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Melhores Cronicas de Raquel de Queiroz

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Melhores Crônicas de Rachel de Queiroz

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A segunda fase do Modernismo brasileiroestende-se de 1930 a 1945, período emque,historicamente, talvez tenhamocorrido as maiorestransformações do século XX. No planointernacional, a década inicia-se coma depressãoeconômica que se seguiu à quebra da Bolsa deValores de Nova Iorque, o avanço do nazifascismoe a eclosão da Segunda Guerra Mundial.

No Brasil, Getúlio Vargas, levado ao poderpela Revolução de 1930, consolida-se como

Modernismo – 2ª fase

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ditador, no Estado Novo. Esse foi umperíodoantidemocrático, anticomunista, emque GetúlioVargas exercia umpoder ditatorial e centralizador,até que, em29 de outubro de 1945, pressionado,renuncia.

Modernismo – 2ª fase

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O período de 1930 a 1945 vê surgir umageração dos mais significativos nomes doromance brasileiro. Assimcomo os poetas dessamesma geração, escritores como José Américo deAlmeida, José Lins do Rego, Graciliano Ramos,Rachel de Queirós, Jorge Amado, Érico Veríssimorefletiamem suas obras as mesmas preocupaçõestrazidas pelo conturbado cenário histórico domomento. Em meio a essas preocupações equestionamentos, posições mais engajadasbuscavam formar uma identidade do homembrasileiro

Modernismo – 2ª fase - Prosa

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Rachel de Queiroz nasceuem Fortaleza (CE), em1910.Iniciou-se na literatura ao publicar,aos 20 anos de idade, o romance Oquinze, umduro retrato da secacearense de 1915. Primeira mulhera ingressar na Academia Brasileira

de Letras (1977). Explorou, alémdo romance, acrônica, o teatro, a tradução e o jornalismo.Rachel Queiroz morreu em2003, na cidade doRio de Janeiro.

Rachel de Queiroz

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Crônica é um texto narrativo sobre osflagrantes do cotidiano transformados emficção,isto é, histórias curtas que aconteceramou quepoderiamter acontecido que o cronista, como seuolhar clínico, transforma emuma ficção. Pormuito tempo fizeramconfusão entre a crônica e oconto. Entretanto, essa confusão foi desfeitaquando perguntaramao mestre Mário de Andradea diferença entre os dois tipos de textos.Sabiamente, respondeu o autor de Macunaíma:“crônica é tudo aquilo que o autor acha que é uma

Crônica

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crônica; conto, é tudo aquilo que o autor acha queé umconto”.

Porém, a crônica surgiu como textohistoriográfico. Na idade média, reis, rainhas,príncipes contratavamcronistas para registraremos acontecimentos relevantes de determinadaépoca para que as gerações futuras pudessemterinformações sobre aquele período. Contudo, nemtudo o que escreviamera verdadeiro. Por isso,muitos cronistas escreviamuma pseudo-história,mentindo, omitindo, tudo para não manchar o

Crônica

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reinado daquele que o contratou. Essas crônicas,eram, na verdade, chamadas de cronicões. Em1434, o historiador Fernão Lopes foi nomeadopelo então rei de Portugal domDuarte paracronista-mor da Torre do Tombo (arquivohistórico de Portugal). Ele passou a ser oresponsável emreescrever a história portuguesa.Com carta branca do rei, Fernão Lopes procurouser o mais impessoal possível, preocupando tão-somente coma verdade histórica.

É interessante ressaltarmos que o primeiro

Crônica

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texto escrito no Brasil, a Carta, emque Pero Vazde Caminha relata ao rei domManuel odescobrimento do Brasil, é uma crônica, isto é,umpedacinho da história do Brasil.

No século XIX, aqui no Brasil, a crônicaganhou uma nova roupagem: ela não era maisvoltada para os fatos históricos, mas simpara osfatos corriqueiros, muitos deles quasedespercebidos, que tiveramrelevância nas colunasJornalísticas.

Mas foi no século XXque a crônica teve a

Crônica

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sua popularidade. Cronistas como StanislawPontePreta e Leon Eliachar fizeramda crônica umtextopróximo da anedota (e por esse motivo, ela foi pormuito tempo vista como uma sub-literatura). JáRubem Braga tratou de lapidá-la, fazendo comque se tornasse umtexto mais rico literariamente,recriando de maneira lírica situações cotidianas.Ele ganhou aliados para essa árdua tarefa deelevar a crônica ao posto de texto literário:Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, CarlosDrummond de Andrade, Rachel de Queiroz,

Crônica

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dentre outros. Tambémnão podemos nos esquecerdos autores atuais, como Lourenço Diaféria,Carlos Eduardo Novaes, João Ubaldo Ribeiro e,principalmente, Luís Fernando Veríssimo, umdosescritores mais importantes da nossa literaturacontemporânea.

Crônica

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� A crônica é texto curto, de preferência com, nomáximo, duas páginas. Por ser de leitura rápida (eagradável), o lugar preferido da crônica é o jornal.� A linguagemda crônica é a coloquial, já quetrata de situações cotidianas.� Toques de ironia e humor são indispensáveis,bemcomo umfinal surpreendente.� Os diálogos (marcados por travessões ou aspas)são frequentes, por isso emmuitas crônicas onarrador é quase inexistente.

Elementos essenciais da crônica

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� O lirismo tambémé umacaracterística da crônica,como podemos comprarnesta crônica, “Natal”,retirada de As melhorescrônicas de Rachel deQueiroz:

Elementos essenciais da crônica

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O moço da revista telefonou; estava fazendouma enquete rápida e queria saber de que Natalme recordava melhor. Fiquei pensando, pararesponder direito e verifiquei, envergonhada, quenão recordo Natal nenhum. Natal de infância, nãotenho saudades. Não gosto de infâncias e, poroutro lado, meu coração não é dado ao pitoresco.Natal de adulto... Bem, basta dizer que não tenhosorte emNatal. Se me esqueço é defesa, porque orecordar não vale mesmo a pena.

Se, como dizia Santo Agostinho (era mesmo

Crônica – “Natal”

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Santo Agostinho?), “os sofrimentos são oscachorros de Deus”, as celestes matilhas, quandochega o Natal, consideramaberta a temporada decaça – sendo que a caça sou eu...

*Portanto, Nosso Senhor Menino, enquanto

os outros, no Natal, pedemdinheiro ou alegria, eusó lhe peço uma trégua. Não me tire mais nada,não me diminua a pouca pobreza, senão que seráque fica?

Vejo ao meu redor, olhe como está tudo

Crônica – “Natal”

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despovoado. (Se eu tivesse medo de fantasmas,hem, Menino Jesus?). Tanto que eu tinha e hojetenho tão pouco. Quer dizer que, ou você me deude má vontade, ou, depois de dado, arrependeu,vendo que eu não merecia. De qualquer forma,tomou

*Sua festa de Natal, tão bonita, Menino.

Anjinhos barrigudos, presepes, meu Deus,presepes! Presepes e pastorinhas. Pode haverneste mundo palavra mais linda do que

Crônica – “Natal”

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pastorinha?“Ó vinde, vinde, ó colibris!

Com as lindas faixas bordadas a couro!”São os ecos do Natal, vozes de outros que

escuto à distância, pois minha voz, rouca dechoro, jamais pôde cantar as alegrias doNascimento.

Este ano, a começar deste ano, já não faloem cantar, mas pelo menos me deixe ouvir,Menino!

*

Crônica – “Natal”

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No me peito temum bosque e no bosqueuma pessoa. Meu de meu, meu sozinho, meu semoutro dono, hoje emdia só possuo essa pessoa. Nobotequimo conheci – não era Natal, naturalmente.Era carnaval. Sentado atrás da garrafa, tranquilo,belo e orgulhoso. Parecia que estava à minhaespera.

E daí para cá, temos ficado tão quietos, tãohumildes. Comum pouco de sol, uns cachorros,um gato, umas árvores e umautomóvel, fazemosa nossa alegria. Há outros que lhe importunam

Crônica – “Natal”

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muito mais, Menino, e você não se zanga nemcastiga. Aí, tenha dó, Menino Jesus. Sua mãozinharosada, erguida sobre a palha do presepe como umjasmim cor-de-rosa, sua mãozinha — a ela nãopedimos nemo ouro nema prata nemo sangue deAragão. Como o filho-bomda história, só lhepedimos a sua benção. Está tudo aí, no mundo,brilhando, chamando, e nós nemqueremos. Nada,nada, nada. Nada queremos que nos acrescente.

Só pedimos e rogamos que não tire mais;

Crônica – “Natal”

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que não mingue isto que, sendo pouco,tambémé pouco.

QUEIROZ, Rachel de. Amém, Menino Jesus. p.140-142.

Crônica – “Natal”

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As melhores crônicas de Rachel de Queirozé uma reunião das seguintes obras da autora: “ADonzela e a Moura Torta”; “100 CrônicasEscolhidas”; “OCaçador de Tatu”; “OHomemeo Tempo”; “As Terras Ásperas”; “Falso Mar,Falso Mundo”.

No prefácio da obra, a crítica HeloísaBuarque de Hollanda, escreve:

“Com grande frequência, as crônicas deRachel logo de início abremum espaço de

Análise

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intimidade e proximidade quase presencial comoleitor. Na crônica “O senhor São João”, elajustifica a escolha do tema de sua crônicadizendo: “Dois amigos me sugeremuma crônicasobre o ‘são-joão no Norte’, comemorando o diado Santo Batista. Essa sugestão me dáoportunidade...”. Em “Saudades do carnaval”,interrompe a narrativa para explicar-se melhor:“Ninguémestranhe se eu falo muito emcondutor,porque é em torno de bonde, condutor emotorneiro que gira quase todo carnaval da Ilha”(...).

Análise

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Outras vezes, comenta o momento políticosem, entretanto, fugir de sua chave narrativa. É ocaso de crônicas como “Morreu umexpedicionário” sobre o peso da sombra e dosefeitos da guerra no espaço privado, ou mesmo de“Retrato de um brasileiro”, tipo infeliz nosamores, morador da Ilha, criador de galos de brigadiante do qual, de repente,“abre-se umaperspectiva agradável: descobriu emsi certovalor econômico, inutilizado nesses dez anos deditadura: a sua qualidade de eleitor”(...)

Análise

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De fato, o convívio coma série de crônicasescritas por Rachel traz ao leitor a sensação de umdesdobrar de casos articulados menos por temasdo que por uma atitude sensorial de narrar, poruma falta de pressa, por umcontar sossegado, notempo do sertão. Em“Sertaneja”, a perspectivadiferenciada da vida no sertão árido, bemcomoumcorrer de tempo bastante próprio, são descritoscomprecisão. “Já aqui no sertão os homens a bemdizer se preocupammais como céu que comaterra. Pois não vê que é do céu que depende tudo

Análise

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cá embaixo, fartura ou fome; vida ou morte? Enão é metafisicamente mas objetivamente mesmo.Cearense nenhumé capaz de passar todo umdiasemestudar o céu comangústia ou alegria. (...)

Há ainda umdado no desenrolar de suascrônicas/ casos que não é desprezível. Não raro,uma crônica puxa a outra, personagens de umareaparecememoutra e assimpor diante, como em“Rosa e o fuzileiro”, uma de suas inúmerashistórias de amor interdito. A crônica relata o caso

Análise

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de uma moça perdidamente apaixonada pelofuzileiro naval de“dólmã vermelho e casquetecomfitas” e que é violentamente agredida por seupai que se opunha, ferrenho, aos amores de Rosa.Sete meses depois, na crônica “Vozes d’África”, ahistória de Rosa é recontada do ponto de vista dopai (...)

É notável e sempre digna de registro suahabilidade ímpar no jogo de ideias e delinguagem. Essa habilidade, aliada ao desenho

Análise

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sensível de sua longa trajetória de vida, fiocondutor do conjunto de suas crônicas, tornamacronista Rachel de Queiroz do mesmo porte que aficcionista, a primeira grande voz do modernismobrasileiro” (p.11-18).

Análise

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Resumo

Selecionamosvárias crônicas decada uma das obrasreunidas emMelhores crônicas,resumindo o seuenredo:

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Resumo

A donzela e a moura torta

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Rachel conta de sua amizade quandomenina comum funcionário do curtume de seupai em Belém do Pará. Tempor este “Catalão”grande admiração e anos depois de separarem,Rachel fica sabendo que ele, revolucionário,morrera na guerra da Espanha:

Mas embora hábil emfazer-se escutar, omeu herói desdenhava a amizade doscompanheiros — sempre só, “áspero e intratável”como o cacto do poeta. Não sei por que, tomoupor mimuma estranha amizade. Talvez porque eu

O Catalão

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era a única criança que andava ali por perto;talvez porque, enjoado dos homens, só tolerasse acompanhia das crianças.

QUEIROZ, Rachel de. As melhores crônicas de Rachel de Queiroz. p. 23.

O Catalão

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Artistas e muitos animais circenses emviagemde navio comsua banda e suas histórias,por semanas alegrama “solitária extensão do SãoFrancisco”:

Um circo é umconglomerado de famílias;cada grupo de artistas é realmente umcompostolegal de pai, mãe, filharada. E a coisa se explicafacilmente: as crianças têmque ser treinadasdesde pequeninas nos diferentes exercícios; umamenina de oito anos, por exemplo, já é velha paraaprender deslocamentos. Tão longo período

O grande circo zoológico

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preparatório representa umenorme capital, etempo, e paciência.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 27-28.

O grande circo zoológico

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Comemoração do centenário de nascimentodo santo de Juazeiro – o padre Cícero RomãoBatista:

O padre Cícero começou sua vida desacerdote lá mesmo no Juazeiro, recém-saído doseminário. Aliás, custou-lhe muito ser padre;quase o não ordenam. Os mestres alegavamque orapaz era esquisito e mentia. Mas quemsabe sementia realmente? As histórias do céu sempreparecemmentiras a quemsó pensa na terra. Edepois, dentro da alma de umhomem, quemtem

O Padre Cícero Romão Batista

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poder para traçar o limite entre a verdade e amentira?

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p.35.

O Padre Cícero Romão Batista

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Rachel sonha comuma casinha na Ilha doGovernador (a Ilha Fiscal que ainda lembra doúltimo baile do Imperador). Quando vai fazer umavisita ao local, descobre que por lá tudo já temdono:

Mas, ai de mim, a casa temdono. E vamosdescobrindo, magoados, que tudo temdono!Donos ferozes, ciosamente apegados aos seusdireitos de posse, não vendem, não dão, nemsequer alugam. São donos, pronto. E tudo é deles!

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 43.

Diálogo das Grandezas da Ilha do Governador

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Guiomar Lopes encontra-se comMouraTorta (sofria de umestrabismo ligeiro, por isso asamigas a chamavamassim) numinternato defreiras. As duas moças eramfilhas de famíliasinimigas. Apesar de seremtodos primos, netos damesma avó, as famílias começaramcominimizade devido à herança deixada pela velharica:

— Sei pai morreu, Moura Torta... E morreupor mão de gente minha. Foi direto pro inferno,porque morreu semconfissão. Laurindo ao menos

A Donzela e a Moura Torta

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foi morto quando saía da igreja, ainda coma rezana boca... E como morreu sei pai, hão de acabarvocês todos; de umem um... Pensava quematando Laurindo acaba coma semente dosLopes... Pois meu pai já mandou buscar noAmazonas o meu primo Luís Lopes, irmão deLaurindo — irmão de Laurindo, ouviu? — e eume caso comele no mês que vem. E só vou viverpara botar filhos no mundo, ensinar a eles apegar emarma e liquidar coma raça de vocês,por fogo ou por ferro frio...

A Donzela e a Moura Torta

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A freira girou, então. Acorreramas outras,libertaram a presa; e enquanto Guiomar eraarrastada para fora, a Moura Torta bradou dasua cama:

— É bom que você saiba uma coisa,Guiomar Lopes: que não é só a sua barriga quehá de dar filho, não!

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 55.

A Donzela e a Moura Torta

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Um rapaz de bomcoração, que quasemorreu afogado no mar, aos onze anos de idade,interessava-se por futebol, trabalhou nos Correiose Telégrafos e quando veio a guerra apresentou-secomo voluntário e acaba morrendo como umherói:

Sim, porque só pensava emmorrer no mar.Quando atravessou todo o grande oceano semque os submarinos lhe alcançassemo navio,respirou tranquilo. Possivelmente lhe haviamficado terrores subconscientes do quase

Morreu um Expedicionário

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afogamento na infância. Só sei que, ao pisar noporto italiano, parecia-lhe já haver ganho aguerra.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 64.

Morreu um Expedicionário

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Rosa, uma mulata de quinze anos, muitobonita, “cabeça dura e coração mole”, interessa-sepor um fuzileiro naval galanteador. O pai damoça, que é ummata-mosquitos é tambémhomemfardado (de sempre que não é só mosquitoque ele mata não), que se impõe entre Rosa e seusamores e, desta vez, todos esperaminquietos pelodesfecho violento desse drama:

É homemfero: usa uma farda pacífica demata-mosquitos, a qual, entretanto, no corpo deleé mais belicosa do que uniforme de tropa de

Rosa e o Fuzileiro

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assalto. Quando sai, todo de cáqui, comabandeirinha amarela e a lata de petróleo na mão,parece mais um guerreiro que um mata-mosquitos.QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 72.

Rosa e o Fuzileiro

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Uma comunidade de negros vive isolada esão quase auto-suficientes. Contam-se histórias dodia a dia na comunidade e de antepassados daÁfrica e há umretorno à história de Rosa (aquelaque envolve-se como fuzileiro), que depois deapanhar muito de seu pai, o “Mata”, acaba sendoacolhida em sua própria casa comos filhosgêmeos que teve como fuzileiro:

Realmente, da segunda vez Rosa ficou cheiade marcas da fivela. Uma vizinha, vendo aquilo,falou emir ao distrito dar parte. Bobagem. Quem

Vozes D’África

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tem lá coragemde apresentar queixa contra oMata? Só a madrasta de Rosa, que tambémserevoltou, teve boca pra dizer:

— Por que você só espanca a menina,criatura? Por que não pega tambémo sujeito?Mata deu uma resposta muito digna:

— Não vou sujar minhas mãos.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 83.

Vozes D’África

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Resumo

100 CRÔNICAS ESCOLHIDAS

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José Alexandre, o solitário do junco, viveupor quase trinta anos emextrema solidão,escondendo-se de todos. Só cultivava relaçõescom Mané Ramos, o guarda-chaves da estação e,ainda assim, só quando o ermitão precisava de sal,fumo e rapadura. Diziamque estava ali escondidopor crime que praticara, mas ninguémnuncasoube sua história. E morreu ali, “semamigos,semamores, semmulher nemfilho”:

(...) Foi desse modo que o vi, certa vez,decerto porque ele achou que uma menina não

O solitário

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fazia tanto medo quanto umadulto. Meu paigritou, e de repente saiu de uma moita próximaumcaboclo hercúleo, de grande barba lhe caindopelo peito; vestia uma calça velha já viradatanga, e tinha na mão umchapéu de palha emfarrapos. Quando falou, dando bom-dia, a voz lhesaiu rouca como a de umbicho que aprendesse afalar.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 94.

O solitário

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Um pequeno fazendeiro morava comsuafilha de doze anos. Coma chegada da seca de1915, o homemvê-se forçado a vender o que tinhapara livrar-se da penúria emque estavamvivendo.Tendo vendido tudo, o homem, a fimde acertaruns últimos negócios, viaja deixando a filha emcasa, prometendo regressar no dia seguinte. Ànoite, a casa é assaltada por umvizinho (emcujacasa o pai da menina recomendara-a quedormisse) à procura dos seiscentos e quarenta mil-réis da venda da fazenda. Tendo a menina

O caso da menina da estrada do Canindé

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reconhecido o malfeitor. Este, quando vai enforcá-la para que não o denuncie, acaba se enroscandono laço que preparava para a inocente menina emorre enforcado, o desgraçado, pela forca que elepróprio preparava:

Quando o dono da casa chegou de manhã,achou a porta aberta, o enforcado já duropendurado da corda e, na rede, toda amarrada, amenina dormindo, como rosto inchado de pranto;respirava entretanto tão serena que o pai logoconheceu que nada lhe acontecera. Era como se a

O caso da menina da estrada do Canindé

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pobrezinha nãohouvesse saído nemum instante debaixodas asas do seu anjo-da-guarda.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 103.

O caso da menina da estrada do Canindé

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Num baile da primavera, numclube desubúrbio, uma linda morena foi eleita princesa domês de maio. Quemteve a honra de ser seu par, nahora da valsa, foi ummilitar. Naquele dia, eleainda não havia se apaixonado, apesar de repararna beleza da moça. Numencontro seguinte,começaramum romance, mesmo sabendo ela queele era extremamente ciumento. Numfinal desemana que o casal sai para umpiquenique, acabadesaparecendo misteriosamente durante um

A princesa e o pirata

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passeio de canoa:O homemdo restaurante emPaquetá é que

estranhou o seu bote aparecer emborcado. E,como se disse no princípio, só depois de váriosdias é que os peixes e a maré devolveramos doisbanhistas.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 110.

A princesa e o pirata

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Um menino que visita pela primeira vezuma casa comquintal, comárvores frutíferas eroseiras se surpreende a cada momento, pois viviaem apartamento de cidade grande.“Nativo daZonal Sul, natural que pense que as flores elegumes nascemnas barracas”:

Fi-lo subir na goiabeira. Como bracinhogordo a dobrar o ramo ele próprio apanhou afruta. Em seguida desceu — não semtentarbalançar-se um pouco, e fez questão deescorregar sozinho pelo tronco liso, embora

Conversa de menino

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esfolasse ligeiramente a mão. E não houvemaneira nemmeios de o fazer morder a goiaba(já a essa altura lhe sabia o nome certo). Eleexplicava: “Esta goiaba é minha. Não possocomer ela porque ela é minha. Fui eu que tirei. Secomer estraga”. Insistia, ante a obtusaincompreensão da gente grande: “Fui eu mesmoque arranquei do lugar”. Feito memorável,portanto, que lhe conquistara aquele souvenir, oqual não poderia ser mordido, quanto mais

Conversa de menino

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comido, já que deveria ser conservado pelosséculos dos séculos.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 115.

Conversa de menino

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Setembro de 1950, numbotequimem Paris,chegame saempoetas, existencialistas, boêmios etodos os tipos de embriagados. Jimmy é umdeles,que depois de usar seus dotes de conquistadorcom uma e outro frequentadora do bar, é puxadopela gola por uma mulher magra e impaciente quechega e o leva embora de táxi:

(...) Jimmy se apaixona à primeira vistapela quarentona de perfil clássico. Faz-lhe gestos,lá do balcão. Recita Verlaine comsotaque: e silvaum psiu enérgico contra a poetisa que ainda está

Jimmy

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na lengalenga do “coeur sur la tête”, enquanto osoutros dão risada e a mulata fica empé e sedespede. Poréma morena não olha para Jimmy,bebe o vinho e acende umcigarro, Jimmy sedesprega do balcão, aperta a bengala ao peito echega à segunda mesa: “Madame, je vais vousdire des insolences, mais três gentiment...”.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 121.

Jimmy

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Um pai que saiu de sua fazenda para visitara do filho é convidado a fazer uma farta refeição.Terminada esta, o velho, como de costume, comeum punhado de farinha seca. O filho, que recebiadois vizinhos à mesa, fica irado coma risadadebochada deles ao veremo pai do moçocomendo farinha seca depois de tão farta refeição.O filho manda que tragammais comida e obriga opai a comer. O velho amaldiçoa o filho e vaiembora para casa, caindo morto mesmo antes deapear da besta. O filho, a partir daquele dia, nunca

Um punhado de farinha

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mais consegue comer nada, só farinha seca. Até odia em que não aguentando de fraqueza teimouem comer mais umpunhado de farinha e morreuengasgado, coma língua de fora, roxo feito umenforcado:

(...) Era ver umenforcado; e o povo diz queé assimmesmo: maldição de pai à forca leva.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 133.

Um punhado de farinha

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Tipos humanos diversos superlotamasareias nemsempre muito limpas da praia doFlamengo, no Rio, emmeados de 1950:

A toda essa gente, a água da enseada,tranquila e discreta (porque não muito limpa),recebe, embala e diverte. E coma águacolaboramo céu claro, a vista enternecedora deuma vela de iate dobrando o Pão de Açúcar, umrisco branco de gaivota cortando ao ar, o calor,as cócegas da areia e dos seus bichinhos, porsobre os ombros nus dos banhistas, estirados ao

Praia do Flamengo

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sol.E tudo de graça. Sim, tudo completamente

de graça — nemse acredita — benza Deus.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 139.

Praia do Flamengo

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Ser feliz para o caboclo nordestino não é tercoisas, é ter liberdade, não precisar trabalharobrigado. Os caboclos herdarama natureza doíndio: não guardamcoisas, “o que se compra épara usar, gastar, jogar fora”. Não se preocupamcom trastes da casa, mas não dispensamo queconsiderama expressão de luxo e abastança: umvidro de perfume, uma boa sanfona, umdente deouro ou dentadura postiça e as joias (brincos paraas mulheres e anelões para os homens). Gostamde dançar, ouvir música. Namoramsobriamente.

Felicidade

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Adoram aluá (bebida feita commilho ou arrozfermentado), doces, rapadura e cachaça:

(...) Mas, acima de tudo, gostamdesta terravelha, ingrata, seca, doida, pobre; e nisso estoucomeles, e só por cima dela temos gosto emtiraros anos de vida, e só debaixo dela nos saberá bemo descanso, depois da morte.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 146.

Felicidade

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A chegada (nascimento) de Flávio – “opequenino estranho” — causa o profundoenternecimento e deslumbramento natural emtodos da família. Rachel, que é a avó torta, sofrede apaixonada cegueira pelo bebê como se foraautêntica avó:

(...) E contudo declaro, comtoda humildadee sinceridade absoluta, este fato realmenteespantoso: como pode nascer de uma famíliamédia brasileira, semnada de excepcional, semgênios nempríncipes no seu seio, apenas honestas

O estranho

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pessoas tementes da lei, amantes do trabalho erespeitosas do catecismo moral e cívico, como éque nesta família, afinal de contas nemmelhornem pior do que a maioria das famílias, podenascer um meninozinho tão lindo, tãoextraordinário, tão maravilhosamente alentoso,belo, excepcional?

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 153.

O estranho

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Resumo

O CAÇADOR DE TATU

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Aqui, Rachel nãofaz uma crônica, mas dáum depoimento,contando de algo que viuno céu, a 4 de junho, de1960, e não estavasozinha quandoaconteceu a visão.Muitas outras pessoastambém viram. Ela,cautelosa, narra assim:

Objeto voador não identificado

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Que coisa seria essa que ontemandava pelocéu, coma sua luz e o halo? Acho que, para adefinir, o melhor é recorrer à expressão jácautelosamente oficializada: objeto voador nãoidentificado. Mais, não afirmo. Porém, isso eleera. Não era uma estrela cadente, não era avião,não, de maneira nenhuma. Não seria nenhummeteoro, nenhuma coisa da natureza – comaquela deliberação no voo, comaquelescaprichos de parada e corrida, comaquele jeitode ficar peneirando no céu, como uma ave. Não,

Objeto voador não identificado

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dentro daquilo, animando aquilo, havia uma coisaviva, consciente.

E não fazia ruído nenhum.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 158-159.

Objeto voador não identificado

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Rachel declara toda a sua admiração e amorà cidade de Nova Iorque:

Nova Iorque, quemé teu povo? Esses ruivosjudeus, esses crespos porto-riquenhos, essesitalianos gesticulantes, esses negros desdenhosos,esses germanos e saxões de ar inseguro? Esseschineses, filipinos, franceses, noruegos — ou eu,sul-americana — já que piso nas tuas calçadassem medo, mas comum fundo sentimento deaventura, porque, alémde bela e imensa, ésimpossível; sim, meu coração me diz que és

Pequena cantiga de amor para Nova Iorque

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mesmo impossível.Ah, Nova Iorque, prisioneira gigante da ilha

de Manhattan, encadeada comaquelas brutaspontes de ferro preto. Te amo. Te amei logo, NovaIorque.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 172.

Pequena cantiga de amor para Nova Iorque

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Essa é a história que o compadre ManuelVieira, o Vieirinha, conta de umcaçador de tatu,que saiu certa vez para caçar e “a noite foi boa,pegou uns tatus verdadeiros e mais três pebas”,mas quando voltou à fazenda para arrear suajumenta que lá havia deixado e voltar para casa,surpreendeu-se coma dificuldade para arrear oanimal. Mesmo estando o animal possesso, ocaçador montou, saindo emdisparada. Quando ohomemse deu conta “estava trepado comanimale tudo bemno olho de uma aroeira”. Quando o

Caçador de tatu

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dia clareou, o homempercebeu que estavamontado era numaonça, que havia comidoa jumenta e, de barrigacheia, permanecera no

Caçador de tatu

curral “mas bemque lhe pareceu que a jumentaestava diferente”:

(...) Ele tateara o bicho no escuro, sabia lá seera onça! Tinha deixado ali uma jumenta, passoucabresto e cangalha no que achou.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 178.

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Resumo

O HOMEM E O TEMPO

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“Netos são como heranças: você os ganhasem merecer. Semter feito nada para isso, derepente lhe caemdo céu”. Quando os filhostornam-se homens e mulheres, acontece para amãe deles a nostalgia da mocidade: não de amoresnemde paixões, mas da presença infantil ao redor.Então, o amor que se acumula, que fica recalcadose manifesta por aquela criança que chega, semdor e semchoro, “como o símbolo ou penhor damocidade perdida”:

(...) a mãe e a avó, representam, emrelação

A arte de ser avó

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ao neto papéis muito semelhantes ao da esposa eda amante nos triângulos conjugais. A mãe temtodas as vantagens da domesticidade e dapresença constante. Dorme comele, dá-lhe decomer, dá-lhe banho, veste-o. embala-o de noite.Contra si tema fadiga da rotina, a obrigação deeducar e o ônus de castigar.

Já a avó não temdireitos legais, masoferece a sedução do romance e do imprevisto.Mora emoutra casa. Traz presentes. Faz coisasnão programadas. Leva a passear, “não ralha

A arte de ser avó

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nunca”. Deixa lambuzar de pirulito. Não temamenor pretensão pedagógica. É confidente dashoras de ressentimento. O último recurso dosmomentos de opressão, a secreta aliada nas crisesde rebeldia.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 183

A arte de ser avó

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No Rio de Janeiro, em1961, uma jovemdedezessete anos fica grávida de umrapazigualmente menor de idade. A mãe quer que osdois se casem, mas a moça irresoluta diz que querser aeromoça ou modelo, profissões que não“permitem” casamento. Se a mãe parar de insistir,dizendo que o casamento é para o bemda honra, ese responsabilizar por tudo até a emancipação dafilha, se a moça não der certo como modelo,sempre pode tentar o rebolado:

(...) Minha mãe foi logo avisar ao pai dele

Tragédia carioca

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que ia dar queixa na polícia, mas o pai dele temum irmão que trabalha no Fórume ele explicoupara minha mãe que se nós déssemos queixa dogaroto eles davamqueixa de mim— que eletambém sendo menor o crime é recíproco. Asenhora sabia que nesses casos temcrimerecíproco? Pois é.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 190.

Tragédia carioca

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Você me peça a Lua que eu te dou a Lua,meu bem, mas dez mil cruzeiros não pode ser. Agente na vida temque tomar o costume de desejaro impossível, porque o possível é muito maisdifícil. O impossível, como não se alcança nuncaacaba se dizendo que afinal eramsonhos, e osonho é no sonho que fica. Já o possível a gentepensa que se quisesse mesmo, se tentasse e fizesseforça... e aí começa a amargura.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 195.

AssimRachel de Queiroz inicia esta crônica

O brasileiro perplexo

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de 1963. Ao longo damesma, deixatransparecer toda umaperplexidade comrelação à política e apolíticos e fecha citandoa inflação, assunto quealiás, quer evitarcomentar.

O brasileiro perplexo

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Um escritor em busca irrefreável dasinceridade, acaba não enxergando o sagrado.Esteja onde for, ele observará tudo que lhe possaser útil à sua escrita. A despeito do ofício ou porcausa disso não se considera igual aos seus,sentindo-se umpríncipe, ainda que ande roto ecomfome e, quando escritores não queremou nãopodemaparecer emprimeira pessoa “transferemaum personagemsupostamente imaginário aquiloque eles não têmcoragem de contar de sipróprios”:

Nada é sagrado

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Ele, por isso, diz que é ‘sincero’ e as gentes,os leitores, lhe batempalmas pela sinceridade. Eentão aquela sinceridade votada ao aplauso (oufilha de uma irrefreável necessidade de exibir-se?) cada dia mostra mais, ignora qualquerlimite. Alega que o público ‘quer ver tudo e sabertudo’. e o homemque escreve vai-se despindo atéo último pano, igual à rapariga do ‘striptease’que pouco a pouco arranca a roupa do corpobonito.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 204.

Nada é sagrado

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A primeira vez que o menino viaja de avião:a aventura, as novidades, as descobertas, o novovocabulário... A sua grande satisfação e alegria:

(...) A aeromoça calçou as luvas e o meninoa cumprimenta solenemente. Suspira:

— Nunca mais vou me esquecer desteavião!

E se encaminha para a escada, o primeiropassageiro a descer, a enfrentar a aventura novaque será a descoberta da cidade.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 21

O menino e o carevelle

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Uma viagemde barco pelo rio Amazonasfaz pensar naquela quantidade imensa de água eno fato de “que o homemamazônico é, a bemdizer, umanimal aquático”. Mesmo andando porlá dias e dias, ninguémconsegue desvendar omistério amazônico:

Por toda parte, água; barrenta no rio-mar,dum sépia transparente no Tapajós, dumpreto devidro esfumado no rio Negro. E os horizontes.Fora do mar, nunca vi tanto horizonte. Decertopara compensar da floresta, onde horizonte

Ai, Amazonas

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nenhumexiste, só a abóbada vegetal sufocando osviventes.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 219.

Ai, Amazonas

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Fala da origemda origemdos sobrenomesno Brasil: os que vieramde apelidos; os quetinham como base os patronímicos; os nomes deárvores; de bichos; de descendentes de nobres doImpério, que não podendo herdar o título,herdavama terra – Ouro Preto, Jaguaribe, RioBranco...

Está aí umestudo para se fazer. A genteprocura resolver os mistérios da Lua e Marte, mascom os mistérios que pululamao nosso redorninguémse preocupa.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 224.

Os sobrenomes

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O sítio de veraneio de nome Pici foi ondeRachel escreveu o seu primeiro livro, “OQuinze”.Do lugar, a escritora guardava boas lembrançasdos amigos que frequetarama grande casaconstruída por seu pai. Mas depois que elemorreu, veio a guerra e os americanosestabeleceramuma base militar lá perto. Enquantoa cidade crescia emtorno do sítio, a mãe deRachel tentava valentemente permanecer “mas ocerco urbano se apertava”. O sítio foi vendido erestaramsó as lembranças:

Pici

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Não, nunca mais quero ir lá. Ninguémdesenterra umdefunto amado para ver como éque estão os ossos.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 230.

Pici

A Casa da Rachelde Queiroz é um patrimôniodo povo, foi tombada em 22de outubro de 2009``Decreto Nº 12.582/2009``pela Prefeita Luiziane Lins.

O Sítio Pici foiadquirido por Daniel deQueiroz, pai da escritora, em1927 e ali a Rachel escreveuseus primeiros textos.

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Estando a sede do Planalto Central numalocalização temerária (distante do Rio, São Paulo,Recife, Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza,Curitiba, Manaus e todas as outras), ficamoshomens públicos, como “eternos volantesviajores, emdeslocamento frenético para todas asdireções da rosa-dos-ventos”:

E afinal esses homens precisamdas duashoras de sono, de comer, beber, olhar o céu, aterra em redor, brincar comas crianças. Ler!

Brasília e a rosa-dos-ventos

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Terão esquecido que tambémsão de carne comonós?

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 236.

Brasília e a rosa-dos-ventos

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Resumo

AS TERRAS ÁSPERAS

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Fazer jornal écomo alimentar umafera: “o jornal é ogrande tirano”, mas“quem dá a sentençade vida ou morte”,“quem boceja ou

Uma simples folha de papel...

aplaude” é o público e o jornal acaba como osolícito e humilde serviçal. Umromance, umconto podemesperar para seremescritos, assimcomo um poema só nasce quando bementende;

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mas o jornal, ele não! Vive de cotidiano, todo obemou o mal pode nascer de uma folha de diário.Pode até desencadear guerras — “o papel (nocaso, o jornal) leva a tudo”:

(...) Um telegrama falsificado, uma fraseapócrifa, já desencadearamguerras. E continuamdesencadeando.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 244.

Uma simples folha de papel...

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Em 1992, o baiano Jorge Amado completaraoitenta anos. Rachel de Queiroz lembra-se comsaudades dos tempos emque eles, jovens, seconheceram no Rio. Depois, Rachel recém-casada, vai morar como marido bancário naBahia, quando os seus laços fraternais comJorgeAmado e sua família (João Amado e DonaEulália) se estreitam:

Só o famoso artigo treze, do regulamento doPartidão, viria anos mais tarde nos distanciar,proibindo o convívio dele, stalinista, coma

Jorge Amado, oitenta anos

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“canalha trotskista”queéramos nós. Não podiamnem nos cumprimentar narua. foi umbaque.

Talvez o patriarcaglorioso das nossas letras selembre ainda desses temposantigos e inocentes. E sintauma pontada de saudade.Como, enternecida, sinto eu.

Jorge Amado, oitenta anos

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 253.

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Para Rachel, os amigos que já estão commais de setenta anos, assimcomo ela, já estão aperigo, pois as “engrenagens corporais vêmbatendo pino”. Muitos de seus amigos estãopartindo, como Paulo Rónai, de quemse lembracom grande admiração e depois de fazer umtributo a José Olympio, se despede do grandeamigo: “Au revoir, mano velho, me espera que jáestou na contagemregressiva, já fiz 82...”

(...) E o que a gente podia ter dito e nãodisse, o gesto de afeto que podia ter feito e ficou

A contagem regressiva está correndo

Page 100: Melhores Cronicas de Raquel de Queiroz

no ar. Ah, é muito triste essa derrubada. Oconsolo é que talvez, embreve, a gente tambémsevai. Cada umtema sua vez de fazer doer aos queficam.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 255.

A contagem regressiva está correndo

Page 101: Melhores Cronicas de Raquel de Queiroz

Resumo

FALSO MAR , FALSO MUNDO

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Resumo

Para o último livrodesta antologia,Falso mar,falso mundo, foramselecionados os temascentrais de várias de suascrônicas:

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Falso mar, falso mundo

Principais temas

Consciência ecológica: Acaatinga gelada, réplica danordestina:

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Em plena Berlim Ocidental descobri —quemdiria? — a caatinga nordestina emréplica,como gêmeos univitelinos. A mata baixa que nãotem mais árvores seculares, abatidas que foramvirar carvão durante os invernos de guerra. Sim, amata é baixa como a nossa, os troncos nãochegama umpalmo de diâmetro, dão no geral degarrafa, a garrafa e meia. Nemuma única folha,só galhos secos, garranchos agressivos no chão, otapete das folhas secas escondendo a terra. E aneve, ainda fina, cobre como uma película os

Consciência ecológica:A caatinga gelada, réplica da nordestina

Page 105: Melhores Cronicas de Raquel de Queiroz

troncos do arvoredo tal como acontece comos pésde pau de caatinga, tambémbrancos, fiéis ao seunome indígena caatinga, ou seja, mato branco.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 259.

Consciência ecológica:A caatinga gelada, réplica da nordestina

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(...) Foi a “Praia Artificial” no Japão (logono Japão, arquipélago penetrado e cercado de marpor todos os lados!). É umgalpão imenso, maiordo que qualquer aeroporto, coberto por umaespécie de cúpula oblonga, de plástico. E filas àentrada, lá dentro há umguichê, o pessoal paga aentrada, que é cara, e some. Deve entrar novestiário, ou antes, no despiário, por surgemjásema roupa, convenientemente seminus, como sefaz na praia. Por que debaixo daquele imenso tetode plástico está ummar, com a sua praia. Mar

Crítica ao artificialismo e à massificação:Falso mar, falso mundo:

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que, na tela, aparece bemazul com ondas deverdade, coroadas de espuma branca; ondas quechegama derrubar as pessoas e sobre as quaisjovens atletas surfame rebolam. E um falso sol,de luz e calor graduáveis; e a praia é de areiacomposta por pedrinhas de mármore, a cujocontato algumas moças de biquíni se queixavamde que doía umpouco. “Mas valia a pena”.

Não sei se pelo exotismo das feições ou sepelo perfeito comportamento dos figurantes, agente tinha a impressão absoluta de que assistia a

Crítica ao artificialismo e à massificação:Falso mar, falso mundo:

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uma cena de animação figurada emcomputador,como aquelas mulheres afuniladas que fazemaabertura do Fantástico.

A única presença viva, destacando-se noelenco de bonecos, era a nossa querida, bela eintrépida repórter Gloria Maria, apresentadora doespetáculo “Mar artificial”. Já se viu? Se fosseuma honesta piscina de água morna, tudo bem.Mas fingir as ondas, falsificar umsol bronzeando,de trinta e cinco graus, e toda aquela gente sedeitando coma simulação e depois voltando para

Crítica ao artificialismo e à massificação:Falso mar, falso mundo:

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a rua vestida nos seus casacos! Me deu pena,horror, sei lá.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 263-264.

Crítica ao artificialismo e à massificação:Falso mar, falso mundo:

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Você contempla no espelho, vê as rugas doseu rosto, do seu pescoço, como se olhasse umamáscara que se desfaz. Vê bem, sabe como estávelho, embora não sinta que está velho. Sua alma,seus sentimentos, sua cabeça, nada disso confirmaa palavra ou a imagemdo espelho. Mas os outrossó veemde você o que o espelho vê.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 266.

A dura arte de envelhecer:Não aconselho envelhecer:

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(...) Na verdade sempre comparo aconcepção de umlivro à concepção de umfilho.Sim, a uma gravidez. Quando você vê, o livro jáestá dentro, vivo e mexendo, bulindo coma suacabeça, ocupando a cada dia espaço maior,fazendo você levantar de noite para tomar nota deuma frase — umpedaço de diálogo, o rascunho deum conflito. Daí, a sua ideia inicial vai sedesenvolvendo, o tema se desdobrando,suscitando situações novas, personagens novos,que às vezes surgemde repente, inesperados; pode

Preocupação metalinguística (o duro ofício de escrever):O nosso humilde ofício de escrever:

Page 112: Melhores Cronicas de Raquel de Queiroz

ser até numvirar de esquina ou numbate-papo debar. O fio vai se desenrolando do novelo, seembaraça e se desdobra, muda de cor econsistência, até adquirir uma identidade,personalidade, ou, digamos, uma feição própria.De certo tempo emdiante você não governa maisa história, são os personagens que mandam.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 268-269.

Preocupação metalinguística (o duro ofício de escrever):O nosso humilde ofício de escrever:

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Não vê que cada amigo, por ser o único noseu território, não precisa sequer conhecer osdonos dos outros territórios. É que, sendo a nossaalma tão variada nas suas exigências, precisamosde amigos de acordo comos diferentes ângulos donosso coração. O amigo da comunicaçãointelectual não pode ser o mesmo amigo daconfidência íntima; o velho companheiro dainfância não temnada a ver como preciosocamarada adquirido nos anos da maturidade.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 275.

O valor da amizade e a diferença entre amizade e amor: Ah, os amigos:

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E vá dizer a verdade, que a França mereceu,que ela jogou melhor, arrebatando o nosso‘penta’! Neste momento de ira, “La belle France”é o grande vilão. Mas que é que se há de fazer?Paixão é isso. E quando a gente sugere que dequatro emquatro anos temCopa, quemsabe noano de 2002 a gente ganha... Eles nos olhamcomdesprezo e chegama nos apodar de traidores.

O sorte é que, ao início da nova temporada,as lágrimas se enxugam, as esperanças renascem.É o eterno ciclo da vida. Futebol é como a vida

A paixão pelo futebol e frustração de 98: O futebol e o rei:

Page 115: Melhores Cronicas de Raquel de Queiroz

mesmo, se repete e se renova. Quemfoi vencedorhoje pode estar entre os últimos, ano que vem.Pelo menos é a nossa esperança.

QUEIROZ, Rachel de. Op. cit. p. 282-283.

A paixão pelo futebol e frustração de 98: O futebol e o rei:

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Melhores Crônicas de Rachel de Queiroz