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Memória e especificidade: o Cemitério de Portalegre no ... · Os autores possuem formação superior em História da Arte e Conservação e Restauro, tendo vários trabalhos publicados

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Memória e especificidade: o Cemitério de Portalegre no século XIX

J. FRANCISCO FERREIRA QUEIROZ

ANA MARGARIDA PORTELA

Historiadores de Arte

o estudo de uma cidade do ponto de vista do seu cemitério oitocentista é

um manancial enorme de informação sociológica, artística e histórica. Contudo,

por variadas razões, o estudo dos cemitérios portugueses tem avançado de forma

lenta, sobretudo na perspectiva da H istór ia local. Com este pequeno trabalho

pretendemos demonstrar as perspectivas que este tipo de estudo pode abrir, apli­

cando-o a uma cidade em concreto: Portalegrel ,

Em Portugal, as primeiras tentativas legisladoras no sentido de criar cemité­rios afastados das zonas habitacionais deram-se em finais do século XVIII. Noentanto, só em 1835 foi publicado o decreto que criou oficialmente os cemitériospúblicos, proibindo inumações nas igrejas e, igualmente, dentro das povoações.Muitas outras disposições e decretos foram emanados posteriormente, tentandoforçar a criação de cemitérios decentes e modernos. Mas a resistência social eramuito grande. O decreto Cabralista de 1844, relembre-se, esteve até na origemdos graves tumultos da Maria da Fonte.

A nível nacional, foram estas as principais dificuldades sentidas no cumpri­mento das disposições legais sobre o estabelecimento de cemitérios públicos :

• A falta de dinheiro das entidades que deviam criar os cemitérios públicos(câmaras municipais e juntas de paróquia). Esta carência era agravada noscasos em que as ditas entidades não possuíam terrenos próprios convenientes;

1 Este artigo é uma versão resumida e actualizada dos capítulos I e III do estudo monográfico''Especificidades da artefunerária oitocentista na região da Serra de S. Mamede: os Cemitérios dePortalegre, Castelo de Vide e Nisa". Este estudo, realizado em 1998, foi financiado peloPrograma Nacional de Bolsas de Investigação para Jovens Historiadores e Antropólogos daFundação da Juventude .

cidade- REVISTA CULTURAL DEPORTALEGRE . Lisboa, Edições Colib ri, n.o 13-14, 1999-2000, pp. 161-182.

Número: 13-14 i~l~ijl;'- Ano: 1999-2000

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J. f.co Ferreira Queiroz e Ana M. Portela

• A resistência da população ao enterramento fora das igrejas (mesmo sendoos cemitérios públicos portugueses católicos a priori):

• O péssimo aspecto dos cemitérios recém-criados, por vezes estabelecidos semconvicção, propositadamente provisórios (de forma a que fossem esquecidos,recebendo apenas cadáveres de pobres e indigentes). Como esta era a práticacomum, gerava-se um ciclo vicioso: uma determinada localidade não queriaum cemitério público, porque julgava que isso significava um cemitério igualao degradante sumidouro de cadáveres estabelecido na localidade vizinha.

Como temos vindo a defender em vários trabalhos, foi sobretudo a cóleraque forçou a criação de muitos dos cemitérios portugueses, mais ainda do quea própria lei2. E não foram só as epidemias de 1833-34 e 1855-56, mas tam­bém o efeito traumático das mesmas, que teve ressonância em épocas posterio­res: assim que havia boatos de cólera, mais umas dezenas de cemitérios públi­cos, adiados durante anos , eram subitamente estabelecidos.

A criação do Cemitério de Portalegre

A epidemia de cólera de 1833-34 atingiu também a região da Serra deS. Mamede, mas a mortandade não foi, no entanto, tão grave como em outrasregiões de Portugal. Na Paróquia da Sé de Portalegre, antes do aparecimento daepidemia, faziam-se enterramentos dentro da Sé e no respectivo claustro. Em1834, para além da Sé foram feitos bastantes enterramentos nas igrejas deS.to Agostinho (hoje desaparecida) e S. Francisco . Em Julho de 1834, refere-se

Dado o carácter resumido do artigo, não apresentamos referências a fontes e bibliografia, asquais remetemos para a versão integral deste estudo, que foi publicada no volume I da 4 .a edi­ção (Porto, Fundação da Juventude, 2000, pp . 168-253). Note-se, porém, que o volume ondefoi publicado o estudo não teve edição comercial, pelo que poderá apenas ser encontrado nasbibliotecas abrangidas pelo depósito legal (embora existam versões policopiadas nas bibliote­cas municipais de Portalegre e de Castelo de Vide) . Por esta razão, impunha-se divulgar o estu­do numa publicação cultural de âmbito regional, como é a revista "A Cidade", uma vez queeste interessará mais aos habitantes da região de Portalegre.Os autores possuem formação superior em História da Arte e Conservação e Restauro, tendovários trabalhos publicados sobre arte funerária do século XIX e sobre temas correlativos.

2 Para aprofundamento, veja-se QUEIROZ, ). Francisco E, O ferro na arte funerdria do Portooitocentista. O Cemitério da Irmandade de Nossa Senhora da Lapa (1833-1900) . Tese deMestrado em História da Arte (pol icopiada) . Faculdade de Letras da Universidade do Porto,1997, voI. I, capítulo I.

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o Cemitério de Portalegre no século XIX

o Cemitério de S. Francisco, indiciando qu e o local de enterramento seria já numterreno provisório exterior à igreja. Os enterramentos neste terreno continua­ram até 1837.

Em 28 de Janeiro de 1837, dá-se a primeira inumação no Cemitério Públicode Portal egre, situado na Boavista (onde existira um antigo forte) . A infeliz pio­neira foi Francisca Rita , de 20 anos , uma mulher pobre.

Ao contrário do que poderia parecer mais lógico (e viria mesmo a sucederem Castelo de Vide), os muros do Forte da Boavista não terão sido transfor­mados em muros do cemitério. Eventualmente, a alvenaria dos muros pode tersido apeada e reaproveitada . No entanto, nada disso se refere nos documentossobre as obras de construção do cemitério. Estas iniciaram-se em Abril de 1836,ou seja, apenas oito meses após o decreto que estabeleceu os cemitérios públicos.Este facto é bastante singular, se tivermos em conta a resistência generalizada aeste novo fenómeno, durante décadas (e mesmo ponderando o baixo nível dereligiosidade no Alentejo). Terá sido objecto de grande consenso, em Portalegre,a construção do cernit ério-?

A primeira fase das obras consistiu em tirar a p edra e durou até finais deJulho de 1836. Em Outubro de 1836 , procedeu-se à terraplenagem. Em Janeirode 1837, como se viu, o cemitério já recebia enterramentos, embora não esti­vesse totalmente construído. Andava-se ainda a colocar o portão e a cruz docemitério e a revestir de lage preta a parede do mesmo . Até Junho de 1837,ainda se referem pequenas obras. Como em praticamente todos os cemitériospúblicos portugueses, pequenas obras de manutenção foram -se sucedendo nosanos seguintes.

A concepção urbanística do cemitério

A área do Cemitério de Portalegre que foi construída no século XIX divide-seem duas partes distintas [fig. 1]: a divisão inferior, tendo ao fundo a capela mor­tuária, e a divisão superior, paralela à divisão inferior, mas com muito maior lar­gura, tendo ao fundo um necrotério, construído em 1907.

A concepção urbanística do Cemitério de Portalegre é curiosa e, em muitosaspectos, parece até ilógica, tendo em conta tantos outros cemitérios mais ou

3 Para este período, as actas da Câmara Municipal de Portalegre são de uma grande escassez dedados. Este facto, aliado à alegada inexistência de registos próprios relativos ao cemitériodurante o século XIX, cerceou bastante a investigação sobre os primeiros tempos do Cemitériode Portalegre. Muitas questões fundamentais cont inuam ainda sem resposta.

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menos coetâneos que conhecemos. As cotas das duas divisões são bastante dís­pares para este tipo de necrópole , o que parece indicar que os dois tabuleirosnão foram pensados em conjunto (se o fossem, talvez tivesse sido mais sensatoatenuar o desnível de terreno , criando um patamar intermédio). Uma coisa écerta, a divisão inferior é a maisantiga. Porém, porque é que a divi­são inferior não possui uma rua decirculação central , visto que o seuportal de entrada está num dos can­tos da divisão?Este facto é ainda maisestranho se nos lembrarmos que, aofundo, foi construída a capela mor­tuária, que assim ficou sem uma ruaaxial que lhe desse entrada directa- H

mente. Estará o portal antigo na suaposição original? A questão perma­nece obscura.

A epidemia de cólera de 1855-56e o pânico gerado antes da sua che-gada teve efeitos no Cemitério de Fig. 1

Portalegre. A vereação decide entãoratear o cemitério de cima, indício de que este já existia, mas não teria grandeutilização prática, uma vez que o terreno nem sequer estava ordenado. Porém,só no período epidémico a Câmara terá começado a fazer uso do cemitériosuperior, uma vez que o inferior estava quase cheio. Este uso foi feito sem queo cemitério superior fosse minim amente preparado. Em 1858, a Câmara deci­diu passar os enterramentos correntes para o cemitério de baixo, porque no decima a abertura das sepulturas dava em rocha. A Câmara tinha consciência deque a situação não se podia manter, mas o dinheiro era pouco. Ainda em 1858,a Direcção das Obras Públicas do Distrito enviou à Câmara uma planta parareorganizar o cemitério. Porém, o município pouco terá feito entretanto.

Nesta época, ainda não existiriam no cemitério monumentos dignos dessenome, embora já existissem várias placas tumulares, do género das que eramcolocadas séculos antes nos soalhos das igrejas. Talvez existisse uma ou outraestela mais nobilitada. Por outras palavras, o cemitério público de Portalegremanteve-se, durante duas décadas, como um mero terreno vedado, vocacionadoapenas para sepulturas térreas ou, quando muito, placas tumulares. Não se tra­tava de um cemitério público verdadeiramente moderno. Aliás, o Cemitério dePortalegre não devia ser famoso em condições. Em finais de 1858, o cemitériopúblico horrorizava pelo seu estado lastimdvel. Por essa razão, um grupo de por-

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o Cemitério de POrlalegre no século XIX

talegrenses fez uma representação à Câmara Municipal, pedindo providênciasconcretas para o melhorar, sugerindo que nisso fosse sendo aplicado todo o ren­dimento municipal que estivesse disponível. Pressionada, a Câmara encetou,nos dois anos seguintes, profundas obras de melhoramento.

A questão dos primeiros jazigos-capela

Porém, a administração do Cemitério de Portalegre deveria ser pouco rigo­rosa, e são vários os indícios de que a Câmara não dava grande atenção à sua"cidade dos mortos". Exemplo disso foi a questão da venda de jazigos para aconstrução de mausoléus e capelas no cemitério, que deu origem a problemasentre alguns notáveis da cidade e a Câmara. De facto, Maria José Larcher tinhaerigido uma capela, durante o ano de 1858, em terreno que não tinha sidoainda oficialmente cedido pela Câmara, porque esta nada tinha regulamentadosobre a questão da erecção de jazigos com monumentos. Ora, em 1859, ManoelFélix Monteiro também pretendia erigir uma capela para jazigo de família, norecanto ao lado esquerdo da porta d'entrada em frente da capella que erigiu DonaMaria José Larcher (...), cujo terreno a Câmara lhe cedia pela quantia de 84 milreispor considerar que nella sepodi ão acomodar três sepulturas de campa rasa a 12mil reis e uma com emblema oufigura, que era a capella, dopreço de 48 mil reis.

Como se pode verificar, a pioneira da modernização do Cemitério dePortalegre foi Maria José Larcher, que criou o importante precedente de erigiruma monumental capela. A partir deste exemplo de uma notável mulher (viúvade um dos homens mais influentes na História de Portalegre do século XIX:

Manuel de Andrade e Sousa, falecido em 1855 ), o cemitério superior passou aser local especialmente vocacionado para receber este género de construções.E note-se que a localização desta capela pode ter alguma relação com o facto deo terreno do cemitério de cima não estar ainda organizado. Aliás, sabemos quequando a capela foi construída teve de ser terraplenado o terreno em volta.

Em Abril de 1859, Honório Fiel de Lima (genro do então já falecido ManuelAndrade e Sousa, a quem substituíra como Administrador da Fábrica Real deLanifícios) pediu esclarecimentos à Câmara Municipal sobre o regulamento docemitério, nomeadamente em relação à construção de capelas. Honório Fiel deLima tinha também edificado uma capela monumental no cemitério superiore, em Junho desse ano, pretendeu regularizar a situação com a Câmara, pro­pondo que o terreno onde estava a capela lhe fosse concedido em troca de doisjazigos que já possuía no mesmo cemitério (calculamos que na parte inferior domesmo ). Ora, como o regulamento do cemitério era omisso em relação aopreço a pagar por jazigos com monumentos, foi arbitrada pela Câmara a quan­tia de 96$000, não tendo sido aceites os dois jazigos para desconto.

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Na mesma sessão camarana foi apresentado um requerimento muito sesemelhante de José de Sousa Larcher, por si e em representação de seus irmãosAntonio Filipe Larcher e Francisco Aníbal de Sousa Larcher e de seus sobrinhosAntónio e Ramiro Marçal Larcher. Pediam um terreno de 450 palmos quadra­dos para construir um jazigo com capella. Também pretendiam que se lhesdescontasse o valor de dois jazigos que já possuíam no mesmo cemitério.A Câmara Municipal deu basicamente a mesma resposta, estipulando o preço apagar e rejeitando os dois jazigos para desconto. No entanto, a acta refere aindaque tendo a Câmara contratado com Manoel Felix Mo nteiro um j azigo com capel­la com a drea de 28palmos; de comprido sobre22 de largop ela quantia de 84$000que corresponde a 136 reiscada palmo quadrado, essepreço serviria de ali em diante.

Os problemas começaram quando Honório Fiel de Lima pediu à CâmaraMunicipal que reconsiderasse o acórdão tomado acerca do preço que se lhe arbi­trou pela compra do terreno em que edificou a sua capela. A Câmara procurouadiar a questão por várias vezes, facto que transformou a querela em pleito judi­cial. A Câmara defendia-se afirmando que só por boa fé, não tratou logo, comodevia, da medição do terreno e arbritamento do p reço que o recorrente devia darpara poder edificar a capella e j azigo que edificou.

A questão evoluiu ao ponto de também Manuel Félix Monteiro vir a pedira devolução de parte do preço da compra do terreno em que edificou o seu jazi­go, por não ser igual ao que se vendeu a Maria José Larcher. A Câmara Municipalindeferiu o requerimento, tendo também Manuel Félix Monteiro recorridopara o Tribunal do Conselho de Distrito. Ou seja, Manuel Félix Monteiro que­ria pagar por um terreno para capela o mesmo que se pagaria por um terrenopara uma pequena lápide (segundo as taxas) e acabou por pagar aquilo que aCâmara Municipal veio a estipular por palmo quadrado para capelas, com baseno ajustamento anteriormente feito com Maria José Larcher, que tinha servidode precedente.

No início de 1860, e para rever o regulamento do cemitério, foi nomeadauma comissão composta, entre outros, por Honório Fiel de Lima, EmílioLarcher e o Administrador do Concelho. Foi a solução encontrada para resolvero problema dos preços de terrenos para capelas. Também na mesma épocaforam encetadas mais obras no cemitério. Estas consistiram do muro quedividia a divisão superior da inferior. Porém, não só por erros na construção,como pela falta de dinheiro, esta obra prolongou-se por mais três anos (a julgarpela epígrafe no local, apontando as datas de 1860 e 1863).

A partir de 1 de Julho de 1860, passou a vigorar o novo regulamento. Só apartir de então o cemitério passava a ter uma planta bem definida, na qual tiver­am de ser encaixados, da melhor forma , os jazigos monumentais já construídos.Em 1861, aliás, António Joaquim de Araújo juzarte de Campos e seu irmão

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o Cemitério de Portalesre no século XIX

Joaquim de Araújo juzarte, pediram à Câmara a concessão de um terreno parajazigo, em troca do que já possuíam (porque este anterior, de acordo com aplanta definitiva, devia ser um terreno pouco "apetecido"). De facto, o novoterreno que os dois irmãos escolheram ficou em frente da nova rua que atraves­sava transversalmente o cemitério superior, a inicio caminho entre as duascapelas já construídas por Maria José Larcher e Manuel Félix Monteiro.

A divisão superior ficou, pois, dividida em 6 secções, com duas ruas princi­pais e uma rua transversal secundária (reveja-se a figura 1). As duas ruas princi­pais são:

• a longitudinal, que liga o portal de entrada do cemitério de cima ao fundodo cemitério e ao necrotério;

• a transversal, que fica quase perpendicular à primeira, indo do extremo nas-cente do cemitério até às escadas que dão para o cemitério de baixo.

Após as obras do início da década de 1860, o Cemitério de Portalegre evoluiugradualmente até ao que actualmente existe, tendo sido acrescentadas algumasoutras secções (por detrás do necrotério e da capela mortuária e, mais recente­mente, também a nascente).

A construção do "museu da morte" de Portalegre

Pelo que foi exposto , é evidente que a tipologia de jazigo com capela - formamáxima de expressar a importância social após a morte - foi em Portalegreprimeiramente adoptada pelas famílias mais importantes da cidade. E foramestas as primeiras a pretender ostentar na morte a sua importância na vida,tendo sido elas a forçar a Câmara a organizar o terreno do cemitério superiorque, com estes precedentes, passou a ser o local privilegiado de construção demonumentos, sobretudo dos mais grandiosos. Os portalegrenses com algumasposses que , posteriormente, pretenderam também erigir os seus mausoléus,foram preferindo terrenos na divisão superior. O cemitério inferior, que recebeuas primeiras placas tumulares, quase estagnou então, em termos de construçõesfunerárias. Ainda hoje parte dele serve como secção de enterramento, factopouco comum em cemitérios iniciais de outras cidades e vilas portuguesas.

O cemitério superior divide-se nas secções A, B, C, D , E e F e o cemitério infe­rior nas secções G e H (situando-se a cruz do cemitério entre estas duas secções).As capelas e mausoléus foram sendo primeiramente colocados nas orlas dassecções B e D (sobretudo do lado nascente) e, mais tarde , também nas orlas dassecções A e C. As secções E e F foram servindo praticamente apenas parapequenos mausoléus e placas tumulares, estando ordenadas de forma diferente

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Fig. 2

J. Eco Ferreira Queiroz e Ana M. Portela

das secções A a D. Já no início do século xx, os monumentos de maior dimen­são passaram a ser colocados ao longo das ruas das secções A, B, C e D.

Como já se referiu , as secções inferiores são as mais antigas , não só por pos­suírem a capela mortuária, mas também por aí se situarem os monumentosmais antigos (placas tumulares ainda da primeira metade do século XIX), sendoa organização do espaço mais "primária".

Falta apenas referir o facto curioso das partes superior e inferior do cemitériopossuírem ambas um portal monumental, em estilos completamente diferentese virados para a mesma estrada, facto bastante invulgar em outros cemitérios.Muitos cemitérios possuem dois portais. Porém , na sua grande maioria são vira­dos para direcções diferentes, procurando servir os vários caminhos de acesso,sendo, normalmente, de épocas semelhantes. Nos casos em que um é mais anti­go do que outro, um deles é usualmente mais monumental, facto que não é evi­dente em Portalegre.

A tipologia do portal (e mesmo do portãode ferro) que dá para a divisão inferior doCemitério de Portalegre é claramente maisantiga [fig. 2]. Aliás, o portal da divisão supe­rior está datado de 1878, no portão. Se estadivisão era já usada regularmente desde - pelomenos - a epidemia de 1855 , isto poderá sig­nificar que só quando ela começou a serclaramente a preferida para a compra de ter­renos para jazigo, com um volume muitomaior de inumações do que a acanhadadivisão inferior, se optou por lhe construirum portal próprio. Este facilitaria os féretros ,que não necessitavam mais de dar curvasdesnecessárias e subir escadas para chegar aolocal de sepultura.

Esta hipótese ganha mais consistência sepensarmos que as duas primeiras capelas con­struídas na divisão superior (quando nemsequer esta estava definitivamente arruada) foram colocadas obliquamente nosdois cantos do muro nascente, viradas para a escadaria de acesso à divisão infe­rior. Se existisse já entrada própria para o cemitério de cima, não teriam sidoescolhidos cantos do muro sul? Também é verdade que não temos a certeza deque o acesso entre as duas divisões fosse já na altura feito por essa escadaria(relembre-se que , entre 1860 e 1863, esta zona sofreu profundas obras) .

Parece-nos até que , em época próxima à construção do portal do cemitériosuperior, se terá aumentado também o terreno que lhe ficava ao fundo (a sul:

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o Cemitério de Portalegre no século XIX

secções E e F), o que fez com que a capela de Maria José Larcher deixasse deestar exactamente no canto sudeste da divisão superior. Por outro lado, não ' sóexiste uma epígrafe coetânea da construção do portal (I878) , na escadaria deacesso ao cemitério de baixo (que indicaria terem existido obras de fundo naestrutura de acesso às várias divisões cemiteriais), como todas as construções queficam para lá da linha teórica que vai do cunhal anterior da capela mortuária atéao cunhal posterior da capela de Maria José Larcher, são posteriores à data doportal de entrada na divisão de cima. Note-se que a escadaria de acesso aocemitério de baixo terá sido feita em três fases distintas, pois existem três gru­pos de degraus, uns de mármore, outros de granito e outros de cantariareaproveitada, sendo certamente este último grupo o mais tardio (talvez referenteàs obras de 1878).No entanto, isto são apenas hipóteses, com algumas incongruências até. Porexemplo, a descrição da escolha do terreno para a capela do jazigo de ManuelFélix Monteiro (no recanto ao lado esquerdo daporta d'entrada emfrenteda capel­la queerigiu DonaMariaJosé Larcber) pode sugerir que já existisse a actual entra­da do cemitério superior (embora o lado esquerdo referido também se pudesseaplicar à escadaria de entrada do cemitério superior pelo cemitério inferior)",

Monumentos relevantes no Cemitério de Portalegre

Para completar este apontamento sobre a história e o valor arnsnco doCemitério de Portalegre, há que descrever sucintamente alguns dos seus maisrelevantes ou curiosos monumentos, que datem ainda do século XIX, ou seja, daépoca romântica>,

As capelas monumentais

Como monumento mais interessante em todo o cemitério temos, desdelogo, a capela erigida em memória do Comendador Manuel Andrade e Sousa(importante negociante de Portalegre, administrador da Fábrica Real de Lanifí-

4 Note-se que, perante as dificuldades na consulta da documentação histórica municipal, bemcomo a escassezde dados das actas e a própria limitação de tempo para a realização do estudo ,nem todos os livros de actas foram consultados. Eventualmente surgirão importantes dadosnovos sobre este assunto , no futuro .

5 Na versão integral deste estudo poderá ser encontrada uma inventariação mais completa, con­tendo também dados biográficos sobre alguns dos portalegrenses mais ilustres com jazigosneste cemitério .

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J. F.co Ferreira Oueiroz e Ana M . Portela

cios), pela sua mulher, Maria José Larcher. Trata-se da capela n.? 218 da secçãoF [fig. 3]. É curiosa a mistura de influências nesta capela de dimensões anor­malmente grandes, que a torna uma construção funerária única no país. A estru­tura é de alvenaria e reboco, com pintura a ocre nos cunhais e cornijas, como setratasse de uma casa popular alente­jana. Por outro lado, as duas pequenasalas que ressaltam dos paramentos late­rais, não sendo muito comuns na artefunerár ia portuguesa, denotam conhe­cimento dos modelos internacionais dearte funerária. Curiosamente, o rebocodestes dois corpos imita a cantaria dogranito. A placa em mármore comepitáfio e a caveira e tíbias no tímpanodo frontão são também elementosmenos regionais, embora o seu enqua­dramento não esteja de acordo com aestética fúnebre mais internacional, queLisboa espelhou e II exportou II para asprovíncias. O portão em chapa de Fig. 3

ferro, com uma cruz de ferro fundidoaplicada em cada batente, a definir duas minúsculas aberturas para o interior, éuma solução típica da arte funerária lisboeta da época de construção da capela.A notar o gradeamento exterior, com malheiro de lanças verticais, estruturaentão também comum em jazigos dos cemitérios de Lisboa. Como já se referiu ,esta capela terá sido erigida em 1858. O facto de ter sido a primeira capela pen­sada para este cemitério torna-a ainda um monumento mais relevante nopanorama funerár io nacional , sobretudo porque na época em que foi construí­da duvidamos que existisse já algum jazigo em forma de capela em outroscemitérios alentejanos.

Em posição simétrica a esta capela, foi - pouco tempo depois - construídauma outra, também monumental: a de Manuel Félix Monteiro, cujo terrenofora adquirido em Março de 1859 . Actualmente, esta capela está bastantedescaracterizada''. Porém, julgamos que teria sido uma construção em alvenar­ia, com decoração muito próxima à arquitectura tradicional alentejana, talcomo a capela de Manuel Andrade e Sousa e mesmo a própria capela mortuária.

6 O jazigo-capela em questão pertence hoje à família Fino.

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o Cemitério de Porla/eSTe no século XIX

Julgamos até que tenha havido um construtor ou desenhador comum nestesdois jazigos-capela e na capela mortuária, tais são as semelhanças.

Como já se referiu, os documentos indiciam que - nesta mesma época ­Honório Fiel de Lima também mandou construir uma grande capela. Noentanto, não a localizamos no cemitério (o que é estranho, dado o tamanho doterreno adquirido). De igual modo, a capela que terá talvez sido construída emmeados de 1859 pelos irmãos Larcher e seus sobrinhos, também não foi locali­zada no cemitério. Trata-se de um mistério que não pudemos resolver. Nummapa baseado em fotografia aérea, de 1929, que inclui uma vista do cemitério",só se vislumbram na divisão superior as duas capelas monumentais que hojeexistem e já foram referidas, para além de outras mais pequenas''.

Independentemente de terem ou não sido construídas todas estas quattograndiosas capelas, temos que notar o facto de, no espaço de apenas três anos,os notáveis da cidade (especialmente os ligados às mais importantes fábricas delanifícios) terem procurado, quase que numa muda competição, erigir a capelamais monumental do cemitério e assim ostentar o seu poder económico.

As placas tumulares

Aquando da construção das capelas monumentais atrás referidas, os únicosmonumentos que existiriam no Cemitério de Portalegre seriam meras placasfunerárias , ou talvez um ou outro pequeno mausoléu. A tradição das placastumulares em mármore era muito cara na cidade. Seria de esperar que, aquan­do da criação do cemitério público de Portalegre, este tipo de jazigo, tão vulgaraté então, passasse a ser construído ao ar livre, já que os enterramentos nas igre­jas estavam proibidos. Porém, é curioso que em muitos locais do país isto nãosucedeu, tendo os primeiros monumentos nos cemitérios sido construções tipo­logicamente adaptadas a um novo tipo de espaço fúnebre,

Porquê em Portalegre este tão grande predomínio de jazigos com placastumulares? Poderíamos falar numa dificuldade de adaptação social, que trans­feriu formas anteriores para os novos campos santos. Porém, estas formas dejazigo persistiram ao longo de todo o século XIX, no Cemitério de Portalegre.

As mais antigas placas situam-se no cemitério inferior. Por exemplo, a n.v196 da secção G refere: Aqvi gas [sic] o dotor [oao Pedro Roxo faleceo em 14 deJv/ho de 1835. Calculamos que esta placa tenha sido construída pouco tempo

- ~Iapa existente na sala de leitura do Arquivo Distrital de Portalegre.

Eriste hoje uma out ra capela de grandes dimensões no Cem itério de Portalegre, mas datada jáde meados do século XX. .

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depois do falecimento. Aliás, é muito semelhante à n.o 204, também na secçãoG, datada de 1836. Esta placa foi colocada na sepultura de Margarida Tomásiade Sousa, mulher de Antonio Larcher". Recorde-se que a datação desta últimaplaca tumular é anterior à abertura do cemitério (janeiro de 1837) , o quepoderá sugerir que esta (tal como a primeira) tivessesido trazida de alguma igre­ja (facto não tão desprezável quanto isso, já que os cemitérios recém-construí­dos geravam resistência à maioria da população e nenhuma lei obrigava àremoção de jazigos existentes nas igrejas, uma vez lá construídos).

Terão sido estas placas tumulares trazidas, por exemplo, da Igreja da Madalena,na época da sua demolição (justificando-se, pois, a sua existência actual nocemitério)? Só investigações posteriores o poderão esclarecer.

Outra placa tumular que nos parece das mais antigas do cemitério (talvezmesmo a primeira a ser ali construída de raiz, uma vez que até se encontra orie» ~

tada em sentido contrário às restantes) é a n.? 198 da secção G do cemitérioinferior. Terá sido colocada em memória de Maria Genoveva Benedita deAlmeida Gaza (falecida em 1851). Curiosamente, o terreno foi adquirido peloentão Governador Civil, Francisco José Agnelo, que seria, por inerência defunções, o homem a quem mais competia zelar para que o cemitério fosse omelhor possível.

As placas tumulares posteriores começaram também a receber pequenas este­las à cabeceira. A colocação de cabeceiras denota uma clara adaptação de umaforma de jazigo de interior de igrejas a um espaço aberto. Imaginemos que todasas placas tumulares nas igrejas possuíam cabeceiras. Não seria possívela circulaçãodos crentes! Só nos novos cemitérios este tipo de monumento seria admissível.Em contrapartida, num cemitério ao ar livre estas placas tumulares tomaram-seespaços vulneráveis e facilimente pisados, facto que nas igrejas era tolerado) masque a mentalidade do século XIX e a nova realidade nos enterramentos tornouindecente. Assim, os gradeamentos também foram surgindo, para complemen­tar as placas tumulares, como no exemplo dado [fig. 4]. Trata-se do jazigo n.o

214 , também na secção G (cemitério inferior) . Pertenceu a Maria Ana CaldeiraCastelo Branco e seus filhos. A plasticidade do gradeamento, com 4 colunasunidas por elos em ferro fundido, contrasta com o antidecorativismo da placatumular, apenas com o esboço de uma cruz.

9 António Larcher foi um dos sócios da fábrica pequena, após a morte do mestre José Larcher.Foi também vereador da Câmara Municipal de Portalegre, fiscal do concelho, recebedor dopagamento das amas dos expostos, etc.

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o Cemitério de Portalegre no século XIX

No cemitério superior, especialmente nas secções E e F, acabou por ser cons­truída a maior parte das placas tumulares, já numa fase mais tardia. Um exem­

plo: o jazigo n.v 145, secção E,

construído em memória de Joãoda Fonseca Coutinho (falecidoem 1881). Erigiu-lhe este monu­mento o abastado Álvaro daFonseca Coutinho. A famíliaFonseca Coutinho tinha grandesligações a Lisboa, pelo que secompreende o recurso a umcanteiro da capital para cons­truir a placa (que, apesar de

Fig. 4 tudo, segue uma moda local,sendo até bastante pobre para o

que o canteiro Cristiano Augusto Teixeira da Silva estaria habituado a fazer).Podiam ser referenciadas muitas outras placas semelhantes. Damos apenas

mais exemplos de placas tumulares com flores como iconografia fúnebre (nestecaso, saudades e perpétuas, associação muito utilizada nos cemitérios de Lisboa).Por exemplo , o jazigo n.? 169 (secção E), da jovem Maria Ana de CarvalhoCordeiro e o n.o 151 (secção F), do menor Luís. Curiosa a circunstância de setratar de sepulturas de dois menores.

As placas tumulares perduraram durante todo o século XIX, parecendodefinir um padrão para a sepultura perpétua individual (em contraste com ojazigo de família). Encontramos também vários estrangeiros neste tipo de sepul­tura, cuja tipologia nos parece claramente regional. Não deixa de ser curiosoeste facto. Note-se que havia então muitos estrangeiros em posição de relevo nacidade, sobretudo porque trouxeram know how à indústria portalegrense.

Mas o tipo de jazigo - semelhante à placa tumular - mais claramente especí­fico desta região é o revestimento a tijoleira, semelhante a tantos soalhos decasas alentejanas.Veja-se o jazigo n.o

168, da secção E[fig. 5], de Pedro

Fig . 5

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Fig. 6

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Manuel Coelho Machado. Por vezes, estes jazigos levaram também pequenasplacas de mármore com um epitáfio. Em alguns casos, a disposição da tijoleiraprocurou desenhar uma cruz.

Os materiais cerâmicos foram também muito utilizados como estrutura dascaixas dos jazigos. Porém, o mais interessante conjunto cerâmico do Cemitériode Portalegre encontra-se na platibanda e respectivos vasos da escadaria de aces­so ao cemitério de baixo.

Os mausoléus

o primitivo regulamento do cemitério (em vigor até finais da década de1850) contemplava apenas taxas para a compra de terrenos destinados a jazigosrasos ou com emblema efigura. Por esta expressão pode entender-se uma peque­na cruz, estela ou placa à cabeceira do jazigo. Porém, não só os notáveis dePortalegre desejaram erigir capelas monumentais (e fizeram-no), como osmenos notáveis, mas com algum dinheiro (ou os notáveis mais discretos), dese­jaram erigir mausoléus de alguma dimensão.

Os primeiros terão sido construídos no cemitério inferior e talvez tenhamsido os seguintes:

• o mausoléu n.v 205 , à memória de Antónia Benedita Grande (falecida em1849) , mulher de João Larcher.

• o mausoléu n.? 201 [fig. 6], construído em memória de Lino Larcher (1853­-1863) e onde foi também inumada a sua irmã Maria Epifânia Larcher.

Ambos foram mandados construir pelosLarcher, o que não deixa de ser interessante ereforça claramente o papel que as famíliasligadas às grandes fábricas da cidade tiveram ..no pioneirismo da construção de algunsmonumentos. O monumento a Lino Larcherparece-se, aliás, com um modelo francês ecom algumas cópias do mesmo modelo exis­tentes no Cemitério do Alto de S. João,sendo o gradeamento (em ferro fundido)típico da fábrica de Fundição de AntoineDurenne (uma das mais importantes fábricasde fundição na França do século XIX). Estemodelo de gradeamento consta devários fachos invertidos unidospor festões e foi muito utilizado

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o Cemitério de Portalegre no século XIX

Fig . 8

Fig. 7

em Portugal (existem mais casos posteriores no Cemitério de Portalegre e até node Castelo de Vide), podendo mesmo ser encontrado em Espanha.

Datado de 1868, encontramostambém um dos primeiros mau­soléus construídos no Cemitériode Portalegre, este, porém, bemmais sugestivo (n.> 213, cemitérioinferior) . Foi igualmente construí­do à maneira francesa, com ogradeamento em ferro fundido anão envolver totalmente o jazigo,mas apenas a proteger o espaço dojazigo definido pelo mausoléu, àcabeceira [fig. 7]. A simbologia dastrês ovelhas, em mármore (umamaior e duas mais pequenas) , re­

presenta claramente os defuntos para quem foi erigido o monumento: duasmeninas e um menino de tenra idade, bem como o primogénito PedroMouzinho de Albuquerque (falecido com 21 anos). Eram todos filhos de JoãoMouzinho de Albuquerque (falecido em 1881) e deLuísa Paula Mouzinho de Albuquerque (falecida em1907).

Com a forma de estela para rematar (à cabeceira)placas tumulares, encontramos também alguns casosno Cemitério de Portalegre. O jazigo n.o 131 dasecção F, construído pelo canteiro lisboeta PedroAntunes dos Santos, é um exemplo. Trata-se domonumento mandado erigir pela Sociedade Filar­mónica Eurerpe a José Maria Mourato (falecido em1876).

Depois, temos outros tipos de mausoléus relati­vamente comuns em cemitérios portugueses, comoo do n.o 106 [fig. 8]. Esta coluna, apoiada numpedestal e encimada por uma uma cinerária, saiu daoficina de André Domingos Gonçalves (na Cerca deS.ro António, em Estremoz) . Mandou erigir Francis­co Lopes de Azevedo Coelho de Barros CasteloBranco, em 1885.

Veja-se agora um jazigo com cabeceira (n .v 198da secção D), de Pedro Lima Bragança (falecido em

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1891) [fig. 9]. Otipo de cabeceira pode ser encontrado em vários outros cemitériosda região de Portalegre. A notar os vasos de cerâmica que rematam o gradea­

mento nos cantoneiros. Se foi comumcolocar pequenos vasos, urnas ou pinhasem ferro nestes locais dos gradeamentos,em Portalegre encontramos esta varianteexagerada de colocar vasos bem maiores epor vezes com a função de encerrar plantasnaturais.

Fig . 9

Fig . 10

Por fim, mais dois exemplos de mausoléus.O primeiro é o jazigo n.v 143, da secção E [fig. 10],

construído com mármore da Cerca de S.ro António, emEstremoz. Trata-se de um caso de sucesso tipológico noscemitérios da região de Portalegre. Não sabemos qual omais antigo exemplar deste tipo de cabeceira fúnebre naregião, mas este deverá ser dos mais antigos (talvez do finalda década de 1880), já que a moda perdurou sobretudo naviragem do século XIX para o século XX. Foi construído emmemória de Francisco António Rodrigues de Gusmão(falecido em 1888).

O segundo exemplo é o do túmulo do Padre Justino José de Almeida Pantão(falecido em 1867), que foi construído por André Domingos Gonçalves, emLisboa (n." 165 , secção F) [fig. 11]. Este sacer­dote exercia na paroquia da Sé, à época dosprimeiros enterramentos no cemitério. Foi ele,aliás, quem redigiu o assento do pr imeiro cadáverdesta paróquia a ser enterrado no cemitériopúblico.

A genera lização das capelas

Após a construção das capelas monumentais,entre 1857/58, outras pessoas optaram por erigireste tipo de monumento, embora numa escalamais pequena. Não só porque nãoseriam tão abastadas, como também Fig. 11

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o Cemitério de Portalegre no século XIX

porque estariam mais a par da moda construtiva que era ditada por Lisboa.Assim , estas novas capelas deixaram de ser em alvenaria, para ser em mármore,dos arredores de Lisbo a, mas também do eixo Esrremoz-Borba-Vfla Viçosa.Curiosamente, o bom mármore alentejano começou a ser utilizado massiva­mente nos monumentos deste cemitério sempre depois das primeiras construçõesem lioz da região de Lisboa. Este fenómeno explica-se por vários factores:

• Normalm ente, os primeiros monumentos dos cemitérios eram erigidos porparte de pessoas muito abastadas, com conhecimento dos cemitérios deLisboa, e que optavam por encomendar os jazigos na capital, procurandomo strar que estavam mais "modernos", mais cosmopolitas que os restanteshabitantes da província.

• Numa fase recuada, o mármore alentejano era sobretudo uti lizado pelos can ­teiros locais apenas para cons truções trad icionais, já que não existia mercadono Alentejo que justificasse a especialização de canteiros alentejanos no me r­cado da arte funerária. Isso só sucedeu mais ou menos a partir da década de1880. Aliás , basta ver que as placas tumulares mais antigas no Cemitério dePort alegre são em mármore alentejano e foram certamente feitas por artistasda região. Estes lim itavam-se a glosar um tipo de construção a que estavamhabituados a construir e a ver no chão das igrejas. Também por aí se explicaa inclusão de placas de mármore alentejano para inscrições na capela mor­tuária e na capela de Manuel Andrade e Sousa, que são precisamente as edi ­ficações mais genuinamente alentejanas do Cemitério de Portalegre.

Comecemos pela capela da já referida fam ília Araújo juzarte (n .o 102, secçãoB), uma das mai s importantes famíl ias de Portalegre [fig. 12] . Provavelmente, aideia in icial teria sido a construção de uma capela mai s monumental, commateriais da região (à semelhança da de ManuelAndrade e Sousa), como se pode verificar pelaquantidade de terreno que não foi aproveitada.Porém, essa ideia não terá sido concretizada e,anos ma is tarde, o fascínio pelas estéticas maiscosmopolitas dos cemitérios de Lisboa acaba­ram por resultar na encomenda da edificação aum can teiro da capital: Pedro Antunes dosSantos. Como só conhecemos actividade des tecanteiro desde meados da década de 188 0, etendo também em conta a tipologia da capela,terá sido erigida precisamente nessa época.A notar, na fachada, as duas cruzesde Malta. Fig. 12

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Veja-se também a capela n.v 97 da secção B [fig. 13], feita na oficina deAndré Domingos Gonçalves, na Rua de S. M iguel a s.raIsabel , n.v 22 a 48, emLisboa. Esta capela foi mandada erigir por Josefa Gonzalez Perez de Me nd onça,mulher do Conde de Avilez (falecido em 1881). A capela está construída numalinguagem fúnebre tipicamente lisboeta, em todos os aspectos.

Como se pode constatar, a estética lisboetacomeçou a dominar a construç ão de capelasneste cemitério e foi-se acentuando à medida quese aproximava o século xx, mesmo com o cadavez maior número de capelas con struídas po rcanteiros locais em mármore de Estremoz,porque estes imitavam o que era moda emLisboa. As capelas que se podem ver na imagem[fig. 14] são disso exemplo. Em primeiro plano , acapela n.? 110 (secção B), construída por Augus­to Desirat, no Largo Serpa Pinto, em Portalegre.Pertencia a Francisco Xavier juzarte de Góis. Em

Fig . 13

Fig . 14

segundo plano, a capela n.° 112, também cons­truída por Augusto Desirat e pertencente à famíliade Manuel R. de Andrade Castelo Branco.

Que encontramos de mais especificamenteregional neste conjunto de duas capelas? Todasseguem a tipologia em voga na capital: estiliza­ção e repetição do mesmo esquema, até nospadrões escolhidos para os portões e gradeamen­tos exteriores, em ferro fundido. Na fachada dascapelas e na orla do portão, vários locais para acolocação dos epitáfios dos inumados. Ao cen­tro , local para colocar o nome da família repre­sentada no monumento, tendo de cada lado duas cabeças de anjo. Tudo ele­mentos construtivos da arte funerária de Lisboa, mas em mármore de Estremoze construídos em Portalegre por um canteiro vindo de Lisboa! Como especifi­cidade, refiram-se apenas (e novamente) os desproporcionados vasos no rematedo gradeamento da primeira capela referenciada.

Avançando já para os primeiros anos do século xx, o processo agudiza-se.A capela n.? 221 [fig. 15], da autoria de Augusto Desirat é o exemplo máximo

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o C-itério de Portalegre no século XIX

Fig. 15

Outros monumentos interessantes

da simplificação que foi acompanhando a estandardização da arte funerária lis­boeta em finais do século XIX. Foi muito forte em Portalegre a influência destesvários tipos de capelas estereotipadas da artefunerária lisboeta de finais do século XIX. De talforma que continuaram a ser construídas cópias noCemitério de Portalegre até meados da década de1960.

A capela n.? 115 da secção B [fig. 16], emboratambém de finais do século XIX, não é tãoestereotipada. Foi erigida pelas filhas de José LapaSénior (falecido em 1889). A capela não possui oshabituais locais para colocação de epitáfios. O fron­tão tem mais plasticidade e possui dois anjos decada lado , sendo a cruz, ao centro, bastante singelapara o conjunto. Lateralmente, existe um jogo de

contraste entre o mármore branco e o rosa,ambos de Estremoz (até porque foi construí­da por André Domingos Gonçalves, na Cercade s.ro António). O gradeamento exterior,apesar de ser fundido, não é comum eenquadra-se em pilares de mármore remata­dos por vasos (mu ito semelhantes aos exis­tentes no jazigo dos Robinson, como se verá).O portão da capela também é poucocomum, não só na sua base (em que os ele­mentos fundidos são, de certo modo, origi­nais) com também no seu corpo e bandeira,de ferro forjado. Note-se que, mesmo nasregiões do país em que se utilizou mais oferro forjado para portões de jazigos-capela,

Fig . 16 o ferro fundido já era nesta época o mais uti-lizado, ou então os portões em ferro forjado construidos eram iguais a tantosoutros, o que não sucede nesta capela.

Um outro jazigo que nos chamou a atenção e que é absolutamente excep­cional, a nível nacional, é o n.? 73 da secçãoA [fig. 17]. Não se trata de um jazigoerudito. Porém, a conjugação de vários elementos, em parte já bem conhecidos

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Fig. 18

Fig 17

nos cemitérios de Lisboa, é que é fora do comum. O jazigo foi construído paraJosé Joaquim Tapadinha. É composto por um anjo em mármore, que parece ter

sido retirado de um qualquer frontão , já queo pedestal em que assenta é descendente(aliás, o anjo é em tudo semelhante aos que sesituam acima do frontão da capela anterior­mente referenciada). Porém, estranhamente,existe um outro pedestal por debaixo, quepossui declive na direcção contrária! Mas aestranheza deste jazigo não se fica por aqui.O gradeamento em ferro fundido repete ummodelo francês (que surge no catálogo dafundição de Antoine Durenne) e que emPortugal se encontra do Minho ao Algarve,sobretudo em sacadas . No entanto, a cruz que

encima o espaço do jazigo, apoiada em quatro varões tipo balaústre (que tive­ram até de ser unidos, já que o modelo fora concebidopara comprimentos mais pequenos), é um caso muitoraro em Portugal. Os poucos casos parecidos que co­nhecemos, em mais de 250 cemitérios já visitados,contam-se pelos dedos de uma mão e não se parecemsequer com este. O ferro ganha aqui um prepon­derância excepcional, só possível com a generalizaçãodo ferro fundido nos finais do século XIX. Porém,outro elemento nos surge e este com muito maiororiginalidade: o hábito de colocar vasos despropor­cionados a rematar os cantoneiros do gradeamento foiaqui levado ao extremo de ter sido também colocadauma planta artificial, em folha de metal, imitando umananás!

Outro jazigo muito curioso é o n.o 77 da secção A[fig. 18] . Trata-se de uma placa tumular em mármorecom um oratório em chapa de ferro à cabeceira, apoia­do numa laje de granito. Foi mandado fazer para Ritade Jesus (falecida em 1886) pela sua irmã, Maria de Jesus. E já que referimos ogranito, devemos realçar o facto deste material pétreo, tão abundante junto aPortalegre, praticamente não existir no cemitério.

Cabe aqui um lugar de destaque para os jazigos embutidos nos muros docemitério inferior, alguns com interessantes motivos de ornato. Tamb ém nasalas da capela mortuária foram, em finais do século XIX, colocados jazigos

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o Cemitério de Portalegre no século XIX

embutidos na parede. Eis um exemplo: o jazigo n.? 52, de Francisco e AntónioChichorro [fig. 19]. Foi construído por Augusto Desirat. A solução é interes­sante, com um jogo de duas tonalidades de mármore a imitar uma portada dejanela.

E que dizer do jazigo n.v 100 da secção D [fig. 20], feito por AndréDomingos Gonçalves, na Cerca de S.to António de Estremoz? É interessante aforma medievalista de caste- lo, com pedra de armas,embora haja contraste com a alegoria que remata o jazigo.O terreno para este jazigo foi comprado por Manuel doCarmo Peixeiro e pelo Capi- tão jonet.

Esta forma de monu- mento viria a ser copiada noCemitério de Portalegre, bastantes anos mais tarde,num outro jazigo (o n.? 207 da divisão superior). Porém,neste caso, a escolha do tipo de monumento deve ter rela-ção com o nome do finado: José Maria Castelo (falecidoem 1932).

Não podemos também deixar de referir outro aspec-to curioso da arte funerária do Cemitério de Portalegre eque se pode encontrar em outras zonas do Alentejo: oselementos iconográficos liga- dos à actividade agrícola(porcos, cavalos, molhos de Fig. 19 cereal, charruas, enxadas,foices e muitas mais alfaias agrícolas). Estes podem serencontrados sobretudo nos frontões de capelas já da primeira metade do sécu­

lo XX, em linguagem estereotipada de origem lis­boeta [fig. 21].

Para o final desta breve caracterização da artefunerária oitocentista no Cemitério de Portalegredeixamos propositadamente o jazigo da família

Fig. 20 Fig. 21

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Robinson, que é o n.? 180 da secção F [fig. 22]. Foi construído por AndréDomingos Gonçalves, na Cerca de Sto. António em Estremoz. Talvez a men­talidade mais discreta e a habituação amonumentos funerários mais pequenos(dos cemitérios ingleses) possa explicarporque um homem tão abastado e con­hecido na cidade viria a ficar num jazigomodesto, quase escondido pela grandecapela de Manuel Andrade e Sousa.

Conclusão

Tal como a cidade "dos vivos", estapequena cidade que é o Cemitério de Por­talegre também possui o seu urbanismo e asua arquitectura próprias. Porém , commaior ou menor mérito, esta necrópole é amemória de Portalegre de uma época jábem recuada e, por essa razão, necessita deser melhor estudado. Tal como sucede coma cidade "dos vivos", também o Cemitériode Portalegre possui o equivalente à zona Fig. 22

histórica e aos edifícios de grande importân-cia histórico-artística. Já é tempo de proteger estas memórias e deixar de conce­ber os nossos cemitérios históricos como meros locais de enterramento decadáveres.

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