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LEANDRO RAMOS-GONÇALVES Mephisto Sobre a Alienação, Paixão e Desejo na Modernidade Monografia de Graduação São Paulo, 2010 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Faculdade de Ciências Sociais

Mephisto · 2014-03-26 · homens súditos no reino do efêmero, ... e se finda rapidamente ... tem certeza de que a gana que consome seu espírito é insaciável e jamais triunfaria

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LEANDRO RAMOS-GONÇALVES

Mephisto Sobre a Alienação, Paixão e Desejo na Modernidade

Monografia de Graduação

São Paulo, 2010

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Faculdade de Ciências Sociais

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Resumo

Mais que um período histórico, mais que uma sociedade

específica, Modernidade é todo um ambiente. Repleta de contradições,

ela se rege pela lógica da mudança constante e ininterrupta, agindo

dialeticamente para destituir o velho e instituir o novo, tornando os

homens súditos no reino do efêmero, escravos da própria tirania.

Surge Mephisto como o condutor da aventura; aquele que torna os

valores e as relações tão fracos que se dissolvem e se perdem antes

mesmo de se solidificar. O presente trabalho se presta a encontrar suas

causas eficiente e final, definir sua forma e matéria, bem como narrar

como se deu seu movimento ao longo dos séculos, fazendo uso da

alegoria de Goethe: o Fausto

Palavras-Chave: Mefistófeles, Modernidade; Alienação; Paixão; Desejo.

Índice

Prólogo................................................................................................... 5

Introdução............................................................................................. 9

Parte I - Do Reino das Trevas

Capítulo I............................................................................................... 12

Capítulo II.............................................................................................. 19

Capítulo III............................................................................................ 29

Capítulo III............................................................................................ 35

Capítulo IV............................................................................................ 44

Parte II - O Vento das Transformações: A Consolidação de uma Era

Revolucionária

Capítulo V.............................................................................................. 45

Capítulo VI............................................................................................ 54

Capítulo VII........................................................................................... 60

Capítulo VIII......................................................................................... 66

Capítulo IX............................................................................................ 74

Parte III - Nos Braços do Demônio: A Aventura Mefistofélica do

Homem

Capítulo X.............................................................................................. 81

Capítulo XI............................................................................................ 89

Capítulo XII........................................................................................... 96

Capítulo XIII......................................................................................... 103

Referências Bibliográficas................................................................... 112

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LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO

1

Prólogo Eu sou Ele, Aquele que Não Nasceu

Ao cair do luar, dissipados os espíritos malignos – invocados a

sombra de um mundo assolado pelo desconhecido –, percebe o sábio

Doutor Fausto que aquilo que procurava com tanta avidez está mais

próximo do que imaginara. Quem poderia supor que um animal

inferior, de baixa casta evolutiva, sempre subjugado ao capricho da

vontade humana, abrigado sob a bandeira do desdém e da compaixão,

conservaria a essência de uma era? Ora, não poderia ser diferente:

Fausto assiste a mutação do cão completamente estarrecido e

impressionado; sente o medo correr desenfreado por suas veias,

alimentando o apetite insaciável de um coração tomado pelo

desespero. No fim, assusta-se Fausto mais com sua falha, do que com a

presença do misterioso visitante. A mente do nobre doutor sofre

assolada pelo fantasma da dúvida: esteve o demônio presente

enquanto fera, escondido na névoa da irrelevância desde sempre, ou,

aquilo que invocou o diabrete fora a ordem expressa exercida em

função de seus velhos hábitos? Desde o início desconfiara que magia

houvesse de se encontrar na besta, mas, deixou-se levar por sua

aparência e seus bons truques – segundo Wagner, tão bom cão era

digno de ser animal de tão bom sábio... Ah como a vaidade é perigosa

– deve pensar o doutor; sem dúvida, pecado terrível... Como pode o

brilhante Fausto deixar-se levar por algo tão desprezível? Logo ele,

aquele que só o amago das coisas interessa, e a aparência não lhe causa

nada, senão tédio... Cair do céu não deve ser tão duro quanto

sobreviver ao impacto... Sofre Fausto.

Seja como for, sabia o nobre homem que não se volta ao

passado, e remorsos antigos não trariam nenhuma ajuda contra

aflições modernas; era preciso uma solução presente, urgente. Seu

coração clamava pelo conhecimento da essência daquilo com que

lidava. Não obstante, Fausto mantém-se firme, põe-se a invocar os

poderes sagrado, questionando a corrupta forma. Afinal, não haveria

de ser da natureza do Blasfemo, inimigo dos Céus, parecer o que não é,

“uma vez que a aparência subjuga a verdade, e é senhora da

felicidade”1 ? Definitivamente, é para este lado que se volta por

completo o Pai da mentira, pois desta arte é mestre. Fausto estava

seguro quanto a isso. E, sem hesitar, dissimuladamente, impetuoso e

altivo, conjura a magia arcana, dominando e prendendo a estranha

criatura, forçando-a a manifestar sua verdadeira face. Agora, cercado

pelo feitiço, perdido na fumaça, o cão negro infla e cresce

vertiginosamente, de maneira colossal; eis que, de trás do fogão,

sorrateira e repentinamente, à medida que o enxofre se dissipa, a besta,

agora transfigurada em um jovem estudante, vem para diante dos

olhos sérios de Fausto – espectador de honra do movimento da

história.

De modo arrogante, o viandante escolar reclama do imenso

estardalhaço feito pela gritaria do perspicaz alquimista. A presença do

dócil menino, de tom satânico, e desenvoltura sarcástica, transmite ar

de inocência, movimenta a incredulidade do resoluto homem, que

apenas ri, manifestando seu desdém ao parecer-ser. Ora, se é preciso

cuidado para distinguir, pois se os bons vêm como ovelhas em meio

aos lobos, não haveria de ser o contrario verdadeiro também? Fausto

não se haveria de se deixar vencer novamente, não desta maneira.

Com agressividade exclama à criatura que se apresente, sabendo que

assim poderia bem saber de suas manhas. Não obstante poderia ter

tido menos audaz resposta o perspicaz doutor:

“Quem eu sou? Parte da força,

que, empenhada no mal, o bem promove. (...)

Eu sou o espírito

que estorva sempre. E, com razão, pois tudo

quanto nasceu merece aniquilado;

portanto era melhor não ter nascido.

Meu elemento é o que chamais vós outros

Destruição, Pecado, o Mal, em suma” 2

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LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO

2

Príncipe da soberba, é no pecado que investe, é da privação que se

diverte, aquele que outrora fora considerado o mais alto e radiante

arcanjo da abóboda celestial, agora se limita à condição de ímpia ave

imunda do mais profundo Tártaro, apresentando-se ao doutor como

Mephistopheles, seu criado e servo. Ao redor do diabo todas as luzes

se apagam, num piscar de olhos todo foco de brilho toma-se em trevas

e se finda rapidamente – a aversão à luz é colossal3 –: o maior dos

lobos, na pele mais sensível e amável de cordeiro, aparece ao

obstinado cientista. Afinal, não reside na astucia a maior virtude do

diabo? Sem sombra de dúvida... Diabole virtus in lumbas est. Vive o

demônio da exploração de seu pecado favorito: a vaidade – algo que

Fausto descobre a duras penas. É nela que reside o maior combustível

a favor de sua dissimulação, simulação e emulação; artes que não

visam outra coisa, senão bem colorir a real natureza das coisas.

Subestimado desde o princípio, um simples olhar jamais diria que o

singelo estudante é o mestre do universo 4; e agora lá esta ele, como

um gênio, pronto para abrir o portal dimensional da mais incrível – e

mortal – viagem do nobre homem, aquela na qual vão se realizar todos

os seus maiores – e mais sombrios – desejos, através das suas maiores

fraquezas.

“Deixa-me entreter-te com minha arte” exclama o demônio de

maneira sórdida; e Fausto, singela e relutantemente, sente-se sem

escolha5, há o anseio, e logo vem à vitória do diabólico: ele se deixa

levar na movimentação da corja de espíritos malignos manipulados a

paixão da poderosa criatura; entrega-se e dá o primeiro passo para

uma ‘nova vida’. Mephisto pode, e vai, dar ao alquimista aquilo que

ele não tem, e seu coração sente a falta, clama e roga todas as noites:

quer Fausto a vida. É no viver, e apenas no viver, que reside a

aventura mefistofélica que irá mergulhar o avido cientista. O Espírito-

Rei da negação vai abrir caminho a Fausto – e posteriormente a todos

no mundo – do rumo desconhecido; é ele o flautista nos portões do

amanhecer, que indica a entrada de um mundo mágico de progresso,

aventura, e realização de prazeres jamais dantes visto. Basta que

Fausto queira, basta que aceite, basta que pactue, e, mediante o bem

emprego do mal, Mephistopheles pode mostrar, demonstrar, formar e

transformar tudo, num simples passe de mágica. O preço é mais do

que simples: sua alma. Deve Fausto então vender sua alma para

alcançar aquilo que tanto sonha.

Ora, o vaidoso Fausto crê que seus desejos não têm satisfação

garantida neste mundo; tem certeza de que a gana que consome seu

espírito é insaciável e jamais triunfaria o demoníaco ser, faça o que

fizer. Ninguém, nem mesmo o grande Arconte, dispondo de todos seus

recursos teria êxito. Aceita está à proposta. Começa a se pintar de preto

todas as coisas: sua rua, sua porta, as flores, as meninas com seus

vestidos de verão, seu coração. Fausto inicia a incrível e fantástica –

terrível e assustadora – aventura na modernidade.

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LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO

3

Introdução Correndo com o Diabo

O opositor declarado dos céus e tentador da humanidade, a

astuta e sórdida criatura em questão que surge diante do Doutor

Fausto é, em si, a representação metafórica – o arquétipo – mais

adequada daquilo que se conhece por Modernidade. Naturalmente, a

produção do diabólico personagem tem por espelho aquilo que vem ao

mundo como a grande novidade ao longo dos últimos séculos, e que

percorre toda a vida do autor do celebre ‘Fausto’. Afinal, dentre os que

possuem o mínimo de conhecimento a cerca do assunto, não há quem

acredite que o Magnum Opus do poeta alemão Johann Wolfgang Von

Goethe não seja a construção de toda sua vida, relatada fase a fase: a

personagem muda, como mudam os homens; a personagem forma seu

caráter, como formam os homens, e tudo pode ser percebido por uma

leitura minuciosa e atenta nos monólogos e diálogos do cientista, ao

longo das duas partes da tragédia. O Fausto é sua vida e sua vida é o

Fausto; o trabalho de uma trajetória inteira, inteiramente moderna, do

ímpeto de sua mocidade a cautela de sua velhice. Modernidade é

espectro que persegue o autor, comum a Mephistopheles; nada além

do próprio diabo, figura lendária, que lhe acompanha a compreensão

os adjetivos enigmático e misterioso, aquele que sempre causou

frouxos de temor nos homens, poderia encarnar tão bem a

Modernidade. Sem sombra de dúvidas, a obra é uma reunião do

espírito daquilo que é “viver a Modernidade”, do “andar ao lado do

demônio”.

É o Diabo a encarnação da ideia de Modernidade – tanto

quando o Dr. Fausto o é do ser humano, e neste contexto, um não

poderia existir sem o outro. A poesia de Goethe retrata um dado

momento da civilização ocidental com precisão: o acúmulo de tempo e

espaço que o demônio encarna através do acúmulo do conhecimento,

do montante de experiência, de toda história, revertida em uma era: a

Modernidade. Ela, como demônio que a luz odeia, não possui carne, é

espírito livre e rebelde, vive enquanto acumulo e difusão de costumes

e práticas, engendradas ou despertas; faz seus acordos, realiza desejos

e escraviza vontades; atua, ao mesmo tempo, local e globalmente,

promovendo, por sua vez, de maneira unida, ininterrupta e

simultânea, a destruição e a construção. O Demônio não se apega ao

tempus, mas faz uso dele; tem natureza dupla, mortal e imortal. Ao

longo dos séculos, como um Rei Midas da perdição, vai tomando todo

o espaço que tem contato, transformando tudo, corroendo a solidez,

geração por geração, como um vírus implacável na sua gana de

possuir, controlar e perecer o corpo adoecido. Torna-se, da tímida

condição de besta irrelevante, a margem da sociedade, à poderosa Era

hegemônica, senhora do destino dos mortais humano. Vem como

Princeps Huius Mundi – nas palavras sublimes do apóstolo São João – à

medida que conquista, uma após outra, as almas dos homens,

perdidos em seus pecados, sob sua tentação. Enquanto o Dr. Fausto

carrega em si a toda humanidade: angústias, prazeres, dores, ideais,

vontades, projetos, todos na mira de uma expressão de generalidade

da forma humana, nas mais variadas possibilidades de transito, o

universal da espécie na sociedade, no seu máximo desejo de ser

moderno, de abraçar o demônio a fim de concretizar a seus anseios de

depravação e grandeza, residentes nas paixões da alma, buscando

sempre o avante, e vivendo no ambiente terrível e cruel em que nada

pode ganhar caráter sólido na vida dos homens, pois, todas as coisas

perdem seu encanto muito antes de serem amadas. As flores que antes

pareciam belas e exuberantes por mais tempo, murcham e definham,

tornam-se velhas e ultrapassadas, perdem a vida na velocidade da luz,

e desaparecem derradeiramente: “tudo que é sólido desmancha no ar” 6... Não há máxima mais adequada a sua razão de ser. No fim, todo o

ambiente de Modernidade é Mephisto, bem como é Fausto todos os

homens7.

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LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO

4

Parte I

Do Reino das Trevas Ergue-se o Pandemônio Infernal

“Como explicar que na cristandade tenha sempre havido, quase desde

os tempos dos apóstolos, tantas lutas para se expulsarem uns aos

outros de seus lugares, quer por meio de guerra externa, quer por meio

de guerra civil? Tanto estrebuchar a cada pequena aspereza da própria

fortuna, e a cada pequena eminência na dos outros homens? E tanta

diversidade na maneira de correr para o mesmo alvo, a felicidade,

como se não fosse noite entre nós, ou pelo menos neblina? Estamos

portanto ainda nas trevas.”

(Thomas Hobbes)

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LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO

5

Capítulo I

O Reino dos Céus, o Princípio...

Naturalmente, a ciência, na sua máxima excelência, se presta,

em suas buscas, à investigação das causas primeiras dos fenômenos,

pois é fato que tudo nesta terra deva ter aquilo que lhe dá princípio.

Quanto a Modernidade, é de conhecimento de muitos os mais variados

fatos históricos dispersos (comércio, modernização, urbanização,

revolução, alteração político-econômico-social, etc.), os quais,

irracionalmente, vão conferindo mudanças significativas ao mundo

antigo, alterando seu contexto, permitindo, mais adiante, que o

ambiente moderno tome seu espaço. É, metaforicamente, a invocação

dos espíritos diabólicos em função das necessidades aparentes que se

seguem ao longo das mudanças. Mas, seria razoável mais precisão:

verificar qual é de facto sua causa eficiente, isto é, a ação que

desencadeia todo o processo, aquilo que traz o cão infernal a casa do

jovem necromante – tendo ciência, naturalmente, que a Modernidade é

a rompedora total do curso da história vigente, destruidora de toda

uma tradição, para ditar e escrever a sua história e a suas tradições,

fazendo o mundo a sua imagem e semelhança. Não obstante, devemos

partir então do ponto em que a dinâmica de mudanças aparece com

força, se acentua, demonstra relevância no cenário histórico e ocasiona

adiante consequências graves para a ruptura do espírito em vigor: a

saber, o movimento político que tinha como finalidade maior colocar a

Terra Santa de Jerusalém sob a soberania cristã ocidental, as gloriosas

Cruzadas8.

O movimento cruzado força uma imensa transformação na

sociedade europeia, forjando as bases para a ruptura, que doravante,

iniciaria uma nova Era. Esse fato se deu muito pela condição que vivia

a sociedade ocidental. Em meados do século XI, período histórico

denominado ‘Baixa Idade Média’, ela caracterizava-se,

sociologicamente, como uma Sociedade de Ordem Tradicional, regida

por uma matriz comum de valores, os quais se conservavam pela

tradição relevada a partir da vinda do Cristo-Rei, assegurada pela

detentora legitima do poder espiritual na terra: a Igreja Católica9;

extremamente pragmática nas ações sociais, reinava na sociedade

europeia a experiência comum e a eficácia dos fins; rudimentar em

assuntos comerciais, imperava a condição agrária; de população larga

e crescente ao passo que novas técnicas de arado e aproveitamento da

terra surgiram, aumentando a produção de alimentos; inundada por

uma longa paz, após o fim das invasões bárbaras e assentamento dos

reinos; em suma, de relativa estabilidade sócio-política. Com o

surgimento das Cruzadas, esse cenário vai, aos poucos se modificando,

até alcançar um estágio de total negação a seu princípio regente,

adquirindo caráter radical e extremo, contrariando-o, dando forma a

uma ruptura. Resta, pois, verificar a razão pela qual essa oposição se

dá empiricamente. E, para responder essa questão devemos olhar para

o ponto que é axioma da discussão: a filosofia (o modo de vida) em

vigor anterior ao fenômeno.

Como fora dito, a Igreja Católica Apostólica Romana era

senhora absoluta na questão da organização social. A ela cabia o

“monopólio” dos valores engendrados intrinsecamente nas leis de

cada localidade da Europa, os quais tomavam forma ao passo se

faziam hábito no comportamento dos homens, cotidianamente,

alcançando assim a naturalização. Seria ingenuidade supor então que

os valores humanos estariam apartados da questão religiosa. Ora, não

existe Idade Média laica. Todos os valores tinham como base a

natureza, o bem e a virtude – mesmíssimos dos antigos – somados a

carga da tradição revelada da ética católica segundo o Evangelho,

tendo por finalidade primeira se constituir como freio necessário à

tendência de uma possível conduta malévola do homem, atuando

como regramento da vida terrena em consonância com a razão. Em

suma, a lei, enquanto relação necessária entre partes, era, em essência,

aquilo que deveria “forçar” o homem a fazer o bem e fugir do mal10,

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isto é, recobrar sua verdadeira natureza, retirada com o paraíso

perdido, no momento do pecado original. Na tradição católica vigente

naquele momento, encontram-se os cristãos no neste mundo apenas

‘de passagem’. Seu fim está na transcendência, no reencontro com o

Reino do Altíssimo, na redenção em Cristo (que veio a Terra para dar a

possibilidade de salvação aos homens). Desse modo, tudo quanto é

feito na terra tem importância apenas quando tem esse fim em vistas.

A Igreja, enquanto guardiã da fé e da moral, e detentora legítima da

mediação do plano terreno com o plano espiritual, centra o mundo no

Eterno (Deus é o centro da sociedade, e não o homem... Ele criou a

sociedade, as leis são de uma maneira, as coisas são de uma

determinada maneira, e assim devem permanecer), tudo devendo ser

sólido e imutável. Para isso, segue os postulados expressos de ordem,

estática e conservação dos valores de toda a comunidade de Cristo (a

Europa Cristã) através da manutenção da tradição vigente.

Ademais, à visão vigente, o Estado se constitui então como

aquele que vai, através do império da lei, coibir o pecado, tornando-se

instrumento que cessa o mal pelo mal – na posição agostiniana da

Cidade dos Homens11. Fato que justificava a condição política da

época: descentralização e dispersão12. A Europa estava pulverizada por

diversas unidades políticas autônomas de esfera de poder e influência

reduzidíssima, tendo sempre a Igreja Católica como tribunal a que se

possa recorrer. A Santa Sé flutuava sobre todos eles, como mediadora-

chefe de todos os conflitos. Era seu o poder de aplicar o direito

(herdado da antiga Roma), e aos reis, príncipes, barões, condes, bem

como todo e qualquer tipo de senhor, cabia o dever de reconhecer e

acatar sua autoridade como palavra final na instancia de jurisdição de

direito e justiça. O alcance do poder dos soberanos restringia até onde

“iam os olhos”, e as fronteiras eram indefinidas ou naturalmente

constituídas (domínios iriam até vales, planícies, rios e etc.). Neste

momento não existia uma ideia de nação, os domínios estavam

atrelados unicamente para com seus senhores. Um homem mata e

morre a serviço da glória do domínio a que serve, seja este da Igreja

(por servidão a Santa Sé, pois o Papa era, como muitos outros, apenas

mais um príncipe neste momento, detendo todas as funções que lhe

cabia como tal), do imperador (quando do Sacro Império Romano-

Germânico), dos reis e da nobreza (constituindo obrigação de

suserania e vassalagem, na condição de súdito), mas, jamais por uma

pátria. Ir à guerra, ao combate e a violência por um domínio estava

estritamente ligado à proteção da fé, da família, dos amigos e da

comunidade, e não de uma ideia de nação.

Neste panorama começa o deslocamento e movimentação dos

europeus em direção ao Reino dos Céus. As Cruzadas enfrentam então

problemas gravíssimos nos âmbitos políticos e militares, afinal, para

que fossem eficazes e se tornassem uma realidade neste cenário, existia

a necessidade de uma logística de ação que estava longe de ser uma

realidade naquele momento. Como deficiência central podemos

destacar (1) a inexistência de um exército católico unitário, de ofício,

ordenado e liderado por lei comum, na realidade, o que se tinha era

uma verdadeira colcha de retalhos, um grande conglomerado dos

exércitos dos diversos domínios, contrariamente ao inimigo árabe,

sempre em unidade; (2) os exércitos dos reinos feudais não eram

unitários, muitos menos organizados e unificados, (3) compunham-se

da milícia real, somada a inúmeras milícias independentes, movidas

por seus próprios interesses, oriundas de vários domínios, servos de

vários senhores, (4) que estavam ou sob o julgo de comandante

provindo da nobreza feudal (o qual no mais das vezes nem possuía

experiência alguma em combates), ou de um capitão, seja mercenário

(neste caso, um oportunista que visava apenas sua própria glória) ou

do feudo (o único caso realmente adequado, pois este era sim fiel e

estrategista de ofício), ademais (5), outrora essas milícias chegavam a

ponto de serem mercenárias, emprestadas ou oportunistas (quando

uma reunião de camponeses, vilões, criminosos e oportunistas, que,

sem ofício, tomados pelo ócio, viam na guerra uma maneira de

acumular algum tipo de poder, saciar suas paixões e desejos). A

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situação não prestava condições para a empresa desejada pela

Europa13.

A dificuldade para a formação da Cruzada, como se nota, era

monstruosa. Um exemplo prático desta tragédia se tem na terceira

cruzada, denominada A Cruzada dos Reis (1189-1192)14, a qual falhou

em seu fim máximo: a retomada de Jerusalém pela cristandade, mesmo

tendo comandantes tão nobres quanto Richard I Coração de Leão

(1157-1199), Philippe II Augusto o Dieudonnê (1165-1223) e Friedrich I

Barbarossa (1122-1190), respectivamente, reis de Inglaterra e França, e

o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, os principais

soberanos da Europa naquele momento. Atendendo aos apelos do

Papa Gregório, em função da ameaça dos sarracenos, formaram seus

exércitos e partiram em direção a Jerusalém. Como resultados simples,

pode-se dizer que o primeiro lutou bravamente, e foi mais longe,

conquistou o Acre, o Chipre e Jaffa, a duras penas, com exércitos

doentes e despedaçados, mas foi obrigado a retornar sem nunca ter

pisado na Terra Santa, por conta de problema no trono; o segundo

abandonou a batalha após o assalto e tomada do Acre, retornando a

França por conta de problemas na linha de sucessão da região de

Flandres, sua condição física também não colaborou (o rei ficou

extremamente doente, caiu em febre algumas vezes e até perdeu uma

das vistas); e o terceiro, apesar de sua exímia virtude (fora homem que

conseguiu colocar o Sacro Império em posição de respeito em toda

Europa, frente ao papado e aos demais reinos), sofreu com terrível

revés da sorte, nem chegando a ir aos Estados Latinos, morrendo no

caminho, por afogamento, na Cilícia, fator que levou seus exércitos a

dispersarem, retornando as cidades do Império, agora sobre o julgo de

seu filho, ou ainda simplesmente desertando.

Se vamos atribuir a Fortuna os males impostos a essa

empreitada, devemos antes lembrar, como já nos disse Maquiavel, que

o rio da Fortuna age livre, impetuosa e violentamente onde não

encontra barragens como resistência15. A Europa lidou com algo de

natureza distinta de tudo que tinha feito até então, isso é fato.

Contudo, a situação presente impediu a seus agentes o

desenvolvimento das virtudes necessárias para a adequação de ordem

técnica, que poderiam constituir obstáculos válidos para a ação de toda

sorte das adversidades enfrentadas. Evidentemente, a ruína corre por

conta das condições: o imenso tempo de percurso da Europa ao

Oriente era percorrido por caminhos tortuosos traçados no reino da

“arte” pragmática (no sentido de conhecimento comum, fruto de

experiência vivida), logo, ditava o caminho aqueles que um dia já

estiveram lá, ou de algum modo sabiam; má disposição dos exércitos,

a falta de incentivo e equipamento, em função do clima e do relevo

(guerrear no deserto não era como guerrear nas florestas geladas);

terríveis condições de trabalho para todas as classes de “profissionais”

trabalhadores; falta de interação entre os cruzados, rivalidades

político-territoriais, inexistência de uma ordem intrínseca a cruzada;

conspirações constantes nas cortes reais; e a desunião que tinham os

cristãos entre si perto da união que tinham os pagãos entre os seus. Em

função desses problemas muitos soldados morriam, desertavam,

caiam em doença, fugiam, voltavam pra casa ou se recusavam a lutar;

ademais, os reinos não podiam preterir das milícias, muito menos de

seus soberanos ou comandante localmente, pois estavam

constantemente ameaçados internamente pelos conspiradores; e

quando iam à guerra de fato, encontravam um inimigo sagaz e feroz,

que lutava segundo uma unidade.

Contudo, naturalmente, o movimento não foi um desastre

completo, muito embora não tenha obtido êxito em seu fim máximo –

erradicar os muçulmanos do Reino de Deus –, conseguiu várias

vitórias e várias derrotas, como seria razoável de algo que durou mais

de cento e setenta e cinco anos, com nove cruzadas organizadas e

vividas por diferentes agentes. O fato é que sofreu demasiadamente.

Mas, esse sofrimento fora o responsável pela melhoria da sociedade

medieval, mediante as novas necessidades que surgiram. Em todo o

período, as transformações foram se iniciando, e perdurando as

gerações vindouras. O panorama da Europa vai mudar drasticamente.

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Capítulo II Sob o Domínio do “Mal”

As Cruzadas tiveram uma imensa importância para a evolução

histórica da Europa. Primeiramente, o incentivaram a mudança no

panorama estagnado por conta da necessidade decorrida do advento

das guerras, fator que trouxe inúmeras modernizações necessárias

para viabilizar os planos de conquistas, tais como a comunicação mais

rápida, urbanização de aldeias, melhora nas estradas, novos povoados,

o pensamento do relevo e da geografia em função do social, etc.

Ademais, criou de um canal de comunicação com o oriente

muçulmano através da constituição dos Estados Latinos e das rotas

usadas pelos peregrinos e cruzados. Por fim, fixou três importantes

alterações diretas, as quais seriam semente de uma Modernidade

futura: impulso a ao florescimento do comércio, das cidades e do

conhecimento.

A partir do contato com o estilo mais sofisticado dos

bizantinos e dos árabes do oriente, os nobres descobriram novos

produtos; a partir dos saques, espólios e também das compras diretas,

eles importavam o luxo para a Europa; esse movimento, junto da

abertura forçosa do Mediterrâneo através das derrotas árabes

despertou novas rotas do comércio e um mercado de trocas numa

Europa estritamente agraria. Desse movimento, merece destaque o

norte da Itália, nas cidades de Genova e Veneza, as quais já se

voltavam à prática do comércio antes, no entanto, as Cruzadas deram

ocasião para que elas exercessem um verdadeiro império marítimo de

compra e venda no Mediterrâneo; no norte Europeu, a região do

Flandres, produtora de tecidos de excelente qualidade, através das

cidades de Antuérpia e Bruges, controlava o comércio de peles, peixes

e madeira pelo Mar Báltico e Mar do Norte; ainda, vale destaque para

a planície do Champanha, que, abastecida por produtos do oriente e

de toda Europa pelas estradas interiores e o a rota fluvial do Rio Reno,

promovia feiras anuais de comércio, na qual os nobres e camponeses

podiam dispor de tudo que não tinham tempo para buscar ou fabricar.

(2) Junto deste movimento, veio o renascimento das cidades livres,

organizações urbanas fora do controle da nobreza feudal. Essas

cidades floresciam em função do comércio e do mercado formado nas

rotas econômicas estabelecidas, abrigando o centro de trocas e a

produção artesanal (que se desenvolveu e se estabeleceu dentro delas).

Como se localizavam nas terras a aristocracia, as cidades eram

obrigadas a pagar tributos ao senhor do domínio, fato que diminuía o

fator de rendimento de todos; em função disso, travaram-se inúmeras

disputas, por meio de guerras violentas ou acordos diplomáticos entre

os cidadãos e os nobres. (3) Outro dos fatores essenciais foi o fato dos

cruzados resgatarem os textos aristotélicos, traduzidos e comentados

pelos Árabes, desde a Idade Antiga. O pensamento aristotélico,

expressado pela escolástica tomista, vai instaurar o quesito do

progresso na sociedade tradicional europeia, reformando algumas

concepções culturais, nas esferas mais variadas esferas; aflora o

conhecimento e se reforma a escolástica. Começa então a criação e a

expansão das universidades e dos corpos docentes especialistas nas

mais variadas artes – as tradicionais universidades de Bolonha (1088),

Paris (1150) e Oxford (1167) são posteriores ao inicio do movimento

das Cruzadas. Este fator tem tamanha importância, não obstante, isso

se deve a duas consequências que ele criaria: a primeira, a Europa

Medieval alcançaria a apoteose de sua ciência, avançando a filosofia e

as demais disciplinas através e por influência, principalmente, dos

trabalhos de Santo Tomás de Aquino – mudam-se as concepções sobre

a política, a ética e a retórica, bem como as teorias epistemológicas das

ciências naturais; vem uma nova conciliação da filosofia da

antiguidade com a fé cristã, agora livre do neoplatonismo agostiniano;

a questão é de suma importância, pois, surge toda uma nova visão de

mundo. Em segundo lugar, em decorrência da necessidade de levar a

cabo as modernizações, surgem os intelectuais no cenário político; em

geral, personagens não nobres, de origem média, estudiosos e

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detentores de conhecimento especialista sobre determinados assuntos,

necessários para colocar em prática algumas das ideias, a fim de

minimizar custos, administrar recursos, e dominar toda a sorte das

adversidades que se abatia sobre a ação dos homens. Eram os homens

do pensamento, que através do conhecimento poderiam viabilizar,

planejar e organizar empreitadas que a força técnica deveria colocar

em prática.

A partir de então, começa uma profunda modernização das

instancias práticas, e o panorama começa a se alterar. Exemplos dessas

ações são as urbanizações dos burgos, a construção de estradas, o

desvio do curso de rios, o ordenamento dos exércitos militares dos

domínios, expansão da medicina e da farmácia, a arquitetura e a

engenharia, a administração política, etc. Aflora-se o conhecimento, e

vem à modernização. Nesse contexto, vale dizer que de todas as

figuras, do cenário Europeu Medieval, a que mais se beneficiou com o

novo panorama fora a do rei. Esses souberam fazer bom uso da ocasião

que se encontravam para tornarem a si mesmos protagonistas de seu

tempo. Ao passo que ocorreram as mudanças propagadas pelas

Cruzadas no curso dos séculos, os reis centralizaram os recursos

financeiros e os meios para sustentação do domínio, empregando,

através de seus novos operadores técnicos e intelectuais que pudessem

viabilizar seus planos, aumentando assim, vertiginosamente, seu

poder e influência sob seus territórios e súditos. Ademais, vai

encontrar apoio tanto nas cidades livres, quanto nos grupos

comerciantes e artesãos produtores; esses se apresentavam mais

favoráveis a uma autoridade central que pudesse garantir sua ação, e

protege-los da abusiva ação dos nobres, tanto pela força (saqueando e

tomando), como pela lei (através da cobrança de pesados impostos).

Com espaço devido e apoio necessário, os reis, que acumulavam cada

vez mais força, realizaram suas próprias cruzadas, unificando seus

reinos, destronando rivais, findando milícias extra reais, extinguindo

todos os poderes que lhes pudessem fazer frente. A nobreza, antes

detentora de um status seguro, vai, gradativamente, perdendo seu

prestígio junto ao poder político, tanto nas artes das profissões

(substituída agora por uma nova classe de profissionais, especializados

e detentores do conhecimento adequado à prática das tarefas, fruto do

impulso das ciências), quanto na ambição de governas seus próprios

súditos (o rei vai assumir este lugar). Sobre este assunto, como seria

impossível dar conta de todos os casos, faz-se razoável citar dois

exemplos, os mais notáveis, a fim de elucidar a ideia: o caso dos

ibéricos e o caso franco-saxão. Esses são, além dos mais notáveis, os

mais importantes para conhecer a Modernidade que viria doravante

tomar toda Europa, pois, em razão da ambição e do desejo dos reis o

comportamento que alterou a disposição interna das esferas da

sociedade, criando, irracionalmente, uma nova organização.

Os primeiros, movidos pela fé católica e a ambição de unificar

seus povos, empreenderam uma cruzada particular, vulgarmente

conhecida como Guerra da Reconquista, a fim de expulsar os mouros

de toda a Península Ibérica. O Condado Portucalense, fora um dos

principais expoentes dessa empresa. Território concedido a Dom

Afonso Henrique (1109-1185), pelo Rei de Castela por mérito na luta

contra as invasões dos infiéis, declarou-se independente, tornando-se

Portugal em 1139, sob a tutela de Afonso I, investindo fortemente na

guerra a partir de então. Ao longo dos anos, expandiu seu domínio,

extinguiu várias milícias árabes e desenvolveu uma estrutura

mercantil que não se interessava pela estrutura feudal da nobreza, pois

via nela um entrave para o desenvolvimento. Chegado o ano de 1383,

morre Rei Fernando I (1345-1383), criando a vacância de poder: não

havia deixado herdeiros masculinos o nobre governante, apenas uma

filha, Beatriz; esta, por sua vez, estava prometida a Juan I (1358-1390)

de Castela. As cortes veem esse matrimonio com maus olhos, pois ele

representava a ameaça da unificação de Portugal de volta a Castela,

por conseguinte, a perda da independência conquistava a duras penas.

Não havia tempo a dispor. Dá-se início a Revolução de Avis: os

exércitos portugueses, apoiados por grupos mercantis e a nobreza

interessada na independência, sob a égide de Nuno Alvares Pereira –

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general comandante –, a mando de João de Avis (1358-1433) – meio-

irmão do Rei moribundo –, destronam todos os apoiadores da princesa

Beatriz e os simpatizantes do rei Juan I. Portugal faz-se monarquia

nacional sob o cetro da Dinastia de Avis, tendo em Dom João I seu rei.

Mas, descrente que a queda da base lhe seria obstáculo, não vendo

legitimidade na monarquia recém-criada, Juan I investe contra

Portugal a fim de aumentar seu domínio. Com ajuda dos Ingleses,

conseguida por um tratado de cooperação, e a falta dos poderes

paralelos no reino que facilitassem ou apoiassem o invasor, a unidade

do trono português esmagou os exércitos castelhanos em Aljubarrota,

e consolidou sua posição. Dom João I consolida a casa de Avis,

solidifica o poder central, fortifica os exércitos e prepara todas as bases

que, doravante, lançariam Portugal nas aventuras ultramarinas,

formando um vasto e poderoso Império.

Já na Espanha a situação era mais complexa, tanto quanto

exigiu homem de maior virtude para doma-la. Dissolvida em

pequenos domínios, a luta da reconquista era particularíssima. Não

obstante, os senhores católicos obtinham êxitos constantes na expulsão

dos árabes; consolidando, a partir das guerras, frutos da junção de

vários domínios menores, o nascimento de Castela, Navarro, Leão e

Aragão como reinos independentes. A ambição interna de cada um

ainda era um obstáculo tanto para a centralização do poder, quanto

para uma possível unidade hispânica: os barões não abriam mão de

governar e oprimir por si, fator que dissolvia o poder e enfraquecia o

rei, igualando seu poder a de todos os outros Grandes. No entanto

existia a ameaça moura, que ainda pairava na península, sobretudo no

reino de Granada; todos os senhores sabiam que o inimigo era sagaz, e

que abandonados à própria sorte, cairiam frente ao poder bélico árabe.

Não era conveniente alienar seu poder em favor do rei, contudo,

parecia menos razoável perder o domínio. Esse contexto favoreceu a

criação de uma autoridade forte e centralizada, que fizesse frente ao

inimigo e garantisse a paz. Esta vem então encarnada por Fernando II,

o Católico (1452-1516) de Aragão, nas palavras do filosofo florentino

Nicolau Maquiavel:

“A este pode-se chamar, quase, príncipe novo, porque de um rei

fraco tornou-se, por fama e por glória, o primeiro rei dos

cristãos; e, se considerardes suas ações, as achareis todas

grandiosas e algumas mesmo extraordinárias. No começo de seu

reinado, assaltou Granada e esse empreendimento foi o

fundamento de seu Estado. Primeiro ele o fez isoladamente, sem

luta com outros Estados e sem receio de ser impedido de tal;

manteve ocupadas nesse empreendimento as atenções dos

barões de Castela que, pensando na guerra, não cogitavam de

inovações e ele, por esse meio, adquiria reputação e autoridade

sobre os mesmos sem que de tal se apercebessem. Pode manter

exércitos com dinheiro da Igreja e do povo e, com tão longa

campanha, estabeleceu a organização de sua milícia que, depois,

tanto o honrou. Além disto, para poder encetar maiores

empreendimentos, servindo-se sempre da religião, dedicou-se a

uma piedosa crueldade expulsando e livrando seu reino dos

marranos, ação de que não pode haver exemplo mais miserável

nem mais raro. Sob essa mesma capa, atacou a África, fez a

campanha da Itália e, ultimamente, assaltou a França; assim,

sempre fez e urdiu grandes empreendimentos, os quais em todo

o tempo mantiveram suspensos e admirados os ânimos dos

súditos, ocupados em esperar o êxito dessas guerras. Essas suas

ações nasceram umas das outras, pelo que, entre elas, não houve

tempo para que os homens pudessem agir contra ele”16

O impetuoso rei, através de um exército forte e bem estruturado toma

Navarra, anexando a Aragão; na sequência, casa-se com Isabel I (1451-

1504) de Castela (que, por casamento, já havia anexado Leão

anteriormente) unindo assim todos os reinos; com o fim da campanha

de Granada, e expulsão dos mouros de uma vez por todas da

Península Ibérica, Fernando inicia uma implacável perseguição aos

infiéis, forçando a conversão ao Catolicismo, sob pena de morte, a fim

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de unificar os costumes e as práticas de todo o reino, através da

instauração da Inquisição. Estava feita a Espanha em 1492, que, sem

perder tempo, investe na expansão marítima, por conseguinte,

princípio de um dos mais poderosos impérios que o mundo já viu

(esse ano também ficaria marcado pela descoberta da América).

Já os segundos, tiveram um curso diferente, e um tanto mais

complicado. Na Inglaterra medieval os barões detinham imenso poder

político, e liberdade para gozarem de seus prazeres e vontades sem

limitações. Esse status se fixou ao longo da história, quando

conseguiram vitórias importantes, dando sustentabilidade à estrutura

de descentralização do poder: aumentaram seu raio de ação, poder e

influência no reinado de Richard I Coração de Leão, por conta de sua

constante ausência do território; obtiveram a Magna Carta assinada

por John I Sem-Terra ‘Lackland’ (1166-1216), a qual limitava o poder

real de apoderar-se de feudos, ou cobrar impostos, realizar prisões e

julgamentos sem consulta aos nobres; por fim, conseguiram com

Henry III (1207-1262) a construção de um parlamento, que na prática

tinha o poder de reprovar ou aprovar as leis do monarca, regulando

sua ação. Ademais, como detinham armas próprias, fortes e bem

organizadas, estavam tanto assegurados contra a força de outrem,

quanto obrigavam o rei para consigo quando este tinha de empreender

investidas militares grandiosas. Apoiados no binômio de segurança e

legitimidade, podiam se dedicar mais os nobres as suas atividades

particulares, como a administração das pastagens e o comércio da

matéria prima, gozando de boa vida, sem preocupar-se de fato com o

Estado.

Na França a situação era diferente: o processo foi o inverso do

caso britânico. Após anos de descentralidade em função do racha do

Império Carolíngio, o rei não passava de um senhor feudal igual a

todos os outros barões. Durante os anos de 1180 e 1223, Philippe II

Augusto se volta à unificação, a fim de elevar em glória a dinastia

Capetiana. Como umas das primeiras medidas, em 1182, ele rompe

com a comunidade judaica, expulsa todos os judeus do território e

confisca seus bens, sob a razão de que eram causadores de várias

calamidades; fato é que essa medida vai preencher os cofres da coroa,

pobre e deficitária naquele momento (mesmo porque, a medida de

interdição é revogada em 1198, permitindo o transito judeu nos

territórios). Com recursos, começa a organizar exércitos mercenários

poderosos, os quais, sob seu comando, destroem os barões mais fracos,

devastando seus territórios, para assim conquista-los. Após algumas

vitórias significativas, o rei abandona os mercenários e fortalece os

exércitos próprios da coroa, criando uma milícia forte e poderosa, a

fim de fazer frente à alta nobreza. A partir de então, por guerra ou por

meio de uma diplomacia perspicaz, o rei aumenta significativamente

os territórios francos. E, se podemos dizer bem da astúcia, não seria

razoável desconsiderar seu maior expoente: a maneira como se

aproveitou da fragilidade da coroa inglesa. Como fora exposto, a

situação inglesa era demasiada distinta do caso francês, e a nobreza era

poderosíssima perto do próprio rei britânico; muitos dos territórios

dessa aristocracia residiam em território franco. Philippe devassa os

feudos fracos, abandonados a própria sorte, e de localidade geográfica

mais inacessível. Aproveitando a rivalidade entre os sucessores da

Coroa Inglesa, e as constantes lutas internas inglesas, assalta as regiões

dominadas pelos Plantagenetas (dinastia real britânica), da

Normandia, Vexin e Bretanha, e, após anos de combate, sela a paz

através da intermediação do Papa, mediante a formação da Cruzada

dos Reis, na qual Inglaterra renuncia a soberania no local; pós a

Cruzada dos Reis, com Richard I, o Coração de Leão, capturado por

Leopold V (1586-1632), duque da Áustria, Philippe ataca novamente as

terras dos Plantagenetas, e, John I Sem Terra (que não estava

interessado na volta do irmão e queria colocar a si mesmo no trono,

com ajuda dos francos), negocia com o astuto rei, cedendo às terras do

leste da Normandia, Le Vaudreuil, Verneuil e Évreux; quando Richard

I é libertado e retoma a coroa, empreende uma investida contra

Philippe, forçando-o a recuar, contudo, a sorte sorri ao virtuoso rei, e

Richard I, atingido por uma flecha durante o cerco militar de Vexin, cai

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enfermo, e morre doravante. Na sucessão, Philippe apoia o jovem

Arthur, da Bretanha, contra John I Sem Terra (como havia feito antes

com John I, contra Richard I), obtendo a obrigação de vassalagem de

todo o ducado da Bretanha; John I mergulha na guerra contra seu

rival, sitiando Mirebau, captura o jovem, que desapareceu

misteriosamente (possivelmente assassinado); no entanto, já era tarde

para parar a ambição de Philippe, que toma de assalto toda a

Normandia e o Condado de Anjou. Doravante, John I Sem Terra

(agora rei de Inglaterra), e seus aliados são derrotados pelos exércitos

francos, perdendo Falaise, Caen, Bayeux e Ruen em 1204, Verneuil e

Arques caíram imediatamente depois. Concluída a campanha no norte,

Philippe se volta para o vale do rio Loire, tomando Poitiers em 1204, e

depois Loches e Chinon em 1205.

A fragilidade do poder real inglês vai ser fator preponderante

para o fortalecimento da centralização do poder francês; bem como a

nobreza inglesa vai se apoiar neste argumento para revoltar-se contra a

coroa e infringir lhes as devidas amarradas (como já fora dito, John I

assina a Magna Carta, não obstante, suas derrotas foram consideradas

fruto do excesso e do desregulamento do poder central, dessa maneira,

cabia enfraquece-lo para controla-lo). Começa a aparecer à ideia de

uma França. O nome rex francorum (rei dos francos) é substituído por

rex Franciæ (rei de França), a Flor-de-lis, símbolo real utilizado antes

pelo pai de Philippe, é altamente difundida. No espaço de anos,

Philippe II Augusto começa uma cruzada na mira da extinção dos

feudos da nobreza britânica em território franco, fator que aumentaria

os territórios da coroa significativamente. Para assegurar as posses e

manter a administração, nomeia funcionários para a aplicação e

manutenção das leis a nível local. Seus sucessores continuaram essa

empresa, estendendo-a aos feudos dos condes e duques franceses. Esse

processo apenas travaria quando encontrasse a região de Flandres. Um

problema desde as épocas de Philippe, a região se revolta e recusa o

julgo da coroa francesa, muito por conta de sua matéria-prima ser de

origem inglesa, vinda dos feudos da nobreza britânica, e de sua larga

relação de venda com os senhores ingleses. Ademais, um ano após

começar a empresa, o rei francês Charles IV (1294-1328) morre, e, de

jures, por linhagem dinástica, o sucessor a assumir o trono francês seria

o então Rei da Inglaterra, Edward III (1312-1377); no entanto, a

aristocracia francesa nem sonhava em ceder a coroa a um inglês, assim,

elege um nobre da casa de Valois como novo rei, Phillipe VI (1293-

1350), que começa uma nova dinastia. Tal fato enfureceu Edward III.

Irado o rei, e a nobreza ameaçada pelo avanço franco, a Inglaterra

declara guerra França. Começa a chamada Guerra dos Cem Anos.

A guerra dura 116 anos (apesar de seu nome), e teve diversos

pontos conflitantes; naturalmente, não vamos entrar em pormenores

destes, pois estes são dispensáveis aqui; apenas vale citar alguns, dos

mais importantes. Primeiramente, como a ideia de nação ainda

vigorava, a guerra era, no fim das contas, o grupo de nobres ingleses a

favor do livre comércio e exploração da região, contra a coroa francesa

que desejava impor sua administração e recolher impostos de seus

súditos (vale dizer, de uma das regiões mais ricas e poderosas da

Europa). Ademais, ao longo do conflito, diversos foram as tensões

entre nobres do mesmo lado, chegado a ponto de mudarem de

posição. O ponto alto da guerra foi quando Henry IV (1366-1413), rei

britânico e pretendente do trono francês, assediou a família da nobreza

francesa dos Borguinhões, e passou a tê-los como aliados, governando

o norte da França, por intermédio da vassalagem. Essa situação criou

um clima de indignação por todo o território franco. A partir de então,

Charles VII O Vitorioso (1403-1461) organizou um exército militar mais

moderno, abandonando a força medieval, prezando pela leveza e

mobilidade moderna (a fim de fazer frente aos arqueiros ingleses); pela

primeira vez, via-se na França um sentimento de unidade, acima das

relações servis dos feudos. Exemplo desse sentimento fora Joanna

d’Arc (doravante Santa Joanna, em 1920), que, a frente do exercito

ajudou a França a retomar Orleans. Por sua vez, responder a força de

França foi preciso deixar florescer a autoridade do rei inglês, depois de

tantos anos. Por fim, à medida que caminhava a guerra, os reis foram

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demonstrando que somente o fortalecimento do poder central traria a

vitória sobre grandes milícias organizadas e disciplinadas, não

obstante, os nobres foram obrigados a reconhecer tal premissa.

Embora em guerra, a Inglaterra era sacodida pelo conflito

interno da Guerra das Duas Rosas, entre as casas de York e Lancaster,

as duas maiores famílias nobres da Inglaterra. Esse movimento, que

lutava pela hegemonia do controle do Conselho Real, acabou por

enfraquecer o parlamento, extinguindo contingentes importantes para

uma política descentralizada; o episódio, não teve outra consequência

senão abrir caminho aos Tudor, com Henry VII (1457-1509), ao futuro

da nação inglesa. Os pequenos feudos são extintos, subjugados pelo

poder central, a fim de formar grandes territórios, destituindo o caráter

local dos costumes, instaurando os primórdios da ideia de nação. Na

França, aproveitando-se da situação instável inglesa, e inspirado com o

mártir de Joanna, o rei investe contra os ingleses tomando as fortalezas

e destruindo os exércitos inimigos. Se deve ser licito considerar que há

males que vem para bem, podemos dizer que as sucessivas derrotas no

início da guerra, e a capitulação de vários domínios – muitos nobres

morreram ou foram a total falência – facilitou a empresa de uma

nação-uno na França, ademais, não só isso, mas, a força econômica

estava debilitada: com a guerra, a produção artesanal e agraria foram

paradas, e os mercadores não encontravam maneira de escoar a

produção, por conta de um comércio terrivelmente desorganizado e

afetado por um país fragilizado e ferido. A figura do líder central, forte

e virtuoso, emerge como única solução para os males franceses. Ao

fim, a Guerra dos Cem Anos transforma a Europa, terminando por

fortalecer as monarquias inglesas e francesas rumo à consolidação

total.

Este contexto traz a figura do Estado, encarnado no rei,

enquanto unidade política central, como grande expoente de força,

única unidade capaz de garantir a paz e a felicidade do homem, por

meio de suas leis e suas armas, protegendo da invasão estrangeira e do

braço armado local. Formam-se exércitos fortes e preparados,

financiam-se guerras e conquistas, realizam-se matrimônios

convenientes, e incentiva-se o comércio e tudo mais na mira de

aumentar e expandir o domínio. O rei, como senhor da nação, torna-se

poderosíssimo, guiados pela ambição a fim de consolidar a expansão,

fronteiras e unidade de seus territórios. Bons exércitos e boas leis

guiavam o apetite daqueles que, por excepcional virtude, construíram

grandes impérios. Restavam dar cabo de alguns “pequenos” entraves a

fim de alcançarem o status de “Rei-Sol”.

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Capítulo III Vestíbulo do Inferno

Logo viria a nascer na mente fértil da realeza audaciosa e

astuta a semente da ideia de contestação da obediência fiel: por que se

submeter à Santa Igreja se assim não fosse conveniente? Doravante,

germinada, ela dá gênese ao fruto da árvore maldita: a maçã

dourada17: os reis e a Igreja começam então a se desentender, pois era

fato que a Santa Sé fez-se, durante séculos, fora um entrave para o

crescimento virente do poder real. Depois de vários conflitos menores,

um episódio particular fica marcado e torna-se importantíssimo para o

desenrolar da história: O Cativeiro Babilônico dos Papas. Conhecido

popularmente como “Crise de Avignon”, este evento se dá quando o

rei de França em exercício naquele momento, Philippe IV o Belo (1285-

1314) se irrita com a Igreja Católica Romana em função do

impedimento que ela fazia ao recolhimento de impostos das unidades

eclesiásticas da França. Furioso, o monarca arbitrariamente muda a

residência do papado, levando o próximo papa (vale dizer, um francês,

a seu gosto) para estabelecimento em Avignon. O evento choca a velha

Europa. A partir deste momento, outros papas franceses foram eleitos,

todos residentes em Avignon, desencadeando uma crise em todo

mundo cristão. A Igreja Católica leva o papa de volta a Roma após a

gestão de seis pontífices em Avignon (sessenta e cinco anos, de 1305 a

1370), na gestão de Gregório XI (1160-1241).

O problema, no entanto, estava apenas começando. Com a

morte de Gregório, o napolitano Urbano VI (1318-1389) sobe ao posto

de Papa. Eleito em Roma, ele tinha o apoio do povo italiano, que

gostaria de ver um italiano como sumo pontífice, a fim de consolidar o

estado em território itálico. Contudo, quando começou a agir,

mostrou-se terrivelmente rígido e intempestivo, tinha fama de furioso,

de ímpeto indomável. Urbano acarreta para si diversos inimigos, os

quais começam a conspirar para sua deposição. Recusando-se a levar a

residência de volta a Avignon, o conselho de cardeais elege outro

Papa, Clemente VI (1342-1394), que retorna a França. Evento que dá

origem ao que muitos chamam de Cisma Papal, tendo o Papa romano

e Antipapa francês. Extrapolando a esfera religiosa, o evento torna-se

um problema de cunho político diplomático, afinal, doutores da igreja

tendiam a apoiar o papa escolhido de seu país, e esses, não obstantes,

estavam divididos segundos seus interesses. O evento divide a

Europa. Doravante, adiante, outro Antipapa seria eleito, em Pisa, para

agravar ainda mais a situação. A Igreja convoca o Concílio de

Constança, destituem os três papas e elege outro, unificando

novamente o pontificado. A crise duraria de 1378 a 1414, tendo a

conclusão final por conta do abalo social: a Igreja já não parecia

inviolável e todo-poderosa como outrora e a autoridade dos reis torna-

se sinônimo de força. Por conta da diminuição de seu poder e

influência, alguns daqueles valores que eram tão fortemente

assegurados pelo poder da Santa Sé, agora passavam as mãos dos reis,

transfigurando-se do caráter universalista (de atingir a toda Europa)

para relativista (atingir somente a unidade política em questão). E,

sobretudo, já não eram intocáveis e inquestionáveis como outrora

foram. Cria-se a brecha para a insurgência de movimentos reformistas

da doutrina religiosa. É nesse terreno que vem a Reforma Protestante.

Creditada principalmente ao monge germânico Martin Lutero

(1483-1546) com suas 95 teses e o humanista Jean Calvino (1509-1564),

a Reforma surge como um evento puramente religioso, com fins de

alteração da questão espiritual – muito embora os dois divergissem em

seus fins, pois, o primeiro acreditava que a Igreja Católica precisava ser

reformada, e o segundo, que estava tão perdido que era preciso criar

uma nova, com bases na igreja primitiva. A questão é que a razão de

ter explodido e adquirido força não reside propriamente na questão

religiosa – muitos outros reformistas surgiram pós-Cisma, alguns

considerados até hereges, condenados a fogueira, e não tiveram tal

repercussão. A questão é que este movimento conquistou espaço

político para o acontecimento, e, sobretudo, vontade dos Grandes para

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apoiá-lo, pois nada seria mais benéfico para seus interesses. Ora, para

não perder a matéria de vistas neste argumento, tomemos o caso da

Alemanha, no Sacro Império Romano-Germânico. A nobreza e os

camponeses estavam descontentes com a Igreja Católica, que por sua

vez, possuía a maior porção das terras, e assim cobrava pesadas taxas e

tributos. Essa medida fazia com que as jornadas de trabalho dos

camponeses fossem mais duras e mais longas, a fim de cobrir o

excedente do tributo, bem como diminuía o rendimento da nobreza.

Ademais, a Reforma também fora muito bem aceita pelos reis, que

vislumbraram nela a extinção da influência da Igreja sob seus

territórios na questão política. E, apesar de já terem rompido com a

soberania do direito da Igreja, ainda existiam certos procedimentos

que limitavam o pode real, especificamente, duas questões centrais: a

ideia de excomunhão do soberano e a nomeação dos bispos.

A primeira questão tratava da (1) legitimação da

desobediência civil, pois, o rei é ungido pela Santa Sé, a qual

sacramenta que seu poder vem de Deus, entretanto, aquele que

expulso da comunhão não partilha mais da graça do Altíssimo, seu

poder torna-se nefasto, bem como a utilização do mesmo sempre será

iníquo, injusto e temerário, por natureza. Dá-se apenas em opressão

tendo em vistas o mal e não o bem, já não podendo garantir a

felicidade da polis. A obediência do povo e o respeito dos Grandes não

se justificam e nem se fazem razoáveis: o primeiro deve simplesmente

se negar a realizar tudo que lhe é devido nesta relação e os segundos

se ocuparem em disputar a ocupação da vacância do poder legítimo.

Naturalmente, estes são perigos terríveis para a realeza que se anseia

senhora do destino de tudo e de todos, afinal, o Papa dava a

excomunhão, cabia ao rei à observação de certos cuidados para não

sofrer com este problema. (2) Já a outra questão diz respeito ao poder

de nomear seus próprios bispos, e, por conseguinte, organizar as

dioceses e arquidioceses a bel-prazer. Esse fato possibilitaria amarrar

os líderes religiosos, pela obrigação do favor, à coroa, desenvolvendo a

lealdade e obediência ao rei. Vale lembrar que uma diocese estava no

centro de uma comunidade, vila ou cidade, detinha tanta importância

politica que subjugava até mesmo a própria administração pública,

não obstante, a questão de nomear aquele que rege esse poder era

então de extrema valia. Para o rei, se sua autoridade não fosse retirada

por mais nenhum procedimento e se pudesse obrigar as localidades

para consigo, somado ao poder que já reunia a riqueza do Estado que

controlada e os exércitos nacionais, o rei tornar-se-ia a maior

autoridade de facto e de jures em seu território.

Com tanto espaço, a Reforma se alastra. Na Escandinávia, o

luteranismo se expandiu tão rápido como rastilho de pólvora,

conquistando a simpatia e aceitação na Suécia, Dinamarca e Noruega.

O calvinismo toma a Suíça, Holanda e Escócia. Já a Inglaterra, apesar

de aderir à ideia, apresenta um tipo próprio: o Anglicanismo, fruto de

um caso particular, é protagonizado pelo rei Henry VIII (1491-1547) e

suas necessidades circunstanciais. Este caso talvez exprima melhor a

questão política da reforma, pois é o mais emblemático, afinal, Henry

VIII defendia a Igreja Católica contra Lutero, atuou contra suas teses,

era um religioso fiel a Igreja Católica. Mas, era casado com Catarina de

Aragão, donzela que, por fatalidades da fortuna, não podia lhe

conferir filho varão, muito embora não faltassem esforços e tentativas –

vale dizer que este é fator terrivelmente arriscado em âmbito politico,

pois deixa a questão de sucessão do trono em risco, muito embora

tivesse uma filha legitima com a consorte, Maria I “Bloody-Mary”

(1516-1558). Motivado por essa necessidade, e embalado pela paixão a

Srta. Anne Boleyn, o rei recorre ao Papa Clemente VII para anulação

de seu casamento; após a negação, Henry VIII vê no surgimento da

Reforma a ocasião perfeita para romper com a Igreja Católica, se

declarando chefe da Igreja Inglesa, perante o parlamento (com sua

aprovação). Nasce a Igreja Anglicana: estatal e nacional, sem

interferência externa, a qual, o chefe máximo o rei. Nos países

protestantes, os católicos passam a ser perseguidos e expulsos do

território, e se dá inicio a intolerância religiosa. O mundo era sacudido

então pela questão religiosa que ardia em chamas, sem freios.

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16

A Europa estava dividia neste momento entre protestantes e

católicos. Doravante, tal rivalidade cresceria de maneira tão

vertiginosa que, por conta de disputas territoriais, rotas comerciais e

questões de sucessão dos tronos, iniciaria o terrível período da Guerra

dos Trinta Anos, colocando os reis católicos contra os reis protestantes,

maior ponto de divergência registrado entre as “posições religiosas”.

Este cenário fazia florescer na mente dos homens, marcados pelas

duvidas já acareadas até então, o questionamento relativo ao objeto de

sua fé. “Com quem está Deus?” “Em quem deve se acreditar: nos

católicos ou nos protestantes?” “Faz sentido a tradição vigente que se

tem?” Cria-se então o conflito, que ao passo que cai no conhecimento

do vulgo, toma toda a Europa, e desencadeia a questão: a quem se

deve obediência, aos reis das unidades políticas, ao Imperador do

Sacro-Império ou ao papa da Santa Sé? Enfim, diga-se de passagem, a

posição vencedora, como se constata ao longo do curso da história, foi

do rei.

Monarcas se tornam imperadores de seus próprios reinos –

detém total poder de vida e morte sobre tudo que diz respeito a seu

domínio. A Igreja já não tinha poder no que diz respeito às decisões

finais de questões de Estado, perdendo seu status soberano de

operadora do Direito na política; agora, é o rei e sua autoridade

comandava a comunidade. O problema criado por está ação é tão

grande que vai dar inicio ao período de guerras mais sangrento já visto

pela Europa. Afinal, simples poderia ser um rei julgar e condenar um

cidadão de seu domínio, mas, em âmbito internacional? Como eram

muitos os reis, e assim muitos os domínios, consequentemente,

demasiado singular seriam os interesses por eles manifestados, era

inevitável o choque. O direito passa não ver mais espaços na política

internacional, afinal todos passam a serem, simultaneamente, os

árbitros, réus, vítimas, advogados e promotores; ora, no lugar onde

todos os homens são de tudo, na verdade ninguém é absolutamente

nada, e vale a lei de Trasímaco18. Inevitavelmente, como única saída, a

guerra vem como recurso e real delimitador da política externa. O que

antes era decidido, prezando a equalização das partes residente na

justiça, por um árbitro comum, único mediador dos conflitos, agora

deve ser decidido na ponta da espada, pois não há paz e acordo onde

não há freio às ambições dos Grandes.

O período moderno se inicia. Em meio a desbravamentos e

descobertas, tudo era muito novo, muito chocante, muito violento, “as

pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna; mal

fazem ideia do que as atingiu”19. Nunca na história do mundo tinha se

visto tanta fome, peste e destruição, nunca se queimou tantas

“bruxas”, nunca se fez tanta guerra... Fora uma época banhada a

sangue e imersa em um profundo terror... O mundo é assolado pela

dúvida. O medo faz-se descomunal, todos vivem na desconfiança, e a

esperança pífia, nada floresce neste estado... Abrem-se as portas do

Inferno, vem o demônio, e entramos, pois, no verdadeiro Reino das

Trevas, contudo, travestido da luz.

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Capítulo IV “Deixai Toda Esperança, Ó Vós que Entrais!”

Ao passo que a tradição vigente é rompida, o estado de dúvida

fez com que a arte, a ciência e a filosofia crescessem independentes da

religião, fugindo dos valores da Ética Católica, em busca de novas

respostas. O pensamento escolástico estava em declínio, já não possuía

a hegemonia de antes, seus produtos se viam ameaçados; buscava-se

uma nova fonte de certezas. Francis Bacon e sua ideia com base sólida

no sensível caracterizada pelo Novo Organon, bem como René

Descartes (1596-1650) e seu cogito de existência, são frutos dessa

situação. No entanto, se as perspectivas são otimistas, e o progresso e o

desenvolvimento disparam como antes nunca visto, digo que não o

fizeram sem cobrar um preço. Thomas Hobbes de Malmesbury (1588-

1689) foi um homem que sentiu na carne esse preço, muito embora

tenha realizada a leitura mais precisa da condição inicial da

Modernidade no tocante de seu fundamento, relatando algumas

características tão essenciais do andar ao lado do demônio que

permanecem até atuais até nossos tempos.

Nesse sentido, a vida de Hobbes é ponto importante: de parto

prematuro, no susto, a espreita de ataque espanhol, no corrente receio

da investida da Invencível Armada, em retaliação ao cisma religioso

feito por Henry VIII (e o abandono de Cataria de Aragão), vem ao

mundo Hobbes e seu gêmeo: o medo20. Esta paixão acompanha o

filosofo por toda sua vida: presenciou e viveu toda a mazela terrível

dos sangrentos conflitos da Guerra dos Trinta anos e da Guerra Civil

na Inglaterra de Cromwell; foi perseguido, exilado, mal visto e

condenado por suas posições e concepções acerca da religião e do

Estado; assistiu a peste, as inúmeras execuções e as caçadas e fogueiras

feitas com as ‘bruxas’. Seria temerário dizer que tais fatores

influenciaram seu pensamento. Hobbes dedicou seu tempo aos

problemas criados por uma era de incertezas religiosas, políticas e

sociais; em suma, a quem se deve obedecer – pois, reside nela, a

obediência, o problema. Afinal, em um mundo abalado, agitado e

instável, seu anseio por respostas tinham em mira a paz – expoente

máximo do direito natural para Hobbes21 –; em paz seria possível viver

seguro, coibindo o estado de intolerância que conduz a guerra. A

questão que intrigava Hobbes, no entanto, era a causa da dessa

instabilidade, a razão pela qual o ambiente moderno é o “reino das

trevas”.

Grosso modo, podemos dizer que sua resposta se inclina a

afirmar que, deixados à própria sorte, a singularidade das paixões de

cada homem, em particular, conduz todos ao caos e a desordem. Não

seria senão o julgo de cada um em choque que criaria a guerra,

aumentando o medo e minando a esperança? Eis seu famoso estado de

natureza. Afinal, a opinião, fenômeno essencial para o diabo moderno,

vai surgir como pilar central de comportamento. Anterior ao período

vivido por Hobbes, a matriz filosófica é comum, o coletivo determina o

mundo, pois a sociedade é natural – a visão aristotélica, por exemplo,

“o homem é, por natureza, um animal político”, sendo natural sua

vivência em sociedade (aqueles que não o fazem, são, ou muito menos

que um homem, ou muito mais que um homem), pois é a polis “o bem

mais elevado”22. No “inferno”, não existe modo comum de vida, cada

um é imperador de si e de seu meio, segundo seu jugo; não

pertencente à sociedade naturalmente, pois é ela apenas uma

convenção, feita na reunião de todos; sendo cada particular uma

máquina, movida por desejos, oriundos de suas paixões, alcançados

através do uso da razão.

Acompanhemos o raciocínio hobbesiano, que, muito embora

pareça trágico demais, tem seu sentido. Hobbes parte do homem, e,

através de uma epistemologia inovadora, de cunho mecanicista,

contraria toda a física tomista-escolástica, afirmando que tudo o que se

conhece é fruto das sensações particulares de cada um. Cada homem

cria sua própria ideia de algo, diferente e distinta do outro, Em suma,

afirma Hobbes que a imagem das coisas realiza uma espécie de fricção

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nos órgãos operadores dos sentidos humanos (ação), permitindo ao

sujeito conhecer aquela determinada coisa, de maneira singular,

criando uma representação (reação). Toda ideia é, portanto, reação ao

movimento que realiza frente ao mundo. Os homens então agrupam e

categorizam percepções da natureza, as quais, por sua vez, são apenas

particulares, jamais gerais; o geral é fruto da imaginação humana. Não

existe “cavalo” na natureza, apenas este ou aquele cavalo específico. O

termo geral é apenas convenção celebrada, por conseguinte, artificial.

Essa convenção parte da linguagem, a qual, para Hobbes será o nível

objetivo, pois cria comunicação entre mais de um homem, celebrando

nomes para o conjunto de representações. Seguindo está lógica,

Hobbes buscará as ideia dos valores da sociedade na natureza: o belo,

o justo, o injusto, o bem, o certo, o errado, o leal, o corajoso e etc., a fim

de verificar onde está sua correspondência empírica. A conclusão

tirada é uma só: eles não existem objetivamente, pois não há nada que

corresponda em si, por exemplo, ao justo ou ao belo na natureza. Os

valores estariam apenas dentro de cada ser humano, sendo seu

significado completamente relativo às paixões de quem os profere e

classifica, pois são recursos de linguagem que tem um significante

particularíssimo23.

Vem então o ponto central: são as paixões, os movimentos

internos do homem, que determinam a finalidade das ações24; as quais,

não são nem boas nem más, nem pecados nem virtudes, pois, frente à

natureza não existe regra da vida em função do justo, certo, errado e

belo, tudo que o homem faz é indiferente perante a natureza, pois é

relativo a quem faz e a quem sente, por conseguinte, quem julga.

Todos os homens buscam o que suas paixões valorizam. Não há busca

pela felicidade da polis, somente a realização dos desejos pessoais. A

razão, por sua vez, antes delimitadora dos valores, passa a condição de

instrumento: calcula e elege os meios (escolhe os poderes, isto é, as

qualidades disponíveis) mais adequados para maximização dos

desejos, alçados pela paixão25. Age naturalmente o homem quando usa

todos seus poderes em direção de seus fins. Notemos, pois, que a

opinião singular torna-se imperatrix mundi, determinando os rumos

que cada homem deve seguir, particularmente, independe da

sociedade, não havendo moderação da alma.

Ora, se cada um faz o mundo a sua maneira, e todos são

diferentes, Hobbes busca saber então, se há a alguma dimensão que

iguale todos os homens, e se sim, qual é. Sua resposta: no poder.

Afinal, por mais que existam diferenças, o mais forte ou inteligente,

por exemplo, ainda pode ser morto por qualquer outro homem que

tenha amigos, conhecimento, armas, e estes, por sua vez, também

podem ser subjugados e destronados por outros que tenham outras

qualidades. Naturalmente, as divergências e as desigualdades se

igualam no quesito do poder, mais precisamente, de matar26. Hobbes

considera que tudo é poder: amigos, riqueza, força, armas, beleza,

prestígio, astúcia, etc., pois, tudo pode ser utilizado para subjugar o

próximo. O homem mais fraco pode ser mais esperto ou arrumar

aliados, ter armas, ou ainda armar uma emboscada, e matar o mais

forte e mais rico, e etc. E, como não existe moral na natureza, pode o

homem utilizar-se de todos os meios para matar uns aos outros.

Ademais, “os homens não tiram prazer alguma da companhia alheia (e

sim, pelo contrário, um enorme desprazer)” pois "se dois homens

desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impossível ela ser

gozada por ambos, eles tornam-se inimigos", vivendo a sombra da

desconfiança, da competição e da glória uns dos outros:

"A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o

lucro; a segunda, a segurança; a terceira, a reputação. Os

primeiros usam a violência para se tornarem senhores das

pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os

segundos, para defenderem-nos; e os terceiros, por ninharias,

como uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente, e

qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido

às suas pessoas, quer indiretamente aos seus parentes, amigos,

nação, profissão ou ao seu nome"27

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Ninguém está seguro; todos estão sujeitos à morte violenta. Afinal,

para ter o rico, deve-se ter o pobre; para existência do louvado, faz-se

necessário uma plateia que o glorifique; e para que alguém esteja no

topo da hierarquia, deve, necessariamente, existir os que se dispõe a

estar abaixo. Estas razões são a causa dos conflitos. Bem como bem e

mal, justo e injusto não existe, essa condição coloca o homem em

insegurança constante, tendo apenas como razoável que se subjugue

quantos homens forem necessário para preservar ao máximo a própria

vida. É então o “homo homini lupus” em virtude da ausência de um

poder que os mantenha em respeito comum. Atentar contra tudo e

todos é a única maneira de garantir a sua segurança própria28.

A saída que Hobbes vislumbra para findar o estado de guerra,

colocar os homens em respeito, criar a segurança e trazer a paz foi à

fundação do grande Leviatã, o Estado. Somente quando estão todos

sob o mesmo cetro é que a humanidade é forçada ao convívio o

homem vive pacificamente. Ademais, é o Soberano o único a

determinar aquilo que é justo, o bom, belo, certo, errado, etc. Para que

está condição se faça presente, os homens fixam um pacto, por sinais,

subjetivos: todos abrem mão de todo seu poder, em função do

Soberano, o qual disporá de todos os meios a vida dos súditos.

Pactuam ‘eu’ e ‘tu’, “Ele”, o soberano, ainda permanece em estado de

natureza. É racional a submissão a ele, pois, o pacto que funda o

Estado tem como finalidade máxima à proteção da vida dos homens

mediante o fim do estado de guerra, assegurando cada particular da

violência de seus iguais. Seja como for, está no axioma da ideia de

Hobbes a secularização deste Soberano: não interessa se católicos ou

protestantes, o racional era estar submetido a um poder comum,

redator dos valores e mantenedor da paz. Esta relação é uma

conveniência que pode por fim ao poder de opressão dos particulares

sobre outros particulares. O que Hobbes buscava era a paz, o fim das

guerras e do terror. O Leviatã é o grande protetor da vida e senhor da

paz29.

Ora, muitas são as opiniões, em sua maioria, se voltando à

condenação e contraposição da filosofia hobbesiana. Aqui, no entanto,

cabe tocar alguns pontos por conta da reverberação da leitura de

Hobbes para a constituição do ambiente moderno, pois destes não

seria razoável calar-se, afinal, reside o real conhecimento das coisas

nas consequências que elas criam. É fato que, ao passo que se nega a

existência de algo comum e objetivo, e apenas o indivíduo e suas

paixões são válidos, estão todos à mercê da opinião alheia; uma

dedução lógica. Hobbes nos demostra como poder terrível, cruel,

sórdido e mortal estar no caminho ou sob o julgo do gosto de outrem.

No fim, os desejos alheios nos causam o medo, bem como ferem a

esperança que temos de prosperar com nosso trabalho, a fim de

realizar nossos próprios desejos. Essa é a conclusão terrível que traz o

pensamento hobbesiano. Naquilo que a lei não toca, faz de tudo o

homem para concretizar seus desejos, quando muito seus anseios não

são de tal modo que não lhe custa infringi-la em nome das suas mais

ardentes paixões ansiando a segurança e afastando o perigo – Fausto

nos ensina isso com exatidão quando se põe a luta e assassinato do

irmão de sua amada Margarida.

Ademais, é nesse estado que se cria o “meu mundo”, o “teu

mundo”, o “mundo dele”, bem como tudo aquilo que está relacionado

com o particular – aquelas tão corriqueiras visões unilaterais e

dogmáticas, fundadas no gosto e na paixão que, arbitrariamente,

impõe sua vontade sobre os demais, no mais das vezes, travestidas de

valores vulgarmente nobres, largamente propagadas em nossos

tempos. A consequência do pensamento hobbesiano, na prática, é um

mundo de Trasímacos: com o “por natureza” o homem pode tudo,

pois não há a referência de certo e errado, apenas as leis positivas do

Estado, o homem, em instancia particular, molda a justiça como

conveniência do mais forte, tendo a “força e a fraude como virtudes

cardinais”, utilizando e meios justos quando convenientes e injustos

quando necessários, sendo que o maior bem será praticar uma injustiça

sem sofrer suas consequências (assim como o maior mal será não

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poder vingar-se quando a sofres), fazendo valer sua opinião e seu

gosto, acima de todos, sob a falsa bandeira de liberdade; no fim os

homens aceitam a lei, isto é, a justiça, por medo das consequências,

asseguradas pela a espada (lei sem a força para mantê-la não passa de

palavra fiada, já afirmava Hobbes) e não por seu princípio em si, o

bem30.

De todo modo, essa concepção rompe completamente com a

ideia dos antigos da condição de desigualdade dos homens. Dizia

Aristóteles que os homens eram divididos, segundo suas naturezas

distintas, aqueles que podiam prever, e por natureza seriam senhores,

pois mais inclinados à prática da virtude estavam, e aqueles que

somente a força bruta dispunham, portanto, estavam aptos aos

trabalhos braçais. Hobbes contraria esta premissa, pregando uma

igualdade dentre os homens, ditada pela lei natural, sendo, pois,

orgulhoso aquele que não acate este preceito. Afirma ele que

“(...) Aristóteles, no livro primeiro de sua Política, como

fundamento de sua doutrina, afirma que por natureza alguns

homens têm mais capacidade para mandar, querendo com isso

referir-se aos mais sábios (entre os quais se incluía a si próprio,

devido a sua filosofia), e outros têm mais a capacidade parar

servir (referindo-se com isso aos que tinham corpos fortes, mas

não eram filósofos como ele); como se o senhor o escravo não

tivessem sido criados pelo consentimento dos homens, mas pela

diferença de inteligência, o que não é só contrário à razão, mas é

também contrário a experiência. Pois poucos há tão insensatos

que não prefiram governar-se a si mesmos a ser governados por

outros”

A Modernidade vem então libertar os escravos; bem como prender os

senhores; quando, em base de uma igualdade na abstração dos corpos,

coloca todos em respeito comum sob a égide de um ‘soberano’. Não

interessa mais aqueles que são livres, de facto ou de jures, não interessa

mais aqueles que sabem governar a si ou a cidade, não interessa se

olham a si ou ao coletivo. Não importa se senhores e escravos, nobres e

servos, barões e camponeses. Todos estão sujeitos apenas à lei

soberana do Estado.

De todo modo, a realização do pacto hobbesiano não finda

totalmente o de guerra. São coibidas a violência e a fraude nos tocantes

máximos, mas, em seus pontos particulares, aqueles governados pelo

cuidado de si de cada um, a ética que suas ações devem conter, ele

vigora, criando um mal que, embora não seja mortal, é danoso e

terrivelmente nocivo. Ou arriscaríamos a dizer que, no mais das vezes,

em nossos tempos atuais, não vivemos em desconfiança, competindo

por lucro ou em busca de glória, destronando tantos quanto forem

razoáveis pra isso? Ora, essa lógica torna-se “pilar moral” da

sociedade moderna; não honestamente, mas travestida de justiça.

Afinal, não necessariamente devemos dizer que a guerra consiste

apenas no combate propriamente dito, que tem como fim a morte

violenta. É perfeitamente possível subjugar e oprimir sem causar

morte, a violência não se restringe ao campo de força. Ademais, não

devemos tomar o estado de guerra apenas no sentido de hipótese pré-

social (afinal, a esta via careceria muito substrato), mas sim como

situação presente; o próprio Hobbes utiliza argumento bastante

razoável neste sentido:

"Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado

bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os

homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos

outros. E poderá, portanto, talvez desejar, não confiando nesta

inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja

confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-

se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e

procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha

suas portas; que mesmo quando está em casa tranca seus cofres;

e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos

armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser

feita. Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar

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armado; de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus

filhos servidores, quando tranca seus cofres?” 31

Ora, desse e não de outro modo se vive, essencialmente, na

Modernidade. Ou, um homem não tranca a porta da residência ou de

um automóvel ao deixa-la? Não se constroem casas fortificadas,

fortalezas, imensos prédios ou condomínios fechados? Não se clama

por mais proteção, armas e efetivo policial? Ora, pactos são feitos por

signos. Naturalmente devemos ter ciência das variações acidentais da

matéria, pois é fato que as coisas são diferentes ao longo de cinco

séculos, contudo observar o essencial. Por essas evidências comuns

devemos dizer que, em Modernidade, ainda vivemos em estado de

guerra. Mesmo que por um lado invista em findar o medo da morte

violenta, pela civilização, acaba por criar a barbárie, incutindo mais

medo32. O homem olha para seu semelhante na desconfiança do pior,

em desespero. O anseio por segurança torna-se uma obsessão do

sujeito tanto quanto seu medo é crescente frente aos perigos impostas

pelo meio. Não faltaram homens ilustres para afirmar que o sujeito da

Modernidade é o sujeito do medo. Portanto, não podemos ter em

mente que o estado de guerra não existe na Era Moderna, pelo

contrário, mais razoável parece ser afirmar que ele é seu estado

natural.

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Parte II

O Vento das Transformações: A Consolidação de uma Era Revolucionária

“Sabemos que as revoluções não se fazem de água de rosas”

(Maximillian de Robispierre)

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Capítulo V A Natureza d’Aquele Que Desvia

É certo, como demonstram as evidências, que ao observamos o

correr da história, nada permite uma afirmação segura acerca de uma

data e local precisos para o surgimento da Modernidade. Conhecemos

apenas o período e o espaço na qual as modernizações vão tomando

corpo, dando forma ao espírito, desdobrando a potência, fazendo ato

aquilo que, doravante tornar-se-ia o senhor deste mundo. Contudo, é

de consenso de muitos estudiosos do assunto, dentre eles, Giddens,

Featherstone, e Berman, que o demônio eclode no auge do chamado

Renascimento Cultural. A partir deste ponto estouram as consequências

dos processos anteriores, intensificando as mudanças. O panorama da

Europa – que já havia se alterado com as Cruzadas –, no século XVI, se

transforma radicalmente. As mudanças institucionais tocam todas as

esferas da sociedade, alterando o modo de vida do homem, muito

principalmente por conta daquela convicção que está no centro do

pensamento renascentista (e porque não dizer em todo o pensamento

moderno): a filosofia humanista. Afinal, acreditavam os gênios do

renascimento que o homem estava no centro do mundo, portanto, todo

conhecimento deveria ser voltado a ele. Este antropocentrismo vai se

estender dai em diante, contrapondo as explicações espirituais e

sobrenaturais, principalmente relativas à existência de uma autoridade

superior – como posta na Idade Média. Quem haveria de negar que é a

Modernidade, em si, humanista convicta?

“Estou aqui com o meu nariz no chão desde que tudo começou!

Eu nutri cada sensação que o homem foi inspirado a ter. Eu me

preocupei com os seus desejos e nunca o julguei. Por quê?

Porque eu jamais o rejeitei, apesar de suas imperfeições… Eu

sou um fã do homem! Eu sou um humanista. Talvez o último

humanista” 33.

No pandemônio criado no alvoroço da ruptura Mephisto

desenvolve-se e atinge a mocidade, trazendo consigo o sentimento que

toma o coração dos homens: as coisas nunca mais serão as mesmas. A

partir de então o termo ‘modernidade’ ganha espaço, cabendo tanto ao

período e local, quanto ao modo de vida da sociedade que caracterizou

este mesmo momento na civilização Ocidental34. Os autores da época,

recuperando o humanismo clássico Greco-Romano, fundiram o

conceito de modernidade a cristandade para distinguir as sociedades

antigas das ditas por eles “modernas”.35 Cria-se então uma exagerada,

e de certo modo agressiva – quando não grosseira –, aversão para com

a Idade Média, pois acreditavam os Renascentistas que seu legado não

poderia ser continuidade daquele tempo de trevas. Trataram, pois de

obscurecê-lo, e batizar seu período como o renascimento da cultura

helenístico-romana, morta em tempos melancólicos medievos. Mais

tarde, o Iluminismo do Século XVIII criou a divisão clássica dos

períodos, interpôs Medieval entre aquilo que é Antigo e o que é

Moderno, bem como fez a identificação de Moderno como tudo aquilo

que “é aqui e agora”, dando um caráter de fluidez muito maior ao

conceito. Doravante, a Sociedade Moderna era aquela em que vive o

homem ocidental, seja no XVIII, XIX ou no hoje. Sociedade Ocidental

torna-se então sinônimo de Modernidade, principalmente quando

comparada com as demais sociedades do mundo ou sociedades de

épocas anteriores36. Mas, se este esclarecimento é importante, tanto

mais é a ressalva que jamais se deve confundir Idade Moderna com

Modernidade. O primeiro conceito corresponde a um período de

tempo estabelecido, tendo em vistas fins didáticos, o qual tem seu

princípio na tomada de Constantinopla pelos turcos e seu final com o

advento da Revolução Francesa; agora, muito mais do que isso é a

Modernidade: é mais que um período histórico, pois é a

transcendência de barreiras e a destruição de fronteiras; é mais que

caracterização, pois não se prende a padrões ou modelos; é mais que

um espectro ou fantasma, pois é todo um ambiente. Modernidade é

tempo-espaço, detém tanto o período quanto à sociedade que lhe é

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inerente. É o seio que traz a aventura, o prazer, à autotransformação e

a transformação do meio, uma dinâmica de mudança de si e do tudo

que está ao seu redor37, que se mistura e se confunde com nossa

própria história.

Do Renascimento em diante o mundo começa a experimentar

o viver da vida Moderna, que, pouco a pouco, vai se intensificando e

se consolidando como hegemônica. Marshall Berman trata desse

processo com extrema perspicácia, dividindo o advento da

Modernidade em três grandes fases38: (1) a primeira se inicia com o

renascimento, em meio as avassaladora incerteza das grandes guerras

e as aventuras das grandes navegações, envolvendo toda a era que

vulgarmente se conhece como Idade Moderna. Nesse estágio o

demônio ainda é sutil, tem aparição tímida, se espalha vagarosamente,

explorando um mundo permeado de caos e desordem, tomado pelo

medo e o desespero. As pessoas ainda mal sabem o que passam, mal

sabem com o que lidam, estão ‘reaprendendo a viver’. (2) O segundo

cobre o imenso vento das transformações do século XVIII, o intenso

fervor da era das revoluções sociais, econômicas e política. Trata-se já

de uma Modernidade mais madura, um ambiente de ação firme e já

postado, onde as pessoas se sentem parte do mundo das mudanças, do

velho e do novo, há um sentimento de participação no social; em vias

de aparência existe o compromisso com o coletivo que impulsiona os

homens a transformações do mundo. É a era de consolidação sólida do

demônio, da mocidade para fase adulta. E por fim, (3) o terceiro toma

o fim do século XIX e início do XX, marcada pelo “boom” tecnológico,

as grandes e sangrentas guerras, bem como o ritmo frenético do

neocolonialismo mediante a corrida das potências a fim do controle do

globo terrestre, tudo já está envolto pela rede da Modernidade, a

tecnologia reina soberana no mundo. Mephisto é senhor do tempo-

espaço: “Quem, em sã consciência, poderia negar que o Século XX não

foi meu? O século todo Kevin! Todo meu. Estou no topo. É a minha

vez agora(...)”39.

No entanto, muito embora essa classificação seja bastante

razoável, atualmente, ela carece de uma pequena complementação,

pois não se estende até os tempos atuais – dado a data de escrita de

Berman. Problema que muitos autores se dispuseram a resolver;

alguns, em especial, chegaram à conclusão de um fim da

Modernidade, como se alcançado o terceiro estágio, ela se

transformasse em outra coisa – a crença, altamente difundida, na

chamada teoria da “pós-modernidade”. O presente trabalho não

compartilha desta perspectiva. Não há indícios de que a Modernidade

findou-se por completo ou que vivemos um período hibrido ou

totalmente diferente do que se seguiu até agora. Quando dizemos que

o mercantilismo foi período hibrido, nem totalmente capitalista, nem

totalmente feudalista, como afirmou Marx, temos em perspectiva o

passado, isto é, olhamos para o mercantilismo portando conhecimento

tanto sobre o feudalismo, quanto sobre o capitalismo, de um ponto de

vista muito adiante a ocorrência do fenômeno; do mesmo modo

quando afirmamos que a Modernidade tomou o lugar das Sociedades

Tradicionais dos tempos antigos, estamos baseados na ideia de ruptura

e abandono da ordem anterior. Creio serem, ambos, raciocínios

precipitados de estabelecer para a Modernidade nos dias de hoje;

constituir-se-ia, no mínimo, ação temerária sustentar tal lógica,

arriscado a arrependimentos futuros. De todas as características que

este trabalho apresenta (e pretende apresentar), não há como preterir a

ideia do ambiente (ainda) ser moderno, de sua formação até nossos

tempos; uma ideia de Era pós-moderna ainda carece de muito

substrato40.

Devemos ter em mente que a mudança e a transformação

comportam um ambiente moderno, e se ainda se mantém a essência e

os postulados centrais que conduzem (e conduziram) seu movimento,

sistemicamente, penetrando e corroendo as diversas esferas da

sociedade. Argumento no sentido de dizer que a Modernidade apenas

parece ter dado lugar a outro fenômeno por conta da aparição de novos

fenômenos, antes nunca vistos, mas, em essência, o ente não se alterou;

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portanto, muito mais coerente parece ser a ideia de que ela apenas vai

se radicalizando em si própria, como afirmou Giddens41, crescendo, se

intensificando e se expandindo, com base no excesso. Não há indícios

razoáveis para crer numa “superação” da condição de moderna.

Portanto, devemos acrescentar mais um período a esta contagem, um

quarto estágio, de total radicalização, que eclode com o fim da guerra

fria e o advento da chamada revolução cibernética; a democracia, o

racionalismo e a secularização reinam nos âmbitos político, social e

econômico absolutas; há interligação e interconexão, não há mais

espaço para revoluções; os valores são efêmeros, e o culto é no sentido

do eu cria o sentimento de exclusão e incentivo do à tirania da

vontade. É na radicalidade, a fase mais agressiva e traiçoeira, na qual o

demônio se presta justamente a seu maior trunfo: convencer o homem

de que ele não existe.

Ademais, a razão pela qual se pode dizer que um período

histórico é Modernidade, e outros não, reside na identificação do

comum, da sua forma. Ora, como o Doutor Fausto, a maioria dos

homens letrados se dá conta da presença do diabo quando este já

aparece declaradamente. Como é natural, os homens se dão conta das

coisas quanto mais às necessidades se aproximam de sua vida; e, é

nesta situação que os mais virtuosos identificam a natureza dos

problemas em si, enquanto a grande maioria vê apenas uma imagem,

não transcendendo nada além do que seus olhos podem ver. Ao longo

dos anos, a Modernidade vai dar demonstrações suntuosas,

despertando o olhar crítico da sociologia e da filosofia. Na sociologia,

por exemplo, dos seus três grandes expoentes clássicos, nenhum falou

do demônio da Modernidade propriamente dito, contudo, trataram

com precisão de fenômenos importantes que nela se desenvolvem

como órgãos necessários a sua forma. E se alguém dirá que não

fizeram contribuições razoáveis para esta discussão, devemos então

perguntar se não é útil para conhecer um homem suas obras e ações,

bem como o efeito delas? Ou ainda se não é útil para o conhecimento

da natureza do homem o conhecimento da razão? Bem como para

conhecer o corpo saber sobre seus órgãos? Enfim, não é possível dizer

que a Modernidade se define e só se caracteriza como fruto da

crescente e vertiginosa industrialização, de constante revolução,

principiada na ordem capitalista, como sistema político-cultural, como

expresso nos pensamentos de Marx; nem pela impulsão da nova

divisão social do trabalho e a positividade da ciência, como constatou

Durkheim; nem mesmo por uma ética de convicção, que modificou a

racionalidade vigente, e, por produções irracionais formou um novo

espírito, ou ainda da expansiva e maximizada burocratização e

secularização presente nas instituições do mundo como coloca Weber.

Ora, do mesmo modo que não se define um homem por seu pulmão,

coração ou cérebro, mas também, jamais se dirá que estes são apenas

acidentes de seu ser, não há de desconsiderarmos a matéria que se une

à forma. A Modernidade é espírito, de todo um ambiente, como

afirmou Marshal Berman, que retém a tudo isso em si, absorvendo

suas criações como sua parte integrante, essencial e natural, no

entanto, sem se deixar definir por elas, mas permitindo sua confusão

quando olhado superficialmente. No fim, todo ambiente de

organização social, que tem e teve engendrado a si um conjunto de

experiências vitais dados no Capitalismo, Estado-Nação e Lógica de

Vida Moderna, foi e é Modernidade.

Essa forma é comum, mesmo que ocorram variações por conta

do grau de desenvolvimento – em certos casos há potências melhores

desdobradas, em outros não –, ou exista a relatividade acidental

imposta pelos fatores do plano terreno – afinal, a Modernidade no

Brasil não é igual à Modernidade da Alemanha, bem como essa difere

da Modernidade nos Emirados Árabes. A matéria muda, mas se existe

o específico é fato que exista necessariamente o geral, portanto, ainda

que as particularidades separe, o universal junta. Afinal, chimpanzés e

gorilas são igualmente símios, do mesmo modo que o Fulano e o

Cicrano são igualmente homens, e assim por diante; ninguém haveria

de contradizer isso. Mesmo que o demônio mude sua persona, não

muda sua essência – vimos isso claramente em sua aparição ao Doutor

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Fausto, primeiro como um cão treinado, posteriormente como um

estudante. Modernidade é então forma que contem formas: os

Tentáculos de Modernização. Instrumentos direto da ação, é o meio pelos

quais as experiências de viver a Modernidade se dão. Seus frutos, suas

crias, surgem e se desenvolvem no ambiente moderno, englobam seu

meio, diluem-se em seu seio, consolidam-se como poderosos agentes

da transformação, e, ao fim, enquanto prole, confunde-se com sua

própria mãe-geradora.

Podemos dizer que cada um dos Tentáculos nasce e se

desenvolve em uma esfera autônoma da sociedade: Política,

Econômica e Social42. Respectivamente, (1) Estado-Nação, o todo-

poderoso órgão controlador dos homens, é, como diz Weber,

reivindicador do monopólio legítimo da utilização da violência física43,

bem como senhor do exercício do direito, mantenedor da lei e da

ordem por seus códigos e constituições; (2) Modo de Produção

Capitalista, sistema econômico que prima pela eficiência dos meios e

eficácia dos fins em vistas do lucro, incentivando a livre competição,

transformando tudo que toca em produto ao passo que direciona os

anseios para o consumo; (3) Lógica de Vida Moderna, o sedutor e

envolvente modo de vida que liquefaz as relações sólidas, sustentado

pelos dois primeiros, permite que cada mortal seja príncipe de seu

próprio mundo, elevando o querer a imperador da existência a partir

da alienação decorrente do pacto moderno. Como instituições

primeiras e essenciais, primam pelo fim e pela função do diabo,

auxiliando em sua realização a partir do principiar das instituições

modernas – criações com uma natureza diferente de tudo dantes visto44

– sempre a partir do movimento único que marca a toda a Era

moderna: a dialética da transformação.

Em especial, Anthony Giddens, coloca que a Modernidade é

uma ordem pós-tradicional, tendo como característica básica à mudança

– e não nos deixa mentir as falas do diabo ao Dr. Fausto, referindo-se a

nova vida: viver é mudar e mudança é a vida – centrada em duas

características básicas únicas: o ritmo de mudança, uma dinâmica

absurda do movimento, que impressiona pela rapidez da velocidade

que as instituições vêm e vão no ambiente; e o escopo da mudança, o

imenso contato que se infringe as localidades do globo faz com que as

transformações sociais penetrem em todos os âmbitos, corroendo

valores, diluindo postulados e atentando contra aquilo que se anseia

eterno e perpétuo45. Essa estrutura se diferencia, gritantemente, de

toda e qualquer Era antes vista. Os tentáculos promovem, asseguram e

perpetuam a mudança, nos mais variados âmbitos da vida. Razão pela

qual Mephisto se apresenta como o gênio que a tudo nega46; ora, é em

impelir na negação, no estorvo do que existe é em que consiste essa

mudança. Esse fator torna-se a essência do funcionamento da lógica do

movimento que impulsiona a sociedade a seu fim, pois sua ação

consiste, basicamente, na não fixação de nada perpetuamente,

mantendo tudo em constante estado de vigília. Tudo no mundo

moderno, que tem criação, está em constante transformação, a fim,

naturalmente, de realizar todas as potências permitidas por seu ser, até

a plenitude completa, quando alcança o esgotamento, para assim,

posteriormente, pagar o preço da complementação da ‘ausência’ que

fora preenchida, a saber, sua existência mundana, causando então a

destruição, a qual, por sua vez, dará espaço à aparição de outra coisa,

recomeçando o processo. Tudo aquilo que se solidifica e adquire

caráter de perpetuo e eterno Mephisto torna sinônimo de velho,

colocando em oposição à inovação. É, portanto, moderno o que

ascender como novo em detrimento ao velho já existente e

previamente consagrado, bem como é velho tudo que já perdeu o valor

frente ao aparecimento da novidade. Logo, o velho só existe frente ao

novo e o novo só existe frente ao velho; contraditórios e

complementares, necessariamente.

Dessa maneira, podemos dizer que a Modernidade não se liga

ao passado, e nem estabelece ligações com ele. O demônio o tem

apenas como referência. Aquilo que já cumpriu sua função deve agora

dar espaço ao novo, pois sempre há outra alma a ser comprada frente a

que foi levada, o Salão das Almas está longe de se esvaziar. A

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mudança é então, completa, pois nunca deixa vácuo de necessidade, e

ao mesmo tempo, incompleta, pois deixa tudo em constante

transformação, dando fluidez ao progresso; em suma: é aquela força

que empenhada no mal, só o bem promove. Dada no esquecimento do

passado e na fé do futuro – afinal, quando pensam em vida moderna,

raros, ou quase ninguém, tem em vistas as origens de séculos, e as

transformações radicais do fim da Idade Média, ao contrário, estão

sempre depositando a fé e a crença do moderno como algo que ainda

está por vir, o portador de um futuro glorioso. Essa matéria que dá

forma ao ente Modernidade traz, invariavelmente, ao mesmo tempo, a

ideia de movimento eviterno, de início dado, sem final previsto,

transcendente a matéria, impregnada como conjunto de experiências, o

espírito de uma época; e, de constante transformação material do

espaço, do meio e de si mesmo, revolucionando tudo que existe,

constantemente.

Constitui-se, pois, tanto para as coisas, quanto para o homem,

ser moderno como viver e conviver constantemente com as forças em

choque, em meio à criação e a destruição, na lógica da mudança. O

doutor Fausto descobre pelas palavras de Mephisto que deve

empenhar-se na destruição para construir, e na construção para

destruir; deve viver a dialética para então ser moderno. O modo de

vida, pois, se diferencia de todos os modos tradicionais que se fizeram

presentes na história da humanidade até então, nas próprias palavras

de Giddens:

Os modos de vida produzidos pela modernidade nos

desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social,

de uma maneira que não tem precedentes. Tanto em sua

extensionalidade quanto em sua intensionalidade, as

transformações envolvidas na modernidade são mais profundas

que a maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos

precedentes. Sobre o plano extensional, elas serviram para

estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo;

em termos intensionais, elas vieram a alterar algumas das mais

íntimas e pessoais características de nossa existência cotidiana.47

Modernidade, pois, torna-se “o conceito de contraste” utilizado a

partir de então, extraindo seu significado tanto daquilo que nega,

como do que afirma48. Mephistopheles é implacável: realiza os maiores

e mais profundos desejos dos homens, ao passo que lhe cobra valor

danoso. Com a mesma força que constrói, destrói, para depois

construir de novo o que mais a frente será destruído. Esta premissa é o

que dá vida ao seu maior braço, o espectro de transformação da

Modernidade: a Modernização. Ela age em função do ambiente e,

reforma ou destrói o espaço, de acordo com a necessidade ou

conveniência da Modernidade, mantendo a mudança, em estado de

constante vigília, por meio da revolução permanente – característica

marcante que vai consolidar os tentáculos, as instituições e os produtos

de todas as criações sob a influência e poder do diabo infernal. Traz

satisfação e insatisfação; prazer e dor; alegria e tristeza, explorando,

através de características peculiares, formadas ao longo da história, a

nova vida do homem: a vida faústica.

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Capítulo VI O Aborto do Esclarecido

Naturalmente, Hobbes não fora o único que buscou uma

solução para o problema posto ao nascer da Modernidade. John Locke

(1632-1704) aparece posteriormente com o fim de buscar o melhor

pacto que funde a sociedade. Hobbes demonstra como as paixões

movem o homem em busca de seus desejos, bem como podemos ir à

guerra pela razão, por conta do medo e da esperança que cada um tem

– como já fora explanado anteriormente. Por isso é necessário o

Leviatã, o homem artificial49, que coloque todos em respeito, e force os

homens a tirar proveito da companhia uns dos outros. Locke crê que o

pacto que funda o soberano não põe fim à guerra, apenas a leva para

outra instancia, mais perigoso e mais terrível, pois é o próprio

soberano um particular que oprime os outros particulares: em suma,

ela cria um déspota absoluto, pois é o soberano também um particular.

Seus argumentos se baseiam na inversão do Leviatã, pois, o

pacto que funda sociedade civil é anterior ao pacto que funda o

Estado. Como são todos iguais e irmãos, vindos do mesmo Ser, não é

racional que se atente contra a vida do outro, o direito de preservação

é então coletivo, de toda a humanidade, e não do particular. Criar o

mal a um igual significa criar um mal a si próprio; atentar contra a

propriedade natural significa atentar contra a si pela igualdade e a seu

Dono pela criação. Para Locke, aquele que se presta a tal ação

temerária não está dizendo que merece ou pode receber igual

tratamento como em Hobbes, apenas está se declarando diferente dos

demais, isto é, fora da humanidade. É razoável então caçar e executar

este homem por justiça: fazendo-lhe um mal que criará dois bens, (1)

evitará que se repita e (2) desenvolvera a obrigação da reparação do

dano, fatores que manterão a estabilidade do coletivo. Para Locke o

poder executivo é dado pela força dos homens, do coletivo da

humanidade, existe naturalmente, não precisa ser criado. O poder

artificial, o político, é apenas legislativo, deve se pautar na criação das

leis positivas que assegurem o principio de justiça natural (citado

anteriormente). Locke fará então a distinção entre governo e Soberano,

pois o governo é fundação artificial, administrador e executor, o

funcionário do Soberano, que, por sua vez, é o próprio povo, a

assembleia reunida. Um governo não deve ser Soberano, pois, neste

caso, significa que um particular usurpou o poder, declarando-se mais

que os outros. O Estado de um déspota absoluto é um mal particular,

travestido de público, que atenta contra os particulares. Neste caso, é

razoável decapitar um rei, é justo derrubar o governo, é legitima a

insurreição contra o Estado, pois se tem um caso claro de violação do

direito natural – Locke é o primeiro a assegurar uma revolta civil como

direito. Ao contrario de Hobbes, Locke não está atrás da segurança,

mas sim da legitimidade, dada apenas quando não se há poder

absoluto, e o Soberano é a própria reunião da comunidade, pela

confraternização, limitada pela razão e o direito natural, não atentando

a propriedade50.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) segue o raciocínio do

direito natural, contudo, atenua dizendo que os homens não escolhem

a sociedade, eles são empurrados a ela, em um dado momento que não

pode ser apontado. Para Rousseau, quando os homens não se

bastaram por si só, foi preciso à união; pois o homem é um animal que

não possui vantagem alguma, sozinho ele jamais iria procurar a

guerra, nem mesmo a companhia alheia51; contrariando Locke e

Hobbes, simultaneamente. No estado de natureza, o homem apenas

busca a sua conservação, guiado pelo amor a si, que vem do coração,

única fonte de verdade legítima52. A questão é que, desta união, dado

pelo montante de homens, conjura-se a força, mas, em compensação,

cria-se a alienação. O argumento de Rousseau centra-se na ideia de

que, em sociedade, o homem precisa olhar para o outro. Esse

movimento vai afasta-lo do ‘amor de si’ e conduzi-lo ao ‘amor a sua

persona’, isto é a máscara que ele veste perante todos. Em suma, o

mais importante não é como alguém vê a si mesmo, mas como os

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outros o veem. Cria-se uma sociedade marcada pela perda do ‘eu’ e a

supervalorização de uma imagem social, nas múltiplas representações

que cada um usa no cotidiano, as quais, juntas, formam o ‘eu’. No fim,

o homem nasce livre, contudo, está cercado de grilhões por todos os

lados, pois sai de sua liberdade individual natural para entrar na

liberdade civil artificial53. Sua critica aos seus antecessores se dá no

sentido de que as soluções propostas perdem o homem como

referencial sempre, impulsionando uma sociedade que não deixa o

indivíduo florescer: seja por Hobbes, em sua alienação empírica do

homem em função da sobrevivência; ou por Locke, em sua alienação

metafísica em função das posses. Perder-se, para Rousseau, é viver no

mundo das sombras.

A sociedade é o problema. A união social traz a necessidade de

olhar a si mesmo pelos olhos alheios. Ela traz o estado de mal quando

corrompe a natureza dada. Precisa ser ‘refeita’. Segundo Rousseau, em

toda a natureza pode se encontrar ordem, mas, na sociedade não, ela é

a expressão do caos54. A esperança de Rousseau em fazer uma

sociedade mais justa reside na máxima de seu pacto: em tornar o

homem tão livre quanto no estado de natureza, resgatando seu amor a

si. Rousseau vai dar total ênfase ao indivíduo. Não mais Deus ou a

Sociedade são o cerne do pensamento, agora, o homem é o único fator

de importância, e só a ele deve-se voltar todo o pensamento. Rousseau

será o homem que vai influenciar fortemente os ilustrados de seu

futuro, homens que, analisando sua presente sociedade observavam a

filosofia católica enfraquecida, o social em crise, e a onda crescente da

filosofia em busca de respostas ao século de terror e perigo.

Ao chegar do famoso Século das Luzes, vem o Iluminismo55:

aquele aspecto que vai ajudar a dar forma e corpo à ideia de destruição

dos valores tradicionais ainda vigentes. Apaixonados por Rousseau e

suas proposições tão positivas, estouram a corrente filosófica que, ao

passo que se cria com base nos filósofos do Século XVII, como Rene

Descartes, Francis Bacon de Verulamio, Michel de Montaigne (1533-

1592), Baruch Spinoza (1632-1677), Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac

Newton (1643-1727) também lhes dá novo significado e novas

perspectivas56. Trazia a união da razão e da observação em um método

só, alegando que a mente pode apreender o conhecimento,

questionando a ideia de que tudo está pronto, dado por Deus. Em

suma, viam nas proposições do racionalismo e do empirismo fatores

para criar um método, que poderia refazer a sociedade. Grosso modo,

esse método passava pela transformação radical do sujeito em relação

aos antigos, com base no resgate e ressignificação de Descartes e

Montaigne. (1) o primeiro, por conta do tocante da razão e de sua

busca. Descartes parte de si, de suas dúvidas, a fim de encontrar aquilo

que faz do homem ‘Homem’. Concebe assim o seu cogito de existência:

o sujeito enquanto racional conhece o mundo objetivo, pelo contato

com as ideias, a partir da abstração de toda a matéria. É a razão a

essência do homem, bem como único modo de conhecer todas as

coisas57. (2) Já Montaigne, por outro lado, não vê um mundo objetivo,

tudo é um para si, e o conhecimento das coisas é dado apenas na

experiência particularíssima. Existe uma ética nas ações do homem

para consigo mesmo, que despreza qualquer existência de uma

natureza ou coisas que estão além do conhecimento subjetivo, afinal,

estes não podem ser provados, não há nada que assegure essa

existência58. A questão é então uma ‘combinação’ dos preceitos: o

sentido subjetivo do homem que conhece a si e não carece de ajuda

externa do social preenche em matéria aquele espírito capaz de

conhecer o mundo objetivo. O sujeito é, portanto, racional e ético, tem

a capacidade de conhecer e reconhecer, através de juízos a priori e a

posteriori59; faz-se então capaz de transformar a sociedade da melhor

maneira possível, baseado na razão e na observação, focando a

verdade, verificando o que é lógico, razoável e adequado.

Para o Iluminismo a maneira pela qual a sociedade estava

organizada estava errada, o indivíduo é o dono de si mesmo, somente

precisa da consciência para exercer sua liberdade. Como relata

Immanuel Kant (1724-1804) o Iluminismo é a libertação do individuo

das amarras que o prendem:

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"O Iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma

tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são

aqueles que se encontram incapazes de fazer uso da própria

razão independentemente da direção de outrem. É-se culpado

da própria tutelagem quando esta resulta não de uma

deficiência do entendimento mas da falta de resolução e

coragem para se fazer uso do entendimento independentemente

da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso

da tua própria razão! - esse é o lema do Iluminismo” 60

O era o que faltava à Modernidade. Sua filosofia agia contra

aquilo que o demônio negava, combatendo a tradição revelada, e se

chocando com a estática proveniente da naturalização da sociedade

pelos valores e dogmas da ética católica e de toda antiguidade.

Segundo a perspectiva do movimento, as Intuições Tradicionais das

sociedades da Antiguidade e Medievalidade eram contrárias à

natureza do homem61; o homem nasce bom, limpo e puro, é a

sociedade que o corrompe; naturalmente, ele tinha posses e o direito a

elas, bem como suas paixões nada tinham de pecado ou maldade,

retomando partes do discurso de Locke e Hobbes. Não se faziam

necessários os freios sociais propagadas pela Igreja Católica ou pela

filosofia antiga. A índole humana não carece de controles. O medo e o

desespero só vinham por conta da organização social que travava o

homem, prendendo- o numa hierarquia violenta e abusiva.

Ademais, o Iluminismo vinha para destituir aquilo que se

colocava como fanatismo em relação ao pensamento, tendo por base a

esfera do dogma, e, portanto, instaurado sem base racional, cerceando

o desenvolvimento das forças da humanidade. Era preciso demolir a

Cidade de Deus62, dar um basta à hegemonia do pensamento que

favorecia o social e preteria o indivíduo, pois já se fazia insuportável a

partir da tomada de consciência pensar na sociedade e suas

instituições (as castas sociais, a Igreja, o Estado, a ética e moral católica)

que sufocavam e prendiam o homem. Os valores tradicionais

“antigos” não permitiam o florescimento das potencialidades

humanas; somente a razão e a vontade-livre do homem devem ter

espaço no seio social. O poderoso espírito de mudanças pretendia

alterar tudo aquilo que se apresentava a seus olhos como irracional e

infundado.

O fato é que o papel aceita tudo – como lembrou Catarina II da

Rússia ao iluminista Voltaire – diferente da realidade, um tanto mais

trágica. A construção de sujeito, confeccionada no iluminismo, ora

resgatando os preceitos convenientes dos filósofos anteriores, ora

reinventando outros, não figurou da maneira fixa e determinada como

esperado. Quando foi a realidade, naturalmente, não obteve os

resultados ansiados, como nos mostra o correr da história. Prestou-se

mais a um ideal de homem a ser perseguido, um objeto de crença, do

que uma realidade propriamente dita. Procurava-se deixar de lado os

dogmas religiosos que anteriormente organizavam a sociedade, mas,

na prática, apenas substituiu o objeto de crença: da religião par aa

ciência – “a razão se converteu como o Deus desses filósofos”63. No

movimento que faz o homem em busca de seus desejos, dispondo de

tudo para tal, esquece-se do cuidado de si mesmo e da busca do bem,

deixando a ética de lado, centrando apenas no sentido subjetivo do

gosto e da paixão; a razão conhecedora do mundo objetivo reduz-se a

instrumento de calculo, perdendo seu sentido deliberador e

moderador; no fim, a supervalorização da própria ‘persona’ faz com

que os homens deem mais valor a representações que os demais têm

dele, ao que realmente é...

No fim, efetivamente, o projeto Iluminista se degenera nas

mãos do demônio, provando serem vãs as tentativas de controle do

poder da Modernidade. Não nos deixam mentir as revoluções

políticas, sociais e econômicas.

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Capítulo VII A Onda Revolucionaria e suas Reverberações

Vem então a Revolução Francesa. Oportunidade de ouro para

valer os preceitos iluministas na prática. Acreditavam os homens que

este era o grande momento de mudança, o mundo jamais seria o

mesmo. E, de certo modo estavam certos. Só esperavam que os

resultados das mudanças lhe fossem favoráveis ao fim. Todavia, a

realidade fora muito mais cruel. O sonho d’A Revolução Francesa de

tornar o mundo mais esclarecido, racional e adequado, a bel-prazer

dos homens ‘iluminados’ transformou-se num pesadelo de sangue e

fúria.

O fenômeno da revolução foi parido no desejo de cassar os

privilégios do primeiro e do segundo estado, e dar devida participação

política com peso ao terceiro estado (em número absoluto,

absurdamente maior que os outros dois juntos), bem como o findar a

fome e a miséria, que tornavam a vida cada vez mais terrível. Em

geral, a situação do povo nunca na história tinha conduzido a uma

revolução, haviam criado revoltas ou insurgências, mas nada tão fora

do controle. Dessa vez era diferente. A França era um país no qual a

maioria de seu povo encontrava-se na pobreza derradeira, as

condições de trabalho eram horríveis, e a miséria e sofrimento era a

regra na vida das pessoas. Ademais, o modelo de administração

política adotado (o absolutismo monárquico), passava por uma imensa

perda de força com as dívidas conseguidas com a derrota na Guerra

dos Setes Anos e a ajuda fornecida aos americanos em sua

independência, fora os gastos astronômicos da corte com a nobreza e o

clero. O surgimento do movimento era inevitável. O terceiro estado se

revolta e toma a Bastilha. A Revolução estava instaurada. Agora, os

homens, impulsionados pelos ideais iluministas, se debruçam a criar a

‘sociedade perfeita’.

Em um curto espaço de tempo (quando falamos da história da

sociedade, dez anos não são nada) se criam as assembleias constituinte

e legislativa, a monarquia é deposta, o rei é caçado e decapitado,

declarações de direito e constituições são promulgadas, os partidos

entram em conflito, conspirações dominam a política, a França é

invadida pela Áustria e pela Prússia, enfim, em meio a revolução a

instabilidade, a insegurança e a efemeridade são a regra. Nada

permanece, tudo é fugaz e passageiro. Um período em especial deve

ser destacado: A República Jacobina. Este período é marcado como

sendo o ponto mais intenso e agressivo de toda a Revolução. Os

Jacobinos (a pequena burguesia), com a ajuda da Comuna de Paris e

do sans-culottes, assumem o poder. Em 1793, Luís XVI e Maria

Antonieta foram executados em praça pública, fato que fez as outras

nações monárquicas formarem uma aliança contra a França

Revolucionária, naturalmente, liderada pela Inglaterra (inimiga

histórica dos franceses), a qual financiava contingentes militares para

conter o ímpeto da burguesia francesa, bem como incitava a discórdia

nas facções, tendo ajuda da nobreza e do clero. A situação vai

tornando-se crítica, e os conflitos se intensificando. Os Girondinos (alta

burguesia) começam a ficar receosos com os rumos da Revolução, pois

tinham suas posses e bens para zelar, tentam então freiam os ânimos,

contudo, sem sucesso. O povo, revoltado, cerca a Convenção, e pede a

cabeça dos deputados girondinos. Instaura-se a fraqueza econômica, e

o movimento contrarrevolucionário cresce. É neste momento que

Maximilien François Marie Isidore de Robespierre (1758-1794), Jean-

Paul Marah (1743-1793) e George Jacques Dalton (1759-1794) assumem

o controle do governo, através da Convenção Montanhesa.

Começa então o ponto mais crítico de toda a Revolução. Os

Jacobinos, liderados por Robispierre, instauram diversos comitês para

conter os movimentos contrarrevolução, mobilizam contingentes a

lutar pela França e controlam o governo; dentre as medidas, destaca-se

aquela que vai ser ponto principal: O Tribunal Revolucionário, o qual

julgava e condenava os inimigos do movimento. Estima-se que de

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trinta a quarenta mil pessoas tenham sido guilhotinadas neste período.

Os inimigos eram caçados, julgados e condenados. Arbitrariamente.

Os direitos civis foram cancelados temporariamente. Dava-se inicio ao

Terror. Ora, a instabilidade cresce de maneira tão vertiginosa, a revolta

adquire tamanha proporção que envolve a tudo e a todos, por todos os

cantos, de maneira selvagem, indestrutível e incontrolável, jamais visto

em toda a história do mundo. Nem a monarquia e nem a burguesia,

nem os jacobinos e nem girondinos, nem príncipes e nem os padres,

sobretudo, nenhum poder humano podia controlar o terror e a

desordem e seus efeitos que explodem com o movimento

revolucionário. Ademais, parece que uma revolução não tem amigos, e

seus inimigos só crescem. Nela, tudo é mais intenso, a raiva, a

ganância, a cobiça, a mentira, a vaidade, a inveja, a ira, a opinião, e os

dogmas; as paixões afloram de modo mais intenso, e no fim, aquilo

que tinha por fim fazer um “mundo melhor” instaura um período de

guerra e terror.

Por uma ironia do destino, apesar de demonstrar conhecer a

lógica daquilo que estava envolvido, o próprio Robispierre tem um fim

trágico. A lâmina voraz e cruel criada para destruir os inimigos do

movimento revolucionário possuía uma sede de sangue tão grande e

furiosa que somente cessou quando a cabeça de seu maior comandante

foi ao chão64. A falta de virtude de Robispierre, somada a sua

imoderação desastrosa, o conduziu a este triste fim. Desgastada com os

excessos da revolução, a burguesia queria paz e segurança para

administrar seus negócios, sem os congelamentos de preços – posição

defendida por Danton, por exemplo. Ora, não é o fim do medo da

morte violente e o fortalecimento da esperança de prosperar com o

trabalho que falamos aqui? Mas, Robispierre queria mais, tomou uma

série de medidas impopulares, em nome da pátria, destruindo os

radicais da direita e da esquerda, permanecendo sozinho no poder. Os

sobreviventes do Terror, aliados aos deputados descontentes,

articulam um golpe, e em 9 Termidor (de acordo com o calendário

revolucionário), tomam o poder, e derrubam Robispierre, que, já não

tinha defensores ou aliados que pudessem salvar sua vida.

Desencadeou tanto ódio de seus inimigos, quanto o desprezo de seus

amigos. Os jacobinos são perseguidos e guilhotinados. O projeto

burguês surge: os preços são descongelados, os clubes políticos

dissolvidos, o Tribunal Revolucionário encerrado, chega ao fim às

prisões e os julgamentos arbitrários, e se estabelece o Diretório. É o fim

do sonho popular. A alta burguesia Girondina retorna ao poder. A

Revolução ainda vai se desdobrar outras várias vezes, até que o

processo revolucionário culmine na chegada do Imperador Napoleão

Bonaparte.

A onda revolucionária e seus efeitos que atingem a Europa e as

colônias americanas, por um longo período de tempo. E antes de

iniciar a este assunto, àqueles que argumentam acerca do fato das

“libertações coloniais” não serem revoluções propriamente ditas, devo

dizer-lhes que não cabe aqui discutir o que é e o que não é revolução,

pois o presente trabalho não se presta a isso; ademais, estão estas

incluídas na “onda revolucionária”, pois nascem da influência do

iluminismo e contribuem para a transformação do Estado-Nação em

que se desenvolvem, razões mais do que justa para considera-las.

Além do mais, o primeiro movimento, e muito provavelmente o mais

bem sucedido, fora a Guerra de Independência dos Estados Unidos.

Os ideais iluministas motivavam e incendeiam a guerra pela libertação

das Treze Colônias do julgo da Coroa Inglesa; pela primeira vez na

história da expansão europeia, uma colônia se tornava independente

da por ato revolucionário; e não, obstante, a redação de sua carta

proclamava o direito de liberdade de escolha e a independência de

cada povo e de cada pessoa (buscando em Locke, todos têm o direito

inalienável à vida, a liberdade e a procura da felicidade). Na França, a

Revolução Francesa, vem para destruir por total os privilégios de

nascença, oriundos da era Feudal, e instaurar a burguesia como classe

dominante em detrimento aos nobres aristocráticos. Na Inglaterra a

Revolução Gloriosa põe fim definitivo à possibilidade de retorno à

guerra civil depondo o rei católico James II, para estabelecer a

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monarquia protestante com Willian de Orange, agora parlamentar e

constitucional, com os poderes do monarca descrito no Bill of Rights,

destituindo o terror do absolutismo. No Brasil, após a Revolução

Liberal do Porto, em Portugal, e a noticia de que o Brasil deveria voltar

ao status de colônia, influencia por José Bonifácio (chamada depois de

O Patriarca da Independência) e seus ideais iluministas, o príncipe

regente, Dom Pedro I, impelido pelas circunstâncias, declara o

processo de independência a fim de romper com o Reino Unido de

Portugal e Algarves, fundando o Estado brasileiro. Entre tantos outros.

E, muito embora os camponeses, pequenos comerciantes e

trabalhadores autônomos sentiram-se abraçados e participaram nas

linhas de frente das revoluções, por diversas vezes até pegando em

armas, todos os movimentos revolucionários se constituíam como a

universalização de um particular para o todo, não eram nada mais que

a tomada de poder por uma vanguarda “iluminada”, liberal burguesa.

E claro, naturalmente, todo o processo da onda revolucionário não se

deu de forma unificada no mundo. Uns foram mais tardios, outros

mais precoces, uns mais pacíficos e rápidos como a Inglaterra e sua

Monarquia Parlamentar outros mais violentos e complexos como a

França e seu processo revolucionário do Terror Jacobino ao imperador

Napoleão. No entanto, não é relevante aqui às particularidades delas, e

sim a lei geral, pautada no único fato que une a todas: a consolidação

do Estado-Nação em seus respectivos países.

As revoluções são feitas em nome do princípio lockeano de

insurreição, por conta do abuso de poder por parte dos soberanos.

Distingue-se o governo do soberano, assegurando o primeiro como

funcionário do segundo65, portanto, dissolúvel e efêmero dentro dos

padrões. É o Estado, na forma das assembleias –isto é, do governo – o

único a fazer as leis, como nas ideias lockeanas, mas, por Hobbes se

pactuam a soberania nacional com o direito de guerra do Estado contra

qualquer outro que possa lhe conferir mal, bem como a manutenção da

ordem e da segurança interna. O Estado é, como diz Weber66, aquele

que vai requerer o monopólio legítimo da utilização da coerção física

exclusivo, pois conjurou a força a união de todos os homens como já

colocava Rousseau67. A Montesquieu recorre-se para separar os

poderes (executivo, judiciário e legislativo), de forma a dar corpo a um

esquema que poder contenha poder e se evite a usurpação68. Com a

criação dos parlamentos e assembleias, o controle, a aplicação e a

criação das leis, antes dispersos nas mãos de senhores e reis, passa ao

Soberano, e assim, logo vem às constituições nacionais de direito:

regentes da conduta do cidadão nas mais variadas instâncias, sempre

genéricas e abstratas, de cunho racional, tem como fim prever e regrar

todos os movimentos necessários à manutenção da ordem. Os homens

abrem mão de sua ‘liberdade natural’ para ganharem a paz,

assegurada pelo direito e força, podendo dispor de tudo que a lei não

toque. Não obstante, adotam a sua moral, sua religião, suas crenças,

sua ‘ciência’, suas opiniões, e tudo aquilo que da esfera privada

puderem dispor.

A máquina administrativa do governo estatal absorve a razão

instrumental, assimilando a impessoalidade nos seus procedimentos

legais, se pautando em fixar aquilo que é razoável para se alcançar o

objetivo (a adequação de meios a fins). É neste contexto que vem a

burocracia, a qual, segundo Weber, é o principio de eficiência para

alcance da eficiência, em si. Surge então um novo corpo técnico,

diferente do anterior, dando-se por meio da especialização das

variadas técnicas e áreas de saber – radicalizando o processo iniciado

nas cruzadas de redistribuição do conhecimento. Essa burocracia

constitui passa a regular todas as instancias que cabem a sua rotina

administrativa, as quais, por definição, pertencem ao setor público –

desde a as relações externas até o modo pelo qual se dão os serviços de

utilidade, como saúde, habitação, transporte, educação, etc.,

permanecendo neutra e imutável (no mais das vezes, o serviço

burocrata estatal é feito por servidores públicos, os quais tem relativa

instabilidade; e, mesmo que não, é fato que não mudam a cada

eleição).

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No mais, o Estado mantém, por meio do voto democrático a

constante revolução das instâncias políticas dirigentes – aqueles que

Weber vai chamar de Políticos por vocação –, sustentando a alienação

do homem do governo de si e dos outros na esfera pública. Pois, não

importa a roupagem que adote: socialista, liberal, democrático,

conservador, etc., o racionalismo estatal constitui-se como o bem em si,

e não mais o instrumento que deveria busca-lo, desvirtuando

sordidamente o princípio que buscava o geral – aquilo que seria

comum à comunidade – na forma da lei, anterior a modernidade. No

fim, mantem-se a constante revolução que dá liga a efemeridade do

mundo moderno.

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Capítulo VIII Deus Ex Machina, Vem o Capitalismo

Enquanto tocante à economia, como se constata

historicamente, o período ambientado em uma Modernidade ainda em

formação, é marcado por uma forma híbrida, nem totalmente

feudalista, nem ainda totalmente capitalista, isto é, tomada pelo

comércio já expandido, mais ainda com fortes traços da cultura

agrária. É o processo de definhamento do primeiro e surgimento do

segundo, contudo, sem hegemonia de qualquer um que seja. A esse

momento dá-se o nome de Mercantilismo. Em teoria, o Mercantilismo

é o conjunto de praticas econômicas, que, dentre outras coisas se valia

da crença que as riquezas das nações estariam na acumulação de

metais preciosos (chamado metalismo), no comércio externo com alto

teor de ganhos, monopólio comercial, incentivo ao desenvolvimento

do comércio das Nações e crescimento econômico acentuado. Assim, a

ordem dos príncipes era que o Estado vendesse seus produtos

manufaturados com valor altíssimo a qualquer comprador que

pudesse pagar seus altos preços arbitrários, garantindo assim uma taxa

de lucro elevada. O direito natural era cerne do pensamento

mercantilista - “o homem tudo pode por natureza” vale a economia

também.

Assim, as grandes expedições exploravam locais conquistados

(as colônias) e extorquiam os compradores das outras nações. Criava-

se um “estado de natureza” semelhante ao dito por Hobbes, onde,

justiça era fazer uso de todo o poder que detinha em prol de seu

Estado. Isso legitimava a gigantesca onda de saques e pirataria, na

qual, a corrida era sempre em função do metal precioso (ouro e prata).

Uma das maiores prejudicadas por essas práticas fora a Espanha. Em

virtude das inúmeras remessas de ouro e prata que enviava da

América Espanhola para o Velho Mundo, os navios da coroa

espanhola atraiam a atenção dos piratas, e assim, frequentemente eram

atacados e pilhados. Valido ressaltar que, como não existia norma

internacional, e a fiscalização marítima era pífia, muitos Estados se

valiam da pirataria para alcançar seus objetivos, seja contratando

piratas (chamados corsários) ou criando sua própria frota de piratas

(piratas da coroa, por mais estranho que possa parecer). A Inglaterra e

a Holanda utilizaram demasiadamente esta técnica. Em suma, as

grandes nações europeias, potências militares e econômicas,

enriqueciam mais e mais à custa da exploração das colônias e das

nações menos favorecidas. Essa acumulação viria a ser

importantíssima para o desenvolvimento do Capitalismo.

Grosso modo, pode-se dizer que esse período da sustentação e

forja as bases do que posteriormente seria o real Capitalismo. O

Mercantilismo era sistema perfeito para os Estados-Nação ainda em

menoridade. Enriquecia-se e o poder político-econômico aumentava

cada vez mais à medida que (1) o Pacto-Colonial assegurava a retirada

de matéria-prima das colônias sem custo algum, bem como o

monopólio do comércio entre a Metrópole e a colônia; (2) a rapinagem,

os constantes saques e a pirataria legal preenchiam os cofres em

caráter de “presente”; (3) o protecionismo alfandegário, sob a cultura

da balança comercial favorável (mais exportação do que importação)

assegurava grandes ganhos; (4) bem como os inúmeros impostos de

valores elevadíssimos asseguravam arrecadações fora do comum.

Ademais, essa situação impulsiona o comércio e a estrutura financeira-

bancária à medida que faz circular os produtos, exige manufatura e

requer financiamentos para produção e empresas estatais. No entanto,

a estrutura que se tinha começa a se tornar insuficiente para atender a

demanda do novo mundo moderno. Não se tinha espaço para

produção de matéria-prima e nem trabalhadores que se dispunham à

produção... Um novo problema começa a se desenhar.

Ora, a necessidade é a rainha de todas as invenções: inicia-se a

política de destruição da vassalagem. A Inglaterra é pioneira nessa

empresa. Com sua nobreza “aburguesada”, disposta e inclinada a

novas práticas de produção, e o Estado, através do “cercamento”69,

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expulsam os camponeses dos antigos mansos servis, separando-os, ao

mesmo tempo, da terra e dos meios de produção que dispunham para

sua subsistência; não obstante, existiam imensos acres de terras

ociosas, de posse da Igreja Católica, que, com a explosão da Reforma

Protestante, e instauração do Anglicanismo, passam a ser

“secularizadas”70. Com essas medidas, cria-se uma alta concentração

de propriedade, em posse da nobreza ou do Estado (que por titulo

mobiliário certifica a posse71 a outros nobres menos favorecidos

naturalmente, a fim de incentivar a produção). O esquema servil é

dissolvido, os privilégios de nascimento entram em ruína e cria-se a

propriedade privada. Era preciso então garantir que a massa de

potenciais trabalhadores não criasse problemas e caminhasse para seu

lugar na manufatura. O Estado cria então as chamadas Leis

Sanguinárias: (1) a Lei da Vadiagem, que impedia o desemprego livre

e a esmola nas ruas, forçando o camponês a procurar emprego, e (2)

Lei do Rebaixamento do Trabalhão, principal impedimento que tinha

um trabalhador de ganhar mais que um determinado valor, mantendo

a concorrência estável. Ademais, segundo Karl Marx, tais medidas,

somadas a explosão do comércio e das atividades financeiro-bancárias

pelo mundo impulsionado pelas cidades Italianas (Genova e Veneza

principalmente) e o sistema Mercantilista dão início a três novas

classes devidamente transformadas: a primeira, uma nobreza

reformada, detentora ainda detinha alguns privilégios naturais,

senhora da renda da terra; a segunda, uma massa ociosa de

camponeses, destituída de seus meios de subsistência, chamada de

proletariado; e, por fim, uma terceira, e muito importante classe, a

burguesia72.

Naquele momento, início da Idade Moderna, a burguesia não

detinha respeito algum por parte da classe dominante, a saber, a

nobreza aristocrática e a realeza das cortes. Como, desde época dos

burgos medievais73, por falta de opções melhores, senão as vias

celeradas, os burgueses se prestavam às práticas voltadas ao comércio

e o serviço monetário, e estritamente por isso eram desprezados. Fato é

que nunca imaginaram com sua atividade simples enriquecer, muito

menos tomar o poder, contudo, com a ascensão do ambiente moderno,

o comércio desperta novamente, a circulação financeira ganha nova

vida, e aqueles que já eram versados nesta arte ganham posição

especial. Mais tarde, as nações passam a importar matéria-prima e

exportar produtos, os quais abasteciam o mercado da compra e venda,

dando condições ao enriquecimento e ascensão social dessa classe

outrora condenada a mediocridade. Muitos burgueses ricos casam-se

com filhas de nobres importantes, e outros até compravam títulos de

nobreza74. Ademais, esse enriquecimento vai possibilitar a burguesia

assumir o papel preponderante no sistema capitalista: detentora dos

meios necessários a viabilizar a produção. A dinâmica era muito mais

complexa e completamente diferente do feudalismo. No capitalismo,

para dar principio a uma comunidade econômica industrial era

estritamente necessário o capital. Somente por meio dele que era

possível adquirir as posses: prédios, máquinas, instrumentos

(classificados como capital constante, isto é, aquilo que não muda),

matéria-prima e mão-de-obra (classificados como capital variável,

aquilo que se altera e se deteriora ao longo do tempo). A soma do

capital variável e do capital constante se dá o nome de meios de

produção. A burguesia era a classe que se encarregava de providenciar

o capital, para assim administrar os meios de produção e arrendar a

terra da nobreza, e ditando o ritmo da manufatura.

Naturalmente, os países protestantes foram pioneiros nesta

ação. Fora neles que melhor se desenvolveu as atividades capitalistas,

manufatureiras e comerciais, com intensa produção, compra e venda

no mercado externo, ao contrario dos países fiéis ao catolicismo, os

quais apresentavam um considerável atraso neste sentido. A Inglaterra

foi à pioneira neste movimento. A corrente expansão de seu mercado

interno pela conquista de inúmeras novas colônias, estendendo o

Commowealth, bem como a necessidade de abastecimento do mercado

externo em função da fraca produção de países como Espanha e

Portugal, e dos acordos comerciais favoráveis para venda de seus

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produtos com exclusividade e preços vantajoso, criaram a necessidade

de que se investisse, constantemente, em ciência e tecnologia para

revolucionar as técnicas de produção. Inegavelmente, o Império

Britânico foi o melhor Estado-Nação que empregou as riquezas

acumuladas na época do mercantilismo, por rapinagem ou vendas a

altos preços; ademais, detinha abundancia de ferro e carvão, minérios

de alta utilização neste período, bem como a abundancia de mão-de-

obra e grandes latifúndios em função dos cercamentos. O Capitalismo

comercial e manufatureiro que se tinha não dava mais conta da

necessidade do mundo, para se alcançar o novo fim (de larga

produção, e consequentemente maiores lucros) era preciso uma nova

forma de ação, revolução dos meios. Doravante, nasce ali a chamada

Revolução Industrial.

Surge a máquina, na substituição da manufatura e os motores,

alimentados pelo carvão como nova forma de energia, em detrimento

ao trabalho braçal do homem. A instalação das máquinas a vapor na

tecelagem aumentava vertiginosamente a produção, e, por

conseguinte, o lucro da burguesia. Os investimentos em tecnologia

tornam-se imensos, e por toda a Grã-Bretanha (posteriormente, o

mundo), inovações surgem, como novas máquinas fiadoras e

lançadeiras que economizavam a ação humana em até duzentos para

um. O real Capitalismo começa a se firmar, e a dinâmica é

intensificada. Em resposta a essa necessidade que nasce à fábrica

moderna, financiada pelo capital da burguesia. Era uma unidade

completamente diferente de tudo que se conhecia até então, dotada de

maquinários automatizados, múltiplos esquemas de operações,

confeccionada pela lógica racional e embasada nas ciências exatas, seu

maior fim era a transformação da matéria-prima em produto final.

Mas, apenas os meios de produção, mesmo que dotados de forte

tecnologia a produção não sobreviveria. A “escravidão” procederia,

pois as fiandeiras não fiavam sozinhas, muito menos as lançadeiras

lançavam sozinhas75 – embora muitos achassem naquele momento,

diante das transformações que esta situação era questão de tempo –;

era preciso a presença dos trabalhadores assalariados, pois se as

máquinas aumentavam a produção, também aumentava a necessidade

de operação das mesmas. A fábrica torna-se também o local de reunião

dos trabalhadores: todos sob o mesmo teto, unidos pelo trabalho, sob

uma nova dinâmica de produção, a qual instaura uma nova divisão

social do trabalho como reação necessária.

É fato que, como constata Marx, a cooperação existe em toda

organização social, pois não existe sociedade sem relação entre os

homens. Nas sociedades primitivas, no que toca a questão do trabalho,

a cooperação vai se dar pela relação homens na trocas dos produtos

(aquele que faz o jarro troca com quem faz o arco e flecha, que por sua

vez troca com quem tira leite das vacas e assim por diante); bem como

a divisão das tarefas reside na questão sexual: homens fazem

determinadas coisas, mulheres fazem determinadas coisas76. Na

Modernidade industrial muda-se então o foco da questão sexual, para

uma atividade em conjunto, maximizadora da produção: cada um faz

sua parte devida, assumindo seu lugar no processo produtivo, sendo

que ninguém tem contato com toda a produção; o trabalhador está

então, alienado do processo como um todo; o artesão que antes

administrava a confecção de um produto, do início ao fim, com a

dinâmica capitalista, passa a conhecer e ser responsável apenas por

parte dela, perdendo assim, por conseguinte, a noção da quantidade

de trabalho para realizar a confecção de cada produto77. Toda

produção se concentra na ação do homem, por sua determinada

função, em determinada etapa, exercida através do maquinário

existente. Essa nova situação traz duas consequências: a destruição da

relação homem-natureza e a criação da relação homem-máquina e a

separação do trabalho intelectual do trabalho manual.

O homem, pré-capitalista, tinha seu trabalho relacionado à

natureza. Todos os homens eram independentes, confeccionavam o

produto por inteiro, há seu tempo, interagindo diretamente com a

natureza, através de suas próprias ferramentas e meios de produção.

Com os cercamentos e a recente industrialização o camponês perde

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espaço no campo e é forçado a migrar para cidade. A fábrica reduzia

ao status de “brincadeira” todo o tipo de produção visto anteriormente

no que diz respeito à quantidade e tempo. O ambiente moderno já não

tinha espaço para pequenos artesões e comerciantes. Sem meios de

produção, ele perde sua independência, sendo levado à falência caindo

em vadiagem ou forçado a se render às garras da fábrica, absorvido

como parte da grande massa dos trabalhadores industriais. O homem

passa a ser uma extensão da máquina. O tempo é redimensionado do

natural – o tempo do sol, passagem do dia e das estações, o qual ele

controlava – para o mecânico – adequação da psique humana ao

relógio de 12 horas –, consolidando-se assim a produção industrial. É

o advento do capital industrial como fator hegemônico de

transformações. Essa condição leva, invariavelmente, a segunda

consequência. O homem não pensa mais, não desenvolve suas

potências, pois apenas executa um trabalho, em si mecânico e

repetitivo. O ritmo da produção é ditado pelo sistema, pensado pelo

trabalho intelectual, da burguesia. É o proprietário capitalista que

planeja, organiza, dirige e controla toda a produção, seja por si ou por

intermédio de outros técnicos que cumpram tal função. Ao trabalhador

cabe apenas a adaptação. O ritmo está na mão da intelectualidade:

quanto melhor for o planejamento e os investimentos em tecnologia,

melhores serão os resultados e menor será o tempo de produção, e, por

conseguinte, a utilidade do operário, em número. Essa é uma premissa

terrível e cruel, mas verdadeira do Capitalismo. Em suma, pode-se

dizer que a ciência empregada no desenvolvimento das novas

tecnologias visam apenas maximizar a produção, pois com máquinas

melhores, mais velozes e mais fortes, menos será necessário o fator

humano. Vale lembrar que a lógica aqui visa produzir mais, em menos

tempo, com menos custo. Ora, a equação é simples: se o investimento

do capitalista em capital constante será maior, só o será uma vez, ao

passo que no capital constante ele precisa manter um ritmo; é muito

mais vantajoso que se invista em tecnologia do que em pessoas.

É de se saber que, em matéria de gênese e desenvolvimento,

aquilo que se conhece como Capitalismo acompanha a Modernidade.

Uma vez que ele se inicia e toma forma dentro do ambiente moderno,

é quase impossível dissociar a Modernidade do “deus” das riquezas e

dos lucros, empiricamente. No fundo, a Modernidade é capitalista e o

Capitalismo é moderno. Contudo, seria demasiado simplista dizer que

em essência são a mesma coisa, mesmo que em muitas vezes se

misturem e se confundam entre si. Atribui-se em muito essa confusão

ao fato de que quando o capitalismo atinge sua posição de hegemonia

como sistema, em sua fase industrial plena, a Modernidade se firma

como ambiente completo. Daí a conclusão errônea de que são a mesma

coisa. Na verdade, fato é que o ambiente moderno já vinha tomando

espaço há muito tempo, e, necessitava de um sistema econômico que

acompanhasse sua dinâmica de transformação. A ideologia industrial

torna-se parte integrante de uma Modernidade consolidada. Por um

panorama geral, o capitalismo se consolida como sistema, e passa a

acompanhar a dinâmica de mudanças e transformações no mundo,

pois tal como a Modernidade, ele não é, nem foi, nem sempre será o

mesmo.

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Capítulo IX O Espírito Encarnado

A experiência revolucionária francesa, que tenta fazer o

Iluminismo na prática, embora falhe, desperta uma reação do

pensamento conservador, os inimigos de Mephistopheles. Os

conservadores tinham o social como único seio válido para o homem.

O conceito de individuo é uma abstração, pois na existe homem fora

da sociedade – Durkheim vai defender posteriormente que só existe

individualização quando há sociabilização. Não era razoável destruir

as instituições naturais existentes, para que se faça construa outras,

artificiais, pois, somente por meio da tradição constituída ao longo dos

anos e da comunidade cultural é que o individuo se desenvolve78.

Priorizar o indivíduo somente trará catástrofes incontroláveis como as

revoluções, o terror, a insegurança e o risco à vida. A Revolução

Francesa é então taxada como uma resposta à ousada atitude do

homem de desafiar as leis da natureza querendo impor suas vontades

ao social. A sociedade tem regras e leis que não se submetem à

vontade do homem. A ciência, a indústria, o desenvolvimento e a vida

urbana só trazem males para a vida do homem, é preciso voltar ao

passado, realizar uma restauração, e investir nos valores medievais. A

sociedade moderna degrada a família, o Estado e a Igreja79.

Assim, se compõe uma ambivalência, polarizada e dialética, da

condição da Modernidade. Por um lado, o Iluminismo e suas

premissas do individuo dono de si e agente do mundo; de outro os

Conservadores alegando ter a sociedade suas leis próprias e naturais,

não respeitando a ação humana; o primeiro querendo a radical

transformação do mundo e o segundo restaurar tudo já perdido. Neste

contexto de contradição surgirá o espírito positivo de Augusto Comte,

com a finalidade de resolver essa questão. Com a superação das duas

posições, criando um termo moderado, prezando por uma estática e

dinâmica conjuntas, Comte elabora uma síntese: não se volta ao

passado, deve-se sempre avançar, no entanto, é preciso controle das

instancias sociais para evitar desastres. Dessa maneira, deve existir

invariavelmente, uma ordem e um progresso. Mas, a ordem não deve

ser tão rígida que contenha a dinâmica do desenvolvimento, bem

como o progresso não deve ser tão acentuado que rompa com a ordem

fixada. A doutrina comtiana do Positivismo visa coibir o radicalismo

revolucionário iluminista e o retrocesso reacionário conservador,

administrando a sociedade de maneira “positiva”, conduzindo-a a seu

ponto mais alto de evolução, através do desenvolvimento das ciências

positivas. Para Comte, tudo aquilo que não for objeto de prova pela

ciência está no campo metafísico, e não há porque perder tempo

voltado a um estudo disso. O conhecimento se limita, não a conhecer

causar primeiras (fazer a sociedade como se quer está descartada

aqui), mas sim em estudar os fenômenos e suas leis de funcionamento.

O progresso da humanidade depende então unicamente do

desenvolvimento científico. Este é o novo ritmo que a sociedade deve

adotar. O positivismo foi extremamente triunfante quanto a sua

adoção no mundo. A Modernidade chega a um estágio menos

selvagem, agora sua sociedade caminha a passos contínuos e calmos,

com desenvolvimento e ordem. O Espírito Positivo torna-se parte

integrante da Modernidade, vigente a partir do século XIX.

Contudo, desencadeou críticas severas, por exemplo, da parte

do Socialismo e do Anarquismo que adquirem força nas figuras de

seus mais célebres escritores – Karl Marx, Friedrich Engels, Mikhail

Bakunin, Pierre-Joseph Proudhon, entre tantos outros. Este era ainda

um mundo em que o homem ainda sabia o que era viver material e

espiritualmente80, que flutuava entre a razão e a fé, um mundo que, em

sua constituição absoluta, não era de todo moderno, nem antigo, mas

sim dicotômico, repleto de contradições insolúveis, na qual não se

tinha certeza dos valores. Um momento tomado pela melancolia e

desencanto, como também repleto de avanços e novidades. Era uma

vida radicalmente contraditória em suas bases mais fundamentais. O

homem e a sociedade estavam em constante choque. Era a força que

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empenhada no mal, o bem promove, em si, moderníssima em toda a

sua raiz:

“De um lado, tiveram acesso à vida forças industriais e

cientificas de que nenhuma época anterior, na historia da

humanidade, chegara a suspeitar. De outro lado, estamos diante

de sintomas de decadência que ultrapassam em muito os

horrores dos últimos tempos do Império Romano”.81

Vive-se nessa ambigüidade. A evolução das ciências, da técnica e a

indústria fazia a sociedade caminhar, ininterruptamente, para o

desenvolvimento, ao passo que a vida social ia se degradando,

rumando ao abismo. Com heranças dos Iluministas e Conservadores,

pode-se dizer que a Modernidade adota o indivíduo sim, mas como

meio e não fim, bem como naturalizou a condição de desenvolvimento

e evolução pela razão. A partir do Século XIX a sociedade e indivíduo

seguem em direções opostas. O positivismo dá força a Modernidade

quando concilia suas contradições, prendendo-as em um mesmo

sistema, permitindo o seu desenvolvimento dialético, agora, sem o

radicalismo de antes. O indivíduo só existe na sociedade, e a sociedade

só existe para o indivíduo: pensar em si e no desenvolvimento pessoal

é centrar o material e o progresso, ao passo que nega o coletivo e o

espiritual, pois será necessária a condição de “engrenagem” do

sistema. Por fim, a Modernidade vai caminhar tendo como base à ideia

de desenvolvimento a preço do “desencantamento do mundo” – como

já afirmava Weber.

Como prova disso, pode-se dizer que o advento da revolução

industrial, tomada pela ascese intramundana protestante, deu novo

espírito à dinâmica do desenvolvimento social do mundo, ao passo

que a lei do Estado controla e ordena a vida. A Europa enfrenta agora

uma nova forma de organização por influência da gigantesca e larga

produção e consumo. Explodem por todos os cantos grandes centros

urbanos industriais, formam-se as cidades, e com elas um novo ser

social: o operário urbano. O fervor dessa época foi terrível. O espírito

avassalador do capital industrial se espalha na velocidade de um

pensamento. A paisagem se modifica radicalmente, “engenhos a

vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, amplas novas zonas

industriais”82, o maquinário se espalha, o carvão das fornalhas e das

locomotivas torna o céu mais cinza e poluído, espalha-se a sombra da

grande indústria. A consequência disso é uma crescente mecanização

das relações humanas em função da modificação espacial. Ao contrario

do que se possa pensar, estando na fábrica, o homem tem menor

interação com os seus iguais, pois, apesar de ter acesso ao demais,

estar junto de todos, não tem tempo para o contato em função da

adequação que sofre para melhor produção: seus instintos e paixões

são contidos, pois aquele não é espaço para que se aflorem os apetites

da alma (este se dá no momento do consumo); sua humanidade é

delimitada a partir do novo contato homem-máquina, alijado do

processo de produção completo; ele deve realizar os procedimentos

burocráticos da maneira mais eficiente, racional, útil e eficaz possível,

pois cada perda de tempo é também uma perda financeira para o

capitalista. Como demonstra com precisão o filme Tempos Modernos

(Charles Chaplin, 1936), os processos de trabalho são enlouquecedores.

Não resta aos homens tempo a dispor ao cuidado de si e de suas

famílias. São encarcerados a seus trabalhos, e escravizados por seus

desejos de consumo, fechados no sistema, no qual produzem para

consumir mais e consomem para produzir mais. A indústria passa

então ao papel de feitor-mor, podendo produzir tudo aquilo que pode

fazer com que o homem deseje. Tudo aquilo que se tinha como valor

sólido caia por terra. Não há mais regra para nada. O único valor a ser

conservado é não possuir valor algum. A humanidade é lhe roubada.

As pessoas transferem-se para as cidades, localizadas em sua

maioria nas grandes metrópoles urbanas, que vem como uma

expressão puramente moderna, tal como expresso por Giddens. Muito

diferente das de épocas anteriores, não segue o mesmo preceito de

criação e desenvolvimento, é agora o centro de produção e consumo,

moradia das classes e cenário dos acontecimentos:

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“Os modernos assentamentos urbanos freqüentemente

incorporam os locais das cidades tradicionais, e isto faz parecer

que meramente expandiram-se a partir delas. Na verdade, o

urbanismo moderno é ordenado segundo princípios

completamente diferentes dos que estabeleceram a cidade pré-

moderna em relação ao campo em períodos anteriores”.83

As cidades vão adquirir aquilo que, para Max Weber, vai defini-las

essencialmente como modernas: o povo satisfaz sua demanda diária,

com, parte do que é produzido pela especialização permanente da

produção, com destino ao mercado interno, e, parte com produtos que

são produzidos fora do perímetro urbano, e trazidos para abastecê-la.

Dessa maneira, a cidade é um local de mercado84, diferente das

medievais, que no mais, tais como as orientais, só podem ser chamadas

de aldeias ou vilas. Ademais, a própria configuração da cidade,

projetada de modo a abrir as grandes fábricas, os imensos prédios e o

as vilas operarias, prejudica nas relações sociais, que, ao contrário das

casas e do campo, não se pauta pelo contato humano, mas

intermediada pelo concreto. As relações sociais se dão então nas vilas

operarias, no comércio e serviço de pequeno porte, ainda familiar, e

nas famílias, dentro das casas, embora, extremamente limitada pelo

tempo (naturalmente, esta se configura como mais uma contradição da

Modernidade: ao passo que as relações são mecânicas e impessoais em

certos pontos, em outros são extremamente humanas, conflitando no

cotidiano).

Com a prosperidade das cidades, a larga produção industrial e

a grande gama de comércio, a sociedade adquire uma estratificação

piramidal. As classes da ponta ditam o ritmo da política e da

econômica, em efeito cascata. Os empresários e industriais vão

enriquecendo mediante a exploração dos meios de produção e

acumulação financeira dos lucros obtidos; por conseguinte, adquirindo

mais poder e prestígio. Em contraste a essa “belíssima” modernização

e a condição de luxo de uma classe em ascensão, a vida das classes da

base da pirâmide neste meio era terrível: as condições sociais de

moradias e a alimentação eram precárias e os salários baixíssimos, em

geral, em sua grande maioria, todos presos a uma vida miserável e

terrível. O pouco que o trabalhador ganhava, era obrigado a gastar nos

produtos “necessários” a subsistência da vida, que vinham

invariavelmente da produção industrial, por conseguinte, da

burguesia. Assim, à medida que as classes abastadas abriam uma mão

para pagar os salários, já baixos e insuficientes para a subsistência,

estendiam a outra para receber o preço dos produtos. Fora à

exploração que existia em si. Criava-se um ciclo vicioso de miséria.

A profunda efemeridade que marca o ambiente moderno

transborda as relações sociais, arrastando esse culto ao passageiro para

o consumo da produção capitalista, criando uma interação entre as

duas, na qual os desejos sempre devem ser fugazes e jamais perpetuas;

é parte de sua cruzada contra aquilo que se coloca como “eterno”.

Assim, o capitalismo toca uma paixão, que cria o desejo e leva a um

produto, mas não digno de se tornar sólido, pois, doravante, outro

desejo se fará necessário.85 E o a dinâmica do “consuma” se consolida.

É notável como os “fantasmas” circulam próximo aos indivíduos, sem

sequer tocá-los ou mesmo possuí-los. E, é natural que assim seja. A

Modernidade vem contra a ideia estática de mundo, contra tudo

aquilo que deveria durar para sempre. Munida de seu espírito de

aventura, ela se presta a modificar aquilo que se apresenta como

imodificável. Dá ao homem a sensação de liberdade completa,

imbuída em um risco máximo. O horror da vida moderna parece

assolar demasiadamente o homem. A Sensação que se cria no

indivíduo é de sozinho em meio a uma imensa multidão. Todas as

sensações são efêmeras, rápidas e passageiras. A vida constitui-se em

uma solidão social. Os grandes centros urbanos são impessoais, mas o

homem busca sempre a sua participação no todo.

Tomada pelo espírito do efêmero e fugaz, da democratização

das capacidades, da secularidade das coisas, do profundo racionalismo

asceta intramundano e da supervalorização da vontade, essa lógica se

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impõe como hegemônica na formação das personalidades, dentro das

casas, das escolas, das ruas e nos locais de trabalho, e assim, toma

todas as mentes e se faz senhora do destino dos homens. Dessa forma,

a Lógica da Vida Moderna se constitui e se consolida por sua natureza

fundada em contradições, inerente a si a ausência de valores uniformes

pré-estabelecidos ou fixos. Os indivíduos buscam os valores onde

desejam, dando tendo ‘toda liberdade’ para o pensamento, dentro de

um ambiente sistemático e fechado. Um paradoxo sem solução: ao

passo que a vida moderna traz a melhoria e o desenvolvimento, as

suas contradições trazem o sofrimento e melancolia, e tanto um quanto

o outro é fator inerente a sua natureza; acabar com o sofrimento e com

a prisão é, por conseguinte, acabar com a vida moderna.

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Parte III

Nos Braços do Demônio A Aventura Mefistofélica do Homem

Então se encontrar-me/ Seja cortês,/ Seja simpático e tenha bom gosto/

Use de toda etiqueta que conhece/Ou então tomarei sua alma.

Prazer em conhecê-lo/ Espero que tenha adivinhado meu nome/ Mas o

que está o intrigando/É a natureza de meu jogo, de verdade, divirta-se.

(The Rolling Stones)

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Capítulo X Da Simpatia pelo Demônio

O mais espantoso é como evoluiu esse ambiente moderno. O

que antes, na época de desenvolvimento era limitado, pois o mundo

ainda estava em processo de contaminação, ao fim do século XIX e

início do século XX, inicio da consolidação, parece já tomar

virtualmente o mundo por completo86, todas as coisas, todas as vidas.

A Modernidade fora se difundindo pouco a pouco, a medida dos

acontecimentos, sem pressa, sem gana, sem desespero; foi como

derramar tinta preta em papel branco: pouco a pouco ele vai

absorvendo a tinta e ficando cada vez mais preto. Tudo ocorria lenta e

gradativamente, como se fosse natural. Os bens eram homeopáticos e

vistosos, todavia os males, silenciosos e súbitos. Aqueles que viveram

a crescente Modernidade mal sabiam o que lhes atingia, o que viviam,

pelo que passavam. Jean-Jacques Rousseau era, como coloca Berman, o

homem que viveu le tourbillon social87 mais intensamente. A retratação

feita do ambiente moderno nascente em seu romance, Julia ou A Nova

Heloisa, demonstra um pouco sobre a sensação da novidade e do que é

viver nesse novo mundo, nas palavras de seu personagem principal:

“Eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e

tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos

desfilando diante dos meus olhos, eu vou ficando aturdido. De

todas as coisas que em atraem, nenhuma toca meu coração,

embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a

fazer que eu esqueça o que sou e qual meu lugar”.88

Diziam os antigos que o maior trunfo do diabo era convencer o

homem que ele não existia; pois bem, este foi o postulado na expansão

da Modernidade; os homens não possuíam consciência do que estava

ocorrendo. A humanidade observava maravilhada o progresso técnico

científico, o avanço da das artes e da filosofia, a explosão da variedade

de produtos, e o desenvolvimento de todas as formas institucionais,

que apensas conseguiam ver as “vantagens” que essa condição trazia a

seu próprio ser, agora livre das amarras morais: a possibilidade de

realização dos seus desejos mais profundos. Este obviamente é o fator

que contribui para a fixação do ambiente, justificando sua ascensão

meteórica. Pois, se se pode dizer que a Modernidade evoluiu tanto,

abarcando o mundo inteiro, como se constata, a única razão que

sustenta esse fato reside da ideia de que ela tinha aceitação. Portanto, o

que intriga aqui, como diziam Keith Richards e Mick Jagger, em

música sobre o sórdido diabrete, é “a natureza de seu jogo”.

Primeiramente, devemos dizer o diabo possui tanto um fim,

quanto uma função, que compõe sua razão de ser, como é da natureza

dos entes. A primeira está em mira de um bem, como é razoável de

todas as finalidades, pois será esse bem o maior interesse que se faz

todas as outras coisas que se seguem a partir dela, isto é, objetos das

partes que compõe o todo; já a segunda é o exercício prático que deve

estar em consonância para a realização da primeira, necessariamente. É

de saber difundido que a finalidade da medicina é a saúde, e sua

função, procurar a cura das moléstias, está em consonância de realizar

sua finalidade com a máxima excelência. Tendo isso em vistas,

analisando a obra de Goethe, podemos afirmar que, em suma, o anseio

maior do Dr. Fausto é alcançar o próprio todo da humanidade. Este é

ponto importante para entender a questão, pois quer o jovem

alquimista encontrar-se com a natureza do gênero humano: sofrer as

frustrações, angústias, a melancolia, a tristeza, gozar de seus prazeres,

amores, alegrias; ser a tudo e todos, sentir a tudo e a todos, conectar-se

a tudo e a todos. Ele deseja acompanhar o movimento em rede,

encarnando aquilo que se põe como fim da Modernidade: o

desenvolvimento. Devemos então, entender desenvolvimento como a

mudança gradual de um estado inferior para um estado superior e

avançado, isto é, um processo de crescimento e expansão que implica

em um progresso ininterrupto. O movimento do mundo moderno –

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como pode se constatar empiricamente sem sombras de dúvida –

realiza este fim por excelência; e é a ele que busca o Doutor Fausto.

Dirá Marshall Berman que os anseios do Fausto não são os bens em si,

as coisas sem si, nem muito menos que delas pode-se tirar ou

imaginar, mas sim todo o processo, ele deseja em seu âmago viver à

enigmática e complexa dinâmica moderna em sua apoteose,

superando a condição humana, elevando-se ao mais alto grau. É em si,

um desejo de superação da condição de próprio homem – a que hoje

damos o nome de faústico – que se alinha ao desenvolvimento.

No entanto, o demônio demonstra terrível desprezo por essa

ideia vindo dos homens, e comprara o ser humano a um inseto juvenil

quando dá seu primeiro vôo, e inevitavelmente cai desajeitado sobre o

pântano sujo. Pois, como nos conta a literatura, é da obra diabólica o

ódio a toda condição do homem; e não é diferente e incoerente para

com esse princípio o Sr. Mephisto; vários são os momentos e passagens

que ele destila suas injúrias contra o homem. Seria a finalidade de

Mephisto então o desenvolvimento tanto quanto é a da modernidade

mesmo sob essa condição de ódio e desprezo pela natureza do

homem? Ora, devemos afirmar que sim, e não obstante, dar as razões

que justifiquem essa posição. Esse desenvolvimento que se fala não

passa necessariamente pelo desdobramento das potências do próprio

homem se assim não for preciso, e jamais será essa a mira; é a

sociedade todo o objeto, o homem é apenas o meio, o instrumento que

vai mover a evolução das instituições modernas, continua e

ininterruptamente. E, é na ação tendo em vista esse fim de superar as

suas próprias condições que Mephisto vê a possibilidade de perdição

do homem, pois, é no interesse dela que se realiza a máxima excelência

de sua função, compartilhada também pela Modernidade: a realização

dos desejos mais mundanos... No fim, o Dr. Fausto anseia a dinâmica

da vida moderna, tanto quanto todos os homens possam desejar. Não

devemos esquecer que é este mundo o reino do diabo, não seria

razoável que não o quisesse em constante superação.

Ademais, o desenvolvimento da sociedade vai se dar através

da alienação da alma de cada homem em particular... Ora, não é esta a

meta do diabo? Por sua natureza, seu fim é a tentação, atormentação,

perdição do homem, mas, apenas por influência, jamais por poder; o

agir pela violência tiraria o sentido de prova que ele precisa para

sustentar sua posição: a natureza do homem é corrupta, bem como seu

livre-arbítrio o voltaria ao pecado se assim lhe fosse permitido. Aos

olhos do demônio, Fausto, e todos os homens, eram como “insetos

pensantes” (uma mescla de pernilongo, cigarra e gafanhoto), que

cheiravam e pousavam em tudo, sempre “a cata de imundices”,

querendo a tudo conhecer, a tudo desejar, sem se dar conta dos seus

próprios limites, sem consciência da situação, sem conhecimento de

sua natureza, de si mesmo89. Mephisto despreza totalmente o exercício

de superação de si que se presta o homem. Em sua concepção, o

homem pode fazer coisas assombrosas justamente porque da razão

não sabe dispor, e, no mais das vezes agira para o mal, não sabendo

bem escolher, isto é, preterindo a virtude. É fato que Mephisto nunca

forçou o Dr. Fausto a nada. Muito pelo contrário. Suas palavras

melodiosas, doces e sutis provinham de uma retórica adaptada àquilo

que seu ouvinte estava predisposto a encarar.

Deus, naturalmente, crê no contrário. Quando aceita o desafio

da matreira criatura, o Altíssimo tem segurança que o Dr. Fausto não

sairá do caminho bem-aventurado, pois, apesar de considerar a

natureza do mundo, de “Onde há cobiças, é natural o errar”90, deu aos

homens a luz que neste mundo chama-se razão; pois bem, saberia dela

o homem bem usar. Ao demônio, como à Modernidade, essa razão que

se fala aqui é tanto nociva, quanto incomoda, pois, seria ‘sua função’

controlar as paixões da alma, coibindo as disposições de caráter

voltadas ao mal. Os truques sórdidos e sagazes do demônio não

triunfariam se caso nela o homem confiasse. Somente tem êxito àquele

que odeia a luz, pois se torna ela instrumento dando espaço para

fluírem o que o bom doutor, como todo homem, tem: as paixões.

Fausto queria, Fausto ansiava, Fausto desejava. E, com ele, os homens

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partilham da mesmíssima natureza – este assunto é de conhecimento

do vulgo, em séculos de tradição do pensamento.

O homem dá o espaço; deixa-se levar pelas ofertas e suas

vantagens. Fausto, como a maioria dos homens modernos, deixa de

lado o seguir da razão reta em nome de seus desejos mais profundos.

Sua cobiça era imensa: vivia ele no fio da navalha, na dialética do

medo e da esperança por conta de suas angustias físicas e metafisicas.

Por um lado, existia a ânsia pelo conhecimento, por outro, a mesma

vontade pelos prazeres terrenos. Fausto precisava escolher.

Manifestava o desespero máximo, criando vontade de morrer pelo

sofrimento que sentia frente sua angustia do irrealizável desejo do

saber divino, além-humano, ao mesmo tempo, que alimentava uma

gigantesca esperança de continuar a busca, impedindo seu suicídio,

apegado às boas experiências físicas mundanas que já teve. O medo é

aliviado pela esperança do ‘é possível’, do ‘existe algo além’, ao passo

que a esperança é ameaçada com ‘não é possível’ e ‘tudo está perdido’.

A angústia de Fausto se dá em via de mão dupla, ao mesmo tempo em

que existe a esperança de transcender, existe o medo de falhar nesse

processo. Mas, a paixão de Fausto pelo saber era maior do que suas

aspirações mundanas. Fausto escolhe.

Todavia, toda busca tem um preço. O de Fausto é a solidão. A

vida contemplativa, da busca do saber e do conhecimento, leva-o a

infelicidade de estar sozinho em meio a uma multidão, pois requer o

afastamento de tempo-espaço, invariavelmente. Parece que Fausto na

procura do ‘saber’ do bem viver e bem agir não pode executá-lo. Não

seria então viciosa essa atitude? Ora, definitivamente sim. A conduta

de Fausto o inclinava a uma disposição de caráter excessiva, pois, não

soube dosar, dedicou-se a uma única atividade, invariavelmente,

deixando de lado o resto. Embora Fausto tenha adquirido o

conhecimento sobre muitas artes e ciências, este nunca lhe foi útil no

tocante do fim do homem, a saber, a felicidade91. Segundo Aristóteles,

não há duvidas que o fim do homem seja a felicidade – afinal, não

haveria homem que, em sã consciência, de vontade-livre, diga que não

anseia ser feliz. Ademais, é do conhecimento do vulgo, e largamente

difundido que, ser feliz é o sumo bem, pois o desejamos acima de

tudo, consequentemente, todas as outras artes e todos outros bens

menores estão subordinados a ele, pois os desejamos em função do

primeiro92; e nisto incluímos as satisfações dos desejos pessoais.

Ademais, não há felicidade que não seja completa, pois, se há

felicidade, de nada a vida carece, basta-se sozinha. A questão é então

que a aquisição dos bens menores não garante o sumo bem; razão pela

qual Fausto, e seu grande conhecimento, não é feliz.

Mas também, vale dizer que satisfação dos desejos, enquanto

bem, não deve ser confundida com o sumo bem, isto é, prazer é

diferente da felicidade, mas está contido nela, pois, como foi dito, os

bens menores se conquistam em função dos maiores. Apenas os leigos

e o vulgo confundem as duas coisas, pois os homens que julgam bem

são aqueles que conhecem bem (pela experiência) ou foram bem

instruídos a respeito93. Fato é que os primeiros sempre estarão

condicionados as necessidades aparentes – o doente considerará

felicidade a saúde, bem como o miserável a comida, assim como o sem

educação a escola –, já os segundos preferem se perder em prazeres,

abraçando uma vida de gozos; e assim é o Fausto. Pois, primeiro,

porque considerará ‘o saber’ que anseia felicidade, confundido um

bem em si com o sumo bem, depois, doravante, perceberá que não

‘vive’, sob as palavras do demônio, daí por diante vai considerar

felicidade o viver a vida de prazeres terrenos. Como ele, muitos são na

Modernidade.

O saber, enquanto bem de segunda ordem, é escolhido por si, e

por suas consequências, ao passo que os prazeres apenas por suas

consequências. Mas, a felicidade ninguém escolhe por uma ou outra

coisa, ela é a finalidade da ação, residente no bem viver e bem agir de

cada um, em consonância com uma atividade racional do homem –

que se constitui como sua função – inclinado ao bem, isto é, a virtude,

somado a uma vida completa, entendida em nível do todo, e não da

parte – isto é, a toda a comunidade, e não apenas a um homem

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particular94. Podemos então entender mais claramente porque o

demônio maldiz tanto a luz da razão: o justo bom uso dela (o Logus

aristotélico) modera as paixões, através da virtude, por hábito – isto já

denota um processo contínuo, jamais efêmero –, que, no mais das

vezes, coloca o homem no caminho do bem, ordenamento e

harmonizando a alma. Quando Mephisto encontra com Fausto, seus

argumentos estão na direção do “é preciso viver e agir”, e não no “é

preciso bem viver e bem agir”; aqui encontramos uma diferença

crucial: não há obrigação com a virtude nos fins, portanto não há

ordenamento da alma no caminho oferecido pelo demônio.

Ademais, a felicidade está desatrelada da obra mefistofélica.

Não é a isto que se volta. Diz o diabo que todas as artes e todas as

ciências estão direcionadas ao viver, necessariamente, em função da

satisfação pessoal de cada um. Isto equivale afirmar que um homem

que se presta a medicina não deve fazê-lo por conta do fim pelo qual

ela se presta – a saúde –, e o bem que traz, mas apenas pelo contato

maior que terá com as mulheres, portanto, aumentando suas

possibilidades de realização sexual se este for seu desejo; ou ainda,

alguém que se torna cantor não deve se ater a divertir e entreter

aqueles que lhe escutam, apenas tirar proveito do prestígio gerado

para alimentar-se da melhor maneira, saciando seus apetites se comer

bem for sua ânsia. Ocorre, pois, um desvirtuamento dos fins.

Naturalmente, não podemos dizer que está situação nos é estranha;

existe, e talvez sempre tenha existido; a experiência nos confirma a

máxima do diabo. O que não, necessariamente, quer dizer que

Mephistopheles tem razão, pois que algo ocorra e que seja justo são

coisas distintas; devemos admitir que seu ponto de vista é real, mas

não necessariamente está certo. Sustento essa negativa sob o

argumento simples de que a perversão dos fins se dá na falta de

consideração. Essa virtude (a consideração), por sua vez, nos inclina a

bem ver a si mesmo e aos outros, em justo equilíbrio. Não obstante, a

consideração, não poderia se realizar sem prudência; Maquiavel diz

que o príncipe prudente é aquele que tem virtude, bem como todo

virtuoso é prudente; a prudência é mãe de todas as virtudes: ela

predispõe a razão para identificar, em uma dada ocasião, o verdadeiro

bem e a escolher os justos meios para o atingi-lo. Seria, pois, contraria

a prudência, preterir o bem maior da saúde pelo bem da satisfação

sexual, no caso do médico. A esta atitude jamais poderemos chamar

‘virtude’, pois somente levado por paixões, isto é, preterindo a razão,

um homem faria tal escolha. Ao ‘pecado’ que conduz essa ação

chamamos vulgarmente: soberba95, que, por lógica, é a ausência de

prudência, e conduzirá, por sua vez, a falta de consideração,

propriamente dita.

É na soberba que investe o demônio. E esta, como rainha de

todos os excessos, guia o homem à realização constante de seus

prazeres mundanos, ignorando toda disposição da razão reta em

qualquer circunstancias, sob qualquer condição. Todos abrem mão dos

valores e princípios comuns que traziam o maior bem humanamente

realizável, e cada um se ilude com a sombra ou com as migalhas de

‘felicidade’ que podem conseguir, representada pela momentânea

satisfação pessoal dos apetites, a realização da vontade do eu-mesmo,

desconsiderando a existência o restante do mundo. Mephistopheles

tira vantagens e explora aquela parte do homem sensível à tentação

das ânsias terrenas, materiais e corpóreas: as paixões. Quando se

declara inimigo dos freios e da moderação da noética que tem como

fim à harmonia da alma, controlando as ânsias do corpo, Mephisto se

faz senhor do mundo ao passo que liberta o homem para seu

desenvolvimento temporal particular. Nada se adapta mais a condição

mundana do tempus, sujeita à geração e corrupção, que a

Modernidade e sua prole. Portanto, não por conta da venda da

virtude, mas do pecado, vinga a Modernidade96.

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Capítulo XI O Senhor das Moscas

“Santos e pecadores, algo dentro de nós, somos os Senhores

das Moscas”97. As paixões da alma humana são então a chave da

questão para entender a Modernidade. É razoável, pois, esclarecer

claramente o que é a paixão, dizer quais são elas, qual seu princípio

ativo, como se manifestam, a que movimentam e que instancias

influenciam para melhor compreendermos sua dinâmica de ação.

Segundo Aristóteles – e está é a definição mais razoável dentro

da perspectiva tratada aqui – é paixão (pathos) aquilo que impulsiona o

homem para a ação98; em geral, impressões, fruto das sensações

humanas, através do choque com os sentidos, acompanhando dor e

prazer. Neste sentido, uma lista imensa poderia ser formada se nos

inclinarmos a catalogar todas; contudo, é mais útil e vantajoso

separarmos elas por suas forças diferenciais, isto é, aquelas que, por

serem paixões primeiras, dão princípio a outras, em razão de sua

maneira de ser. Platão dizia que as paixões habitavam as partes não

racionais da alma: a concupiscente e a irascível, sendo que a primeira

refere-se ao apetite, aproximando o prazer, e a segunda a aversão,

afastando a dor. Neste sentido, podemos considerar como paixões

principais o amor, o ódio, a cólera e a acídia, bem como o medo, a

audácia, a esperança e o desespero99 como matrizes de outras que

exercem essas funções. Afinal, dessas se originam todas as específicas,

pois, pela experiência comprovamos que carregam algum destes

princípios básicos em si; a exemplo disso podemos dizer que a

ambição carrega o amor à vontade de exercer governo, como a

ganancia carrega o amor à busca pela riqueza, ou bem como é o pânico

o medo súbito na surpresa, ou a raiva é a cólera para com alguém, e

assim por diante. Ademais, a paixão, no mais das vezes, se dá

mediante um acidente: quando existe amor, necessariamente existe por

algum objeto, em determinada circunstancia, de algum modo, sob um

tempo, em algum lugar, no mais das vezes, por algum motivo. A partir

de então, em uma situação especifica, cria-se o movimento de encontro

do sujeito com o objeto, o qual, por sua vez, mexe com uma paixão,

podendo desencadear o desejo. Vamos dar dois exemplos práticos do

assunto: (1) quando um homem é ameaçado de morte por uma ladrão

que lhe aponta uma arma à cabeça pode ocorrer à movimentação do

medo para com a morte, o ódio para com o ladrão, a acídia por conta

da falta de sorte, o desespero pela falta de horizonte de sobrevivência,

e assim por diante. (2) Ou, quando uma moça encontra-se com o rapaz

por quem guarda uma afeição, e este lhe abraça ela pode sentir o amor

pelo rapaz, medo pela situação de novidade, esperança de se casar,

cólera em beijá-lo, etc. Por fim, naturalmente, as paixões se manifestam

como explicado anteriormente, mas, vale dizer, que tudo está no

campo da possibilidade, pois, a singularidade e particularidade dos

homens e de suas sensações é tão grande que não há garantias de que

vão ocorrer. No mais, podemos supor, pela experiência que

determinados eventos movimentam determinadas paixões, não por

uma regra ou lei, mas por sua ocorrência empírica, no mais das vezes.

Seja como for, o movimento dado pelas paixões desencadeia

um desejo de afastamento ou aproximação. Para Aristóteles, os desejos

conduzem os homens a quatro tipos de disposição de caráter, a saber,

a temperança, intemperança continência e incontinência, os quais vão

influenciar na construção da virtude. A primeira (1), temperança, é à

disposição de um homem capaz de se bem guiar pela razão, em função

de possuir um apetite leve, (2) já seu contrário, a intemperança, é

quando o homem não é capaz de se controlar e preteri a razão em

função de seus desejos apetitivos. Nestes casos, é razoável destacar a

ausência do conhecimento das consequências de seus apetites. Quando

um desejo se revela e o homem tem ciência deles, bem como aquilo

que vai gerar, chama-se (3) continente o homem que pode preterir

esses impulsos e optar pela via da razão, pois sabe da maldade que

causaria, bem como (4) incontinente é aquele que tende a buscar os

desejos, louca e excessivamente, mesmo sabendo que é contrária a

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razão e causarão terríveis problemas100. São, portanto, duas disposições

de caráter tendenciosas ao vício aqui: a intemperança e a incontinência,

sendo que o primeiro se diferencia do segundo pelo simples fato de

que não tem conhecimento do mal que causa, busca os prazeres

excessivos, além do necessário, pela crença que possui nesta conduta

como correta, ao passo que o incontinente não o faz por convicção, ele

sabe que seu impulso é malévolo, mas não se detém.

Naturalmente, como se observa, as ações deliberadas dos

incontinentes produzem, quando habituais, o pecado, contudo, a

ausência de dolo nos instintos excessivos ruins não faz do

intemperante menos pecador. Dante, em sua alegoria do Inferno,

demonstra que os primeiros círculos infernais são preenchidos

daqueles pecadores de natureza intemperante. Falando da importância

que as classificações de caráter têm para Modernidade, pode-se dizer

que, apesar de aparentemente não parecer, o intemperante é mais útil,

pois a falta de conhecimento das consequências dos instintos, somada

a sua visão distorcida daquilo que deve ser feito, faz dele um

incorrigível moderno, alienado e preso aos prazeres, ao passo que o

incontinente, ainda pode encontrar a razão reta, o que faz dele uma

constante dúvida, muito embora sua disposição mais impetuosa para

preterir o justo e agarrar-se aos prazeres excessivos, torna-o mais

intenso em sua busca. Mais nos primeiros que nos segundos confia o

andamento da Modernidade, pois são mais tendenciosos a cair em

alienação.

No entanto, como já previnem os antigos, aqueles que têm

caráter bem formado, apresentam devida inclinação às virtudes com

mais facilidade, pois já estão habituados há tempos, tendo menos

chance de entregar-se ao pecado. Serão mais facilmente continentes e

temperantes. Afinal, não podemos chamar prudente, forte, corajoso ou

justo aquele que, no mais das vezes, não tem o hábito destas práticas.

Quando leva Fausto a taverna o diabo percebe que o velho Fausto já

não se dobra facilmente as tentações terrenas; como há muito não tem

o costume engendrado, não lhe faz falta e pode recursar com mais

facilidade. Não está ele preparado para o “grande mundo”. Para

inseri-lo na vida é preciso torná-lo jovem de novo. Maquiavel já nos

mostrou que os jovens sim são mais impetuosos, portanto menos

circunspectos, assim, têm o caráter menos pronto e estão mais aptos a

se voltarem para o lado que os ventos sopram101. Ora, o diabo conhece

tal premissa muito bem, razão pela qual ao pacto com Fausto ele

investe no rejuvenescimento – uma bela metáfora para demonstrar a

abertura para novas experiências. Os jovens são mais volúveis as

paixões da alma, portanto deixam-se mais conduzirem-se pelos

apetites, o que, por conseguinte, aumentam a chance da proximidade

do pecado.

Além do mais, reside nos jovens à disposição a um estado da

alma que contribui a intemperança e incontinência, simultaneamente:

o apaixonar-se. Isto é, a facilidade de render-se a Paixão – esta deve ser

entendida aqui diferente da primeira definição, pois se centra no

movimento de perturbação de todos os sentidos, ignorando os

acidentes, elegendo um objeto único, movimentando todas as paixões

e pervertendo todas as nossas artes e ciências na direção desse. Ou não

seria verdade que quando estamos apaixonados por algo sentimos ao

mesmo tempo, sob várias circunstâncias, de vários modos, em todos os

lugares, medo, amor, ódio, cólera, inveja, esperança, desespero, por

conta de um mesmo objeto? Essa situação pode ser branda ou

avassaladora, fugaz ou duradoura; infelizmente, não seguinte lógica

decifrável, senão pela experiência do vulgo. O estado de ‘apaixonado’

é constante, e se liga a objetos particulares, eleitos pelo sujeito (frente

ao gosto, por opinião, do mesmo modo que já foi explicado quando

comentamos sobre a teoria de Hobbes). Nesse estado tende muito mais

a razão à perturbação, caindo em vícios do pensamento, os desvios

que, por soberba, destoando à compreensão justa da realidade,

tornando-a dificílima102. Podemos encarar essas manifestações como

fugas do sofrimento ou ilusões criadas pelo próprio sujeito a fim de

minimizar a dor e o sofrimento. Chamemos estas variantes de (1)

romantização, quando consiste o pensamento em considerar que as

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coisas poderiam ser diferentes do que são, centrando o compromisso

com o bem (em otimismo) ou com o mal (em pessimismo). Esse

movimento, normalmente, está atrelado ao que o sujeito tem por

gostos, portanto, adequa a realidade a suas paixões, negando a

compreensão real, ora imputando “sua visão” de mundo na realidade

e agindo segundo isso, na ânsia de fazer tudo a sua imagem e

semelhança, ora crendo que sua visão é a própria realidade, cegando-

se para qualquer outra coisa. Esse movimento tem caráter

degenerativo, logo, é corrupção do entendimento por deficiência de

razão. Isto é, a razão é, em suma, inoperante. E (2) idealização quando

tem compromisso com um ideal, isto é, com um estado de perfeição

construído a partir da abstração do modo como se vive, em prol do

modo pelo qual se deveria viver. Presta-se esse movimento a levar a

razão como crença, além do limite da realidade, por excesso e

atribuições predicativas a seres que, em suma, nãos os possuem.

Vendo o real como errado, a idealização elege o ‘molde’ como única

realidade válida: deste modo, seu ideal deve ser buscado e instaurado,

quando nunca existiu, ou restabelecido, quando se perdeu no passado.

Em ambos os casos, desvirtuada a compreensão do real, liga-se

o homem ao imaginário, fruto das sensações que acompanham as

paixões. Esse movimento acaba por causar uma perda substancial da

referência do sujeito, pois, como a perversão das artes e ciências,

citadas anteriormente, também manifesta um afastamento da

consideração. No mais das vezes, o sujeito desconsidera na “sua visão

de mundo” os outros e a até a si mesmo, caindo em um estado de

alienação. Muito embora pareça um absurdo dizer que existe o

afastamento de si mesmo, não seria razoável admitir que aquele que se

esconde atrás de fantasias vive a realidade, tem ética ou é justo. A

insegurança gerada pela proximidade da dor e do sofrimento faz com

que os homens criem ‘mundos de sonhos’, acreditem neles, e vivam

sob suas regras, a fim de inibir a frustração da não realização de um

desejo, abarcando, ao mesmo tempo, o prazer tirado de uma fantasia.

Esse movimento é muito comum nas crianças. Por conta de seu estado

de formação da razão e compreensão do mundo, limita-se ela a

imaginar o real, a rigor de suas próprias paixões, afinal, não conhece

da vida a experiência das coisas. Sua percepção é ainda restrita. Não

obstante, vemos esse problema nos dias de hoje em homens e

mulheres que de crianças já não tem mais nada fisicamente. Contudo,

a questão, como afirma Aristóteles em sua Ética, é a infantilidade do

caráter. Aquele que não é bem educado, e da vida não possui o

montante de experiências necessárias, jamais poderá comportar-se

como virtuoso, pois da virtude, é preciso hábito da prática.

No mundo em que os valores são efêmeros e a educação não se

volta a dar ao homem condições de ser senhor de si mesmo, é razoável

que se crie uma crescente e expansiva infantilização da sociedade. Os

intemperantes, são, no fundo, homens que não cresceram, pois

alimentam a convicção do mundo ser como querem que são, afinal,

toda ‘criança’ se comporta como um déspota, vivendo o estado de

natureza, onde só existe ‘o meu mundo’ e aquilo ‘que eu quero’, pois

das coisas nada conhecem. Romantizar e idealizar são as armas da

imaginação de si. Ao passo que incontinentes serão aqueles que, tendo

a oportunidade (no mais das vezes forçosa, triste e cruel) de crescer,

escolheram pela via nefasta da covardia e do vício, negando à ética,

pois preferem renegar as suas responsabilidades a assumir as

conseqüências de seus atos. O diabo, portanto, investe na

infantilização do mundo, pois, não seria nenhum absurdo dizer que

tanto o Estado de Direito, quando o Capitalismo, inclinam-se no

sentido de administrar a vida do homem de modo que a sua Lógica de

Vida Moderna não careça da responsabilidade de decisões, afinal,

desenvolver bons hábitos seria nocivo, melhor que todos sejam mais

suscetíveis às paixões, apaixonem-se e desapaixonem-se com mais

facilidade, romantizem e idealizem mais as realidade, bem como se

tornem alienados.

Sabe-se então que Mephisto não cria o desejo, ele é natural do

homem. Contudo, a tentação e possibilidade de realização são

artificiais, e estas sim são frutos da ação da Modernidade. O demônio

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age e investe de maneira a dar conta de todos os desejos, dos mais

honestos aos mais nefastos, seja dos intemperantes ou dos

incontinentes. O demônio alça a condição de “necessidade” para que

os desejos humanos floresçam, deixa que cada homem busque

“livremente” seus valores onde desejar, dá toda a liberdade para o

pensamento, cultivando a soberba. A luz do Logus é inútil à

Modernidade, apenas aquela razão instrumental, delimitadora dos

meios é útil, pois é ela que guia os homens na realização dos seus

interesses. Volta-se aqui a ideia hobbesiana citada anteriormente: as

paixões fixam os fins, a razão instrumental estipula os meios

adequados para alcançá-los, e o movimento moderno, de ausência de

valores, por natureza, manda que se faça o que for preciso para atingir

um interesse.

O que se tem então? A resposta é simples e claro, no entanto

terrível: tirania. São os tiranos aqueles que, escravos de suas paixões,

buscam máximo prazer e mínima dor, perdendo-se de si mesmos. Ora,

o que é a “perda da alma” – preço exigido por Mephisto – senão a

alienação de si mesmo, a perda da consciência, a falta do conhecimento

e cuidado de si? Começa o homem então a distanciar-se de si mesmo, e

a perder sua humanidade. Não importa se burguesia ou proletariado,

se homem ou mulher, se rico ou pobre, se empregador ou empregado,

todo, em absoluto, todos, no ambiente moderno estão sujeito a sua

lógica de funcionamento: realização dos desejos mediante a venda da

alma. Quando aceita o pacto, e firma as condições para correr atrás dos

apetites excessivos, ele começa a esquecer-se que existem coisas além

do prazer e da dor, deixa a razão reta de lado, e a possibilidade de

felicidade vai abandonando a sociedade em prol do desenvolvimento.

Cria-se o movimento em direção ao progresso, o qual, ao homem,

infelizmente, não tem melhor final que o destino de Fausto. “Santos e

pecadores, algo dentro de nós nos dispõe a sermos Senhor das

Moscas”.

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Capítulo XII O Mal que os Homens Fazem

A lógica de funcionamento está dada: é através do empenho

na realização dos desejos dos homens, mediante sua alienação, que a

Modernidade age. Resta saber agora, se esta é a premissa que dá

princípio ao movimento do sistema. Segundo o Sr. Adam Smith (1723-

1790), em sua obra magna, a Riqueza das Nações,

"Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do

padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que

ele têm pelos próprios interesses. Apelamos não à humanidade,

mas ao amor-próprio, e nunca falamos de nossas necessidades,

mas das vantagens que eles podem obter."103

para que toda a economia se movimente. Sua ideia se centra na não

interferência nas esferas privadas por uma força controlada, pois a

econômica, feita em base dos interesses dos homens, resultaria em

uma certa ordem, como se estivesse sendo conduzida por uma “mão

invisível”. Abstraindo qualquer ideia que defenda um liberalismo

econômico, estado mínimo, não interferência na economia, e etc., pois

a ideia deste trabalho não é essa, é preciso verificar o ponto principal

do argumento de Smith, o qual se encaixa com a ideia de movimento

na Modernidade: a orientação de cada um voltada a seus próprios

interesses que vai bem-guiar a sociedade para o progresso. O grande

problema está em considerar que é então da ganância, da cobiça, da

luxuria (ou qualquer outro pecado, depende do objeto em questão)104,

pautada pelo egoísmo (self-interest) de cada homem que tudo se

movimenta, pois o pecado não pode dar princípio a nada, é sandice

tirar bem de mal, pois o mal não é, só existe enquanto ausência,

privação (a steresis em termos aristotélicos) de bem.

Para resolver essa questão, primeiro, é preciso considerar que

os desejos humanos que Mephisto se propõe a realizar não são meios,

são fins a serem alcançados pela ação do homem, através do ambiente

moderno. Cada homem então, positiva um significado para a

realização deles, e, pela razão instrumental, estipula os meios

adequados para a obtenção do êxito. O racionalismo ocidental, ponto

extremamente relevante para a Modernidade, se pauta na excelência e

eficiência dos meios, os quais, se vingam e atingem o fim, não o fazem

senão por virtude. Evidentemente, não é por meio do mal que age um

homem quando busca seus interesses (mesmo que sejam estes

maléficos), pelo contrario, para que uma tarefa atinja seu objetivo, sua

execução precisa se dar investida no bem. Vale lembrar que nenhuma

realização de potências opera sem a virtude, pois, até o mais perverso

e nefasto dos criminosos não tem êxito em um crime, em uma ação que

visa o mal, senão pela virtude do bem fazer e executar aquela arte,

mesmo que se mova por vias celeradas105. Destarte, é a somatória das

ações racionais, remetidas a fins que vão dar princípio motor à própria

Modernidade. Pode-se concluir então, que é a instancia da técnica e

não da ética que movimenta o sistema. As paixões da alma que

comandam os desejos pecaminosos dos homens servem apenas

“molas” que impulsionam o agir, pois não existem enquanto objetivas

no momento da ação. A Modernidade, por sua vez, incentiva e

alimenta essa condição para que ela incentive a geração de ações

racionais, as quais criam o desenvolvimento, através da destruição e

da construção das coisas. Assim, a “mão invisível” do demônio pode

bem guiar a realização dos anseios, sendo “parte da força” – pois

apenas exerce influência e não age – “que empenhada no mal” – pois

o foco é os desejos de excessos, portanto pecaminosos – “o bem

promove” – o desenvolvimento da sociedade.

Empiricamente, o resultado das ações racionais dos homens é

a instauração das Instituições Modernas – as formas de organização

citadas anteriormente – como a fábrica, a escola, os condomínios de

prédios, as redes sociais virtuais, os órgãos públicos, entre tantas

outras coisas. Estabelecendo-se no ambiente, elas agem em prol da

Modernização, assumindo a função de instrumentos, direcionadores

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do movimento ao futuro, ao novo, ao moderno, cumprindo uma

determinada função especifica, em função da satisfação de um desejo.

Ademais, como são frutos dos meios, as Instituições Modernas,

também respondem a uma necessidade imediata, dada pelas condições

objetivas do mundo; e como são empíricas, necessitam de espaço real.

Para maior esclarecimento, um exemplo prático: a fábrica. Quando

instaurada, no início da Revolução Industrial ela respondia ao desejo

de ganância e cobiça das nações, dentre elas principalmente a

Inglaterra, para uma necessidade de expandir e aumentar a produção

a fim de atender o mercado crescente, requerendo o término da

manufatura. O princípio que diz respeito este último item é fator

importantíssimo para entender a dialética da Modernidade: o espaço.

Criar espaço é, por conseguinte, “investimento nas forças da

destruição”. Como o Dr. Fausto, a ação racional dos homens deve se

empenhar na destruição para adentrar o mundo da criação; destituir o

velho, aquilo que não tem mais serventia racional e útil, para instaurar

o novo faz parte da ordem moderna. Esta é razão pela qual Marx

afirma que a burguesia deve revolucionar constantemente os meios de

produção106. “Destruir-construir” é o que torna possível responder a

novos desejos e novas necessidades.

É valido ressaltar que não existe lei que assegure que uma

Instituição Moderna particular deva existir essencialmente para a

Modernidade. Todas estão sujeitas a dar espaço. O que se pode dizer

com segurança é que seguem a lógica da modernidade: fluidas,

mortais e efêmeras. Procedem enquanto puderem responder as

necessidades do meio e aos desejos dos fins, quais mudam de acordo

com as circunstancias. Neste sentido, as palavras de Mephisto, quando

afirma ser “o espírito que tudo estorva” e “tudo que existe deve

perecer miseravelmente”, operam para externar que ele (e a

Modernidade) age em função da degeneração do que existe para poder

dar princípio ao que ainda não existe, pois tudo que existe tem um

tempo, uma vida, nada pode ser eterno... É literalmente, a destruição

do historicamente velho e a construção do historicamente novo.

Contudo, isso também não significa dizer que se pode tirar

bem do mal. Um movimento degenerativo em si, que corrompe a

forma, ou seja, “anda para trás”, não pode ao mesmo tempo promover

o movimento de realização das potências, em mesma instancia. O que

ocorre, na verdade, são movimentos separados, em instancias

diferentes, nos mais variados entes, que ora se pauta em realização, ora

em degeneração. A dialética reside nas contradições do movimento

ininterrupto de construção-destruição e nas consequências que ele cria

aos homens, e não nas coisas em si – ela é, como já dizia Marx, método

de análise. A manufatura não é necessariamente contradição direta da

fábrica, enquanto instituições, tal como a República Jacobina não é

diretamente contradição do Diretório, mas dentro de cada movimento

– que diz respeito à produção no Capitalismo ou da Revolução

Francesa, por exemplo – existe uma tese, uma antítese, e uma síntese,

que tornar-se-á outra tese, dando procedência ao movimento; isto é, a

criação e a destruição sempre estarão presentes, bem como as

contradições da natureza das coisas – por exemplo, é contraditório que

os revolucionários da República Jacobina tenham subido ao poder

para governar em nome dos direitos, ao passo que instauraram o

Terror que os diminuía, em suma, aumenta para diminuir, e isso, em

vez de melhorar, pirou a experiência empírica, fator que leva o

impulso de novas paixões, por conseguinte, novos desejos e

necessidades. As instituições carregam em si as contradições. Como

diz Marx, esse movimento cria a condição de que uma não exista sem a

presença da outra, caso contrario o movimento pararia, e, a dialética

não para. A exemplo disso, no quarto momento da Modernidade,

existe um sentimento de exclusão presente nas mentes das pessoas,

sentimento este que faz com que cada homem sinta-se sozinho quando

age no mundo, não pertencente a grupo algum, contudo, ao mesmo

tempo, estão todos interligados e em constante contato uns com os

outros, em rede, através de celulares, sites de relacionamento,

comunidades digitais, etc., assim, do choque das duas, pode se

concluir que o homem se sente sozinho, mas está ao mesmo tempo

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conectado a todos, no entanto, aquele que se conecta a todos, ao fim

das contas não esta conectado a ninguém, configurando uma

contradição em termos.

Este tipo de ação está alinhado ao ser do demônio. Faz parte

do conflito moderno. A Modernidade em si, enquanto ambiente, é a

negação das Ordens Tradicionais do mundo antigo e medieval, as

quais, ambas, tem em sua essência o desejo do perpetuo, sólido e

eterno, quando ela é em si, naturalmente, o efêmero, fluido, e mortal.

Ora, quando se fala deste mundo, não se pode rejeitar a idéia de que é

a Modernidade está em total sintonia com ele, função da aceitação,

fruto das paixões com já foi dito. Contudo, há de se dizer que a mola

que movimenta as Ordens Tradicionais é tão mais honesta, paixão tão

mais pura, que somente se realiza na morte, pois anseia o mais alto

grau de perfeição, que toque o eviterno, algo que, necessariamente

exige a transcendência do mundano, regido pelo tempus – preceito

bem observado nas religiões místicas extramundanas, antes do

asceticismo intramundano que se dá na Modernidade. Dentro da

Modernidade isso vai se configurar como não-ser, a privação de seu

fim, o desenvolvimento. O demônio, por sua natureza de movimento,

impede que qualquer relação se ossifique: a realização dos desejos

existe, mas seu tempo é fugaz, do contrário, outros desejos não

floresceriam, e não haveria ações racionais para movimentar o

desenvolvimento. Este não é preceito aceitável facilmente pela

natureza humana. Quando decide pelos seus apetites e firma o

contrato com Mephisto, o homem vende a alma, mas, é com realização

de seus desejos que ela lhe é retirada. Todos os tiranos anseiam a

satisfação de seus prazeres, concordam com o custo, entretanto, creem

que o bem jamais lhe será tirado, pois o prazer que anseia é eterno,

perpétuo e sólido. Ora, todos aqueles que se empenham no não-ser

estão fadados ao fracasso. Quando se realizam, eles duram tempo

suficiente para cumprir uma função, até darem lugar a outro desejo.

Esta é uma contradição que a Modernidade desenvolve: na busca de

suas realizações mundanas, os homens creem que o resultado será

eterno, quando esta premissa é irrealizável. Destarte, vem o

sofrimento, decorrente de viver o conflito eterno.

Entretanto, os incontinentes são aqueles que sofrem mais, pois

não agem por convicção, e sabem das consequências nefastas que o

demônio pode criar. Os intemperantes têm o hábito de ser moderno,

portanto estão mais alienados, até do sofrimento. Essa diferenciação é

importantíssima. Pois reside nestes últimos o ser da Modernidade (o

que não quer dizer que ela não se movimente pelas ações dos

incontinentes, mas, como sua natureza é mais complexa, podem, tanto

abandonar a busca pela satisfação encontrando a ética, quanto

impulsionar mais agressivamente as instituições modernas, ao passo

que sua corrida é tão mais intensa, por conta do conhecimento que

tem). Da intemperança virá o consumo excessivo, a produção

excessiva, os relacionamentos múltiplos, a democratização, a

secularização e o gosto por tudo e todos, pois se acham na arrogância

constante de poderem fazer tudo, a todo o tempo, sem medidas, sem

impedimentos; e, como aceitam a condição por conta da alienação, não

sofrem, pois o apego não existe. Os intemperantes não possuem o

conhecimento de si e do seu meio. Não há consciência e não há razão.

É a entrega da alma. O contato com o sofrimento vai se dar então, a

partir da magoa alheia – o intemperante, quando causar o mal a um

terceiro, se da conta de que tem responsabilidades, bem como é gente

do mal.

Ademais, aos incontinentes, o sofrimento ora será tão grande

que, por escolha, conhecendo as consequências, vão preferir a entrega

da alma. Parece absurdo de se expor, mas, para atingir o fim que lhes

assola a alienação da alma é condição necessária, de outro modo seria

tortuoso demais pensar que uma construção será demolida, que um

bem parará de funcionar, que um lugar não existirá mais, que um

prazer será findado, que um relacionamento terminará. E da negação

da tragédia iminente e certa em função de uma fantasia (em geral,

construída racionalmente, como projeto romântico ou ideal) que o

incontinente vive; pautado sempre pelo medo de sofrer, alinhado a

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esperança de findar qualquer dor, seu e daqueles que estão a seu redor

– o que é, naturalmente, uma ação vã, e que, no mais das vezes,

quando se choca com a virtude dos continentes e temperantes, ou até

mesmo incontinentes, cria tanto mais mal que as coisas fogem do

controle. O incontinente abandona a virtude e a razão, acha melhor

estar na mão do demônio, do que no caminho dele.

Essa condição de alienação que vive o homem moderno (tanto

os intemperantes por convicção, ou os incontinentes por escolha),

causa o esvaziamento humano, trazendo a ideia de relações efêmeras.

Como tudo na Modernidade, as relações vêm e vão rápido demais.

Elas se tornam obsoletas antes de adquirirem o caráter humano. É o

apaixonar-se e desapaixonar-se. Os sentimentos que pautam as

relações humanas são como fantasmas presos ao mundo dos vivos:

assombram os indivíduos, lhes criam mal e bem, e até lhes possuem,

contudo, não encarnam, não se fixam. As relações, pois, são mantidas

num status de suspensão e vigília constante. A Modernidade “dá” o

poder para que os homens criem seus próprios valores a bel-prazer,

amem e odeiam na ‘velocidade da luz’ e ajam tomando por base

unicamente sua vontade. Reduz então os homens a pobres espíritos

famintos, os quais, a todo tempo, rondam a carne morta, sedentos de

vontade de findar sua fome, movidos por seus preceitos

individualistas e egoístas, abandonados a gula de alimentar seus

imensos estômagos, fadados a esquecerem-se de suas pequenas

gargantas. Todos os sentimentos e suas ligações se desmancham ao

passo que a história caminha; tudo é duvidoso e incerto ao descer dos

círculos do inferno; jamais se sabe o que se encontrará no amanhã. “Eu

não sei, a cada dia, o que vou amar no dia seguinte” 107, frase do

personagem Saint-Preux, contida no romance Julia ou A Nova Heloisa,

exprime o que realmente significa o viver nesse “novo” ambiente. Pois

é esta a lógica vigente, uma vida de momentos, de passagens e do

agora, que não se pode cultuar o sólido, somente o presente importa e

o futuro jamais pode ser projetado, embora seja esperado como

solução de todos os males.

A condição de vida do homem moderno em momento de

perfeita sociedade do desenvolvimento se equipara em atributos à

vida que Thomas Hobbes tem como inerente ao estado de guerra, de

todos contra todos108, pois neste período, a vida do homem é “solitária,

pobre, sórdida, embrutecida e curta”.109 Solitária, pois, viver na

Modernidade é viver na contradição de estar sozinho em meio a uma

multidão. A família, os amigos e os relacionamentos afetivos pautados

em emoções não se fixam, ou estão em choque com as relações

contratuais-burocráticas. É Pobre, de espírito e de coração, pois os

valores sociais e as ligações emocionais não são sólidos e não

conseguem se sustentar diante da vida moderna. Sórdida, pois, à

medida que mais trabalham, mais são explorados e escravizados (seja

do homem pelo homem, seja do homem pelo desejo), e nem veem à

gravidade de tudo isso; firmam o pacto, vendem e entregam a alma,

sofrem e perdem sua humanidade. Embrutecida, pois, as condições

cruéis do dia-a-dia, o tempo de vida gasto, a falta de consciência e de

intelectualidade tiravam toda a delicadeza e exuberância da vida. E

por fim, curta, pois, afinal, tendo todos estes atributos, é natural que

não se tenha uma grande expectativa de vida: vive-se para ser

moderno e não se é moderno porque se vive, e, da vida que realmente

vale à pena, aproveita-se pouco.

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Capítulo XIII A Valsa Sem Fim

Como se constata ao longo de sua constituição, a

Modernidade, o grande espírito-rei da negação, apresenta

características marcantes, elementos inerentes e uma natureza peculiar,

que não se altera em essência em momento algum, muito embora sua

forma evolua e mude gradativamente, como é natural a todos os entes

terrenos. É dentro dela que se apresentam as grandes contradições,

vivendo uma ambivalência continua e constante. São forças em

choque, das quais, na constante dinâmica de movimento, sempre se

reformam entre si, reestruturando sua constituição. Esse movimento é

coordenado pelos espectros de Modernizações, os tentáculos ativos da

Modernidade, com função básica de sempre atingir naquilo que

ameace o interesse do sistema como um todo. A dinâmica de ação da

Modernidade se dá sempre por absorção ou destruição daquilo que

existe. Os tentáculos agem, pelas instituições modernas, instauradas

pela ação racional humana, de maneira a deteriorar os valores

estabelecidos, corroendo a sua solidez, deixando que estes se derretam

e se percam em seu meio, e jamais se perpetuem, daí permite-lhes

emergir novamente somente se estiverem claramente adaptados a sua

ordem, caso contrário, são extintos miseravelmente. Dessa maneira,

especificamente, no que diz respeito à ação, se pode dizer que

permeado pelo ambiente moderno, a dinâmica ativa modifica as coisas

de modo a adaptá-las a lógica de consumo, razão e utilidade. Assim,

legitimado pelo Estado-nação através de suas leis, o capital age

racionalmente, respaldado da tecnologia para infringir as

modernizações necessárias, destruindo o velho e erguendo o novo,

dando força a Lógica da Vida Moderna, criando sempre novos desejos

e fomentando novos valores.

Embora o desenvolvimento da Modernidade se dê de forma

“natural”, viver na modernidade é viver em planejamento. A

racionalidade está presente na sociedade moderna sempre, não existe

organização sem calculo racional em função dos fins, (aos moldes de

Max Weber). Assim, as empresas inseridas na sociedade industrial

traçam o planejamento para executar as propostas que estão alinhadas

a ideologia do capitalismo110. O Capital industrial toma nova vertente e

chega a pontos periféricos do mundo onde antes apenas dava

demonstrações tímidas. Ele traz o desenvolvimento e o progresso

técnico, sempre a serviço de tornar as coisas mais integradas à

sociedade, homens passam a estar interligados, uns aos outros, como

numa rede. Neste momento, já é quase impossível pensar em ações

isoladas: Capitalismo, Lógica de Vida Moderna e Estado-nação, os três

“demônios” já se entrelaçam e usam um do artifício e poder do outro

para criar uma dinâmica de sistema. Na negligencia de um, os outros

cobrem a falta; um interfere no outro na medida do necessário ou

conveniente.

Uma grande característica dessa etapa é a noção de fazer local

aquilo que é global111; respaldado pelo advento da alta tecnologia

impulsionada pela chamada Revolução Cibernética que modernizou a

comunicação, o espectro da modernidade cria o ambiente de rede, e a

sensação de que tudo está conectado e interligado; já é possível ter

conhecimento de acontecimentos do outro lado do globo em tempo

real, na velocidade de um pensamento. Todo esse constante

investimento tecnológico faz parte de uma ideologia de reificação e

culto aquilo que é moderno, fruto das ciências positivas instauradas

pela Modernidade, a fim de atingir a finalidade maior de consolidação

do ambiente a nível global.

A pergunta que fica no ar então é referente às implicações

dessa consolidação para o panorama social. Para compreender esse

ponto se fazem necessários alguns esclarecimentos. (1) Primeiro, é que,

de fato, pode-se considerar que o indivíduo vive em um “cárcere de

ferro” sim, bem como toda essa ordem da Modernidade “determina o

destino do homem, até que a última tonelada de carvão fóssil fosse

consumida”112, mas, somente se se aceitar que o mesmo admite tal

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condição. Os homens estão presos àquilo que eles mesmos criaram, e

assim aceitam, por conveniência. A ausência de valores morais

universais, comum a todos, faz com que o indivíduo vá buscá-los em

seus desejos, contudo, eles, como já foi exposto, não passam pela razão

reta, pois se deixa levar pela influência do meio: a ação publicitária do

Capitalismo impulsiona os valores que homem precisa pra coordenar

sua vida. Ele deixa que imaginem e pensem por ele, e gosta disso,

prefere ser governado a se governar. (2) Outro fato diz respeito à

condição da Modernidade. Ora, sociedade não é escravizadora e

opressora ativamente dos homens. Pensar dessa maneira eximiria o

individuo de todas as responsabilidades para com sua própria vida e

seu meio de convívio social. Destruiria a possibilidade de agir de

maneira razoável, centrado na virtude, eticamente. Existe sim um

sistema pronto e planejado, contudo, ele é formado por homens e

homens. Seguindo o raciocínio, (3) chegamos ao ponto que diz respeito

à natureza deste espírito. É preciso abstrair a ideia errônea que a

Modernidade é viva, tal como um homem. Ela não é um animal, não é

um homem, nem uma coisa. Não se fala aqui de uma grande máquina

com vida, que oprime e prende o indivíduo, a qual pode ser destruída

fisicamente, a exemplo do filme Matrix (Irmãos Wachowski, 1999). Ela

é um ambiente, um espírito, que dá respaldo a um sistema, com

dinâmica, o qual deve ser compreendido e analisado. Embora se mova

sozinha, pela ação do das ações racionais, não é física.

Todo esse panorama de esclarecimentos já traz a primeira

consequência: todos os valores estão dissolvidos. Como coloca

Marcuse, nem Marx e nem Freud, agora ambos já são obsoletos, lutas

sociais e conflitos psicológicos já foram destruídos e liquefados pelo

Estado de administração total113. Não existe mais a importância e a

preocupação de se fazer parte de um todo ou da história. Em

detrimento as fases anteriores, com incentivo ao social, agora o

favorável nos “novos” tempos modernos é somente o “eu”. Cria-se

uma atualidade individual, as relações sociais e afetivas são mais

fugazes e existe um fechamento em si mesmo. O indivíduo não se liga

absolutamente a nada, evita o desagradável, para que possa fazer

aquilo que quiser, a hora que quiser, quando quiser. É notável aqui

que o “tudo posso por natureza” ainda é presente na vida moderna,

ganhando novo contexto e nova aplicação.

A Modernidade rompe com as barreiras tradicionais anteriores

que limitavam o indivíduo ao campo de sua capacidade (aquilo que se

pode fazer) e no nível de realidade (aquilo que dá para fazer),

instaurando a única limitação na vontade (aquilo que se quer fazer).

Dessa maneira, cria-se uma reviravolta no sentido do poder e querer, e

aquilo que conta é o que se quer e não o que se pode. Essa destruição

da barreira do “poder” e do “dar” faz com que aqueles que não detêm

certas capacidades creiam possuí-las, o que os guiará a percorrer

objetivos dos quais jamais irão alcançar, fazendo com que encontrem a

ruína quando se depararem com as limitações da realidade. A cruel e

sórdida Modernidade dá poder de decisão a todos, e deixa que

desejem e consumam para por mais lenha na máquina a vapor infernal

do sistema. Essa lógica traz a reforma da vida como um sonho. Mas

não a concepção de “que toda a vida é sonho”114 católica da Idade

Média, onde o sonho é do Criador e não do homem, e assim, todos

reconhecem a existência nessa “estranha ilusão” quando percebem que

são figuras de sonho no sonho do Outro. Fala-se de um sonho

individual, moderno, “livre” de um Senhor, no qual tudo se pode, e

cada homem é senhor de seu próprio mundo. O grande problema é

que o mundo é um só, e não é um sonho, bem como os homens são

inúmeros e dos mais variados tipos, logo, o choque de interesse será

inevitável no convívio social da realidade. Ao passo que, cada um vai

querer fazer valer sua vontade sobre o outro, a Modernidade retoma a

guerra de todos contra todos. Assim, se tem uma sociedade em que o

egoísmo é rei e a vontade única legitimação para os atos. E, não que

este seja um problema para a Modernidade, pelo contrario, o egoísmo

e a soberba são os pais das ações que tem por meios a obtenção de

produtos e o consumo, dessa maneira, estão alinhadas as dinâmicas

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modernas, afinal, o Capitalismo vende pecado, para os compradores

passionais.

Essa condição de vida, fruto da ação de deterioração dos

valores, faz com que os indivíduos sintam-se em si perdidos no

ambiente, muito embora demonstrem ao mundo sua posição firme e

resoluta. É diferente do momento inicial, retratado por Rousseau.

Embora exista a sensação de perdido em um turbilhão, existe também

um conformismo para com a situação. O povo se dispõe a ser

“escravizado”. Tudo parece natural, pois alienação esta presente. Em

comparação àquela época anterior, o homem perdeu a noção do

advento do novo. Aquele risco inerente à aventura prossegue,

contudo, agora passa a ser programado. É um risco seguro, tal como

andar na montanha russa de um parque de diversões, a qual, cria no

indivíduo aquela sensação de perigo, desencadeia a adrenalina, e traz

o prazer e aventura, no entanto, mecânicos, pois se encontram em um

determinado espaço, devidamente programado e controlado, próprio

para isso. E isso não ocorre apenas com o risco, mas sim com todas as

coisas. Tudo passa a ter seu devido espaço neste estágio. Tudo é

predeterminado e previsto. A ação do demônio ilude o homem

alienado, lhe fazendo crer que é livre e escolhe, mas que na verdade

esta em um estado de falsa sensação de escolhas. Isto é, aquele que

trabalha, vivendo no capitalismo da Modernidade, crê cegamente que

escolhe, e que é dono de si, por conta dos desejos que sente; mas, por

trás dessas opções “conscientes” está o sistema pronto e planejado,

com todas as possibilidades cobertas, somente aguardando um

direcionamento, deixando com que o indivíduo viva numa falsa

sensação de comando, calcado numa liberdade quimérica.115 Ademais,

jamais será liberdade a escravidão dos prazeres e excessos, que ignora

a razão e o bem comum.

Essa sensação de escolha é coordenada dentro de um espaço

de fantasmas efêmeros, dada por um modelo de conduta, que faz com

que as competências sejam confundidas: trata-se homens como

máquinas, e as máquinas, ferramentas em si, viram extensão do

homem. A tendência então é que não criam ligações com alguém em

si, mas por aquilo que ele agrega – por exemplo, ninguém ama fulano

por ser ele, apenas por aquilo que ele traz de vantagem ao convívio, o

que representa. Retornamos a Rousseau: a sociedade dá mais valor a

persona, as máscaras que cada homem usa do que a seu caráter.

Quando se trata de um ferramenta, um celular por exemplo, ama-se a

ele em si, como extensão do corpo – como se fosse um braço, que pode

ser substituído, por exemplo, afinal, não se criam ligações com uma

coisa específica, ninguém ama o modelo BKT5600 da marca X de

celular, e sim o celular que esta em evidência no momento, como mais

avançado e que pode propiciar o maior número de vantagens. A

relação então é vantagem por tempo, em função do que algo

representa. Tanto para pessoas, quanto a ferramentas, o que importa é

aquilo que elas trazem no momento, pois com a finalidade de que os

homens escolham e se relacionem com tudo e todos, a Modernidade

fomenta paixões simples e passageiras, deixando com que a

efemeridade mantenha sua essência de fugaz, mas assuma uma

aparência sombria de valor sólido, sendo admitido pelos indivíduos

como correto e aplicável, como único modo de proceder à vida

naquele momento. No entanto, do dia seguinte tudo pode se alterar.

Tudo é substituível. É proibido neste ambiente o apego e a

consolidação de uma relação, seja qual for.

Nunca antes se teve tanto apelo ao “momento”, ao “agora”, ao

“hoje”, como nas propagandas televisivas atuais: “a vida é o que você

vive”, “a vida é agora”, “viva a vida intensamente”. É o culto ao fugaz,

a pseudo-felicidade por sensações momentâneas. Como já sabido

desde os antigos, apenas uma ilusão:

“(...) Pois uma andorinha não faz verão (nem o faz um dia

quente); da mesma forma um dia só, ou um curto lapso de

tempo, não faz um homem bem-aventurado e feliz.” 116

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Dentro de toda essa perspectiva, cria-se a idéia do tempo na

Modernidade. O que importa é o agora, o momento. Já o passado,

pouco ou nenhum sentido tem ele e aquilo que suas memórias

representam, sejam encarnadas ou não. Ele é apenas algo que não tem

serventia, são valores sem utilidade, por lógica racional, deve dar lugar

a outras coisas, mais novas e modernas. Dentro dos indivíduos, a

ligação emocional se perde em meio aos desejos da vida de momento.

Não existe a referência do antes, assim, o horizonte é o presente,

restrito a um curto espaço de tempo simbólico, e o que importa é tão

somente o agora. Nasce então um conformismo em virtude dessa falta

de referências. Uma vez que a visão dos homens, sem conhecimento de

passado, tudo parece que sempre foi dessa maneira, parecerá também

que é natural que assim seja, logo, não há alternativa de mudanças

nem razões para tal.

Alinhado a essência da Modernidade, a visão de futuro é

sempre de amanhã melhor do que o hoje, exprimindo bem a ideia

Comtiana de progresso continuo. Na mente dos indivíduos, sempre se

espera que o dia seguinte vá propiciar muito mais que o dia presente,

assim, vive-se o presente, mas aguarda-se sempre um futuro melhor,

prende-se a tola máxima de que no amanhã tudo “magicamente” irá se

resolver. É uma ideia de “Paraíso Perdido” 117 invertido, pois, espera-se

um futuro do qual nunca se viu e nunca se teve, tendo a fé como única

base de apego; o tempo ganha o caráter de solucionador de problemas,

pois virá como o “santo remédio” do amanhã. Perde-se assim o caráter

de previsão de ação, de virtude e de prudência em detrimento a

provisão do agora e a fé no amanhã. É a crença tola e absurda que o

tempo é aquele que a tudo dará jeito – condenada, desde os antigos,

pela ausência de coragem, sabedoria e força que apresenta o homem

que confia na fortuna pra resolver suas coisas. Ora, o tempo é

degenerador. Sua ação é apenas em deteriorar, corroer e consumir

aquilo que existe, ele leva por diante todas as coisas, mudando bem em

mal e transformando mal em bem118. Aquilo que hoje é, amanhã pode

não ser, as circunstancias mudam, e remediável de hoje será um câncer

eterno no futuro. Mesmo que se argumente dizendo que em certos

casos, a ação temporal melhore as coisas, o que pode ser verdade,

afinal, ele transforma o que não é no que é também, a questão é não

está voltada a eficiência de sua ação, mas sim na crença dele como

agente e autor, no lugar no homem.

Mesmo assim, reclama-se sempre para o futuro por aquilo que

é racional, em prol do desenvolvimento e do progresso, como ordem

do que é útil, mas que, contraditoriamente, no mais das vezes, nem se

quer chega a avizinhar a vida os seus “tão fervorosos defensores”, seja

por falta de tempo, ou excesso dele. O homem não dura para sempre,

nem mesmo as coisas são feitas da noite para o dia, e, muito embora a

noção do tempo seja distorcida, a realidade é como é, e não como se

idealiza. Mas, nada é por acaso, não existe ação desinteressada. Viver o

agora é também consumir o agora. A efemeridade como hábito na

conduta dos indivíduos, significa não se ligar a nada, assim, estar em

constante transformação. Por lógica, essa inconstância inibe uma

possível estática dos desejos, o que possibilita, por conseguinte, que o

capitalismo possa explorar todas a vontades a todo o tempo, e

desenvolver as mais variadas “necessidades” de consumo. Viva o

momento é sacie o desejo e vontade hoje, consuma hoje, no amanhã se

tem outro desejo se consumirá outra coisa, e assim sucessivamente a

máquina se sustenta.

Ademais, a explosão dos meios de comunicação propiciou

para o indivíduo o contato com todo o mundo já abarcado pela

Modernidade. Desenvolve-se o pensamento nos indivíduos de que o

mundo é menor do que se pensa. Celulares, computadores, televisões,

etc., dão a sensação de “plugado” e conectado ao mundo e todos os

outros, mas, contraditoriamente, cria o sentimento de

individualização, pois diminui os contatos humanos diretos. Os

indivíduos passam a se esconder sob a sombra da tecnologia, atrás da

tela fria de um monitor ou de um aparelho celular, por medo de

contato ou de desenvolvimento de uma ligação emocional e afetiva.

No ambiente moderno relacionar-se é sinônimo de estar preso,

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sinônimo de anulação e sofrimento, ademais, contraria a idéia de útil e

racional, “retirando” aquilo que os homens consideram sua liberdade.

Ao intemperante algo abominável, ao incontinente, medonho. O

primeiro foge da “prisão”, e o segundo nega sua existência. Dentro de

um paradoxo inexorável, as contradições da Modernidade guiam as

ações para uma nova ordem que tem como função integrar para

desintegrar, relacionar para não se relacionar, enfim, de socializar para

individualizar. Os homens passam o tempo todo na condição de

conectados uns aos outros, mediante a segurança de suas ferramentas-

braço, as quais, contraditoriamente, lhes desconectam de tudo, pois as

ligações são efêmeras e liquidas.

A Modernidade cria os tiranos, os quais se comportam como

déspotas uns com os outros, impondo e ordenando suas vontades com

base em seu máximo prazer e mínima dor, mas frente ao sistema são

escravos, pois todas as suas vontades arbitrárias têm direcionamento e

estão previstas na lógica; cumprem apenas o previsto e o natural.

Alegam a racionalidade e o realismo, mas, vivem uma vida de sonho,

alienada e vendida em si. Acreditam governar a sua própria vida, mas

na prática são governados pelos valores do sistema que imagina e

sonha por eles. Por fim, correm continuamente, sem moderação, sem

parar, com ímpeto e gana, atrás da felicidade perpetua e eterna,

contudo vivem de momentos, e se perdem em sensações fugazes,

buscando-a na realização de suas paixões fugazes e mundanas. Dessa

maneira, grande parte dos indivíduos se permite a vida dentro do

sistema como um homem vazio e fútil, sem ligações humanas, sem

valores, sem sentimentos, sem identidade. Apenas uma pequena peça,

tratado pelo sistema como trata os iguais. Sem a real consciência da

condição, permeado por um conformismo e falsas ideias de liberdade e

escolha. Fatores que, invariavelmente levam a triste e melancólica

condição de prisão perpetua no “cárcere de ferro”.

“Perdi meu amor, perdi minha vida nesse jardim de medo. Eu

tenho visto tantas coisas em apenas uma vida solitária (...)

Desnorteadora casa de dor, ela não faz sentido algum (...) O que

você vê, não é real. Aqueles que sabem não vão te contar. Tudo

está perdido, venda sua alma, para este Admirável Mundo

Novo”

(Dickinson, Harris, Murray in Brave New World)

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Notas de Fim

1 Nota do Autor: A frase é proferida por Adimanto, um dos interlocutores no

dialogo Da Justiça, redigido por Platão, o qual tem Sócrates como personagem

principal. Cf. PLATÃO. A República. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:

Nova Cultural, 2004.

2 Nota do Autor: Como as traduções, no mais das vezes, não dão atenção

devida às palavras e suas implicações, faz-se conveniente certa hermenêutica,

mais detalhada e mais precisa de alguns termos e passagens importantes foco

do presente trabalho. A passagem “que estorva sempre” pode ser também

traduzida como “que sempre nega”, bem como o “era melhor não ter nascido”

pode também ser entendido como “pois, melhor não vir a ser mais”. As

segundas premissas dão mais sentido e conferem mais com a ideia de presente

trabalho – em momento oportuno, as passagens serão melhores abordadas,

por ora, vale apenas a sinalização. Sobre a tradução utilizada (tanto neste

trecho, quanto ao longo de todo o trabalho) Cf. GOETHE, Johann Wolfgang

Von. Fausto. In Coleção Clássicos Jackson. São Paulo: Gráfica Editora

Brasileira, 1952, (pg. 85, para a passagem em questão).

3 Nota do Autor: A palavra “Mephisthopeles” vem do grego, apontada com

uma possível etimologia a combinação da partícula negativa grega μὴ, φῶς

(luz) com φιλής (o que ama), ou seja, "o que não ama a luz". Na película O

Motoqueiro Fantasma, o personagem Mephisto aparece majoritariamente em

ambientes escuros e sombrios, e, quando se depara com a luz elétrica,

demostra certa repulsa; em certa passagem, quando surge diante de seu filho,

em um parque, ao passo que caminha na direção dele, as luzes vão se

extinguindo, criando a sensação de que as trevas o acompanham. Cf. “Ghost

Rider”, Mark Steven Johnson, 2007.

4 Nota do Autor: John Milton, o diabo em pessoa, personagem de Al Pacino em

Advogado do Diabo, diz a seu aprendiz e filho, Sr. Kevin Lomax (Keanu

Reeves), que seu maior trunfo é passar despercebido às vistas do mundo. Ser

imprevisível e surpreendente é uma arma poderosa quando se lida com a

natureza humana nos seus instintos selvagens, pois a vaidade cega o

entendimento real de si e dos outros, tornando os feitos daqueles que foram

subestimados, aos olhos do vulgo, maiores e mais grandiosos. Cf. Devils’

Advocate, Taylor Hackford, 1997.

5 Nota do Autor: Dizia o padrasto de Johnny Blaze – o futuro Motoqueiro

Fantasma, o Fausto do mundo das histórias em quadrinhos – “Quando se age

sem pensar, você não esta escolhendo, está sendo escolhido”; e não há vontade

que não seja livre, a escravidão às paixões nunca será liberdade de escolha; o

diabo sabe disso, tanto quanto doravante Fausto vai saber. Cf. “Ghost Rider”,

Mark Steven Johnson, 2007.

6 Cf. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.

Tradução de Sueli Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre. L&PM. 2006.

7 Nota do Autor: Todavia, vale a ressalva de que a comparação entre a Era da

Modernidade e demônio Mephisthopheles, bem com o Doutro Fausto e o Ser

Humano em si, não é absoluta; afinal, seria impossível dizer que o diabo segue

todos os passos da Modernidade, tal como Fausto cobre todas as

possibilidades da natureza do homem; metáforas são metáforas, não há de se

exigir delas mais que podem dar. Portanto, aqui nos dispomos a transcendê-

las. Pois, a análise científica requer certo rigor metodológico, principalmente

quando nos inclinamos ao entendimento de entes tão complexos, que não

poderia se limitar a referências literárias.

8 Nota do Autor: Evidentemente, não convém aqui discorrer de maneira

exaustiva sobre a necessidade, a conveniência ou as circunstancias que

levaram ao movimento das Cruzadas em si, pois destas coisas não deriva a

Modernidade, portanto não nos interessa. Agora, é no fato do movimento

exigir a modificação do panorama atual, alterando radicalmente a

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configuração do Velho Continente, existente até aquele dado momento, que se

encontra nosso objeto de análise. Daremos, pois, foco nesta direção.

9 Nota do Autor: Segundo a tradição católica, São Pedro fora aquele que deu

princípio a Igreja de Cristo na Terra. O argumento está apoiado na passagem

“Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue

que te revelaram isso, e sim Meu Pai que está nos céus. Também Eu te digo

que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei Minha Igreja, e as portas do Sheol

nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que

ligares na terra será ligado nos céus. E o que desligares na terra será desligado

nos céus” (Mt 16, 16:19). Como é possível constatar, São Pedro, através da fé,

por revelação divina, obteve o conhecimento do Filho; Este, por sua vez, em

função de tão nobre virtude do apóstolo, deu-lhe a missão de edificar a sua

igreja (do grego, ekklesia, que significa assembleia, normalmente, aparecendo

no sentido de reunião do povo). A Igreja de São Pedro vem então com o fim da

salvação através da revelação da Santíssima Trindade, sendo sua, e somente

sua, a legítima autoridade sobre a religião (do latim, religio, ‘religar’ ou ‘ligar

novamente’), que estabelece a união do terreno e do transcendental através da

fé e da moral. Ademais, como se estende a todos os homens, e não admite

outras, faz-se Católica (do grego, kathólikos, ‘universal’). São Pedro é

considerado o príncipe dos apóstolos, tornando-se o primeiro bispo de Roma,

(o primeiro papa), sendo que, todos os posteriores carregam seu legado; esse

fato atribui a soberania da Santa Sé sobre todas as outras dioceses, que

originaria, doravante, os títulos ‘Apostólica’ e ‘Romana’ à Igreja Católica.

10 Nota do Autor: Essa premissa representa, para Santo Agostinho e a

escolástica de seu tempo, o estado de natureza do homem. A busca do bem e o

afastamento do mal (do pecado) é aquilo que ele tem por fim de vida, através

da boa conduta moral de fé, por intermédio de seu livre-arbítrio (a razão) dado

por Deus. Portanto, a razão é o que inclina o homem ao bem. Cf.

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus (Contra os Pagãos). Petrópolis: Ed.

Vozes, 1990.

11 Nota do Autor: Para Santo Agostinho, tudo vem de Deus; essa premissa lhe

conduz ao problema do mal (tão largamente debatido em sua filosofia). Para o

autor, o pecado (o mal) não é substantivo, é apenas ausência do bem, não fora

criado por Deus, pois não tem existência material. Desse modo, o Estado vem

na direção de coibir o mal que ofende a Deus, por intermédio do outro mal: a

opressão do homem pelo homem. As sociedades livres são aquelas que estão

alinhadas a natureza (citada acima), por conseguinte, tem a menor intervenção

do Estado quanto for possível. Cf. idem.

12 Nota do Autor: Segundo Maquiavel, é Estado o domínio (relação senhorial

do homem pelo homem instituída) que tem Império (poder de vida e morte

sobre o súdito) – “Tutti gli stati, tutti e' dominii che hanno avuto e hanno imperio

sopra gli uomini, sono stati e sono o republiche o principati” – , nesse sentido, para

Santo Agostinho, é um mal. Podemos supor, portanto, que alimentar a

descentralização do poder, e o aumento dos domínios, ao invés do Estado,

seria um mal menor, preferível as cidades “dos homens”. Afinal, a salvação

não reside mais na Polis, ela é agora individual, vinda da reunião dos

indivíduos (ekklesia, a saber, a Igreja Católica). Para o pensamento Agostiniano

sobre a cidade, cf. Ibidem; para a definição de Estado de Maquiavel, Cf.

MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In Coleção os Pensadores. São Paulo: Ed.

Abril. 1973. Cap. I, pg. 09.

13 Nota do Autor: Não convém discutir e aprofundar o assunto em questão,

pois a este não se dirige nosso objetivo aqui. Contudo, podemos ver em

Maquiavel uma discussão sobre a modernização dos exércitos em tempos de

renascença (fim dos tempos antigos), tanto em seus Escritos Políticos, como

n’O Príncipe. Não faltam exemplos para demonstrar a importância da

constituição de boas armas para um Estado, e como é razoável bem organizar

os exércitos, abandonando as concepções anteriores em prol da necessidade

presente. Vale lembrar que Maquiavel é de um tempo posterior as Cruzadas,

no qual já se deu o triunfo do pensamento aristotélico, por Santo Tomás de

Aquino (momento novo da Escolástica), portanto, sua visão da organização

política, alinha-se agora a comunidade que visa o maior bem, ao invés de

organização institucional que tem por fim coibir o mal pelo mal. Essa mudança

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é importante quando levamos em conta o progresso que se instaura na Idade

Média a partir do pensamento tomista, o qual Maquiavel corrobora. O

Pensamento agostiniano, de certo modo, repele a organização militar e todo

seu fim, bem como o desenvolvimento da comunidade política. Para as

situações militares, Cf. MACHIAVELLI, Niccolo. “O Príncipe” e “Escritos

Políticos”. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril. 1973; para o

pensamento tomista em Maquiavel, Cf. NUNES, Edison. A Política a Meia

Luz. Ética, Retórica e Ação no Pensamento de Maquiavel. São Paulo: Educ,

2008.

14 Nota do Autor: Neste momento Jerusalém estava sob domínio dos

muçulmanos, liderados pelo Sultão Saladino. Com a morte do Rei Balduíno IV

– após alguns anos de contorno da degeneração nas garras da lepra e da

conspiração dos Grandes sempre a sua sombra – ascende ao trono Guy de

Lusignan, desposando a irmã do falecido, tornando-se assim rei-consorte.

Muito embora de status inferior, era Guy que governava – e não bem o fazia,

diga-se de passagem. De seus feitos estúpidos, se seguem uma série de ações

imprudentes e temerárias que não conseguiram nada mais que colocar o

Estado em risco (para adiante perdê-lo). Mas, se se pode dizer que a perda

deste principado deriva dos vícios de seu administrador, seria injusto

desconsiderar a virtude de Saladino nesta circunstancias como exímio

conquistador. Ao contrario dos exércitos cristãos, os muçulmanos tinham

unidade, estavam o sob o julgo de um príncipe de eximia habilidade e astúcia,

que não desperdiçava ocasiões e soube bem ordenar toda milícia. Sabendo da

situação que se passava com o Rei em vida, o sultão se assegurou de assaltar e

tomar alguns pontos estratégicos ao redor da região, e com o ataque gratuito e

tolo feito à caravana de sua irmã por Raynald de Chatillon, a mando secreto de

Guy, Saladino convocou uma Jihad (Guerra Santa) contra os cristãos.

Rapidamente tomou Damasco e Alepo, avançando para a Galileia, onde mais

adiante enfrentaria os exércitos de Guy de e com superior habilidade e

artimanha, os destronaria, tirando proveito do das más condições dos

soldados, da falta de água, do cansaço, e da inexperiência de logística. Era

tarde demais para salvar Jerusalém das mãos dos muçulmanos, agora

armados, organizados e liderados por um líder que se da Fortuna precisou

apenas das ocasiões. Guardadas as devidas ressalvas, parte deste momento é

retratado de modo bem razoável no filme “Cruzadas”. Cf. Kingdom of

Heaven, Ridley Scott, 2005.

15 MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:

Ed. Abril. 1973. Cap. XXV, pg. 109.

16 MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:

Ed. Abril. 1973

17 Nota do Autor: Segundo a mitologia grega, a Maçã Dourada fora presente

trazido pelo cometa de Éris, deusa da discórdia, a um banquete oferecido no

Olimpo por Zeus, endereçado ”a mais justa das deusas”. Como era razoável de

se supor, o presente “inocente” desencadeou um imenso atrito entre Athena,

Hera e Afrodite, as damas presentes. Para resolver o impasse, Zeus elege Páris

de Tróia como juiz. Tentado pelas três partes, tendo a primeira lhe oferece toda

sabedoria do mundo, a segunda o poder e o prestígio como senhor do mais

poderoso reino da Terra, e a terceira a mulher mais bela e exuberante que já

fora vista como esposa, acaba escolhendo esta última. Diga-se de passagem, a

mulher oferecida é Helena, esposa de Menelau, Rei da Lacedemônia, irmão de

Agamémnon, Rei de Micenas, razão pela qual, posteriormente, se dá início a

guerra mais famosa da antiguidade. Por todas as consequências terríveis, o

fruto fica conhecido então como “pomo da discórdia”.

18 Nota do Autor: Trasímaco é um personagem d’A República de Platão. Na

presente obra, em dialogo com Sócrates, ele defende que é a Justiça, na

verdade, a conveniência do mais forte. Pode-se dizer então que, dentre os reis,

onde não há tribunal a que se possa recorrer, vale o exercício daquele que

puder forçar como o justo e devido; e ao povo é justa a submissão à lei daquele

que detém o poder, portanto a força. Justiça como conveniência do mais forte

retorna com o nascer da Modernidade, ideia tão combatida e repudiada na

antiguidade e na Idade Média, obcecada pela jurisprudência do direito

romano. Sócrates argumenta no sentido contrário de Trasímaco, a fim de

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demonstrar que a ruína de uma cidade está quando a lei e os hábitos do povo

se sujeitam a vontade arbitraria do governante, pois o justo reside no império

da lei, tanto na cidade, quanto nas almas dos homens. Concordam com ele:

Aristóteles, os Teólogos da Idade Média, Dante, Maquiavel, entre outros

notáveis dos tempos antigos, pois não pode haver bom governo se aquele que

exerce tal poder o fizer de bel-prazer, tirânica e absolutamente, sem se atentar

aquilo que é razoável: o bem. As leis governam os homens, e não à vontade.

(para melhor panorama sobre a discussão presente Cf. PLATÃO. A República.

In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004).

19 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da

Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005.

20 Nota do Autor: Como relata em sua biografia, já na companhia do medo:

“minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo”. Cf. Ribeiro, Renato Janine. Ao leitor

sem Medo: Hobbes Escrevendo Contra o seu Tempo. São Paulo: Brasiliense,

1984.

21 Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed.

Abril, 1974.

22 Cf. ARISTÓTELES. Política. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova

Cultural, 2004. Cap. 1, Livro I.

23 Nota do Autor: Para melhores discussões sobre a epistemologia mecanicista

de Hobbes, Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. In Coleção Os Pensadores. São

Paulo: Ed. Abril, 1974. Cap. I a IX.

24 Cf. Idem. Cap.VI. Pg. 44-46

25 Nota do Autor: Mais adiante trataremos da questão da transformação da

razão com mais atenção, por ora, cabe apenas mencionar sua função no

teorema hobbesiano.

26 Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed.

Abril, 1974. Cap. XIII. Pg. 78.

27 Cf. Ibidem. Cap. XIII. Pg.79

28 Cf. Ibidem. Cap. XIII. Pg.79

29 Cf. Ibidem Cap. XVI, XVII e XVIII, e, sobre a questão das guerras religiosas, e

das perseguições, ver a última parte Cf. ‘Do Reino das Trevas’. Pg. 356

30 Nota do Autor: A teoria de Hobbes – e o advento da Modernidade –, de

certo modo, retoma toda a discussão travada na Grécia antiga por Platão

acerca da Justiça. Em sua República, os personagens Trasímaco, Glauco e

Céfalo, discutem com Sócrates, defendendo diversas concepções de justiça de

pontos de vista extremamente particulares. Ao contrário de seus opositores,

Sócrates alega que é preciso olhar a justiça de cima, do ponto de vista do todo,

isto é, da Cidade. Naturalmente, Hobbes discorda desta posição, e corrobora

com seus adversários, pois, para ele, tudo está relativo ao indivíduo e sua

conveniência, a sociedade é apenas uma convenção artificial. Cf. PLATÃO. A

República. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004.

31 Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed.

Abril, 1974. Cap. XIII. Pg. 80.

32 Nota do Autor: Giddens coloca que Modernidade se construirá em meio ao

medo e o perigo, representados pela experiência dada ao longo de sua

constituição, contrariando a crença ‘romântica’ de que a modernização da

sociedade findaria com todos os males. Pelo contrário, a Modernidade tem um

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lado tão sombrio quanto pode emanar de luz. Os frankfurtianos abordaram

essa questão de maneira impar, principalmente no tocante de uma sociedade

que ao mesmo tempo em que constrói a civilização, carrega em si a barbárie.

Não obstante, nas palavras de Marx essa ideia já poderia ser identificada,

embora ainda tímida. Cf. GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da

Modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991;

ADORNO, T. “Educação após Auschiwtz” in COHN, G. (org.). Theodor

Adorno. São Paulo: Ática, 1994; e cf. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich.

Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Sueli Tomazini Barros Cassal.

Porto Alegre. L&PM. 2006.

33 Nota do Autor: Parte do dialogo final entre John Milton, o Diabo (Al Pacino)

e Kevin Lomax (Keanu Reeves) acerca do livre-arbítrio do homem. O excerto

em questão pertence a Milton. Cf. Devils’ Advocate, Taylor Hackford, 1997.

34 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul

Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

35 OUTHWAIT, Willian e BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento

Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. P. 473

36 Idem. P. 473

37 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da

Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005. P. 15

38 Idem. P. 16

39 Cf. Devils’ Advocate, Taylor Hackford, 1997.

40 Nota do Autor: Não falamos aqui de uma ‘consciência pós-moderna’ ou de

‘pós-modernismo’. Estes conceitos são totalmente diferentes de uma Era pós-

moderna (isto é, Pós Modernidade). Cf. GIDDENS, Anthony. As

Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora

UNESP, 1991.

41 Cf. GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul

Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

42 Nota do Autor: Claro, naturalmente, vale uma ressalva importantíssima: não

seria razoável afirmar que o Capitalismo se restringe apenas a economia, ou

que o Estado-Nação não interfere em nada mais que a esfera política, ou ainda

que a Logica de Vida Moderna restringe-se ao social; pelo contrário, pois,

enquanto componentes da modernidade, eles se misturam e interferem uns

nos outros, extrapolando suas áreas, tocando em todas as esferas, agindo

juntos para a transformação constante do meio. A separação existe apenas por

conta da geração – e permanece para fins didáticos. A complexidade é

tamanha que seria injusto delimitar suas “fronteiras”.

43 Cf. WEBER, Max. Ciência e Política, Duas Vocações. São Paulo: Ed. Cultrix,

2009.

44 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul

Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. Pg. 09-11-12

45 Idem. Pg. 11

46 Cf. GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. In Coleção Clássicos Jackson.

São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1952, Pg. 85.

47 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul

Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. Pg. 10

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48 OUTHWAIT, Willian e BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento

Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. P. 473

49 Nota do Autor: Na capa original do livro de Hobbes (Leviatã or The Matter,

Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiasticall and Civil) existe a

imagem de um grande homem, coberto por escamas, coroado, detendo um

cetro em uma mão e a espada em outra. O ponto importante fica por conta de

que cada uma de suas escamas é um pequeno indivíduo, simbolizando,

claramente, a ideia hobbesiana de que ele seria a junção de vários homens.

50 Cf. LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo Civil. Petrópolis: Ed. Vozes,

1994.

51 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. In Coleção Os Pensadores.

São Paulo: Ed. Abril, 1973.

52 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. A Profissão de Fé do Vigário Saboiano (Do

Emile). in Coleção Clássicos Jackson, Pensadores Franceses. São Paulo: Gráfica

Editora Brasileira, 1952.

53 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. In Coleção Os Pensadores.

São Paulo: Ed. Abril, 1973.

54 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. A Profissão de Fé do Vigário Saboiano (Do

Emile). in Coleção Clássicos Jackson, Pensadores Franceses. São Paulo: Gráfica

Editora Brasileira, 1952.

55 Nota do autor: O termo Iluminismo deriva do latim iluminare, em alemão

Aufklärung, em inglês Enlightenment, em italiano Illuminismo, em francês

Siècle des Lumières ou illuminisme e em espanhol Ilustración.

56 Cf. ZEITLIN, Irving. “O Iluminismo e Seus Fundamentos Filosóficos”. in

Ideologia y Teoria Sociológica. Tradução Edimilson A. Bizelli. Amorrortu

Editores, Buenos Aires, 1982.

57 Cf. DESCARTES, Rene. “Discurso do Método”. in Coleção Clássicos Jackson.

São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1952.

58 Cf. MONTAIGNE, Michel de. “Ensaios”. in Coleção Os Pensadores. São

Paulo: Abril Cultural, 1980.

59 Cf. KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. in Coleção os Pensadores. São

Paulo: Nova Cultural, 1999.

60 KANT, Immanuel. “Resposta a Pergunta: O Que é o Iluminismo?”. in A Paz

Perpetua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições Setenta Colecções, 1995.

61 Cf. ZEITLIN, Irving. “O Iluminismo e Seus Fundamentos Filosóficos”. in

Ideologia y Teoria Sociológica. Tradução Edimilson A. Bizelli. Amorrortu

Editores, Buenos Aires, 1982.

62 Alusão clara à obra de Santo Agostinho, norteadora de parte do pensamento

católico, vigente por toda Idade Média. Para maiores informações, Cf. idem.

63 Cf. Ibidem.

64 Nota do Autor: O contexto citado se refere à invenção da guilhotina. Maior

instrumento de execução, ela, ao longo do Terror da revolução, decapitou

incontáveis inimigos da “nova ordem”. As execuções não paravam, nem se

limitavam a grupos específicos, chegando a atingir até mesmo aqueles que a

principio julgavam e executavam, saindo do controle de todos os ideais,

terminando somente ao extinguir a vida de seu maior líder, Robespierre. Esse

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fato, entre outras coisas, exprime o poder social incontrolável de uma

revolução.

65 Cf. LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo Civil. Petrópolis: Ed. Vozes,

1994.

66 Cf. WEBER, Max. Ciência e Política, Duas Vocações. São Paulo: Ed. Cultrix,

2009.

67 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. In Coleção Os Pensadores.

São Paulo: Ed. Abril, 1973.

68 Cf. MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Espírito das Leis. in

Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1973.

69 Nota do Autor: Da língua inglesa Enclousures. Para o Feudalismo, a terra era

o bem comum para a produção do camponês; dela ele tirava seu sustento e

seus impostos (a nobreza e ao Estado). Com o inicio da transição passa a ser

encarado como bem de produção. A nobreza e o Estado vêm nisso uma

oportunidade, e rapidamente agem: começa então a cercar as terras, expulsar

os camponeses, e arrenda-las para pastagem de ovelhas.

70 Nota do Autor: Com a criação da Igreja Anglicana, Estatal e sem

interferência de Roma, as terras da Igreja Católica são expropriadas e passam

ao Estado, sendo dadas aos nobres como títulos mobiliários, arrendadas

posteriormente as pastagens e produção de algodão.

71 Cf. MARX, Karl. O Capital (Crítica da Economia Política). São Paulo: Difel,

1982. Livro I, Cap. XXIV.

72 Cf. Idem.

73 Nota do Autor: O termo ‘burguesia’ vem exatamente desta palavra: burgos.

Os burgos eram pequenas cidades, voltadas ao comércio, localizadas próximas

ao castelo dos senhores feudais.

74 Nota do Autor: A Nobreza, naturalmente, ainda nutria o sentimento

negativo quanto à burguesia; a sua visão nunca abandonou o estereotipo dos

antigos comerciantes, nefastos e corruptos. Contudo, se se dispunha a vender

títulos, receber dotes matrimoniais ou partilhar do mesmo espaço, tais fatos

residiam, no mais das vezes, apenas na necessidade de sobrevivência, pois os

privilégios aristocráticos estavam em franca decadência, perdendo espaço a

cada dia que passava, era preciso ignorar a vaidade e agir, a fim de se manter

no topo da cadeia, ou enfrentar o definhamento. Fato é que a nobreza nunca

foi presa a uma convicção que impedisse tal coisa, se deixava levar pelo

pragmatismo; portanto, aqueles que identificaram a ocasião, aproveitaram.

Existe um pequeno conto, daqueles de saber popular, sem autor conhecido, já

do início do Século XX, o qual relatava a conversa de um conde e outros

nobres, em uma festa das classes abastadas da sociedade, a respeito de um

americano, senhor do ramo industrial, rico e poderoso; a conversa se volta às

ideias de que o dinheiro não compra nobreza, pois ela é natural e vem da alma,

o conde diz então que um burguês de smoking jamais terá classe, será sempre

um “mágico”. Para melhor compreensão deste problema, Cf. LAMPEDUSA,

Tomasi di. O Gattopardo. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000.

75 Nota do Autor: Em sua Política, Aristóteles afirma que a sociedade produz a

quantidade de escravos que necessita para suprir sua demanda de trabalho e

produção. Essa afirmação ele “Pois se cada instrumento pudesse realizar seu

trabalho obedecendo ou antecipando a vontade de outros, como as estátuas

feitas por Dédalo ou os trípodes giratórios de Hefesto, os quais, diz o poeta

‘sozinhos entravam na assembleia dos deuses’; se, da mesma maneira, a

lançadeira do tear tecesse sozinha e a palheta tocasse a lira, os manufatureiros

não precisariam de trabalhadores, nem os senhores de escravos”. Cf.

ARISTÓTELES. Política. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,

2004. Pg. 148/149

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76 MARX, Karl. “Divisão do Trabalho na Manufatura e divisão do Trabalho na

Sociedade” in O Capital (Crítica da Economia Política). São Paulo: Difel, 1982.

Livro I. Vol.

77 Cf. Idem.

78 ZEITLIN, Irving. “Bonald e Maistre”. in Ideologia y Teoria Sociológica.

Tradução Edimilson A. Bizelli. Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1982.

79 Nota do Autor: Retirar o indivíduo do centro de tudo e colocar o social tende

a apoiar uma Ciência baseada na sociedade. Nota-se então que os

Conservadores acabam dando base para uma coisa que criticavam tão

ferrenhamente. É neste preceito (o social está no centro de tudo) que vai se

apoiar o pensamento sociológico posteriormente, no mais das vezes, crítico a

Modernidade.

80 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da

Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005. P.18

81 Nota do Autor: O fragmento refere-se a Karl Marx, e é retirado do livro de

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da

Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005. P.20

82 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da

Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005. P.19

83 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul

Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. Pg. 12

84 WEBER, Max. Conceito e Categoria da Cidade. In O Fenômeno Urbano. Org.

VELHO, Otavio Guilherme. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1967.

85 Nota do Autor: Necessário aqui não deve ser entendido como aquilo que é

preciso. Pode-se dizer, que a mágica do capitalismo é transfigurar aquilo que é

apenas conveniente para o grau de necessidade. Assim, faz com que os

homens precisem de coisas das quais realmente não precisam.

86 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da

Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005. P.17

87 ROUSSEAU, Jean-Jacques. A Profissão de Fé do Vigário Saboiano (Do

Emile). in Coleção Clássicos Jackson, Pensadores Franceses. São Paulo: Gráfica

Editora Brasileira, 1952.

88 Nota do Autor: A passagem descrita refere-se à obra já citada de Jean-

Jacques Rousseau, contudo, contida em: BERMAN, Marshall. Tudo que é

sólido desmancha no ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo: Cia. Das

Letras, 2005. P.18

89 GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. In Coleção Clássicos Jackson, Vol.

XV. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1952. Pg. 24

90 Idem Pg. 24

91 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:

Ed. Abril, 1973.

92 Cf. Idem.

93 Cf. Ibidem.

94 Cf. Ibidem.

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95 Nota do Autor: Soberba, segundo Santo Tomás de Aquino é um pecado tão

grande que deve ser tratado aquém dos sete pecados capitais propriamente

ditos. Ela define-se pela desvirtuação do Logus, uma insanidade tão forte que

conduz invariavelmente aos demais pecados. É força que faz com que o

homem creia-se muito mais ou muito menos que é. Ademais, fora este o

pecado cometido pelo Arcanjo da Luz, Querubim mais altivo dos Céus:

Lúcifer. Como era detentor de todos os atributos, o mais belo, mais inteligente,

mais forte anjo de todo o céu, não via ‘razão’ para a atenção depositada por

Deus aos homens, achou-se então na soberba de ser mais alto que o Altíssimo.

O argumento que se segue tem por base a ideia de que, apenas em instancia de

razão completamente desregulada um ente poderia ver algo de razoável em

ser mais que o Ato Puro, eterno. “(...) o primeiro pecado dos anjos maus não

pode ser outro se não o da soberba“. A soberba equivale a hybris grega. Cf.

TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005. Vol. I. Q.63.

96 Nota do Autor: Visto a questão polêmica, não é razoável calar-se sobre este

assunto. Por vezes, como é natural do ambiente moderno, a palavra “pecado”

carrega um estigma negativíssimo: traz a conotação religiosa, conduz ao

moralismo simplista, em termos maniqueístas, e por isso é desconsiderada

quando se fala de ciência. Ora, pecado nada mais é do que um vício. Ações

pecaminosas são aqueles que, julgadas em si, por suas consequências, são o

caminho do excesso, ou da negação da natureza; desvirtuam a alma. A gula, a

cobiça, a luxuria, a vaidade, entre outros pecados, enquanto não-ser, não

existem substancialmente, eles são, nada mais, que ações que geraram um

resultado negativo, pelo desencadear de um determinado mal, e que a nada

deu princípio. O simples desejo não caracteriza o pecado, mas sim sua

consequência, quando celerada e nefasta. Cf. TOMAS DE AQUINO. Sobre o

Ensino (De Magistro) e Os Sete Pecados Capitais, São Paulo: Martins Fontes,

2001; TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2000. Vol. II.

97 Nota do Autor: Frase da música “Lord of the Flies”, da banda do heavy

metal inglês Iron Maiden, de composição de Blaze Bayley, Janick Gers e Steve

Harris, com base em livro homônimo de Willian Golding.

98 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:

Ed. Abril, 1973.

99 Nota do Autor: A lista de paixões primordiais exibidas aqui tem por base a

ideia de Santo Tomás de Aquino dos movimentos passionais do homem,

contudo, fora modificada e alterada, em sua essência, misturada aos conceitos

de Platão, Aristóteles, Descartes, Hobbes e Maquiavel. Razão pela qual atribuir

a ele tal classificação seria injusto.

100 Cf. Idem.

101 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:

Ed. Abril. 1973

102 Nota do Autor: Naturalmente, a perturbação da razão é possível também

fora do estado de ‘apaixonado’, mas devemos, necessariamente, admitir que

nele é mais forte e se manifesta com mais ímpeto.

103 Cf. SMITH, Adam. Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza

das Nações in Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

104 Nota do Autor: Vale a ressalva que o Sr. Adam Smith não diz isso

literalmente, e nem coloca dessa maneira, contudo, se se olhar à prática e a

verdade efetiva das coisas, essa conclusão não parece tão absurda, muito

menos incabível. De todo modo, a conclusão é de inteira responsabilidade do

presente trabalho, pois não há de se atribuir aos autores àquilo que eles não

disseram, portanto, a nota é justificável.

105 Nota do Autor: Não se discute aqui se é ético ou não, a questão não é essa.

Evidentemente, se fosse necessária uma resposta a tal questão, ela estaria

atrelada ao fim do crime, ou seja, a que ele se presta em si, se vai promover o

bem ou se não, como no exemplo dado por Maquiavel em O Príncipe sobre

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Agátocles o Siciliano, quando, por via de crime tomou o principado, mas

promoveu o bem. Seria loucura dizer que as vias celeradas são boas, pois, seu

risco e sua execução exigem tanto mais virtude e habilidade que as torna

impassíveis de serem objetos de glória e emulação. Portanto, se não se pode

dizer que foi glorioso ou entrou para história, foi ao mesmo ético em sua

finalidade. Mas aqui, a questão é pura e simplesmente o meio. A Modernidade

instaura a excelência dos meios, pois precisa dela para continuar a vida.

106 Cf. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.

Tradução de Sueli Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre. L&PM. 2006

107 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob.cit.

108 HOBBES, Thomas. O Leviatã. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed.

Abril, 1974. P.79

109 Idem. P. 80

110 Cf. MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro:

Zahar Editor, 1964

111 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul

Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. Pg. 22

112 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo:

Cia. das Letras, 2004

113 Cf. MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro:

Zahar Editor, 1964.

114 CALDERON DE LA BARCA, Pedro. A Vida é Sonho. Tradução Renata

Pallottinii. São Paulo: Ed. Hedra, 2007.

115 Cf. MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro:

Zahar Editor, 1964

116 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:

Ed. Abril, 1973.

117 Nota do Autor: O Paraíso Perdido é uma obra de John Milton, na qual

descreve, entre tantas coisas, em âmbito católico, a perda do paraíso tanto por

Satanás quanto por Adão e Eva. Em alusão a este fato, diz que os indivíduos

buscam um Paraíso Perdido quando querem retornar a um regime ou estado

de coisas que já ocorreu anteriormente, e, idealmente, era melhor que o atual.

118 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:

Ed. Abril. 1973