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SILVANA DE FÁTIMA BOJANOSKI MEMÓRIA, HISTÓRIA E DOCUMENTOS SACRALIZADOS: UM ESTUDO DE CASO DO ARQUIVO PÚBLICO DO PARANÁ (1976-1989) MARINGÁ 2007

MEMÓRIA, HISTÓRIA E DOCUMENTOS SACRALIZADOS: UM ESTUDO DE …livros01.livrosgratis.com.br/cp044057.pdf · caminho, contou-se com o apoio e companheirismo de muitas pessoas, sendo

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  • SILVANA DE FTIMA BOJANOSKI

    MEMRIA, HISTRIA E DOCUMENTOS SACRALIZADOS: UM ESTUDO DE CASO DO ARQUIVO PBLICO DO PARAN

    (1976-1989)

    MARING

    2007

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  • SILVANA DE FTIMA BOJANOSKI

    MEMRIA, HISTRIA E DOCUMENTOS SACRALIZADOS: UM ESTUDO DE CASO DO ARQUIVO PBLICO DO PARAN

    (1976-1989)

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Histria, Curso de Ps-Graduao em Histria, Universidade Estadual de Maring. Orientadora: Prof. Dr. Evandir Codato

    MARING

    2007

  • Ficha Catalogrfica

    Bojanoski, Silvana de Ftima

    Memria, Histria e documentos sacralizados: um estudo de caso do Arquivo Pblico do Paran (1976-1989) / Silvana de Ftima Bojanoski. 2007

    ix, 139 f. : il.

    Orientadora: Evandir Codato Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de

    Maring, Programa de Ps-Graduao em Histria, 2005.

    1. Histria. 2. Arquivstica. 3. Memria. 4. Documentos. 5. Arquivos Pblicos. I. Codato, Evandir. II. Bojanoski, Silvana de Ftima. III. Universidade Estadual de Maring, Programa de Ps-graduao em Histria. IV. Ttulo.

  • iii

    Professora Regina Gouva in memoriam, Diretora do Arquivo Pblico do Paran, que na busca de um arquivo eficiente e moderno, ousava sonhar alto e nunca se conformava com os limites e entraves burocrticos que encontrava pela frente. Graas aos seus estmulos e incentivos, crescemos profissionalmente.

    Aos amores da minha vida, Caio e Altino, que fazem valer a pena viver e seguir aprendendo a cada dia.

  • iv

    AGRADECIMENTOS

    Ao finalizar a caminhada de elaborao de uma dissertao conclui-se que

    mais importante que a chegada foi o caminho percorrido. Um caminho que comeou

    muito antes, com as experincias profissionais com acervos culturais onde, para

    alm da execuo de atividades tcnicas de preservao, sempre havia espao para

    questionamentos sobre o trabalho que estava sendo executado. E nesse longo

    caminho, contou-se com o apoio e companheirismo de muitas pessoas, sendo

    impossvel nomear a todos.

    Devo agradecimentos especiais aos amigos e colegas de trabalho Cynthia

    Roncaglio e Dcio Roberto Szvara, companheiros de discusses e debates sobre

    os arquivos e que muito me ajudaram na elaborao do projeto e posteriormente na

    leitura atenta dos captulos elaborados.

    Evandir Codato, professora orientadora que desde o incio recebeu a mim

    e a meu projeto literalmente de braos abertos, agradeo a sua confiana de que eu

    poderia realizar esse trabalho, e especialmente a sua sensibilidade e apoio nos

    momentos de dificuldades maiores.

    Agradeo ainda a Andr Porto Ancona Lopez, que como co-orientador, em

    momentos precisos me ajudou a corrigir os rumos da pesquisa.

    Graas CAPES, cujo apoio financeiro obtido com a bolsa, foi possvel em

    determinado perodo, dar continuidade pesquisa.

    Nessa longa caminhada, que inclua viagens semanais de Curitiba para

    Maring, o apoio da famlia foi fundamental. Agradeo especialmente minha me,

    que mesmo achando que eu sempre escolho carregar mais pedras do que deveria,

    sempre me ajuda a carreg-las.

    Um agradecimento especial ao Altino, companheiro de todas as horas, e que

    com toda pacincia, sempre revisa e edita os meus textos.

  • v

    SUMRIO

    INTRODUO .......................................................................................................... 1

    1 ARQUIVOS E DOCUMENTOS, HISTRIA E MEMRIA.. ............................... 14

    1.1 Para que servem os arquivos ...................................................................... 14

    1.2 Os documentos sob o ponto de vista dos arquivistas .............................. 20

    1.3 Os documentos sob o ponto de vista do historiador ................................ 25

    1.4 Arquivos e documentos: pontos de referncia da memria ..................... 31

    1.5 Memria e histria: diferenas e oposies ............................................... 36

    2 A CONSTRUO DO ARQUIVO COMO LUGAR DE ESCRITA DO ESTADO, LUGAR DE MEMRIA E LUGAR DE INFORMAO ..................... 40

    2.1 O Arquivo como guardio da memria ....................................................... 41

    2.2 A institucionalizao do Arquivo Pblico do Paran ................................ 49

    2.3 O Arquivo como guardio das fontes histricas do Paran ..................... 60

    2.4 O Arquivo como lugar de informao ..................................................... 68

    3 HISTRIA, MEMRIA, CULTO E VENERAO AOS DOCUMENTOS ANTIGOS............................................................................................................ 73

    3.1 O homem que venera e preserva ................................................................. 75

    3.2 Um boletim para todos que entendem a grande misso dos arquivos ................................................................................................ 80

    3.3 A afirmao da glria de ser paranista .................................................... 83

    3.4 Os temas dos Boletins ................................................................................. 87

    3.5 Documentos histricos: antigos, raros e preciosos .................................. 92

    3.6 Um templo para guardar a memria do Paran ....................................... 100

    CONCLUSO ....................................................................................................... 104

    DOCUMENTOS CONSULTADOS ........................................................................ 107

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................... 110

    ANEXOS ............................................................................................................... 116

  • vi

    LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 Temas classificados no Boletim do Arquivo do Paran ......... 116

    QUADRO 2 Percentual do tema boletim no Boletim do Arquivo do Paran .................................................................................... 117

    QUADRO 3 Percentual do tema instituio no Boletim do Arquivo do Paran .................................................................................... 118

    QUADRO 4 Percentual do tema arquivos no Boletim do Arquivo do Paran .................................................................................... 119

    QUADRO 5 Percentual do tema memria e patrimnio no Boletim do Arquivo do Paran ................................................................ 120

    QUADRO 6 Percentual do tema histria no Boletim do Arquivo do Paran .................................................................................... 121

    QUADRO 7 Percentual do tema documentos no Boletim do Arquivo do Paran .................................................................................... 122

    QUADRO 8 Percentual do tema documentos no Boletim do Arquivo do Paran classificado por sculos ......................................... 123

    QUADRO 9 Percentual do tema documentos no Boletim do Arquivo do Paran classificado por perodos ....................................... 124

    QUADRO 10 Identificao dos textos transcritos no tema histria no Boletim do Arquivo do Paran ............................................ 125

    LISTA DE GRFICOS

    GRFICO 1 Percentual dos temas identificados no Boletim do Arquivo do Paran ..................................................................................... 116

    GRFICO 2 Percentual do tema boletim no Boletim do Arquivo do Paran ..................................................................................... 117

    GRFICO 3 Percentual do tema instituio no Boletim do Arquivo do Paran ..................................................................................... 118

    GRFICO 4 Percentual do tema arquivos no Boletim do Arquivo do Paran ..................................................................................... 119

    GRFICO 5 Percentual do tema memria e patrimnio no Boletim do Arquivo do Paran .................................................................. 120

    GRFICO 6 Percentual do tema histria no Boletim do Arquivo do Paran ..................................................................................... 121

    GRFICO 7 Percentual do tema documentos no Boletim do Arquivo do Paran ..................................................................................... 122

    GRFICO 8 Percentual do tema documentos no Boletim do Arquivo do Paran, classificados por sculos ........................................ 123

    GRFICO 9 Percentual do tema documentos no Boletim do Arquivo do Paran, classificados por perodos ...................................... 124

  • vii

    LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1 Capa do Boletim do Arquivo do Paran .................................... 132

    FIGURA 2 Logomarca do Boletim do Arquivo do Paran .......................... 132

    FIGURA 3 Coluna Os Troncos dos Pinheirais, publicada no Boletim do Arquivo do Paran .................................................................. 133

    FIGURA 4 Editorial do Boletim do Arquivo do Paran com desenhos paranistas ..................................................................................... 134

    FIGURA 5 Texto com desenhos paranistas publicado na Revista Illustrao Paranaense em 1928. ................................................ 135

    FIGURA 6 Transcrio e reproduo de documento publicado no Boletim do Arquivo do Paran .............................................. 136

    FIGURA 7 Transcrio e reproduo de documento publicado no Boletim do Arquivo do Paran .............................................. 137

    FIGURA 8 Desenho do projeto do prdio do Arquivo do Paran, inaugurado em 1978 .................................................................... 138

    FIGURA 9 Material de divulgao do Arquivo Pblico do Paran produzido em 2005 ...................................................................... 139

  • viii

    RESUMO

    A dissertao busca compreender como so atribudos diferentes valores, sentidos e significados aos documentos arquivsticos de uma instituio pblica e, especialmente, de que forma tais representaes influenciam na formao dos acervos documentais dos arquivos permanentes. Estudou-se uma instituio especfica, o Arquivo Pblico do Paran, analisando-se, especialmente, os discursos sobre os documentos divulgados a partir do Boletim do Arquivo do Paran, publicao que circulou no perodo de 1976 a 1989. Considerou-se que na definio dos acervos de arquivos, alm dos conhecimentos tcnicos e cientficos elaborados pela teoria arquivstica, outros valores interferem nas escolhas do que deve ser preservado e tendem a ser at mesmo sobrepostos s caractersticas instrumentais e informacionais dos documentos. Identificou-se assim uma configurao que transforma o documento em um objeto simblico e que, a partir do valor de rememorao, tende a sacralizar aqueles documentos definidos como histricos.

    PALAVRAS CHAVE: arquivos documentos histria memria.

  • ix

    ABSTRACT

    This thesis aims to understand as different values, sense and meanings are attributed to archival documents of a public institution and, in special way, how such representations influence in a formation of historical archives holding. From the problematic related with the values attributed to archival documents, it develops a study in a particularity institution, the Arquivo Pblico do Paran, analyzing especially the discourse about these documents in a publication, the Boletim do Arquivo do Paran, that was published from 1976 to 1989. It considered that the archival holdings definition and, besides the technician and scientific knowledge produced by the archival theory, another values interfere in the choice of what must be preserved or not, and generally it tends to be over blasted to the instrumental and information characteristics of the archival documents. A configuration that transforms the document in a symbol object is identified, and so, how much remembrance turn these documents into a sacred objects called historic.

    KEY-WORDS: archives documents history memory.

  • INTRODUO

    A despeito do que s vezes parecem imaginar os iniciantes, os documentos no surgem, aqui ou ali, por efeito [de no se sabe] qual misterioso decreto dos deuses. Sua presena ou ausncia, em tais arquivos, em tal biblioteca, em tal solo, deriva de causas humanas que no escapam de modo algum anlise, e os problemas que sua transmisso coloca, longe de terem apenas o alcance de exerccios de tcnicos, tocam eles mesmos no mais ntimo da vida do passado, pois o que se encontra assim posto em jogo nada menos do que a passagem da lembrana atravs das geraes. Marc Bloch (Apologia da Histria)

    As inquietaes em relao a algum objeto de estudo usualmente so as

    motivaes para elaborar a problemtica de uma pesquisa. Minhas experincias

    pessoais e profissionais vivenciadas em museus e posteriormente na rea de

    preservao de acervos arquivsticos conduziram a um estranhamento sobre a

    relao que as pessoas mantm com os objetos antigos. Difcil ignorar os silncios

    respeitosos, os olhares de admirao, as interjeies e exclamaes de emoo

    diante de um documento ou objeto com marcas de antigidade. Caractersticas

    como a cor amarelada, um cheiro caracterstico, tintas esmaecidas, rasgos e bordas

    desgastadas, que sob o ponto de vista da preservao indicam sinais de uma

    progressiva deteriorao, parecem ter o poder de desencadear profundas

    comoes, e at mesmo, mobilizar aes no sentido de proteger e venerar tais

    documentos. Aps os documentos entrarem nos arquivos, independente de como e

    porque ali chegaram, eles parecem adquirir uma aura que os diferencia dos demais

    documentos. Colocar questes muito objetivas sobre o valor do seu contedo,

    interesse para a consulta, pesquisa e validade dos investimentos para sua

    preservao podem soar como verdadeiras heresias. Nesse sentido, a motivao da

    pesquisa foi, a partir de tais reaes e emoes, entender de que forma

    estabelecem-se valores que definem os acervos arquivsticos que so preservados.

    Em teoria a formao de acervos, tanto em museus, como em arquivos,

    bibliotecas ou centros de documentao, resulta da aplicao de um conhecimento

    tcnico especfico. No se pode, no entanto, ignorar que outros critrios esto

    constantemente presentes. Em que pese cada uma dessas instituies tenha os

    seus critrios prprios forjados na construo epistemolgica de suas respectivas

    cincias arquivologia, biblioteconomia e museologia , preciso tambm

  • 2

    observar as determinaes sociais e histricas que interferem no processo de

    construo dos seus respectivos acervos.

    Uma percepo dos arquivos como algo naturalmente dado parece ser

    freqente, ignorando-se que tais acervos sempre resultam de escolhas. Na pesquisa

    buscou-se explicitar tais escolhas, desnaturalizando o processo de formao dos

    acervos documentais definidos como histricos. Explicitar as escolhas que so

    feitas, sejam a partir de determinados conhecimentos tcnicos ou de outros critrios,

    nem sempre to evidentes mesmo para os agentes sociais envolvidos no processo

    de seleo e preservao de acervos, pode lanar luzes sobre a diversidade de

    significados que os acervos culturais podem assumir. Considera-se assim que a

    importncia do presente estudo questionar os critrios e valores que interferem na

    formao dos acervos arquivsticos, especialmente dos arquivos permanentes1,

    tambm chamados de arquivos histricos.

    Na rea dos arquivos, de acordo com a teoria arquivstica, a formao dos

    acervos permanentes deve ser o resultado da aplicao do conceito de ciclo vital

    dos documentos. Tal conceito prev que, aps serem cumpridas as finalidades para

    as quais os documentos foram criados, sejam eles funcionais, administrativos, legais

    ou de prova, parte deles seja preservado devido seu interesse para fins de pesquisa

    cientfica, social, cultural e histrica.

    No Brasil, no entanto, em decorrncia da falta de implementao efetiva de

    polticas arquivsticas, considerando-se ainda as conhecidas limitaes de recursos

    humanos, materiais e tecnolgicos, os arquivos pblicos2 tendem a recolher

    documentos de forma bastante desorganizada e com critrios pouco claros. Tal

    situao transparece nas reclamaes de pesquisadores sobre as dificuldades de

    acesso aos arquivos, que no raramente guardam acervos formados por grupos

    documentais incompletos, parciais e fragmentados.

    1 De acordo com o Dicionrio Brasileiro de Terminologia Arquivstica o arquivo permanente, tambm chamado

    arquivo histrico, o conjunto de documentos preservados em carter definitivo em funo do seu valor.

    (ARQUIVO NACIONAL. Dicionrio brasileiro de terminologia arquivstica. Rio de Janeiro: Arquivo

    Nacional, 2005, p. 34) 2 Arquivo pblico o conjunto de documentos produzidos ou recebidos por instituies governamentais de

    mbito federal, estadual ou municipal, em decorrncia de suas atividades especficas administrativas,

    judicirias ou legislativas. Ou ainda, instituio arquivstica franqueada ao pblico. (PAES, Marilena Leite.

    Arquivo: Teoria e prtica. 3.ed. amp. rev. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. p. 24)

  • 3

    Ao analisar os usos e desusos da informao governamental no Brasil,

    JARDIM afirma que os arquivos pblicos latino-americanos institucionalizaram-se

    como resultado do processo de independncia, associado formao de estados

    modernos na regio e, que sob esta perspectiva, enquanto arquivos histricos foram

    considerados repositrios da identidade nacional emergente. No entanto, no Brasil, o

    Arquivo Nacional, assim como os demais arquivos pblicos, assumiram uma posio

    coadjuvante na construo da memria nacional. Tais arquivos tampouco

    conseguiram definir uma atuao protagonista a partir da sua funo instrumental.

    Segundo esse autor, isto implicou no desenvolvimento de instituies e servios

    arquivsticos periferizados na administrao pblica, incapazes de fornecer

    informaes suficientes, em nveis quantitativo e qualitativo, ao prprio aparelho de

    estado, pesquisa cientfica e tecnolgica e sociedade civil.3 Ainda de acordo com

    este arquivista,

    De maneira geral, as instituies arquivsticas pblicas brasileiras apresentam

    caractersticas comuns no que se refere sua atuao. Trata-se de organizaes voltadas

    quase exclusivamente para a guarda e acesso de documentos considerados, sem

    parmetros cientficos, como de valor histrico (presumivelmente documentos

    permanentes), ignorando a gesto dos documentos correntes e intermedirios produzidos

    pela administrao pblica.4

    Se por um lado os princpios arquivsticos, tais como a gesto de

    documentos5, ainda no so efetivamente aplicados nos arquivos brasileiros, por

    outro existem escolhas e determinaes que, mesmo no sendo explcitas,

    interferem na formao dos acervos. O presente estudo tem como objetivo analisar

    as representaes que os documentos assumem dentro da instituio arquivo para

    os distintos agentes sociais que ali atuam. Trata-se de compreender como so

    atribudos diferentes valores, sentidos e significados aos documentos arquivsticos

    de uma instituio pblica e, especialmente, de que forma tais representaes

    acabam por influenciar na formao dos acervos documentais permanentes.

    3 JARDIM, Jos Maria. Transparncias e Opacidade do estado no Brasil: usos e desusos da informao

    governamental. Niteri: EdUFF, 1999. p. 22. 4 Ibid. p. 22. 5 Gesto de documentos o conjunto de procedimentos e operaes tcnicas referentes produo, tramitao,

    uso, avaliao e arquivamento de documentos em fase corrente e intermediria, visando sua eliminao ou

    recolhimento. Tambm chamado administrao de documentos. (ARQUIVO NACIONAL. Dicionrio

    brasileiro de terminologia arquivstica. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 100)

  • 4

    A problemtica da pesquisa centra-se nas atribuies de valores aos

    documentos, particularmente daqueles relacionados com a histria e com a

    memria. A hiptese que norteou a pesquisa considerou que existem valores que

    tendem a ser sobrepostos s caractersticas instrumentais e informacionais do

    documento arquivstico, definindo-se outras conotaes que transformam o

    documento em um objeto simblico.

    Tal abordagem se aproxima de algumas anlises que identificam nas

    sociedades contemporneas uma relao de culto e de sacralizao daqueles

    objetos definidos como patrimnio histrico. Nesse sentido uma obra a ser referida

    A alegoria do patrimnio de Franoise CHOAY, que analisou a transformao da

    noo de patrimnio desde a Antigidade at os dias atuais. Essa autora, ao

    resgatar o processo histrico de formao da noo de patrimnio identificou nas

    sociedades contemporneas um verdadeiro culto patrimonial, a partir do qual ela

    verifica uma sndrome narcisista, onde o patrimnio histrico parece fazer hoje o

    papel de um vasto espelho no qual ns, membros das sociedades humanas do fim

    do sculo XX, contemplaramos a nossa prpria imagem.6

    Um segundo trabalho a ser destacado a tese intitulada Os rituais do

    tombamento e escrita da histria: bens tombados no Paran entre 1938-1990, de

    Mrcia KERSTEN, que realizou uma etnografia do tombamento, recuperando a

    inveno do patrimnio paranaense e identificando quem foram os agentes sociais

    que tiveram autoridade para definir quais os bens culturais seriam sacralizados.7

    Nesses dois trabalhos as autoras utilizaram os conceitos propostos por

    Alos RIEGL no texto intitulado El culto moderno a los monumentos. Ao tratar os

    monumentos como um objeto social e filosfico, RIEGL foi pioneiro na identificao

    dos sentidos que a sociedade moderna atribui aos monumentos histricos.8 Os

    6 CHOAY, Franoise. A alegoria do patrimnio. So Paulo: Editora UNESP, 2001, p. 240. 7 KERSTEN, Mrcia Scholz de Andrade. Os rituais do tombamento e a escrita da histria: bens tombados no

    Paran entre 1938-1990. Curitiba: Editora da UFPR, 2000. 8 RIEGL estabeleceu as noes de valores sobre os monumentos modernos no texto El culto moderno a los

    monumentos, publicado em 1903. Os conceitos por ele elaborados quando assumiu a presidncia da

    Comisso de Monumentos Histricos na ustria e as suas reflexes sobre os valores histrico e artstico dos

    monumentos so consideradas vlidas ainda hoje. RIEGL examina as noes de patrimnio artstico e

    histrico, atribuindo ao primeiro, que para ele tambm histrico, um valor de contemporaneidade. Sobre os

    monumentos histricos, Riegl distingue-os em intencionais e no intencionais, associando ambos a um valor

    rememorativo (RIEGL, Alos. El culto moderno a los monumentos. Madrid: Visor, 1999, p. 28, 29).

  • 5

    valores de rememorao, que ele divide em histrico e de antiguidade, so

    vlidos ainda hoje e foram fundamentais para nortear a anlise.

    Para tratar da problemtica relacionada com os valores atribudos aos

    documentos arquivsticos, optou-se em estudar uma instituio especfica, o Arquivo

    Pblico do Paran9, analisando-se especialmente os discursos sobre os documentos

    divulgados a partir de uma publicao o Boletim do Arquivo do Paran BAP,

    que circulou no perodo de 1976 a 1989.

    Nesse perodo ocorreram mudanas significativas no Arquivo Pblico do

    Paran, tais como a construo de um edifcio prprio para abrigar o seu acervo e

    as alteraes na sua estrutura administrativa que atualizaram e ao mesmo tempo

    reafirmaram as funes da instituio, especialmente aquelas relacionadas com a

    histria e a memria. Nesse processo dinmico de redefinies a instituio Arquivo

    Pblico do Paran se modificou, acompanhando sob alguns aspectos as discusses

    arquivsticas que ocorreram no Brasil, porm, reafirmando conceitos e idias sobre o

    documento como sendo primordialmente fonte para a histria. Neste intervalo de

    tempo os agentes sociais que interagiram junto ao Arquivo Pblico do Paran

    traaram estratgias e fizeram as escolhas possveis dentro do contexto de

    influncia poltica e administrativa do prprio Estado, ou ainda, dentro de um

    contexto social mais amplo relacionado com as propostas de abordagem e

    tratamento dos documentos, da memria e da histria.

    preciso ainda esclarecer que na pesquisa utilizou-se de conceitos de duas

    reas, a Histria e a Arquivologia. As duas disciplinas, que possuem seus mtodos,

    objetos e interesses especficos, se tangenciam na questo do documento, ou em

    termos mais amplos, no espao dos arquivos.

    No mbito da pesquisa, considerou-se fundamental levar em conta as

    noes utilizadas pela Arquivologia, a qual entende que os documentos arquivsticos

    9 Ao longo do tempo o Arquivo ocupou diferentes posies na estrutura administrativa do Estado e recebeu

    vrias denominaes. Por uma simples questo de clareza do texto optou-se em utilizar sempre o nome de

    Arquivo Pblico do Paran. Sobre essas mudanas ao longo do tempo, ver: ARQUIVO PBLICO DO

    PARAN. Histria administrativa do Paran (1853-1947): criao, competncias e alteraes das unidades

    administrativas da Provncia e do Estado. Curitiba: Imprensa Oficial: DEAP, 2000, p. 61, 62, 69, 71, 74, 75, 76,

    77, 80, 81. ARQUIVO PBLICO DO PARAN. Histria administrativa do Paran (1948-1998): criao,

    competncias e alteraes das unidades administrativas da Provncia e do Estado. Curitiba: Imprensa Oficial:

    DEAP, 2002, p. 40, 99, 103, 143.

  • 6

    possuem no apenas um valor histrico, como tambm atributos funcionais, no

    sentido de que o documento produzido e tem a finalidade primeira de servir de

    informao e de prova para a administrao que o produziu. Ao discutir o valor

    histrico dos documentos, CAMARGO aponta o carter instrumental do documento

    de arquivo, o qual tem como trao caracterstico o fato de ser produzido de forma

    natural e rotineira, por imperativos de ordem prtica, sem qualquer inteno de se

    transformar em fonte para a histria.10 Como bem afirma essa historiadora, tanto os

    fatos como os documentos somente adquirem o status de histricos a partir de um

    gesto de interpretao. Trata-se, portanto, de uma atribuio de sentido que ocorre a

    posteriori.

    Buscou-se enfim de explicitar o processo pelo qual os documentos

    arquivsticos, para alm dos seus atributos funcionais, so transformados em um

    objeto simblico, criando-se uma configurao a partir da qual os agentes sociais

    conferem autoridade sobre o que deve ser ou no lembrado, rememorado,

    comemorado. Considera-se assim que existe um processo de sacralizao dos

    documentos, que determina maior importncia e valorizao e preservao dos

    documentos em si do que s informaes contidas neles. Processo no qual as

    escolhas realizadas isola os documentos mais do que o contextualizam, num jogo de

    luz e sombra sobre o passado que serve aos interesses histricos de cada presente.

    Nesse sentido o documento arquivstico analisado como um objeto cultural

    e o presente estudo insere-se no mbito da histria cultural sob o ponto de vista de

    CHARTIER, para quem esse campo da histria tem por principal objeto identificar o

    modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social

    construda, pensada, dada a ler.11

    10 CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Sobre o valor histrico dos documentos. In: Arquivo Rio Claro, Rio Claro,

    n. 1, 2003, p. 11. 11

    Foram ento consideradas as noes complementares de apropriaes, prticas e representaes

    proposta por CHARTIER. Segundo esse historiador a apropriao tem por objetivo uma histria social das

    interpretaes, remetidas para as suas determinaes fundamentais (que so sociais, institucionais, culturais)

    e inscritas nas prticas especficas que as produzem. Conceder deste modo ateno s condies e aos

    processos que, muito concretamente, determinam as operaes de construo do sentido reconhecer que

    as inteligncias no so desencarnadas e, contra as correntes de pensamento que postulam o universal, que

    as categorias aparentemente mais invariveis devem ser construdas na descontinuidade das trajetrias

    histricas. CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Bertrand

    Brasil, 1990. p. 16-17, 26-27.

  • 7

    Ademais desse entendimento do documento como um objeto cultural,

    preciso expor algumas consideraes que nortearam a anlise do arquivo como

    espao social, centrando-se em trs abordagens: o arquivo como lugar de memria,

    o arquivo como lugar de informao e o arquivo como lugar de escrita do estado.

    A noo de lugar de memria foi delineada por Pierre NORA no conhecido

    texto intitulado Entre memria e histria a problemtica dos lugares12, no qual o

    historiador, a partir de uma percepo de acelerao da histria e de ruptura com o

    passado, identifica o fim da histria-memria. De acordo com esse historiador fala-se

    tanto de memria porque ela no existe mais. S existem locais de memria, onde

    ela se cristaliza e se refugia, porque no h mais meios de memria. NORA associa

    esse rompimento com a sociedade industrial e com os fenmenos da mundializao,

    da democratizao, da massificao, da mediatizao. Segundo ele, prevalecem as

    memrias individuais que se cristalizam em lugares, os quais so eletivamente

    constitudos pelos grupos sociais e adquirem uma forte conotao simblica. Para

    ele os lugares de memria nascem e vivem do sentimento de que no mais existe

    uma memria espontnea e, diante desta sensao, coloca-se a necessidade de

    realizar operaes no naturais como criar arquivos, comemorar aniversrios,

    organizar celebraes e outras manifestaes do gnero.13

    Mesmo tendo em conta a crtica de que NORA utiliza argumentos

    saudosistas em relao perda de uma determinada memria caracterstica das

    sociedades pr-industriais14, considerou-se importante para os fins da presente

    pesquisa aproximar o espao do arquivo noo de lugar de memria, que ele

    sintetiza da seguinte forma: so lugares, com efeito nos trs sentidos da palavra:

    material, simblico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos.15

    [sem grifo no original]

    12 NORA, Pierre. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. Projeto Histria, So Paulo, n. 10, dez.,

    1993, p. 7-28. 13

    Ibid., p. 21. 14

    MENESES, por exemplo, ao referir-se ao conceito de lugares de memria, diz que Pierre Nora se utiliza de um

    tom um tanto passadista e identifica o ressentimento com que o historiador ignora ou desqualifica novas

    formas possveis de sociabilidade e, portanto, de memria vivida fora dos parmetros vigentes nas estruturas

    de comunidade e nas sociedades de comunicao oral. (MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A crise da

    memria, histria e documento: reflexes para um tempo de transformaes. In: SILVA, Zlia Lopes da. (org.).

    Arquivo, patrimnio e memria: trajetrias e perspectivas. So Paulo: UNESP; FAPESP, 1999. p. 15-16. 15 NORA, op. cit., p. 21.

  • 8

    Ao mesmo tempo em que se identifica a instituio arquivo como lugar de

    memria, extrapola-se essa noo e, a partir dos paradigmas que tm

    influenciado historicamente, entende-se o arquivo tambm como lugar de

    informao. Como bem observa JARDIM, ainda predomina no pensamento e

    prticas arquivsticas a associao imediata entre arquivos e memria. Nestes

    casos, com muita freqncia, privilegia-se a noo de memria como um dado

    arqueologizvel. JARDIM argumenta que a memria sem dvida uma

    dimenso inerente ao campo arquivstico. No entanto os arquivos no so apenas

    lugares de memria.

    A memria no espao arquivstico s ativada, porm, se em tais lugares de memria

    forem gerenciados lugares de informao, onde esta no apenas ordenada, mas

    tambm transferida. Se a memria no neutra, muito menos a informao. enquanto

    lugares de informao espaos (s vezes virtuais) caracterizados pelo fluxo

    informacional que os arquivos se configuram hoje, provocando redimensionamento na

    arquivologia.16

    Abordou-se, por fim, o Arquivo Pblico do Paran como lugar de escrita do

    estado, uma vez que desde a sua criao, a instituio esteve vinculada ao poder

    executivo, primeiro da Provncia e depois do Estado do Paran. Entende-se que tal

    ligao no pode ser ignorada, pois fundamental na definio das atribuies e

    competncias do Arquivo, sendo tambm determinante em relao ao tipo de

    documento que a instituio guarda e preserva.

    Considerando que os documentos arquivsticos refletem as aes

    administrativas do estado, os acervos ali guardados constituem-se em uma

    memria institucional significativa justamente por causa de aes totalizadoras

    do estado na sociedade. Nesse sentido CAMARGO, ao analisar a importncia

    dos arquivos para a reconstituio das realidades do passado, afirma que

    (...) essa importncia tanto maior quanto mais amplo, profundo e duradouro o grau de

    interveno da instituio no mbito da sociedade (como ocorre com as Cmaras

    Municipais, as Prefeituras, os Tribunais de Justia etc.), fazendo com que o arquivo seja

    16 JARDIM, Jos Maria. A produo de conhecimento arquivstico: perspectivas internacionais e o caso brasileiro

    (1990-1995). Cincia da Informao, Braslia, DF, v. 27, n. 3, 1998. p. 3. Disponvel em:

    . Acesso em: 24

    out. 2005.

  • 9

    capaz de espelhar no apenas o modo como funcionou, mas tambm, por extenso, as

    realidades com as quais, de um modo ou de outro, se envolveu.17

    Converge assim com a proposio de Pierre BOURDIEU, que ao analisar a

    gnese e estrutura do campo burocrtico, inclui os arquivos em uma das operaes

    de totalizao realizadas pelo estado.

    O Estado concentra a informao, que analisa e redistribui. Realiza, sobretudo, uma

    unificao terica. Situando-se do ponto de vista do Todo, da sociedade em seu conjunto,

    ele o responsvel por todas as operaes de totalizao, especialmente pelo

    recenseamento e pela estatstica ou pela contabilidade nacional, pela objetivao, por meio

    da cartografia, representao unitria, do alto, do espao, ou simplesmente por meio da

    escrita, instrumento de acumulao do conhecimento (por exemplo, com os arquivos) e de

    codificao como unificao cognitiva que implica a centralizao e a monopolizao em

    proveito dos amanuenses ou dos letrados.18

    A partir dessas mesmas perspectivas tericas JARDIM postula que os

    arquivos constituem-se, do ponto de vista institucional, em mecanismos de

    legitimao do estado e so, simultaneamente, agncias do poder simblico, com

    carter classificatrio, explcito ou implcito, em suas prticas.19

    Entender o arquivo como o lugar de escrita do estado no implica, no

    entanto, em ignorar a situao no Brasil, na qual os arquivos pblicos ocupam uma

    posio perifrica em relao ao prprio estado e sociedade, o que pode ser

    facilmente verificado pelas condies precrias em que so mantidos. Tampouco

    significa concordar em caracterizar o arquivo como um aparato ideolgico de poder

    associado a um estado abstrato e desencarnado, ou ainda, como o local que guarda

    e preserva uma suposta memria oficial.

    Ao contrrio, analisa-se o Arquivo como um espao de tenses e conflitos

    onde diferentes agentes sociais travam uma luta simblica, competindo pelo

    17 CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Sobre o valor histrico dos documentos. In: Arquivo Rio Claro, Rio Claro,

    n. 1, p. 12. 18 BOURDIEU, Pierre. Razes prticas: sobre a teoria da ao. 5. ed. Campinas: Papirus, 2004. p. 105. 19 JARDIM, Jos Maria. Transparncias e opacidade do estado no Brasil: usos e desusos da informao

    governamental. Niteri: EdUFF, 1999, p. 46-47.

  • 10

    monoplio da autoridade aceita como legtima para definir os valores dos

    documentos e da informao.20

    Analisar a atuao dos agentes sociais que interagem no espao social dos

    arquivos implica, desde logo, em desmistificar a idia de que eles atuam

    desinteressadamente. Ao contrrio, devem-se considerar os seus interesses

    especficos, quaisquer que sejam eles. Tomou-se em considerao que alguns

    agentes sociais, dependendo dos seus interesses e posies sociais, se apropriam

    de forma diferenciada da prpria instituio e dos documentos, utilizam prticas de

    preservao e organizao do acervo arquivstico distintas e at contraditrias, cada

    grupo buscando estabelecer e impor a sua autoridade especfica.

    A partir da noo do arquivo como um campo de lutas simblicas, permeado

    de conflitos e contradies, buscou-se repensar prticas, representaes e

    apropriaes em relao aos documentos e lanar novos olhares sobre algumas

    motivaes que interferem na formao dos acervos arquivsticos.

    Considerou-se que a srie de Boletins do Arquivo do Paran, que serviu

    como fonte para analisar os discursos elaborados sobre os documentos, constitua-

    se em veculo privilegiado de divulgao de idias, conceitos e propostas

    relacionados com a prpria instituio, com os documentos, com a histria e com a

    memria. Buscou-se analisar nos discursos elaborados em tais publicaes quais

    foram as estratgias e apropriaes utilizadas pelos agentes sociais empenhados na

    construo de determinadas representaes da instituio e dos documentos.

    Em termos metodolgicos, para realizar a anlise dos contedos do Boletim

    do Arquivo do Paran, buscou-se organizar as informaes ali existentes. Eles so

    formados pelas seguintes partes: capa, ndice, editorial, transcrio e/ou reproduo

    de documentos, artigos, citaes, lista dos pesquisadores que freqentam a sala de

    consulta. Os artigos constituem-se de pequenos textos elaborados a partir da

    compilao de informaes de vrios documentos (em geral pertencentes ao

    Arquivo Pblico do Paran), elaborados pela equipe editorial ou pelos diretores do

    Arquivo, transcrio integral ou de parte de textos publicados em outras obras,

    20 JARDIM, ao focalizar o estado brasileiro enquanto campo informacional, detendo-se especialmente nas

    condies de produo e disseminao da informao arquivstica, identifica um quadro de opacidade

    informacional que tem por conseqncia beneficiar e favorecer a reproduo e ampliao do Estado por

    classes ou fraes de classe dominante. Ibid, p. 21.

  • 11

    transcrio de notcias, informativos de eventos. Buscando esmiuar o Boletim,

    optou-se em classificar cada item textual pelo tema a que estava relacionado. Por

    item textual entendeu-se cada componente do Boletim que apresentasse uma

    unidade, independente do seu tamanho, como por exemplo, uma citao de uma

    linha ou um texto de vrias pginas. No total foram identificados 1147 itens, os

    quais, para fins de anlise, foram classificados nos seguintes temas: boletim,

    instituio, arquivos, memria e patrimnio, histria, documentos e humor.21

    A separao de tais temas foi realizada apenas com a finalidade de melhor

    entender os assuntos abordados e aprofundar a anlise dos Boletins. No entanto,

    buscou-se sempre considerar a relao que essas unidades mantinham entre si.

    Aps a classificao os dados identificados foram organizados em tabelas e grficos

    e, a partir desse procedimento, foi possvel visualizar a importncia dos assuntos e

    como eles se alteraram ao longo dos anos. Posteriormente ao tratamento estatstico

    foram selecionados alguns textos, enfocando-se os discursos de alguns agentes

    sociais considerados mais significativos.

    Ao proceder a anlise dos Boletins do Arquivo do Paran como um discurso

    foi preciso relacionar texto e contexto22, buscando-se identificar quem eram os

    agentes do discurso, de onde estavam falando, quais eram as autoridades e os

    argumentos utilizados. Dentre os vrios agentes sociais envolvidos na produo do

    Boletim do Arquivo do Paran, optou-se em analisar especialmente os discursos

    proferidos pelos diretores da instituio. Afinal, so esses os agentes sociais

    autorizados a falar publicamente em nome da instituio e que possuem a

    autoridade que o prprio cargo lhes confere. Diante do papel que desempenhou a

    21 O tema classificado como humor foi identificado em apenas trs nmeros do boletim. Considerando o total de

    25 exemplares, ocupou em mdia apenas 0,3% (0,15 folhas). Trata-se de uma seo intitulada Relax onde

    constavam curiosidades, frases e piadas relacionadas com histria ou arquivos. Apesar de ter sido

    quantificado, considerou-se ser um tema pouco relevante para a pesquisa, sendo ento desconsiderado na

    anlise. Tambm foi encontrado um nmero pequeno de tpicos que fugiam completamente aos temas

    estabelecidos. Optou-se em criar uma categoria de no classificados, que constituram em mdia 1,4% do

    total do espao do Boletim. 22

    CARDOSO e VAINFAS afirmam a necessidade de relacionar texto e contexto, o que significa buscar os nexos

    entre as idias contidas nos discursos, as formas pelas quais elas se exprimem e o conjunto de

    determinaes extra-textuais que presidem a produo, a circulao e o consumo dos discursos. Ou seja, o

    historiador deve sempre, sem negligenciar a forma do discurso, relacion-lo ao social. (CARDOSO, C. F.;

    VAINFAS, R. (orgs.). Domnios da histria: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997,

    p. 378)

  • 12

    frente do Arquivo Pblico do Paran, especial ateno foi dada aos textos assinados

    por Mb de Ferrante.23

    Foram identificados dois momentos no perodo em que o Boletim foi

    publicado. Do nmero zero ao nmero dezenove sobressai a forte influncia do

    diretor Mb de Ferrante, que prioriza a divulgao do acervo da instituio e enfatiza

    os documentos do arquivo permanente. Aps a aposentadoria de Mb de Ferrante

    em 1987 foram publicados mais seis nmeros, os quais, sob o comando de dois

    outros diretores do Arquivo, apresentaram poucas alteraes no formato e algumas

    mudanas no contedo.24 Nesta segunda fase observaram-se modificaes na

    nfase dada ao acervo da prpria instituio, havendo diminuio significativa da

    transcrio e reproduo de documentos do Arquivo. Tornou-se mais freqente a

    publicao ou referncias a documentos de outras instituies, a partir dos quais so

    criados textos maiores, diferenciando-se da fase anterior onde o documento em si

    era ressaltado.

    No ltimo nmero uma nota indicava mudanas em relao linha editorial,

    abrindo-se mais espao para a publicao de textos de colaboradores externos.25

    Tais alteraes no se concretizaram porque a publicao do Boletim foi

    interrompida aps o incndio que destruiu a sede do Arquivo que havia sido

    inaugurada em 1978.

    A dissertao foi organizada em quatro partes. A abordagem considerando

    os princpios da arquivologia justifica a elaborao da primeira parte do primeiro

    captulo, no qual se buscou estabelecer as especificidades do documento de

    arquivo, e ainda pontuar algumas questes relacionadas com a trajetria dos

    arquivos e da disciplina de Arquivologia. Na segunda parte desse captulo, visando

    explicitar as diferenas de concepes, incluram-se discusses sobre a noo de

    documento para os historiadores. As constantes referncias sobre histria e

    23 Mb de Ferrante ingressou no Arquivo Pblico do Paran em 1938. Em 1956 assumiu a direo da instituio,

    ocupando esse cargo durante 30 anos. Aposentou-se em maro de 1987 e no ano seguinte, no dia 14 de

    novembro, faleceu. 24

    Os nmeros 20 a 24 foram publicados sob a direo de Francisco Brito Lacerda e o nmero 25 pelo diretor

    Gilberto Serpa Griebeler. 25

    Na nota constava o seguinte: A partir desta edio, o BOLETIM DO ARQUIVO DO PARAN passa a ser

    distribudo com periodizao no estipulada. Passa tambm, a aceitar contribuies literrias que tratem de

    assuntos ligados ao Paran e a sua histria, Arquivstica e temas afins. (BOLETIM DO ARQUIVO DO

    PARAN, n. 25, 1989, p. 30)

  • 13

    memria na atribuio de valores aos documentos exigiram a elaborao da terceira

    parte, que discute as aproximaes e diferenas entre uma e outra.

    No segundo captulo analisam-se algumas questes da trajetria do Arquivo

    Pblico do Paran. Um recuo e um avano temporal maior do que aquele

    estabelecido no recorte cronolgico foi necessrio para entender como a

    instituio se modifica, assumindo diferentes caractersticas ao longo do tempo. A

    recorrncia dos discursos sobre a fundao da instituio no distante ano de 1855 e

    a utilizao dessa data para caracterizar o Arquivo Pblico do Paran como lugar de

    memria exigiu considerar tal temporalidade to recuada. Por outro lado,

    considerou-se necessrio ultrapassar os anos 1980 e incluir as mudanas

    posteriores ao recorte cronolgico inicialmente colocado para entender como a

    instituio se modificou no tempo e, acompanhando a mudana de paradigmas na

    rea de arquivologia, como tendeu sob alguns aspectos a redefinir seu papel,

    buscando firmar-se a partir da dcada de 1990 tambm como um lugar de

    informao. Ao analisar tal trajetria buscou-se no perder de vista em nenhum

    momento o papel da instituio como lugar de escrita do estado.

    Aps considerar o contexto mais amplo da trajetria do Arquivo como lugar

    de memria, lugar de informao e lugar de escrita do estado, a anlise foi

    direcionada especificamente para os discursos sobre os documentos enunciados no

    Boletim do Arquivo do Paran. No terceiro captulo primeiramente foi feita uma

    anlise do prprio Boletim, apresentando-se dados estatsticos sobre os temas e

    questes abordados na publicao. Em seguida centra-se a anlise no processo de

    sacralizao dos documentos histricos a partir da atribuio de valores e de sentido

    aos documentos. Tais valores, que como se verificar, esto relacionados

    principalmente com a rememorao.

  • 1 ARQUIVOS E DOCUMENTOS, HISTRIA E MEMRIA

    Se perguntssemos a um homem comum da rua por que razo os governos criam os arquivos, ele por certo nos interrogaria: Que vem a ser arquivo? Se lhe explicssemos, ento, os objetivos de uma instituio dessa natureza, provavelmente ele responderia, de pronto, tratar-se de mais um exemplo das extravagncias dos governos. Quanto ao material do arquivo, faria esta pergunta final: Porque no queimar essa papelada? Visto ser esse conceito popular em relao ao arquivo encontrado em todos os pases de se admirar que eles existam, institudos com fundos pblicos. Deve, portanto, ter havido outras razes que no a solicitao popular para a sua criao. Theodore Roosevelt Schellemberg (Arquivos modernos: princpios e tcnicas)

    1.1 Para que servem os arquivos

    Em busca das razes que levaram instituio de arquivos pblicos, o

    arquivista SCHELLEMBERG analisa a situao histrica que conduziu a Frana, a

    Inglaterra e os Estados Unidos criar seus arquivos. E conclui que a primeira razo,

    segundo ele a mais importante, foi a necessidade prtica de incrementar a eficincia

    governamental. A segunda foi de ordem cultural porquanto os arquivos pblicos

    constituem um tipo de fonte de cultura entre muitos outros tipos como livros,

    manuscritos e tesouros de museus. A terceira razo foi de interesse pessoal pois os

    documentos oficiais definem as relaes do governo para com os governados. Nas

    suas palavras: So a derradeira prova de todos os direitos e privilgios civis

    permanentes e a prova que se originam ou se ligam s relaes do cidado para

    com o governo. E, a quarta razo foi de ordem oficial, pois mesmo os documentos

    mais antigos so necessrios s atividades do governo porque refletem sua origem

    e crescimento, sendo a principal fonte de informao de todas as suas atividades.1

    Na literatura arquivstica alguns autores ressaltam que ainda falta elaborar

    estudos histricos mais completos sobre o desenvolvimento dos arquivos e da

    disciplina da Arquivologia. No entanto, em geral coloca-se o arquivo como instituio

    que resultou de saberes e prticas milenares de ordenao dos documentos, sendo

    possvel identific-los desde as civilizaes mais antigas. Na obra Arquivstica: teoria

    1 SCHELLEMBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos modernos: princpios e tcnicas. Rio de Janeiro: Editora da

    Fundao Getlio Vargas, 1974, p. 25-33.

  • 15

    e prtica de uma cincia em formao2 recentemente publicada, por exemplo, so

    identificados fatos e acontecimentos histricos relacionados s prticas arquivsticas

    que remontam s antigas civilizaes do Oriente Mdio, associando os primeiros

    arquivos com o surgimento da escrita. Os autores, mesmo estabelecendo as

    diferenas de cada poca, acabam por traar uma linearidade temporal que

    identifica as prticas arquivsticas desde as civilizaes pr-clssicas, grega,

    romana, medieval e moderna, at chegar s prticas contemporneas. Sobre esse

    minucioso histrico elaborado por arquivistas portugueses, FONSECA destaca que

    tal estudo permite identificar a estreita relao, estabelecida desde seus primrdios,

    entre o conhecimento arquivstico, a administrao e o governo.3

    Ao analisar a instituio arquivo e as suas funes nas diferentes

    civilizaes, GAGNON-ARGUIN considera que difcil aplicar conceitos modernos

    como arquivos, arquivistas e arquivstica para tempos remotos. No entanto ela

    ressalta que os documentos administrativos fazem parte de todas as pocas, sendo

    sua funo reger as relaes entre os governos, as organizaes e as pessoas.

    Segundo a autora, ao longo das pocas e dos regimes os documentos serviram

    para o exerccio do poder, para o reconhecimento dos direitos, para o registro da

    memria e para utilizao futura.4

    O historiador GLNISSON, ao discorrer sobre as fontes documentais

    escritas e no escritas, quando se refere especificamente aos documentos

    administrativos, mostra que a sua proliferao est relacionada com o crescimento

    dos estados modernos e a consolidao da burocracia. Sobre as razes dessa

    superabundncia, o historiador afirma que,

    (...) trata-se inicialmente da inveno da imprensa e da difuso da escrita (...). Trata-se,

    tambm, do simples fato de que, tendo adquirido o senso da histria, respeitamos muito

    mais o documento histrico e procuramos os meios de preserv-los. Alm disso, a

    burocracia triunfante em todos os regimes (...) multiplicou em propores inimaginveis os

    papis conservados nos escritrios pela necessidade prtica ou simples esprito de rotina.5

    2 SILVA, Armando Malheiro da, et al. Arquivstica: teoria e prtica de uma cincia da informao: volume 1.

    Porto: Afrontamento, 1999. 3 FONSECA, Maria Odila. Arquivologia e cincia da informao. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 30.

    4 GAGNON-ARGUIN, Louise. Os arquivos, os arquivistas e a arquivstica: consideraes histricas. In ROUSSEAU,

    J.; COUTURE, C. Os fundamentos da disciplina arquivstica. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1998, p. 32. 5 GLNISSON, Jean. Iniciao aos estudos histricos. 4. ed. So Paulo: DIFEL, 1983, p. 146-7.

  • 16

    O desenvolvimento dos arquivos modernos e da disciplina de Arquivologia

    relaciona-se diretamente com a expanso da produo dos documentos

    administrativos, pois como analisam os arquivistas ROUSSEAU E COUTURE:

    Diversos factores de diferentes ordens levaram produo dos documentos administrativos

    que hoje em dia se conhecem. No que se refere aos de ordem poltica, pensa-se cada vez

    mais na interveno generalizada do Estado na vida dos cidados e na estruturao do

    Estado moderno. Relativamente aos de ordem econmica e tecnolgica, no aumento das

    actividades financeiras e comerciais e na sua internacionalizao que facilitaram o

    crescimento da produo de documentos atravs da reprografia, da micrografia e da

    informtica. Por ltimo, a importncia atribuda ao escrito um factor cultural no

    negligencivel. Em suma, tudo concorre para a produo de documentos, para sua

    estandartizao e para um acrscimo de importncia do seu papel nas relaes entre as

    pessoas, as organizaes e os governos.6

    Foi em meados do sculo XIX que a Arquivologia, assim como a Histria,

    desenvolveu-se enquanto disciplina cientfica. Durante a primeira metade do sculo

    XIX o desenvolvimento da escola metdica, que preconizava a verificao

    documental como mtodo a servio da anlise histrica, contribuiu para que os

    arquivos adquirissem uma posio instrumental relativamente paleografia e

    diplomtica. At finais do sculo XIX, a Arquivstica manteve um estatuto de cincia

    auxiliar da Histria e os arquivos tornaram-se laboratrios da histria.

    Conforme tem sido sublinhado na literatura especializada, o modelo das

    instituies arquivsticas atuais foi forjado tendo como referncia o Arquivo Nacional

    da Frana, criado em 1789. O modelo pioneiro criado na Frana foi posteriormente

    amplamente reproduzido na Europa e nas Amricas, estabelecendo um modelo

    institucional que permaneceu o mesmo at meados do sculo XX.7 FONSECA

    sintetiza os trs aspectos a partir dos quais se estabeleceu esse modelo, qual seja,

    a instituio arquivstica como rgo responsvel pelo recolhimento, preservao e

    acesso dos documentos gerados pela administrao pblica nos seus diferentes

    nveis de organizao: 1) uma administrao orgnica foi criada para cobrir toda a

    rede de reparties pblicas geradoras de documentos; 2) o estado reconhece sua

    responsabilidade em relao ao cuidado devido ao patrimnio documental do

    6 ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Os fundamentos da disciplina arquivstica. Lisboa: Dom

    Quixote, 1998, p. 38. 7 FONSECA, Maria Odila. Arquivologia e cincia da informao. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 39-40.

  • 17

    passado e aos documentos por ele produzidos; 3) a proclamao e o

    reconhecimento do direito pblico de acesso aos arquivos.8

    No entanto, de acordo com FONSECA, a formulao desse princpio de

    acesso no significou, no perodo imediatamente posterior revoluo ou ao longo

    de todo o sculo XIX e at meados do sculo XX, uma mudana substantiva em

    relao ao acesso extensivo aos documentos recolhidos s instituies arquivsticas,

    tampouco um maior controle da sociedade civil sobre a administrao pblica.

    Consolidava-se na poca uma viso positivista da histria e tornava-se um conceito

    generalizado a idia de que os arquivos constituam a base da pesquisa histrica, de

    modo que os estados tinham a obrigao de mant-los acessveis.9

    Sobre o papel de apoio investigao desenvolvido pelos arquivistas do

    sculo XIX, os arquivistas ROUSSEAU e COUTURE afirmam que com o advento

    dos movimentos romntico e nacionalista, bem como com o desenvolvimento de

    novos mtodos histricos, o arquivista abandonou o seu papel de colaborador da

    administrao e voltou-se para a interpretao dos documentos que j possua.10

    A situao de dependncia em relao Histria alterou-se no sentido da

    emancipao progressiva da Arquivologia. A evoluo histrica, poltico

    administrativa, cultural, scio-econmica e tecnolgica implicou, ainda no incio do

    sculo XX, em mudanas significativas de paradigma. Ao arquivo histrico foi

    contraposto o arquivo corrente da administrao e a arquivstica, de disciplina

    auxiliar do trabalho historiogrfico transformou-se em uma disciplina tcnica voltada

    tanto para os problemas tericos e prticos dos arquivos administrativos quanto para

    os arquivos denominados permanentes ou histricos.11

    A partir do perodo entre guerras e ainda em decorrncia do poderoso

    impacto das novas tecnologias da chamada sociedade da informao, que resultou

    no crescimento exponencial das massas documentais acumuladas, acentuou-se

    uma vertente mais tecnicista, influenciada especialmente pelas prticas de gesto

    da informao que se consolidaram nas instituies norte-americanas.

    8 FONSECA, op. cit., p. 39-40. 9 Ibid., p. 40-41.

    10 ROUSSEAU; COUTURE, op. cit., p. 45. 11SILVA, Armando Malheiro da, et al. Arquivstica: teoria e prtica de uma cincia da informao: volume 1.

    Porto: Afrontamento, 1999.

  • 18

    A preocupao com o problema da avaliao e seleo documental surgiu

    em conseqncia do aumento considervel da produo de documentos aps a

    Primeira Guerra Mundial. A partir da segunda metade dos anos 40 do sculo XX a

    evoluo tecnolgica determinou uma verdadeira exploso documental a qual

    inicialmente estava relacionada com o aumento da produo dos documentos

    textuais concernentes informao cientfica e tcnica produzida por unidades de

    investigao e centros de documentao e/ou informao. Essa exploso

    documental, no entanto, no se restringiu informao tcnico-cientfica e atingiu

    tambm as estruturas administrativas e, em particular, as administraes

    pblicas.12

    Nos primeiros anos do ps-guerra, o campo arquivstico se redefine a partir

    da interveno nas seguintes etapas do ciclo documental: produo, utilizao,

    conservao e destinao de documentos. De acordo com JARDIM e FONSECA:

    Essas transformaes tiveram impacto bastante relevante no perfil das instituies

    arquivsticas como tambm na arquivologia e nos profissionais da rea , inserindo-as

    profundamente na administrao pblica, na medida em que no mais se limitavam a

    receber, preservar e dar acesso aos documentos produzidos pelo Estado, mas, antes,

    assumem a liderana na execuo das polticas pblicas relacionadas gesto de

    documentos.13

    Desde os anos de 1980, com a prevalncia das novas tecnologias ligadas

    informtica, acentuaram-se as questes que obrigaram a Arquivologia a rever as

    suas premissas epistemolgicas. Atualmente prefigura-se um novo paradigma

    voltado para um conhecimento cientfico dos arquivos, entendendo o arquivo como

    um sistema de informao e concebendo o mtodo arquivstico como caminho de

    compreenso, interpretao e explicao do processo de produo da informao e

    no um mero conjunto de procedimentos tcnicos.14

    Ao discorrer sobre as mudanas ocorridas na rea de arquivologia na

    dcada de 1990, especialmente no Brasil, GONALVES aponta um cenrio positivo

    12 SILVA, A. M. da, et al., op. cit. p. 129-132. 13

    JARDIM, Jos Maria; FONSECA, Maria Odila. Arquivos. In: Formas e expresses do conhecimento. Belo

    Horizonte: Escola de Biblioteconomia, 1998. Apud FONSECA, Maria Odila. Arquivologia e cincia da

    informao. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 46. 14 SILVA, A. M. da, et al., op. cit.

  • 19

    resultante dos seguintes fatores: aprovao da Lei 8159 dos Arquivos em 199115; a

    criao do Conselho Nacional de Arquivos CONARQ que passou a atuar em

    meados dos anos 1990 propondo diretrizes, normas e procedimentos; aumento no

    nmero de cursos de graduao em Arquivologia distribuindo-se por mais unidades

    da federao, alterando-se assim o perfil intelectual da rea, antes concentrada em

    instituies arquivsticas especialmente dedicadas a conjuntos documentais

    arquivsticos; a perda da exclusividade da Associao dos Arquivistas Brasileiros

    diante do surgimento de vrias outras associaes regionais autnomas.

    GONALVES ressalta que teve fora nesse perodo a inteno de descolar

    a Arquivstica (ou Arquivologia), enquanto campo disciplinar, tanto da

    Biblioteconomia quanto da Histria, apagando-se a concepo de que fosse uma

    das cincias auxiliares desta ltima, o que frequentemente se traduziu em tenses

    e disputas acirradas entre profissionais de distintas formaes que atuavam e atuam

    na rea de arquivos. Ela identifica tambm que paralelamente as transformaes

    provocadas pela intensa disseminao de novas tecnologias da informao e de

    comunicao, em nvel mundial, trouxeram para a rea arquivstica forte

    preocupao com a informatizao dos procedimentos tcnicos de tratamento da

    documentao e com os desafios gerados pelo universo digital.16 GONALVES

    afirma ainda:

    Em termos mundiais, grosso modo, a dcada de 1990 pode ser considerada um momento

    de crise do campo arquivstico e, sintomaticamente, a literatura da rea, nos vrios pases,

    passa a abrigar o questionamento de seus princpios fundamentais, tidos como anacrnicos.

    Para alguns autores anunciava-se a transio de uma era de documentao arquivstica

    maciamente (embora no exclusivamente) produzida em papel para uma era digital, com o

    predomnio de documentos gerados diretamente (e mantidos) em meio eletrnico.

    Viveramos uma transio de paradigmas: do paradigma custodial, caracterstico de uma

    Arquivstica preocupada com documentos, para um paradigma ps-custodial, prprio de

    um momento em que importam, sobretudo, as informaes que passam a migrar

    livremente de um suporte a outro.17

    15 BRASIL. Lei n. 8.159, de 08 de Janeiro de 1991. Dispe sobre a poltica nacional de arquivos pblicos e

    privados e d outras providncias. Disponvel no endereo http://www.arquivonacional.gov.br/conarq/leis/

    downl.htm. Acesso em 20 mar.2007. 16

    GONALVES, Janice. Sombrios umbrais a transpor: arquivos e historiografia em Santa Catarina no sculo

    XX. So Paulo, 2006. 444 f. Tese (Doutorado em Histria Social) Departamento de Histria da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, p. 131-132. 17 Ibid, p. 132-133.

  • 20

    Neste contexto, a disciplina da arquivologia e os arquivos, na sua busca de

    definio de uma rea autnoma de conhecimento, encontram-se assim diante de

    um amplo processo de mudanas.

    1.2 Os documentos sob o ponto de vista dos arquivistas

    Atualmente a tendncia o entendimento de que documento todo registro

    de uma informao, independentemente da natureza do suporte que a contm.

    Documento um termo polissmico que no pode ser separado de outro conceito

    com as mesmas caractersticas: a informao18. De acordo com BELLOTTO

    documento :

    qualquer elemento grfico, iconogrfico, plstico ou fnico pelo qual o homem se expressa.

    o livro, o artigo de revista ou jornal, o relatrio, o processo, o dossi, a carta, a legislao,

    a estampa, a tela, a escultura, a fotografia, o filme, o disco, a fita magntica, o objeto

    utilitrio etc., enfim, tudo o que seja produzido, por motivos funcionais, jurdicos, cientficos,

    tcnicos, culturais ou artsticos, pela atividade humana.19

    Considera-se, no entanto, que o documento de arquivo diferencia-se dos

    documentos de outras instituies como bibliotecas, centros de documentao e

    museus por certas especificidades. BELLOTTO ressalta que a origem e o emprego

    do documento que determina o seu uso e destino futuro, definindo os documentos

    de arquivo como aqueles que

    so produzidos por uma entidade pblica ou privada ou por uma famlia ou pessoa no

    transcurso das funes que justificam sua existncia como tal, guardando esses

    documentos relaes orgnicas entre si. Surgem, pois, por motivos funcionais,

    administrativos e legais. Tratam sobretudo de provar, de testemunhar alguma coisa. Sua

    18 A discusso sobre o conceito de informao vasta e ampla. Neste momento pretende-se apenas marcar a

    sua indissociabilidade do conceito de documento. SILVA et al., ao discutir a definio de informao, afirma

    que prevalecem propostas nas quais a informao deve necessariamente ter uma existncia material, e

    conseqentemente, ter que ser depositada sobre algo manusevel, ou seja, um suporte fsico. nessa

    acepo, entendida como sinnimo de dados do conhecimento registrado, que tem sido designada por

    informao documental. Esse autor afirma que a seguinte definio lhe parece a mais adequada e

    consensual: Information an assamble of data in a comprehensible form recorded on paper or some other

    mdium, and capable of comunication. (Harrods librarians glossary of terms used in librarianship,

    documentation and the book crafts and reference book. Compil. By Ray Prytherch. 6 th ed. Aldershot: Gower,

    1989. p. 381. Apud SILVA et al., 1999, p.24-25) 19 BELLOTTO, Helosa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 2.ed. rev. e amp. Rio de

    Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 35.

  • 21

    apresentao pode ser manuscrita, impressa ou audiovisual; so em geral exemplares

    nicos e sua gama variadssima, assim como sua forma e suporte.20

    CAMARGO afirma que existem alguns traos marcantes do documento de

    arquivo. Primeiro, a qualidade reflexiva dos arquivos, a qual determinada pela

    extrema proximidade que os documentos mantm com a ao da qual se originou, a

    ponto de pretender substitu-la, de funcionar como seu equivalente. O documento

    de arquivo a exteriorizao de uma ao que se faz e refaz por efeito da fora

    probatria que lhe peculiar. Essa fora depende, em larga medida, de dispositivos

    que acentuam sua capacidade de remisso direta realidade, a ponto de formar

    com ela uma aliana indissocivel.21

    Outra caracterstica fundamental dos documentos de arquivo a

    organicidade uma vez que eles no possuem uma vida independente e autnoma,

    mas so parte de um conjunto cujos elementos mantm relao orgnica entre si.

    Sobre a organicidade CAMARGO afirma:

    Maior que a soma das partes que o integram, esse organismo que lhe empresta

    autenticidade. Por isso se pode dizer que os documentos carregam consigo

    obrigatoriamente, a cunha da instituio que os produziu. Nenhum deles, com efeito, pode

    ser compreendido ou interpretado sem que se conheam as razes porque foi produzido ou

    as condies de que se originou. (...) O estatuto probatrio dos documentos de arquivo

    depende, portanto, de sua natureza contextual, que deve ser preservada a todo custo sob

    pena de faz-los perder a capacidade de refletir a instituio de origem.22

    A questo da necessria manuteno da organicidade do documento

    arquivstico est relacionada com um dos princpios fundamentais da disciplina da

    Arquivologia: o princpio da provenincia ou respeito aos fundos, o qual recomenda

    manter agrupados os documentos gerados e acumulados por uma instituio, rgo

    ou pessoa, ao longo do desempenho de suas funes e atividades. A formalizao

    do conceito de fundo foi enunciado pelo arquivista e historiador Natalis de Wailly

    em 1841. Esse preceito, que desde ento ficou conhecido como o princpio do

    respeito pelos fundos, surgiu em resposta situao dos arquivos na Frana que,

    em decorrncia de uma poltica de incorporao em massa e a subseqente

    reordenao dos arquivos baseada em concepes ideolgicas ento vigentes,

    20 Ibid., p. 36. 21 CAMARGO, op. cit., p. 11. 22 Ibid., p. 12.

  • 22

    criavam uma situao de total falta de controle dos documentos sob o ponto de vista

    arquivstico.23

    A noo de respeito ao fundo e a nfase na organicidade da produo

    documental so premissas que foram elaboradas ao longo da construo histrica e

    epistemolgica da Arquivologia e constituem-se em paradigmas essenciais da

    disciplina. Serve, inclusive, para definir os limites da Arquivologia e da instituio

    arquivo em relao s outras instituies que tambm se voltam para documentos

    como os museus, bibliotecas, centros de documentao e suas respectivas

    disciplinas cientficas. Considera-se que em tais instituies, diferentemente dos

    acervos arquivsticos que so constitudos organicamente, os acervos museolgicos

    ou bibliogrficos formam colees, pois, em geral, so constitudos a partir da

    coleta de materiais ato voluntrio que resulta de interesses especficos.

    A noo de fundo continua sendo fundamental nos procedimentos de

    organizao dos arquivos. O fundo a principal unidade de arranjo tanto para os

    que optam pelo modo estrutural como o modo funcional, dos arquivos permanentes,

    sendo o arranjo estrutural constitudo dos documentos provenientes de uma mesma

    fonte geradora de arquivos ou, no arranjo funcional, de uma fonte geradora de

    arquivo reunida pela semelhana de suas atividades, mantendo-se sempre o

    princpio da provenincia.24

    No desenvolvimento da Arquivologia e, especialmente em decorrncia da

    necessidade de realizar avaliaes e eliminaes de massas documentais que so

    produzidas, particularmente aps a Segunda Guerra Mundial, foram desenvolvidas

    teorias sobre os valores dos documentos. Segundo SCHELLENBERG, um dos

    principais tericos da Arquivologia, os valores inerentes aos documentos pblicos

    modernos so de duas categorias: os valores primrios esto relacionados com a

    prpria entidade onde se originam os documentos, e os valores secundrios com

    as outras entidades e utilizadores privados.25

    O Dicionrio Brasileiro de Terminologia Arquivstica define valor primrio

    como valor atribudo aos documentos em funo do interesse que possam ter para a

    23 SILVA, A. M. da, et al., op. cit., p. 107.

    24 PAES, Marilena Leite. Arquivo: Teoria e prtica. 3.ed. amp. rev. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 26. 25 SCHELLEMBERG, T. R. Arquivos modernos: princpios e tcnicas. Rio de Janeiro: Editora da Fundao

    Getlio Vargas, 1974. p. 180.

  • 23

    entidade produtora, levando-se em conta a sua utilidade para fins administrativos,

    legais e fiscais. O valor secundrio, por usa vez, o valor atribudo a um documento

    em funo do interesse que possa ter para a entidade produtora e outros usurios,

    tendo em vista a sua utilidade para fins diferentes daqueles para os quais foi

    originalmente produzido.26

    A partir dessa noo de que os documentos possuem valores primrios e

    secundrios desenvolveu-se outro conceito importante da Arquivologia: a teoria das

    trs idades27. O arquivo de primeira idade ou corrente constitudo de documentos

    que ainda esto em tramitao ou so consultados freqentemente, conservados

    nos escritrios ou nas reparties que os receberam e os produziram ou em

    dependncias prximas de fcil acesso. O arquivo de segunda idade ou

    intermedirio constitudo de documentos que deixaram de ser freqentemente

    consultados, mas cujos rgos que os receberam e os produziram podem ainda

    solicit-los. No h necessidade de serem conservados prximos aos escritrios e a

    permanncia dos documentos nesses arquivos transitria. O arquivo de terceira

    idade, tambm definido como arquivo permanente constitudo de documentos que

    perderam o valor administrativo e que se conservam em razo de seu valor histrico,

    constituindo-se em meio de conhecer o passado e sua evoluo.28

    Sobre a importncia da instituio dos arquivos intermedirios PAES

    esclarece que

    (...) at a primeira metade do sculo XX a tradio arquivstica clssica considerava apenas

    duas idades dos arquivos: a administrativa e a histrica. Assim o documento passava

    diretamente de um a outro estgio, no sendo prevista nenhuma fase de transio.

    Quando as instituies contavam com espao, conservavam os seus documentos por longo

    tempo, muitas vezes sem condies adequadas para a sua preservao; outras, por falta de

    espao, recolhiam precocemente documentos ainda de uso corrente, congestionando o

    arquivo permanente com documentao ainda necessria administrao.29

    26 ARQUIVO NACIONAL, op. cit., p. 171-172.

    27 SILVA et al. afirmam que embora a noo das trs idades seja um ponto praticamente consensual que j se

    afirmava desde o sculo XIX, esse no absolutamente um fenmeno uniforme nos vrios pases, havendo

    vrias teorias sobre as idades dos documentos duas, trs ou mesmo quatro idades e vrias posies

    sobre aquelas que devem ou no ser consideradas como idades arquivsticas. (SILVA, A. M. da, et al., op.

    cit., p. 132-133). 28 PAES, M. L., op. cit., p. 21-22. 29 Ibid., p. 115-116.

  • 24

    A funo principal dos arquivos intermedirios, ainda de acordo com essa

    arquivista, consiste em proceder a um arquivamento transitrio, isto , em assegurar

    a preservao de documentos que no so mais movimentados, utilizados pela

    administrao e que devem ser guardados temporariamente, aguardando pelo

    cumprimento dos prazos estabelecidos pelas comisses de anlise ou, em alguns

    casos, por um processo de triagem que decidir pela eliminao ou arquivamento

    definitivo, para fins de prova ou de pesquisa.30

    JARDIM afirma que os documentos que constituem o arquivo permanente

    tm sua guarda pelas instituies arquivsticas pblicas justificada em dois aspectos:

    de um lado, em funo do uso desses documentos para a pesquisa cientfica e, de

    outro, como fator de testemunho das aes do Estado e garantia de direito dos

    cidados. Ele complementa ainda que com freqncia estas prticas buscam

    legitimar-se no discurso da preservao do patrimnio histrico e democratizao da

    memria nacional.31 [grifo do autor]

    Em teoria a transferncia dos documentos dos arquivos correntes para os

    arquivos intermedirios e o recolhimento dos documentos do arquivo intermedirio

    para o arquivo permanente deveriam ser balizados por tabelas de temporalidade32 e

    prticas de gesto de documentos. JARDIM esclarece que, sobretudo a partir dos

    anos 50, a literatura e a prtica arquivstica destacam a importncia da avaliao e

    seleo de documentos. Esta avaliao, cujos elementos tericos e metodolgicos

    fundamentais so partilhados pela comunidade profissional arquivstica

    internacional, teria objetivos aparentemente muito simples: identificar o valor dos

    documentos de maneira a estabelecer prazos de reteno nas fases corrente e

    intermediria, definindo assim as possibilidades de eliminao, microfilmagem e

    recolhimento aos arquivos permanentes.33

    30 Ibid., p. 116. 31

    JARDIM, J. M. A inveno da memria nos arquivos pblicos. Cincia da Informao, Braslia, DF, v. 25, n. 2,

    1995, p. 3. Disponvel em: . Acesso: em:

    24 out. 2005. 32

    Tabela de temporalidade o instrumento de destinao, aprovado por autoridade competente, que determina

    prazos e condies de guarda tendo em vista a transferncia, recolhimento, descarte ou eliminao de

    documentos. (ARQUIVO NACIONAL, op. cit., p. 159). 33 JARDIM, J. M. A inveno da memria nos arquivos pblicos. Cincia da Informao, Braslia, DF, v. 25, n. 2,

    1995, p. 6. Disponvel em: . Acesso: em:

    24 out. 2005.

  • 25

    Tal abordagem que se volta para a informao e prope a racionalizao da

    produo de documentos, preservando-se ao final de apenas uma parte do todo que

    foi produzido, faz parte de um recente redimensionamento epistemolgico da

    arquivologia. A chamada gesto de documentos, que s recentemente vem sendo

    realizada pelos arquivos, considerada fundamental para que eles cumpram

    efetivamente suas funes.

    1.3 Os documentos sob o ponto de vista do historiador

    Os documentos h muito se constituem em questo importante para o

    historiador. Basta lembrar a consagrada frase que constava no manual de Langlois e

    Seignobos, publicado em 1897: Pas de document, pas dHistoire. O final do sculo

    XIX, tempos iniciais de afirmao da profisso do historiador, foi marcado pelas

    premissas cientificistas estabelecidas pela escola metdica alem, tambm

    chamada de positivista. Segundo FERREIRA, numa poca em que as diversas

    disciplinas das cincias sociais buscavam estabelecer os seus campos de atuao,

    a Histria afirmou-se como uma disciplina que possua um mtodo de estudo de

    textos que lhe era prprio, que tinha uma prtica regular de decifrar documentos e

    baseava a sua concepo de objetividade a partir de um distanciamento em relao

    aos problemas do presente. De acordo com a historiadora,

    Acreditava-se que a competncia do historiador devia-se ao fato de que somente ele podia

    interpretar os traos materiais do passado, seu trabalho no podia comear

    verdadeiramente seno quando no mais existissem testemunhos vivos dos mundos

    estudados. Para que os traos pudessem ser interpretados, era necessrio que tivessem

    sido arquivados.34

    A partir dessa linha filosfica assiste-se a um verdadeiro triunfo do

    documento escrito. Os historiadores de ento acreditavam ser possvel escrever

    uma histria objetiva, neutra, verdadeira e fiel aos acontecimentos tal qual

    aconteceram, desde que estivesse baseada em documentos. No entanto no eram

    34 FERREIRA, Marieta de Moraes. Histria do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrpolis, v. 94, n. 3,

    p. 111-124, maio/jun., 2000, p. 2. Disponvel em Acesso em: 03 fev. 2005.

  • 26

    quaisquer documentos escritos que seriam considerados como fonte, mas,

    sobretudo, os documentos polticos, diplomticos ou militares.

    Na Frana, em contraposio a uma historiografia marcada pelas premissas

    cientificistas estabelecidas pela chamada escola metdica, apoiada na suposta

    descrio neutra dos fatos e na narrativa dos feitos dos grandes nomes e heris,

    Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram nos idos de 1929 a Revista dos Annales,

    publicao que daria origem a todo um movimento de renovao na historiografia

    francesa e que expandiria sua influncia por muitos outros pases. Nos primeiros

    nmeros da revista ficavam expressas as prerrogativas do grupo: o combate a uma

    histria narrativa e do acontecimento, a exaltao de uma histria problema, a

    importncia de uma produo voltada para todas as atividades humanas e no s a

    dimenso poltica e, por fim, a necessria colaborao interdisciplinar.35

    Os fundadores da revista Annales, pioneiros em uma nova histria que

    voltava seu olhar para todos os homens, defendem a necessidade de ampliar a

    noo de documentos. Nas palavras de FEBVRE, citado por LE GOFF,

    A histria faz-se com documentos escritos, sem dvida. Quando estes existem. Mas pode

    fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando no existem. Com tudo o que a

    habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores

    habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as forma do campo e das

    ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames

    de pedras feitos pelos gelogos e com as anlises de metais feitas pelos qumicos. Numa

    palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem,

    exprime o homem, demonstra a presena, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do

    homem.36

    A partir da influncia dos Annales assiste-se a uma verdadeira expanso dos

    limites do que se considerava fonte documental. A chamada segunda gerao da

    Escola dos Annales, com seu projeto de uma histria global e totalizante, ao

    valorizar o estudo das estruturas e dos processos de longa durao, atribuiu s

    fontes seriais e s tcnicas de quantificao uma importncia fundamental. o

    perodo do apogeu da histria econmica, da histria demogrfica e da histria

    social. LE GOFF afirma que a essa revoluo documental associa-se outra, a

    35 SCHWARCZ, Lilia Moritz Apresentao edio brasileira: por uma historiografia da reflexo. In: BLOCH,

    Marc. Apologia da histria: ou o ofcio de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 10. 36 FEBVRE, L. Vers une autre histoire. In: Revue de mtaphysique et de morale, 1949, p. 428. Apud LE GOFF,

    Jacques. Documento/monumento. In: Histria e memria. 3. ed. Campinas: Unicamp, 1994, p. 540.

  • 27

    revoluo tecnolgica produzida pelo computador, e da confluncia dessas duas

    revolues que nasce a histria quantitativa.37

    Se nos anos de 1960 assiste-se o apogeu da explorao das fontes seriais

    com auxlio dos computadores e que resultaram em grandes obras de histria

    quantitativa, paradoxalmente a partir da dcada de 1980, justamente quando a

    microinformtica dava seus primeiros passos para colocar disposio de todos um

    espantoso poder de clculo, entra em declnio o paradigma galileano38 e os

    historiadores se afastam do serial e do quantitativo.39

    Referindo-se s mudanas ocorridas nessa dcada na historiografia,

    CHARTIER afirma que, sensveis a novas abordagens sociolgicas ou

    antropolgicas, os historiadores quiseram restaurar o papel dos indivduos na

    construo dos laos sociais. Da resultou vrios deslocamentos fundamentais: das

    estruturas para as redes, dos sistemas de posies para as situaes vividas, das

    normas coletivas para as estratgias singulares.40

    Nas ltimas dcadas, quando a histria foi levada a redefinir suas

    problemticas, seus mtodos e seus objetos diante das cincias sociais, os

    historiadores seguiram ampliando seus territrios, e da mesma forma, alargando

    cada vez mais a noo de documento e de fonte. Segundo LE GOFF ampliou-se a

    rea dos documentos, que a histria tradicional reduzia aos textos e aos produtos da

    arqueologia. Hoje os documentos chegam a abranger a palavra, o gesto.

    Constituem-se em arquivos orais; so coletados etnotextos.41

    Existe uma vasta produo bibliogrfica sobre as fontes utilizadas pelos

    historiadores. O texto Documento/Monumento de Jacques Le Goff um texto

    significativo sobre a relao do historiador com o documento. LE GOFF prope aos

    37 LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: Histria e memria. 3. ed. Campinas: Unicamp, 1994, p.

    541. 38

    O paradigma galileano foi definido por Carlo Ginzburg em artigo clebre intitulado Sinais: Razes de um

    paradigma indicirio. Cf. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. So Paulo: Companhia das Letras,

    1989. 39

    BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique. Introduo: Em que pensam os historiadores? In: BOUTIER, Jean; JULIA,

    Dominique. (orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da Histria. Rio de Janeiro: Editora UFRJ:

    Editora FGV, 1998, p. 39. 40 CHARTIER, Roger. A Histria hoje: dvidas, desafios, propostas. Estudos Histricos, FGV, Rio de Janeiro,

    vol. 7, n.13, 1994, p. 2 Disponvel em< http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/141.pdf>. Acesso em: 14 out 2004. 41 LE GOFF, Jacques. Histria e memria. 3. ed. Campinas: Unicamp, 1994, 10.

  • 28

    historiadores a necessidade de desmistificar o significado aparente do documento,

    entendendo-o sempre como um monumento. De acordo com esse historiador:

    O documento no incuo. antes de mais nada o resultado de uma montagem,

    consciente ou inconsciente, da histria, da poca, da sociedade que o produziram, mas

    tambm das pocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido,

    durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silncio. (...) O documento

    monumento. Resulta do esforo das sociedades histricas para impor ao futuro voluntria

    ou involuntariamente determinada imagem de si prprias.42

    A partir da influncia da Escola dos Annales as fontes do historiador no

    mais se constituem apenas dos documentos escritos tradicionais, mas incluem os

    discursos, as fontes literrias, os registros sonoros e visuais, os objetos materiais, os

    testemunhos orais, ou qualquer outro, desde que, como afirma ROUSSO, o

    historiador, de maneira consciente, deliberada e justificvel, decide erigir em

    elementos comprobatrios da informao a fim de reconstituir uma seqncia

    particular do passado, de analis-la ou de restitu-la a seus contemporneos sob a

    forma de uma narrativa, em suma, de uma escrita dotada de uma coerncia interna

    e refutvel, portanto de uma inteligibilidade cientfica.43

    Em decorrncia da ampliao da noo de fonte possvel identificar na

    evoluo da disciplina histrica, o seu afastamento relativo dos arquivos ditos

    tradicionais. ROUSSO afirma que a evoluo da histria, que se tornou uma

    disciplina que recorre aos mtodos das cincias sociais, especialmente a

    entrevistas, e ainda, o surgimento recente de uma histria do tempo presente, que

    implica a confrontao direta e o dilogo permanente com os vestgios vivos do

    passado a memria dos atores , modificaram de alguma maneira o debate

    clssico sobre a noo de arquivo. E acrescenta ainda que a isso veio se somar a

    mudana radical no plano epistemolgico, com o aparecimento, nos ltimos trinta

    anos, de paradigmas que negam histria sua pretenso de captar o real,

    definindo-a como e s vezes reduzindo-a a uma narrativa subjetiva, na qual o

    estabelecimento da prova, portanto o uso do arquivo, no constitui mais a base na

    qual ela pode legitimamente se apoiar. Ao mesmo tempo, ainda segundo esse

    42 LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: Histria e memria. 3. ed. Campinas: Unicamp, 1994,

    p. 547-548. 43 ROUSSO, Henry. O Arquivo ou indcio de uma falta. Estudos Histricos, FGV, Rio de Janeiro, n.17, 1996,

    p. 2. Disponvel em < http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/186.pdf>. Acesso em 07 mar. 2005.

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    historiador, o desejo cada vez mais explcito na opinio pblica de uma histria

    positiva, baseada em provas irrefutveis, especialmente para perodos ou

    acontecimentos trgicos do sculo XX, tem incessantemente acuado os

    historiadores, obrigando-os a uma abordagem cada vez mais prudente dos arquivos.

    Esse historiador aponta uma tenso contempornea em relao aos arquivos que

    pode ser identificada no vigor dos debates, carregados de ideologia, ou at mesmo

    fantasias sobre os arquivos contemporneos, sua inacessibilidade real ou

    presumida, a expectativa em relao a eles, problemas esses que ultrapassam o

    meio dos arquivistas, dos conservadores ou dos historiadores e tem a ver hoje em

    dia com o espao pblico mais amplo.44

    A questo do arquivo sempre ocupou um lugar importante nos debates

    historiogrficos e, mesmo diante do cenrio marcado pela ampliao da noo das

    fontes utilizadas pelos historiadores, pode-se afirmar que ainda persiste entre os

    historiadores uma inclinao maior em relao aos documentos escritos.

    Alguns autores apontam para o fetiche dos documentos escritos. FENTRES

    e WICKHAM afirmam que prevalece entre os historiadores um modelo textual de

    memria, que uma forma de reificao. Tal modelo seria ele prprio uma

    expresso de uma predisposio geral da cultura moderna, letrada, para definir o

    conhecimento em termos de enunciados expressos em linguagem, ou como

    proposies em alguma notao lgica ou cientfica.45

    Ao discutir a fora da tradio que contrape as fontes orais s fontes