Memória d'África - Capítulos 1 e 3

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Africa

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CAPTULO 1 - A PERCEPO DA FRICAA frica no imaginrio europeuCompreender a frica sumamente um exerccio crtico. Uma das suas metas aponta para o desvendamento de realidades encobertas por mitos, fices e imagens fantasiosas. Indiscutivelmente, ainda que existam vises estereotipadas cultivadas contra outros povos e regies, a frica, mais do que qualquer outro continente, terminou encoberta por um vu de preconceitos que ainda hoje marcam a percepo da sua realidade (Waldman, 2004 e 2006B). O imaginrio europeu devotou para as terras africanas e para os seus habitantes um amplo leque de injunes desqualificantes, muitas vezes respaldadas pelos expoentes da chamada grande intelectualidade europia. A frica, condenada ao papel de espao perifrico da humanidade, alm de considerada desprovida de interesse para a civilizao4, seria igualmente alheia a ela (Anjos, 1989, p. 14). O pensamento europeu, numa perspectiva que buscou apoio em estacas culturais e espaciais, discerniu a existncia de um eixo leste-oeste, polaridade que subentenderia uma sucesso e rivalidade entre civilizaes, basicamente materializado no conflito entre Ocidente e Oriente4 Civilizao, palavra com origem no latim civitas (isto , cidade), se caracterizaria por um nvel mais complexo da produo de alimentos, da estratificao social, vida urbana e formas estatais de controle. H que ter cuidado na utilizao da terminologia: a construo de uma vivncia urbana e de um aparato estatal uma opo histrica dos povos, e estes no podem ser julgados em funo de prioridades no condizentes com as suas expectativas. (tema, alis, muito caro aos discursos hodiernos a respeito das contradies da globalizao). Paralelamente, outro eixo, no sentido norte-sul, estaria conotado pela contradio entre civilizao e seu oposto, a natureza e a selvageria. Tal contraposio espacial esteve - e ainda est - presente em diferentes pronunciamentos e declinaes. Na seqncia dessa explanao, em face de a civilizao deter bvia primazia diante de tudo o que seria considerado no-civilizado, restariaao plo da incivilidade, isto , ao Sul, nada mais do que se submeter ou se anular diante do Norte. Esse raciocnio foi subjacente a diversas manifestaes intelectuais do mundo ocidental. Por exemplo, expresses incontestveis do Iluminismo, tais como Voltaire (Frana), Hume (Esccia), Kant (Alemanha) e Jefferson (Estados Unidos), mesmo enfatizando a universalidade da razo, negaram aos africanos e a sua descendncia a posse de capacidades literrias (Appiah, 1997, p. 84). Quanto ao filsofo alemo Georg Hegel, na sua compreenso a frica sequer faria parte da histria universal. Tratar-se-ia de um continente presente no espao e no tempo fsicos do planeta. Mas no no seu mapa e na sua cronologia civilizacionais. claro que, para o mundo ocidental, as plagas do Oriente sempre constituram uma ameaa, periculosidade substantivada na localizao Leste. O Sul, por sua vez, usufruiria, nesse cdigo espacial simblico, dos adereos da inferioridade mais abjeta. Nesse parecer, a frica no disporia de qualquer outro papel alm de rea eternizada funo de provedora de bens e servios apropriados para calar o poderio dos prprios algozes. E que a geografia no o desminta: Sul para sempre... No que diz respeito Europa, a sua superioridade estaria emblematicamente representada pelo fato de se aninhar Ao contrrio do estipulado por leituras desqualificantes do continente, a frica apresentava muitos elementos que contradiziam o julgamento dos ocidentais. Na gravura ao lado, temos a cidade de Loango, uma das que integravam o reino do Congo, e que chamou a ateno dos prprios europeus pela sua magnificncia e prosperidade.privilegiadamente nas posies ocidental e setentrional das terras conhecidas (ver Souza Santos, 2006). Evidentemente, tal regime de estereotipias, no constituindo uma elaborao exclusiva da Europa contempornea, apresentou alteraes ao longo do tempo. Na realidade, os mecanismos simblicos da excluso do outro remontam h muitos sculos, estando profundamente enraizados no legado cultural europeu. As fabulaes europias a respeito da frica so antigas, podendo ser localizadas em um variado conjunto de elaboraes socioculturais. a partir desse passado remoto que se estratificaram os preconceitos cultivados contra o outro, personificado em diferentes momentos pelos brbaros, trtaros, mongis, ciganos, judeus, muulmanos, assim como pelos negros africanos. Certo que o mundo ocidental construiu o seu relacionamento com as populaes extra-europias com base em preconceitos de todo tipo. Assim, importante ressalvar que a desqualificao dos no-europeus no recaiu, como se pensa, unicamente sobre pessoas e etnias. Bem mais do que isso, a estratgia de inferiorizao do outro foi tambm estendida ao territrio habitado pelas populaes no-europias, impregnando de modo simultneo o espao, as sociedades e as culturas dos demais continentes com todos os signos da negatividade. Nesse particular, o continente africano foi, inegavelmente, o mais desqualificado pelo pensamento ocidental. Ainda que a imagem da frica tenha variado ao longo do tempo em decorrncia de diferentes formas de relacionamento estabelecidas com os seus povos, indiscutvel que o continente foi, mais do que qualquer outro, laureado pelo pensamento ocidental com imagens particularmente negativas e excludentes. Vrias dessas estereotipias so evidentes a partir de primados geogrficos explicitados nos mapas, que sumamente referendam discursos construdos em relao ao continente. No perodo medieval, diversas imagens subalternizantes a respeito dos africanos foram articuladas no seio do imaginrio europeu. Uma dessas peas imaginrias foi a infame teoria camita, interpretao que estigmatizava os negros enquanto descendentes do personagem bblicom Cam como indignos, posteriormente conotada pelo pressuposto de queos africanos estariam fadados escravido5. A essa imagem, foi agregado o modelo resultante da fuso da cartografia de Cludio Ptolomeu com a cosmologia crist, relegando a frica e os seus habitantes aos piores recantos da Terra6, leitura exaustivamente reapresentada sem, no entanto jamais, perder os seus traos adjetivantes (Oliva, 2003). Fato evidente, nessa construo mitolgica a frica terminou retratada pela cartografia europia como um conjunto de terras situadas abaixo do espao europeu. Portanto, simbolicamente estigmatizada como inferior. Em segundo lugar, as terras africanas, ao estarem assoladas por um calor escaldante, seriam imprprias para a vida civilizada. Isso tanto no aspecto fsico quanto no espiritual. Evidentemente, no haveria como deixar de ser mencionado que as terras quentes meridionais estavam simbolicamente vinculadas ao inferno, ao passo que a posio norte, ao paraso. A cartografia medieval reproduziu fielmente tais premissas. Os mapas T-O ou Orbis Terrarum seguem um padro repetitivo, discriminando a Terra como um crculo incluindo o oikoumene, isto , as terras conhecidas: Europa, sia e frica. Esses continentes esto dispostos com base em um T centrado em Jerusalm e circundados por um vasto oceano circular disposto na forma de um O. O famoso Mapa dos Salmos (ou Psalter), datado de 1250, uma das inmeras alegorias que legitimam tal cdigo espacial de excluso. Nesse mapa, aparece claramente a indicao do Paraso e de Cristo, redentor da humanidade, posicionados na direo Norte. Por sua vez, acatando a genealogia dos relatos bblicos, esta carta geogrfica discrimina, na sua posio Sul a frica, um continente negro e monstruoso, ocupado pelas gentes descendentes de Cam, o mais moreno dos filhos de No (Noronha, 2000).5 No Antigo Testamento, Cam, um dos filhos de No - considerado ancestral bblico das populaes africanas teria zombado do pai, recaindo sobre ele o estigma da escravido (Gnesis, 9:23-27). No entanto, ressalve-se que no consta nenhuma indicao bblica de que Cam fosse negro. Afinal, Cam, na Bblia, refere-se a um antepassado comum a povos muito diferentes entre si, desde povos identificados com a orla africana do Mar Vermelho at populaes entendidas como levantinas e/ou mesopotmicas (cf. Gnesis, 10:6-20).6 A cartografia ptolomaica referenda a Europa na posio Norte, isto , superior, a sia como sendo o Leste, ou seja, ptria de populaes antagnicas ao ocidente, e a frica, s regies meridionais do mundo conhecido, vale dizer, inferiores. Ressalve-se que o embrio dessas concepes discriminatrias remete a consideraes urdidas na Antiguidade clssica. Para os antigos gregos e romanos, a frica compreendia as terras situadas entre os atuais Lbia e Marrocos, habitadas por povos de idioma berbere7. Seria o caso dos garamantes, nmidas, lbios e mauritnios, costumeiramente mencionados nas crnicas e documentos do Imprio Romano. Recorde-se que o termo berbere deu origem palavra brbaro, identificando populaes que, pelo fato de a sua lngua e a sua cultura diferirem da greco-romana, eram consideradas inferiores em face do padro hegemnico. Outra pista sobre os significados impostos frica pode ser localizada no prprio nome do continente. Entre as vrias hipteses existentes, o topnimo teria origem num vocbulo do dialeto berbere - afri - mais tarde se desdobrando em frica. Embora de difcil averiguao, o significado do termo, de acordo com muitos autores, relaciona-se com uma idia aproximada de calor, de ausncia de frio (CF. Munanga, 1984, p. 16, e tambm Histria Geral da frica, Unesco, v. I). Relacionada primeiramente pelos romanos com a atual costa litornea setentrional do continente, a denominao foi posteriormente aplicada aos seus prolongamentos meridionais, tornando-se indissocivel da cartografia produzida nos diversos pases europeus. Assinale-se que a frica o nico continente eminentemente tropical do planeta. Compreendendo terras soberanamente governadas pelo Sol, muitas vezes esse dado foi persistentemente manipulado para confirmar uma inferioridade tida como inata ao negro-africano, quando no rubricada como resultado dessa inferncia natural. Recorde-se que, em passado recente, foram abundantes nos meios cientficos europeus as teses que advogavam, por exemplo, baixa capacidade intelectual, passionalismo e preguia como decorrentes da tropicalidade e da elevada umidade do ar. Ademais, para a cristandade europia, as temperaturas altas7 O termo berbere no designa nenhuma etnia. Diz respeito a um grupo de lnguas que integra a famlia afro-asitica. Desse modo, refere-se a povos cujas caractersticas so, em alguns contextos, muito discrepantes entre si. possuem, de um ponto de vista cultural, sentido simblico negativo. Ao calor associa-se a sensualidade, igualmente repudiada pelo pensamento cristo. No por acaso, o cristianismo criou expresses como o fogo ou o calor dos infernos. Historicamente, o regime de estereotipias imposto frica foi reforado pela distncia e relativo isolamento do continente para com o mundo europeu. A frica, e em particular a frica Negra ou Subsaariana, constitua um domnio nebuloso sobre o qual as informaes eram fragmentrias e distorcidas, ocultando-se, para completar, por trs de um deserto considerado impenetrvel, o Saara. As imagens do continente africano construdas pelo imaginrio medieval suscitavam todo tipo de objees. Assolados pelo calor inclemente, os territrios meridionais estariam infestados de monstros e de outros seres fabulosos, coabitando com grupos de semi-humanos ou de humanos inferiores. Todavia, mesmo essas manifestaes de vida escasseariam consoante a proximidade com o Equador, onde os mares seriam ferventes e abundariam rios de metal derretido. Decididamente, o quadro construdo pelo imaginrio social europeu relacionado frica no era dos mais animadores: Durante muito tempo, o interior do continente s foi conhecido atravs do relato dos indgenas, que povoaram as regies distantes de gigantes e pigmeus, de homens-macacos, ogros canibais e mulheres-pssaros. Tambm durante muito tempo figuraram nos mapas da frica nomes de povos como os sem lngua e os sem nariz, os opistodctilos (de dedos revirados) e os pigmeus, que disputam alimento aos grous. frica Portentosa, a frica me de monstros (Paulme-Schaeffner, 1977, p. 7). Naturalmente o progresso das navegaes europias induziu ao questionamento das representaes tradicionais do espao terrestre e dos povos ultramarinos. As peas cartogrficas elaboradas nesse perodo evidenciam uma viso crescentemente matematizada do espao, expresso de um novo modelo de sociedade e de viso de mundo que surge na esteira do avano da classe mercantil burguesa. Porm, tais alteraes na forma no foram acompanhadas de transformaes na essncia do ima-PROJEO DE MERCATORCrculo Polar Antrtico Fonte: Atlas geogrfico escolar/IBGE. Rio de Janeiro: IBGE, 2002.Mapa-mndi na Projeo de Mercator: esta projeo reflete um ambiente cultural no qual a hegemonia da Europa se impunha atravs das grandes navegaes, mais tarde atualizada por outras leituras hegemnicas. Ver mapa em pdf ANTRTICAginrio europeu sobre a frica. Concretamente, o continente permaneceu perpassado por preconceitos e por imagens nada meritrias. Tanto assim que os mapas elaborados sobre a frica foram granjeados por um repertrio de topnimos cuja impreciso representativa da falta de substncia que o mundo ocidental sempre emprestou ao continente. Tal predisposio contribui para compreender a razo de por que denominaes como Ethyopia, Guin, Lybia, Sudo, Cafraria ou Berberia, muitas vezes sequer repetindo a extenso nem mesmo a prpria posio nos mapas, foram grafadas quase que a gosto da imaginao do cartgrafo, transitando de um canto para outro no interior do continente. Omesmo ocorreu com denominaes como hotentotes, negros, cafres, pigmeus e nbios, que se deslocaram pelo interior da frica despidas de qualquer fundamentao etnogrfica. A esses devaneios cartogrficos, agregou-se uma pouco honorvel linhagem de bestas, de feras sanguinrias, de monstros antropides e canibais, que continuaram a transitar nos mapas da frica. Uma vez que o continente foi contemplado com o estigma da subalternidade, no de se admirar haver representaes confirmando uma pretensa inferioridade junto aos mapas, que, a despeito de constiturem uma pea tcnica, sumamente condensavam uma imagem socialmente construda do mundo. Assim, se observarmos atentamente o mapa-mndi de Mercator8, criado no bojo da expanso mercantilista, podemos perceber a reedio de velhos mitos, como, a propsito, aqueles credenciados no mapa dos Salmos ou mesmo anteriores a este. No mapa de Mercator, a Europa ficava na posio Norte, superior dos mapas, prerrogativa esta reforada agora pela centralidade. Com efeito, todos os continentes so representados ao redor do europeu, que majestosamente impera subordinando os demais. Essa disposio clssica dos continentes tornou-se uma espcie de senso comum e, repetida exausto, conquistou ares de verdade inquestionvel. Reencontramos essa imago mundi em toda sorte de mapas, que insistem na prevalescncia de uma subalternizao do Sul em relao ao Norte. O rebaixamento da frica relaciona-se intimamente s demandas objetivas da sociedade capitalista ocidental, que continuamente reapresenta para o continente a condio de periferia do sistema de produo de mercadorias. Desse modo, se no perodo mercantilista foi reservado frica o papel subalterno de fornecer braos para a monocultura aucareira e para a extrao de metais e pedras preciosas, com a hegemonia do capitalismo industrial o continente novamente subalternizado, enquadrado na condio de manancial de mo-de-obra barata e de fornecedor 8 Mapa confeccionado pelo gegrafo flamengo Gerhard Kremer, tambm conhecido na forma latinizada de Gerhard Mercator (1512-1594), considerado pai da cartografia moderna. Esse mapa utiliza uma projeo homnima, de largo uso nas navegaes martimas.de matrias-primas para as potncias industriais. Em outras palavras,sua condio de inferioridade e de submisso ao mundo ocidental no sofre modificao alguma. Nesse sentido, a necessidade de justificar o domnio europeu induziu e foi mantida mediante o desenvolvimento de teorizaes que, apelando para toda sorte de malabarismos conceituais, desqualificavam o legado africano em todos os sentidos. Se no perodo mercantilista a frica reunia agravantes espirituais, religiosos e elementos fabulosos inscritos no seu espao geogrfico, na fase industrialista a carncia de civilizao que se torna o prato principal das especulaes. Tal tendncia se explicita, por exemplo, quando se procurou extirpar o Egito faranico da frica. Na lgica eurocntrica, uma civilizao notvel como a egpcia no poderia ter nada a ver com um continente selvagem como o africano. Assinale-se que o Egito materializou uma civilizao erguida no curso do Nilo, pelo que os substratos africanos da sua populao, da sua cultura e da sua religio no poderiam ser negados. Salvo, claro, na eventualidade de violentar a geografia do grande rio, dissociando-o da direo das suas guas e das relaes mantidas com o interior do continente. Com efeito, o Nilo corre na direo sul-norte, qual seja do Alto para o Baixo Egito. Existiria, ento, alguma dvida a partir de onde teria iniciado o povoamento desse pas e de qual paragem ele teria se embebido nas suas matrizes civilizatrias iniciais? Bem, contra todas as evidncias em contrrio, o Egito foi peculiarmente arianizado, expurgado dos seus vergonhosos traos negros e africanos. Como lembrou o intelectual martiniquense afro-descendente Aim Cesaire (1979, p. 11): Quase todos os sbios ocidentais se tinham deliberadamente agarrado a isto para roubar o Egito frica, e a tal ponto que no conseguiam explic-lo. [Atentemos para] o mtodo Gustave le Bon, afirmao brutal e impudica:Os egpcios so Chemitas, isto , brancos como os Ldios, os Gtulas, os Mouros, os Nmidas, os Berberes; o mtodo Maspero, que consiste em assemelhar - contra qualquer verossimilhana - a lngua egpcia s lnguas semticas, e especialmente ao tipo hebraico-armnio, donde se conclui que os egpcios originalmente s poderiam ser semitas; o mtodo Weigall (geogrfico este), segundo o qual a civilizao egpcia s poderia ter nascido no Baixo Egito, donde passou para o Alto Egito, subindo o rio... Uma vez que no poderiam desc-lo (sic). Compreende-se a razo secreta dessa impossibilidade: que o Baixo Egito est prximo do Mediterrneo, portanto das populaes brancas, enquanto que o Alto Egito, est prximo do pas dos negros. A este respeito, e para se opor tese de Weigall, no destitudo de interesse lembrar as idias de Scheinfurth, sobre a origem da fauna e da flora do Egito, situando-a centenas de milhas a montante do rio. Outras admirveis peas de fico exaltam a selvageria imperante entre as tribos do continente, assim como o barbarismo dos seus soberanos, relatos que descrevem eventos sem qualquer respaldo em fatos concretos ou, ento, carentes de cientificidade. Nessa ordem de preocupaes, eis como a pena de Louis Jacolliot, funcionrio colonial francs do sculo XIX, descreve as implicaes, a seu ver negativas, do fim da escravido: preciso que os nossos negrfilos saibam bem disso: a situao dos escravos e prisioneiros de guerra em frica muito mais desgraada desde a abolio da escravatura, porque no tendo o valor necessrio para se efetuar uma troca com as mercadorias europias, servem to-somente aos reis e chefes indgenas para abrilhantarem as suas festas selvagens, degolando-os; sendo de dizer-se aqui que a maior parte das vezes esses folguedos pblicos no passam de pretexto para os senhores se desembaraarem de muitas bocas inteis. Ouvi dizer na Europa que a abolio da escravatura tirava aos reis africanos o desejo de fazer guerras, pois nada ganhavam em procurar escravos para vender! Os que asseveram semelhante disparate no sabem do que vai na frica, e ignoram que eles, os reis, fazem guerra por diferentes motivos (citado em Cmara Cascudo, 2001, p. 106-107). Nessa perspectiva, o continente negro passa a ser visto como de fato deveria ser entendido: um continente simplesmente carente de civilizao. Por isso a estigmatizao da frica pelos obstculos naturais, pela natureza em estado bruto, pelas doenicas e, particularmente, pelo atraso econmico, que caberia ao europeu ultrapassar, colocando os imensos recursos africanos a servio do progresso e do desenvolvimento da humanidade. Dado que a frica jamais tinha sido tocada pela civilizao, restava-lhe agora, uma vez inteiramente cartografada por mtodos modernos, regida por coordenadas precisas e livre dos seresfantsticos que outrora a povoavam, aguardar a chegada triunfante e libertadora do homem branco. No sculo XIX, a frica tornou-se o cenrio por definio dessa renovada ambio europiae submeter o mundo s suas expectativas. O eplogo desse af civilizatrio foi a ocupao, de fato, do continente. A frica foi inteiramente retalhada e distribuda entre as potncias coloniais, que reorganizaram o espao africano ao seu gosto, ignorando todo e qualquer arranjo espacial anterior. Com exceo da Etipia9, a totalidade do continente ficou, de uma forma ou de outra, sob a batuta imperialista ocidental. No sem motivo, a frica passou a ser conhecida como o continente colonial por excelncia. Nessa seqncia, no seria de se admirar que, sucedendo as imagens elaboradas pelo mercantilismo e pelo capitalismo industrial, no ps-guerra, a conquista da independncia pelos povos do continente tenha iniciado uma nova leitura desqualificante da frica. Agora o continente o domnio da pobreza, da anarquia, do subdesenvolvimento, das doenas, das guerras tribais, dos golpes de Estado contnuos, do analfabetismo, dos refugiados, da seca e da falta de perspectivas. Num mundo desigualmente unificado pela globalizao, a frica, como todas as desprezadas regies meridionais do planeta, continua a integrar uma periferia de flagelos sociais, explorao econmica e subordinao poltica, eventualmente mistificada pelas imagens concernentes a um mundo unificado sob uma nica bandeira ou aspiraes. Nessa nova elaborao plena de estereotipias negativas, o futuro no reservaria nenhuma benesse para o continente, condenado a priori estagnao. Trata-se do afro-pessimismo. Tal como nas leituras anteriores, essa nova coleo de imagens associa-se a um vetor ideolgico, pelo qual a frica seria incapaz de conduzir o prprio destino. Ela deve, portanto, continuar a apelar para o Ocidente na busca de solues para os seus pro-9 Etipia um topnimo de origem grega, significando pas das caras queimadas, isto , dos negros. Note-se que Etipia e Abissnia, topnimos freqentemente relacionados ao mesmo pas, referem-se, contudo, a contextualizaes diferentes. Abissnia associa-se com mais propriedade ao povo abexim, aos territrios por ele ocupados de longa data e sua cultura. A Etipia relaciona-se com o Estado no qual os abexins constituem tradicionalmente o grupo dominante, mas que inclui muitos outros povos e culturas.blemas. Como nas imagens anteriores, o afro-pessimismo opera com generalizaes, preconceitos e falsas concepes. Objetivamente, essa perspectiva trabalha em prol da confirmao da submisso da frica ao mundo ocidental e das suas expectativas econmicas, sociais e polticas(BLANCHARD; LEMAIRE, 1996, p. 48-49). Cabe alertar que, nos anos 1990, existiu notria mobilizao de alguns crculos de opinio para os quais a frica deveria voltar a ser colonizada pelo Ocidente. Essa corrente de opinio, denominada reabilitacionista, pleiteia o fim da descolonizao argumentando, inclusive, em nome de uma pretensa finalidade humanitria. Acima de tudo se trataria de reconquistar a frica a ttulo, enfim, de salvar os africanos de si mesmos... Contudo, existiria alguma dvida quanto aos interesses reais que sustentariam tal corrente de opinio?Repensando a fricaSer o afro-pessimismo a ltima imagem negativa do continente? Entendemos e esperamos que sim. Isso porque tais imagens no se referem simplesmente a uma deformao da realidade. Com efeito, caso no sejam desconstrudas, no Ocidente assim como na prpria frica, toda atuao junto realidade africana estar condenada ao fracasso. Em outras palavras, o afro-pessimismo uma estratgia que justamente sedimenta as polticas que tm perpetuado a estagnao em vastas zonas do continente. Pior ainda, ao afro-pessimismo se vinculariam as objees s polticas sociais e de afirmao da cidadania, que correspondem, inclusive, em pases com forte dispora negro-africana, aos enunciados polticos que advogam como soluo para os problemas da pobreza e da excluso o desmantelamento do j precrio aparato estatal que busca mitigar os efeitos da misria generalizada, do desemprego e da submisso econmica aos grandes conglomerados internacionais. Como vimos, todas as construes elaboradas sobre a frica nunca se distanciaram da ambio de domin-la nem de configur-la como contraponto de uma Europa que se arrogava um papel dominante. Ade-mais, para submeter o que quer que seja necessrio, antes de tudo, a iniciativa concretizar-se em nvel do imaginrio, preferivelmente de modo a distorcer a compreenso do outro, habilitando, desse modo, a irrupo de uma ideologia de dominao. Entretanto, a percepo construda a respeito da frica, esboada com base em critrios externos sua realidade, mostra-se seguidamente incapaz de compreend-la. Nessa abordagem, se inscreveriam aqueles dados estatsticos e relatrios sociais repetidos a todo instante que nos apresentam quadros dantescos, transformando em verdadeiro mistrio a continuidade do continente, mesmo porque, na fria contabilidade da matemtica formal, no haveria como este se manter vivo. O fato que a frica continua existindo, contrariando e escapando aos critrios cartesianos de desenvolvimento edificados pelo homem ocidental (citado por Munanga, 1997, p. 299). A VERDADE E A MENTIRA NUM CONTO IORUB Lembro aqui uma lenda africana sobre a criao do mundo. Diz assim: Olofi, o Senhor que tudo criou - o bem e o mal, o bonito e o feio, o claro e o escuro, o grande e o pequeno, o cheio e o vazio, o alto e o baixo -, criou tambm a Verdade e a Mentira. Fez, no entanto, a Verdade forte, marcante, bela, luminosa, e fez a Mentira fraca, feia, opaca. Ao ver assim a Mentira, deu a ela uma foice com a qual pudesse se defender. A Mentira sentiu inveja da Verdade e queria elimin-la. Certa ocasio a Mentira se defrontou com a Verdade e a desacatou. Brigaram. Empunhando sua foice, a Mentira, com um golpe, degolou a Verdade. Esta, vendo-se sem cabea, comeou a procur-la tateando por volta. Apalpa um crnio que supe ser seu. Com esforo agarra-o e o arrancando de onde estava, coloca-o sobre seu pescoo. Mas aquela era a cabea da Mentira. Desde ento, a verdade anda por a enganando toda a gente (cf. Dulce Mara Critelli, Ontologia do cotidiano ou resgate do ser: potica heideggeriana. So Paulo: PUC-SP, Centro de Estudos Fenomenolgicos de So Paulo, 1984). Na frica contempornea, independentemente da frgil legitimidade de muitos dos Estados africanos, das suas subvalorizadas economias formais e dos seus simulacros de autoridade institucional, os seus povos agarram-se vida e esperana, ignorando prognsticos negativos e sobrevivendo margem de instituies, organismos e poderes que procuram acorrent-los. Nesse sentido, para alm de mero ato de vontade, a desconstruo das imagens negativas do continente faz-se com estudo, conhecimento e compreenso atentos sua personalidade histrica, geogrfica e cultural especfica. Da que uma nova frica, vibrante e esperanosa, pode surgir do nosso estudo. Uma frica que, no final das contas, associa-se tambm s expectativas de muitos outros milhes de humanos excludos e crescentemente privados de segurana social, poltica e econmica. Portanto, que o estudo do continente possa conduzir melhor compreenso do mundo e da sociedade brasileira, contribuindo para a sua transformao rumo a uma sociedade justa e em equilbrio para consigo mesma. esse o nosso objetivo e a nossa pretenso.CAPTULO 3 - FRICA: UNIDADE E DIVERSIDADEA frica e sua interao com o mundoReconhecidamente, representantes do gnero Homo, a saber, o Homo habilis e o Homo erectus, ambos anteriores ao Homo sapiens, encontraram na paisagem africana o seu espao de vida. Mais adiante, a primeira forma de Homo sapiens, o Homo sapiens neanderthalensis, e a segunda, o Homo sapiens sapiens - qual seja, o homem atual -, tambm marcaram presena no continente africano. Foi nesse clido e agradvel espao de propores continentais que surgiu o ser humano, assim como suas primeiras grandes criaes sociais e culturais. Sucessivas escavaes arqueolgicas comprovam: a frica foi o bero da humanidade. Fsseis de australopitecos, ancestrais mais remotos dos humanos, foram descobertos em inmeros pontos do continente. Desses, os mais antigos so os de Lucy, em pleno Rift tanzaniano. A longa permanncia humana na frica transformou o seu territrio no palco das mais cruciais elaboraes. Isso, numa escala que inclui das relaes sociais religiosidade e das primeiras tecnologias s noes de famlia, de etiqueta, de beleza corporal e de poltica. A lenta sedimentao desses experimentos forneceu precondies para surgirem proeminentes civilizaes, como a egpcia, no curso inferior do Nilo. Numa nica sentena: a frica foi o bero da civilizao humana. Indiscutivelmente, o processo de ocupao do planeta teve incio na frica. Tendo o continente como rea original de disperso, o Homo sapiens sapiens migrou para outras paragens da Terra, ignorando o que, A frica um vasto manancial da cultura humana. Ainda hoje, nos museus europeus, como na foto acima, pilhas e pilhas de obras artsticas e peas da mais fina arte esto depositadas nos pores, muitas vezes saqueadas dos povos do continente.bem depois, terminou definido por gegrafos europeus como obstculos naturais. Perseguindo manadas, fugindo de intempries, buscando novas fontes de alimentos ou simplesmente seduzidos pelas peculiares fantasias da sua mente, os humanos procuraram outros espaos visando reproduzir o seu modo de viver e de pensar. Os deslocamentos humanos, fortemente influenciados por fatores ambientais, alcanaram todos os recantos do planeta (Breton, 1990). Essa pontuao remete novamente ao questionamento do suposto isolamento da frica, que, cercada por vetustas barreiras naturais - desertos, pntanos, escarpas e vastos oceanos -, constituiria um continente fadado solido. Mesmo o interior do continente no escaparia dessa sina. A existncia de vales profundos, cachoeiras e altas montanhas ofereceria uma textura em tudo conveniente para que a falta de contato imperasse a ponto de isolar os africanos de si mesmos. Contudo, o precoce povoamento da frica e a colonizao do mundo a partir do seu territrio, assim como diferentes tipos de laos estabelecidos interna e externamente ao continente no transcorrer da histria, desmentem por si mesmos a delirante viso europia de uma geografia hostil tutelando o isolamento. Como veremos adiante no existiram barreiras impedindo contatos. A frica, mais do que tudo, constituiu um continente aberto, propcio para a vida humana, com precondies para uma pujante diversidade tnica e cultural. Outro aspecto que os humanos no saram propriamente da frica para povoar premeditadamente a sia ou a Europa. Os europeus, ao decretarem o que seria frica, agruparam regies e povos que nunca haviam se reconhecido como pertencentes a um mesmo continente. Como se sabe, os povos que habitavam a sia, frica e Amrica desconheciam que eram asiticos, africanos ou americanos at que os europeus os informassem. Alis, tampouco os opeus sabiam que eram europeus at que eles mesmos se convencessem disso (Tuan, 1980; ver tambm Waldman, 2004, 2006A E 2006B) . De resto, importa assinalar que o povoamento da Terra manteve-se alheio viso sugerida pelos mapas das grandes migraes humanas. Tal cartografia do povoamento do mundo, ilustrando muitos textos eartigos, estabelece rumos preponderantes para os movimentos da humanidade, ditados por grandes setas voltadas para todos os pontos do globo. A impresso sugerida por esses mapas a de que o povoamento do mundo seria resultante da deciso de um estado-maior, organizando vagas humanas tal como um exrcito arregimentado para a conquista do planeta. A esse respeito, atentemos para as sugestivas colocaes do historiador e antroplogo belga Jan Vansina: Certos historiadores tm um fraco romntico pelas migraes [...] Segundo esta imagem, supe-se geralmente que um belo dia milhares de indivduos colocaram-se em marcha, destruindo tudo sua passagem [...] Povos expulsaram outros e lanaram-nos sobre os caminhos, como se todo o interior da frica tivesse sido um grande bilhar onde as bolas se chocaram umas s outras [...] Para os povos, existe um grande nmero de modos de migrar, desde as migraes quase inconscientes motivadas, praticamente a cada dcada, pelo deslocamento de alguns quilmetros de duas ou trs aldeias (mas num movimento em uma s direo), at as raras e espetaculares migraes de guerreiros organizados em formaes militares (Vansina, 1965, p. 17). Concluindo, os deslocamentos estiveram largamente despidos de critrios apriorsticos ou, ao menos, daqueles que transitaram pela frtil imaginao de alguns pesquisadores. Basicamente, as migraes foram ditadas pela natureza e pelos dinamismos inerentes s sociedades de outrora. Nada existiu obrigando os homens a seguir sempre adiante. Alis, recorde-se que muitos deslocamentos foram estritamente internos ao continente africano. Nessa perspectiva, a despeito da compreenso equivocada que os mapas tnicos da frica suscitam particularmente por congelarem determinada distribuio das etnias pelo continente, esse quadro sofreu inmeras alteraes ao longo da histria. digno de meno que tais movimentos internos de povos alcanaram amplitude continental, ainda hoje repercutindo na vida e na cultura de muitos pases. Esses deslocamentos fizeram com que os pigmeus, por exemplo, anteriormente ocupando rea bem mais extensa, passassem condio de habitantes de pequenos cantes da frica Equatorial. O mesmo pode ser dito a respeito dos san, que gradativamente se restringi-ram s regies desrticas da frica Austral. Nos ltimos sculos, mudanas etnogrficas tambmrreram na regio saheliana, secundadas pelo avano dos tuaregs sobre reas dantes ocupadas por povos sudaneses. Outros movimentos conduziram povos nilticos do curso superior do Nilo para diversos territrios da frica Oriental e Ocidental. Entretanto, note-se que tais deslocamentos propiciaram intercmbios culturais e tnicos, indissociveis da heterogeneidade que caracteriza a frica. Esse processo contraria imagens consagradas pela historiografia ocidental, entre estas as das invases blicas, massivas e violentas. Pelo contrrio: No nem mesmo certo que a ocupao dos territrios das comunidades de caadores-coletores tenha-se dado necessariamente de modo violento. provvel que esta penetrao se tenha efetuado de forma lenta e gradual, o que teria permitido uma aproximao e um contato pacficos entre as duas tradies econmico-culturais (Maestri, 1988, p. 96). Sinais de trocas culturais milenares esto evidentes de muitas formas e em inmeros contextos. Elementos das linguagens khoisan intercalando fonemas e cliques aparecem, por exemplo, em idiomas bantu como o xhosa, o zulu e o shoto. Sinais fenotpicos peculiares a grupos khoisan, como a prega epicntica dos olhos (considerada tpica da raa monglica), tambm podem ser encontrados em populaes bantu. Em contraparti, grupos pigmeus adotaram idiomas bantu vizinhos, entre outros emprstimos culturais. Assim, muitas outras pistas fornecidas pela antropologia comprovam um milenar processo de fuso que se desenvolveu no conjunto do continente. Do mesmo modo, externamente frica, desde tempos muito remotos, ondas contnuas de africanos tomaram o rumo do Oriente Mdio e do Sul da Europa, impregnando essas regies com a sua tecnologia e a sua marca gentica, mapeada por toda sorte de investigaes cientficas. Desde longa data, nota-se um persistente deslocamento de populaes que, partindo da frica, mesclaram-se com outras j assentadas, o mesmo ocorrendo no sentido contrrio, todas indiferentes s categorias construdas posteriormente para defini-las. De resto, em muitas situa-es as populaes regressavam s suas regies de origem, sendo que nesse vai-e-vem carregavam consigo dinmicas sociais, tcnicas e culturais inditas, contribuindo para a sua difuso. Assim, grupos do Corno Africano freqentemente cruzaram o Bab-el-Mandeb mesclando-se com populaes da pennsula arbica. Essas antigas migraes explicam as feies negrasacilmente notadas em muitos iemenitas e sauditas na margem asitica do Mar Vermelho. Por outro lado, nessa mesma regio se verificou um contrafluxo, com povos semitas da pennsula rabe unindo-se a populaes negras, fato que, por sinal, uma das matrizes dos abexins. Esses encontros de populao tambm uniram povos habitantes de antpodas. Os antepassados da etnia merina atravessaram assombrosas extenses do ndico, saindo da Insulndia para alcanar Madagascar, mais tarde se miscigenando com outros povos, originrios da frica continental e de outras regies da sia Ocidental (ver, a respeito, Campbell, 2005). Note-se que, alm das chamadas grandes vagas migratrias, contextos menos cinematogrficos ensejaram amplo rol de contatos. Um registro importante diz respeito ao comrcio, tanto de curta quanto longa distncia, ambos com registro antiqssimo no continente. Contrariando as estereotipias referentes a uma frica encarcerada por rugosidades naturais, redes de trocas estiveram fortemente presentes no espao africano, animando todo o serto do continente. Na realidade, a frica foi prdiga em trilhas que, alm de permitirem o trnsito de inovaes culturais, constituram, evidente, canais para que se processassem fuses culturais de todo o tipo. Recorde-se que, apesar de existirem milhares de aldeias encravadas em regies naturais, isso nunca significou inexistncia de contatos ou de comrcio. As trocas externas aldeia ou regio eram muitas vezes de volume limitado, tanto pela reduzida quantidade de excedentes quanto pela dificuldade dos transportes. Mas, apesar disso, as trocas sempre existiam. Isso porque na frica o comrcio possua vrios significados, no se restringindo a um papel meramente econmico. Os mercados africanos eram a contrapartida autarquia da sociedade tradicional, espao nos quais se fortificava o sentimento de solidariedade e a conscincia coletiva das comunidades. Alm do comrcio de curta distncia, percursos atravessando grandes distncias, fartamente documentados, tambm desempenharam relevante papel. Um desses casos refere-se ao comrcio da noz de cola, fruto com propriedades psicoestimulantes largamente consumido em vastas regies do continente em ritos cerimoniais e religiosos. Outro diz respeito Rota do Sal, ligando as comunidades agrcolas do Nger com as salinas saarianas, trfico secularmente dominado pelos tuaregues. Tais circuitos de trocas, eventualmente identificados com determinados espaos naturais e regies, no tardaram a ultrapass-los, atingindo reas externas ao que posteriormente seria definido como frica e derivando em autnticos contatos transcontinentais. NOVOS TRAJETOS DA NOZ DE COLA A noz de cola um dos itens da longa listagem de plantas identificadas pelos africanos no seu meio ambiente. Comercializada na frica a longas distncias, chegou Amrica com os escravos. Pela sua ao estimulante, recorria-se a ela para atenuar a exausto fsica. Nas religies afro-americanas, a noz de cola indispensvel em muitos dos rituais. Na umbanda e no candombl, serve de oferenda e usada em prticas divinatrias. No Brasil conhecida pelos nomes de abaj, caf-do-sudo, cola, mukezu, obi, oribi, orob e orob. A noz de cola constituiu uma das matrias-primas originais dos ditos refrigerantes de cola, dentre os quais a coca-cola e a pepsi-cola. Exemplificando, comerciantes da etnia soninke, partindo do que hoje constitui o trecho maliano do Rio Nger, muito antes do surgimento de Cartago, de Roma ou dos rabes, percorreram durante vrios sculos a savana sudanesa. Esse trnsito animou uma florescente urbanizao na regio. Pesquisas arqueolgicas comprovam que as origens da cidade mercantil de Djenn remontaria aos idos do sculo III a.C. Mais alm, esses mercadores mantiveram, ao menos desde os sculos V e VI d.C.,um ativo trfico comercial com o Mediterrneo, que adquiria ouro, peles, marfim e muitos outros itens africanos de um comrcio suntuoso, atendendo as elites de pases estrangeiros. Esses contatos foram ganhando corpo medida que se alastrava o conhecimento de certas demandas, integrando diversos povos num horizonte geogrfico consubstanciado em rotas que uniam continentes entre si. Na seqncia, caminhos transcontinentais cortando o oceano de areia, pedras e mataces rochosos, isto , o Saara, fazem a sua apario. O deserto foi cortado por vrias rotas terrestres, sem contar o vale do Nilo, um corredor perptuo unindo as savanas sudanesas com o Mediterrneo. Outro caminho atravessava um oceano de guas salgadas, ou seja, o Indico. As rotas saarianas entrelaavam os pases sul-saarianos com a frica do Norte, Europa e Oriente Mdio. Quanto ao priplo martimo, este colocou a frica Oriental em contato com a Arbia, Prsia, ndia, Malaia, China e outras regies da sia Oriental. Essas rotas transcontinentais resultaram de um acmulo imemorial de informaes e da conexo entre redes regionais engendradas no mais remoto passado. No caso do Saara, o chamado Caminho dos Carros, itinerrio transaariano identificado com base em desenhos rupestres representando veculos puxados por cavalos, tem sua origem em vias trilhadas desde tempos pr-histricos (CF. PAIGO, 1975, p. 20). Outro exemplo bastante conhecido refere-se rota que cortava Saara e atingia as praias do Mediterrneo, conhecida pelos europeus como Rota do Ouro. Assinale-se que os caminhos saarianos sofreram vrias alteraesconsoante guerras, invases e inclusive transformaes ambientais. Tempos atrs, a regio constitua domnio savaneiro cuja gradativa desertificao impactou o traado das rotas, apoiando-se depois em osis e num sistema de poos. Destacando-se como eixo da circulao de riquezas, as trilhas saarianas se tornaram objeto de disputas, respaldando o surgimento de Estados tradicionais voltados para o controle do comrcio de longa distncia. Na frica, obedecendo a uma tendncia muito difundida no chamado mundo pr-moderno, vrios imprios foram estruturados a partirdo assenhoreamento de fluxos e de circuitos espaciais a eles anteriores de ANTIGAS ROTAS DE COMRCIO TRANSAARIANAS NGER-MEDITERRNEOFonte: Histria da Guin e Ilhas de Cabo Verde. Porto: Afrontamento, 1974.longa data. Esse foi, seguramente, o caso de imprios sudaneses, como o Kanem-Bornu (situado no que hoje a Repblica do Tchad), de Ghana30 (atual Mauritnia), do Mali e do Songhai (ambos ao longo do curso superior do Rio Nger). Assinale-se que, em cenrios como o Kanem-Bornu, Mali e Songhai, as rotas saarianas, cujo direcionamento era predominantemente norte-sul, encadeavam-se com as trilhas da Savana, que pontuando como uma espcie de corredor natural dispunham de caminhos aprumados no sentido leste-oeste. Desse modo, os caminhos saarianos associavam-se com regies ainda mais distantes. Na direo do Golfo da Guin, as rotas30 Atentar para o fato de que a atual Repblica do Gana, grafada sem h, no tem qualquer relao geogrfica com o Imprio do Ghana. A denominao Gana foi adotada no governo nacionalista de Kwam Nkruma com o intuito de rebatizar a antiga Colnia Britnica da Costa do Ouro com uma referncia africana.do velho comrcio tradicional que associava a produo savaneira da floresta tropical e do baixo Nger eram percorridas pelos comerciantes, alcanando tambm povos da bacia do Lago Tchad. No toa, ento, que os intercmbios culturais tenham se difundido por vastos territrios, de uma banda outra das franjas do Saara, porventura mais alm ainda. AFRICANOS CRUZANDO 0 ATLNTICO Estado que tinha no comrcio uma das suas notas marcantes, o Imprio do Mali no foi alheio navegao martima. Existem relatos de duas gigantescas expedies lanadas no Atlntico formadas por 2.000 embarcaes, que demandaram na direo do Oeste, ou seja, da Amrica. Mesmo que a possibilidade de terem ou no alcanado o continente americano constitua alvo de controvrsias, por si s a capacidade de organizar frotas dessa envergadura demonstra o poderio e o talento organizacional de um Estado tradicional africano que a historiografia ocidental tem solenemente ignorado (CF. Waldman, 2000 e 2002). As guas ocenicas do Indico subsidiaram alguns dos mais importantes fatos histricos do continente africano. A presena de correntes martimas e atuao das massas de ar facilitaram contatos, aproximando povos e regies. Um desses casos refere-se corrente martima sul-equatorial, permitindo o povoamento da ilha de Madagascar por malaios, processo complexo que envolveu muitas levas de povos da sia e da frica. Outro caso, ainda mais notvel, associa-se ao aproveitamento do mecanismo natural formado pelas mones. O ciclo monnico, estruturado na alternncia das massas de alta e de baixa presso, contribuiu para que vastas regies contassem com o contato regular facilitado pela natureza. No vero, esse regime de ventos e correntes de ar unia a frica Oriental Arbia, Arbia ndia, ndia Indonsia e Indonsia China. No inverno, gies contatavam-se no sentido inverso (CF.Breton, 1990, p. 33). O contato mantido no ndico entre a frica e a sia muulmana permitiu o surgimento da civilizao swahili, que floresceu na costa oriental africana. Resultou do intercruzamento de dez sculos de influncias rabes (principalmente do Yemen e Oman), persas (da cidade de Xiraz), indianas e europias com as da frica tradicional. Organizada em cidades e fortalezas erguidas ao longo do litoral, essa civilizao deixou marcas profundas, a comear pelo kiswahili, a lngua africana mais difundida no continente. Sintetizando, possvel perceber que uma mensagem incisiva desse texto frisar que a frica nunca esteve, ao longo histria, fechada para contatos. Bero da humanidade e da civilizao, injustamente lacrada por categorias preconceituosamente construdas com o objetivo de domin-la, o estudo da frica propicia uma releitura passvel de ser desenvolvida mediante uma abertura de outro mote. Essa abertura trata de romper com o pensamento eurocntrico e com as doutrinas que estabelecem hierarquias para diferenciar os indivduos como forma de integr-los desigualmente, ao mesmo tempo que os estigmatizam, impedindo que deixem de perpetuar-se enquanto rejeitados e excludos31. Desse modo, buscando continuar esta avaliao, nos prximos pargrafos polemizaremos com outras referncias, que nos certificam a respeito da frica, dos seus limites e, especialmente, do seu alcance, tornando o nosso olhar ainda mais amplo.A identidade do continente, o Saara e as suas implicaesE conformidade com o que foi colocado, no haveria como sustentar a tese de um continente solitrio, carecendo ou repudiando contatos com o resto do mundo. Pelo contrrio, me da espcie e da civilizao humanas, a frica ofereceu todas as facilidades para que florescesse no seu bojo uma pujante diversidade. Nesse sentido, seria difcil imaginar31 Baseado em Georges Balandier, in Dinmicas sociais: sentido e poder. So Paulo: Difel, 1976, cap. IV, Mitos Polticos de Colonizao e Descolonizao (pp. 202-215). que o continente explicitasse algo menos do que um diferenciado mosaico histrico, social e cultural ao longo da sua histria. No entanto, recordemos que a percepo europia do continente, elaborada na esteira do processo da expanso martima e comercial, excluiu tal constatao. Seqela inevitvel da pretenso inerente s concepes que delimitam espaos de ndole continental, o seu resultado direto foi um imaginrio avesso identificao de particularismos. Desse modo, a imagem do continente foi desenvolvida ignorando diferenciaes tnicas, lingsticas, religiosas e culturais. Mais ainda, a frica foi expurgada das suas especificidades para ingressar num severo regime de estereotipias, repleto de adjetivaes negativas (Waldman,2004e2006b). Reconhecidamente, a imagem reservada frica designava um espao assoberbado pela opresso dos dados naturais, assolado pela indigncia cultural e pela inferioridade diante da civilizao europia. Nesse recorte, existiriam apenas populaes destinadas a ser sujeitadas, jamais compreendidas. Assim, a singularidade de os africanos se expressarem, por exemplo, por meio de idiomas resolutamente dspares, como o somali, herero, fon, sandawe ou dinka, foi indiferente aos senhores europeus. Afinal, todas as lnguas do continente no passariam de formas igualmente aberrantes de expresso. Desse modo, seriam indignas da ateno dos civilizados. O fato de a frica constituir um dos beros da escrita foi coerentemente secundarizado pelos dominadores europeus. Recorde-se que, alm dos hierglifos egpcios, uma das primeiras escritas criadas pela humanidade, o continente fez uso de sistemas como o merodico, o nbio antigo, o copta, o tifinagh32, o ge'ez33 e o hamun34. Ideogramas estilizados nsidibi, inventados pelos ejagham da Nigria e do Camares35 e muitas outras tipologias de sinais grficos tambm poderiam arroladas. Todos esses 32 O tifinagh um milenar sistema de escrita utilizado pelos tuaregues, aparentemente derivado do alfabeto pnico de Cartago. 33 Alm de constituir alfabeto da lngua homnima, outros idiomas da Etipia e da Eritria, tais como o ahmrico e o tygrinia, igualmente fazem uso desse sistema de escrita. 34 Tambm denominado Aka Uku, esse sistema foi utilizado no sculo XIX pela administrao do Reino Bamun, situado em parte do que atualmente a Repblica do Camares. 35 Alguns desses sinais atravessaram o Atlntico, fazendo presena nas religies afro-americanas. Eu sou um estudante. Meu professor se chama Kputayoum. Quanto ao nosso diretor, ele se chama Ngoupayou. A cabea dele pequena e, alm disso, ele anda como um carneiro. Toda vez que ele chega na escola, ele pe seu cajado para trabalhar e os alunos choram. Toda vez que ele sai da escola, os alunos o insultam at dizer chega. Meu professor Kputayoum um bom professor. Mas meu diretor Ngoupayou uma pessoa m. Os estudantes deram a ele um apelido adequado. Ele conhecido como Senhor Porrete.Vida escolar na descrio de um estudante num texto Bamun (atual Repblica dos Camares).cdigos de escrita, diferentes uns dos outros, respaldam a aferio de que, uma vez repassando informaes de interesse para as suas respectivas sociedades, estariam, ao lado do seu aspecto prtico, imbudos de indiscutvel valor cultural (cf. Mafundikwa, 2000). Ademais, independentemente dos sistemas autctones, ressalve-se que os africanos incorporaram s suas demandas civilizatrias escritas externas ao continente. assim que vrias populaes convertidas ao islamismo, para as quais a escrita rabe constitua referncia para a compreenso do Alcoro - caso dos somali, bedawi, mandinga, songhai, dos comorenses, nbios e grupos berberes -, adotaram-na na transmisso dos seus idiomas. Povos no-muulmanos, como os malgaches, por exemplo, tambm utilizaram o alfabeto rabe. Por sua vez, lnguas francas ou veiculares, como o kiswahili, hauss e wolof, foram vertidas para o alfabeto rabe ou adaptaes do mesmo. Entre os abecedrios inspirados no rabe, contam-se o ajami (ou ajam), difundido entre os hauss e os fula, e o wolofal, entre os wolof. Para arrematar, a adoo da oralidade por muitos povos africanos terminou instrumentalizada como sinal de analfabetismo. Deve-se entender que a expresso analfabetismo no faz sentido para o homem africano, at porque suas opes culturais sempre permitiram comunicao eficiente dispensando inclusive em muitos contextos a palavra escrita. Para muitas formaes sociais africanas, a oralidade uma modalidade socialmente consensada de comunicao, prefigurando um conhecimento total vinculado a uma perspectiva cosmolgica peculiar conscincia tradicional, no podendo ser desvinculada desta (ver Hampat-b, 1993, p. 182). Tal nuana justifica a proeminncia dos griots, como so conhecidos os contadores de histria, em particular no cenrio cultural da frica Ocidental. Os griots resguardaram vasto repertrio de contos, provrbios e relatos histricos, possuindo um status social especial, conferido pela tradio e honorabilizado desde tempos imemoriais. Na frica, a sua atuao reveste-se de importncia primordial em termos da perpetuao da memria. Foi por meio de sucessivas geraes de griots que o passado36 Considera-se lngua veicular o cdigo lingstico utilizado para contatos entre povos, grupos e etnias diferentes entre si. Um dos recortes antropolgicos que caracterizam uma lngua veicular o fato de estabelecer uma ponte lingstica, permitindo ao membro de um grupo comunicar-se com outro grupo sem abdicar do seu idioma, isto , da sua identidade.de muitas sociedades do continente foi fixado, em alguns casos remontando a tempos longnquos, um registro prodigioso nos termos da sua factualidade. A LONGA MEMRIA DOS CONTADORES DE HISTRIA No h nenhum exagero em afirmar que muitos relatos dos griots perdem-se literalmente na noite dos tempos. Eis o que nos relata o sbio maliano Amadou Hampat-B (1993, p. 216): Tomemos o exemplo de Thianaba, a serpente mtica Fula, cuja lenda narra suas aventuras e migrao pela savana africana, a partir do Atlntico. Por volta de 1921, o engenheiro Belime, encarregado de construir a barragem de Sansanding, teve a curiosidade de seguir passo a passo as indicaes geogrficas da lenda, que ele havia aprendido com Hammadi Djenngoudo, grande conhecedor Fula. Para sua surpresa, descobriu o antigo leito do Nger. Contudo, isso foi ignorado pelos conquistadores. Pior, na verdade os colonialistas patrocinaram o analfabetismo, quando, apoiados nos missionrios europeus, foraram a substituio do alfabeto rabe pelo latino, medida empregada pelas potncias coloniais em toda a frica Sul-saariana com a finalidade de destruir a herana cultural dos povos submetidos. A mesma sina acometeu, de um modo ou de outro, os demais sistemas de escrita do continente. O resultado foi uma nova gerao de africanos analfabetos no prprio idioma e escassamente alfabetizados nos idiomas do colonizador europeu. Quanto religio, aos olhos dos cristos europeus, as marcantes diferenas entre as religies tradicionais africanas desapareciam, uniformemente enquadradas sob o rtulo de cultos pagos, execrados pelas autoridades da Igreja e perseguidos sem trgua pelas autoridades coloniais. Outras confisses religiosas, mesmo no sendo pags e inclusive professando um monotesmo de longa data, tambm foram repudiadas. No faltaram, por exemplo, objees papais aos rituais secularmente en-dossados pela Igreja Copta da Etipia e Eritria, adepta de uma modalidade prpria do cristianismo que manteve, por exemplo, muitas prticas judaicas. Quanto ao contato dos europeus com os muulmanos, estes degeneraram, como na costa swahili, em conflitos que sem qualquer exagero vrios historiadores definem como uma continuao das cruzadas (ver Al-Zinjibari, 2005). No podemos esquecer que a identificao do continente como um espao andino e indiferenciado, exclusivamente fadado sujeio diante do taco europeu, contou desde seus incios com a sano das mais altas autoridades eclesisticas. Indo direto ao ponto: a Bula Dum diversas, de 1452, chancelada pelo papa Nicolau V, autorizava Afonso V de Portugal a escravizar os infiis da frica Ocidental. Aprimorando essa invectiva, outra Bula, a Romanus Pontifex de 1455, encaminhada pelo papa Nicolau V, concedia o direito de conquistar e escravizar todas as populaes ao sul do Cabo Bojador. Durante dcadas, a existncia de alma nos negros ou a possibilidade de ingressarem no paraso de Deus era objeto de acirradas discusses no seio da Igreja. Buscando-se legitimar a sua dominao, descaradamente despiam os africanos de qualquer trao de dignidade. Nessa seqncia, os europeus, reduzindo os africanos condio de tribos privadas de identidade cultural - quando no de humanidade em si mesma -, no discerniam reinos, povos nem etnias. Os negros apenas configurariam uma massa ignara, cuja vocao seria servir ao homem branco. Essa atmosfera hostil ao africano e sua cultura era evidentemente impeditiva da percepo das suas especificidades. Exatamente por essa razo, durante a escravido os africanos raramente foram identificados pelo seu grupo cultural, mas sim pelos portos nos quais eram embarcados para a Amrica. Exemplificando, no Brasil os escravos eram designados como pertencentes a grupos (ou naes) como Moambique, Cabinda, Benguela, Moamedes, Mina, Guin, Senegmbia, et, denominaes de localidades o regies das instalaes do trfico de escravos, todas desprovidas de embasamento etno-cultural e lingstico. Analisemos as ponderaes do historiador brasileiro Mrio Maestri quanto aos chamados negros Moambique: A nacionalidade moambicana de milhares de cativos transportados para as Amricas no deve motivar falsas interpretaes. Estes africanos, geralmente exportados atravs da ilha de Moambique - dela tomavam o sobrenome eram trazidos dos mais diversos pontos da frica Centro-Oriental e Meridional. A ilha de Moambique, no extremo norte dos territrios da Repblica Popular de Moambique, era ento a capital dos estabelecimentos portugueses da frica Oriental (maestri, 1988, p. 92). Assim sendo, o enquadramento toponmico da frica, enquanto continente despojado de particularismos, implicou, durante sculos, o no reconhecimento da vibrante diversidade que perpassava de alto a baixo o tecido social e cultural africano. Nessa perspectiva, a necessidade de desconstruo desse imaginrio impe-se por si mesma. Isso sem esquecer que a percepo da diversidade no pode perder de vista a crtica s vises que, em nome do seu reconhecimento, induzem - quando certificam, por exemplo, a irredutibilidade de um sentimento tribal que tornaria ingovernvel a frica - uma postura afro-pessimista. Outro lineamento aquele que permite apreciar uma identidade maior, a unidade que, nos planos social, cultural, geogrfico e histrico, solda o continente no seu sentido mais amplo. Como ser visto, o fato de nunca ter passado pela cabea dos ovimbundo, nuer, manjaco e falasha37 a possibilidade de integrarem uma mesma categoria - qual seja, a de serem africanos - em nada depe contra a existncia de traos comuns para o conjunto do continente. Alis, a diversidade conectava-se com estratgias que permitiam a consolidao de formas mais complexas de solidariedade social, entre as quais as relacionadas com o funcionamento do comrcio tradicional. por meio desse prisma, apreendendo as formas prprias de viver e de pensar do homem africano, que se torna possvel entender uma concepo abarcando positivamente - e no negativamente - esta vasta dimenso continental, os seus povos e culturas. Nessa linha de compreenso, uma considerao essencial reporta existncia do Saara enquanto interregno discriminando dois grandes conjuntos no continente africano. Continuamente destacado, o Saara nunca funcionou como barreira separando os povos da margem mediterrnea da frica das populaes estabelecidas ao sul do deserto. Atuando como um filtro, o deserto fez com que os dados culturais transitassem com seletividade, atenuando certas influncias e brecando, vez por outra, a sua capilaridade. No limite, o Saara permitiu que dois ritmos histricos se estabelecessem nos dois espaos diante dos quais se intercalava, permitindo uma evoluo cultural que guardava traos especficos para cada conjunto. Desse modo, por exemplo, se torna compreensvel que, enquanto o norte da frica foi islamizado em um perodo relativamente curto, a progresso da religio muulmana ao sul do Saara foi bem mais lenta. Primeiramente o Islam seduziu populaes nmades e dos osis; depois criou ncleos em meio s cidades comerciais; apenas mais tarde impregnou parcelas do mundo tradicional, mesmo assim encontrando resistncia por parte de populaes que, como os dogon (etnia que no Mali habita a curva proeminente do Rio Nger), permaneceram majoritariamente adeptas das religies locais. Ainda hoje o Islam disputa a simpatia de muitos africanos ao sul do Saara, eventualmente desdobrando-se em sincretismos e em outras formas de convivncia com tradies ancestrais. Embora nem sempre esse processo tenha apelado para uma convivncia pacfica - at porque a islamizao tambm conduziu a muitos conflitos -, a associao com as tradies locais foi incontestavelmente freqente. Tais diferenas no passaram despercebidas aos rabes que, por exemplo, visitaram o Imprio do Mali, um Estado tradicional eventualmente rubricado como islmico. Os soberanos desse imprio, os mansa muulmanos, mantinham-se fiis a muitos rituais autctones, exercendo o seu poder do mesmo modo que outras monarquias tradicionais e apelando a cdigos culturais idnticos aos dos seus vizinhos infiis. Exemplificando, notemos a ponderao do historiador senegals Djibril Tamsir Niane a respeito da impresso causada pelos mansa ao viajante rabe Ibn Batuta em pleno sculo XIV: Ibn Batuta escandalizou-se com algumas prticas pouco ortodoxas; excetuando-se a presena dos rabes e o fraco verniz muulmano, o que se passava na corte dos Mansa era pouco diferente do que se poderia observar na corte dos reis no-muulmanos, como por exemplo, os Mossi (Niane, 1984, p. 170-172). Outro aspecto a supremacia que a lngua e cultura rabes detm no Norte da frica. A despeito de uma srie de particularismos regionais - a comear pela sobrevivncia de milhes de falantes de lnguas berberes e de tradies que discrepam das introduzidas pelos rabes ambas se tornaram claramente hegemnicas nessa parte do continente, processo que se afirmou paralelamente expanso do islamismo. Nada disso se verificou ao sul do Saara, onde os povos que aderiram ao Islam mantiveram as suas lnguas e literaturas autctones, e o rabe, via de regra, reduz-se liturgia. Mesmo os que se expressam nessa lngua, muitas vezes utilizam dialetos de difcil compreenso para os que se comunicam exclusivamente em rabe-padro. Outra peculiaridade que em muitas regies da frica sul-saariana a expanso do islamismo apoiou-se em movimentos, coalizes e reinos substantivando um dinamismo sem qualquer relao direta com o Norte do continente ou com o Machrek. Na Nigria setentrional, alteraes polticas significativas ocorreram como conseqncia da expanso hauss no incio do sculo XIX, tendo testa uma liderana de origem fula, Osman dan Fodio. Esse chefe guerreiro muulmano reuniu parcelas significativas do Norte nigeriano e adjacncias sob controle de um imprio com centro na cidade de Sokoto, epicentro de um movimento revivalista islmico que terminou influenciando reas situadas ainda mais alm desse centro urbano. Cabalmente, a conscincia das diferenas que separam o Norte do Sul do continente antiga. Desde tempos muito recuados, as populaes ao Norte do Saara fizeram uso de uma srie de topnimos para identificar os espaos e as populaes do alm deserto. Um deles a expresso de origem rabe Bilad-es-Sudan, significando Pas dos Negros, Nesse particular, cabe lembrar que o territrio que se estende das franjas do deserto do Saara ao extremo Sul do continente africano, grafado ora como frica Negra, oracomo frica Subsaariana, ao lado da diversidade de prticas culturais, apresenta concepes compartilhadas por centenas de grupos. SUDO NO S UM PAS O termo Sudan - isto , Sudo em portugus - foi incorporado pela geografia colonial europia para designar os pases situados entre o Mar Vermelho e o Atlntico, acompanhando a faixa de savanas e estepes ao sul do Saara. A atual Repblica do Sudo nada mais do que o antigo Sudo Oriental ou Sudo Anglo-Egpcio, que coexistia com o chamado Sudo Francs, a Oeste. O topnimo tambm se associa aos chamados povos sudaneses, que habitam a regio entre o Saara e o Golfo da Guin, a chamada frica Intertropical. Abarcando conjuntos culturais e lingsticos inteiros, tal fisionomia comum, chamada civilizao no singular ou, para frisar uma terminologia mais contempornea, africanidade, limita-se exclusivamente frica Subsaariana, frica dita negra. Nessa acepo, a terminologia frica refere-se a um conjunto de valores, posturas e concepes que especificam uma forma determinada de ser e de pensar, no se confundindo com o continente na sua explicitao propriamente geogrfica (cf. Munanga, 1984, p. 30). Substantivando-se enquanto verdadeiro padro civilizatrio, esse modelo seria, por exemplo, indissocivel da vivncia de sociedades visceralmente comunitrias, regidas pelo consenso e pela tradio; do conceito de foras vitais, encontradas nos reinos animal, vegetal e mineral e que estabelecem uma hierarquia de relaes com os humanos; da oralidade enquanto forma de organizao do conhecimento e de manipulao das foras vitais; da noo de ancestralidade, comum a quase toda a frica Negra; da noo de famlia extensa, encontrada em todo o contexto sul-saariano; da sacralizao do poder, perpassando as estruturas tradicio-38 Uma exceo notvel seriam os grupos pigmeus, que no comungam essa noo.nais de mando; da no-dissociao entre tempo e espao, noo inerente ao mundo pr-moderno, mas que, no entanto, sobretudo africana. Todos esses elementos esto, de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau, presentes na frica negra ou subsaariana. Isso de uma forma distinta e peculiar do que ocorre nos espaos situados na franja norte do grande deserto (cf. Leite, 1984,1992 e 1993). Certamente, nada disso implica afirmar que os dois blocos desenhados a partir do filtro saariano tenham sido impermeveis um ao outro nem que seus dinamismos culturais se desenvolveram de modo estanque um relativamente ao outro. Conforme j assinalamos, se no Egito existe uma forte marca cultural negra, no Sul do Saara possvel observar elementos culturais importados do Norte - a comear pelo islamismo -hoje em dia inseparveis de muitas culturas locais. Alm disso, vimos que o intercmbio entre as duas fricas data pelo menos da pr-histria. esse contato de longa data entre as duas franjas do deserto que permite identificar vastos complexos culturais, agregando populaes africanas e, alhures, uma evidncia explicitada, por exemplo, na famlia lingstica afro-asitica. Essas observaes sustentam uma perspectiva pela qual, embora a identidade norte-africana seja diferente da que encontramos ao sul do Saara, ela no pressupe um estranhamento absoluto entre esses dois conjuntos, nem do ponto de vista histrico-cultural, nem do ponto de vista geogrfico-econmico. Nesse sentido, seguramente um aspecto que alimenta insistentemente uma srie de polmicas associa-se s terminologias utilizadas para definir ambas as regies e que, no limite, reportam exatamente s dificuldades em conceitu-las. Faamos, pois, uma avaliao das regies situadas no Norte do Saara, isto , a frica do Norte ou Setentrional, como j dito, predominantemente de fala rabe (ademais, lngua oficial em todos os pases dessa parte do continente) e prxima,39 Esta famlia rene diversos grupos ou subfamlias de idiomas da frica e do Oriente Mdio, entre os quais as lnguas berberes (tuareg, tamazigh), semticas (hebraico, amrico, rabe, ge'ez), cushticas (somali), tchdicas (hauss), omticas (diversas lnguas do Sudoeste da Etipia) e, alm dessas, o egpcio antigo e o seu desdobramento, o copta.em muitos sentidos, do Machrek, topnimo rabe que corresponde, em linhas gerais, ao que a geografia europia define como Oriente Mdio. Etimologicamente, Machrek significa Ilha de Oriente, isto , os pases levantinos, a pennsula arbica, o Iran, a sia Central e outros da Grande Diagonal rida. Muitos consideram essa expresso prefervel a Oriente Mdio, termo que somente se justificaria se pensarmos uma regio situada na metade ou a meio caminho entre a Europa e a ndia. O Machrek, no imaginrio espacial rabe, contrape-se ao Magreb, ou Ilha de Ocidente, correspondendo aos atuais Marrocos, Arglia e Tunsia. Naturalmente, a idia de Machrek vincula-se, grosso modo, com a noo de mundo rabe, e melhor ainda, islmico. Numa definio algo consensual, a frica do Norte ou Setentrional incluiria o Marrocos, Saara Ocidental, Arglia, Tunsia, Lbia e Egito, e, dependendo do autor, vrios outros pases. A ttulo de exemplo, algumas publicaes incluem a Mauritnia e mesmo o Sudo nesse conjunto. Excepcionalmente, autores mais ousados agregam pases sahelianos como o Nger, o Tchad e o Mali. Quanto aos trs pases a oeste, ou seja, o Marrocos, a Arglia e a Tunsia, formam como foi dito o Magreb, distinto das mais diversas formas dos demais pases rabes, a comear pelo forte substrato berbere das suas populaes. Relativamente ao Egito, trata-se de um pas cuja histria muito anterior aos rabes, qual a Lbia freqentemente esteve relacionada. COLNIA DE EX-COLNIA O Saara Ocidental, antiga colnia espanhola formada pelas regies do Saguit-el-Amra e Rio de Ouro, foi ocupado pelo Marrocos em 1975, que passou a explorar ilegalmente os depsitos de fosfato desse pas, os maiores do mundo. A Frente Polisrio bate-se desde 1976 pela independncia do Saara, reconhecido como nao integrante da Unio Africana. Constituindo um pas de jure, mas que no existe de fato, o Saara um melanclico episdio de colonialismo exercido pelo Marrocos, ex-possesso francesa que exerce papel discrepante daquele das suas lutas pela independncia. Ora, talvez a primeira questo a ser levantada que todos esses pases, seja qual for o grau de arabizao que apresentem, possuem fortes vnculos com o Sul do continente. Particularmente irritante aos olhos de muitos especialistas a expresso frica Branca reservada para defini-los. No sem razo, a terminologia solicita vrias ressalvas. Primeiramente porque a chamada frica Branca no seria assim to branca. A populao desses pases resultou de uma ampla miscigenao com populaes negras no decorrer de muitos milnios, contato que se mantm at os dias de hoje. Por isso mesmo, em muitas reas da frica Setentrional a populao apresenta traos acentuadamente negros, pelo que o termo branco nessa parte do continente , antes de tudo, uma comparao com grupos ainda mais negros do Sul. Outro equvoco seria subentender a frica do Norte como rabe. Ainda que nessa parte do continente a expanso do Islam tenha - ao contrrio da frica ao sul do Saara - se implantado em paralelo comFotos de dois eminentes lderes egpcios contemporneos (Gamal Abdel-Nasser e Anwar Sadat). Indiscutivelmente ambos apresentam traos que os associam frica ao Sul do Saara. Para os padres do continente poderiam at mesmo ser julgados como brancos. Entretanto seria esse o julgamento caso vivessem na Flungria, na Sua ou na Dinamarca? Eles seriam brancos nesses pases?uma intensa arabizao da populao local, esse processo, contudo, nunca foi completado. Principalmente no Marrocos e na Arglia sobreviveram, por exemplo, grupos compactos que ainda hoje utilizam idiomas berberes. No fosse suficiente, existem questes como a dos pases africanos que participam da Liga rabe, mas cujas caractersticas histricas e culturais permitiriam questionar os aspectos que os definem como rabes. Exemplificando, embora a influncia histrica dos rabes em pases como a Mauritnia e o Sudo seja indiscutvel, ambos, no entanto, apresentam significativos segmentos de populao que no se identificam nem pretendem identificar-se como rabes. Nesses dois pases, uma elite arabizante busca h vrias dcadas impor um projeto islmico de governo associado lngua e cultura rabe, consolidando uma aliana com os pases da frica do Norte e do Machrek. Certamente essa estratgia aponta para a expanso de um espao lingstico - o da lngua rabe -, que se apresenta como elemento unificador, a despeito das suas variantes. Porm, isso em nada permitiria entender as populaes desses pases como propriamente rabes. Basicamente, na Mauritnia e no Sudo as populaes muulmanas nortistas, que se consideram rabes, procuram dominar as sulistas, cujos idiomas e tradies os relacionam com o contexto sul-saariano. A resposta a essa poltica determinada resistncia armada das populaes negras, que se recusam a aceitar tal projeto. No caso sudans, o problema assume feies particularmente drsticas, com sucessivos massacres dos sulistas, majoritariamente cristos e adeptos das religies tradicionais. Essa guerra intestina, travada praticamente desde a independncia (e que no tem dado mostras de arrefecimento), sem dvida alguma o mais trgico exemplo da problematizao das diferenas no continente africano. Conseqentemente, o entendimento de alguns textos no sentido de definir o Sudo - assim como a Mauritnia - como integrando a frica Setentrional implicaria legitimar uma viso respaldada claramente por um projeto poltico apoiado por um setor especfico da populao, contribuindo para com uma poltica de dominao. Implicitamente, os seto-res em luta contra o poder central rabe prontificam aspiraes que no coadunam com a tentativa de negar a bagagem histrica e cultural de populaes, cujo horizonte sensvel as associam com a banda Sul, e no com a banda Norte do Saara. Se a Mauritnia e o Sudo oferecem dificuldades para ser categorizados como pases rabes, o que dizer da Somlia, pas-membro da Liga rabe? Seria rabe em qual aspecto? E o Djibuti? E as ilhas Comores? E se lembrarmos que, nesses trs pases, a lngua rabe no constitui idioma materno? Para completar, como seria rabe um povo como o somali, que nem mesmo semita? Claro est que muitas vezes a identificao desses pases com o mundo rabe ocorre em razo de orientaes geopolticas - como o acesso aos lucros da explorao petrolfera e as disputas regionais pelo poder -, mas no de critrios propriamente tnicos ou lingsticos. Quanto caracterizao da frica Setentrional como islmica, recorde-se que ao sul do Saara a religio muulmana est presente h mais de dez sculos, possuindo mais adeptos do que qualquer outra. Ademais, contrariando determinado senso comum que sinonimiza os rabes ao islamismo, existem concentraes de no-muulmanos que alcanam certa expresso. Por exemplo, no Egito cerca de 8% da populao integra a comunidade copta. Em passado recente, existiam ainda numerosas comunidades judaicas, as quais imigraram em massa por conta da descolonizao e do conflito com Israel. Todavia, as polmicas no se restringem frica Setentrional, Branca ou rabe. A frica ao Sul do Saara tambm rene um bom nmero delas. Comecemos pela mais popularizada das terminologias: frica Negra, cujo critrio seria, como evidente, a tez escura dos povos do continente. Nessa tica, os melano-africanos, isto , africanos de pele escura, ao predominarem nas plagas sul-saarianas, constituiriam, pois, uma referncia fundante, de resto substantivada em uma srie de indicaes geogrficas como Etipia, Guin e Sudo, todas relacionadas tez escura dos seus povos. Nesse caso, certamente poderiam ser levantadas, em primeiro lugar, objees no sentido de que existem outras populaes negras na ndia (os melano-indianos) e naOceania (melansios e papuas), contestando, pois, que se fale em um continente negro. Mas no que nos interessa mais diretamente poderamos argumentar que os shiluks, macondes, merinas, afars e iorubas so todos melano-africanos, ou seja, negros de um continente especfico. Bem, e da? Na realidade, esses grupos apresentam diversas especificidades, como altura, traos faciais, tipo de cabelo e a prpria concentrao de melanina que diferem de um caso para outro. Em Ruanda, os tutsi, considerados um dos grupos humanos mais altos do mundo, so vizinhos dos twa, pigmeus locais. Na Nambia, os san, peculiares sob vrios pontos de vista, em nada se assemelham aos ovambo. Do mesmo modo, ningum convenceria os luos e os kikuios do Qunia a se verem como parte do mesmo grupo cultural e religioso. Nessa perspectiva, desde quando a cor da pele constituiria um trao passvel de agrupar etnias to diferentes quanto as que o continente abriga? E o que falar, ento, de raa negra: Ela existe? Como foi visto, a espcie humana originou-se na frica, e os seus deslocamentos pelo mundo foram secundados por intercmbios culturais e miscigenaes de todo tipo. E argumento maior: as diferenas existentes entre os humanos no permitem caracteriz-los como raa. Detalhes como cor da pele, tipo de cabelo, altura e formato dos olhos no so determinantes para a definio de um tronco racial (ver Fontette, 1976 e Appiah, 1997, p. 62-64). Por isso, argumentar em termos de raas diferenciando os humanos no possui qualquer base cientfica, uma postura temerria, dado o longo histrico de miscigenaes entre as populaes humanas. A esse respeito, bastaria conferir o pargrafo ao lado: Retrocedendo pela rvore genealgica, os antepassados de um indivduo se multiplicam em progresso geomtrica. Se um contemporneo nosso puder reconstruir sua rvore genealgica at oito geraes precedentes, isto significar que sua constituio gentica e, p conseguinte, seu aspecto fsico, serRecorde-se que, se o critrio de raa utilizado como forma de separar os seres humanos, esse tambm pode, dependendo do interlocutor, ter outros significados, identificando a diversidade com que os humanos - entendidos como uma nica raa - devem ser concretamente compreendidos. derivado de 510 antepassados que viveram por volta do ano 1700; as mestiagens so to provveis, inclusive num perodo de tempo to curto, que a pureza racial se converte em uma expresso sem sentido (Jones, 1966, p. 51). Compreensivelmente, torna-se aceitvel a rejeio de muitos autores relativamente a definies que recorrem a cores para delimitar continentes e regies. Em continuidade, podemos comentar que, se expresses como frica Branca e frica Negra atraem ampla animosidade em muitos setores da antropologia, o mesmo acontece quanto ao termo frica Subsaariana para os gegrafos. Como nos casos anteriores, ela parece sugerir pressupostos questionveis e merecedores de reparos e ressalvas. Poderamos de pronto indagar: por que justamente a parte do continente habitada pelas estigmatizadas populaes negras honorabilizada com esse Sub? Ora, se Norte e Sul so direes convencionais -dado que nada justifica, a priori, a conveno que estabelece o Norte como posio superior -, ento por que o tal Sub no poderia ser reservado ao e tradicionalmente se considera como frica Setentrional? Pela mesma lgica, qual seria o problema em inverter a posio do mapa-mndi? Em tempo: ser que os povos do Machrek gostariam dessa inverso?Fonte: Atlas geogrfico escolar/IBGE. Rio de Janeiro: IBGE, 2002.O Mundo na Projeo de Peters, subvertendo a direo norte tradicional. Em resumo, se existem dvidas conceituais a respeito da real caracterizao das duas bandas africanas do Saara, estas desaparecem quando o contexto do debate refere-se transformao das diferenas em motivo de srios conflitos polticos. A guerra civil que sacode o Sudo fala por si mesma quanto aos marcos que diferenciam as populaes ao norte e ao sul do Saara, fenmeno que tambm poderia ser localizado em outros pontos do continente nos quais grupos relacionados ao Machrek atritam com populaes negras. Esse seria o caso de Zanzibar, pas no qual a clivagem tnico-racial seguia o modelo comum da costa swahili e que foi o epicentro de uma turbulenta revoluo negra. Uma elite de origem rabe e persa dominava a ilha. Esse grupo descendia dos antigos comerciantes de especiarias, marfim e escravos, neste ltimo caso abastecendo durante sculos os mercados do Machrek. Tal setor afluente da sociedade, adulado pelos senhores britnicos, advogava inclusive que Zanzibar seria parte do Oriente Mdio, nada tendo em comum com o continente africano. A eles os colonialistas delegaram o comando da ilha em 1963. Contudo, a populao negra e pobre do pas pensava de modo diferente, alimentando outras expectativas quanto ao futuro de Zanzibar. Havia uma oposio legal - personificada em Abeid Karume - que insistia na via parlamentar. Mas a insatisfao dos setores africanos encontrou expresso na figura de John Okello, um forasteiro de origem ugandense radicado na ilha, que organizou, nas sombras, a grande insurreio contra os rabes. Em 1964, os negros da ilha iniciaram um levante utilizando como arma tudo o que estivesse ao alcance das suas mos. Assim, em questo de horas, puseram abaixo o domnio dos sultes. Logo depois, a ilha estabeleceu uma unio com Tanganica, surgindo desse pacto a Repblica Federal da Tanzania. O CREDO POLTICO DE JOHN OKELLO John Okello conseguiu adeso insurreio contra o domnio rabe em Zanzibar pelo seu trnsito nas camadas populares e por ter sintetizado em poucas sentenas o essencial do programa poltico revolucionrio. Durante meses Okello percorreu toda a ilha repetindo: - Deus deu Zanzibar aos africanos e me prometeu que chegou a hora de esta ilha nos ser devolvida. Temos que derrotar e expulsar os rabes; caso contrrio, eles no cedero o poder e continuaro a nos explorar. - Temos que saber de que lado sopra o vento; no se pode contar com o apoio daqueles que tm emprego fixo; nossa causa somente ser defendida por aqueles que esto com fome. - No devemos envolver na luta armada polticos como Karume e outros. Eles so grandes homens e seria uma pena que fossem mortos, caso sejamos derrotados. - Vamos esperar at os ingleses irem embora. Jamais conseguiremos derrot-los. Devemos atacar assim que os rabes ficarem sozinhos. Porm, a despeito da dramaticidade de situaes como as que comentamos, obrigatrio reconhecer que a frica exclui explicaes genricas, simplistas e mecnicas, apresentando nuanas inclusive em questes que, como as enfocadas, reportam a contradies que se materializam no contato entre dois padres civilizatrios, o Islmico e o da frica Tradicional. Recorde-se que, diferentemente do que ocorria com as formas de escravido criadas pela Europa crist, a lei islmica assegurava que os filhos da unio de um senhor com uma escrava seriam homens livres, assim como a genitora. Desse modo, muitos descendentes de escravos - incluindo-se neste conjunto monarcas e sultes muulmanos - foram incorporados no seio das sociedades nas quais viviam, via de regra considerando-se rabes. Desse modo, muito alm do Saara e do Mar Vermelho, encontramos milhes de afro-descendentes vivendo na frica do Norte e no Oriente Mdio, populao que se deslocou espontaneamente ou que foi levada para fora da sua rea de origem em razo do antigo comrcio de escravos. Para esse conjunto de pessoas, integrado h muitos sculos nos pases poltico revolucionrio. Durante meses Okello percorreu toda a ilha repetindo:- Deus deu Zanzibar aos africanos e me prometeu que chegou a hora de esta ilha nos ser devolvida.- Temos que derrotar e expulsar os rabes; caso contrrio, eles no cedero o poder e continuaro a nos explorar.- Temos que saber de que lado sopra o vento; no se pode contar com o apoio daqueles que tm emprego fixo; nossa causa somente ser defendida por aqueles que esto com fome.- No devemos envolver na luta armada polticos como Karume e outros. Eles so grandes homens e seria uma pena que fossem mortos, caso sejamos derrotados.- Vamos esperar at os ingleses irem embora. Jamais conseguiremos derrot-los. Devemos atacar assim que os rabes ficarem sozinhos.Porm, a despeito da dramaticidade de situaes como as que co-mentamos, obrigatrio reconhecer que a frica exclui explicaes genricas, simplistas e mecnicas, apresentando nuanas inclusive em questes que, como as enfocadas, reportam a contradies que se materializam no contato entre dois padres civilizatrios, o Islmico e o da frica Tradicional. Recorde-se que, diferentemente do que ocorria com as formas de escravido criadas pela Europa crist, a lei islmica assegurava que os filhos da unio de um senhor com uma escrava seriam homens livres, assim como a genitora. Desse modo, muitos descendentes de escravos - incluindo-se neste conjunto monarcas e sultes muulmanos - foram incorporados no seio das sociedades nas quais viviam, via de regra considerando-se rabes.Desse modo, muito alm do Saara e do Mar Vermelho, encontramos milhes de afrodescendentes vivendo na frica do Norte e no Oriente Mdio, populao que se deslocou espontaneamente ou que foi levada para fora da sua rea de origem em razo do antigo comrcio de escravos. Para esse conjunto de pessoas, integrado h muitos sculos nos pases moo da cultura berbere. Numa escala menor, outras mobilizaes so esperadas na Tunsia, Lbia e Egito, naes que abrigam vrios ncleos de berberes nos seus territrios42.Esta redescoberta da diversidade no Norte da frica em si mesma catalisadora da unio dos povos e dos pases africanos, processo em desenvolvimento desde as lutas pela independncia dos pases do continente. Essa uma evidncia adicional de que a unidade no continente africano vincula-se diretamente ao reconhecimento da sua diversidade, seja ao norte, seja ao sul do Saara.A mais eloqente expresso dessa expectativa, a Organizao da Unidade Africana (OUA), foi fundada em 25 de maio de 1963 em Adis Abeba, capital da Etipia, reunindo os pases africanos independentes, tanto ao norte quanto ao sul do Saara. A partir de 2 de julho de 2002, a Unio Africana (UA) sucedeu a antiga OUA. A nova organizao, tal como a sua predecessora, explicita o consenso de que o continente como um todo, particularidades parte, usufrui herana e destino comuns.UNINDO UM CONTINENTECom 53 membros, a UA rene quase todos os pases soberanos da frica. A exceo o Marrocos, que se retirou da UA em protesto pela aceitao do Saara Ocidental como membro. Entre seus objetivos esto a manuteno do equilbrio poltico no continente, a consolidao do Parlamento Pan-africano - aberto oficialmente em setembro de 2004 sob a presidncia do sul-africano Thabo Mbeki - e de um Banco Central de Desenvolvimento. A Unio Africana utiliza cinco idiomas oficiais: ingls, francs, portugus, rabe e kiswahili. Ademais, promove preferencialmente a realizao de trabalhos em idiomas locais africanos.42 No Marrocos e na Arglia, os berberes habitam freqentemente extenses montanhosas - como a cordilheira do Atlas. Na Tunsia, Lbia e Egito, muitos berberes ocupam osis saarianos, um isolamento que permitiu assegurar a manuteno da sua identidade. Por fim, no seria demasiado recordar que a frica possui alcance muito mais amplo do que os seus limites continentais. Basta lanar o olhar para as plagas americanas, onde vivem milhes de afro-descendentes. a chamada dispora negra, que, na afirmao da sua identidade cultural, volta os olhos na direo do antigo continente de origem (nesse particular, interessante notar que a Unio Africana, em seu Ato de Constituio, declara ser seu objetivo encorajar a participao da dispora africana na construo da unidade africana).Fato bvio, os afro-descendentes so os interlocutores preferenciais no promissor relacionamento que os pases americanos devem aprofundar com a frica ao Sul do Saara, iniciativa que se articula das mais diversas formas com as polticas de ao afirmativa existentes ou ora em desenvolvimento.Novamente, a preocupao em pensar o continente africano nos direciona a repensar e rediscutir a identidade brasileira. Uma mostra adicional de quanto a temtica africana vincula-se intimamente com as nossas expectativas enquanto povo e nao.Africanidade, diversidade e desafio da unidadeMarcante em toda a sua extenso, a diversidade constitui uma aferio inevitvel decorrente da anlise da frica Sul-Saariana. Seja qual for o critrio adotado, a pluralidade das etnias, lnguas e religies forma uma nota caracterstica do continente. Basta, em algumas regies, passar de uma aldeia para a seguinte a fim de ingressar em universos culturais absolutamente discrepantes um do outro. Como em certa ocasio sentenciou o escritor nigeriano Wole Soyinka43, a frica um imenso conti-nente, povoado por uma mirade de raas e culturas.Reconhecidamente, a avaliao da diversidade - tanto em si mesma como em quanto normatiza a vida dos povos sul-saarianos - impe-se en-43 Prmio Nobel de Literatura de 1986, o primeiro concedido a um homem de letras africano. quanto dado para a compreenso do continente. O seu desdobramentodireto a certificao de um nexo civilizatrio prprio, distinto dos demais padres existentes, seja este denominado africanidade, civilizao negro-africana ou quaisquer outras terminologias afins. Nesse sentido, reafirmamos a prdica j registrada nos pargrafos anteriores, sublinhando a necessidade de avaliar a realida-de africana a partir das suas expectativas civilizatrias particulares. Esse olhar busca o reconhecimento do continente a partir do seu interior, no perifericamente a ele. A compreenso da frica exige levar em considerao o que nela h de especfico na comparao com o que tipifica os demais padres civilizatrios (LEITE, 1992).Evidentemente, isso no implica concesses a vises romnticas. Da mesmo forma que nas demais formaes sociais do planeta, contradies tambm eclodiram nas sociedades subsaarianas. Contudo, esses antagonismos foram engendrados a partir de dinamismos sociais, econmicos e polticos prprios da realidade africana, no sendoredutveis a categorias utilizadas para estudar outras civilizaes. No sculo XIX, inclusive por conta das anlises da antropologia, se acendeu uma curiosidade sobre a diversidade humana da frica, preocupao da qual a imagem abaixo constitui um dos exemplos. Figura. Unicamente pensando a singularidade da frica que podemos construir uma interpretao da sua realidade, atendendo sua especificidade e contrapondo-a s que grassam junto ao chamado senso comum.Com base nessas ressalvas, o primeiro aspecto que reclama nossa ateno justamente a coleo de povos encontrados no continente. As-sim, recordemos antes de tudo o carter cabalmente pluritnico de mui-tos pases africanos. Exemplificando, Camares rene 270 etnias; a RDC, cerca de 250; o Sudo, 130; a Tanznia, 120; a Costa do Marfim, mais de 70; o Niger, 20; Zmbia, 10. Tal caracterstica tambm aparece em pases de pequena extenso. Em Burkina Fasso, convivem 68 etnias; em Benim, 54; em Togo, 45; em Uga