5
Memória, História e Historiografia - FERNANDO CATROGA Para Joel Candu, a memória funciona em 3 níveis básicos: a proto-memória (hábitos, automatismos), a memória propriamente dita (recordação, reconhecimento) e a meta-memória (processos de representação, re-presentear). As duas últimas constituem a anamnesis e se referem à maneira como cada um se filia a seu próprio passado e assim constrói sua identidade e se distingue dos outros. Memória social e memória histórica são construídas e portanto não espontâneas, não existindo memória do eu que não seja condicionada pela memória social e vice-versa. Memória auto-biográfica e memória histórica se implicam mutuamente, de forma que cada uma só ganhe consciência de si em comunicação com os outros. Ao re-presentear o passado (re-presentação), a memória unifica a complexidade das experiências em que vivemos produzindo a nossa identidade. “A identidade do eu unifica a complexidade dos tempos sociais em que cada indivíduo comparticipa”. Um conceito de memória coletiva seria uma ilusão holística que justificaria a auto-suficiência das visões totalizadoras, negando a subjetividade. Agostinho inaugura um “olhar interior” como sendo ao mesmo tempo entre a recordação e a saudade do futuro. Outros como Halbwachs e Durkheim acentuam o “olhar exterior”, como dimensão social e coletiva. Na verdade ambos os olhares coexistem e ambos os níveis de memória coexistem e interagem. Para Paul Ricoeur “recordar é, em si, um ato de alteridade”, portanto não se limita a uma experiência individual. A recordação envolve outros sujeitos além do evocador e se legitima também na recordação dos outros, que contribuem para a consciência do eu. Assim, “a memória é um processo relacional e inter-subjetivo”. A recordação não se resume à dimensão retrospectiva, mas é também uma forma uma forma de conferir sentido á vida coletiva. Isso aponta para a influência judaico-cristã do tempo, inspirada em Agostinho: “O presente histórico é um permanente ponto de encontro entre a recordação e a esperança”. Os conceitos totalizantes como memória social e memória coletiva, foram condicionados pela emergência da sociedade de massas, própria da era da industrialização. Os “sujeitos sociais coletivos” foram feitos motores do dinamismo histórico, no qual “o conhecimento do passado é uma premissa para entender o presente e transformar o futuro”.

Memória - Catroga

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Memória - Catroga

Citation preview

Page 1: Memória - Catroga

Memória, História e Historiografia - FERNANDO CATROGA

Para Joel Candu, a memória funciona em 3 níveis básicos: a proto-memória (hábitos, automatismos), a memória propriamente dita (recordação, reconhecimento) e a meta-memória (processos de representação, re-presentear).

As duas últimas constituem a anamnesis e se referem à maneira como cada um se filia a seu próprio passado e assim constrói sua identidade e se distingue dos outros.

Memória social e memória histórica são construídas e portanto não espontâneas, não existindo memória do eu que não seja condicionada pela memória social e vice-versa.

Memória auto-biográfica e memória histórica se implicam mutuamente, de forma que cada uma só ganhe consciência de si em comunicação com os outros.

Ao re-presentear o passado (re-presentação), a memória unifica a complexidade das experiências em que vivemos produzindo a nossa identidade. “A identidade do eu unifica a complexidade dos tempos sociais em que cada indivíduo comparticipa”.

Um conceito de memória coletiva seria uma ilusão holística que justificaria a auto-suficiência das visões totalizadoras, negando a subjetividade.

Agostinho inaugura um “olhar interior” como sendo ao mesmo tempo entre a recordação e a saudade do futuro.

Outros como Halbwachs e Durkheim acentuam o “olhar exterior”, como dimensão social e coletiva. Na verdade ambos os olhares coexistem e ambos os níveis de memória coexistem e interagem. Para Paul Ricoeur “recordar é, em si, um ato de alteridade”, portanto não se limita a uma experiência individual.

A recordação envolve outros sujeitos além do evocador e se legitima também na recordação dos outros, que contribuem para a consciência do eu. Assim, “a memória é um processo relacional e inter-subjetivo”.

A recordação não se resume à dimensão retrospectiva, mas é também uma forma uma forma de conferir sentido á vida coletiva. Isso aponta para a influência judaico-cristã do tempo, inspirada em Agostinho: “O presente histórico é um permanente ponto de encontro entre a recordação e a esperança”.

Os conceitos totalizantes como memória social e memória coletiva, foram condicionados pela emergência da sociedade de massas, própria da era da industrialização.

Os “sujeitos sociais coletivos” foram feitos motores do dinamismo histórico, no qual “o conhecimento do passado é uma premissa para entender o presente e transformar o futuro”.

As lembranças subjetivas também ocorrem a partir dos lugares sociais do evocador, dentro da necessidade de dar sentido narrativo à vida dos grupos.

A memória individual tem um variável grau de determinação coletiva/social, o que aponta para a relação entre memória social e memória coletiva e para a distinção entre os conceitos de sociedade (espontânea) e sociedades (construídas).

Cada eu é formado por duas personalidades unificadas pela dialética entre inclusão e exclusão, ou entre mesmidade e alteridade. “A formação do eu de cada indivíduo, seria assim, inseparável da maneira como ele se relaciona com os valores da(s) sociedade(s) e grupo(s) em que se situa, e do modo como, à luz do seu passado, organiza o seu percurso como projeto”. Ou seja, a personalidade se forma sempre dentro dos “quadros sociais da memória” (Halbwachs).

A Memória como Construção Seletiva do Passado

A memória não é uma espécie de “armazém de registros”, mas funciona de forma seletiva, dentro da tensão entre o passado, o presente e o futuro, determinando que se recorde somente parte do que se passou.

Page 2: Memória - Catroga

Os vácuos da memória são “preenchidos” e unificados pela necessidade de dar coerência existencial, misturando-se história e ficção, e a verdade factual se miscigena com colorações éticas e estéticas.

Isso implica em não apenas evocar o passado, mas também em transformá-lo, de modo a acabar o que ficou inacabado, como afirmou W. Benjamim.

O sentido é dado por afinidades eletivas (Weber), em função das necessidades e lutas do presente. Isso significa que cada presente constrói sua história como melhor lhe convém e lhe permita dar sentido a si mesmo.

Porém, a recordação não se confunde com simples imaginação, mas se distingue pela referencialidade, subornado-se ao princípio da realidade, mobilizando argumentos de veredicção.

O conteúdo da recordação é inseparável dos traços e vestígios e seus campos de objetivação, como linguagem, imagens, lugares, relíquias, monumentos, escritos, etc. desempenhando seu papel através de ritos que os reproduzem e os transmitem, como suportes materiais e símbolos da memória.

A representação (re-presentificação) é indissociável do espaço material e temporal, ou seja, sempre ocorre no tempo e no espaço. Porém, forma também um campo semântico, que fragmenta valores em imagens em diversos “lugares da memória”, ou seja, possuem necessariamente um valor e conteúdo simbólico. A metamemória requer o tempo e o espaço para o rito.

Memória e Monumento (espacialização da memória)

A evocação de memórias a partir da leitura de monumentos só se viabiliza quando mediada pela partilha comunitária com os outros.Neste sentido recordar é um ato comunitário, no qual o traço (monumento) é condição para uma enunciação ordenadora, que dá sentido à vida dos grupos e dos indivíduos.O monumento, ao mesmo tempo em que enuncia, também omite e oculta.

Ritos de Recordação e Comemoração

Os ritos de memória desempenham papel de socialização, de sentido pragmático, “inserindo os indivíduos em cadeias de filiação identitárias, distinguindo-os e diferenciando-os em relação a outros”.

A memória, como mensagem normativa, “continua a narrar” mantendo viva a presença do que se passou, conservando e renovando as identidades. Como produto social, a memória enuncia, de forma a selecionar o passado, num processo de escolhas que implica também esquecer e omitir.

A primeira instância na qual a memória se interioriza como norma é a família, dentro da qual se encontram os laços de identificação, transmissão e distinção e onde se criam os sentimentos de pertença.

Ao recordar a própria vida, o indivíduo atualiza incessantemente a unidade do seu eu, reconhecendo-se, estranhando e distanciando-se do que foi; trabalho psicológico de construção e formação da personalidade.

As liturgias de memória visam criar coerência e perpetuar o sentimento de pertença e continua numa luta contra o esquecimento de si e contra a finitude da existência.

Como “o século da memória” e “século da história”, o XIX é marcado pela construção mitico-simbólica da nova idéia de nação, buscando no passado sua legitimação a serviço das identidades coletivas.

É necessário perceber claramente a relação dialética entre memória e esquecimento, ou seja, entre o que fica e esse estabiliza em “quadros da memória”, e o que passa incessantemente.

Page 3: Memória - Catroga

A recordação é uma tensão recriadora, na qual o passado participa da criação do futuro e vice-versa.

A atividade de reconstrução da memória ocorre dentro de parâmetros marcados por outras recordações ou pela recordação dos outros.

Na relação entre recordação e esquecimento, nada está petrificado. O imprevisível possibilita a existência de futuros tanto para o presente como para o passado. Como numa operação de resgate (P. Ricoeur). O passado é imprescritível.

A Crise da Memória

As sociedade atuais têm provocado rupturas na memória, fragmentando-as em.......É possível que isso signifique a pluralização dos caminhos da memória e a

afirmação de novos ritos e novas formas de vivenciar a memória. Apesar de tudo, o rito deve ser o ato de abertura cordial ao outro. Os abusos, tanto

da memória quanto do esquecimento impossibilitam a vida.

Memória e Historiografia

As relações entre memória e historiografia não são lineares. A memória histórica é artificial e destinada a exercer papéis sociais; a memória coletiva é espontânea e normativa, sacralizando as recordações.

O discurso historiográfico é uma operação intelectual e crítica que desmistifica e laicisa as interpretações, sendo filha do divórcio entre o sujeito e o objeto.

Há convergências necessárias entre memória e historiografia. Por operar com uma concepção não linear de tempo, a historiografia contemporânea apresenta características em comum com a memória, como finalismo, seleção, presentismo, etc.

A Escrita da História como Rito de Recordação

Ambas nasceram como meios de combate contra o esquecimento, embora ambas mantenham suas respectivas especificidades. Há afinidade entre a historiografia e as evocações à memória dos mortos, pois o ato memorial de re-presentificação é suscitado a partir de “signos” que referenciam um objeto ausente.

Michelet atribui à história, a função de “ressuscitar mortos”. Assim, o trabalho do historiador possui também um conteúdo ritual ao re-presentificar os mortos através de um itinerário narrativo. O túmulo, como signo, deve ser lido como totalidade, numa semântica de re-presentificação de quem não mais existe, numa tentativa de esconder a corrupção do tempo e negar a morte. O texto histórico tem uma função análoga a dos túmulos e dos ritos de recordação, como marcar o passado, dando o lugar devido aos mortos.

Memória e historiografia constituem modalidades essenciais de afirmação da consciência histórica, diferindo-se ambas da imaginação artística pela referencialidade e veredicção, interrogando indícios e traços. Assim como a memória, a historiografia também se edifica sobre a dialética entre lembrar e esquecer. A história, como saber, se edifica no seio da memória individual ou coletiva. Também para o historiador, as expectativas (o ainda não) de futuro, desempenham uma revificação do passado. Assim como a historiografia, a memória também aspira ao verossímil, baseada na idoneidade do evocador, preservando também algum distanciamento epistemológico, mesmo que precário.

Se a crítica documental pressupõe uma separação mais rígida, todavia não se consegue anular a sobredeterminação subjetiva, trazida pela formação e memórias do próprio historiador.

Page 4: Memória - Catroga

Toda obra historiográfica tem uma condicionalidade inerente. O historiador não é indiferente aos problemas levantados e que dizem respeito a valores essenciais da condição humana. E neste sentido “dar voz aos que estavam condenados ao silêncio”.

Diante das escolhas que tem que fazer, a historiografia não é neutra, mas tem um papel “justiceiro”, no qual, os homens vão julgando a memória e não sendo julgados pela história. Ao contrário do historicismo dos séc. XIX e XX, adequado à história dos vencedores, a história dos vencidos exige a descontinuidade. A historiografia também legitima memórias e tradições, mitificando símbolos de origem, interiorizando-os como memória coletiva. Pode-se aceitar que tanto a historiografia é “filha da memória” (P. Ricoeur) como a memória é igualmente um produto da história.

A institucionalização, a profissionalização e a estatização da pesquisa histórica, apontam para a utilidade da historiografia para a nação e para a humanidade e o enorme crescimento de sua importância política e social.