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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E DA NATUREZA DEPARTAMENTO DE GEOCIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA MARCOS TAVARES DA FONSECA MEMÓRIA E HISTÓRIA DA ANTIGA VILA DE CUITEZEIRAS PEDRO VELHO/RN (1861 a 1936) João Pessoa, 2006.

Memória e história da antiga Vila de Cuitezeiras - Pedro Velho/RN

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBACENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E DA NATUREZA

DEPARTAMENTO DE GEOCIÊNCIASPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

MARCOS TAVARES DA FONSECA

MEMÓRIA E HISTÓRIA DA ANTIGA VILA DE CUITEZEIRASPEDRO VELHO/RN (1861 a 1936)

João Pessoa, 2006.

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MARCOS TAVARES DA FONSECA

MEMÓRIA E HISTÓRIA DA ANTIGA VILA DE CUITEZEIRASPEDRO VELHO/RN (1861 a 1936)

Dissertação de Mestrado apresentadaao Programa de Pós-Graduação emGeografia da Universidade Federal daParaíba, em cumprimento às exigênciaspara obtenção do título de Mestre emGeografia, sob orientação da Profª DrªMaria de Fátima Ferreira Rodrigues.

João Pessoa – PBSetembro de 2006.

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F676m Fonseca, Marcos Tavares da.

Memória e História da Antiga Vila deCuitezeiras. Pedro Velho/RN (1861-1936) / MarcosTavares da Fonseca. – João Pessoa, 2006.

119p.

Orientadora: Profª. Drª. Maria de FátimaFerreira Rodrigues.

Dissertação (Mestrado) UFPB/CCEN.

1. Geografia social. 2. Memória – EngenhoCunhaú. 3. Pedro Velho – Memória. 4. Vila deCuitezeiras.

UFPB/BC CDU: 911.3:30 (043.2)

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Formatação, editoração eletrônica e capaAna Bernadete de Carvalho Accioly Soares

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MARCOS TAVARES DA FONSECA

MEMÓRIA E HISTÓRIA DA ANTIGA VILA DE CUITEZEIRASPEDRO VELHO/RN (1861 a 1936)

Dissertação de Mestrado apresentadaao Programa de Pós-Graduação emGeografia da Universidade Federal daParaíba, em cumprimento às exigênciaspara obtenção do título de Mestre emGeografia, sob orientação da Profª DrªMaria de Fátima Ferreira Rodrigues.

________________________________________________________

Profa. Dra. Maria de Fátima Ferreira RodriguesDepartamento de Geociências da Universidade Federal da Paraíba – UFPB

Orientadora

________________________________________________________

Profa. Dra. Regina Célia GonçalvesDepartamento de História da Universidade Federal da Paraíba – UFPB

1ª Examinadora

________________________________________________________

Profa. Dra. Alexandrina Luz ConceiçãoDepartamento de Geociências da Universidade Federal de Sergipe – UFS

2ª Examinadora

Dissertação aprovada em 19/09/2006.

João Pessoa – PBAgosto de 2006.

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À minha inesquecível TiaLuciIa, a quem devo todo oapoio e respeito.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por sempre me orientar pelo caminho certo na vida.

A todos os Narradores que gentil e pacientemente concederam as

entrevistas e informações.

Aos alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental José Targino –

Pedro Velho/RN – que me ajudaram nessa empreitada o meu mais profundo

agradecimento.

Ao Programa de Pós-Graduação em Geografia pela possibilidade de

formação dispensada. Aos professores do Programa que me avaliaram em algum

momento, o mais profundo respeito e sincero agradecimento pelos comentários

sempre tão pertinentes dos quais espero ter podido fazer bom uso. Pela perspicácia,

competência e seriedade acadêmica, atributos que foram a grande referência e

estímulo para continuar, a despeito de todas as dificuldades e fatores

desestimulantes.

À Profa. Dra. Maria de Fátima Ferreira Rodrigues, pela orientação e

paciência ao longo destes anos.

Aos amigos Cledenilson V. Moreira, Ana Lúcia de Lima Bezerril,

Maxencinho, Nivaldo, João Maria, por sempre estarem prontos a ajudar, nos

avanços e recuos ao longo da trajetória que termina aqui.

A todos os amigos da Prefeitura Municipal de Pedro Velho, da Secretaria

de Educação de Pedro Velho, da Escola Municipal José Targino, da Escola

Municipal Hélio Galvão e CNSP, o meu mais profundo obrigado.

A todos os colegas do Mestrado, meu agradecimento.

Aos meus pais, minha noiva, irmãos e todos que, de alguma forma,

contribuíram para conclusão desta empreitada, o meu mais profundo

agradecimento.

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RESUMO

Este trabalho tem por finalidade resgatar a história da Vila de Cuitezeiras, da suaorigem em 1861 à consolidação da cidade de Pedro Velho, em 1936, tendo amemória como papel fundamental na recuperação da vida social. Escrever essahistória demandou um resgate da memória do lugar e sobre a fundação domunicípio de Pedro Velho a partir de um viés teórico e de cunho etnográfico.Apoiei-me em autores como Pollak (1989 e 1992), Montenegro (2003),Frochtengarten (2005), Le Goff (1994), Bosi (1994), Halbwachs (1990), dentreoutros. Além disso, a história da Vila de Cuitezeiras foi recuperada a partir dasliteraturas de Lima (1997), Medeiros (1992), Cascudo (1992, 1955, 1968, 1971),dentre outros. Também fiz uso de relatos orais em entrevistas com narradoresportadores da memória do lugar: os senhores Daniel Galvão, Jaldemar Nunes, JoãoAlberto, Carlos Alberto Soares de Carvalho, Cledenilson Valdevino Moreira e JoãoHortêncio Sobrinho. Apresento também uma descrição do município. Procureiconceituar a memória e as relações existentes entre algumas de suas categorias.Estabeleci relações entre tradição e memória enfocando as categorias de tempo, apartir dos relatos; das lembranças e da cultura popular no contexto da antiga Vila.Trabalhei a memória do lugar, fazendo relações com os fatos marcantes de suahistória: a formação da Vila Nova de Cuitezeiras e a Consolidação da Cidade dePedro Velho. Nas considerações finais apresento uma análise dos fatos quemarcaram a história da Vila de Cuitezeiras a partir das vivências e a vida na novaVila após a enchente do rio Curimataú, consolidando os primeiros alicerces da novacidade. Portanto, exponho a importância do resgate da memória para a sociedadepedrovelhense e para a construção de um trabalho científico.

Palavras-chave: memória, lugar, Engenho Cunhaú, Vila de Cuitezeiras, PedroVelho.

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15

ABSTRACT

This work aims a discussion about the concept of memory recovering the history of Cuitezeirasvillage, your origin and your consolidation. This task demands a study about the memory of this place.It is a research with theoric approach and etnographic aspect. It is based on authors such as Pollak(1989 and 1992), Montenegro (2003), Frochtengarten (2005), Le Goff (1994), Bosi (1994) Halbwatchs(1990) and others. It was used oral reports in interviews with narrots of the place who know about thehistory such as Mr. Daniel Galvão, Mr. Jaldemar Nunes, Mr. Joao Alberto, Mr. Carlos Alberto Soaresde Carvalho, Mr. Cledenilson Valdevino Moreira and Mr. José Hortêncio Sobrinho. It is showed adescription of municipal district. It was elaborated a conception of memory and relations among somecategories of your categories. It was established relation between tradition and memory showing thecategories of time based on accounts, on souvenir and popular culture in context of old village. It wasemphasized the memory of place linking to relations with important facts of the history; the beginning ofnew village of Cuitezeiras and the consolidation of Pedro Velho City. On the final words it is showed ananalysis about facts of the history based on the life at new village after the flood of Curimataú Riversolidating the first basis of a new city. Therefore, It is showed the importance of memory ransom for asociety of Pedro Velho city and for building of a scientific work.

Key-words: Memory, place, Engenho Cunhaú, Vila de Cuitezeiras, Pedro Velho.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Vista aérea da cidade de Pedro Velho (RN).21

Figura 2 Vista aérea da cidade de Pedro Velho (RN). 22

Figura 3 Mapa de localização do Município de Pedro Velho. 25

Figura 4 Senhor Jaldemar Nunes. 28

Figura 5 Iconografia do Engenho Cunhaú. 29

Figura 6 Capela de Santa Rita, na antiga Cuitezeiras, única estruturaque ficou de pé após as cheias do rio Curimataú em 1901.

40

Figura 7 Senhor Daniel Galvão de Lima. 48

Figura 8 Capela do Cunhaú, local do Massacre do Cunhaú, nomunicípio de Canguaretama/RN.

53

Figura 9 Cresentia cujete. 56

Figura 10Cruzeiro da antiga Vila de Cuitezeiras, que ficou parcialmentedestruído com as cheias do rio Curimataú em 1901. 57

Figura 11 Cemitério dos “ricos” da antiga Vila de Cuitezeiras, hoje PedroVelho/RN.

62

18

Figura 12Várzea do Curimataú na região da antiga Vila de Cuitezeiras,destacadamente lembrada como sendo fértil e importante naprodução econômica do lugar estudado.

70

Figura 13 O Senhor João Alberto da Fonseca. 79

Figura 14 Estação ferroviária de Pedro Velho, Antiga Vila de Cuitezeiras. 97

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LISTA DE ABREVIATURAS

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IDEC Instituto de Desenvolvimento do Rio Grande do Norte

PRÓ-ÁLCOOL Programa Brasileiro de Álcool

TELERN Telecomunicações do Rio Grande do Norte S.A.

UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte

21

22

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – Os passos dados na construção da pesquisa 15

CAPÍTULO I – Lembrar para Contar: da caracterização àmemória do Lugar

23

1.1 Memória e origem da Vila de Cuitezeiras 24

1.2 O Lugar 24

1.3 A Memória e o pertencimento ao lugar 30

1.4 Memória e Identidade Social do Engenho e da antiga Vila 35

1.5História e Memória: relatos orais e escritos da antiga Vila de

Cuitezeiras42

CAPÍTULO II – Tradição e Memória: relação espaço-tempo e

cultura popular no contexto da antiga Vila 49

2.1 A construção da memória dos narradores 50

2.2 A Memória e as evidências orais 58

2.3 A Memória e sua relação com o passado [da Vila de Cuitezeiras] 61

2.4 A memória e sua relação com o presente 65

2.5 A matéria-prima da memória: as lembranças [da velha Vila] 67

23

2.6 A memória e sua ligação com a cultura popular 73

CAPÍTULO III – Do Engenho Cunhaú à Vila Nova de Cuitezeiras 80

3.1 A Vila de Cuitezeiras – um lugar construído pela memória 81

3.2 A história e o lugar na memória da cidade 85

3.3 As lembranças do lugar: a formação da cidade 90

3.4 A memória e o novo lugar: a cidade de Pedro Velho 96

CONSIDERAÇÕES FINAIS

FONTES

REFERÊNCIAS

24

ANEXOS

Anexo A – Decreto que eleva o povoado de Cuitezeiras à condição de Vila

Anexo B – Decreto de criação da Paróquia de São Francisco de Assis de Vila Nova

APÊNDICES

Apêndice A – Caracterização dos Narradores

25

Introdução – Os passos dados na construção da pesquisa

Este trabalho tem por finalidade resgatar a história da Vila de Cuitezeiras,

da sua origem, em 1861, à consolidação da cidade de Pedro Velho, em 1936, tendo

a memória como papel fundamental na recuperação da vida social. Escrever essa

história demandou um resgate da memória do lugar e da fundação do município de

Pedro Velho a partir de um viés teórico e de cunho etnográfico.

Pretendia trabalhar, inicialmente, a questão agrária, particularmente o

crescimento da concentração fundiária e sua ligação com a atividade das

agroindústrias do açúcar e do álcool que atuam no município de Pedro Velho-RN,

com ênfase na década de 1970, impulsionadas pela necessidade de substituição da

fonte energética petróleo (para fabricação de gasolina) incentivadas pelo Pró-Álcool

(Programa Brasileiro de Álcool).

Nesse sentido, o Projeto estaria ligado à questão agrária e aos problemas

ambientais relacionados às agroindústrias situadas na área da bacia do rio Piquiri e

suas nascentes.

No decorrer da pesquisa documental e do trabalho de campo redirecionei

os objetivos, centrando-os no resgate histórico da antiga Vila de Cuitezeiras, a qual

deu origem à cidade de Pedro Velho, com ênfase no registro da memória e

recuperação histórica do lugar, em substituição à idéia inicial, anteriormente

mencionada.

Na construção desse novo trabalho busquei apreender, a partir dos

relatos anteriormente citados, as conclusões, os sonhos e as ilusões dos narradores

portadores da memória, por sua importância no entendimento da ocupação do lugar.

Do ponto de vista metodológico recorri à coleta de referências

bibliográficas na biblioteca setorial do Departamento de História da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), na Biblioteca Municipal de Pedro Velho, na

Fundação José Augusto, em pesquisas feitas na Internet e em bibliotecas

particulares. Nesses locais de pesquisas foram levantadas referências bibliográficas

relacionadas aos temas principais: memória e memória do lugar, com suas

definições com ênfase nos conceitos já existentes e em metodologias que puderam

26

ser aplicadas na construção da pesquisa permitindo a formulação da proposta de

trabalho, conciliando os principais temas expostos.

A pesquisa documental tomou, como suporte, os Documentos de

Província conseguidos a partir de sites especializados como o da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) – Departamento de História. Quanto aos

registros de famílias, estes foram obtidos a partir de consultas nos arquivos do I

Cartório de Pedro Velho e nos acervos particulares do Historiador Carlos Alberto

Soares de Carvalho, do Cientista Social Cledenilson V. Moreira e do Geógrafo João

Hortêncio Sobrinho.

Do ponto de vista teórico, utilizo, ao longo da pesquisa, autores que

trabalham a memória, com destaque para Pollak (1989 e 1992), Montenegro (2003),

Frochtengarten (2005), Le Goff (1994), Bosi (1994), Halbwachs (1990), Queiroz

(1991) e Burke (1992 e 2000), buscando estabelecer um diálogo com os mesmos na

perspectiva da construção da memória do lugar e de sua relação com a fundação do

município de Pedro Velho. Com esses autores pretendo entender a memória,

destacando o significado fundamentalmente histórico, bem como ideológico.

Do ponto de vista etnográfico, as entrevistas realizadas seguiram o

modelo de conversas livres com os narradores portadores da memória do lugar e os

relatos obtidos forneceram subsídios para a análise que fundamenta este texto de

dissertação.

No que concerne às entrevistas feitas, fiquei atento ao que foi dito e não

apenas ao que esperava ser mencionado, ou seja, aquilo que se configurava como

hipótese. Com essa postura tentei não incorrer no risco de

Continuar aceitando, como dogma, interpretações superficiais, frutode pesquisas e explicações mal fundamentadas ou ideologicamentedistorcidas, quando vemos o que queremos e ficamos totalmentefelizes, mas não vemos o que acontece (MARTINS, 1986, 95).

Escutar os narradores e observar suas reações a partir de alguns

questionamentos lançados ao longo da conversa foi um procedimento empregado

em todas as entrevistas. Os pontos destacados visaram à obtenção de informações,

por ordem de importância para os narradores, no sentido de possibilitar o resgate da

memória do lugar.

27

Com vistas a entender a fundação e estruturação do município de Pedro

Velho, busquei averiguar se os narradores se relacionam com a história oficial e se

interpretam como se deu a construção do lugar do qual fazem parte.

Como existem poucos registros escritos sobre o tema e poucos

testemunhos sobre a fundação de Pedro Velho, entendemos as entrevistas como

fontes de consulta à memória local. Entendemos, sobretudo, que elas servem

também para oportunizar outras formas de se interpretar o significado da memória

do lugar, em contraposição à História Documental Oficial, que carece de outras

interpretações.

As fontes escolhidas para esta pesquisa colocam-se como

representações mais autônomas do segmento de narradores portadores da

memória do lugar.

Ao procurar compreender as possibilidades de desenvolvimento de uma

memória, a despeito da importância e interligação desta com outras dimensões da

história, busco privilegiar, sobretudo, a dimensão do conhecimento baseado na

tradição do lugar, na interpretação da política, da sociedade, da economia e na

construção do território. Esse ponto de partida e escolha metodológica permitiram

minimizar as incertezas ao mesmo tempo em que fugiram das interpretações

deterministas que findam por empobrecer o debate sobre o conceito em tela.

Procurei “conceder a voz”, neste trabalho, a um grupo de memorialistas

do lugar, não organizados entre si, em reconhecimento à legitimidade social que têm

e em respeito aos motivos e fatores relacionados aos seus interesses na construção

de uma memória da Vila.

A predisposição dos indivíduos, quase sempre pessoas do povo, que se

sentem realizadas com a lembrança coletiva dos seus relatos, de se articularem em

torno de experiências pessoais ou coletivas quanto à memória de um lugar,

estabelece e reforça o conhecimento do seu povo, numa relação de confiança e

reciprocidade, que pode ser explicada, parcialmente, a partir da existência de uma

realização pessoal desfrutada por eles.

Porém, há necessidade de se advertir que a construção da memória

local, no recorte adotado, não se faz a partir do simples ouvir e transcrever dos

relatos, erro grave no processo de sua construção, pois são raras as vezes em que

os narradores se prendem a uma organização cronológica ou a um método definido.

28

Na realidade, esses homens, quando descrevem as memórias que

carregam, seja daquilo que viveram ou adquiriram a partir dos conhecimentos sobre

a memória do lugar o fazem de forma livre. Cabe ao historiador, pesquisador desses

objetos, após a transcrição dos relatos, organizá-los em função do seu interesse e

de suas convicções científicas, de sua visão de mundo e de sociedade.

Os relatos obtidos através de entrevistas livres constituem-se em registro

dos testemunhos históricos que compõem o universo dialético da História. Além das

entrevistas, o conhecimento de outras técnicas foi importante para o entendimento

da memória do lugar: os depoimentos, e a memória oral locais, definitivamente

decisivos na compreensão dos processos sociais próprios do ambiente estudado e

do que ficou guardado nas mentes dos narradores portadores da memória e da

cultura popular locais.

Vale destacar que comumente relacionamos a expressão cultura popular

a objetos, conhecimentos, valores e celebrações que compõem o modo de vida de

uma sociedade, de um povo. São exemplos: histórias transmitidas de forma oral

(contos de fadas, lendas, mitos), história da fundação de um lugar, transmitida

também de forma oral, pelos mais velhos ou por jovens interessados na

perpetuação dessa, danças, músicas, dentre outros.

Em se tratando dos eventos relativos ao município de Pedro Velho e à

cultura popular, relatados pelos narradores, eles possibilitaram o entendimento de

experiências, perspectivas, visões e interpretações da política, da sociedade e

economia do lugar no sentido de recuperar a história da Vila de Cuitezeiras e foram,

portanto, cruciais para o entendimento do objeto de estudo e para o

desenvolvimento da pesquisa.

Com as referências dos autores já mencionados e especialmente a partir

da transcrição dos relatos, abordei a origem e a memória da Vila de Cuitezeiras.

Partindo do entendimento de que a memória é imprescindível às

pesquisas que buscam realizar um resgate sócio-histórico, apoiei-me em categorias

e autores como Pollak (1989 e 1992), Montenegro (2003), Frochtengarten (2005), Le

Goff (1994); apoiei-me também em Bosi (1994) e Halbwachs (1990), que ajudaram

na compreensão da memória coletiva. A esses autores outros se somaram ao longo

do texto no sentido de dar clareza ao tema.

29

Para recuperar a história da Vila de Cuitezeiras tomei como base a

historiografia regional de autores como: Lima (1997), Medeiros (1985), Cascudo

(1955, 1968 e 1971) dentre outros e utilizei, sobretudo, os relatos orais dos

senhores Daniel Galvão, Jaldemar Nunes e João Alberto, “narradores portadores da

memória do lugar”, do Historiador Carlos Alberto Soares de Carvalho, do Cientista

Social Cledenilson V. Moreira e do Geógrafo João Hortêncio Sobrinho.

O trabalho está organizado e distribuído em três capítulos. No primeiro

capítulo, detalho os procedimentos adotados para a realização da pesquisa

teórico-metodológica e a coleta de informações de caráter etnográfico sobre a Vila

de Cuitezeiras, evidenciando os passos dados ao longo da pesquisa; ao mesmo

tempo apresento uma breve caracterização do município.

Conceituo a memória as relações existentes entre algumas das

categorias que com ela se relacionam e que são responsáveis pela identidade social

do lugar em estudo, em relação a sua gênese, a partir das terras e da história do

Engenho Cunhaú. Analiso também a idéia e o sentimento de pertencimento ao lugar

a partir de uma abordagem teórica e etnográfica memorialista, tendo em vista

registrar a história e a organização social da Vila a partir das lembranças,

destacando a importância da oralidade e a relação entre a transmissão oral e a

escrita.

No segundo capítulo, abordo as relações entre a tradição e a memória

enfocando as categorias de tempo, a gênese dos relatos, bem como as lembranças

e a cultura popular no contexto da Vila de Cuitezeiras e do Massacre ocorrido no

Engenho Cunhaú. Também analiso os relatos orais e escritos, tendo em vista a

construção histórica da identidade social da Vila de Cuitezeiras.

Sobre o tempo e a memória argumento a propósito da relação entre a

memória, passado e presente da antiga Vila de Cuitezeiras, hoje cidade de Pedro

Velho, abordando uma discussão sobre o que está presente na memória tendo em

vista a origem e a formação da Vila. Nesse âmbito, discuto sobre a importância das

lembranças no sentido de compreendê-las como matéria-prima da memória,

ressaltando os relatos dos narradores portadores da memória do lugar na

reconstituição do cenário social e econômico da Vila de Cuitezeiras.

30

Discuto ainda sobre a relação existente entre a cultura do povo (a cultura

popular), e memória, no sentido de compreender como elas se apresentaram nas

representações sociais, políticas, econômicas e religiosas da Vila de Cuitezeiras.

No terceiro capítulo analiso a memória, estabelecendo relações próximas

com o lugar: a Vila de Cuitezeiras, enfocando a categoria lugar como espaço

socialmente construído a partir da memória – com ênfase na origem da Vila de

Cuitezeiras e no advento da enchente do rio Curimataú no ano de 1901, que arrasou

a Vila. Também evidencio a memória do lugar e a origem da Vila, a partir de sua

gênese nas terras do Engenho Cunhaú. Esse percurso se estende da formação da

nova Vila até a consolidação da Cidade de Pedro Velho. Nesse último ponto,

procuro realizar uma discussão sobre espaço rural e urbano, na conceituação de

cidade.

Por fim, enfatizo a formação da Vila Nova de Cuitezeiras após a enchente

do rio Curimataú numa discussão teórica sobre o conceito de lugar. Apresento uma

descrição etnográfica sobre o desenrolar da vida social da Vila Nova de Cuitezeiras

a partir da primeira casa construída e dos aspectos socioeconômicos que

possibilitaram o desenvolvimento da agricultura como meio de sobrevivência dos

habitantes da nova Vila e a formação da vida urbana consolidando um novo espaço

social: a cidade de Pedro Velho.

Nas considerações, exponho a importância do resgate de memória e do

enfoque histórico na construção de um trabalho científico para a academia e para a

sociedade de Pedro Velho.

Figura 01: Vista aérea da cidade de Pedro Velho (RN). Fonte: PrefeituraMunicipal de Pedro Velho, 2004.

31

Figura 02: Vista aérea da cidade de Pedro Velho (RN). Fonte: http//:www.pedrovelho.cjb.net.Acesso em 27 de agosto de 2006, às 10:30h.

32

33

CAPÍTULO 1

Lembrar para Contar:da caracterização à memória do Lugar

34

35

Pedro Velho, apesar de Centenária continua uma Vila Nova.

1.1 Memória e origem da Vila de Cuitezeiras

Na constituição deste capítulo, parto do registro de memória como fonte

de informação na construção do conhecimento histórico, utilizando como estudo de

caso a origem da Vila de Cuitezeiras, hoje Pedro Velho, no Estado do Rio Grande

do Norte, e sua relação social com a história do Engenho Cunhaú.

Considerando que a memória remete ao passado e traz ao presente

recortes históricos e testemunhos diversos, inicio a seguir uma breve apresentação

do município de Pedro Velho no contexto atual, mas sem perder de vista nem me

distanciar do tema e do recorte histórico proposto e sem esquecer que esse se

fundamenta na memória da ocupação do lugar.

1.2 O Lugar

A atual denominação do Município – Pedro Velho – remete a fatos

históricos mais recentes e não aos primórdios da história do lugar, pois a

denominação inicial atribuída à atual cidade pelos primeiros habitantes foi Vila de

Cuitezeiras. Esse topônimo origina-se e remonta, segundo registros da memória, à

terceira década do século XVII. Posteriormente, foi registrado como município

oficialmente no ano de 1890 pelo artigo 1º da Lei Orgânica de 03 de abril de 1890,

que o estabeleceu como entidade autônoma e básica da Federação, com garantia

de dignidade aos seus moradores.

Encontra-se distante 88 km da capital, Natal, e está inserido na Zona

Litoral Oriental, Subzona da Mata, Litoral Sul, com altitude de 22 m acima do nível

do mar.

Figura 03: Mapa de localização do município de Pedro Velho. Fonte: IBGE (2000).Elaboração de Mapa Temático: Aline Barboza de Lima.

36

37

Atualmente o município possui uma população de 13.518 habitantes distribuídos emuma área que corresponde a 181 km2 e que está compreendida entre os paralelos

38

6º26’21” de latitude sul e entre o meridiano 35º13’17” de longitude oeste de

Greenwich (IDEC, 1991).

Os atuais limites são: ao norte, os municípios de Canguaretama e Espírito

Santo; ao sul, o Estado da Paraíba e o município de Montanhas; a leste,

Canguaretama; e a oeste, os municípios de Nova Cruz e Montanhas. Esses limites

permanecem os mesmos estabelecidos pelo Decreto de 24 de maio de 1890

(ANEXO A), à exceção da área limítrofe do Município de Montanhas, que ficou

independente em 1962.

O município de Pedro Velho possui uma economia diversificada, onde a

agricultura, a pecuária e o comércio, com a presença dos pequenos e médios

estabelecimentos de comércio, são suas principais fontes geradoras de recursos.

Assim como ocorre em grande parte dos municípios brasileiros, a maioria da

população se encontra na área urbana, mas possui fortes vínculos com o campo.

Em decorrência dessa relação, a agricultura constitui-se como sua base principal.

Os produtos derivados dessa atividade são: feijão, frutas e, principalmente, a

cana-de-açúcar. A cana-de-açúcar contribuiu fortemente para a composição atual

das áreas agrícolas do município.

Outras atividades participam da sustentação econômica do município,

dentre elas o comércio nos pequenos mercados ou no Mercado Público, nas

“vendas”, que ainda hoje lembram a velha Cuitezeiras como locais de socialização,

de “desafogo das ilusões” e de recriação de alguns aspectos da vida social.

Também os aposentados injetam no comércio local, em grande parte das vezes, a

mais importante parcela do capital de giro. Nas datas em que ocorrem os

pagamentos vêem-se filas intermináveis às portas da agência dos Correios, da

Lotérica da Caixa Econômica Federal e do caixa eletrônico do Banco do Brasil,

únicos locais de atividades bancárias do município.

Quanto à paisagem, apesar do avanço de culturas como a da

cana-de-açúcar e do feijão, principalmente, o município de Pedro Velho ainda

preserva parte do seu patrimônio ambiental tendo muitas de suas matas e áreas

verdes ainda parcialmente preservadas nos locais aonde as atividades agrícolas da

cana-de-açúcar ainda não avançaram. O predomínio dos coqueirais no centro da

cidade contribuiu para a denominação que a identifica como a “cidade dos

coqueiros”.

39

Figura 04: Senhor Jaldemar Nunes.

40

Figura 05: Iconografia do Engenho Cunhaú. Fonte: Medeiros Filho(1993).

41

1 .

3

A Memória e o pertencimento ao lugar

As evidências levam a crer que os habitantes de Pedro Velho partilham

uma memória do lugar, que os liga à construção histórica do Engenho Cunhaú e à

influência política, econômica e social dos Albuquerque Maranhão no Estado do Rio

Grande do Norte. Cientes de tal fato chegam a afirmar que não existiria essa cidade

se o Engenho Cunhaú ali não se encontrasse.

Na busca dessa memória, procurei resgatar a história da antiga Vila e,

posteriormente, da cidade de Pedro Velho. Parti, por conseguinte, do conceito de

memória e de sua inter-relação com a História, entendendo que “as relações entre

memória e história, e o conjunto de atos individuais e coletivos que lhes dão

42

materialidade e espessura política, delimitam um amplo espectro de abordagens

historiográficas” (ZARIAS, 2001, p. 1).

Tal concepção apóia-se num referencial teórico-metodológico em que a

diversidade da memória pode definir e remeter a várias interpretações. Dentre uma

variedade de autores que se alinham a esse entendimento temos Le Goff (1994, p.

423), que, ao interpretar a dimensão de reatualização, adverte que:

A memória, como propriedade de conservar certas informações,remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas,graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informaçõespassadas, ou que ele representa como passadas.

Refletindo sobre a diversidade da memória e sobre sua abrangência

entendemos que a memória é um fenômeno social que se manifesta nos seguintes

tipos: coletiva, individual, histórica. A memória coletiva, que se poderia chamar de

memória social, está relacionada a uma história vivida, na qual o passado

permanece vivo na consciência de um grupo social. Esta noção é contraposta à

história (memória histórica), que seria uma forma de conhecimento do passado,

exterior ao domínio do vivido. Por seu turno, a memória individual será sempre ‘um

ponto de vista sobre a memória coletiva.

A memória em Halbwachs (1990) pode ser entendida em relação à

situação e à necessidade de um momento histórico, o que possibilita a valorização

do relato oral e textos escritos fora dos circuitos acadêmicos que se constituem

como fontes primordiais nesse tipo de pesquisa. De acordo com Frochtengarten

(2005, p. 1):

Temos assistido a um movimento de valorização do recurso àmemória oral no campo das ciências humanas. Entre psicólogossociais, antropólogos e historiadores, cada vez mais assídua temsido a prática de recolhimento de lembranças por meio dedepoimentos.

É nessa perspectiva que inscrevemos esta pesquisa, especialmente

quando procuramos entender as condições, os modos de produção e as práticas

que envolvem motivos e formas de lembrar e esquecer, maneiras de contar, de

fazer e registrar histórias, de fazer e registrar memórias.

43

Smolka (1998) faz uma incursão sobre a memória com o objetivo de

compreender os muitos modos, historicamente construídos, de pensar e de falar

sobre o tema. Sua proposta de trabalho se aproxima da problemática aqui em

discussão visto que tomamos como base lembranças e relatos históricos, na busca

do entendimento da memória social da Vila de Cuitezeiras.

Desse modo, as relações existentes entre memória e história e sua

ligação com os processos sociais se aproximam, quando entendemos que uma

complementa a outra no sentido de pensá-las como instrumentos passíveis de

análise. É o que afirma Zarias (2001, p. 2) ao discorrer sobre o tema:

Pensadas como ferramentas analíticas, as noções de memória ehistória são articuladas para dar conta dos processos sociaisrelativos à interpretação do passado, à construção de biografias, àreflexão sobre lugar da disciplina a que chamamos de História nasCiências Humanas (...).

Outra abordagem que procura explicar esse processo é a que toma a

memória como produto de uma atividade meramente subjetiva, que foi superada

pelo pensamento de Halbwachs (1990), para quem a rememoração das lembranças

é fruto de uma atividade de reconstrução do vivido. Em sua concepção, o trabalho

da memória conta com o suporte de imagens e idéias, valores, anseios e afetos,

vinculados a grupos sociais junto aos quais o memorialista exercita algum

sentimento de pertencimento.

O sentimento de pertencimento é perceptível no âmbito do resgate

histórico do Engenho Cunhaú. Essa história começa a ser registrada, no âmbito

desta pesquisa, por volta do início do século XVIII, quando o Rio Grande já se

destacava como um importante centro de criação de gado e a pecuária, como uma

importante atividade socioeconômica, ajudou a constituir o núcleo urbano do lugar,

sendo esse formado, em sua maioria, por vaqueiros e lavradores. A agricultura e a

pecuária impulsionaram a economia da região e nessas atividades destacaram-se

produtos como o algodão, no agreste, e a cana-de-açúcar, no litoral. Nessa época, o

Engenho Cunhaú se destacava por sua importância como o maior produtor de

açúcar, fato também que se deu em quase todas as épocas.

Nesse contexto, Carlos Alberto Soares de Carvalho enfatiza a importância

do Engenho Cunhaú no processo de produção açucareira e destaca ainda que:

44

Um dos pontos mais importantes do povoamento do Rio Grande doNorte foi o vale do Cunhaú, não só porque aí se localizou a primeiraconcessão de terras feitas aos filhos de Jerônimo de Albuquerque,mas porque lá também se constituiu o primeiro engenho de açúcar.O vale do Cunhaú era o ponto obrigatório da primeira etapa doscaminhantes das expedições do vale da Paraíba, de Mamanguape,da Baía da Traição, que transpunham a fronteira norteriograndense.

Apoiando-se nesse relato, vejo que a Vila de Cuitezeiras se constituiu

como conseqüência do movimento econômico de expansão das lavouras da

cana-de-açúcar do Engenho Cunhaú e do povoamento inicial da região. Nesse

contexto, foi decisiva a participação da família Albuquerque Maranhão, proprietária

do Engenho. Sobre esse tema, Lima (1997, p. 31) comenta:

Um dos fatores relativos a Pedro Velho, é o processo de ocupaçãoda área do Município, que pode ser enquadrada dentro da lógica quemarca a ocupação de todo o território nordestino desde o início dasua colonização. O processo, como nas economias capitalistas emgeral, tem sua essência na intensa concentração fundiária. (...) Deinício, esse processo foi sendo feito com acesso à implantação dacultura canavieira no vale úmido do litoral, especificamente no valedo Cunhaú.

Observa-se, por conseguinte, que o território do município de Pedro Velho

(RN), anteriormente denominado Vila de Cuitezeiras e, depois, Vila Nova de

Cuitezeiras, antes de caminhar rumo à sua formação como cidade, se destacava

como área pertencente ao Engenho Cunhaú, tendo como atividade dominante o

cultivo da cana-de-açúcar.

Através dos relatos referentes à importância do Engenho Cunhaú quanto

à fundação da Vila de Cuitezeiras, percebe-se uma identificação dos narradores

com a terra, revelada em palavras, frases e gestos, que anunciam o sentimento de

pertencimento à comunidade e à sua história. Trata-se mesmo da relação da

memória coletiva com as memórias individuais dos narradores. Essa discussão vem

acompanhando as observações e análises históricas desde os gregos antigos,

quando Aristóteles distinguiu a memória propriamente dita, a mneme, faculdade de

conservar o passado, da reminiscência, a mamneri, faculdade de invocar

voluntariamente o passado. Essa forma de compreender e de analisar a memória é

retomada ao longo do tempo.

45

Partindo de compreensão semelhante, Halbwachs (1990), em sua análise

sobre a memória, enfatiza a força dos diferentes pontos de referência que

estruturam nossa memória individual e que a inserem na memória da coletividade a

que pertencemos. Em vários momentos, ele insinua não apenas a seletividade de

toda memória, mas também um processo de “negociação” para conciliar memória

coletiva e memórias e percepções sensitivas do intelecto.

Em outra interpretação de memória, Halbwachs (1990) defende o caráter

eminentemente social e real da mesma, confrontando-a com o sonho e a afasia,

onde a presença da sociedade está retraída e alterada, e remete o ato da memória

ao plano, também social, da linguagem.

Portanto, Halbwachs (1990) estabelece um diálogo com filósofos,

religiosos e estudiosos ao discutir memória seguindo uma linha de tempo que se

estende do século I com Cícero, para quem a memória é parte da prudência junto à

inteligência e à providência, até os séculos X e XI, com São Tomas de Aquino e

Santo Alberto, que concebem a memória como parte prudente relacionada às regras

da memória artificial.

É este "sentimento de realidade" a base para a reconstrução do passado.

No ato de lembrar nos servimos de campos de significados - os quadros sociais -

que nos servem de pontos de referência. As noções de tempo e de espaço,

estruturantes dos quadros sociais da memória, são fundamentais para a

rememoração do passado na medida em que as localizações espacial e temporal

das lembranças são a essência da memória.

Halbwachs (1990) não descarta a relevância do indivíduo para o

pensamento social. Segundo ele, apesar de o homem só poder ter memória de seu

passado enquanto ser social, cada um traz em si uma forma particular de inserção

nos diversos meios em que atua. Para o autor, cada memória individual é um ponto

de vista da memória coletiva, e esse ponto de vista varia de acordo com o lugar

social que é ocupado; e este lugar, por sua vez, muda em função das relações que

se tem com outros meios sociais.

Portanto, o conceito de memória está relacionado ao conjunto de idéias

que envolve as lembranças, o corpo, a razão, as imagens, o espaço social e o

momento histórico. A articulação desses elementos, acompanhada de uma

atividade mental (intelectual), constrói o que conhecemos por identidade social de

46

um povo, família ou lugar. O exemplo da Vila de Cuitezeiras, hoje município de

Pedro Velho, revela, a partir dos remanescentes do antigo Engenho Cunhaú, sua

trajetória social na construção do lugar.

1.4 Memória e Identidade Social do Engenho e da antiga Vila

Sabemos que a identidade social está intrinsecamente ligada à memória

e ao passado de um grupo social ou sociedade e que desconhecer a história de seu

povo é desconhecer a existência de sua vida social, mesmo a mais atual.

Para entendermos um grupo social é preciso recuperar a memória e

resgatar os momentos históricos que provocaram transformações individuais e

coletivas no âmbito de qualquer sociedade.

Pollak (1992, p. 2), entende que, “a priori, a memória parece ser um

fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa”. E cita

Halbwachs (1990), afirmando que esse autor já havia, nos anos de 1920 e 1930,

sublinhado que “a memória deve ser entendida também ou, sobretudo, como um

fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e

submetido a frustrações, transformações, mudanças constantes”.

Pollak (1992, p. 2) afirma ainda que “se destacarmos essas

características flutuantes, mutáveis, da memória, tanto individual quanto coletiva,

devemos lembrar também que na maioria das memórias existem marcos ou pontos

relativamente invariantes, imutáveis”.

Desse modo, entendendo a relação memória – identidade social, Pollak

(1992) enfatiza que, quando a memória e a identidade social estão suficientemente

constituídas, suficientemente instituídas, suficientemente amarradas, os

questionamentos vindos de grupos externos à organização, os problemas colocados

pelos outros, não chegam a provocar a necessidade de se proceder a

rearrumações, nem ao nível da identidade coletiva, nem ao nível da identidade

individual. E acrescenta que, quando a memória e a identidade trabalham por si sós,

isso corresponde a conjunturas ou períodos calmos, em que diminui a preocupação

com a memória e a identidade.

47

Nesse contexto, a construção da relação memória coletiva – identidade

social revela, em certo sentido, a preocupação em conservar as idéias de memória

coletiva e individual, com respaldo no trabalho de Pollak (1992), que concebe

determinado número de elementos que se tornam realidade, passam a fazer parte

da própria essência da pessoa, muito embora outros tantos acontecimentos e fatos

possam se modificar em função dos interlocutores ou em função do movimento da

fala.

Amparado nos fundamentos apontados por Pollak e Halbwachs destaco,

na composição da memória coletiva estudada, um dos eventos que marcam os

documentos oficiais e os relatos registrados: o Massacre da população da antiga

comunidade do Engenho Cunhaú. O “Massacre do Cunhaú”, como é mais

conhecido, realizado pelos holandeses e índios janduís, e que culminou com a

disseminação do sentimento de terror na região, de grande repercussão histórica.

As marcas do terror se fizeram notar na época do Massacre, visto que

muitos portugueses que viviam próximos à povoação e, especialmente no território

da Paraíba, deixaram suas casas, em pânico, movidos pelo receio de novo ataque

como o do Engenho Cunhaú.

Na historiografia regional, mais especificamente em Mariz & Suassuna

(1997, p. 95-96), o Massacre também teria tido conotação de intolerância religiosa,

visto que, na época, os holandeses eram perseguidos por serem protestantes e

teriam partido, após um primeiro momento de aceitação do culto católico durante o

governo de Maurício de Nassau, para uma reação aqui no Brasil.

Na memória desse Massacre, a fala e a escrita se colocam como

instrumentos importantes na constituição da memória, uma vez que os relatos orais

e escritos tomam relevância no resgate histórico e se mantêm na memória coletiva

da região, remetendo-nos à discussão teórica sobre a constituição da memória, num

cruzamento de idéias sobre linguagem, calcadas principalmente nas perplexidades,

desencadeadas aqui pelo Massacre.

Pollak (1992, p. 2) nos alerta ainda que, na constituição da memória, os

aspectos individual e coletivo, anteriormente mencionados, são imprescindíveis. O

primeiro, por se tratar dos acontecimentos vividos pessoalmente e, o segundo, por

estarem vinculados aos acontecimentos “vividos por tabela”, ou seja,

48

acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa sente

pertencer.

Nesse sentido, nem sempre as pessoas que participam do grupo ou da

coletividade vivenciaram tais eventos, mas, na memória coletiva, as mesmas idéias

tomaram tamanho relevo que, torna-se quase impossível às pessoas conseguirem

excluí-los de sua memória pessoal. No relato do senhor Daniel Galvão sobre o

Massacre a memória é por ele rememorada como se tivesse participado desse

evento.

Mas, a memória é constituída, sobretudo, por pessoas, paisagens,

lugares, como o Engenho Cunhaú, a Vila de Cuitezeiras, retratados no quarto

capítulo.

Ao abordar essas características do relato memorialista, Pollak (1992, p.

2) nos lembra ainda que “existem lugares na memória, lugares particularmente

ligados a uma lembrança, que podem ser uma lembrança pessoal, mas também

podem não ter apoio no tempo cronológico”. E cita alguns exemplos: pode ser um

lugar de férias na infância, que permaneceu muito forte na memória da pessoa,

muito marcante, independentemente da data real em que a vivência se deu.

Outro exemplo seria o da memória dos mortos que permanece a partir

dos relatos e da escrita de pessoas que levam escritos memorialistas ou

vivenciaram com pessoas e épocas passadas e que podem servir de base a uma

relembrança. A memória da África, seja de Camarões ou do Congo, pode fazer

parte da herança da família com tanta força que se transforma praticamente em

sentimento de pertencimento. Outro exemplo seria o da segunda geração dos Pieds

Noirs na França, que na verdade nem chegaram a nascer na Argélia, mas entre os

quais a lembrança argelina foi mantida de tal maneira que o lugar se tornou

formador da memória. Ainda no caso da França, não é preciso ter vivido na época

do General De Gaulle para senti-lo como um contemporâneo.

Ao investigar a relação entre memória e identidade social, observei que a

valorização do registro memorial e da história de vida individual ou coletiva de um

lugar é a marca maior desse tipo de abordagem. Conservado, esse evento que

marcou gerações, as lembranças podem vir à tona sob risos ou lágrimas.

Pollak (1992, p. 2), tratando sobre algumas particularidades desse tipo de

memória, adverte-nos que: “além dessas projeções, que podem ocorrer em relação

49

a eventos, lugares e personagens, há também o problema dos vestígios dotados de

memória, ou seja, aquilo que fica gravado como data precisa de um acontecimento”.

Percebemos esse traço da memória quando tomamos os relatos sobre a

enchente do rio Curimataú, que arrasou a Vila de Cuitezeiras. O senhor Daniel

Galvão nos conta que:

Na noite do dia 13 de maio de 1901 veio à tragédia e tudo mudoubruscamente. O rio Curimataú destruiu com suas águas o povoado,impondo a necessidade de refundação do lugar que passou adenominar-se Vila Nova de Cuitezeiras.

O senhor Jaldemar Nunes também relata com detalhes o dia fatídico da

enchente e enfatiza a importância da tragédia para a construção de um novo

território, ligando o desenvolvimento atual da cidade a esse fato:

Então, em 1890 nós se desmembramos de Canguaretama,Cuitezeiras passou a ficar como uma cidade e que a alegria duroupouco porque em 1901 quando em janeiro uma enorme cheia do rioCurimataú destruiu grande parte do lugarejo levando as casas, nãohouve vítimas, o que fez a população procurar um lugar mais altoque passaria a se chamar Vila Nova. As grandes cheias doCurimataú foram em 1901. A mudança para Pedro Velho significou aconquista de uma nova cidade, já era vizinho do Curimataú,continuou vizinho, mas num lugar mais seguro e que, para nossasurpresa, foi construída essa grande população de Pedro Velho quehoje se encontra ai.

Carlos Alberto Soares também destaca esse momento nas palavras que

se seguem:

A tranqüilidade e a prosperidade da Vila de Cuitezeiras só foiquebrada na noite do dia 13 de maio de 1901, quando o rioCurimataú recebeu uma grande enchente no seu leito, avançandosuas águas destruindo a Vila, sua plantação, seus prédios, matandoe carregando o gado. Dos prédios só sobraram as paredes da igrejade Santa Rita de Cássia e o obelisco do túmulo da esposa deFabrício Maranhão. Não houve nenhuma vítima fatal.

A enchente alagou a várzea, subiu até o casario e derrubou ruas

mantendo-se em pé apenas a igreja. Conforme relata o senhor Daniel Galvão, eram

50

duas grandes ruas, sendo a principal delas a Rua da Cruz, que ia do velho cruzeiro

até o outro lado do Rio Curimataú.

O senhor Jaldemar Nunes complementa afirmando que:

Parte da população de Cuitezeiras escapou da enchente dentro daresistente igreja que ficou incólume – hoje existem apenas as ruínas;a cheia levou a metade do lugarejo, contudo, ainda restou vida emuitos moradores continuaram morando naquele local.

Figura 06: Capela de Santa Rita, na antiga Cuitezeiras, única estrutura que ficou depé após as cheias do rio Curimataú em 1901.

51

52

Esta versão da história, relatada oralmente, é também resgatada, sem

citar a data exata, por Cascudo (1968, p. 233), em sua obra “Nomes da Terra”

(1968):

O Curimataú avançou suas águas e destruiu a Vila, casas, gado,plantios, depósitos. Só não carregou a coragem. Pelo contrário,deu-lhes fé, levando a comunidade a reconstruir seu espaço real – aVila Nova de Cuitezeiras e ali, entrelaçada às tarefas econômica ereligiosa vão expressar o sentimento de religiosidade dos habitantesda Vila.

Entretanto, mais do que ressaltar a importância do registro para a

conservação da memória, o que se percebe é que os relatos aludem às

particularidades das personagens e às relações sociais com o grupo, o coletivo.

Essa discussão gera questões que se buscou responder aqui como:

quando se estiver relatando, o fato prevalece à memória individual ou à coletiva? O

que predomina nos relatos da memória? Os relatos são voltados para a

individualidade familiar ou para a vida pública? Desses dois, o que é mais

importante numa identidade social?

Segundo os estudos de Pollak (1992), a vida familiar apresenta-se mais

marcante nos relatos de memória, como acontecimentos que ficaram mais

intensamente presentes no grupo social do que na sociedade.

Neste trabalho, percebi ainda o apego às mudanças pessoais ou

familiares no cotidiano quando nos relatos dos narradores, identifiquei o sentimento

de existência ligado à reconstrução da Vila: a reconstrução do lugar está totalmente

imbricada com a reconstrução da história pessoal desses narradores.

Refletindo sobre a diversidade de aspectos que compõem a memória,

Pollak (1992, p. 2) nos lembra que a memória é realmente seletiva e que nem tudo

fica gravado, nem tudo fica registrado e acrescenta ainda que a memória é herdada

e não se refere apenas à vida física da pessoa. Além disso, ela também sofre

flutuações em função do momento em que é articulada, em que está sendo

expressa.

O conjunto das leituras realizadas nos leva a afirmar que a memória

contribui para a formação de uma identidade social, como se faz ao resgatar a

53

história do engenho Cunhaú e da Vila de Cuitezeiras, visto que as pessoas

relembram e relatam aspectos marcantes de uma vida e/ou dos fatos sociais

significativos da história de vida da sociedade. Nesse ínterim, concordamos com

Pollak (1992, p. 2) quando afirma: “se é possível o confronto entre a memória

individual e a memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são

valores disputados em conflitos sociais e intergrupais e, particularmente, em

conflitos que opõem grupos políticos diversos”.

1.5 História e Memória: relatos orais e escritos da antiga Vila de Cuitezeiras

Entendo que não se reconstrói a história sem os relatos orais acrescidos

da pesquisa documental. Entendo também que, diferentemente dos escritos

registrados, os relatos orais são efêmeros em relação ao processo histórico de

qualquer povo, ou seja, ninguém vive duzentos ou trezentos anos, poucos chegam a

cem anos; surge daí, a importância de se resgatar a memória de um lugar, relatada

oralmente. Parte desse contexto a necessidade de se registrar a fundação da Vila

de Cuitezeiras na pesquisa em pauta.

É a partir de relatos orais e de poucas fontes, a exemplo do Decreto de

Criação nº. 24, que se tem o registro de nascimento da referida Vila e a história da

emancipação política do lugar.

Cascudo (1968, p. 233) nos faz saber dos termos do Decreto, publicado

na República do dia 11 de maio de 1890, que estabeleciam:

O Governador do Rio Grande do Norte, tendo em vista arepresentação dos habitantes de Cuitezeiras e o Estado florescentedesse povoado, decreta:Art. 1º - Fica elevada a Vila e desmembrado do município deCanguaretama o povoado de Cuitezeiras, com os limites seguintes:uma linha reta de oeste para leste desde os limites do município deNova Cruz até as nascentes do Piquiri, seguindo depois o cursodeste rio até encontrar a linha do telégrafo nacional, a leste estamesma linha telegráfica até os marcos da estrada nos limites doestado da Paraíba, ao sul do rio Guajú, que separa o Estado do RioGrande do Norte da Paraíba, a oeste os antigos limites do municípiode Canguaretama com Nova Cruz.Art. 2º - Ficam revogadas as disposições em contrário.

54

Carlos Alberto Soares de Carvalho nos relata que:

Administrava o governo do Estado do Rio Grande do Norte o Dr.Joaquim Xavier da Silveira Júnior. Com a emancipação política, foieleito a 11 de novembro do ano de 1892, o primeiro Presidente deIntendência do município o senhor João José da Cruz, que sedestacou por beneficiar o município com a construção de váriasobras públicas.

O senhor Daniel Galvão relata que, cerca de 10 anos após sua fundação

como município, Cuitezeiras destacava-se na região por sua ligação com uma

atividade agrícola e comercial que se pautava na diversificação. Possuía 20

fazendas de criação de gado, dois engenhos de açúcar, uma área significativa

plantada com algodão para exportação e dois descaroçadores.

Esse senhor relata ainda que no auge da produção algodoeira – o

algodão era uma exigência do capitalismo internacional da época – no início do

Regime Republicano, a Vila de Cuitezeiras produzia 300 toneladas do produto por

ano.

Enfatizando a importância do relato oral para a conservação do saber,

Queiroz (1988, p. 16-17), lembra-nos que:

(...) Através dos séculos, o relato oral constituíra sempre a maiorfonte humana de conservação e difusão do saber, o que equivale adizer, fora a maior fonte de dados para as ciências em geral. Emtodas as épocas, a educação humana (ao mesmo tempo formaçãode hábitos e transmissão de conhecimentos, ambos muitointerligados) se baseara na narrativa, que encerra uma primeiratransposição: a da experiência indizível que se procura traduzir emvocábulos. Um primeiro enfraquecimento ou uma primeira mutilaçãoocorre então, com a passagem daquilo que está obscuro para umaprimeira nitidez, – a nitidez da palavra, — rótulo classificatóriocolocado sobre uma ação ou uma emoção.A transmissão tanto diz respeito ao passado mais longínquo, quepode mesmo ser mitológico, quanto ao passado muito recente, àexperiência do dia-a-dia. Ela se refere ao legado dos antepassados etambém à comunicação da ocorrência próxima no tempo; tantoveicula noções adquiridas diretamente pelo narrador, que podeinclusive ser o agente daquilo que está relatando, quanto transmitenoções adquiridas por outros meios que não a experiência direta, etambém antigas tradições do grupo ou da coletividade.

Queiroz (1988, p. 16) ressalta ainda que o relato oral:

55

(...) Está, pois, na base da obtenção de toda a sorte de informaçõese antecede a outras técnicas de obtenção e conservação do saber; apalavra parece ter sido senão a primeira, pelo menos uma das maisantigas técnicas utilizadas para tal. Desenho e escrita lhesucederam. Quando o “homem das cavernas” deixou, nas paredesdesta, figuras que se supõe formarem um sentido, estavatransmitindo um conhecimento que possuía e que talvez já tivesserecebido um nome, estando já designado pela palavra. O fruto desuas experiências e descobertas ficava assim concretizado epassava aos demais, inclusive aos pósteros. Mais tarde a escrita,quando inventada, não foi mais do que uma nova cristalização dorelato oral.

Nesse sentido, Le Goff (1994, p. 426) alerta-nos para a importância dos

relatos orais na constituição da memória, quando diz que:

No estudo histórico da memória histórica é necessário dar umaimportância especial às diferenças entre sociedades de memóriaessencialmente oral e sociedades de memória essencialmenteescrita, como também às fases de transição da oralidade à escrita.

Em conformidade com essa idéia, Montenegro (2003, p. 40) explica que:

A história oral se descobre num processo de socialização de umavisão do passado, presente e futuro que as camadas popularesdesenvolvem de forma consciente/inconsciente. Entretanto, aaquisição da capacidade de falar, de comunicar idéias é elementodeterminante dessa historicidade. Uma historicidade de luta, deresistência, que, evidentemente, tem suas marcas de conformismo erepetição do status quo.

Na construção da memória coletiva o interesse pelos relatos orais

encanta os historiadores e se apresenta como memorável aos olhos dos estudiosos.

Desse modo, vários historiadores realizam diversos trabalhos resgatando a

oralidade e registrando histórias de vida. A história oral remonta a Antiguidade, foi

nesse período que teve início o registro dos relatos orais, tanto familiares quanto

coletivos. Sobre essa temática Le Goff (1994, p. 431) salienta que:

Nas sociedades sem escrita a memória coletiva parece ordenar-seem torno de três grandes interesses: a idade coletiva do grupo quese funda em certos mitos, mais precisamente nos mitos de origem, oprestígio das famílias dominantes que se exprime pelas genealogias,

56

e o saber técnico que se transmite por fórmulas práticas fortementeligadas à magia religiosa.

O surgimento da escrita está diretamente relacionado às mudanças da

memória coletiva. Conforme Le Goff (1994, p. 431), “a memória assume então a

forma de inscrição e suscitou na época moderna uma ciência auxiliar da história, a

epigrafia”.

Nesse sentido, Leroi-Gourhan (apud Le Goff, 1994, p. 433) entende que:

A evolução da memória, ligada ao aparecimento e a difusão daescrita, depende essencialmente da evolução social e especialmentedo desenvolvimento urbano: a memória coletiva, no início da escrita,não deve romper o seu movimento tradicional a não ser pelointeresse que tem em se fixar de modo excepcional num sistemasocial nascente.

Dessa maneira, devemos compreender a relação existente entre a

memória e a forma de transformá-la em texto. O relato oral é apenas o meio, ou

seja, a ponte entre o que está guardado na memória e sua transferência para o

registro escrito; e esse processo nos permite citar os gregos antigos que deram

grande contribuição para o nascimento da memória técnica. Le Goff (1994, p. 436)

complementa afirmando que entre os gregos, “da mesma forma que a memória

escrita se vem acrescentar à memória oral, transformando-a, a história vem

substituir a memória coletiva, transformando-a, mas sem a destruir”.

Com o passar do tempo, foram surgindo várias concepções ligando a

oralidade e a escrita com a memória. Nesse sentido, Le Goff (1994, p. 450) entende

que: “o escrito desenvolve-se a partir do oral e, pelo menos no grupo dos clérigos e

literatos, há um equilíbrio entre memória oral e memória escrita, intensificando-se o

recurso ao escrito como suporte à memória”.

A partir das décadas iniciais do século XX, diversos sociólogos e

antropólogos norte-americanos utilizaram-se de relatos orais advindos da memória

que ajudaram na construção de pesquisas históricas sobre os mais variados temas.

Na década de 1950, essa prática começa a aparecer em pesquisas

acadêmicas no Brasil, em especial nas Ciências Sociais e, com a “Nova História”,

ocupam definitivamente o campo dessa disciplina, embora enfrente sempre

57

resistências por parte de historiadores mais ortodoxos e relutantes quanto à

utilização da memória.

Nos anos 1970, a pesquisa histórica recupera definitivamente a

importância dos relatos dos narradores, homens como os senhores Daniel Galvão,

Jaldemar Nunes e João Alberto, portadores da memória e das situações singulares,

fenômenos que privilegiam a dimensão do vivido.

Essas mudanças na interpretação acerca da importância da memória

como suporte à pesquisa juntaram-se ao estabelecimento de novas fontes e novas

metodologias históricas, o que impulsionou a história cultural e uma nova

interpretação a partir do campo do materialismo dialético especificamente em

relação a essa técnica de construção da história de um lugar.

Algo bastante ligado à utilização é sua capacidade de particularizar os

fatos relatados. Isso quer dizer que se nos deixarmos guiar exclusivamente pelos

relatos dos narradores, teremos uma visão particular e idealizada do evento tratado,

pois sua impressão sobre este é limitada àquilo que seus olhos viram e que seus

ouvidos escutaram, mesmo que se trate de sua história de vida ou da seleção das

memórias passadas que elegeu como essenciais para serem perpetuadas por suas

palavras.

Entretanto, a capacidade de descortinar a memória a partir dos relatos

dos eventos históricos vividos ou não, das personagens reais ou imaginárias e das

representações da sociedade em que vive, é inegável.

Le Goff (1994, p. 453) concebe que: “a memória é um glorioso e

admirável dom da natureza, através do qual invocamos as coisas passadas,

abraçamos as presentes e contemplamos as futuras, graças à sua semelhança com

as passadas”.

Portanto, dentre as variadas conotações que podemos ter da memória,

não importando se é natural ou artificial, oral ou escrita, tradicional ou eletrônica,

torna-se relevante o que elas têm a fornecer, a riqueza de recuperar a história de

um povo considerando a sua base material e social, tarefa que nos propomos no

próximo capítulo com enfoque para a tradição, a cultura popular e a noção de tempo

e espaço no contexto social da Vila de Cuitezeiras.

58

Figura 07: Senhor Daniel Galvão de Lima.

59

60

61

CAPÍTULO 2

Tradição e Memória: relação espaço-tempo e cultura popularno contexto da antiga Vila

62

Quantas vezes não acontece, em efeito, que, nas sociedades de toda

63

natureza que os homens formam entre si, um deles não faça uma idéiacorreta do lugar que ocupa no pensamento dos demais (...).

HALBWACHS (1990)

Nesse capítulo, realizo uma discussão sobre o espaço socialmente

construído a partir da memória e do que foi discutido anteriormente sobre a

importância dos relatos orais de memória na construção da história, tendo em vista

relatar o tempo histórico da formação da Vila de Cuitezeiras, procurando recuperar

os traços culturais que constituíram a vivência dos habitantes da antiga Vila.

2.1 A construção da memória dos narradores

Parto da compreensão de que a marca da tradição deve ser analisada

tanto internamente às narrativas da memória, quanto na relação dessas com a

sociedade: essas narrativas se refletem nas próprias regras de composição das

várias formas de memória – a memória coletiva, memória individual, dentre outras;

em sua existência social.

Para Bosi (1992), esse invariável na memória, freqüentemente

categorizada como típico, deve ser atribuído à fidelidade vivida subjetivamente como

boa forma, vivência espontânea da própria tradição, procedimento que se contrapõe

à reiteração coatora, imitação pela imitação, repetição afetada de fórmulas de

prestígio.

Deve-se afirmar, no caso da memória coletiva, o caráter essencial e

positivo da repetição – exigência inerente a qualquer estruturação memorial – mas

reconhecidamente muito marcante nesta forma especifica de reprodução. A referida

memória parece, principalmente, permitir aos que a ela têm acesso, o controle do

processo da construção mnemônica e funcionar como núcleo condensador do

tempo, elementos imprescindíveis a uma produção centrada especialmente na

reprodução cultural.

Nessa perspectiva, Burke (1992, p. 68) chama a atenção para vários

64

aspectos favoráveis à ligação entre repetição e memória. Entre eles, está a

facilitação da própria tarefa do narrador, que utiliza frases estereotipadas, retém

tipos de seqüências, repete frases para gozar um “momento de fôlego, um alívio da

pressão da criação contínua, uma oportunidade de pensar no que viria a seguir”

(recursos especialmente úteis no improviso).

Para o público, o autor aponta o alívio da necessidade de concentração

extensa, proporcionado pelo uso da redundância e o gosto advindo de se saber com

antecedência o que irá acontecer em seguida.

Dessa maneira, é reconhecida a função de fixação a que está

subordinada a repetição dos “motivos”, das palavras e frases. Como faz todo

narrador, vai emendando as histórias: de uma narrativa, faz escorrer a lembrança de

outra e mais outra. Informa inclusive sobre as circunstâncias em que a história se

explica e como chegou a saber daquilo, liga o relato à sua vida pessoal e sua época.

Tanto o narrador esmera-se em exercitar sua memória, quanto o público espera a

redundância nos relatos.

Há, portanto, uma vinculação essencial da narrativa à memória da

tradição a ser transmitida de geração em geração, trabalhando num longo prazo.

Nesse sentido, Benjamin (apud Konder, 1985, p. 72) destaca, com precisão, a arte

dos narradores, homens que, ao trabalhar a experiência das gerações passadas à

sua própria ou à relatada pelos outros, dão suporte, de forma cumulativa e tributária,

à uma memória coletiva.

Nesse sentido, Halbwachs (1990, p. 51), lembra-nos que:

(...) Se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de terpor suporte um conjunto de homens, não obstante eles se lembram,enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns,e que se apóiam uma sobre a outra, não são as mesmas queaparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamosvoluntariamente que cada memória individual é um ponto de vistasobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme olugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo asrelações que mantenho com outros meios. Não é de admirar que, doinstrumento comum, nem todos aproveitam do mesmo modo.Todavia quando tentamos explicar essa diversidade, voltamossempre a uma combinação de influencias que são, todas, denatureza social.

Assim, a memória coletiva, formula Benjamin (apud Konder, 1985, p. 72),

65

seria a grande experiência coletiva, na qual o conhecimento pode ir se

sedimentando e é produto do trabalho, conduzindo à sabedoria – o lado épico da

verdade, em oposição à vivência do indivíduo, privada, impressão forte, que produz

efeitos.

Sobre a autoridade do narrador que se aproximou da memória de outros

para construir sua própria memória, Benjamin (apud Konder, 1985, p. 72) explicita

que esse papel especial de conhecedor, que ficou claro na pesquisa quando na

tomada de opinião sobre que senhores poderiam ser entrevistados como portadores

da memória da Vila de Cuitezeiras, é característico do narrador; é o que o distancia

em parte dos ouvintes e faz dele “o sujeito que tem aquele prazer de satisfazer a

curiosidade (...) importante naquele ponto, interessante para aquele povo, digno do

prestígio de ser um conhecedor para aquele povo, do que ninguém sabia”.

É natural, portanto, que os narradores pareçam especialmente derivar

sua competência da tradição memorial, por serem portadores de uma sabedoria

antiga e permanente, cuja lembrança surge com naturalidade, entre eles e seu

público, a identidade que a memória compartilhada do mesmo patrimônio cultural

afirma.

Observamos tal fenômeno quando nos deparamos com a tradição

memorial do Massacre do Cunhaú e sua relação com a fundação da Vila de

Cuitezeiras, contidas nos relatos orais tomados. Lembrado pela permanência na

memória coletiva, o Massacre do Cunhaú, com sua violência material e simbólica,

marcou decisivamente na memória coletiva dos grupos sociais que se

estabeleceram na área a partir de então e se faz presente até nossos dias, quando

ressaltamos a fundação dos municípios de Canguaretama e, posteriormente, de

Pedro Velho.

Figura 08: Capela do Cunhaú, local do Massacre doCunhaú, no município de Canguaretama/RN. Fonte:Medeiros Filho, 1989.

66

Nesse sentido, em descrições próprias da narrativa baseada na memória

do lugar da Vila de Cuitezeiras, os senhores Daniel Galvão e Carlos Alberto Soares

de Carvalho remetem ao Massacre do Cunhaú, cada um com sua forma de

interpretar o fato:

Carlos Alberto Soares: Cerca de onze anos após a conquista dofortim do Cunhaú ocorreu o massacre no engenho do Cunhaú. Fatoeste ocorrido no dia 16 de julho de 1645, sob o comando de JacobRabi com a ajuda dos janduís quando 35 pessoas e o padre Andréde Soveral foram terrivelmente massacrados no momento em queestava sendo celebrada uma missa na capelinha de Nossa Senhora

67

das Candeias. Todo o engenho foi destruído.

Sr. Daniel Galvão: Foi um massacre horrível. Morreram muitaspessoas incluindo os religiosos, o que se trata de um grande pecado,pois são pessoas santificadas. Os holandeses e o Jacó Rabiestavam possuídos pelo demônio. Nunca mais o local deixou de servisto como um lugar santificado.

Nesse registro memorialista encontra-se a identidade que se perde – ou

se acha – num tempo ancestral, pois essas narrativas se destacam, definem-se

quase, pela sua imprecisão quanto a datas, lugares, nomes, autoria. Nessa

perspectiva, Cascudo (1971, p. 7) se referia ao fato de a memória oralmente

transmitida pertencer simultaneamente ao repertório do narrador e do público

apresentando-se como omissa “nos nomes próprios, localizações geográficas e

datas fixadoras do caso no tempo”.

A observação de Cascudo (1971, p. 7) sugere essa tendência imemorial

da narrativa. Para compreendê-la, importa registrar uma de suas principais

ambições:

O fato de ter acontecido com alguém desconhecido, há muito emuito tempo, num lugar bem distante daqui que a narrativa fabricasua maior força junto aos ouvintes, evitando que a contextualizaçãohistórica e geográfica retire o encanto do entrecho e do desfecho,que podem, então, ser sentidos como sentença perene desabedoria.

Cabe aqui outra definição relativa ao caráter da narrativa e de sua

construção a partir da memória, aspecto que é básico quando buscamos sua

inteligibilidade e nos deparamos com elementos que podem evidenciar

pensamentos e concepções: ela realmente expressa visões de mundo.

Destarte, a memória pode perfeitamente se aplicar às palavras de

Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 188) ao procurar destacar nas palavras do

narrador o fato de que este “exprime o mundo percebido e vivido tal como [...] o

experimenta, não segundo sua crítica e ao nível de sua consciência, mas segundo

todo seu psiquismo, afetivo e representacional, principalmente ao nível do

inconsciente”.

Por conseguinte, narrar eventos praticamente não depende de materiais,

sua permanência está condicionada à manutenção de determinadas relações

68

econômico-sociais, que definem o tempo doméstico disponível e a importância

cultural da transmissão oral pessoal.

Esses fatores são determinantes para que aconteçam serões, sessões

nas portas das casas ou para o simples contato com os mais velhos. Nesse sentido,

pude ver, a partir dos relatos orais, como os narradores do lugar contam a origem de

Pedro Velho a partir da fundação da Vila de Cuitezeiras situada às margens do rio

Curimataú, área que, em épocas anteriores, havia sido habitado pelos índios

Paiaguás.

No contexto da importância dos relatos orais para construção da

memória, nos deparamos com as descrições tomadas sobre a fundação da Vila de

Cuitezeiras. Trago inicialmente as palavras do senhor Daniel Galvão sobre o evento

que descreve:

Com o estabelecimento dos Afonso, família tradicional da época, nasegunda metade do século XIX surgia o povoado de Cuitezeiras,nome dado em virtude das numerosas árvores de cuités (coités oucuités – Cresentia cujete) que existiam na área e eram importantescomo fornecedoras de cabaços utilizados à época como utensíliosdomésticos. Ali os Afonso erigiram uma capela em honra de SantaRita de Cássia, benta em 1862 e em torno da qual se edificaram asprimeiras moradias. À época o povoado situava-se no sítio adquiridopor Cláudio José da Piedade, provavelmente dos AlbuquerqueMaranhão, no início do século XIX.

Figura 09: Cresentia cujete. Fonte:http//:www.tropilab.com/calabashtree.html

69

O senhor Jaldemar Nunes também comenta sobre a fundação da Vila e

se identifica com as palavras do senhor Daniel Galvão ressaltando que:

Cuitezeiras foi fundada no ano de 1861, vinculada à cidade deCanguaretama como Carnaúba e Cuité pertencem a Pedro Velhohoje, seu primeiro chefe de intendência foi o senhor José PauloTamatanduba do sítio Tamatanduba. O povoado foi fundado por umafamília, os Afonso que ergueram nesse lugar em 1862 a capela deSanta Rita que iniciou as práticas religiosas locais. Em 1890Cuitezeiras se desmembrou de Canguaretama e após 11 anos o rioCurimataú, com suas cheias, invadiu a cidade levando a metade dolugarejo e seus moradores com medo de novas enchentesprocuraram um lugar mais alto para construírem suas moradias. Apalavra Cuitezeiras é porque tinha muitos pés de Cuité. Era umlugarejo que tinha dois descaroçadores de algodão, dois engenhosde açúcar, muitas lojas (vendas e mercearias) e muita gente, aquionde era a cidade de Pedro Velho era mato, nada existia.

Carlos Alberto Soares de Carvalho expõe a sua versão sobre a fundação

da Vila de Cuitezeiras nessas breves palavras:

Figura 10: Cruzeiro da antiga Vila de Cuitezeiras, que ficou parcialmente destruído com ascheias do rio Curimataú em 1901.

70

Ao sul, a margem esquerda do rio Curimataú, no sitio pertencente aosenhor Cláudio José da Piedade, durante as primeiras décadas doséculo XIX fez surgir o povoado de Cuitezeiras, nome este emvirtude das inúmeras arvores de cuités. Este povoado foi fundado noano de 1861 e pertencia judicialmente ao município deCanguaretama. O seu primeiro chefe de intendência foi o senhorJosé Paulo de Tamatanduba. Em 1862, foi construída a igreja deSanta Rita de Cássia e o Cruzeiro pelo padre João Medeiros. Areferida Santa tornou-se a padroeira do povoado.

Conclui-se, portanto, que relatos como esses, sobre a fundação da Vila

de Cuitezeiras, ressaltam a importância atual da narrativa, no contexto da produção

cultural da população do lugar, oferecendo-nos muitas referências quanto à

recuperação e resgate que pesa, hoje, sobre a possibilidade de sobrevivência do

costume de conservar a memória de um lugar.

71

2.2 A Memória e as evidências orais

Um diálogo com os autores e fontes de referência é o que me move

nesse item do trabalho. Com esse diálogo pretendo analisar os relatos orais e

escritos, uma vez que entendo que não se constrói a história com dados

equivocados ou não confiáveis, pois uma história contada sem seriedade no que se

diz ou se escreve, vira “estória” e recai em prejuízo científico incalculável, bem como

a predominância da falsa memória.

Nesse sentido, analiso alguns elementos dessa confiabilidade. A iniciar

com as idéias de Bosi (1994, p. 55) que afirma:

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer,reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiênciasdo passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é,deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e quese daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é umaimagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossadisposição, no conjunto de representações que povoam nossaconsciência atual.

Dessa forma, é importante ressaltar que, ao lado da história escrita, das

datas, da descrição de períodos, há correntes do passado que só desapareceram

na aparência. Essas podem reviver numa rua, numa sala, em certas pessoas, como

ilhas efêmeras de um estilo, de uma maneira de pensar, sentir, falar.

Bosi (1994, p. 12) pergunta: “Para que servem os velhos?” Essa pergunta

é respondida em seu livro “Memória e sociedade: lembrança de velhos”, no qual

trata sobre memória social, ancorado na velhice, essa fase da vida inevitável que

muitos jovens simplesmente ignoram. A autora afirma: “(...) Não pretendi escrever

uma obra sobre memória, nem uma obra sobre velhice. Fiquei na interseção dessas

realidades: Colhi memórias de velhos”.

Essa abordagem implica a confiança que o historiador deposita nos

relatos escritos e orais das pessoas senis, ou seja, acreditar nos velhos. Diante do

exposto, amplia-se a pergunta de Bosi (1994): é confiável a fonte de informação

proveniente dos velhos? Os fatos são reais ou imaginários? Seja como for, o fato é

que as histórias são contadas com uma subjetividade intensa, na qual as

72

lembranças fluem a ponto de se confirmar os fatos críveis. Tudo isso, sendo produto

da memória.

Essa confiança do historiador se amplia para qualquer trabalho de cunho

científico, principalmente quando se referir à pesquisa de campo antropológica e

que requer uma coleta de relatos de pessoas idosas que tenham uma mente sadia

no sentido de preservar as informações fidedignas na memória.

Partindo desse entendimento, registrei algumas informações obtidas

através dos depoimentos dos narradores portadores da memória do lugar quando se

expressaram sobre a educação na antiga Vila como forma de suplementar a

memória discutida ao longo da pesquisa.

A educação, como na maioria dos municípios criados antes das

mudanças das leis do século passado, que transformaram essa atividade numa

obrigação do Estado, era, em sua maioria, dirigida por particulares.

Assim, como relata o senhor Daniel Galvão: “A educação ainda não tinha

não; a educação era particular, com escola particular, educação pública não tinha,

cuidada pelo governo”.

Em relação à forma de relatar do senhor Daniel Galvão, entendo a

memória na velhice como uma narrativa de homens e mulheres que já não são mais

membros ativos da sociedade, mas que já foram. Isso significa que os velhos têm

uma nova função social: lembrar e contar para os mais jovens a sua história, de

onde eles vieram, o que fizeram e aprenderam. Na velhice, as pessoas tornam-se a

memória da família, do grupo (BOSI, 1994, p. 63).

A questão da confiabilidade está relacionada com a legitimidade e a

limitação da história oral ao tempo presente. Nessa acepção, Pollak (1992, p. 12).

Cita:

A história oral permite fazer uma história do tempo presente, e essahistória é muito contestada. Há vários tipos de hostilidades. Porexemplo, há uma oposição entre fontes clássicas, legítimas, e fontesque estão adquirindo nova legitimidade. Na França há também a“dignidade” do período. A história medieval, por exemplo, é omáximo, é o que existe de mais fino. É claro que quando você estáacostumado a trabalhar com Idade Média, vai ser difícil se reciclarem entrevistas! Mas há também um problema de legitimidade, atémesmo em relação à história contemporânea. A história do períodoseguinte à Primeira Guerra Mundial é vista como bem menos “digna”do que a história de períodos mais antigos.

73

Portanto, essa tarefa de lembrar, aparentemente difícil para os jovens, se

apresenta de forma prazerosa para os velhos, e esse esforço de memória é

considerado e encarado pelos historiadores como fonte que de forma alguma pode

ser desprezada.

74

75

2.3 A Memória e sua relação com o passado [da Vila de Cuitezeiras]

Estabelecer uma relação da memória com o passado é entender que não

existe presente sem influências do passado. Por outro lado, falar de memória e do

passado é falar da experiência do vivido, da vivência de ruptura e das construções

sociais dos agentes da memória viva.

Nesse aspecto é que busquei a compreensão dos fatos passados na

antiga Vila de Cuitezeiras. Essa recuperação se deu através do ato de lembrar

contido na memória. É esse o exercício em curso: resgatar o passado da antiga Vila

com os artifícios da arte de narrar sem perder de vista que, como afirma

Frochtengarten (2005, p. 4):

O passado narrado carrega uma opinião: uma lembrança é umaperspectiva sobre o vivido. Por meio dela o memorialista apareceaos demais. A arte de narrar envolve a coordenação da alma, davoz, do olhar e das mãos. É como que uma performance em que apalavra, associada à ação, permite ao homem mostrar quem ele é.

Assim, os narradores portadores da memória do lugar relataram a

discriminação racial contra os negros da antiga Vila de Cuitezeiras e a relação com

o cemitério local. É fato que brancos e negros pertenciam a grupos sociais distintos

antes da libertação dos escravos em 1888. É fato também que eram muitos os

mecanismos utilizados para que isso pudesse vigorar.

Uma das estratégias de segregação era o cemitério. Invariavelmente, nas

cidades brasileiras, no período tratado, existia o cemitério dos brancos e/ou

famosos, o dos poucos conhecidos e, em muitos casos, o dos negros.

Desconhecedor dessa repetição histórica, o Senhor Daniel Galvão relata o fato de

na Vila de Cuitezeiras existir essa forma de segregação. Vejamos nas suas

palavras:

No cemitério próximo à igreja só se enterravam os brancos,geralmente pessoas famosas, as outras pessoas, os negros, eramenterradas em outro cemitério, que ficava distante, até nisso tinhapreconceito, até no sepultamento tinha preconceito.

Figura 11: Cemitério dos “ricos” da antiga Vila de Cuitezeiras, hoje Pedro Velho/RN.

76

Apesar da segregação visível, o senhor Daniel Galvão enfatiza que não

existia violência de nenhum tipo por causa disso e complementa:

Vandalismo, não tinha isso na Cuitezeiras; o que ocorria eram brigasquando o homem fraco se embebedava e ia brigar com os outros,era essa a violência, mas mesmo sem roubos e sem vandalismohavia muitas mortes.

De fato não há registro nos documentos oficiais pesquisados de crimes,

assaltos, roubos ou assassinatos, o que nos leva a concluir que a população da Vila

de Cuitezeiras era pacata. Diz o senhor Daniel Galvão que todas as festas

realizadas eram muito tranqüilas. Segundo ele, “a população participava dos

festejos com muita harmonia e sem violência”.

Visando compreender o movimento que marca a descrição dos

narradores e sua relação com os eventos passados, Frochtengarten (2005, p. 5) nos

alerta para algumas das suas características primordiais, quando afirma:

77

Uma narração é uma prática da linguagem em processo e que serenova a cada experiência de recordar, pensar e contar. O passadolembrado não é linear. A narração avança e recua sobre a linha dotempo, como que transbordando a finitude espaço-temporal que éprópria dos acontecimentos vividos. As lembranças abrem as portaspara o que veio antes e depois. Uma recordação chama outra,compondo uma teia de rememorações mais ou menos singular, cujatextura se alinhava pela maneira como cada memorialista recolhe eamarra as imagens pregressas e busca sua significação.

Nessa acepção, relatar o passado envolve algum tipo de organização das

idéias, a nomeação das vivências e sua integração a outras representações. É o

que percebi nos relatos do Carlos Alberto Soares de Carvalho, quando retrata a

mudança do território da Vila de Cuitezeiras após a enchente do rio Curimataú e

enfatiza a importância de uma primeira consciência urbana na formatação da nova

Vila.

Após o drama da enchente a população procurou recomeçar tudonovamente. Mudou-se para um chapadão de terras mais elevadasacima do leito do rio e no decorrer de alguns meses a população foiconstruindo suas residências e projetando as futuras ruas da novacidade com proporções e feições modernas. O intendentetenente-coronel Manoel Lopes Teixeira providenciou a distribuiçãodos lotes de terras que foram distribuídos à população e as casasdeveriam ser construídas dentro de um padrão em forma dequadras, isto demonstra que a cidade de Pedro Velho foi uma cidadeplanejada. A importância dessa estrutura de urbanização fez comque a cidade não tivesse nenhum aglomerado urbano.

Ainda sobre o evento, segundo o senhor Daniel Galvão, apenas uma

parte da população foi morar no chapadão mais alto. A maioria da população

preferiu continuar no núcleo urbano “original” sem a perspectiva de obter um lugar

para estabelecer sua nova moradia.

Continuando com os relatos do senhor Daniel Galvão, em 1901, Claudino

Martins Delgado, que é considerado o fundador da cidade de Pedro Velho, membro

de família tradicional e muito influente no início do século XX no município, construiu

uma casa para residência a dois quilômetros de Cuitezeiras. No seu relato original o

senhor Daniel Galvão afirma:

78

Não morreu ninguém, não houve vítimas, o socorro saiu de canoas,portanto canoas transportaram o povo para cá para o lugar mais altoque é Pedro Velho, dois quilômetros de lá para cá e começaram aconstruir aqui. A primeira casa é ali onde é a Telern hoje, sabe ondeé? Foi lá a primeira casa a ser construída na Vila Nova e era dofundador da cidade Claudino Martins.

Esse resgate histórico-social transmitido pelos relatos dos narradores

portadores da memória do lugar permite a reconstrução de fatos marcantes da vida

dos habitantes de Cuitezeiras, uma reconstrução real e/ou imaginária do passado da

antiga Vila. Nesse caso, considera-se que uma vida é vivida quando narrada. Sobre

esse tema, Pollak (1989, p. 3) afirma: “(...) O passado está ligado [...] à necessidade

de encontrar um modus vivendi”. Ainda refletindo a respeito do real e do imaginário

da memória no relato dos narradores sobre o passado, Vigotsky (1987, p. 21) nos

alerta:

Ao ser capaz de imaginar o que não viu, ao poder conceber o quenão experimentou pessoal ou diretamente, baseando-se em relatos edescrições alheias, o homem não está encerrado no estreito círculoda sua própria experiência, mas pode ir muito além de seus limitesapropriando-se, com base na imaginação, das experiênciashistóricas e sociais alheias.

A conclusão a que se chega após toda essa discussão sobre passado e

memória é que eventos passados podem se apresentar trágicos ou venturosos. No

caso deste estudo em particular, o passado da Vila de Cuitezeiras, aparece no

primeiro momento dos relatos como tendo sido trágico, porém, depois mostra-se

“venturoso” no sentido de ter proporcionado – a tragédia – transformações

importantes para os moradores e conseqüentemente a mudança da comunidade

para a Vila Nova de Cuitezeiras.

2.4 A memória e sua relação com o presente

79

A discussão sobre a relação passado/memória remete ao tempo

presente. O momento atual é o ponto de partida dos narradores da memória do

lugar, base para sua rememoração. Essa rememoração também serve de

matéria-prima no momento da indagação do pesquisador, quando busca trazer da

memória acontecimentos através de lembranças que chegam e se associam numa

seqüência que, com freqüência, parece não ter nexo com pessoas situadas em

outros tempos e lugares.

Assim, pude perceber nos relatos do senhor Jaldemar Nunes e Cascudo,

(1968), como era a Vila de Cuitezeiras e a vivência de algumas pessoas, bem como

a força do relato dessas pessoas no sentido de influenciar na memória da Vila.

O historiador Câmara Cascudo (1968) também relata sobre a fundação

da Vila de Cuitezeiras. Trata-se da versão historiográfica corroborando com as

versões orais. O autor afirma que nos idos da terceira década do século XIX,

Cláudio José da Piedade adquiriu o sítio de Cuitezeiras, às margens do rio

Curimataú.

A essa época, Cuitezeiras era pouso obrigatório para comboios

carregados de algodão, açúcar e farinha que passavam pela região. Sobre esse

papel da Vila de Cuitezeiras, o senhor Jaldemar Nunes afirma:

A Vila de Cuitezeiras era um lugarejo pequeno, aonde 80% da rendaviria da passagem de pessoas pelo lugarejo, onde compravam nasvendas. Na época o lugarejo era vinculado a Canguaretama(conhecido na época por Penha), o nome vem da existência de cuitée a fundação está vinculada ao transporte das cargas que vinham daParaíba e iam para este Estado. Em 1890 houve a emancipação.Tratava-se de uma cidade pequena. Tinha umas 30 mercearias,poucas casas, um cemitério.

Cascudo (1968) confirma a versão oral do senhor Jaldemar Nunes.

Segundo ele, o lugar, localizado na orla da estrada realenga para o sul, já antes de

sua separação do município de Canguaretama, tornara-se ponto de passagem dos

comboios de animais carregados com os produtos (açúcar, algodão e farinha) que

movimentavam a economia daquela região e complementavam o abastecimento da

cidade do Recife (PE).

Ao tomar como referência a historiografia de Cascudo (1968) para

confirmar os relatos do senhor Jaldemar Nunes, entendo que, embora a experiência

80

dos narradores que lidam com memória do lugar se mostre e pareça estar pronta, é

preciso atentar para a subjetividade no tocante à vivência dos habitantes da antiga

Vila de Cuitezeiras.

Nessa acepção, Hall (1992, p. 1) esclarece que:

Hoje em dia somos todos um pouco menos ingênuos, me parece, ereconhecemos que a história oral está longe de ser uma históriaespontânea, não é a experiência vivida em estado puro, [...] osrelatos produzidos pela história oral devem estar sujeitos ao mesmotrabalho crítico das outras fontes que os historiadores costumamconsultar.

A memória é a expressão do improviso, concretizado através do contar e

recontar histórias. É a expressão da invenção ou da precisão do relato do orador e

da sua capacidade de selecionar motivos e de constituir regras de composição de

certo repertório culturalmente dado, suportes poderosos da tradição.

Ainda nessa perspectiva, o que se percebe é que a construção da

memória é complexa, visto que se apóia em testemunhos de pessoas que

participaram ou testemunharam algum tipo de acontecimento.

Segundo Montenegro (2003), a memória se vincula ao caráter de criação

coletiva, que é expressa por um indivíduo ou indivíduos, que fazem com que tal obra

não se perca no tempo, sendo marcada pela época em que se vive ajudando na

construção da história oficial.

Nesse sentido, a construção da História, a partir da memória, na maioria

das vezes, remete a uma seletividade, a uma distinção do que é e do que não é

importante segundo conceitos pré-elaborados, de visões de mundo construídas ao

longo da vida, ideologias, concepções étnicas e políticas e até temores próprios da

cultura popular; cultura popular essa que não busca descobrir um enclave dentro da

representação cultural produzida oficialmente, mas antes de tudo fazer um caminho

inverso .

Com isso, todas as considerações de ordem geral sobre a memória e sua

ligação com a História, inicialmente feitas, bem como a caracterização de sua

inserção social, permitem uma derivação adequada das exigências especiais de

flexibilidade colocadas para a instrumentalização do material da narrativa na análise

antropológica.

81

Essas considerações autorizam afirmar que a memória coletiva

proporciona significativa amplitude e exatidão para se captar a interpretação

conferida à realidade social pelo próprio grupo social que a carrega.

Nesse entendimento, o exame de narrativas reforça a vantagem da

escolha de elementos de caráter coletivo dentro da produção cultural, pelo seu valor

analítico.

O que registrei nas tomadas de memória permite um controle mais exato

da relação entre os aspectos mais internalizados pelos sujeitos e as condições

sociais, já que elas derivam sua autoridade da passagem contínua pelo crivo de

ouvintes e narradores, através dos tempos, mais ainda no tempo atual.

Em suma, é importante ressaltar que tal condição social da memória é

preciosa, uma vez que, a partir da aceitação de que determinações sociais geram e

mantêm padrões de percepção do indivíduo e de grupos sobre si próprios, é

essencial evitar uma passagem direta, mecânica, através do tempo, entre variáveis

socioeconômicas e o comportamento ou a percepção, investigando-se as formas

específicas pelas quais os determinismos são processados pelas pessoas, na

organização de um espaço e, principalmente, um tempo correlato ao externo.

2.5 A matéria-prima da memória: as lembranças [da velha Vila]

A matéria-prima da memória é a lembrança. Quando alguém relata suas

lembranças, transmite emoções e vivências que podem e devem ser partilhadas,

transformando-as em experiências que fogem do esquecimento.

Halbwachs (1990), nessa perspectiva, afirma que as lembranças se

constituem na matéria-prima dos depoimentos com os quais trabalhamos na

construção da memória. Sendo assim, as lembranças não vivem no passado, ao

contrário, precisam de um tempo presente de onde sejam projetadas e ancoradas

por um sentido. E acrescenta ainda que:

A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado coma ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso,preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de

82

onde a imagem de outrora se manifestou já bem alterada(HALBWACHS, 1990, p. 71).

As lembranças são de ordem relacional, não isoladas e se correspondem

com vários indivíduos, e esses se abastecem dessas lembranças para continuarem

suas trajetórias de construção da memória de algum lugar. Isso se dá porque, no ato

de lembrar, sempre nos servimos de campos de significados – os quadros sociais –

que nos servem de pontos de referência. Nessa perspectiva, Barros (1989, p. 29)

enfatiza que:

As noções de tempo e espaço, estruturantes dos quadros sociais damemória, são fundamentais para a rememoração do passado namedida em que as localizações espacial e temporal das lembrançassão a essência da memória.

É nessa acepção que se tem a lembrança dos senhores Daniel Galvão,

Jaldemar Nunes e Carlos Alberto Soares de Carvalho sobre a economia da Vila de

Cuitezeiras. Segundo relatam esses narradores, a economia era baseada na

agricultura e no comércio, destacando-se as vendas, que eram locais de

socialização, ponto de encontro e de conversas. Lugar onde se poderia saber dos

‘causos’ passados, sempre na companhia de uma boa dose de aguardente

destilada, fato comum no interior e que persiste, apesar do tempo, nas pequenas

cidades do Nordeste.

Ainda sobre a economia, eles afirmam que, nos idos de 1880, ainda no

governo do primeiro Intendente, José Paulo de Tamatanduba (1861-1892),

Cuitezeiras tinha uma vida econômica promissora: possuía três descaroçadores de

algodão, quatro engenhos de açúcar e inúmeras casas de farinha, além de um

grande número de cabeças de gado, arregimentados em cerca de trinta fazendas e

criados de forma extensiva.

O senhor Daniel Galvão destaca a economia da Vila de Cuitezeiras com

certo prazer e orgulho enfatizando que:

A produção era grande, num sabe, a produção agrícola como muitoalgodão, muita farinha de mandioca, muito milho, a produção eragrande, muito fumo, tinha 3 (três) descaroçadores de algodão aquiem Cuitezeiras, três usinas (engenhos), que eram de JoaquimAzevedo, do outro lado da estrada de ferro, uma outra ali aonde

83

mora dona Chiquita, que era de Alexandre Galvão e a outra era alionde é o sindicato que era de Pedro Costa, um senhor que tinhaaqui. Se produzia muitas frutas, apesar das terras serem quasetodas ocupadas pelo algodão e pela cana-de-açúcar, aqui existiammuitos engenhos que produziam açúcar, rapadura, aguardente,tinham vários engenhos aqui no município.

O senhor Jaldemar Nunes também enfatiza a economia da Vila de

Cuitezeiras sem se desconectar da realidade atual, fato comum aos que fazem a

história oral. Assim ele relata:

Os produtos que se destacavam era a cana-de-açúcar, e não eracomo hoje que vemos essa quantidade de caminhões transportandode Cuitezeiras a cana em grande quantidade, jerimuns, melancias,naquela época não existia isso não. Se as pessoas não plantassemno começo de janeiro, em outra época não daria nada, mas hoje temirrigação, hoje tem inseticida para combater a praga, tem aqueleremédio que você coloca no jerimum, na melancia para eles sedesenvolver mais rápido. Existe Hoje essa grande diferença, para otrabalhador trabalhar melhor. Antigamente você pagava uma renda,hoje paga menos. Os donos da terra, os donos do Cunhaú davam aterra braba, queria apenas que você plantasse uma carreira de canaou café, não cobrava nada. Hoje para você trabalhar a terra vocêprecisa pagar a renda, o que algumas vezes significa muito. AEconomia passada se dava numa cidade de porte pequeno que nãotinha verbas no passado e vivia com renda própria. Existia o algodão,você ia para a boiada [várzea do Curimataú] com seu saquinhoapanhava o algodão e ali no Pau Grande tinha um quartinho comuma balança, ali você já pesava o que você colheu e recebia porisso, (já em datas mais recentes, mas o processo apenas serepetia).

Figura 12: Várzea do Curimataú na região da antiga Vila de Cuitezeiras,destacadamente lembrada como sendo fértil e importante na produçãoeconômica do lugar estudado.

84

No mesmo sentido de registrar a importância da Vila de Cuitezeiras como

ponto de parada, Carlos Alberto Soares de Carvalho enfatiza:

A vila era ponto obrigatório de repouso dos comerciantes que vinhamdo sertão para o litoral sul do Estado. Os comerciantescomercializavam os seus produtos como o algodão, açúcar, farinha,sal, tecido, mel, cachaça e outros. A vila se desenvolvia atravésdeste comércio.Com estas atividades econômicas a vila atraia um grande número dehabitantes, a sua infra-estrutura contava com uma grande feirasemanal, prédios públicos como o da Intendência, mercado público,cemitério, cadeia pública, escola e uma boa urbanização. O seumaior desenvolvimento se deu com a chegada da estrada de ferroque liga Natal a Nova Cruz, no ano de 1882. Durante o período de1890 a 1900, Cuitezeiras mantinha toda a sua base econômicavoltada para o comércio, produção de algodão, criação de gado eaçúcar.

85

Fica claro, a partir dos relatos sobre a economia da Vila de Cuitezeiras,

nessa situação em especial, que é em grande parte na memória que se encontram

as informações que compõem as histórias individual e coletiva. É nela onde se

reelaboram significações e se restabelecem as relações com o passado, superando

assim o esquecimento e permitindo apreender a dinâmica da própria sociedade.

As entrevistas, os depoimentos, as histórias de vida ligadas às

lembranças coletivas, ressalvadas nas palavras dos narradores, são técnicas que

complementam o estudo da memória. Por isso, torna-se de grande importância

estabelecer diferenças entre cada uma delas. Nesse sentido, Queiroz (1991, p. 6)

afirma que:

A diferença entre história de vida e depoimento está na formaespecífica de agir do pesquisador ao utilizar cada uma destastécnicas, durante o diálogo com o informante. Ao colher umdepoimento, o colóquio é dirigido diretamente pelo pesquisador. [...]A entrevista pode se esgotar num só encontro; os depoimentospodem ser muito curtos, residindo aqui uma de suas grandesdiferenças com relação às histórias de vida. [...] Toda história de vidaencerra um conjunto de depoimentos.

Geralmente, durante entrevistas em que se busca colher lembranças e

esquecimentos a partir da memória, há a troca de impressões sobre o que está

sendo relatado, numa tentativa de ambos ordenarem suas convicções e suas

conclusões. A entrevista serve a esse propósito, ao funcionar como uma

comunicação articulada mais ou menos livre.

Nesse aspecto, o entrevistado, como narrador portador da memória, e o

entrevistador, constroem uma interpretação daquilo que é dado como real a partir da

experiência do vivido ou passado pelas gerações, buscando analisar aquilo que é

visto ou sentido como verdadeiro, no tocante ao entendimento da memória.

Os relatos do vivido e, principalmente, do que foi passado pelas gerações

revelam que o mais importante da experiência social para construção de uma

memória é a forma como o ator vive os processos sociais e entende o mundo do

seu tempo.

Nesse sentido, foi basicamente a partir dos relatos do vivido e,

principalmente, do que foi passado pelas gerações, que se tornou possível conhecer

a economia da Vila de Cuitezeiras e entender sua estruturação a partir dos setores

86

primário, no binômio agricultura e pecuária, e secundário, importantes para o

entendimento da constituição econômica da cidade de Pedro Velho dos nossos

dias. No que concerne, especificamente, ao setor agrícola, o destaque maior foi

para a produção de alimentos: feijão, milho dentre outros, realizada por pequenos

proprietários, arrendatários e grandes proprietários, com destaque especial para

dois povoados de Cuitezeiras: Cuité e Carnaúba.

Embora de forma menos expressiva, o setor secundário também se

sobressaiu desde os primórdios da constituição econômica do povoado de

Cuitezeiras. No início do século XIX, com uma infra-estrutura voltada para o

beneficiamento do algodão, essa área empregava mão-de-obra,

predominantemente masculina, com as mulheres participando da confecção de

sacos que eram utilizados para o armazenamento de algodão já descaroçado, para

o transporte.

O algodão era o principal gênero agrícola explorado em Cuitezeiras. Era

produzido no entorno do povoado em grandes quantidades para a época e essa

produção alimentava a fábrica de beneficiamento, junto com uma parcela vinda de

cidades e povoados próximos como: Montanhas, Canguaretama, Nova Cruz,

Espírito Santo, Goianinha e também Jacaraú, na Paraíba. Depois de descaroçado, a

pluma era exportada para Natal e Recife, onde o escoamento era feito através de

caminhões e trens pelas rodovias e ferrovias existentes.

Quase todos os produtos que vinham da zona rural eram trazidos em

cangalhas e caçoás, no lombo de animais, para serem vendidos na Vila de

Cuitezeiras, e eram também transportados para outras localidades. Naquele tempo,

havia muitos armazéns de compra de farinha que era exportada para o sertão do

Estado e praias, que não a produziam. Nesses armazéns, além da farinha, também

eram guardados cereais como feijão, milho e arroz. É o que se pode absorver na

literatura de Cascudo (1968).

O fato de ter acessado esses dois tipos de fontes, a escrita e a oral,

leva-nos a reafirmar sua importância como fontes complementares. Mais

especificamente, reconhecer a relevância das lembranças evocadas e transmitidas

por um sujeito, portador da memória, e que estão presas a sua trajetória de vida ou

foram passadas pela memória do lugar, o que lhe permite oferecer um relato das

87

transformações ocorridas nesse mesmo lugar, geralmente de vivência e, ao mesmo

tempo, produzir uma análise parcial das mudanças por ele percebidas.

Portanto, os relatos das lembranças se transformam num instrumento

analítico, que pode ser utilizado na leitura e evolução da memória de uma nação, de

uma região ou de um lugar, pois assinalam o universo social de onde provém.

2.6 A memória e sua ligação com a cultura popular

Que relação existe entre cultura popular e memória? Só podemos

resgatar os elementos da cultura popular se procurarmos compreender as

mudanças e permanências, num momento histórico, de algum aspecto da cultura.

Para isso, é preciso buscar, na memória coletiva, as marcas deixadas pelas

lembranças e pelas experiências vividas.

Nesse contexto, é importante observar que numa pesquisa sobre

memória, a força do simbolismo que emana da cultura popular é bem mais visível

que a produção material, propriamente dita, embora essas dimensões sejam em sua

totalidade, inseparáveis. Entretanto, Montenegro (2003, p. 12) lembra que a cultura

popular se caracteriza:

Por um conjunto disperso de práticas, representações e formas deconsciência que possuem lógica própria (o jogo interno doconformismo, do inconformismo e da resistência) distinguindo-se dacultura dominante exatamente por essa lógica de práticas,representações e formas de consciência.

E acrescenta que a cultura popular, como parceira da memória torna-se

ainda mais essencial quando se trata de uma das únicas fontes existentes ou

trata-se de uma opção pessoal. Talvez a própria opção seja uma forma de

resistência característica do fazer popular, que se compõe trilhando o caminho

inverso construído pelos que, muitas vezes, convivem, toleram, assimilam ou

reproduzem a cultura oficial.

Resgatar a memória a partir da cultura popular é acreditar que essa não

se perdeu no tempo, pois, como ressalta Montenegro (2003, p. 13):

88

Ela está presente, pelas próprias condições materiais de carênciaradical das condições mínimas de sobrevivência, ao gerar umaprodução material e simbólica que muitas vezes manifestacaracterísticas muito distintas da cultura oficial. É nesse cenário quea própria relação com a cultura oficial, por parte dessa população, éproduzida, recriada e regenerada.

Nesse sentido, resgatar a memória a partir da cultura popular também é

penetrar num mundo de idéias, em grande parte, não compreendidas pela

oficialidade ou pela própria população que a constrói, pois essa é muitas vezes

dominada, “coadjuvante” no processo de formação da história oficial.

Na perspectiva de teorizar sobre cultura popular, Chauí (2000, p. 63)

afirma que:

Para aqueles, como nós, que passaram pela experiência históricado populismo, as expressões “cultura popular” e “cultura do povo”provocam certa desconfiança e vago sentimento de mal-estar. Noentanto, convém admitir que as tais reações nascem da lembrançado contexto político em que aquelas expressões foramabundantemente empregadas. [...] Quando se fala em culturapopular, não enquanto manifestação dos explorados, mas enquantocultura dominada, tende-se a mostrá-la como invadida, aniquiladapela cultura de massa e pela indústria cultural, envolvida pelosvalores dos dominantes, pauperizada intelectualmente pelasrestrições impostas pela elite, manipulada pela folclorizaçãonacionalista, demagógica e exploradora, em suma, como impotenteface à dominação e arrastada pela potência destrutiva da alienação.

Nesse aspecto, Chauí (apud Montenegro, 2003, p. 13) critica aqueles que

defendem essa idéia e ainda aqueles que consideram a memória como tendo um

quadro simbólico reduzido e, por tal razão, se constituiria em uma cultura pobre.

Montenegro (2003, p. 13) ratifica Chauí afirmando que:

É completamente equivocado se procurar compreender e explicar aprodução material e simbólica da população – e por extensão asformas de relação com a sociedade a sua volta – a partir dos valoresinstituídos pela cultura oficial.

Os elementos simbólicos inerentes à cultura popular estão também na

marca da religiosidade e do costume. Nessa relação, Thompson (1998, p. 22) afirma

que:

89

(...) Não podemos esquecer que “cultura” é um termo emaranhado,que, ao reunir tantas atividades e atributos em um só feixe, pode naverdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas.Será necessário desfazer o feixe e examinar com mais cuidado osseus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos culturais dahegemonia, a transmissão do costume de geração para geração e odesenvolvimento do costume sob formas historicamente específicasdas relações sociais e de trabalho.

Dessa maneira, Bosi (1986) afirma que existe uma cultura vivida e uma

cultura a que os homens aspiram. A concepção de cultura como necessidade

satisfeita pelo trabalho da instrução leva a atitudes que reificam, ou melhor,

condenam à morte os objetos e as significações da cultura do povo por que

impedem ao sujeito a expressão de sua própria classe.

Bosi (1986) ainda acrescenta que Chombart de Lowe, escutando os

militares franceses, percebeu que a cultura não é um conjunto de conhecimentos a

assimilar, mas é o fruto de um esforço comum a todos “para compreender melhor o

que se passa em volta de nós e explicar aos outros”. Nos relatos do senhor Daniel

Galvão, percebi tal esforço, quando da descrição do transporte da antiga Vila e sua

relação com a demarcação religiosa.

O transporte básico em Cuitezeiras era o cavalo, carroças puxadaspor cavalos, essas coisas no interior do município. Para fora era aestrada de ferro, que já passava por aqui, essa mesma estrada deferro que existe hoje já existia, que por sinal hoje o trem não passa.A parada era ali no Cruzeiro, pois ainda não tinha estação, amercadoria era desembarcada lá; vinha de Natal, de Recife, daParaíba, desse meio de mundo e era transportada de cavalo e decarroças para o comércio de Cuitezeiras.

A partir da demarcação religiosa e sua relação com o transporte na Vila,

na perspectiva das Ciências Sociais, é importante distinguir qualitativamente as

modalidades de religião visto que a religião popular resulta da combinação de

variáveis, com destaque para duas que percebi nas entrevistas: a concepção social

dos fiéis, pobres, oprimidos, população carente, e a função da religiosidade em

conservar uma tradição ou responder ao desamparo suscitado por mudanças

sociais.

90

Registrando essa tradição, pude perceber a importância da construção de

um cruzeiro na formação da nova Vila de Cuitezeiras, pois, no Brasil, até meados da

segunda metade do século passado, o Cruzeiro era fator de demarcação para

sociedade e tratava-se de uma referência, daí o fato de, na ausência de uma

estação ferroviária, tal elemento de religiosidade e representação de poder, servir de

lugar de parada dos trens nas pequenas cidades.

O transporte ferroviário, que chegou ao povoado em 1882, segundo o

senhor Daniel Galvão, foi fundamental para dinamizar o escoamento dos produtos

de Cuitezeiras e demais municípios e povoados da região, bem como para o

desenvolvimento urbano da localidade em estudo.

A historiografia oficial, especialmente as obras de autoria de Câmara

Cascudo (1968; 1971), confirma a versão do senhor Daniel Galvão quando afirma

que a rede ferroviária, que rumava desde setembro de 1881, partindo de São José

de Mipibu (RN) com destino a Nova Cruz (RN), chegou a Vila Nova de Cuitezeiras

no ano de 1882.

Com a chegada da ferrovia à Nova Cruz, no mesmo ano de 1882, e com

o aumento da atividade agrícola ligada ao plantio e beneficiamento do algodão, a

criação de uma vila urbanizada se fez urgente. Junto ao edifício da Intendência veio

o mercado, realizou-se a feira, a capela de Santa Rita foi erguida, junto a ela o

cemitério, o que consistia em traços claros de uma urbanização que ia ganhando

novas feições com os primeiros alinhamentos de ruas.

Dessa maneira, as marcas da religiosidade estão presentes como

aspectos da manifestação cultural dos habitantes de Cuitezeiras. Nesse sentido,

Chauí (2003, p. 76) afirma que:

A religião fornece orientação para a conduta da vida, sentimento decomunidade e saber sobre o mundo, compensando a miséria porum sistema de “graças”: cura, emprego, regresso ao lar do maridoinfiel, do filho delinqüente, da filha prostituta, o fim do alcoolismo.

Chauí (2000) considera também que a cultura e a religiosidade estão

relacionadas com a vida política e social dos indivíduos como uma estratégia de

dominação através da cultura de massa. Nesse sentido e corroborando com Chauí,

Bosi (1986, p. 19) afirma:

91

Se um dia a classe pobre alcançar a gestão sobre seu destino, asua cultura não deixará de englobar os valores dos que trabalham,valores que se opõem aos dos que dominam [...] E, quem sabe, anossa cultura ganhará o que perdeu: o trabalho manual, o cultivo daterra, a ligação religiosa com o todo.

Na discussão sobre cultura, religião e política social, Bosi (1986, p. 65)

considera, em conformidade com Chauí, que “tanto do ponto de vista histórico

quanto do funcional, a cultura popular pode atravessar a cultura de massa tomando

seus elementos e transfigurando esse cotidiano em arte”.

No que diz respeito à relação entre cultura popular e religião, percebi que

foi a partir da identidade religiosa, fincada na fé em Santa Rita de Cássia, que os

moradores de Cuitezeiras estabeleceram a parceria para a constituição do novo

território que resultaria na Vila Nova de Cuitezeiras.

Este aspecto da religiosidade e suas manifestações são abordados por

alguns pesquisadores no âmbito da Geografia, a exemplo de Rosendahl (1996), que

sobre o tema afirma que a geografia e a religião são, em primeiro lugar, duas

práticas sociais. Afirma ainda que o homem sempre fez geografia e que a religião

por outro lado, sempre foi parte integrante da vida do homem, como se fosse uma

necessidade sua para entender a vida.

Ressalte-se que a formação da Vila Nova de Cuitezeiras se deu a partir

da construção da Capela de Santa Rita e do Cruzeiro no percurso dos viajantes, que

comercializavam e usavam o lugar como pousio desde os primórdios da antiga Vila.

A partir daí, estabeleceu-se o lugar e teve início a estratificação social e a distinção

entre os que governavam e os seus subordinados.

Portanto, ao longo dessa discussão, que abordou a memória e sua

ligação com a cultura popular, vi que é estreita essa relação e que, como enfatiza

Montenegro (2003), observam-se duas realidades de linguagem na construção da

memória ligada à cultura popular: a linguagem dos ricos, fortes influenciadores da

construção da história oficial, e a linguagem dos pobres, muitas vezes simbólica,

imaginária, construtora de uma memória. Além disso, as concepções de cultura

popular estão voltadas para sua relação com os costumes e na influência que

recebe da cultura erudita e cultura de massa.

É no âmbito dessa relação existente entre cultura e história que o próximo

capítulo recupera os aspectos mais importantes da história da Vila de Cuitezeiras. É

92

uma viagem pelos caminhos históricos da memória da antiga Vila a partir da

gênese: o engenho Cunhaú, passando pela formação da Vila, a enchente do rio

Curimataú, que levou à formação de uma nova Vila (a Vila Nova) até a consolidação

da cidade de Pedro Velho.

Figura 13: O Senhor João Alberto da Fonseca.

93

94

95

CAPÍTULO 3

Do Engenho Cunhaú à Vila Nova de Cuitezeiras

96

Um local é um lugar facilmente apreendido pela memória, como uma casa,um espaço entre colunas, um canto, um arco, etc. Imagens e formas,

97

marcas e simulacros (formae, notate, simulacra) daquilo que queremoslembrar.

Ana Luiza Bustamante Smolka (1998)

Ciente da importância em articular a discussão teórica com as

informações empíricas e de cunho etnográfico realizo nessa parte do trabalho uma

discussão sobre a memória, particularizando uma de suas categorias mais

importantes – a memória do lugar. Nesse exercício parto da antiga Vila de

Cuitezeiras, o povoado que deu origem à cidade de Pedro Velho no início do século

XX.

3.1 A Vila de Cuitezeiras – um lugar construído pela memória

De início, o lugar que se apresenta como cenário desse estudo se

constituiu no passado como o lugar de destaque histórico no município de Pedro

Velho. Esse lugar, tido como especial na imaginação dos narradores portadores da

memória do lugar, era repleto de mistérios desde o desmembramento, mediante

Decreto de 11 de maio de 1890, quando o Governador Dr. Joaquim Xavier da

Silveira Júnior separou a Vila do município de Canguaretama, definindo seus limites

e elegendo o senhor João José da Cruz o primeiro Presidente da Intendência do

município. Esse aspecto da memória coletiva aparece fortemente em depoimentos,

conforme posto a seguir pelo senhor Daniel Galvão:

É de fato uma terra boa, de grande produtividade onde quase tudoque se planta nasce. Desde criança ando por lá e aqui, na área dePedro Velho já vi sair de tudo um pouco: feijão, algodão, macaxeira,manga e muitas outras culturas. É uma terra santa, um pedaçoabençoado por Deus.

O mesmo narrador ainda acrescenta: cerca de 10 (dez) anos após sua

fundação como município, Cuitezeiras destacava-se na região por sua ligação com

uma atividade agrícola e comercial que se pautava na diversificação.

Essas informações registradas nos relatos do senhor Daniel Galvão,

revelam, com base na análise de Bauman (1999), horizontes e limites criados e

98

recriados constantemente, onde pode incidir ao mesmo tempo o internacional, o

nacional e o global, como dimensões sociais com graus diferentes de

intermediação.

O lugar também se representa na noção de coletividade, sinônimo de um

espaço-tempo enraizado fisicamente. Trata-se do espaço onde ocorrem ligações e

relações de colaboração, solidariedade, contradição, disputa e conflitos. Esse traço

da memória se faz marcante no comportamento dos narradores do lugar, quando

relatam o cotidiano das pessoas da antiga Vila e a solidariedade dos habitantes

durante a tragédia ocorrida – a enchente do rio Curimataú, que arrasou a Vila.

Nos relatos sobre esse evento, “o lugar pode ser também dos excluídos”.

Após a enchente, as pessoas construíram novos espaços geográficos e sociais,

consolidando um território denominado de Vila Nova de Cuitezeiras, posteriormente,

cidade de Pedro Velho.

Na tentativa do entendimento da memória do lugar e da construção do

território pedrovelhense, apoiei-me em Souza (2001) que enfatiza o valor essencial

do espaço como aparelho de manutenção, conquista e exercício de poder,

características que ele destaca como algo “muitíssimo antigo”, e importantíssimo

para o entendimento da memória do lugar. O lugar ou o território construído a partir

do lugar é tido por esse autor como um espaço produzido, definido e delimitado por

e a partir de relações de poder e da propagação de sua memória.

Em suma, o espaço geográfico-social da Vila de Cuitezeiras se constituiu

num ambiente construído e reconstruído com a vitalidade dos habitantes, depois de

uma tragédia sem precedentes na localidade.

O espaço socialmente construído da Vila de Cuitezeiras foi recriado com

o advento da enchente do rio Curimataú. No lugar da antiga Vila, sobraram apenas

as ruínas da Igreja de Santa Rita, o cemitério, parcialmente destruído, que ficava

atrás da Igreja e o velho Cruzeiro. Não havendo mais possibilidade de ali continuar a

vida, os moradores criaram um novo espaço, o território da Vila Nova de Cuitezeiras,

no qual teve início um novo povoamento.

Nas palavras do Senhor Daniel Galvão, o início da ocupação desse

espaço – o lugar recriado que originou a cidade de Pedro Velho – revela nomes

familiares, eventos e mudanças:

99

As famílias de Claudino Martins, Alexandrino Martins, Joaquim daLuz, Manoel Bezerril, José Galvão de Lima estão entre as primeirasque chegaram e se estabelecerem na nova Vila de Cuitezeiras aindano início da década de 1860. Essas também foram as primeirasfamílias da Vila Nova de Cuitezeiras após a mudança para ochapadão em 1901.Também, ainda no mês de dezembro de 1901, a sede do municípiofoi transferida pelo intendente Manuel Lopes Teixeira para uma áreamais elevada localizada nas terras de Fernando Pedrosa.Posteriormente, através da Lei 181 de 04 de setembro de 1902, opresidente da Intendência Joaquim Lopes Teixeira confirmou atransferência da sede da Vila para o novo local e, junto com outrasautoridades municipais, oficializou o novo nome da cidade: Vila Novade Cuitezeiras.A partir da construção da residência de Claudino Martins Delgado sesucederam as construções e se desenvolveu o comércio, lançandodessa forma os alicerces para a fundação do novo município,inaugurado, religiosamente, em 17 de dezembro de 1901 quando sebenzeu o cruzeiro e, politicamente, a 4 de setembro de 1902 quandoadotou-se o nome de Vila Nova de Cuitezeiras, sede oficial domunicípio a partir de então. Também no dia 17 a feira na nova Vilaera inaugurada.

Na acepção de Santos (1996), a idéia de lugar consiste da extensão do

acontecer homogêneo ou do acontecer solidário. Nesse sentido a configuração

territorial é norma, mesmo que efêmera e a estrutura é tão importante quanto a

duração do fenômeno. Mas como são as pessoas e os lugares que se globalizam, o

espaço se torna único. A globalização tenta impor uma única racionalidade ao

mundo. Ainda para o referido autor, a diferença entre lugar e região é hoje menos

relevante do que antes. Sobre tal diferença Santos (1996, p. 145) nos alerta que:

Quando se trabalha uma concepção hierárquica e geométrica doespaço geográfico, aí, a região pode ser considerada como umlugar, sempre que se verifique a regra da unidade, e da contigüidadedo acontecer histórico. E os lugares – veja-se o exemplo dasgrandes cidades – também podem ser regiões, nas quais o tempoempirizado acede como condição de possibilidade e a entidadegeográfica como condição de uma espacialização prática, que crianovos limites e solidariedades sem respeitar as anteriores (...) Oslugares se definem, pois, por sua densidade informacional e por suadensidade comunicacional cuja função os caracteriza e distingue.Essas qualidades se interpenetram, mas não se confundem.

Nesse sentido, mais importante do que a consciência do lugar é a

consciência de mundo que se tem por meio do lugar.

100

Quanto ao território, entender a idéia de territorialidade contida nos

relatos documentais e historiográficos oficiais sobre o Cunhaú, área gênese da

antiga Vila de Cuitezeiras, bem como a noção de “território vivido”, contida nos

relatos orais referentes a essa, perpassa pelas várias posições científicas do

entendimento desse “ser” geográfico.

Nesse caso, a busca do entendimento do território como um conceito da

história do pensamento geográfico, se justifica, pois complementa a pesquisa

histórica, permitindo compreender a ligação dos que propagam a memória do lugar

e o apego que geralmente esses “homens do lugar” têm com o território em que

vivem e onde se relacionam.

Nessa acepção, Bonemaison (apud CLAVAL, 2002) nos alerta que é

possível entender o apego afetivo dos “homens do lugar” com o seu “lugar de vida”,

compreendendo que esse se trata de onde eles se sentem, com demasiada

satisfação, responsáveis por reproduzir a tradição que carregam, fruto também de

uma construção temporal.

Numa outra concepção de território, Souza (2001) o trata como um

espaço produzido, definido e delimitado por e a partir de relações de poder e a

propagação da idéia de poder está ligada também à memória.

Nessa perspectiva, deixa fora do diálogo sobre a concepção do território

questões sobre as características geoecológicas, sobre o que se produz ou quem

produz em dado espaço e até mesmo as ligações afetivas e de identidade entre o

grupo social e seu espaço.

Souza (2001) enfatiza a busca por quem domina ou influencia o território,

colocando-o, essencialmente, como um instrumento de poder e ainda que territórios

existem e são construídos, e desconstruídos, nas mais diversas escalas, sejam elas

espaciais ou temporais. A refundação de lugares, como no caso Vila Nova de

Cuitezeiras, faz parte desse processo.

Na perspectiva de Claval (2002), o território, o lugar territorializado,

oferece aos grupos uma base e uma estabilidade que eles não teriam sem esse. Tal

sentimento de territorialidade, de pertencimento ao território, faz nascer nos grupos

que carregam a memória do lugar uma sensação de segurança para construir a sua

história.

101

Provavelmente, a impressão anterior que trata da refundação e do novo

espaço construído, a Vila Nova de Cuitezeiras, leva-nos a crer no espírito de

renovação. Contar os acontecimentos, eventos, os fatos que os cercam e que

compõem a memória do seu lugar, trazendo-os para o momento atual, é uma

renovação. Pode não ocorrer a interpretação e até mesmo o entendimento, quase

sempre fruto de uma aversão ao novo, que parece não ser o ideal, mas, mesmo

assim, há renovação com o “contar de novo”.

Enfim, a nova Vila construída não se apresenta apenas por uma

mudança necessária ao território, e sim uma renovação de vida cotidiana a partir de

um espaço socialmente reconstruído. O novo lugar não é o mesmo, mas as pessoas

buscaram recuperar o passado adaptando as relações sociais com a nova vivência.

Construir um espaço não significa somente existir, mas estruturar instituições sociais

que possibilitem o funcionamento dessas relações no espaço habitado.

3.2 A história e o lugar na memória da cidade

Sobre a temática histórica, Halbwachs (1990, p. 71) enfatiza que a

memória histórica acrescenta à formação memorial do indivíduo “os quadros

coletivos da memória e que estes não se resumem a datas, nomes e fórmulas [...].

Que eles representam correntes de pensamento e de experiências onde

encontramos nosso passado, porque este foi atravessado por isto”. Vê-se com base

nesse autor que a memória de um indivíduo ou de um país está na base da

formulação de uma identidade onde a continuidade é vista como uma característica

marcante.

Ainda para Halbwachs (1990, p. 89-90) ao destacar os detalhes,

acrescenta:

O que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhe, é que odetalhe somado ao detalhe resultará num conjunto, esse conjunto sesomará a outros conjuntos, e que no quadro total que resultará detodas essas sucessivas somas, nada está subordinado a nada,qualquer fato é tão interessante quanto o outro, e merece serenfatizado e transcrito na mesma medida. Ora, um tal gênero de

102

apreciação resulta de que não se considera o ponto de vista denenhum dos grupos reais e vivos que existem, ou mesmo queexistiram, para que, ao contrário, todos os acontecimentos, todos oslugares e todos os períodos estão longe de apresentar a mesmaimportância, uma vez que não foram por eles afetadas da mesmamaneira.

Nessa perspectiva, Nora (apud LE GOFF, 1994) complementa essa

discussão entre memória e História enfatizando que a primeira tornou-se objeto da

segunda, sendo por ela filtrada, o que impede o estabelecimento de diferenças entre

a memória coletiva e a memória histórica. Para esse autor tudo que se considera

memória é, em realidade, história, restando apenas “lugares de memória”.

Para Pollak (1989, p. 2), a função da História não é historicizar memórias

que já deixaram de existir, e sim, trazer à superfície memórias “que prosseguem seu

trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível” e que “afloram

em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados”. Nesse aspecto, “a

história da memória tem sido quase sempre uma história das feridas abertas pela

memória”.

Concluindo a discussão acerca das relações entre Memória e História,

Halbwachs (1990, p. 85) nos alerta que: “A história começa somente do ponto onde

acaba a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social.

Enquanto uma lembrança subsiste, é inútil fixá-la por escrito”.

A partir da discussão teórica anteriormente tratada, chega-se ao

entendimento de que a reprodução da memória do lugar, a Vila de Cuitezeiras,

faz-se desde a reprodução da memória na gênese do lugar em estudo: o Engenho

Cunhaú no século XVII. Foi nessa localidade que teve início a vida social dos que,

após o Massacre do Cunhaú, se deslocaram até o lugar da Vila e ali desenvolveram

o povoado até a enchente do rio Curimataú, em 1901.

Nessa visão, há a necessidade de relatar brevemente a história do

Engenho Cunhaú no contexto histórico do Rio Grande do Norte e como uma forma

de entendermos a história da antiga Vila.

Com suas terras extremamente propícias ao cultivo da cana-de-açúcar, o

Engenho Cunhaú trazia sobre si, à época, o interesse de portugueses e holandeses

pela sua posse.

103

Do tempo do antigo engenho, a história é resgatada através dos escritos

de Medeiros Filho (1993, p. 8):

Durante quase três séculos a área do Cunhaú, localizada asmargens do Curimataú, pertenceu aos Albuquerque Maranhão. Ariqueza dos relatos referentes à memória do lugar dá conta que aregião era citada como propícia à instalação de engenhos já no anode 1607. Cronistas como o padre Serafim Leite, em sua obra Históriada Companhia de Jesus no Brasil, descreviam a várzea doCurimataú como local ideal para a instalação de engenhos devido àexistência de terras, águas, lenhas e tudo necessário para [uns] oitoingénios.

Ainda no século de sua fundação, o Engenho Cunhaú já se destacava

como o principal núcleo econômico da Capitania, principalmente por sua ligação

com a produção açucareira, como descreve o historiador Medeiros Filho (1993, p.

11):

CUNHAÚ – três milhas acima de Camaratuba existe ainda umengenho, no lugar chamado Cunhaú, o qual faz anualmente de6.000 a 7.000 arrobas de açúcar; este lugar está sob a jurisdição doRio Grande e ali moram bem 60 ou 70 homens com suas famílias;meia milha distante deste engenho corre um rio, de três milhas delongo e meia de largo, onde as barcas iam carregar açúcar, de 100 a110 caixas cada barca, e traziam dali também comestíveis; há alitambém muito gado, farinha e milho que ordinariamente é trazidopara Pernambuco com o açúcar.

Estes escritos de Medeiros Filho (1993) nos levam a pensar sobre a

memória como vida e a História como fim. Sobre essa característica da história,

Borges (apud ARÉVALO, 2004, p. 2), nos lembra que “o presente não passa de

uma partícula fugaz do passado e que estamos feitos de esquecimentos, sabedoria

tão inútil como os corolários de Spinoza ou as magias do medo”.

Ao abordar esse tema, Nora (apud LE GOFF, 1994), no seu clássico texto

Entre memória e história - a problemática dos lugares, alerta-nos que não existe

mais memória, que esta só é revivida e ritualizada numa tentativa de identificação

por parte dos indivíduos e que a sociedade utiliza-se hoje da história para lhe

conferir lugares onde pode pensar que não somos feitos de esquecimentos, mas de

lembranças: “os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema

onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque

104

ela a ignora”. Nesse contexto, Arévalo (2004, p. 2) ressalta que a memória é

histórica.

Tudo o que é chamado de clarão de memória é a finalização de seudesaparecimento no foco da história. A necessidade de memória éuma necessidade da história. O apelo que nossa sociedade faz depreservação de sua memória é, em última instância, a necessidadede reconstituição de si mesma, encarada como algo formado dopassado para o presente, por isso, preservar vestígios, trilhas,fósseis, [um lugar], etc. (Grifo nosso).

Vale enfatizar que as sociedades locais, a exemplo das pequenas vilas,

precisam da história como um instrumento para encontrar um significado que, por

vezes, não lhe é mais inteligível. Nesse sentido, Foucault (apud ARÉVOLO, 2004, p.

4) nos alerta que:

A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora dosujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá serdevolvido, a certeza de que o tempo nada dispensará semreconstituí-lo em uma unidade recomposta, a promessa de que osujeito poderá, um dia – sob a forma da consciência histórica –, seapropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas a distânciapela diferença, restaurar o seu domínio sobre elas e encontrar o quese pode chamar sua morada.

Nesse contexto, torna-se relevante o registro do Massacre do Cunhaú, a

partir de Medeiros Filho (apud Mariz & Suassuna, 1997, p. 95-96), como parte do

resgate da história da fundação da Vila de Cuitezeiras.

O temor se concretizou e algumas famílias que haviam se refugiadona casa-forte existente no sítio de João Navarro, sogro do holandêsJoris Garstman, no desaguadouro da Lagoa do Papari, foram emseguida massacrados pelo grupo de Jacob Rabbi, receoso de umareação dos luso -brasileiros.

Esse episódio abriu caminho para a possibilidade de uma formação

territorial de passagem na área de Cuitezeiras, devido à migração de grupos de

agricultores temerosos, formação esta que geraria a posterior estruturação da Vila

de Cuitezeiras anteriormente revelada nos primeiros capítulos deste trabalho.

Portanto, verifica-se que a história da cidade da Vila de Cuitezeiras teve

105

início a partir do que foi produzido e realizado no Engenho Cunhaú, o qual se

constituía como foco central do poder na região e tinha o comando de uma família

oligárquica tradicional, os Albuquerque Maranhão.

Com os episódios nessa localidade, destacadamente com o Massacre do

Cunhaú e a queda da produção, os habitantes se deslocaram para a Vila de

Cuitezeiras, lugar de refúgio e de comércio, por ser caminho obrigatório das

pessoas ligadas ao transporte de produtos para os grandes centros como Recife e

Natal. Com o desenvolvimento comercial da Vila, veio o progresso que, como já

observamos, não durou muito, pois essa foi arrasada pela enchente, o que levou a

população a reconstruí-la, num chapadão próximo ao local, com a denominação de

Vila Nova de Cuitezeiras.

A conclusão a que se chega após essa discussão de viés teórico e de

cunho etnográfico, é que a história do lugar se constitui de histórias de lutas,

progressos e tragédias, que podem ser contadas e escritas mediante a

recomposição da memória histórica, a partir de literaturas desenvolvidas nos

estudos de alguns historiadores e, especialmente, recorrendo-se às ferramentas da

memória. O que nos leva a inferir que o resgate da memória da Vila de Cuitezeiras,

não teria sido possível sem o acesso à memória do lugar e sua matéria-prima: as

lembranças dos velhos e dos jovens aqui registrados.

3.3 As lembranças do lugar: a formação da cidade

Nesta parte do trabalho, realizo uma construção etnográfica de caráter

teórico-empírico sobre como os narradores portadores da memória do lugar

lembram do espaço socializado da formação da nova Vila e sua transformação em

cidade. Neste exercício enfatizo também as lembranças como um artifício para

entender o processo de formação do núcleo urbano a partir de uma discussão sobre

lugares da memória.

106

Nesse sentido, Le Goff (1994, p. 473) comenta sobre a história que se

desenvolve a partir do estudo dos “lugares da memória”, ressaltando a sua

multiplicidade e os sentidos dos lugares de memória:

Os lugares topográficos como os arquivos, as bibliotecas, osmuseus, lugares monumentais como os cemitérios ou asarquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, asperegrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionaiscomo os manuais, as autobiografias ou as associações: estesmemoriais têm sua história. (...) Lugares de externalização damemória, a memória das coisas, nas ações coletivas.

A essência da “A externalização da memória, a memória das coisas” são

as lembranças. Sobre esse aspecto da memória Halbwachs (1990) destaca que é a

partir delas que se dão os registros de nossas vivências, tanto as pessoais, quanto

as coletivas.

Nesse sentido, lembramos aquilo que é importante para nós e, em grande

parte das vezes, para o grupo.

Halbwachs (1990) aponta ainda que as lembranças podem, a partir da

vivência em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Que podemos criar

representações do passado assentadas na percepção de outras pessoas, no que

imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma

memória histórica. Nesse sentido, o autor define lembranças como:

Uma viagem engajada em outras imagens [...] que é em largamedida uma reconstrução do passado com a ajuda de dadosemprestados do presente, e, além disso, preparada para outrasreconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem deoutrora manifestou-se já bem alterada (HALBWACHS, 1990, p.75-78).

Assim, com referência às lembranças em Halbwachs (1990), considero

que vivemos entre a memória e o esquecimento, talvez porque vivemos entre o ser

e o não ser mais. Certamente precisamos de ambos para viver. A memória, a partir

das lembranças, faz-nos lembrar de quem somos e nos faz também querer ir a

algum lugar.

Entendidas as funções das lembranças, torna-se necessário, a partir

107

daqui, voltarmos ao conceito de “lugares da memória”.

Quando Le Goff (1994) menciona os “lugares de memória” refere-se à

“externalização” da memória, memória coletiva por excelência. Os autores com os

quais Le Goff dialoga, a exemplo de Simônides, Agostinho e Ricci, mantêm

afinidades entre si e corroboram para a fundamentação deste trabalho visto que, ao

falarem de locais e imagens, de “lugares da memória”, estão se referindo a locais

guardados na memória, a possibilidades de organização e funcionamento mental,

interno, memória individual assim como ocorre com o lugar e os grupos sociais que

se fazem presentes neste trabalho.

Para compreender o conceito de “lugares da memória” e entender a

transformação do lugar da Vila de Cuitezeiras, depois Vila Nova de Cuitezeiras,

cabe aqui analisar o foco desse processo de construção, o que costumamos chamar

de “lugar”.

Spink (2001, p. 1), mediante esse argumento, assegura que a construção

do lugar se dá com a formação do poder local, “a disputa pelos arranjos de

governança dos espaços dentro dos quais se organiza a vida de muitas pessoas, é

um longo processo sócio-histórico”.

Nessa acepção, sustentado no pensamento de Spink (2001, p. 1),

ressalto a seguinte indagação: será que o conceito de lugar, mesmo no sentido

amplo, como espaço de convivência, nem sempre pacífica, de lógicas diferenciadas,

culturas organizacionais polimorfas, solidariedade, disputas, conflitos, é suficiente

para uma reflexão mais teórica?

No entendimento de Spink, Clemente e Keppke (1999, p. 15), a resposta

para essa indagação pode estar no fato de que:

A preocupação inicial desde o uso do local [lugar] como elementoconstitutivo de uma hierarquização de espaços (local, regional,nacional, global) e o perigo de reificação que isso poderia acarretar.Assim, o local é visto como parte intrínseca de uma lógica deordenação do espaço – construído e produzido num dado processosocioeconômico – que automaticamente o subordina a algo maior.[O que o torna reflexivo, teórico].

No âmbito dessa discussão acerca de lugares da memória e lugar, a

cidade de Pedro Velho oferece, nas lembranças dos narradores o lugar

transformado em cidade. O relato de Carlos Alberto Soares de Carvalho é ilustrativo

108

desse processo. O referido senhor afirma ter sido lento o processo de mudança da

população para a nova área do chapadão de terras altas, onde passaram a construir

novas residências e fizeram a marcação das futuras ruas.

Seguindo o viés econômico, o senhor Daniel Galvão nos relata que foi

incansável a luta do povo para perpetuar a Vila, demonstração clara, segundo ele,

“do amor por esta”. Ele nos lembra ainda que:

O comércio foi novamente reativado, continuava como grandecomerciante o senhor Joaquim da Luz, com seu armazém bastanteabastecido, e isto só foi possível com o movimento do vai e vem dostrens, que transportavam passageiros e comerciantes de outrasregiões e de outros estados, mantendo assim um considerávelintercâmbio comercial consolidado com a construção da estaçãoferroviária.

Ainda no viés econômico, Carlos Alberto Soares de Carvalho afirma que

nas primeiras décadas do século XX, com a produção da lavoura algodoeira a

cidade já contava com dois descaroçadores de algodão o que facilitava o transporte

do mesmo para a sua comercialização. E acrescenta:

Um homem de grande destaque no comercio do algodão era osenhor Manoel Gadelha de Freitas que comprava toda a produçãodos pequenos, médios e grandes agricultores. Da nossa cidadesaiam várias toneladas desse produto para o município de NovaCruz. As atividades agrícolas tradicionais permaneciam fazendocom que uma boa parte da população produzisse para o seu próprioconsumo, no que os economistas chamam de economia desubsistência.

Nos relatos paralelos à discussão econômica, constatei que, em 1908, o

nome do município foi mudado de Vila Nova de Cuitezeiras para Pedro Velho, sob a

influência emocional da morte de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão

(1856-1907), oligarca-chefe e líder da família de mesmo sobrenome, família que

dominava o poder político do Estado a partir do Engenho Cunhaú. Tal denominação

permanece até os dias atuais (CASCUDO, 1968).

A oligarquia Albuquerque Maranhão no Rio Grande do Norte, como em

todo o Brasil da República Velha, possuía suas bases mantenedoras do poder

econômico e conseqüentemente político, fincadas na atividade agro-exportadora.

109

Há uma ligação do republicanismo oligárquico com a estrutura

coronelística, especificamente, a dos Albuquerque Maranhão, no Rio Grande do

Norte.

O movimento republicano no Rio Grande do Norte teve comoprincipal liderança Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, membrode uma das mais importantes famílias da província. Antes mesmo dafundação do Partido Republicano norteriograndense (27 de janeirode 1889), Pedro Velho já assumira a liderança do movimentorepublicano, constituindo-se numa das principais liderançasoposicionistas da província (TRINDADE E ALBUQUERQUE, 2001, p.78).

A fase republicana de influência da oligarquia foi iniciada e liderada por

Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, que já “no dia 17 de novembro de 1889,

(...) assumiu o posto de presidente do Rio Grande do Norte, tendo sido logo

substituído por Adolfo Gordo” (TRINDADE E ALBUQUERQUE, 2001, p. 79). Essa

oligarquia teve grande participação política, econômica e social no Estado.

Posteriormente, em 1892, eleito presidente, Pedro Velho de Albuquerque

Maranhão deu início à consolidação oligárquica, num processo de acesso e

manutenção do poder, em que o nepotismo político predominou tanto na dominação

do poder executivo, como no legislativo.

O grupo Albuquerque Maranhão possuía, como centro de sua atividade

mantenedora, o açúcar, obtido, na sua maior parcela, a partir da cultura processada

no Engenho Cunhaú, localizado no litoral oriental do Estado. Nesse aspecto, essa

oligarquia, que esteve à frente do Estado no período republicano durante 28 anos

(de 1890 a 1918), procurou, em todo esse tempo, implantar um sistema de

beneficiamento de açúcar, como parte do projeto de sua manutenção econômica e

de reestruturação da produção desse gênero agrícola que se deparava com uma

crise desde o século XIX.

A base oligárquica dos Albuquerque Maranhão estava fincada no aspecto

econômico citado e em acordos políticos no âmbito federal e estadual, o que

consistia na política dos governadores, nos estados dependentes do Governo

Federal política e economicamente (MARIZ, 1984, p. 46).

Esse aparato de controle oligárquico dos Albuquerque Maranhão

começou a decair a partir da segunda década do século XX. Talvez a insistência em

110

beneficiar a cultura açucareira com instituições de crédito estatal e a própria criação

do Banco de Natal que, segundo “Tavares de Lyra, ‘dois anos depois de sua

fundação’” (TAKEYA E LIMA, 1987, p. 19) tinha na prosperidade um fato

incontestável. Havia contribuído para tal decadência a idéia geral dessa oligarquia

que insistia em resistir aos novos rumos da economia mundial, pautada no viés do

capitalismo liberal. Da mesma forma, ainda no viés do capitalismo liberal, tenha sido

fruto da mentalidade do oligarca ligado à produção açucareira, mentalidade mais de

proprietário de terras que de industrial, que considera sempre como símbolo de

progresso, e prosperidade em seus negócios, aglutinar mais terras em torno de si

(ANDRADE, 1986, p. 53).

No contexto histórico de influência oligárquica, o Historiador Carlos

Alberto Soares de Carvalho relata o evento da mudança de nome da cidade

enfatizando que:

Com o falecimento do grande líder republicano o Dr. Pedro Velho deAlbuquerque Maranhão em dezembro de 1907, os seuscorreligionários políticos e o Congresso do Estado (hoje AssembléiaLegislativa), em sua homenagem, mudaram o nome de Vila Nova deCuitezeiras para Pedro Velho. Hoje os mais idosos continuamchamando a cidade de Vila Nova.

Nos relatos do senhor Jaldemar Nunes também aparece o evento da

mudança de nome do município:

Naquela época, não tinha prefeito, tinha intendente e então opessoal buscaram construir suas casas num lugar seguro aqui emPedro Velho e botaram o nome de Vila Nova de Cuitezeiras, que em1908 passou a ser Pedro Velho em homenagem ao granderepublicano Pedro Velho de Albuquerque Maranhão que teriafalecido no ano anterior, como seja em 1907 e naquela época veiode trem e ao passar por Pedro Velho o trem descarrilou na Lagoa doCunhaú, mas foi coisa rápida, não houve problema não. Essahomenagem era porque ele era membro de uma família ilustre quedominava a política aqui na região e no Estado; foi médico,governador do Estado duas vezes, Senador da República, então erairmão de Augusto Severo aquele que inventou o Pax, aquele aviãoque caiu na França, era irmão de Fabrício Maranhão, cuja esposa foienterrada naquele túmulo alto do cemitério da Cuitezeiras, onde seencontra o meu do lado, que fiz para ser sepultado lá. SobreCuitezeiras a origem dela é esta.

111

O senhor Daniel Galvão demonstra insatisfação com relação à mudança

de nome, mas, ao mesmo tempo, admite que, a partir de tal evento, o município

passou a ter maior desenvolvimento, enfatizando a participação de Fabrício

Maranhão, irmão do governador morto, como grande incentivador desse processo.

Assim o senhor Daniel Galvão descreve, a partir da memória, a mudança de nome

do lugar:

O nome Pedro Velho porque o Sr. Pedro Velho foi o primeirogovernador da República no Rio Grande do Norte depois defuncionada a República. Ele era médico, era escritor, jornalista epolítico, um dos maiores do Rio Grande do Norte e do Brasil aliadode Deodoro na Proclamação da República e aí, em homenagem aele foi mudado o nome para Pedro Velho, eu não sei para quemudar.Com esse nome, Pedro Velho ficou mais evoluída, apareceu maisesforço. O primeiro a incentivar isso em Pedro Velho foi FabrícioMaranhão. Com esse esforço surgiu o mercado, escolas como aprimeira, o Fabrício Maranhão (antes se chamava Pedro Velho), tudoisso depois do nome Pedro Velho.

Nesse sentido, o que se percebe, a partir das narrações dos portadores

da memória do lugar, é que o “lugar da memória”, é, pois, o lugar da imortalidade e

que a memória não está apenas no passado trazido à tona pela recordação, mas

está presente em nossos corpos, em nosso idioma, no que valorizamos e

entendemos como sendo o correto, no que tememos e no que esperamos. A

memória nos identifica como indivíduos e como coletividade, permitindo que estas

linhas sejam escritas em seqüência.

Nesse contexto, Frochtengarten (2005) enfatiza a importância da

narração afirmando que essa doa um tempo e um lugar, uma seqüência e uma

causalidade às reminiscências. Doa mesmo um início e um final; um antes, um

durante e um depois; permite mesmo contar um passado e um presente.

O autor nos alerta ainda para o fato de que contar o passado envolve

alguma organização das idéias, a nomeação das vivências e sua integração a

outras representações, bem como lembra-nos também de que a memória integra

esse trabalho de elaboração psíquica. E que é pela reconstrução do ponto de fricção

de sua experiência no mundo, por sua recorrente inscrição na subjetividade, que o

sujeito poderá caminhar, mais ou menos bem sucedido, para a liberação de novas

significações ao vivido.

112

Conclusivamente, o que se percebe ao contar o passado da cidade de

Pedro Velho, a partir da Vila de Cuitezeiras e Vila Nova de Cuitezeiras é que a

origem histórica da cidade de Pedro Velho, obtida a partir da memória dos relatos

dos narradores do lugar, apresenta-se estruturada com forte influência política,

marcadamente pela presença da oligárquica família Albuquerque Maranhão, que

participou ativamente da construção da história do município marcando o lugar e

permanecendo na memória.

3.4 A memória e o novo lugar: a cidade de Pedro Velho

O contexto da formação da cidade de Pedro Velho remonta ao novo lugar

construído socialmente após a enchente do rio Curimataú e à procura por um

chapadão elevado, evento discutido nos itens anteriores, tendo em vista construir

uma nova sociedade.

Nessa discussão sobre o lugar, a memória revela a história da cidade de

Pedro Velho, iniciada no Engenho Cunhaú, em seguida transformada em Vila de

Cuitezeiras, e, depois da enchente do Curimataú, na Vila Nova de Cuitezeiras.

Agora, havemos de resgatar a formação da cidade de Pedro Velho, com enfoque

para o espaço urbano que se constituiu. Esse resgate se dará através dos

narradores do lugar, fazendo relações teóricas com algumas categorias como:

espaço social, cidade e urbanização.

A Vila Nova de Cuitezeiras crescia a partir do novo Cruzeiro – o Cruzeiro

da Rua da Linha – ao longo da linha ferroviária que liga Natal/RN a Recife/PE,

atualmente desativada. Nesse percurso direcionado pela linha férrea encontrava-se

a estação ferroviária.

Figura 14: Estação ferroviária de Pedro Velho, Antiga Vila de Cuitezeiras.Fonte: acervo do Professor Genar Bezerril.

113

A primeira casa a ser construída por Claudino Martins Delgado, em 1901,

distante 2 km (dois quilômetros) de Cuitezeiras, lançou os alicerces da cidade – área

urbana – que se denominou Vila Nova de Cuitezeiras. A partir daí, sucederam-se as

construções e desenvolveu-se o comércio, segundo relatos de Cledenilson V.

Moreira.

Segundo o mesmo narrador:

Em 17 de dezembro de 1901, benzeu-se o cruzeiro e a feira foiinaugurada. Em 04 de setembro de 1902, foi oficializada atransferência do nome Cuitezeiras para Vila Nova de Cuitezeiras. Asede municipal foi transferida para Vila Nova, que estendeu seunome ao município. A paróquia de São Francisco só seria criada em11 de fevereiro de 1922 (Decreto de Criação – ANEXO B).

114

Nesse sentido, a sagração a São Francisco como padroeiro da cidade de

Pedro Velho, parece representar uma relação de cidadania e de crença que dá

forma às ações das pessoas. A ação conjunta dos cidadãos ao reconstruir a cidade

tem um significado social e religioso, mas indica também uma faceta cultural, a

superstição.

Nos dias atuais, tradicionalmente celebra-se a festa religiosa do

Padroeiro, São Francisco de Assis, a 4 de outubro. Antes desse santo se fixar nas

representações coletivas dos habitantes de Vila Nova, os devotos ainda admiravam

e veneravam Santa Rita, padroeira da antiga Vila.

Nessa acepção, que envolve os aspectos religiosos, sociais, históricos e

geográficos, o professor Anelino Silva afirma:

A identidade religiosa dos moradores de Pedro Velho vai estabeleceruma parceria entre a geografia, o social e o religioso, que têm emSanta Rita de Cássia, o elo capaz de proporcionar as ações deproduzir no cotidiano a sobrevivência formal dos habitantes, quenuma dinâmica (de ação e religiosidade), passa a ter em SãoFrancisco, o novo padroeiro da Cidade.

Dessa forma, o conjunto dessas ações e construções vai formando a

cidade. Para Brissac (2005), em sua obra “Cidade sem janelas”, a cidade é o

espaço compacto entre as coisas, como uma vegetação espessa, funciona como

cimento, ligando objetos e planos de diferentes dimensões. A cidade é um muro

impenetrável e opaco.

A Vila Nova de Cuitezeiras só seria elevada à cidade através do Projeto

do Deputado Sandoval Wanderley em 1936; formação que se dá a partir de um

incipiente núcleo urbano.

O IBGE (1996) distingue as situações urbano e rural a partir de alguns

indicadores como população, cidade e urbano. Na situação urbana, consideram-se

as pessoas e os domicílios recenseados nas áreas urbanizadas ou não,

correspondentes às cidades (sedes municipais), às vilas (redes distritais) ou às

áreas urbanas isoladas. A situação rural abrange a população e os domicílios

recenseados em toda a área situada fora dos limites urbanos, inclusive os

aglomerados rurais de extensão urbana, os povoados e os núcleos.

115

Considerando as características que marcam grande parte das cidades

brasileiras, Mueller (1996, p. 75) faz referência às pequenas cidades do Nordeste

como “centros locais”, que estão em última posição na escala hierárquica das

cidades e que fornecem apenas bens e serviços simples para as cidades sem

centralidade e zonas rurais tributárias.

Nessa discussão envolvendo concepções de espaço e cidade, Sposito

(1989, p. 64) afirma:

Os espaços não são apenas urbanos; existe a cidade e o campo. Omodo de produção não conduz cidades de um lado e campo dooutro, mas ao contrário, esta produção compreende uma totalidade,com uma articulação intensa entre dois espaços.

Dessa forma, a busca por um entendimento relacionado à formação das

cidades remete a buscar uma melhor compreensão sobre elas. Lefebvre (1991, p. 4)

diz: “A própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação

irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das trocas,

na direção dos produtos”.

Acrescenta, ainda, que a cidade oriental e arcaica foi essencialmente

política; a cidade medieval, sem perder o caráter político, foi principalmente

comercial, artesanal e bancária. Ela integrou os mercadores outrora quase

nômades, relegados para fora da cidade. A partir do sobreproduto crescente da

agricultura, em detrimento dos feudos, as cidades começam a acumular riquezas:

objetos, tesouros, capitais virtuais. Nas cidades medievais, o capitalismo comercial e

bancário já tornou móvel a riqueza e constituiu circuitos de trocas e redes, que

permitem as transferências de dinheiro. Já existia nesses centros urbanos uma

grande riqueza monetária, obtida pela usura e pelo comércio. Nesses centros,

prosperava o artesanato, produção bem distinta da agricultura.

Ainda na concepção de Lefebvre (1991), declarar que a cidade se define

como rede de circulação e de consumo, como centro de informações e de decisões,

é uma ideologia quase absoluta. A cidade sempre teve relações com a sociedade no

seu conjunto, com sua composição e seu funcionamento, com seus elementos

constituintes (campo e agricultura, poder ofensivo e defensivo, poderes políticos,

Estado), com sua história. Portanto, ela muda quando muda a sociedade no seu

conjunto. A cidade depende também, não menos essencialmente, das relações do

116

imediato, das relações diretas entre as pessoas e grupos que compõem a

sociedade (famílias, corpos organizados, profissões e corporações); Ela não se

reduz mais à organização dessas relações imediatas e diretas, nem suas

metamorfoses se reduzem às mudanças nessas relações.

Analisando a formação das cidades, Santos (1926, p. 95) afirma que a

organização interna das cidades é caótica.

As cidades, e, sobretudo, as grandes, ocupam, de modo geral,vastas superfícies, entremeadas de vazios. Nessas cidadesespraiadas, características de uma urbanização corporativa, háinterdependência do que podemos chamar de categorias espaciaisrelevantes desta época: tamanho urbano, modelo rodoviário,carência de infra-estruturas, especulação fundiária e imobiliária,problemas de transporte, extroversão e periferização da população,gerando, graças às dimensões da pobreza e seu componentegeográfico, um modelo específico de centro-periferia.

Nessa acepção, percebe-se que a cidade se transforma não apenas em

razão de “processos globais” relativamente contínuos, tais como: o aumento da

produção material no decorrer das épocas, com suas conseqüências nas trocas, ou

no desenvolvimento da racionalidade, como também em função de modificações

profundas no modo de produção, nas relações “cidade-campo”, nas relações de

classe e de propriedade.

Dessa forma, Marx & Engels (apud Maia, 1994, p. 64) afirmam:

[...] A cidade é já a realidade da concentração da população, dosinstrumentos de produção, do capital, dos prazeres, dasnecessidades, ao passo que o campo torna patente precisamente arealidade oposta, o isolamento e a solidão. O antagonismo entrecidade e campo só pode existir no quadro da propriedade privada.

Sposito (1989, p. 64) explica que a cidade é, “particularmente, o lugar

onde se reúnem as melhores condições para o desenvolvimento do capitalismo. O

seu caráter de concentração, de densidade, viabiliza a realização com maior rapidez

do ciclo do capital, ou seja, diminui o tempo entre o primeiro investimento necessário

à realização de uma determinada produção e o consumo do produto”.

Como a cidade de Pedro Velho tem, em suas raízes, uma conotação

religiosa, cabe aqui entender o que afirma Rosendahl (1996, p. 39):

117

É importante assinalar que a gênese das primeiras cidades estávinculada à apropriação de um excedente, por uma classe social queemerge, e que tem no aparecimento do Estado e na força da religiãodos elementos de controle efetivo político, militar, institucional eideológico, assegurando e justificando a dominação.

E acrescenta que “as cidades possuem uma ordem espiritual

predominante e marcadas pela prática religiosa da peregrinação ou romaria ao lugar

sagrado”.

Em outro aspecto, Sposito (2001, p. 95-96) ressalta que:(...) [Há] cidade polinucleada que inviabiliza a própria constituição deuma identidade urbana para seus habitantes e permite a construçãode diferentes representações de cidade, definidas não apenas pelopadrão socioeconômico de seus moradores, mas pela localizaçãoque ocupam e pelos lugares que vivenciam na trama de fluxos quese estabelecem no interior dessas grandes áreas urbanas.

Assim, voltando à história do município, Cledenilson V. Moreira explica

que, no contexto das relações sociais que se estabelecem a partir da formação das

cidades, tendo em vista as concepções de Lefebvre (1991), a cidade de Pedro

Velho foi se constituindo e, no dia 26 de novembro de 1908, a Vila Nova de

Cuitezeiras, que ainda não possuía uma tradição toponímica, foi transformada em

município com a denominação de Pedro Velho.

Nesse sentido, de acordo com Nesi (1992), não existia qualquer ligação

material ou moral entre o Primeiro Governador do Rio Grande do Norte e a Vila

Nova de Cuitezeiras, porém Pedro Velho havia falecido no ano anterior e seus

correligionários, saudosos e gratos, adotaram o seu nome na Vila.

O senhor Daniel Galvão afirmara anteriormente que o nome “Pedro

Velho” havia sido dado ao município em homenagem à família Albuquerque

Maranhão e ao personagem Pedro Velho como republicano maior do Estado.

Segundo seus relatos, tratava-se “de um homem de grande influência como o

Marechal Deodoro da Fonseca, Quintino Bocaiúva, Benjamim Constant, Prudente

de Morais, Campos Sales, Rodrigues Alves que foram grandes personagens da

Primeira República”.

118

Dessa forma, os familiares e correligionários de Pedro Velho, embora

dessem uma denominação em homenagem a uma figura que pouco tinha ligação

com a cidade, contribuíram para a construção de uma tradição toponímica, que

ajudou, dessa forma, a formatar o espaço social da nova cidade.

Castells (2000, p. 181-182) entende a formatação do espaço social como

sendo:

Um produto material em relação com outros elementos materiais –entre outros, os homens, que entram também em relações sociaisdeterminadas, que dão ao espaço (bem como aos outros elementosda combinação) uma forma, uma função, uma significação social.Portanto, ele não é uma pura ocasião de desenvolvimento daestrutura social, mas a expressão concreta de cada conjuntohistórico, no qual uma sociedade se especifica.

Nesse sentido, compreendo que é legítima a confiabilidade dos fatos a

partir dos relatos dos membros da própria sociedade, pois a vivência se

consubstancia num aspecto forte que remonta à história de um povo, suas

experiências, aptidões, desejos e costumes. Toda essa legitimidade é completada

com os referenciais teóricos analisados para a compreensão das fontes empíricas

(etnográficas).

Assim, são importantes os relatos de João Hortêncio Sobrinho a respeito

da formatação da nova cidade, sob o aspecto econômico, e ainda Vila Nova de

Cuitezeiras:

A nova Vila dos moradores de Pedro Velho era agora reconstruir eproduzir. A terra era boa e plantar para desenvolver a economia erapreciso. [...] Mais recentemente observamos mudanças no contextopolítico-econômico nacional que ainda refletem em Pedro Velho e,levou o município a situação de “decadência” em relação ao seupassado próspero.

Toda essa organização social e econômica, bem como a formatação da

nova cidade, pressupõe o que Camarotti & Spink (1999) chama de organizações

formais a partir do lugar, lançando, portanto, um olhar, metaforicamente, de fora

para dentro, e tendo de descrevê-las para iniciar seu estudo, talvez nosso ponto de

partida não seja nem o tipo, nem a estrutura, nem o tamanho, nem a tecnologia,

nem a estratégia, nem a meta, mas o simples fato social de sua existência ou

119

presença como espaço social delineado, com acesso restrito e parcialmente

privatizado. E acrescenta:

Se continuarmos a olhar, encontraremos outros elementosorganizativos normalmente considerados informais; mas, mesmoassim, dotados de tanta forma quanto os primeiros. Também terãosuas bases de legitimidade: de parentesco, de vizinhança, deconfiança e de solidariedade na luta pela sobrevivência(CAMAROTTI & SPINK, 1999, p. 3).

Por conseguinte, para entendermos a formação da nova cidade, Pedro

Velho, devemos atentar para o destaque da influência permanente da oligarquia

Albuquerque Maranhão, inclusive na apropriação do novo território.

O supracitado território foi doado por Fabrício Gomes de Albuquerque

Maranhão no início da República no Brasil em setembro de 1902, após a destruição

da Vila de Cuitezeiras pelas águas do Curimataú em 1901, povoado que antes

pertencia ao município de Canguaretama.

Conclui-se que, somente a partir do entendimento das imbricações

discutidas aqui, nos relatos orais de memória ou nas análises das bibliografias

pertinentes, imbricações essas de caráter econômico, social, político ou

cultural-religioso, poderemos construir a história dessa Vila Nova de Cuitezeiras,

consolidada posteriormente como cidade de Pedro Velho.

120

121

Considerações Finais

Com este trabalho objetivo contribuir para a construção de uma história

contada a partir de evidências orais registradas com base em relatos, vivências que

traduzem sentimentos de identidade social e pertencimento ao lugar: a Vila de

Cuitezeiras.

Através das lembranças de alguns narradores do lugar pude recuperar

aspectos da origem da Vila de Cuitezeiras tendo início nas terras do Engenho

Cunhaú e nas marcas das relações sociais desenvolvidas nessa localidade que

possibilitaram a ocupação de um novo espaço social construído: a Vila Nova de

Cuitezeiras que mais tarde se consolidaria como Cidade de Pedro Velho.

Para apreender os processos sócio-históricos do lugar abordei teorias,

conceitos e concepções de estudiosos das ciências históricas, sociológicas,

filosóficas e geográficas ao mesmo tempo em que apliquei, no campo, uma

metodologia de cunho etnográfico.

Em alguns momentos recorri às análises e às interpretações dos relatos

cruzando-os com as teorias necessárias ao desenvolvimento e à compreensão do

objeto de estudo. Foi nessa perspectiva que pude perceber o quanto a identidade

social de um povo é significativa na sua história e como os narradores se identificam

com a sua terra quando estão relatando os acontecimentos vividos ou assimilados

através da memória coletiva.

Ao resgatar a gênese da Vila de Cuitezeiras, a qual remonta aos tempos

do engenho Cunhaú percebi uma articulação político-religiosa entre católicos e

protestantes que tinha como “pano de fundo” o controle e o interesse econômico da

produção dos engenhos e das terras da região. Em conseqüência dessa disputa

ocorreu o Massacre dos devotos católicos na Capela do Engenho Cunhaú. Sem

dúvida, um fato histórico que marcou a vida política e religiosa de todos os

integrantes do engenho. O líder holandês Jacob Rabi influenciando os índios

Janduís fez com que eles invadissem a capelinha de Nossa Senhora das Candeias

e assassinassem 35 pessoas e o padre André Soveral.

Minha preocupação se voltou para a importância de transformar a história

oral em registro histórico para evitar que essa parte da história da Vila de

122

Cuitezeiras se perdesse com a morte dos narradores portadores da memória do

lugar. A esse acervo histórico somaram-se os documentos, principalmente, o

Decreto de Criação do município, informando que em 11 de maio de 1890, o

Governador Dr. Joaquim Xavier da Silveira Júnior separou a Vila de Cuitezeiras do

município de Canguaretama, definindo seus limites e elegendo o senhor João José

da Cruz, o primeiro Presidente republicano da Intendência do município.

Além dos relatos orais, pude resgatar parte dessa história mediante

documentos importantes da história da Vila de Cuitezeiras e do cenário da cidade de

Pedro Velho; embora não tenha havido a pretensão de substituir as evidências orais

tão presentes na memória coletiva de Pedro Velho, essas duas matérias da

memória complementam-se na construção deste trabalho.

As lembranças se consubstanciam como a matéria-prima da memória,

um importante instrumento na construção dos relatos de memória. Foi a partir das

lembranças que escolhi recuperar os detalhes da economia da Vila de Cuitezeiras a

partir dos idos de 1880. A história mostra que a Vila de Cuitezeiras tinha uma vida

econômica em desenvolvimento: possuía três descaroçadores de algodão, quatro

engenhos que produziam além do açúcar, rapadura e aguardente. Havia casas de

farinha, além de um grande número de cabeças de gado. A produção agrícola era

composta por algodão, farinha de mandioca, milho e fumo.

Ao buscar nas lembranças os nexos com a cultura popular, encontramos

na memória dos narradores portadores da memória do lugar as experiências vividas

e as representações simbólicas que permeiam o imaginário coletivo. Nesse

contexto, se fez necessário entender que toda história está envolvida num contexto

cultural e que a cultura popular se faz presente de forma mais concreta na vida

social. Essa leitura da sociedade pedrovelhense permitiu destacar a importância do

lugar e sua relação com a memória. A memória do lugar como espaço socialmente

construído, abrange concepções de territorialidade e o território é um espaço

produzido, definido e delimitado a partir de relações de poder e da propagação de

sua memória. Nessa perspectiva, os fatos marcantes ocorridos na Vila de

Cuitezeiras e na Vila Nova de Cuitezeiras, bem como as atividades econômicas e os

acontecimentos religiosos, políticos, sociais e naturais fizeram parte da construção

dos novos espaços sociais (territórios) dos moradores de Pedro Velho.

123

Finalmente, concluí que a história de constituição desse lugar investigado,

embora envolva diferentes denominações e contextos históricos diversos, é única;

refere-se às terras do engenho Cunhaú e à sociedade que ali habita que somente

devido as transformações sociais, políticas, religiosas e econômicas saíram desse

lugar em busca de outro espaço, de preferência onde a vida ativa – econômica –

pudesse se desenvolver. Foi na Vila de Cuitezeiras que encontraram esse novo

espaço. O que atraiu a sociedade local a esse lugar, foi certamente, a busca por um

lugar seguro num período de massacres e perseguições político-religiosas e a terra

fértil visto que até hoje ali se encontra uma várzea considerada de grande produção

agrícola.

Esses fatos relatados e registrados de forma coerente ou, os fragmentos

da memória em sua vulnerabilidade contribuíram para a construção deste texto cuja

matéria-prima é a memória.

Destaco que essa dissertação se configura como um documento

importante para a sociedade pedrovelhense no sentido de promover um resgate

parcial da história e da identidade social da sociedade local e visa também contribuir

para as academias de ciências humanas e sociais que procuram desenvolver

trabalhos neste campo de pesquisa embora esteja ciente de sua incompletude e,

por conseguinte das perspectivas que abre para outros estudos.

Enfim, sabemos que nos dias atuais, a memória é cada vez mais

fragmentária e que o historiador tem um importante papel no resgate e registro da

mesma, foi com esse espírito que me lancei em busca dessa construção histórica

que também é minha!

124

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133

ANEXO A

PEDRO VELHO

134

135

ANEXO B

Decreto de criação da Paróquia de São Francisco de Assis de Vila Nova

Dom Antônio dos Santos Cabral, por mercê de Deus e da Santa Fé Apostólica,

Bispo de Natal.

Fazemos saber que, de acordo com o prescrito pelo código do direito canônico,

coms. 216,454,1415. § 3.1421 § 5 1º e 20, levando ainda em consideração de

gravíssima responsabilidade de nossa consciência na direção dos direitos e dos

destinos espirituais do quinto rebanho que juramos apresentar e defender em pleno

exercício de nossa jurisdição ordinária; haveremos por bem desmembrar

perpetuamente da Paróquia da Penha desta diocese, e elevar à categoria de

Paróquia... A capela de São Francisco de Assis de Vila Nova, que assim esta

paróquia chamar-se-á a Paróquia de São Francisco de Vila Nova, cujo território terá

os mesmos limites civis que separam e constituem o município de Vila Nova. No

intuito de aprovar a convincente sustentação do povo e para explicitação do culto

divino, os habitantes da referida paróquia contribuam com os mandamentos e

benesses que estão fixados na tabela diocesana.

Justando assim a segura, quam referium, os estimáveis benefícios de permanência

de um paróquio propício para satisfazer as suas necessidades espirituais.

Mandamos, outra assim, a todos os fies compreendido com os limites da nossa

paróquia que agora dirigimos, reconheçam na pessoa do sacerdote por nós

designado para dirigi-la assim como nas dos seus sucessores conheçam o seu

legítimo paróquio.

O presente Decreto ascensão será lido a estação da missa paroquial e registrado no

Livro de Tombo da nossa paróquia, bem assim, nos das paróquias limitrópoles,

Penha e Nova Cruz, dado e passado nesta episcopal cidade de Natal sobre o zelo e

igual de Nossa Senhora Norma, aos 11 de fevereiro de 1922.

M. Antônio Bispo de Natal.

136

137

APÊNDICE A

CARACTERIZAÇÃO DOS NARRADORES

– O historiador Carlos Alberto Soares de Carvalho nasceu em Natal/RN, tem 50anos de idade, reside em Pedro Velho e é graduado em História pela UniversidadeFederal do Rio Grande do Norte (UFRN). Possui também pós-graduações(Especializações) em História do Brasil e Pré-História.

– O Cientista Social Cledenilson V. Moreira nasceu em Pedro Velho/RN, tem 32anos de idade, reside no município citado e é licenciado em Ciências Sociais ebacharel em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).É solteiro e atualmente faz pós-graduação em Língua Portuguesa pela UFRN eEducação pela FARN.

– O Geógrafo João Hortêncio Sobrinho nasceu no Cuité, distrito de Pedro Velho,tem 42 anos de idade, reside no distrito de Cuité, Pedro Velho/RN e é licenciado emGeografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); é solteiro eatualmente exerce a função de Coordenador de Cultura do município de PedroVelho/RN.

– O Senhor Daniel Galvão de Lima nasceu em Pedro Velho/RN, tem 83 anos, écasado, foi vereador no município e hoje se encontra aposentado.

– O Senhor Jaldemar Nunes nasceu em Florânia/RN, tem 71 anos, é casado,cursou até a 4ª série, é sargento da Polícia Militar e Guarda Patrimonial na área daAntiga Cuitezeiras.

– O Senhor João Alberto da Fonseca nasceu em Pedro Velho/RN, tem 69 anos, écasado e hoje se encontra na condição de comerciante aposentado.