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Otávio Vasconcelos Vieira - Mestrado em Filosofia - IFCH, UNICAMP - Bolsista CNPQ - Tema escolhido: 2. Conhecimento/ Verdade e Política - Encontro Pós-Graduação UFMG Entendendo de Estado: conquista, inovação e ação política no Capítulo III de O Príncipe de Maquiavel. Resumo No presente texto, pretendemos mobilizar o tema da relação entre conhecimento e política a partir de uma leitura do terceiro capítulo de O Príncipe de Maquiavel. Voltaremos nossa atenção a como a capacidade de entender (intendere) pode ser fundamental para a ação política. No terceiro capítulo, Maquiavel examina como podem os príncipes que conquistam novos territórios mantê-los. A discussão do autor parece colocar as capacidades de entender as disposições políticas dadas e de deliberar acertadamente a fim de modificá-las como centrais. Para que evidenciemos a capacidade de entender como fundamental para a manutenção de conquistas, (1.) mostraremos que a principal dificuldade enfrentada pelos conquistadores na manutenção de suas conquistas é a inovação e a condição de exterioridade em que se encontra o príncipe em função dela. Então, (2.) mostraremos que Maquiavel propõe ações políticas que conciliem o conquistador com seus conquistados, contornando a condição de exterioridade em que se encontra o príncipe. Por fim (3. e 4.), evidenciaremos, pelos exemplos dados por Maquiavel dos franceses e dos romanos enquanto conquistadores ao longo do 1

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Otávio Vasconcelos Vieira - Mestrado em Filosofia - IFCH, UNICAMP - Bolsista CNPQ -

Tema escolhido: 2. Conhecimento/ Verdade e Política - Encontro Pós-Graduação UFMG

Entendendo de Estado: conquista, inovação e ação política no Capítulo III de O

Príncipe de Maquiavel.

Resumo

No presente texto, pretendemos mobilizar o tema da relação entre conhecimento

e política a partir de uma leitura do terceiro capítulo de O Príncipe de Maquiavel.

Voltaremos nossa atenção a como a capacidade de entender (intendere) pode ser

fundamental para a ação política. No terceiro capítulo, Maquiavel examina como podem

os príncipes que conquistam novos territórios mantê-los. A discussão do autor parece

colocar as capacidades de entender as disposições políticas dadas e de deliberar

acertadamente a fim de modificá-las como centrais. Para que evidenciemos a

capacidade de entender como fundamental para a manutenção de conquistas, (1.)

mostraremos que a principal dificuldade enfrentada pelos conquistadores na

manutenção de suas conquistas é a inovação e a condição de exterioridade em que se

encontra o príncipe em função dela. Então, (2.) mostraremos que Maquiavel propõe

ações políticas que conciliem o conquistador com seus conquistados, contornando a

condição de exterioridade em que se encontra o príncipe. Por fim (3. e 4.),

evidenciaremos, pelos exemplos dados por Maquiavel dos franceses e dos romanos

enquanto conquistadores ao longo do terceiro capítulo, o papel fundamental que a

capacidade de entender e fazer inteligível as condições políticas estabelecidas para que

o príncipe conquistador possa sair de sua condição de exterioridade, posicionando-se de

maneira segura na ordem de coisas de seu território conquistado.

Introdução

No que se segue, pretendemos mobilizar o tema da relação entre conhecimento e

política a partir de uma leitura do terceiro capítulo de O Príncipe de Maquiavel. Para

tanto, voltaremos nossa atenção a uma compreensão sobre como a capacidade de

entender (intendere) pode ser fundamental para a ação política. No terceiro capítulo,

Maquiavel examina como podem os príncipes que conquistam novos territórios mantê-

los. A discussão do autor parece colocar as capacidades de entender as disposições

políticas dadas e de deliberar acertadamente a fim de modificá-las como centrais.

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Maquiavel adverte, mencionando uma discussão travada com o cardeal de Ruão, que a

manutenção de uma nova conquista demanda que "[se entenda] de estado" e não

somente "de guerra"1. A que exatamente Maquiavel se refere por entender? Neste caso,

entender de Estado. De que forma entender auxiliaria a ação do conquistador na

manutenção de seus novos territórios? São estes dois problemas que nos guiam em

nossa presente análise do terceiro capítulo.

Em um primeiro momento (1.), mostramos que Maquiavel identifica como

principais dificuldades para a manutenção de um domínio conquistado a inovação

inerente à conquista, bem como a posição de exterioridade em que se encontra o

conquistador em decorrência desta inovação. A inovação é inevitável para os que

conquistam territórios. A conquista implica em destituir ordenações tradicionais e

implantar novas. Não há conquista sem inovação; ao menos aos olhos dos conquistados,

o príncipe conquistador é um novo príncipe. A inovação, entretanto, apesar de permitir a

conquista de um domínio, também ameaça a sua manutenção. Ao inovar, o conquistador

ofende seus novos súditos, pois necessita destituir a ordem estabelecida e os hábitos que

garantiam uma concepção de boa vida para a comunidade. Neste sentido, o conquistador

se encontra em uma posição de exterioridade em relação à comunidade que governa. Ele

é um agente estranho e uma ameaça. A forma de se agir do príncipe que conquista um

novo território a fim de mantê-lo deve responder à posição de exterioridade e as

reflexões de Maquiavel vão no sentido de trazer tal resposta.

Em um segundo momento (2.), mostramos que, a fim de dar uma resposta à

condição de exterioridade em que se encontra o conquistador, Maquiavel aconselha os

governantes no sentido de uma política conciliatória. O autor recomenda formas de se

agir que amenizem as ofensas geradas pela inovação e retirem o príncipe de sua posição

de exterioridade, posicionando-se de forma segura diante de seus novos súditos. As

ações do príncipe devem ou minimizar a inovação ou redimir o príncipe das ofensas

geradas pela inovação.

Em um terceiro momento (3.), apresentamos o longo exame realizado por

Maquiavel acerca dos fracassos dos franceses na conquista de territórios italianos

durante as Guerras da Renascença. Pretendemos mostrar que Maquiavel atribui a

derrocada do rei francês à incapacidade deste de sair de sua posição de exterioridade e

introduzir-se acertadamente na ordem de coisas. A leitura do exame realizado por

Maquiavel nos revelará como a capacidade de sair da posição de exterioridade implica

1 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.18

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em deliberar entendendo as condições políticas dadas, o que permitiria ao príncipe saber

ser posicionar com suas ações.

Por fim (4.), analisamos o contra-exemplo dado por Maquiavel em relação aos

franceses: os romanos enquanto conquistadores de novos territórios. O autor mostra

como os romanos conseguiam manter suas conquistas manejando seu posicionamento

diante dos conquistados e saindo da posição de exterioridade. Maquiavel caracteriza os

romanos como conquistadores prudentes. A noção de prudência apresentada por

Maquiavel, pretendemos mostrar, envolve a capacidade dos conquistadores de entender

as condições dadas a fim de determinar ações futuras.

1. A inovação da conquista e a condição de exterioridade do conquistador

No terceiro capítulo de O Príncipe, discutindo as dificuldades encontradas pelos

príncipes conquistadores, Maquiavel considera com especial atenção a questão do

costume dos principados. O autor nos adverte para o fato de que os agregados de

homens organizados em uma vida em comunidade compartilham um conjunto de

normas e práticas que são tradicionalmente aceitas, repetidas e nutridas, isto é, para o

fato de que as comunidades politicamente organizadas têm seus hábitos ou costumes.

A fim de discutir a preservação de membros recém-anexados a um antigo

principado, Maquiavel compara principados novos e hereditários, afirmando que é

naqueles que aparecem as dificuldades. Maquiavel descreve uma situação de tensas

relações em que se encontra o príncipe conquistador. O príncipe, neste caso, não herda

seu principado, mas o conquista. Para tanto,deve contar com o apoio de parte dos

habitantes do território que pretende conquistar2. O conquistador, em geral, pode

inicialmente contar com este apoio, na medida em que, por mais amado que seja o

príncipe natural, sempre resiste nos principados um desejo de mudança, na medida em

que parte dos homens crêem melhorar suas vidas com ela3. Entretanto, apesar de a

esperança em uma melhora traga apoio ao príncipe conquistador, este não pode

satisfazê-la4, porque a conquista acarreta sempre injúrias contra os conquistados. O

príncipe conquistador necessita sempre ofender seus novos súditos5. Estas ofensas são

relativas à guerra, uma vez que a conquista de um novo território pressupõe investidas

2 "Por mais que alguém seja fortíssimo graças a seus exércitos, sempre precisará do apoio dos habitantes para penetrar numa província" Ibid, p.93 "Os homens [mudam] de bom grado de senhor, acreditando, com isso que irão melhorar. Essa crença os faz tomar armas contra ele" [Loc. Cit.]4 "[...] além de não poderes manter como amigos os que te colocaram ali, pela impossibilidade de satisfazê-los conforme imaginavam" [Loc. Cit.]5 "Sempre [é] necessário ofender aqueles de quem se torna o novo príncipe, tanto por meio de soldados como por outras infinitas injúrias que cada nova conquista traz consigo" [Loc. Cit.]

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militares, o que perturba a paz e segurança dos súditos. Entretanto, elas são também

relativas à destituição da ordem e de um modo de vida compartilhado e reconhecido

como bom. O conquistador tem de introduzir suas ordenações no lugar das antigas. Uma

vez que estas antigas ordenações estabeleciam a norma, as formas costumeiras de vida,

a introdução de novas ordenações sofrem resistências para serem aplicadas6. Assim,

aqueles que apoiaram inicialmente o conquistador se vêem frustrados em suas

expectativas, pois seus parâmetros de boa vida eram baseados nas ordenações

tradicionais e a interrupção da normalidade inerentes à conquista não satisfaz estes

parâmetros, mas distancia-se deles. Como resultado, o príncipe se vê cercado por

inimigos em novo território7. Tem como inimigos aqueles que se beneficiavam das

antigas ordenações e não pode tomar como amigos aqueles que inicialmente o

ajudaram, pois estes indispõem-se com o novo governante ao se verem frustrados em

suas expectativas.

Maquiavel também estabelece o seguinte: domínios anexados se localizam na

mesma província e vivem com a mesma língua, com costumes e ordenações

semelhantes aos do Estado conquistador, ou não8. No primeiro caso, será fácil a

manutenção dos territórios conquistados se comparada ao segundo caso, em que é

exigido do príncipe uma maior habilidade9. Território, língua, costumes e ordenações.

Todos eles indicam práticas consolidadas por grupos de pessoas pela repetição e

transmissão entre gerações ao longo do tempo. Maquiavel não se utiliza da

terminologia, mas, a fim de elucidar a questão, podemos pensar aqui em uma noção de

cultura destacada pelo autor. Se entendemos cultura no sentido de que determinadas

comunidades cultivam práticas e formas de vida e relação humanas, poderíamos

associá-la aos elementos elencados pelo autor.

É preciso entender as diferenças e similaridades culturais entre o governante e

governados para um exame das dificuldades encontradas pelo príncipe na manutenção

de seus principados. O autor afirma que, quando se mantêm a ordem estabelecida e

6 No segundo capítulo, Maquiavel advertia para que o príncipe hereditário evitasse "vícios extraordinários", pois estes o poderiam tornar "odioso". Também nos mostrava que, por "ter menos razões e menos necessidade de ofender", príncipe natural é "mais amado" [Ibid, p.7]. É interessante notar esta oposição entre amor e ódio formulada por Maquiavel. Ao sair da ordem estabelecida, da norma, agindo extraordinariamente, o príncipe é caracterizado como cometendo um vício e atrai para si o ódio de seus governados. Ao manter, por outro lado, a ordem de coisas tal como é do costume de seus governados, é amado. Disso, podemos inferir que a manutenção da ordem é vista como uma virtude e respondida com o amor e que, por outro lado, a modificação da ordem é vista como um vício e uma ofensa, atraindo para o inovador o ódio.7 "Assim, tens como inimigos todos os que ofendeste ao ocupar aquele principado, além de não poderes manter como amigos os que te colocaram ali, pela impossibilidade de satisfazê-los conforme imaginavam" [Ibid, p.9]8 Ibid, pp.10-119 "[...] sendo necessário ter muita fortuna e muita habilidade para mantê-los" [Ibid, p.11]

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quando não há diversidade de costumes, os homens podem viver em tranquilidade10.

Destarte, o conquistador facilmente mantém sua posição de governo quando seus

costumes são conformes aos do conquistado. Apesar de não poder esquivar-se de toda e

qualquer ofensa, uma vez que é necessário ofender para a conquista, o conquistador de

territórios cujos costumes são similares aos seus não deve encontrar tão grande

resistência de seus novos súditos. Isto, porque a ordem introduzida pelo conquistador

não representa uma grande modificação da ordem anteriormente vigente no território.

Por facilmente poder evitar conflitos culturais e a necessidade da alteração da ordem, o

príncipe conquistador nestas condições não encontra dificuldades em manter-se. Já ao

conquistar um membro em outra província, cujos costume, língua e leis são diversos, o

conquistador se encontra em posição de estrangeiro, ele é uma figura estranha, negativa,

em seu novo domínio. Suas formas costumeiras de proceder e as ordenações que lhes

são habituais não são organicamente adaptáveis à conquista. Por essa razão lhe será

mais dificultosa a permanência, pois lhe será exigido agir fora de sua zona habitual, de

seus procedimentos padrões.

Da relação estabelecida entre governante e governados nasce a segurança do

príncipe. Consideremos que permanecer em sua posição de governo é condição primeira

para que os príncipes mantenham seus principados. Assim, o príncipe deve ter sempre

em conta se o contexto corrobora para que permaneça ou não neste estado; deve ter em

conta se é segura sua posse11. A posse é segura na medida em que não são

suficientemente impositivas as forças que privem o príncipe de sua posição. Neste

sentido, na medida em que se preserva aquilo que se ama e que se destrói o que se

odeia, na medida em que se protege os amigos e se combate os inimigos, é fundamental

saber se o príncipe tende a ser mais amado ou mais odiado, bem como se está cercado

por amigos ou por inimigos. Da relação entre os procedimentos do príncipe e as práticas

já habituais em seu principado nasce a maior ou menor necessidade de ofender,bem

como se estabelece um estado de coisas mais tranquilo ou mais turbulento nas relações

políticas no domínio do príncipe. Uma maior necessidade de ofender e a turbulência nas

relações políticas desperta o ódio ao príncipe. Quando, por sua vez, não há necessidade

de ofender e certa paz nas coisas do Estado está garantida, o príncipe é amado e

10 "[...] mantendo-se as antigas condições e não havendo diversidade de costumes, podem os homens viver tranquilamente" [Ibid, p.10]11 Maquiavel, no terceiro capítulo, examinar mios pelos quais se pode "manter [os principados] em segurança" [Loc. Cit.]. No quarto capítulo, afirma que tendo seguido determinados procedimentos, "o estado ficou assegurado [sicuro] para alexandre" [Ibid, p.21]

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benquisto pelos seus, estando cercado por um povo que lhe é majoritariamente amigável

e fiel.

A conformidade ou o conflito entre o governante e o costume de seus

governados farão da permanência do príncipe em sua posição de governo mais ou

menos segura. Em consequência, farão da manutenção do principado mais ou menos

dificultosa. Ora, interromper o costume, o hábito, significa inovar. A relação de conflito

entre o príncipe e seu principado se dá em função das inovações que o príncipe introduz.

Um príncipe que conquista um território necessita inovar. A inovação é inerente à

conquista. Mesmo que um herdeiro de uma antiga linhagem de reis anexe ao seu

domínio um membro conquistado, ao menos para os habitantes deste território

conquistado - habituados às suas próprias práticas particulares - as ordenações do rei

serão novas. Tanto é assim, que entre os membros conquistados podemos observar uma

variação de dificuldades e a inovação aparece como causa dessa variação. Quanto mais

novos elementos o príncipe introduz, maior será seu isolamento em relação ao território

que conquista. Por essa razão, com mais facilidade se mantém uma nova conquista

quando seus costumes são semelhantes ao do Estado conquistador, sendo menos

incisivas e conflituosas as inovações introduzidas.

Ao longo de O Príncipe, Maquiavel, quando possível, desencoraja as

inovações12. Adverte para o fato de que a inovação na cena política é uma tarefa difícil,

duvidosa e perigosa13. No entanto, em determinados contextos a inovação é

simplesmente inevitável. Maquiavel se encontra em um impasse: por um lado, a

inovação é dificultosa e perigosa; por outro, ela é necessária e garante o estado de

príncipe a muitos governantes. As considerações, portanto, sobre como devem ser

superadas tais dificuldades deve passar por uma discussão sobre como lidar com os

costumes estabelecidos e sobre como se pode inovar, mantendo-se ainda em segurança.

2. Política como reconciliação

O príncipe conquistador, para manter o domínio sobre seu novo território,

precisa agir a respeito de sua posição de exterioridade. Quando analisamos o exame das

dificuldades enfrentas e dos meios escolhidos pelos conquistadores para suplantá-las,

podemos observar o que podemos chamar de uma política conciliatória. Maquiavel

propõem meios que amenizem e modifiquem a condição de exterioridade do príncipe,

buscando reconciliá-lo com os hábitos de seu novo território. A capacidade do príncipe 12 Aconselha, no terceiro capítulo, aos conquistadores de territórios de costumes semelhantes aos seus que mantenham as antigas condições no domínio conquistado [Ibid, p.10]13 Ibid, p.31

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conquistador é a de contornar os conflitos estabelecidos entre ele e os costumes de seu

principado, saindo da posição de exterioridade em que a inovação o colocou. E quanto

maior é a inovação do conquistador, mais lhe será exigida esta capacidade.

Em algumas circunstâncias, Maquiavel nos mostra, o príncipe pode evitar sua

posição de exterioridade, evitando inovar. Isto é possível na conquista de principados

cujos costumes sejam similares ao do conquistador14. Nestes casos, Maquiavel

recomenda que o mínimo necessário de mudanças sejam implementadas, a saber,

somente aquelas que estabelecem o príncipe novo como governante e impedem o antigo

príncipe de voltar ao poder (extinguir a linhagem dos antigos governantes). Na medida

em que as formas de vida do território conquistado são semelhantes ao do conquistador,

o príncipe pode manter as antigas condições, evitando inovar. Com isso, sem

necessidade de conflitos, o príncipe pode transferir para si a autoridade do antigo

governante e se manter em segurança entre seus novos súditos15. Ao príncipe é

recomendado uma minimização da ação. É recomendado que se aja, que se modifique

as condições dadas, o mínimo possível.

No entanto, em outras circunstâncias não pode amenizar a novidade introduzida.

É o caso dos príncipes que conquistam territórios cujos hábitos e costumes são

diferentes do seu. Nestes casos, o príncipe, sendo oriundo de outra cultura, de outro

modo de vida, já se apresenta aos governados antes de tudo como um estrangeiro.

Estrangeiro e inimigo, na medida em que não só ofende com a guerra necessária à

conquistas, mas também com a ameaça aos modos de vidas habituais no território que

conquista. Neste caso, uma minimização da ação, reduzindo e evitando a inovação,

deixando as condições como estão, não será suficiente. O príncipe terá de agir, de

modificar as condições dadas, a fim tanto de implantar as inovações necessárias para a

conquista quanto para se reconciliar com seus governados e sair de uma posição de

exterioridade. Dessa forma, Maquiavel aconselha ao conquistador algumas medidas,

que cumprem a função de integrar o príncipe ao território conquistado: ir habitar o

território de sua conquista; instalar colônias nos território conquistados; fazer-se árbitro

de todas as coisas no domínio conquistado. Se nos detemos na análise destas ações,

vemos que elas expressam uma capacidade de modificar a ordem estabelecida em favor

do conquistador, de eliminar ou equilibrar a resistência voltada contra ele.

14 Ibid, pp.10-1115 "Desse modo, em tempo muito breve [as conquistas] se integrarão ao principado antigo, formando um único corpo" [Ibid, p.11]

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O autor recomenda que o conquistador vá residir no local de sua conquista16.A

razão para tanto é que quando se está presente, o príncipe pode ver nascer as desordens

oriundas dos conflitos e pode remediá-las rapidamente. Além disso, com isto, os súditos

podem recorrer de perto ao príncipe, tendo por isso a chance de vivenciar a autoridade

do novo governante com mais vivacidade. É importante que o príncipe se faça presente,

que governe e seja obedecido, seja por amor, seja por temor. Com isso, o príncipe pode

combater ou impor-se contra a resistência dos conquistados, saindo da posição de

exterioridade, preenchendo o vácuo de poder deixado pela conquista e provendo seus

súditos de uma experiência de governo com a qual podem se re-acostumar.

Caso o príncipe não possa residir o local de sua ocupação, Maquiavel recomenda

mandar colônias para lá17.A intenção aqui é muito semelhante. As colônias atuam como

vínculos do Estado conquistador. Novamente, o objetivo é fazer presente a posição do

príncipe no território conquistado. Sendo "fiéis"18 ao príncipe conquistador, as colônias

têm um importante papel de introdução das novas ordenações no novo território. Elas

auxiliam na superação da condição de exterioridade do príncipe. Ao introduzir ao

domínio conquistado homens que se relacionam por práticas habituais ao do

conquistador, está se introduzido na experiência dos súditos comportamentos que

auxiliam na obediência ao comando do conquistador. A obediência pode ser garantida

por meios violentos, pela manutenção da força militar. Entretanto, por meio de força

militar ela é obtida a custo de danos a todo Estado, gerando ressentimento geral contra o

príncipe. As colônias são uma via menos ofensiva para a imposição de obediência,

permitindo uma maior aceitação do príncipe no território. As colônias, portanto,

reparam a autoridade do príncipe e reduzem o número de inimigos cultivados por ele,

trabalhando em favor de sua segurança.

O conquistador deve, por fim, também agir no sentido de "ficar como árbitro de

todas as coisas [na] província"19 conquistada - isto é, de ser nela a única autoridade

efetiva. Para tanto, o príncipe deve ser capaz de defender os menos poderosos, que se

tornarão obrigados a ele. Deve enfraquecer os poderosos, para debilitá-los em sua

autoridade. Deve evitar que estrangeiros poderosos entrem no território da conquista.

Para tanto, o príncipe necessitará de forças militares - a fim de defender a si mesmo e a

amigos e atacar inimigos. Entretanto, essa força militar tem de estar associada a um bom

16 Loc. Cit.17 Ibid, p.1218 Loc. Cit.19 Ibid., p.13

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posicionamento político, uma escolha ajustada de quem se deve defender, quem se deve

enfraquecer e quem se deve atacar. Assim, o príncipe deve saber reconhecer e se utilizar

das relações políticas já estabelecidas para posicionar-se politicamente.

Maquiavel aponta para procedimentos que permitam ao conquistador posicionar-

se de tal forma em seu estado de príncipe que as inovações necessárias para que alcance

este estado não sejam também as que o levam para uma condição de isolamento. O

príncipe deve inovar para chegar ao seu estado, mas também deve se precaver dos

inimigos e poder efetivar a sua autoridade. A eficiência dos procedimentos apresentados

por Maquiavel para tais fins no terceiro capítulo é verificada e justificada pelo autor a

partir de dois exemplos centrais, que devemos analisar a seguir: investidas do rei

francês Luís XII ao território italiano durante as Guerras da Renascença e o exemplo das

conquistas dos antigos romanos na província da Grécia.

3. Os erros de Luís XII: entre a política e a guerra

Examinando as investidas francesas na Itália, Maquiavel nos apresenta uma

reflexão por ele exposta ao cardeal de Ruão sobre os franceses que sumariza as razões

pelas quais estes perderam suas conquistas. Ele nos conta:

Dizendo-me o cardeal de Ruão que os italianos não entendiam de guerra, respondi-lhe que os

franceses não entendiam de estado, porque, se entendessem, não teriam permitido que a Igreja

alcançasse tanta grandeza20.

Enquanto conquistadores do território italiano, o erro dos franceses e a causa de

sua ruína foi engrandecer a igreja. Este erro não denota uma inabilidade militar, como se

esperaria de uma mau conquistador (aquele que não tem os meios para a conquista), na

medida em que a conquista pressuporia investidas militares. Em verdade, os franceses

entendiam de guerra; são frequentemente notados por isso. Foi contando com o

excelente e furioso apoio militar francês que se engrandeceu a igreja no período das

invasões. O erro dos franceses é de natureza política; é por falta de se entender de

Estado, de posicionamento político, que fracassaram.

A difícil condição exterior e inimiga em que se encontra o príncipe conquistador

em novo território demanda dele não só força militar, mas também a capacidade

conquistar o apoio dos habitantes, ou parte deles21. Maquiavel descreve que o rei Luís

foi trazido à Itália pelos venezianos, que queriam obter parte da Lombardia com o apoio

20 Ibid., p.1821 Ibid., p.9

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dos franceses22. As condições aceitas pela França para adentrarem o território se

mostraram frutíferas, pois, o rei logo se tornou reputado por sua força militar e todos

buscaram tornar-se amigos seus.Dessa forma, os venezianos fizeram o rei da França

senhor de dois terços da Itália, uma vez que todos queriam a ele se aliar23. Depois de

estabelecido em território italiano, entretanto, o rei não soube assegurar-se de sua

posição de comando, pois suas ações alteraram esta posição para uma situaçãode

isolamento e impotência:

Considere-se agora com quão pouca dificuldade poderia o rei ter mantido sua reputação

na Itália se tivesse [...] assegurado e protegido todos os seus amigos que, por serem

numerosos, fracos e temerosos, uns da Igreja e outros dos venezianos, necessitavam

sempre estar a seu lado. Por meio deles poderia facilmente resguardar-se de quem

permanecia grande. Mal chegando a Milão, porém, o rei fez o contrário, ajudando o

papa Alexandre a ocupar a Romanha. Não se deu conta de que, com essa deliberação,

enfraquecia a si próprio, privando-se dos amigos e daqueles que se haviam lançado a

seus braços, e tornava grande a Igreja, acrescentando à força espiritual, que tanta

autoridade lhe dá, tão grande força temporal. Cometido o primeiro erro, foi

constrangido a prosseguir, tanto que, para pôr fim à ambição de Alexandre e para que

este não se tornasse senhor da Toscana, o rei foi obrigado a vir à Itália. Não lhe bastou

ter tornado grande a Igreja e ter-se privado de seus próprios amigos. Por querer o reino

de Nápoles, dividiu-o com o rei da Espanha e, de árbitro da Itália que era, arrumou um

companheiro, para que os ambiciosos daquela província, descontentes com ele, tivessem

a quem recorrer; e, em vez de deixar um rei que lhe fosse tributário, tirou-o dali para pôr

em seu lugar outro capaz de expulsá-lo.24

O apoio dado à igreja atestava uma incapacidade política dos franceses. Aqui

vemos este apoio como elemento central na narrativa da queda do poder francês na

Itália. Este foi o erro primordial dos franceses, dele derivam as complexas e perigosas

necessidades enfrentadas pelos franceses e as causas de sua derrota. em razão das

ofensas necessárias à conquista, Um príncipe em novo território tende a insatisfazer

aqueles que inicialmente o apoiavam, pois não pode garantir as benesses que estes

apoiadores supunham receber; ademais, são inimigos aqueles que se beneficiavam do

antigo estado de coisas. O poderio militar dos franceses e suas consecutivas vitórias

22 Ibid., p.1523 Ibid., pp.15-1624 Ibid., p16

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amenizaram a condição de isolamento do rei francês. A capacidade militar é sem

sombra de dúvida um elemento político de primeira ordem neste contexto, pois ela

podia, não só frear os inimigos, mas também satisfazer os nativos avessos ao statu quo,

ao rebaixar os venezianos e a igreja.No lugar, entretanto, de satisfazer os anseios de

seus amigos, que poderiam conceder-lhe autoridade e segurança, na medida em que

eram numerosos, fracos e temerosos, necessitando sempre ao lado do conquistador25,

ofendeu-os ao aumentar a grandeza de um de seus mais temerosos inimigos. O rei Luís

tinha a possibilidade de contornar o impasse em que se encontra em geral os príncipes

novos, pois podia satisfazer uma parte dos conquistados. Assim o fazendo, poderia

contar com eles para sua proteção e ao mesmo tempo exercer sobre eles autoridade, pois

estavam divididos e fracos.

Em vez disso, em consequência de sua própria deliberação, tornou o impasse

mais perigoso. A deliberação do governante é central, ela revela a capacidade política

do príncipe. A deliberação é a escolha dos procedimentos, dos meios pelos quais se

manterá o principado.As deliberações de Luís XII foram tais, queaqueles que poderia

contar como amigos tornaram-se inimigos e a igreja não poderia ser contada como

amiga, pois seu projeto (e sua real possibilidade) de força temporalestá em conflito com

as intenções expansionistas dos franceses. Tanto é assim que o rei posteriormente teve

de encontrar maneiras de pôr fim à ambição de Alexandre26, que queria expandir sua

autoridade também à Toscana.Contribuir com a grandeza da igreja enfraquece os

franceses, pois os dois disputam o mesmo objeto de autoridade, os dois desejam exercer

comando sobre o mesmo território.

Entretanto, os franceses, contando com sua força militar, ainda podiam deter a

igreja na Itália, pois, por mais que estivesse em situação de desamparo, encontrava uma

Itália dividida. Os oprimidos pela igreja não tinham força suficiente para, por si mesmos

e ao mesmo tempo, expulsarem os franceses e deter o papa; precisavam, para tornarem-

se inimigos potentes, submeterem-se a um senhor mais forte. Foi exatamente este

elemento que Luís XII trouxe à teia de relações deste período das Guerras da

Renascença, ao estabelecer uma aliança com o trono espanhol para a conquista de

Nápoles. Assim como com a igreja, uma aliança com os espanhóis estaria fadada ao

fracasso, pois seus interesses são conflitantes com os dos franceses e sua força

comparável a destes. Os espanhóis são, em verdade, potencialmente mais poderosos,

25Loc. Cit.26Loc. Cit.

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pois, se os inimigos da França na Itália não podiam se aliar à igreja, aos espanhóis, eles

podiam; e aí estará formada uma conjuntura de forças insuportáveis para a permanência

do império francês.

Como nos mostra Newton Bignotto, Maquiavel está interessado em revelar que

"o mundo da violência, que caracteriza a guerra, é na verdade um mundo marcado por

complexas relações políticas"27. A conquista demanda a guerra; esta não só mantém

aqueles que já nasceram príncipes, como também permite que os homens ascendam a

esse grau28. Entretanto, se o poderio militar não for utilizado pela deliberação de uma

boa prática política, de boas decisões de Estado, a guerra se torna apenas um processo

destrutivo e inútil ou mesmo autodestrutivo. Não se tratava, portanto, de evitar a guerra,

pois um conflito com o papa ou com a Espanha seria inevitável29, mas de decidir onde a

guerra corrobora para conquistar o apoio necessário para estabelecer sua segurança e

autoridade. A capacidade política se revela, como coloca Bignotto, quando o agente sai

da posição de exterioridade e inimigo que visa seus adversários como puros objetos, e

se vê posicionado em um contexto, em uma nova ordem estabelecida30. É essencial que

o príncipe conquistador possa entender sua posição no contexto estabelecido para que

possa transformá-lo em seu favor. O conquistador deve passar de pura negatividade para

a posição de criador31 e, não entendendo esta posição, que suas ações alteram o contexto

estabelecido, ele cria para si mesmo uma armadilha. O rei francês, por suas

deliberações,por seu procedimento político,por sua escolha de amigos e inimigos,

daqueles com quem devia fazer a guerra e daqueles com quem não devia fazê-la, não

saiu de sua posição de exterioridade, não se estabeleceu em sua posição de árbitro da

Itália, não se precaveu das consequências desastrosas de suas escolhas. Em vez disso,

deixou que outros assumissem a posição de governo, ajudando-os a aumentarem sua

grandeza no território italiano.

4. A prudência dos romanos

Em contraposição aos franceses, Maquiavel mostra que, politicamente, os

romanos eram excelentes conquistadores. Em oposição à França, os romanos instalavam

colônias em suas conquistas; apoiavam os menos poderosos sem lhes aumentar o poder;

rebaixaram os poderosos que podiam competir a autoridade sobre o domínio; e não

27BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991.p.12628 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.7129 Ibid., p.1730BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991. p.12631Ibid., p.127

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deixavam que forasteiros fortes alcançassem reputação32. Ao analisarmos como

Maquiavel vê os procedimentos dos romanos em relação às conquistas, podemos inferir

algumas características do que o autor entende como uma boa política de conquista,

realizada com deliberações - isto é, decisões de procedimentos políticos - acertadas.

O exemplo aludido por Maquiavel é o das conquistas romanas no território dos

gregos. Ao conquistarem este domínio, os romanos se aliaram aos etólios contra a

dominação dos macedônios no território. Tendo rebaixado os macedônios junto aos

romanos, os etólios buscaram aumentar sua autoridade e a extensão de seu território,

indo contra os interesses dos romanos e aliando-se com uma força estrangeira, a de

Antíoco. Não foi concedida, entretanto, força suficiente aos etólios e os romanos

souberam se precaver de sua ambição e das forças de Antíoco, ao conquistarem o apoio

dos aqueus e dos rebaixados macedônios. Assim, as forças de Antíoco foram expulsas

do território, os macedênios rebaixados, os etólios e aqueus mantidos com algum poder,

mas sem a capacidade de confrontar os romanos. Ao entender e reconhecer as condições

políticas estabelecidas (o que Newton Bignotto chama de "disposições políticas

internas"33)os romanos souberam identificar naquela ordem estabelecida a fonte da

resistência ao seu poder. Com isso, puderam tomar decisões que os estabeleceram bem

nas relações já vigentes no território. Ao analisar estes meios escolhidos pelos romanos,

as deliberações políticas que tomaram, Maquiavel nos diz que

[...] os romanos fizeram aquilo que todos príncipes sábios devem fazer: precaver-se não

somente contra as desordens presentes, como também contra as futuras, e evitá-las com

toda a indústria porque, prevendo-as quando estão distantes, podem facilmente remediá-

las, mas, esperando que se avizinhem, será tarde demais para o medicamento, pois a

doença já se terá tornado incurável. Acontece, nesse caso, o mesmo que dizem os

médicos dos tísicos: no princípio o mal é fácil de curar e difícil de diagnosticar, mas,

com o passar do tempo, não tendo sido nem diagnosticado nem medicado, torna-se fácil

diagnosticá-lo e difícil curá-lo. Assim, acontece nas coisas de estado, já que, quando se

conhecem com antecedência (o que só ocorre quando se é prudente), os males que nele

surgem se curam facilmente; mas, quando, por não terem sido identificados, deixa-se

que cresçam a ponto de todos passarem a conhecê-los, já não há remédio.34

32 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pp.13-1433BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991. p.12634 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 14

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Maquiavel se utiliza da noção de prudência para caracterizar os bons

procedimentos dos romanos. A prudência do conquistador denota a capacidade de

prever problemas futuros além de reconhecer os presentes, de precaver-se deles e evitá-

los. Esta capacidade só é possível quando se sabe identificar as possíveis fontes de

resistência que o desenvolvimento das condições políticas estabelecidas pode causar e

como agir apropriadamente sobre elas. Se as condições estabelecidas apresentam

alguma fonte de resistência ao príncipe, estas condições não podem deixar-se

desenvolver, mas devem ser rapidamente identificadas pelo príncipe para que sejam

rapidamente adaptadas pelo conquistador. Maquiavel afirma que os romanos não eram

afeitos à recomendação de se "gozar os benefícios do tempo", mas sim com sua

prudência. Isto, porque o "tempo", isso é, o desenvolvimento inerte das condições

estabelecidas, "pode trazer consigo o bem como o mal, e o mal como bem"35. O príncipe

deve ser capaz de identificar que males e que bens pode trazer o tempo conta ou à favor

de sua posição e agir sobre isso, preservando o que lhe fortalece e remediando o que lhe

enfraquece. O príncipe necessita do apoio de seus governados, portanto deve buscar

algo de produtivo nas relações políticas já dadas a ele. Necessita, por outro lado, romper

a resistência destas relações em relação a ele, saindo de sua posição de exterioridade, e,

portanto, deve saber adaptar as condições dadas a seu favor.

Observamos que, para descrever o comportamento prudente dos romanos,

Maquiavel se utiliza de uma comparação. Por um lado, o autor equipara a tarefa

cumprida pelo conquistador àquela cumprida pelos médicos. Por outro, associa as

condições das coisas de Estado à condição de um corpo enfermo, um organismo vivo

doente. A relação entre conquistador e domínio conquistado é entendida nos termos da

relação entre o médico e o tísico. Sobre a tuberculose, os médicos recomendam um

diagnóstico rápido. Isto, porque a doença é facilmente curável quando identificada no

começo de seu desenvolvimento e dificilmente contornável quando já desenvolvida.

Entretanto, o diagnóstico precoce da doença é difícil de ser feito, ele não é evidente aos

olhos do leigo ou do mau médio. O conhecimento preciso do funcionamento do

organismo vivo e a capacidade de identificar sinais de anomalia são fundamentais ao

bom médico, que, com seu diagnóstico rápido, pode intervir com procedimentos pouco

invasivos ao corpo do paciente e com maior eficácia na cura da doença. O conquistador

deve proceder em relação a sua nova conquista como o bom médico em relação ao

corpo enfermo. Tendo a sagacidade e a sapiência de reconhecer e entender as condições

35 Ibid., p.15

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dadas, as relações políticas estabelecidas, bem como prever disto futuros problemas, o

conquistador pode intervir pontualmente e sem grandes danos na ordem de coisas,

encontrando nesta ordem uma posição de comando.

É interessante notar outra imagem que se apresenta aqui além da do médico. A

do sábio. A conquista, como nos indica a passagem citada, é uma tarefa para os

príncipes sábios. Maquiavel qualifica o bom conquistador como sábio. O conquistador

deve conhecer bem as condições dadas, ponderar sobre elas e sobre suas consquências

cuidadosamente. Os franceses falharam, Maquiavel conta ao cardeal de Ruão, porque

não entendiam de Estado36. É preciso entender as condições dadas para poder agir nelas

e a partir delas. Esta parece ser a capacidade prudente exigida do conquistador.

A capacidade de entender parece pressupor um objeto que seja inteligível,

compreensível. Afinal, os bons procedimentos do conquistador dependem de uma boa

compreensão das condições políticas de sua conquista, que devem ser passíveis de ser

compreendidas pelo governante. O conquistador deve ser capaz de apreender as

condições dadas a fim de diagnosticá-las e medicá-las. É nesse sentido que Maquiavel

afirma que o fato de os franceses terem perdido seus domínios na Itália em função de

seus erros "não é milagre algum, mas coisa ordinária e razoável"37. O autor quer

ressaltar com tal afirmação que as condições políticas ordinárias, a ordem estabelecida

em um território, podem ser compreendidas, não fogem à capacidade de compreensão e

ação calculada do conquistador. Isto é, não fogem das precauções de um

comportamento prudente.Assim sendo, o conquistador pode inovar, mas ainda pode

observar a manutenção de certos hábitos e costumes que garantem a boa relação com

seus súditos, manejando sua condição e estabilidade. As condições dadas podem ser

aproveitadas e direcionadas em favor do príncipe.

Bibliografia - MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

- FOURNEL, Jean-Louis; ZANCARINI, Jean-Claude (Coaut. de); MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Paris: PressesUniversitaires de France, 2000

- BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991

36 Ibid., p.1837 Loc. Cit.

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