aberto U ⊆ RN .

A respectiva verificacao, que e muito simples, fica para o exercıcio 3.

A proxima afirmacao e algo mais delicada de demonstrar.

(iii) Os conjuntos compactos sao µ∗-mensuraveis.

Demonstracao. Sendo K compacto e U aberto, temos a provar que

τ(U) ≥ µ∗(U ∩K) + µ∗(U −K) = µ∗(U ∩K) + τ(U −K).

Dado ε > 0, existe f ∈ F (U − K), tal que T (f) > τ(U − K) + ε.Sendo K ′ o suporte de f , que e disjunto de K, existem conjuntosabertos disjuntos V ′, V tais que K ′ ⊂ V ′, e K ⊂ V (19). (Ver figura5.5.1.)

Sejam W ′ = U ∩ V ′, e W = U ∩ V . Como W ∪W ′ ⊆ U , e os abertosW e W ′ sao disjuntos, temos:

τ(U) ≥ τ(W ∪W ′) = τ(W ) + τ(W ′)

Dado que K ′ ⊂W ′, e K ′ e o suporte de f , temos tambem

τ(W ′) ≥ T (f) > τ(U −K) + ε

Como U ∩K ⊂W , temos ainda τ(W ) ≥ µ∗(U ∩K), e concluımos que

τ(U) ≥ τ(W ) + τ(W ′) ≥ µ∗(U ∩K) + τ(U −K) + ε.

O resultado segue-se fazendo ε→ 0.

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344 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

K

K ′

V

V ′

W

W ′

U ∩K

U

Figura 5.5.1: Separacao de K e K ′ por abertos V e V ′.

Sendo M(RN ) a σ-algebra dos conjuntos µ∗-mensuraveis, e µ a re-stricao de µ∗ a B(RN), podemos evidentemente concluir que

(iv) µ e uma medida regular em B(RN ).

O proximo resultado estabelece, em particular, que µ e localmentefinita. Definimos F (K) =

f ∈ Cc(R

N ) : χK ≤ f ≤ 1, e passamos a

provar que

(v) Se K e compacto, entao

µ(K) = infT (f) : f ∈ F (K)

<∞.

Demonstracao. E simples estabelecer a desigualdade

(v.1) µ(K) ≥ infT (f) : f ∈ F (K)

.

Dado ε > 0 existe um aberto U ⊃ K tal que τ(U) ≤ µ(K) + ε. Comoexistem funcoes g ∈ F (K) ∩ F (U) (a proposicao 3.6.1 e exactamentea afirmacao F (K) ∩ F (U) 6= ∅), e claro que

infT (f) : f ∈ F (K)

≤ T (g) ≤ τ(U) ≤ µ(K) + ε.

Fazendo ε→ 0, obtemos (v.1).

A afirmacao (v) ficara assim estabelecida se provarmos

(v.2) µ(K) ≤ infT (f) : f ∈ F (K)

.

19Esta e mais uma propriedade de separacao, valida na realidade em qualquer espacotopologico de Hausdorff, e que nao deve ser considerada como “obvia”. A sua demon-stracao e o exercıcio 2.

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5.5. Teoremas de Representacao de Riesz 345

Dado f ∈ F (K) e 0 < ε < 1, seja Uε =x ∈ RN : f(x) > ε

. E claro

que Uε e um aberto que contem K. Por outro lado, se g ∈ F (Uε) entaoεg ≤ ε ≤ f . Como T e linear e crescente, concluımos que

g ∈ F (Uε) ⇒ εg ≤ f ⇒ εT (g) ≤ T (f) ⇒ T (g) ≤ 1

εT (f).

Como g ∈ F (Uε) e arbitraria, segue-se da definicao de τ que

τ(Uε) ≤1

εT (f), para qualquer 0 < ε < 1.

Como µ(K) ≤ τ(Uε), temos ainda

µ(K) ≤ 1

εT (f), para qualquer 0 < ε < 1.

Fazendo ε→ 1 obtemos µ(K) ≤ T (f) <∞, o que estabelece (v.2).

O proximo resultado mostra finalmente que a medida µ e uma repre-sentacao do funcional T .

(vi) T (f) =∫

RN fdµ, para qualquer f ∈ Cc(RN ).

Demonstracao. Seja K o suporte de f , e R ⊇ K um rectangulo com-pacto. Dado ε > 0, e como f e uniformemente contınua em R, existeuma particao de R em rectangulos R1, · · · , Rn, tais que a oscilacao def em cada Rk e inferior a ε. Com Mk = sup f(x) : x ∈ Rk, temos:

(vi.1)

n∑

k=1

Mkµ(Rk) ≤∫

R(f + ε)dµ =

Rfdµ+ εµ(R).

Notamos que

• Existem abertos Vk ⊇ Rk tais que f(x) < Mk + ε, para x ∈ Vk,porque f e contınua, e

• Existem abertos Wk ⊇ Rk tais que µ(Rk) ≤ τ(Wk) < µ(Rk) + εn .

Tomamos Uk = Vk ∩ Wk, e consideramos uma particao da unidadepara K subordinada aos abertos Uk, h =

∑nk=1 hk. Observamos que

fk = fhk < (Mk + ε)hk, porque fk e nula no complementar de Uk, eUk ⊆ Vk, donde

T (f) =

n∑

k=1

T (fk) ≤n∑

k=1

(Mk + ε)T (hk) ≤n∑

k=1

(Mk + ε)τ(Uk)

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346 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Temos ainda

n∑

k=1

(Mk + ε)τ(Uk) <n∑

k=1

(Mk + ε)(µ(Rk) +ε

n) =

=n∑

k=1

Mk(µ(Rk) +ε

n) +

n∑

k=1

ε(µ(Rk) +ε

n) ≤

n∑

k=1

Mkµ(Rk) + ε ‖f‖∞ + εµ(R) + ε2,

e concluımos que

(vi.2) T (f) ≤n∑

k=1

Mkµ(Rk) + ε ‖f‖∞ + εµ(R) + ε2.

Combinando (vi.1) e (vi.2) resulta que

T (f) ≤∫

Rfdµ+ ε ‖f‖∞ + 2εµ(R) + ε2,

e fazendo ε → 0 concluımos que T (f) ≤∫R fdµ. Como esta desigual-

dade e tambem valida para a funcao −f , temos entao que T (f) =∫R fdµ.

A unicidade da medida µ fica estabelecida com o seguinte resultado,que deixamos para o exercıcio 3.

(vii) Para estabelecer a unicidade da medida µ, supomos que T (f) =∫X fdλ, e notamos que

• f ∈ F (K) ⇒ λ(K) ≤ T (f). De acordo com (v), concluımos queλ(K) ≤ µ(K), para qualquer compacto K.

• f ∈ F (U) ⇒ λ(U) ≥ T (f). Concluımos que λ(U) ≥ τ(U) =µ(U), para qualquer aberto U . Como λ e µ sao regulares noscompactos, temos λ(K) ≥ µ(K) para qualquer compacto K.

• E obvio que λ(K) = µ(K) para qualquer compacto K, e segue-sede 4.4.10 que λ = µ em B(RN ).

Exemplo 5.5.7.

Definimos T : Cc(RN ) → R tomando para T (f) o integral de Riemann de f

em RN . Sabemos que T e um funcional linear crescente em Cc(RN ). Deve ser

evidente que a medida µ que lhe esta associada pelo teorema de representacaode Riesz e exactamente a medida de Lebesgue.

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5.5. Teoremas de Representacao de Riesz 347

Passamos a estudar os duais topologicos dos espacos Lpµ(X). Recordamos

da desigualdade de Holder que, se p e q sao expoentes conjugados,

f ∈ Lpµ(X) e g ∈ Lq

µ(X) =⇒ fg ∈ L1µ(X) e ‖fg‖1 ≤ ‖p‖p‖g‖q.

Concluımos imediatamente que

Lema 5.5.8. Se g ∈ Lqµ(X), entao podemos definir T : Lp

µ(X) → R por

T (f) =

Xfgdµ,

e T e uma transformacao linear contınua, com ‖T‖ ≤ ‖g‖q.

E um pouco mais delicado estabelecer que ‖T‖ = ‖g‖q , e deve notar-seque esta igualdade pode falhar quando p = 1 e q = ∞.

Lema 5.5.9. Se T : Lpµ(X) → R e dada por T (f) =

∫X fgdµ, onde g ∈

Lqµ(X), entao temos ‖T‖ = ‖g‖q pelo menos desde que:

a) 1 < p ≤ +∞, ou

b) p = 1, quando o espaco X e σ-finito.

Demonstracao. Observamos que nada temos a provar se ‖g‖q = 0, e organi-zamos a demonstracao em tres casos distintos:

• p = ∞ e q = 1: Tomamos f = sgn(g)(20). Como ‖f‖∞ = 1 e

T (f) =

Xsgn(g)gdµ =

X|g|dµ = ‖g‖1, donde ‖T‖ = ‖g‖1.

• 1 < p < ∞: Definimos f = |g|qp sgn(g). Notamos que ‖f‖p

p = ‖g‖qq,

donde f ∈ Lpµ(X). Temos entao

|T (f)| =

∣∣∣∣∫

Xfgdµ

∣∣∣∣ =

X|g|1+

qpdµ =

X|g|qdµ = ‖g‖q

q .

Como T e contınua, temos tambem que

|T (f)| ≤ ‖T‖ ‖f‖p = ‖T‖ ‖g‖qpq

Concluımos que ‖g‖qq ≤ ‖T‖ ‖g‖

qpq donde ‖g‖q ≤ ‖T‖, e segue-se do

lema 5.5.8 que ‖g‖q = ‖T‖.20Recorde que sgn(g) (o sinal de g) e +1 quando g ≥ 0, e -1 quando g < 0)

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348 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

• p = 1 e X e σ-finito: Sendo g ∈ L∞µ (X), M = ‖g‖∞ e ε > 0, existe um

conjunto mensuravel E com µ(E) > 0 tal que M − ε ≤ |g(x)| ≤ M ,para qualquer x ∈ E. Existem conjuntos mensuraveis Xn ր X, comµ(Xn) < 0, e definimos En = E ∩Xn.

Tomamos ainda fn = MχEn sgn(g), notamos como obvio que ‖fn‖1 =Mµ(En), e fn ∈ L1

µ(X). Supomos (sem perda de generalidade) queµ(En) > 0 para qualquer n, e observamos que

‖fn‖1‖T‖ ≥ |T (fn)| = |∫

Xfngdµ| =

En

M |g|dµ ≥M(M − ε)µ(En)

Como ‖fn‖1 = Mµ(En), concluımos que ‖T‖ ≥ M − ε, e fazemosε→ 0.

De acordo com os dois lemas anteriores, o operador

Ψ : Lqµ(X) →

(Lp

µ(X))∗

, dado por Ψ(g)(f) =

Xfgdµ

esta bem definido e e uma isometria, donde e injectivo. O operador e clara-mente linear, e o teorema seguinte mostra que e sobrejectivo. Estabelece porisso que Ψ e um isomorfismo de espacos vectoriais normados.

Teorema 5.5.10 (Teorema de Representacao de Riesz (II)). Seja (X,M, µ)um espaco σ-finito, 1 ≤ p <∞, e T : Lp

µ(X) → R uma transformacao linearcontınua. Entao existe g ∈ Lq

µ(X), onde q e conjugado de p, tal que

T (f) =

Xfgdµ.

Demonstracao. Supomos primeiro que µ(X) < ∞. Neste caso, dado qual-quer E ∈ M, temos ‖χE‖p = p

√µ(E) < ∞, donde χE ∈ Lp

µ(X). Podemos

assim definir λ : M → R por λ(E) = T (χE). E facil verificar que λ e umamedida real, e λ << µ (exercıcio 4), e na verdade a funcao g referida noteorema e a derivada de Radon-Nikodym dλ

dµ . Temos entao:

(i) Existe g ∈ L1µ(X) tal que λ(E) =

∫E gdµ, para qualquer E ∈ M.

Podemos agora provar:

(ii) g ∈ Lqµ(X), e ‖g‖q ≤ ‖T‖.

Demonstracao. E necessario tratar separadamente os casos p = 1 ep > 1.

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5.5. Teoremas de Representacao de Riesz 349

• p = 1: Dado um conjunto mensuravel E, seja f = χE, donde‖f‖1 = µ(E), e note-se que:

|T (f)| = |λ(E)| =

∣∣∣∣

Egdµ

∣∣∣∣ ≤ ‖T‖‖f‖1 = ‖T‖µ(E).

Segue-se facilmente que ‖g‖ ≤ ‖T‖ qtp em X, i.e., ‖g‖∞ ≤ ‖T‖.• p > 1: Sendo s =

∑nk=1 αkχAk

uma funcao simples mensuravel,e claro que s ∈ Lp

µ(X), e temos

T (s) =

n∑

k=1

αkT (χAk) =

n∑

k=1

αkλ(Ak) =

n∑

k=1

αk

Ak

gdµ =

Xsgdµ.

Existem funcoes simples mensuraveis tais que 0 ≤ sn ր |g|q.Sendo tn = (sn)

1

p sgn(g), e como as funcoes tn sao simples, temos

(1) T (tn) =

Xtngdµ =

X(sn)

1

p |g|dµ = |T (tn)| ≤ ‖T‖‖tn‖p

Observamos agora que, por um lado,

(2) T (tn) =

X(sn)

1

p |g|dµ ր∫

X|g|1+q/pdµ =

X|g|qdµ = ‖g‖q

q

Temos por outro lado que

(3) ‖tn‖pp =

X|tn|pdµ =

Xsndµ ր

X|g|q dµ = ‖g‖q

q

Supondo sem perda de generalidade que ‖g‖q > 0, concluımos de(1), (2) e (3) que

‖g‖qq ≤ ‖T‖‖g‖q/p

q , ou seja, ‖g‖q ≤ ‖T‖

A afirmacao (iii) conclui a demonstracao para o caso µ(X) <∞:

(iii) T (f) =

Xfgdµ, para qualquer f ∈ Lp

µ(X), e ‖T‖ = ‖g‖q.

Demonstracao. Definimos S(f) =∫X fgdµ, para qualquer f ∈ Lp

µ(X).Notamos do lema 5.5.8 que S e um funcional linear contınuo.

Como S(f) = T (f) para qualquer funcao simples, e estas funcoes saodensas em Lp, e facil concluir que S = T em Lp(exercıcio 1).

(iv) Supomos finalmente que X e σ-finito, e Xn ր X, onde os conjuntosXn tem medida finita.

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350 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Demonstracao. Designamos por µn a restricao de µ aos subconjuntosmensuraveis de Xn. Dada uma funcao f ∈ Lp

µn(Xn), seja en(f) ∈Lp

µ(X) a extensao de f a X que e nula para x 6∈ Xn, e note-se que anorma de f em Lp

µn(Xn) e a norma de en(f) em Lpµ(X), i.e., en e uma

isometria.

Definimos Tn : Lpµn(Xn) → R por Tn(f) = T (en(f)), e deve ser evi-

dente que ‖Tn‖ ≤ ‖T‖. Como µ(Xn) <∞, existe uma funcao

gn ∈ Lqµn

(Xn) tal que Tn(f) =

Xn

fgndµn, e ‖gn‖q = ‖Tn‖ ≤ ‖T‖.

Observe-se que se n > m entao gm e a restricao de gn a Xm, porque arepresentacao de Tm e unica. Existe portanto uma funcao g definidaem X cuja restricao a Xn e a funcao gn, e temos que ‖gn‖q ր ‖g‖q|,donde ‖g‖q ≤ ‖T‖. E facil concluir que T (f) =

∫X fgdµ.

Deixamos para o exercıcio 5 verificar que, no caso 1 < p <∞, a restricaoa espacos σ-finitos e superflua.

O proximo teorema identifica o dual topologico de Cc(RN ), na topologia

de L∞. A respectiva demonstracao e interessante, em especial por utilizarduas topologias distintas em Cc(R

N ), a da convergencia uniforme usual (deL∞), e a do espaco L1

λ, onde λ = |µ|, e µ e a medida real que representa ofuncional T em causa.

Teorema 5.5.11 (Teorema de Representacao de Riesz (III)). A transfor-macao linear T : Cc(R

N ) → R e contınua na topologia de L∞ se e so seexiste uma medida real µ, definida em B(RN ), tal que

T (f) =

RN

fdµ.

Neste caso, ‖T‖ = ‖µ‖ = |µ|(RN ).

Demonstracao. Sendo C+c (RN ) =

f ∈ Cc(R

N ) : f ≥ 0, definimos

ϕ(T ) : C+c (RN ) → R por ϕ(T )(f) = sup

|T (g)| : |g| ≤ f, g ∈ Cc(R

N ).

Temos:

(i) ϕ(T ) e crescente em C+c (RN ), e ϕ(T ) ≤ ‖T‖ ‖f‖∞.

(ii) Se c ≥ 0 e f ∈ C+c (RN ), entao ϕ(T )(cf) = cϕ(T )(f) = ϕ(cT )(f).

(iii) Se f1, f2 ∈ C+c (RN ), entao ϕ(T )(f1 + f2) = ϕ(T )(f1) + ϕ(T )(f2).

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5.5. Teoremas de Representacao de Riesz 351

Demonstracao. Demonstramos apenas (iii), ja que (i) e (ii) sao evi-dentes. Se g1, g2 ∈ Cc(R

N ), e |gi| ≤ fi, e claro que

T (g1) + T (g2) = T (g1 + g2) ≤ ϕ(T )(f1 + f2),

e podemos concluir que

ϕ(T )(f1) + ϕ(T )(f2) ≤ ϕ(T )(f1 + f2).

Por outro lado, se g ∈ Cc(RN ), e |g| ≤ f1 + f2, definimos

gi(x) =

g(x)fi(x)

f1(x)+f2(x) , se f1(x) + f2(x) 6= 0,

0, se f1(x) + f2(x) = 0.

E claro que as funcoes gi ∈ Cc(RN ), e |gi| ≤ fi. Temos assim que

T (g) = T (g1) + T (g2) ≤ ϕ(T )(f1) + ϕ(T )(f2), donde concluımos que

ϕ(T )(f1 + f2) ≤ ϕ(T )(f1) + ϕ(T )(f2).

Definimos Φ(T ) : Cc(RN ) → R por Φ(T )(f) = ϕ(T )(f+) − ϕ(T )(f−).

Observamos que, se f ≥ 0 entao Φ(T )(f) = ϕ(T )(f), e:

(iv) Existe uma medida positiva finita λ tal que Φ(T )(f) =∫

RN fdλ. Emparticular, |T (f)| ≤

∫RN |f |dλ, e portanto T e tambem contınuo na

topologia de L1λ(RN ).

Demonstracao. E muito simples mostrar que Φ(T ) e linear e crescenteem Cc(R

N ). A existencia da medida λ segue-se assim do teorema derepresentacao de Riesz 5.5.6. A medida λ e finita, de acordo com (i).Temos tambem, por definicao de ϕ(T ), que

|T (f)| ≤ ϕ(T )(|f |) = ϕ(T )(f+) + ϕ(T )(f−) =

=

RN

f+dλ+

RN

f−dλ =

RN

|f |dλ = ‖f‖1 .

Como Cc(RN ) e denso em L1

λ(RN ), existe um funcional linear T : L1λ(RN ) →

R, contınuo na topologia de L1, e que e extensao de T (exercıcio 1). Deacordo com 5.5.10, existe g ∈ L∞

λ (RN ) tal que

T (f) =

RN

fgdλ =

RN

fdµ, para qualquer f ∈ L1λ(RN ),

onde µ(E) =∫E gdλ, i.e., µ e o integral indefinido de g em ordem a λ.

Deixamos como exercıcio verificar que ‖T‖ = ‖µ‖ = |µ|(RN ).

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352 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Exercıcios.

1. Seja V um espaco vectorial normado, W ⊆ V um subespaco denso de V, eφ ∈ V∗.

a) Mostre que ‖φ‖ = sup|φ(x)‖ : ‖x‖ ≤ 1 e uma norma em V∗.

b) Suponha que S, T ∈ V∗. Prove que se S(x) = T (x) para qualquer x ∈ W

entao S = T .

c) Suponha que S : W → R e linear e contınua. Prove que S tem uma unicaextensao linear contınua T a todo o espaco V, e que ‖T ‖ = ‖S‖, i.e.,

sup |S(x)| : ‖x‖ ≤ 1,x ∈ W = sup |T (y)| : ‖y‖ ≤ 1,y ∈ V .

d) Suponha que B e um espaco de Banach, e T e o espaco das transformacoeslineares contınuas T : V → B. Mostre que T e um espaco de Banach.

2. Mostre que se K e K ′ sao conjuntos compactos disjuntos em RN entao exis-tem conjuntos abertos U e U ′, tambem disjuntos, tais que K ⊂ U e K ′ ⊂ U ′.

3. Complete a demonstracao do teorema de representacao de Riesz (I) (5.5.6),provando a afirmacao (ii).

4. Complete a demonstracao do teorema de representacao de Riesz (II) (5.5.10)verificando que a funcao λ aı definida e uma medida, e λ≪ µ.

5. Mostre que o teorema de representacao de Riesz (II) (5.5.10) e valido para1 < p <∞, mesmo quando o espaco nao e σ-finito. sugestao: Proceda comose segue:

a) Prove que, se E ⊆ X e σ-finito, existe gE ∈ Lqµ(X), nula em Ec, tal que,

para qualquer funcao f ∈ Lpµ(X), nula em Ec, temos T (f) =

∫XfgEdµ.

b) Mostre que existe um conjunto σ-finito E onde∫

E|gE |qdµ e maximo.

6. Complete a demonstracao de 5.5.11, provando que ‖T ‖ = ‖µ‖.

5.6 Teoremas de Egorov, Lebesgue e Riesz

E em alguns casos indispensavel utilizar topologias que nao podem serdefinidas a partir de normas, ou mesmo de qualquer outro tipo de metrica(21). Quando o conjunto em causa e um espaco vectorial, a limitacao maisfundamental a ter em conta na definicao de topologias adequadas e a degarantir a compatibilidade entre as suas estruturas algebrica e topologica,

21Uma metrica, ou distancia, no conjunto X e uma funcao d : X × X → [0,∞[,tal que d(x, y) = d(y, x), d(x, z) ≤ d(x, y) + d(y, z), e d(x, y) = 0 se e so se x = y.Uma topologia gerada por uma metrica, a partir das chamadas bolas abertas, que sao osconjuntos Bρ(x) = y ∈ X : d(x, y) < ρ, e uma topologia metrizavel.

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5.6. Teoremas de Egorov, Lebesgue e Riesz 353

o que se resume a assegurar que as suas operacoes algebricas basicas saocontınuas. Mais precisamente, sendo O a classe dos conjuntos abertos noespaco vectorial real V, e necessario que:

• Se x + y ∈ U ∈ O, entao existem V,W ∈ O tal que x ∈ V , y ∈ W , e(v,w) ∈ V ×W ⇒ v + w ∈ U , e

• Se α ∈ R, x ∈ V, e αx ∈ U ∈ O, entao existe um aberto V ⊆ R, eW ∈ O, tal que (α,x) ∈ V ×W , e (β,y) ∈ V ×W ⇒ βy ∈ U .

Dizemos que o espaco V com a topologia O e um espaco vectorial

topologico(22). Nao nos detemos aqui a examinar em pormenor comodefinir topologias em espacos deste tipo, mas notamos que, dada a famıliaO, e simples identificar as sucessoes convergentes. Dada uma sucessao emV, de termo geral xn, dizemos que xn → x ∈ V na topologia O, se e sose, para qualquer aberto U ∈ O, se x ∈ U entao existe p ∈ N tal quen > p⇒ xn ∈ U . Dadas topologias O e O′ num mesmo espaco V, e comumdizer que O e mais forte que O′, ou O′ e mais fraca que O, se e so seO′ ⊆ O. Deve notar-se que se uma dada sucessao converge na topologiaO, entao converge necessariamente em qualquer topologia mais fraca doque O. Indicamos a seguir dois exemplos de criterios de convergencia desucessoes, em ambos os casos determinados por topologias que nao sao emgeral definidas por metricas.(23)

Definicao 5.6.1 (Convergencia Pontual, e em Medida). Dada uma sucessaofn ∈ Fµ(X), dizemos que a sucessao converge para f

a) pontualmente, se e so se limn→∞ fn(x) = f(x), µ-qtp em X.

b) em medida, se e so se, para qualquer ε > 0,

µ (x ∈ X : |fn(x) − f(x)| > ε) → 0 , quando n→ ∞.

Escrevemos neste caso “fn ⇒ f”.(24)

Note-se de passagem que a convergencia em medida e muito utilizada naTeoria das Probabilidades, ja que afirma que a probabilidade da diferencaentre as variaveis aleatorias fn e f ser “significativa” e pequena, quandon→ ∞.

Exemplos 5.6.2.

22E comum incluir na definicao de espaco vectorial topologico outras restricoes, emespecial a de que o conjunto 0 e fechado.

23A especificacao de uma topologia determina um criterio especıfico de convergencia desucessoes, mas o criterio de convergencia de sucessoes em si pode nao ser suficiente paraestabelecer a topologia em causa, quando a topologia nao e determinada por uma metrica.

24A convergencia em medida foi definida por Riesz em 1909.

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354 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

1. Seja fn : R → R a funcao caracterıstica de [n, n + 1]. E claro que fn → 0pontualmente, mas fn nao converge para 0 em Lp(R), para qualquer 1 ≤ p ≤∞, porque ‖fn‖p = 1. A sucessao fn tambem nao converge para 0 em medida.

2. Se fn(x) = nχIn(x), onde In = [0, 1

n ], entao fn converge pontualmente e emmedida, mas nao converge em Lp.

3. Com n, k ∈ N, e 0 ≤ k < n, seja In,k =[

kn ,

k+1n

], e gn,k a respectiva funcao

caracterıstica. Reindexamos as funcoes gn,k, definindo hm = gn,k, quandom = nq + k. A sucessao hn converge em Lp, mas nao converge pontualmente.As funcoes nhn convergem em medida, mas nao convergem em Lp.

A topologia da convergencia uniforme e sempre mais forte do que atopologia da convergencia pontual, e mais forte do que a topologia de Lp,desde que µ(X) < ∞, o que e reflectido no proximo lema. Deixamos arespectiva demonstracao para o exercıcio 5.

Lema 5.6.3. Se ‖fn−f‖∞ → 0, entao fn → f pontualmente, e em medida.Se µ(X) <∞, entao fn → f em Lp, para qualquer 1 ≤ p ≤ ∞.

A topologia de Lp pode ser introduzida no espaco Fµ(X), atraves dametrica, ou distancia, d, dada por d(f, g) = min1, ‖f − g‖p. A topologiada convergencia em medida e mais fraca do que a topologia de Lp:

Proposicao 5.6.4. Dada uma sucessao fn ∈ Fµ(X), se fn → f em Lp,entao fn converge para f em medida.

Demonstracao. Fixado ε > 0, seja En = x ∈ X : |fn(x) − f(x)| > ε. Temosa provar que µ(En) → 0, e deixamos o caso p = ∞ para o exercıcio 7.

Temos fn → f em Lp, donde

‖fn − f‖p =

(∫

X|fn − f |pdµ

) 1

p

≥(∫

En

|fn − f |pdµ) 1

p

≥ εµ(En)1

p ≥ 0.

E evidente que µ(En) → 0.

Demonstramos a seguir tres resultados classicos, devidos a Riesz, Egorov(25), e Lebesgue, que relacionam alguns destes modos de convergencia. Oprimeiro destes resultados envolve a convergencia em medida e a convergenciapontual:

Teorema 5.6.5 (Teorema de Riesz). Dada uma sucessao fn ∈ Fµ(X), sefn ⇒ f entao existe uma subsucessao fnk

→ f pontualmente.

25Dimitri Egorov, 1869-1931, matematico russo, de quem Luzin foi aluno. Foi profes-sor da Universidade de Moscovo, e ocupou cargos muito relevantes, mas foi duramenteperseguido pelas autoridades sovieticas pelas suas conviccoes religiosas. Morreu no segui-mento de uma greve da fome, que iniciou na prisao.

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5.6. Teoremas de Egorov, Lebesgue e Riesz 355

Demonstracao. Fixado k ∈ N , temos

limn→∞

µ

(x ∈ X : |fn(x) − f(x)| ≥ 1

k

)= 0.

Portanto, para cada k existe um natural nk tal que

µ

(x ∈ X : |fnk

(x) − f(x)| ≥ 1

k

)<

1

2k.

Definimos:

a) gk = fnk,

b) Ek = x ∈ X : |gk(x) − f(x)| ≥ 1k, donde µ(Ek) <

12k .

c) Fm = ∪∞k=mEk, e F = ∩∞

m=1Fm, donde µ(Fm) <∑∞

k=m12k = 1

2m−1 , eµ(F ) = 0.

Se x 6∈ F , i.e., se x 6∈ Fm para algum m, entao x 6∈ Ek para todo o k ≥ m,e portanto |gk(x) − f(x)| < 1

k para k ≥ m, donde gk(x) → f(x). Comogk(x) → f(x) para x 6∈ F e µ(F ) = 0 temos que gk → f pontualmente.

Quando uma sucessao converge em duas topologias distintas, nao e ne-cessariamente verdade que o respectivo limite seja independente da topolo-gia em causa. O teorema de Riesz mostra que este problema nao existe,no caso de sucessoes de funcoes que convergem de acordo com mais de umdos criterios que mencionamos (exercıcio 2). Passamos a demonstrar umarelacao algo surpreendente entre convergencia pontual e convergencia uni-forme.

Teorema 5.6.6 (Teorema de Egorov). Se fn(x) → f(x), µ-qtp em X,e µ(X) < +∞, entao para qualquer ε > 0 existe um conjunto E comµ(X\E) < ε tal que fn → f uniformemente em E.

Demonstracao. Para cada n, k ∈ N, seja

En,k =

x ∈ X : |fn(x) − f(x)| < 1

k

.

Consideramos igualmente os conjuntos

Fm,k =

∞⋂

n=m

En,k ր Ck =

∞⋃

m=1

Fm,k, e C =

∞⋂

k=1

Ck.

E facil verificar que fn(x) → f(x) se e so se x ∈ C. Tomando k fixo, sabemosque µ(Fm,k) ր µ(Ck) <∞. Concluımos que, para cada k, existe um naturalpk tal que

µ(Ck\Fpk ,k) <ε

2k.

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356 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Consideramos o conjunto E, onde

E =

∞⋂

k=1

Fpk ,k.

Dado qualquer natural k, supomos que n ≥ pk e tomamos qualquer x ∈ E.Como x ∈ Fpk,k, concluimos que |fn(x)−f(x)| < 1

k , donde fn → f uniforme-mente em E. Por outro lado, e facil verificar que C\E ⊆ ∪∞

m=1(Ck\Fpk,k),donde se segue imediatamente que µ(C\E) < ε. Como o complementar deC tem medida nula, o resultado esta demonstrado.

O resultado seguinte relaciona a convergencia pontual com a convergenciaem medida. Mais uma vez, so e aplicavel quando µ(X) < +∞.

Teorema 5.6.7 (Teorema de Lebesgue). Se fn → f pontualmente e µ(X) <+∞ entao fn ⇒ f .

Demonstracao. Dado ε > 0, seja

En = x ∈ X : |fn(x) − f(x)| ≥ ε .

Dado δ > 0, sabemos do teorema de Egoroff que existe E ⊆ X tal quefn → f uniformemente em E, e µ(X\E) < δ.

Existe, por isso, um natural p tal que n > p ⇒ |fn(x) − f(x)| < ε, paraqualquer x ∈ E. E portanto obvio que para n > p temos En ⊆ (X\E),donde n > p⇒ µ(En) < δ.

E tradicional dizer que a topologia usual de um qualquer espaco vectorialnormado, associada a respectiva norma, e a sua topologia forte. Alemdesta, e muito comum a utilizacao das chamadas topologias “fraca”, e“fraca∗”, que se le “fraca estrela”. Estas duas ultimas sao mais fracas doque a topologia “forte”, como o respectivo nome indica, e, em geral, naosao metrizaveis. A proxima definicao indica os criterios de convergencia desucessoes que estao associados a estas topologias(26).

Definicao 5.6.8 (Topologias Fraca, e Fraca∗). Seja V um espaco vectorialnormado, e V∗ o seu dual topologico.

a) A sucessao de termo geral xn ∈ V converge para x na topologia

fraca se e so se T (xn) → T (x), para qualquer T ∈ V∗.

b) A sucessao de termo geral Tn ∈ V∗ converge para T na topologia

fraca∗ se e so se Tn(x) → T (x), para qualquer x ∈ V.

Exemplos 5.6.9.

26Mas que, como ja observamos, nao especificam completamente as correspondentestopologias.

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5.6. Teoremas de Egorov, Lebesgue e Riesz 357

1. A sucessao de funcoes fn(x) = sen(nx) converge para 0 na topologia fracade L1([0, 2π]) (recorde o exercıcio 6 da seccao 3.4).

2. A topologia fraca∗ e a usual convergencia pontual de funcoes, restrita aoespaco das transformacoes lineares contınuas.

3. De acordo com o Teorema de Riesz, se V = Lp, e 1 < p <∞, entao V∗∗ = V.Portanto, as topologias fraca e fraca∗ sao iguais em Lp∗

, desde que 1 < p <∞.

A tıtulo de curiosidade, indicamos aqui um resultado que sugere algumasdas vantagens associadas a estas topologias fracas:

Teorema 5.6.10 (Teorema de Alaoglu). A bola fechada unitaria T ∈ V∗ :‖T‖ ≤ 1 e compacta na topologia fraca∗.

Uniforme

99

99

99

99

99

99

99

99

99

99

99

99

99

99

99

99

Em Lp::

TCDL

tt

tt

tt

tt

tt

%%KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK

Pontual

Lebesgue..b a a ` ` _ _ _ ^ ^ ] ]

Egorov

@@

Em medidaRiesz

nn

Figura 5.6.1: Relacoes entre modos de convergencia

Exercıcios.

1. Suponha que fn, gn ∈ Fµ(X), α ∈ R, fn → f , e gn → g, pontualmente(respectivamente, em medida, em Lp). Prove que fn+gn → f+g, e αfn → αf ,pontualmente (respectivamente, em medida, em Lp).

2. Suponha que fn ∈ Fµ(X), fn → f , e fn → g, de acordo com dois criteriosde convergencia distintos (pontualmente, em medida, ou em Lp). Prove quef = g.

3. Suponha que fn ∈ Fµ(X), e fn − fm → 0 pontualmente (respectivamente,em medida). Prove que existe f ∈ Fµ(X) tal que fn → f pontualmente(respectivamente, em medida).

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358 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

4. Seja V um espaco vectorial normado. Mostre que se a sucessao de termo geralTn converge na topologia fraca de V∗, entao converge igualmente na topologiafraca∗.

5. Demonstre o lema 5.6.3.

6. Supondo µ(X) <∞, e f, g ∈ Fµ(X), definimos

d(f, g) =

X

|f − g|1 + |f − g|dµ.

Mostre que:

a) d e uma metrica em Fµ(X).

b) d(fn, f) → 0 se e so se fn ⇒ f .

7. Demonstre a proposicao 5.6.4, para p = ∞.

8. Os teoremas 5.6.6 e 5.6.7 sao aplicaveis em espacos σ-finitos?

9. Mostre que, em geral, a bola unitaria fechada B1(0) = v ∈ V : ‖v‖ ≤ 1nao e compacta na topologia forte. sugestao: Considere os espacos ℓp.

5.7 O Teorema de Fubini-Lebesgue

Estudamos nesta seccao versoes mais abstractas do teorema de Fubini-Lebesgue, agora aplicaveis no produto cartesiano de quaisquer dois espacosde medida (X,M, µ) e (Y,N , ν). A teoria que vamos desenvolver exige adefinicao de um espaco de medida com suporte no produto cartesiano dosespacos de medida indicados, e para isso demonstraremos o seguinte resul-tado.

Teorema 5.7.1. Dados espacos (X,M, µ) e (Y,N , ν), existe um espaco(X × Y,M ⊗ N , µ ⊗ ν) com (µ ⊗ ν)(A × B) = µ(A)ν(B), para quaisquerconjuntos A ∈ M e B ∈ N .

O caso particular deste teorema com (Y,N , ν) = (R,B(R),m) e o teo-rema 5.1.7, que estudamos a proposito da definicao de integrais de Lebesgue“em ordem a medida µ”. A demonstracao de 5.7.1 segue alias os mesmospassos da demonstracao de 5.1.7, mas usando agora os resultados da seccaoanterior sobre integrais de Lebesgue em ordem a uma qualquer medida.Fixados os espacos de medida (X,M, µ) e (Y,N , ν), definimos:

• A classe R formada pelos “rectangulos” A × B ⊆ X × Y , comA ∈ M e B ∈ N ,

• A funcao λ : R → [0,+∞] dada por ζ(A×B) = µ(A)ν(B), e

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5.7. O Teorema de Fubini-Lebesgue 359

• A classe E formada pelas unioes finitas de “rectangulos” em R, ditosnovamente conjuntos “elementares”. Deixamos para o exercıcio 1verificar que E e uma algebra em X × Y .

Lema 5.7.2. A funcao λ e σ-aditiva na classe R.

Demonstracao. Segue precisamente os passos da demonstracao de 5.1.18:Seja A×B = ∪∞

n=1An×Bn, com A,An ∈ M, B,Bn ∈ N , e os “rectangulos”An × Bn disjuntos. As seccoes (A×B)y e (An ×Bn)y, com y ∈ Y , saodadas, novamente, por:

• (A×B)y =

A, se y ∈ B,∅, se y 6∈ B.

, e (An ×Bn)y =

An, se y ∈ Bn,∅, se y 6∈ Bn.

Segue-se, mais uma vez, e por razoes evidentes, que

µ((A×B)y

)= µ(A)χB(y) e µ

((An ×Bn)y

)= µ(An)χBn(y), para y ∈ Y.

As seccoes (An ×Bn)y sao conjuntos disjuntos, e, por isso,

µ(A)χB(y) =

∞∑

n=1

µ(An)χBn(y).

Integramos esta identidade termo-a-termo, usando o teorema 5.2.19. Temosnovamente

µ(A)ν(B) =

∞∑

n=1

µ(An)ν(Bn), i.e., λ(A×B) =

∞∑

n=1

λ(An ×Bn).

Podemos alargar a definicao de λ a classe E dos conjuntos “elementares”,demonstrando o proximo lema exactamente como 5.1.19.

Lema 5.7.3. Se E e “elementar”, i.e., se E ∈ E, entao

a) E e uma uniao finita de “rectangulos” em R disjuntos, e

b) Se P = A1 ×B1, · · · , Am ×Bm e Q = C1 ×D1, · · · , Cn ×Dn saoparticoes de E em “rectangulos” em R, entao

m∑

j=1

λ(Aj ×Bj) =

n∑

k=1

λ(Ck ×Dk).

Definicao 5.7.4. Se E ∈ E e P = A1 ×B1, A2 ×B2, · · · , Am ×Bm e umaparticao de E em conjuntos de R, definimos

λ(E) =

m∑

j=1

λ(Aj ×Bj) =

m∑

j=1

µ(Aj)ν(Bj).

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360 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

E claro que a funcao λ e σ-aditiva na algebra E , e segue-se do teoremade extensao de Hahn (5.1.16) que:

Teorema 5.7.5. Existe um espaco de medida (X×Y,K, ρ) tal que R ⊆ E ⊆K e ρ(E) = λ(E), para qualquer conjunto E ∈ E.

A σ-algebra K referida acima contem a classe R, e por isso M⊗N ⊆ K.A restricao da medida ρ a σ-algebra M⊗N e a medida µ⊗ν, o que terminaa demonstracao de 5.7.1. Temos naturalmente que

(µ⊗ ν)(E) = inf

∞∑

n=1

µ(An)ν(Bn) : E ⊆∞⋃

n=1

An ×Bn, An ∈ M, Bn ∈ N.

Estabelecido assim o primeiro resultado que nos tınhamos proposto de-monstrar nesta seccao, passamos ao estudo do teorema de Fubini-Lebesguena forma aplicavel a conjuntos:

Teorema 5.7.6 (Teorema de Fubini-Lebesgue (I)). Dados espacos de me-dida σ-finitos (X,M, µ) e (Y,N , ν), e supondo que o conjunto E ⊆ X × Ye M⊗N -mensuravel, entao

a) As seccoes Ex = y ∈ Y : (x, y) ∈ E ∈ N , para todo o x ∈ X,

b) As seccoes Ey = x ∈ Y : (x, y) ∈ E ∈ M, para todo o y ∈ Y ,

c) A funcao A(x) = ν(Ex) e M-mensuravel em X,

d) A funcao B(y) = µ(Ey) e N -mensuravel em Y , e

Xν(Ex)dµ =

Yµ(Ey)dν = (µ⊗ ν)(E).

Para provar este resultado, consideramos a classe FL(µ ⊗ ν), formadapelos conjuntos em M⊗N que satisfazem todas as condicoes indicadas em5.7.6. Note que a definicao seguinte ignora as condicoes 5.7.6 a) e b), ja queestas sao satisfeitas por todos os conjuntos em M⊗N , conforme verificamosem 5.1.10.

Definicao 5.7.7 (A Classe FL(µ⊗ν)). Designamos por FL(µ⊗ν) a classedos conjuntos E ∈ M⊗N tais que:

a) A funcao A(x) = ν(Ex) e M-mensuravel em X,

b) A funcao B(y) = µ(Ey) e N -mensuravel em Y , e

Xν(Ex)dµ =

Yµ(Ey)dν = (µ⊗ ν)(E).

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5.7. O Teorema de Fubini-Lebesgue 361

Nesta terminologia, o teorema 5.7.6 e a identidade FL(µ⊗ν) = M⊗N .Mostramos a seguir que FL(µ⊗ ν) contem os conjuntos “elementares”.

Lema 5.7.8. E ⊆ FL(µ⊗ ν).

Demonstracao. Suponha-se que E = A × B e um “rectangulo”. TemosA ∈ M e B ∈ N , e sabemos que

A(x) = ν(Ex) = ν(B)χA(x), e B(y) = µ(Ey) = µ(A)χB(y).

E evidente que estas funcoes sao mensuraveis, e que

XAdµ =ν(B)

XχAdµ = ν(B)µ(A) = (µ⊗ ν)(E) = µ(A)ν(B) =

=µ(A)

YχBdν =

YBdν.

Se E e um conjunto “elementar”, temos

E =

m⋃

n=1

An ×Bn, com An ∈ M e Bn ∈ N ,

onde podemos supor que os “rectangulos” An×Bn sao disjuntos. Um calculosimples, semelhante ao que fizemos na demonstracao de 5.7.2, mostra que

A(x) = ν(Ex) =m∑

n=1

ν(Bn)χAn(x) e B(y) = µ(Ey) =m∑

n=1

µ(An)χBn(y).

A e B sao, portanto, funcoes simples mensuraveis, respectivamente em(X,M), e em (Y,N ), e temos

XAdµ =

m∑

n=1

ν(Bn)µ(An) = (µ⊗ ν)(E) =

YBdν.

Como M⊗N e a σ-algebra gerada pelos “rectangulos”, provarıamos queM⊗N ⊆ FL(µ⊗ν), e portanto que M⊗N = FL(µ⊗ν), estabelecendo queFL(µ⊗ν) e uma σ-algebra, mas esta ideia nao e facil de aplicar directamente.E mais simples aproveitar outras propriedades de FL(µ⊗ ν):

Lema 5.7.9. Suponha-se que os conjuntos En, Fn ∈ FL(µ ⊗ ν). Temosentao:

a) Se En ր E = ∪∞n=1En, entao E ∈ FL(µ⊗ ν), e

b) Se Fn ց F = ∩∞n=1Fn, entao F ∈ FL(µ⊗ ν).

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362 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

Demonstracao. Demonstramos a), deixando b) para o exercıcio 2. O ar-gumento que utilizamos e identico para as seccoes Ex e Ey, e ilustramo-lousando as seccoes Ex. Notamos como evidente que:

En ր E =

∞⋃

n=1

En =⇒ (En)x ր∞⋃

n=1

(En)x = Ex.

Consideramos as funcoes A(x) = ν(Ex) e An(x) = ν((En)x). As funcoes An

sao M-mensuraveis por hipotese, e o teorema da convergencia monotonapara medidas mostra que An ր A. Concluımos do teorema de Beppo Levique A e M-mensuravel, e

(i)

XAndµ →

XAdµ.

Como En ∈ FL(µ⊗ ν), e ainda do teorema da convergencia monotona paramedidas, temos

(ii)

XAndµ = (µ⊗ ν)(En) → (µ⊗ ν)(E).

Obtemos assim que (µ⊗ ν)(E) =∫X Adµ, i.e., E ∈ FL(µ⊗ ν).

As seguintes nocoes abstractas sao sugeridas pelo lema anterior.

Definicao 5.7.10 (Classe Monotona). Seja C uma classe de subconjuntosdo conjunto Z. Dizemos que C e uma classe monotona se e so se:

a) En ∈ C e En ր E =⇒ E ∈ C, e

b) Fn ∈ C e Fn ց F =⇒ F ∈ C.

Exemplos 5.7.11.

1. FL(µ⊗ ν) e uma classe monotona, de acordo com 5.7.9.

2. Qualquer σ-algebra, em particular M⊗N , e igualmente uma classe monotona.

3. A classe dos intervalos em R nao e uma algebra, mas e uma classe monotona.

4. Os conjuntos elementares em [0, 1] formam uma algebra que nao e monotona.

Deixamos para o exercıcio 3 a demonstracao do seguinte lema.

Lema 5.7.12. Se A e uma classe monotona, entao A e uma σ-algebra se eso se A e uma algebra.

Apresentamos no capıtulo 2 a definicao de σ-algebra gerada por umaclasse de conjuntos. Observamos agora que o mesmo procedimento pode seraplicado tambem a classes monotonas.

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5.7. O Teorema de Fubini-Lebesgue 363

Definicao 5.7.13 (Classe Monotona Gerada por S). Se S e uma classede subconjuntos do conjunto Z, a classe monotona gerada por S e ainterseccao de todas as classes monotonas em Z que contem S, e designa-seaqui mon(S).

E muito facil verificar que mon(S) e a menor classe monotona que contema classe S (exercıcio 6). Temos ainda:

Lema 5.7.14. Se S e uma algebra entao mon(S) e uma σ-algebra. Emparticular, mon(E) e uma σ-algebra que contem E.

Demonstracao. Dado E ∈ mon(S), consideramos a classe auxiliar

comp(E) = F ∈ mon(S) : E\F,F\E,E ∪ F ∈ mon(S) ⊆ mon(S).

Provamos primeiro que:

(i) Se E ∈ S entao S ⊆ comp(E) = mon(S).

Demonstracao. comp(E) e uma classe monotona (exercıcio 5). ComoS e por hipotese uma algebra,

E,F ∈ S =⇒ E\F,F\E,E ∪ F ∈ S ⊆ mon(S), i.e.

S ⊆ comp(E), e comp(E) e uma classe monotona que contem S.Como mon(S) e a classe monotona gerada por S, temos comp(E) ⊇mon(S), donde comp(E) = mon(S).

Provamos agora que:

(ii) Se E ∈ mon(S) entao S ⊆ comp(E) = mon(S), e mon(S) e umasemi-algebra.

Demonstracao. comp(E) e ainda uma classe monotona. De acordocom (i), se F ∈ S temos E ∈ comp(F ), i.e., F ∈ comp(E), e S ⊆comp(E). comp(E) e mais uma vez uma classe monotona que contemS, donde comp(E) ⊇ mon(S), e comp(E) = mon(S). Em particular,se E,F ∈ mon(S) entao E\F,F\E,E∪F ∈ mon(S), e mon(S) e umasemi-algebra.

Como S e uma algebra temos Z ∈ S, donde Z ∈ mon(S), e mon(S) etambem uma algebra. Segue-se de 5.7.12 que mon(S) e uma σ-algebra.

A demonstracao do teorema de Fubini-Lebesgue 5.7.6 e uma aplicacaomuito simples deste ultimo resultado:

Demonstracao. Limitamo-nos a observar que

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364 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

• M⊗N ⊆ mon(E), porque mon(E) e uma σ-algebra que contem E , e

• mon(E) ⊆ FL(µ⊗ ν), porque FL(µ⊗ ν) e uma classe monotona quecontem E .

Como FL(µ⊗ ν) ⊆ M⊗N , temos M⊗N = mon(E) = FL(µ⊗ ν).

Estabelecido o teorema de Fubini-Lebesgue na forma aplicavel a conjun-tos, e possıvel aplica-lo igualmente a funcoes. Consideramos a seguir o casode funcoes simples M⊗N -mensuraveis e nao-negativas.

Lema 5.7.15. Se f : X × Y → [0,+∞[ e simples e M⊗N -mensuravel,

a) As funcoes gx(y) = f(x, y) sao simples e N -mensuraveis, para todo ox ∈ X,

b) As funcoes hy(x) = f(x, y) sao simples e M-mensuraveis, para todoo y ∈ Y ,

c) A funcao A(x) =∫Y gxdν e M-mensuravel e nao-negativa,

d) A funcao B(y) =∫X hydµ e N -mensuravel e nao-negativa, e

XAdµ =

X

(∫

Ygxdν

)dµ =

Y

(∫

Xhydµ

)dν =

YBdν =

∫∫

X×Yfd(µ⊗ν).

Demonstracao. Suponha-se que E e um conjunto M ⊗ N -mensuravel, ef = χE e a funcao caracterıstica de E, donde

(µ⊗ ν)(E) =

∫∫

X×Yfd(µ⊗ ν).

De acordo com o teorema 5.7.6 aplicado a E, temos que:

• Os conjuntos Ex sao N -mensuraveis, i.e.,

• As funcoes gx(y) = f(x, y) = χEx(y) sao N -mensuraveis,

• A funcao A(x) = ν(Ex) =∫Y gxdν e M-mensuravel, e

(µ⊗ ν)(E) =

XAdµ =

X

(∫

Ygxdν

)dµ.

O resultado fica assim demonstrado para a funcao A. E claro que omesmo argumento e aplicavel a funcao B, o que termina a demonstracaoquando f e uma funcao caracterıstica.

Se f e uma funcao simples, entao f e uma combinacao linear finita defuncoes caracterısticas, e o resultado segue-se da linearidade e homogenei-dade do integral.

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5.7. O Teorema de Fubini-Lebesgue 365

O teorema de Fubini-Lebesgue para funcoes mensuraveis nao-negativase um corolario do resultado anterior, obtido aproximando a funcao f porfuncoes simples mensuraveis. A sua demonstracao e o exercıcio 7.

Teorema 5.7.16 (Teorema de Fubini-Lebesgue (II)). Se f : X × Y →[0,+∞] e M⊗N -mensuravel,

a) As funcoes gx(y) = f(x, y) sao N -mensuraveis, para todo o x ∈ X,

b) As funcoes hy(x) = f(x, y) sao M-mensuraveis, para todo o y ∈ Y ,

c) A funcao A(x) =∫Y gxdν e M-mensuravel,

d) A funcao B(y) =∫X hydµ e N -mensuravel, e

X

(∫

Ygxdν

)dµ =

Y

(∫

Xhydµ

)dν =

∫∫

X×Yfd(µ⊗ ν).

O teorema de Fubini-Lebesgue para funcoes somaveis obtem-se aplicandoo resultado anterior separadamente as partes positiva e negativa de f . Arespectiva demonstracao e ainda parte do exercıcio 7.

Teorema 5.7.17 (Teorema de Fubini-Lebesgue (III)). Se f : X ×Y → R eM⊗N -mensuravel, e mantendo a notacao do teorema anterior, temos

X

(∫

Y|gx|dν

)dµ =

Y

(∫

X|hy|dµ

)dν =

∫∫

X×Y|f |d(µ⊗ ν).

Em particular, se pelo menos um destes integrais e finito entao todos saofinitos, e f e (µ⊗ ν)-somavel. Se f e (µ ⊗ ν)-somavel entao as funcoes gx

e B sao ν-somaveis, hy e A sao µ-somaveis, e

X

(∫

Ygxdν

)dµ =

Y

(∫

Xhydµ

)dν =

∫∫

X×Yfd(µ⊗ ν).

As diferencas entre os enunciados apresentados nesta seccao e os seuscorrespondentes para a medida de Lebesgue nos espacos RN , tal como indi-cados em 3.3, resultam naturalmente dos seguintes factos:

(1) L(RN )⊗L(RM) 6= L(RN+M ), o que mostra que a teoria em 3.3 nao eum caso particular dos resultados desta seccao, e

(2) Os espacos (X,M, µ) e (Y,N , ν) nao foram aqui supostos completos.

E simples introduzir neste contexto abstracto as extensoes completas apro-priadas, definidas pelo processo que indicamos em 2.3.17.

Exemplos 5.7.18.

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366 Capıtulo 5. Outros Integrais de Lebesgue

1. A menor extensao completa de (X×Y,M⊗N , µ⊗ν) e o espaco (X×Y,K, ρ),que mencionamos em 5.7.5.

2. A menor extensao completa de L(RN ) ⊗ L(RM ) e L(RN+M ).

Podemos adaptar os resultados desta seccao usando espacos completos,e assim generalizar efectivamente a teoria desenvolvida em 3.3. A tıtulo deilustracao, e supondo que os espacos (X,M, µ) e (Y,N , ν) sao completos, oteorema 5.7.16 tem o seguinte analogo, que efectivamente generaliza 3.3.17.

Teorema 5.7.19 (Teorema de Fubini-Lebesgue (II)). Se f : X × Y →[0,+∞] e K-mensuravel,

a) As funcoes gx(y) = f(x, y) sao N -mensuraveis, µ-qtp em X,

b) As funcoes hy(x) = f(x, y) sao M-mensuraveis, ν-qtp em Y ,

c) A funcao A(x) =∫Y gxdν esta definida µ-qtp em X e e M-mensuravel,

d) A funcao B(y) =∫X hydµ esta definida ν-qtp em Y , e N -mensuravel,

e

X

(∫

Ygxdλ

)dµ =

Y

(∫

Xhydµ

)dν =

∫∫

X×Yfdρ.

E talvez mais interessante investigar ate que ponto as hipoteses basicasusadas nesta seccao (e implicitamente tambem em 3.3) sao realmente neces-sarias. Repare-se que supusemos sempre:

• Os espacos de medida (X,M, µ) e (Y,N , ν) σ-finitos, e

• A funcao f mensuravel (e somavel, se muda de sinal) em X × Y .

Vimos ja em exemplos simples nos exercıcios da seccao 3.3 que a somabili-dade de f e essencial. Nao mostraremos aqui por que razao nao podemosconcluir a mensurabilidade de f , mesmo supondo que as funcoes auxiliaresgx e hy sao mensuraveis, porque se trata de uma questao delicada, maisuma vez relacionada com os fundamentos da Teoria dos Conjuntos. E noentanto relativamente simples mostrar que o teorema de Fubini-Lebesguenao e valido se algum dos espacos (X,M, µ) e (Y,N , ν) nao for σ-finito.

Exemplo 5.7.20.

TomamosX = Y = [0, 1], sendo µ = # a medida de contagem e M = P(X), eν = m a medida de Lebesgue, com N = L(Y ). Definimos f(x, y) = 1 se x = y,e f(x, y) = 0, se x 6= y. O espaco (X,M, µ) nao e σ-finito, e deixamos comoexercıcio verificar a mensurabilidade de f , e mostrar que neste caso temos

X

(∫

Y

gxdν

)dµ 6=

Y

(∫

X

hydµ

)dν.

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5.7. O Teorema de Fubini-Lebesgue 367

Exercıcios.

1. Mostre que a classe E formada pelas unioes finitas de “rectangulos” em R(os conjuntos “elementares”) e uma algebra em X × Y .

2. Demonstre 5.7.9b). sugestao: Suponha primeiro que os espacos (X,M, µ)e (Y,N , λ) sao finitos, e depois generalize o argumento para espacos σ-finitos.

3. Mostre que a classe monotona A e uma σ-algebra se e so se A e uma algebra.

4. Verifique as afirmacoes feitas no texto nos exemplos 5.7.11.2 a 5.7.11.4.

5. Para concluir a demonstracao de 5.7.14, verifique que comp(E) e uma classemonotona.

6. Seja S uma classe de subconjuntos do conjunto Z. Recorde 5.7.13, e mostreque mon(S) e a menor classe monotona que contem S, i.e., prove que:

a) Se M e uma classe monotona que contem S entao mon(S) ⊆ M,

b) mon(S) e uma classe monotona e S ⊆ mon(S), e

c) Mostre que se S e uma algebra entao mon(S) e uma σ-algebra.

7. Demonstre o teorema de Fubini-Lebesgue nas suas versoes 5.7.16 e 5.7.17.

8. Considere o exemplo 5.7.20. Mostre que a funcao f e M ⊗ N -mensuravel,mas ∫

X

(∫

Y

gxdλ

)dµ = 0, e

Y

(∫

X

hydµ

)dλ = 1.

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Indice

368

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Indice

acontecimento, 93aditividade, 10, 15, 20

algebra de conjuntos, 19axioma da escolha, 131

B(x, r), Br(x), 52Baire

categorias de, 126

Teorema de, 126Barrow, regra de, 60Bola aberta, 52B(RN), 115

BV (I), 255

C(I), 30

Cε(I), 79cardinal, 21, 93categorias de Baire, 126Ck

c (RN ), C0(RN ), 210

classe monotona, 362gerada por, 363

cN , 77cobertura

sequencial, 140combinacao convexa, 198comprimento, 9

do grafico de uma funcao, 67

condicao de Lipschitz, 263conjunto

Borel-mensuravel, 115de Borel, 115

de Cantor, 30de Dirichlet, 31de Lebesgue, 103de Volterra, 79

de Volterra generalizado, 123

denso, 31diametro, 11elementar, 13Fσ , 115Gδ , 115Jordan-mensuravel, 27Lebesgue-mensuravel, 103mensuravel, 91µ-negativo, 222µ-nulo, 219µ-positivo, 222µ∗-mensuravel, 142nulo, 56perfeito, 34σ-compacto, 83σ-elementar, 77

conteudo, 9, 10, 15de Jordan, 27exterior, 26interior, 26

continuidadeabsoluta, 234, 263

convergenciaem medida, 353em Lp, 333pontual, 353

convolucao, 207

decomposicaode Hahn, 222de Jordan, 220de Lebesgue, 236, 320

derivadade Radon-Nikodym, 322generalizada, 245no sentido das distribuicoes, 245

369

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370 INDICE

desigualdadede Holder, 331de Minkowski, 332

desigualdade deJensen, 198

diametrode conjunto, 11

de particao, 11diferenca de conjuntos, 13Dirichlet

conjunto de, 31funcao de, 37

distribuicaode Dirac, 22, 92

de probabilidade, 246

equivalencia de funcoes, 154, 327E(RN ), 13

Eσ(RN ), 77escada do Diabo, 64espaco

de Banach, 206, 335de Hilbert, 335

de medida, 93completo, 121

finito, 93menor extensao completa, 121σ-finito, 93

de probabilidade, 93dual

algebrico, 338topologico, 338

euclidiano, 331L1, 201Lp, 329

L∞, 330mensuravel, 91

vectorial normado, 48espaco das medidas reais/complexas

em (X,M), 231exemplo de

Cantorconjunto, 30

funcao, 64

Dirichletconjunto, 31funcao, 37

Hellinger, 283Riemann, 37

Sierpinski, 136van der Waerden, 68

Vitali, 130Volterra

conjunto, 79

funcao, 83generalizado, 123

expoentes conjugados, 331

FL(µ⊗ ν), 360Fµ, 314Fµ, 328

funcaoabsolutamente contınua, 263

Borel-mensuravel, 151, 153concava, 198caracterıstica, 37

contınuade suporte compacto, 210

convexa, 198de Cantor, 64

de Cantor-Lebesgue, 64de conjuntos, 20

aditiva, 20

monotona, 20σ-aditiva, 75

σ-subaditiva, 75subaditiva, 20

de Dirichlet, 37de escolha, 132de Heaviside, 22

de Hellinger, 283de Riemann, 37

de saltos, 251de van der Waerden, 68de variacao limitada, 255

de Volterra, 83discreta, 251

equivalente, 154

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INDICE 371

escada do Diabo, 64grafico, 43

comprimento, 67Lebesgue-mensuravel, 151, 153Lebesgue-somavel, 151, 153mensuravel, 310M-mensuravel, 299µ-somavel, 299oscilacao, 52, 53parte contınua, 251parte discreta, 251parte negativa, 37parte positiva, 37regiao de ordenadas, 35Riemann-integravel, 36semi-contınua

superior, 285simples, 187sinal, 63singular, 285somavel, 310suporte de, 210variacao total, 255

funcional, 45

GE(f),ΓE(f), 157grafico

rectificavel, 67

Hellingerfuncao de, 283medida de, 285

impulso de Dirac, 22indicatriz de Banach, 259ındice-K, 173integracao por partes, 319integral

de Lebesgueem ordem a µ, 299em ordem a mN , 151

de Riemann, 36, 58de Stieltjes, 297definido

de Riemann, 45

desigualdade triangular, 38homogeneidade, 38improprio de Riemann, 70, 152

absolutamente convergente,153

indefinidode Lebesgue, 159de Riemann, 49

inferior, 39parametrico, 169superior, 39

Jensen, desigualdade, 198J (RN ), 27Jσ(RN ), 77

L(RN ), 103ℓ1, 314L1, 201Lema

de Borel-Cantelli, 97de Fatou, 166, 312de Fatou (II), 167, 312de Jordan, 256de Riesz (Sol Nascente), 269,

288Lipschitz

condicao de, 263Lµ(RN ), 237, 242

µ-qtp, 219majorante essencial, 329M(B(RN )), 232medida

absolutamente contınua, 234completa, 121, 232complexa, 91concentrada em S, 218de Borel, 236de Cantor, 249de contagem, 93de Dirac, 22, 92de Hellinger, 285de Lebesgue, 104de probabilidade, 93

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372 INDICE

discreta, 231exterior, 140

de Lebesgue, 98finita, 91interior

de Lebesgue, 101localmente finita, 239parte contınua, 250parte discreta, 250positiva, 91real, 91regular, 120, 242σ-finita, 93singular, 221suporte de, 220

medidas deBorel, 232Lebesgue-Stieltjes, 236

minorante essencial, 329M(M,C), 231M(M,R), 231Mµ, 121, 232mN , 104m∗

N , 98M⊗N , 298

NBV (I), 255norma, 48

de L1, 46, 201de Lp, 329de L∞, 215, 330

normas equivalentes, 233, 334

ωf , 53ΩR(f), 35Oscf (s), 52oscilacao

de funcao, 52, 53

paradoxo de Banach-Tarski, 132particao, 11

apropriada, 187, 188da unidade, 340diametro, 11refinamento, 12

pente de Dirac, 22, 93, 231, 251πI , 173ponto de acumulacao, 34probabilidade, 21problema

de Caratheodory, 142de Borel, 81de Stieltjes, 246difıcil de Lebesgue, 129facil de Lebesgue, 101

produto de convolucao, 207projeccao, 173

qtp, 57, 219

R, 94rectangulo, 8recta acabada, 94rectificavel

grafico, 67refinamento, 12

comum, 12reflexao, 16regiao de ordenadas, 35regra de Barrow, 60ρI , 174Riemann

funcao de, 37R+, 94

σ-aditividade, 75σ-algebra, 90

de Borel, 115de Lebesgue, 106gerada por, 115

σ-compacto, 83semi-algebra de conjuntos, 19semi-continuidade

superior, 285semi-norma, 48Sf , 248Sierpinski

exemplo de, 136soma

de Riemann, 58

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INDICE 373

inferior de Darboux, 39superior de Darboux, 39

σ-subaditividade, 75subaditividade, 15, 20

suporte de umafuncao, 210medida, 220

medida regular, 244

Teorema (de/da)Alaoglu, 357

Baire, 126Banach-Vitali, 260

Banach-Zaretsky, 266Beppo Levi, 165, 312

Beppo Levi (II), 166, 312Cantor, 81

convergencia dominada de Le-besgue, 167, 202, 314

convergencia monotona de Le-besgue, 95

decomposicao de Hahn-Jordan,226

decomposicao de Lebesgue, 279,320

diferenciacao de Fubini, 327

diferenciacao de Lebesgue, 276Egorov, 355

Fichtenholz, 268Fubini-Lebesgue, 175, 181, 207,

360, 365

Fundamental do Calculo1o, 62, 281

2o, 62, 64, 281Hahn, extensao de, 305Heine-Borel, 52

Lebesgue, 356Radon-Nikodym, 321, 322

Radon-Nikodym-Lebesgue, 321Representacao de Riesz, 342,

348, 350

Riesz, 354Riesz-Fischer, 206, 337

Vitali-Luzin, 212, 316

topologia, 333transformada de Fourier, 203

continuidade, 215translacao, 16

U(RN ), 13

variavel aleatoria, 297variacao

limitada, 231negativa, 229positiva, 229total, 228, 230, 255

Vitaliexemplo de, 130