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A LOUCURA E A CIDADE: OUTROS MAPAS 1 Emerson Merhy – médico sanitarista, docente de saúde coletiva Contra um modo de fabricar cidadãos, uma militância autopoiética Um mapa nunca é um mapa, é uma cartografia, no nosso caminhar Boa noite!!! Antes de mais nada, eu queria dizer para vocês, que mais uma vez, como vem acontecendo há muito tempo, nestes últimos anos eu me sinto profundamente em casa, ao poder estar não só em Minas, mas por estar vivenciando esta Minas, que vocês representam, que me ensina muito e me agrada muito. Então, é para mim um imenso prazer e uma honra estar aqui participando deste evento de vocês e poder estar tendo o privilégio de, neste primeiro encontro, trocar algumas idéias sobre os temas instigantes que estão colocados. Estes tipos de temas apresentados, aqui, têm a vantagem de permitir que o pensamento voe a vontade e, assim, posso explorar ao máximo a minha capacidade de criar significações para o que está sendo proposto. De um outro lado, isto traz um grande risco, um grande perigo, porque abre a possibilidade de só eu entender o que eu “delirei”. Mas, mesmo assim, topo o desafio e o risco. E, ao final, só vocês poderão “parametrar” se fez sentido a minha viagem imaginária. 1 Os relatos que apresento neste texto estão modificados, mas sem alterar o substancial que descrevem. ESTE TEXTO FOI APRESENTADO COMO CONFERÊNCIA NO ENCONTRO DA REDE SUBSTITUTIVA EM SAÚDE MENTAL PROMOVIDO PELO FÓRUM MINEIRO EM 2003

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A LOUCURA E A CIDADE: OUTROS MAPAS 1

Emerson Merhy – médico sanitarista, docente de saúde coletiva

Contra um modo de fabricar cidadãos , uma militância autopoié tica

Um mapa nunca é um mapa, é uma cartogr afia , no nosso caminha r

Boa noite!!! Antes de mais nada, eu queria dizer para vocês, que mais

uma vez, como vem acontece ndo há muito tempo, nestes últimos anos

eu me sinto profunda m e n t e em casa, ao poder estar não só em Minas ,

mas por estar vivenciando esta Minas, que vocês repres en t a m, que me

ensina muito e me agrada muito. Então, é para mim um imenso prazer

e uma honra estar aqui par ticipando deste evento de vocês e poder

estar tendo o privilégio de, neste primeiro encont ro, trocar alguma s

idéias sobre os temas instigan tes que estão colocados.

Estes tipos de temas apresen t a dos , aqui, têm a vantage m de permitir

que o pensam e n t o voe a vontade e, assim, posso explora r ao máximo a

minha capacidade de criar significações para o que está sendo

propos to. De um outro lado, isto traz um grande risco, um grande

perigo, porque abre a possibilidade de só eu entende r o que eu

“delirei”. Mas, mesmo assim, topo o desafio e o risco. E, ao final, só

vocês poderão “para me t r a r ” se fez sentido a minha viagem imaginár ia .

1 Os relatos que apresen to neste texto estão modificados, mas sem altera r osubstancial que descreve m. ESTE TEXTO FOI APRESENTADO COMO CONFERÊNCIA NO ENCONTRO DA REDESUBSTITUTIVA EM SAÚDE MENTAL PROMOVIDO PELO FÓRUM MINEIRO EM 2003

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Primeiro, procur ei trabalha r diante das imagens dos mapas da loucura

e dos da cidade. Olhando, um “bucadinho”, para os meus vários lugares

de trabalho. Alguns deles sistema tica m e n t e vivenciados em conjunto

com equipes de trabalha do r e s de redes substi tu tivas; como, por

exemplo, o trabalho com um grupo de fazedores de CAPS, da cidade de

Campinas . Passei a ficar aten to aos vários mapea m e n t os , possíveis, que

estavam acontecen do em torno de mim, produzindo cenários

cartogr áficos com mapas da loucura e que ocorria m no meu trajeto,

produto r em si de car tog r afias .

Talvez, por uma visão focal, inicialmen te , caí na ingenuida de de

imagina r que os mapas da loucura iam se revelar ali onde a loucura

estava oficialmente institucionalizada , ali onde ela estava autorizada a

se manifes t a r aber t a m e n t e . Ora, na medida que comecei a captu r a r

possíveis cenas sobre isso, não tive como evitar e abri passage m para

permitir uma invasão de outros vários acontecimen tos , profunda m e n t e

loucos. E me vi obrigado a tenta r medir os impactos, os sentidos que

eles estavam provocando em mim, procur an do compree n dê- los “de

algum lugar”. Percebi coisas muito interes sa n t e s : situações

aparen t e m e n t e mais imedia t as e/ou graves, de expressõe s e atos de

alguns indivíduos ou coletivos, catalogados como loucos oficialmente ,

que se localizam nos espaços institucionalizados para a loucura , quando

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compar a dos aos outros acontecime n tos que eu assistia e me afetavam,

eram os atos mais sãos dos últimos dias, que eu vivi.

Chamou a minha atenção a manifes t ação de um morador /cidadã o, ex-

prisionei ro de um ex- manicômio de Campinas , que atualmen t e vive em

uma das várias moradias criadas no município. Fez um barulho positivo,

em mim, a revolta que ele teve, diante daquele caso em Campinas , em

que um pai e uma mãe arrem es s a r a m/ a r r e b e n t a r a m um filho, de um

ano de idade, no vidro de um carro, além de tenta re m mata r a filha de

cinco anos batendo a sua cabeça em uma árvore. Aquele

morado r/cidad ão estava profunda m e n t e indignado e revoltado com a

forma como a mídia se expres sou e falou sobre o caso. Estava

indignado, porque a mídia não estava sendo justa , ao compar a r o ato

daquele s pais como um ato de loucos e ponto final. Ele achava que isso

estava criando uma grande confusão. Ficou agitado com esta situação e

a levou para uma fala em uma roda, com outros morador e s /cidad ãos e

técnicos, da rede subst i tu tiva.

Esta sua manifes taç ão instigou- me a imagina r os vários

acontecimen tos , que se express a m fora dos lugares “oficiais” e que são

olhados como “atos de loucura”, porém, de uma certa maneira , olhados

por um ângulo, como o da mídia, que pre tende criar imagens e mapas

empobr ecidos , em significações , destes acontecimen tos . Pois, parece

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que vários grupos sociais precisam sempr e remetê- los de volta a um

lugar de repres en t a ç ã o social, que possa dá- lhes sentido oficial,

operando dentro de cer tos imaginá r ios sociais hegemônicos, que

permite m compre e nd ê- los como “loucur a de fato”; e assim, pelo menos,

o social esta r á isento de ter algo a ver com aquilo. Ou, melhor ,

encont r a r ão com facilidade uma forma de compre e nd e r e estabelece r

respons abilizações , criando estr a t é gi as de punição, que andam de

braços dados com saber es oficiais, clínicos- institucionais , sobre o que é

ser e agir como louco.

Cristalina me n t e , para mim, aparec e u a idéia de que nada melhor , para

denuncia r tudo isso, que um louco bem instituído (que tinha o rótulo

oficial e inclusive passa r a par te da sua vida institucionalizado e um

lugar oficial para se ser louco) dizer que não achava que aquilo era da

mesma natureza da sua loucura e a de seus parcei ros . Pensava que

aqueles pais não deveriam ser des- responsa bilizados criminalme n t e .

Bom debate , que ele colocou.

Isto tudo me remete u a uma situação vivenciada , quase que fisicament e

( mas, ainda bem que não), no metrô do Rio de Janeiro, no qual uma

menina de quatorze anos foi assassinad a numa troca de tiros. Essa

louca cena cruzou- se imedia t am e n t e com uma outra , ocorrida na

mesma época, após a minha “navegad a” pela interne t , quando fui atrás

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do regist ro , a par ti r de Bagdá, daquelas pessoas chamad a s de

“blogueiros” - fabrican t e s de blogs, ou seja, escri ta s sobre o dia a dia

ofertadas na interne t , como um diário a ser par tilhado. Encont re i vários

e fiquei lendo o relato deles destes últimos dias, no Iraque. Quantas

loucuras relatad as . Mas, conforme inter roga o cidadão/mor a do r , do

relato ante r io r: que loucuras são estas? De quem?

Após estas incursões mapea d as , voltei- me para outro movimento

cartogr áfico, para outros mapea m e n tos . Procurei mira r e vivenciar os

perman e n t e s encontros nas ruas da minha cidade, Campinas ; mas, que

ocorrem sistema t ica m e n t e també m em outras cidades brasileiras e,

talvez, de modo até mais crítico, como no caso do Rio de Janeiro. Estou

falando do encont ro entre aqueles que se consider a m par ticipant e s de

agrupa m e n tos sociais incluídos, com os consider a dos (curiosa me n t e por

estes incluídos) excluídos da cidade; encont ro que se repe te na nossa

vida cotidiana , nas calçadas , que se sente nos nossos desvios diant e de

um outro que vem, que é imaginado como desigual e agressor , blá, blá,

blá ... Estes vários tipos de mapas , falam muito, dizem muitas coisas,

pedem leitura s e eu estava tentando lê- los. Mas, para isso me desloquei .

Voei no tempo e espaço, pois isso, talvez, seja um bom jeito de

aumen ta r minhas possibilidades de olhá- los.

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Voei com uma idéia: a de pensa r qual a perspec t iva de futuro que a

gente tem, se pudéss e m os imagina r vinte anos adiante . Se pudéss e mos

exerci ta r o quanto o nosso imaginár io social de hoje possibilita um

amanhã largo, abrange n t e , enriquecido de vidas. Ou seja, é possível

imagina r o que será Congonha s do Campo, em 2020? Ou, o que será

Belo Horizonte , em 2020? Ou mesmo, o que será Campinas? Dá para

pensa r o que será , no plano social e individual, a saúde nisso? Diante

desse desafio imaginár io, cruzei “dois canais”: os vários mapas em que

via loucas cenas de loucuras e imagens de possíveis e desejados

futuros. E, aí, veio um concei to na minha cabeça .

Fiquei pensando que era possível me aproximar dessas cenas de futuro,

a par ti r de uma figura; busquei nelas o que chamo de “portador e s de

futuro”. Se há possibilidade de imagina r o movimen to do presen te e,

quem sabe, uma perspec t iva de futuro, uma das formas de se

aproximar , disso, é imaginar que nestas cenas inscreve m- se

“portado r e s de futuro”. E a inscrição destes “portado r es de futuro”,

permite- me (nos) olhar (mos) para elas com um desafio. Com um

desafio que põe o presen te peran t e as minhas sensações e, ao mesmo

tempo, se apres en t a como chaves de significações de algo a ser lido, de

algo a ser compr ee n dido, que possa me remete r a ver, ali, inscrições de

futuro. Inscrições virtuais , intensa m e n t e concre t a s , pois estavam em

acontecimen tos .

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E, então, me veio um fato desagr a d á vel, per to de uma sensaç ão

depressiva, pois ao olhar por este ângulo, aqueles mapas das loucas

loucuras , indistinta m e n t e , indicava m para mim que as possíveis

aproximações do que poderia ser o desenho do futuro, não me

encan tava m. Não conseguia me agar r a r a idéia de futuro como uma

imagem “poliana”, tão próxima do senso comum que a gente faz desta

palavra , como algo de bom para acontece r . Consegui, assim, me voltar

para a noção de que o futuro estava, ali, em acontecime n to , em ato. Ali,

no terri tório habitado pelos “portado r e s de futuro”, que eram os

mesmos que desenhava m a cena. Então, um otimismo me arreba tou . A

possibilidade de pensar isso, de que os mesmos que desenha m a cena,

com suas ações, podem desdobr á- la, podem, no presen te de hoje,

encont r a r novos sentidos para si e os outros, fez minha angús t ia

conviver com alegrias. Paradoxei !!! E, ainda não sabia bem como, mas

me parecia que é isto que estava desenha do nestes terri tórios que a

gente habita , os paradoxos de sentidos e significações; pois, neles não

sabemos, de fato, quem é o excluído e quem é o incluído; quem é o

louco e quem é o cheio de loucuras , o que cria uma grande dificuldade

para olhar as cenas , mas as mantê m em aber to.

Aqueles que, discursiva e imagina r ia m e n t e , são reconhecidos como

incluídos, na realidade , sob um cer to olhar, são os excluídos; e, aqueles

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que reconhecida m e n t e são conside ra dos como os excluídos, em várias

cenas são os incluídos. Estas categorias não conseguia m mais resolver

a quest ão, elas não conseguia m mais dar conta do que eu estava

mapean do e vendo.

Na realidade , eu estava diante de um processo de busca do

entendim en to desta lógica e aprendi que esta lógica, da

exclusão/inclusão , é uma lógica pervers a . É uma lógica que se no

presen te se concre t iza, leva- nos a um futuro, absolut a m e n t e , trágico

para todos. Assim, o futuro é aqui e agora; neste sentido, em ato.

Esse processo de terri torialização , na hora que eu fui me debruça n do

sobre ele, pensando sobre os “portador e s de futuro”, de fato, me

criara m uma dificuldade tremend a , até o momento em que uma cena,

muito interes s a n t e , surgiu. E, como um afogado me agar r ei a ela; pois,

até então, estava me sentindo engolido por situações de “desproduç ão

da vida”, processos de anti- produção das relações ent re os indivíduos,

almas- coisas que pareciam habita r de forma absolut a o conjunto das

cenas. E, aí, uma outra cena, dent ro desta cena, me emocionou, me

colocou quase que diante de uma perspec t iva feliz. E procur ei pensa r

sobre um outro futuro que també m está escrito, hoje, no presen t e ,

como uma perspec t iva de caminha d a distinta da anti- produção.

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Esta cena aconteceu em uma manifes tação festiva de rua. No meio de

uma festa, na qual estava m presen te s vários usuár ios de redes

subst i tu tivas ao manicômio, um deles fez um ato que chama a atenção

de qualque r um: agar rou , no meio do festejo, uma menina de dez anos,

que estava na festa, e deu- lhe um beijo na boca. A mãe da menina, que

estava do lado, olhou para ele e falou: “Você não pode fazer isso”, em

tom ríspido e chamou um trabalha do r da rede substi tu tiva, que fazia

par te das relações de vínculo daquele cidadão/usuá r io. Este trabalhado r

dirigiu- se para ele, reatando certos processos relacionais , conseguindo

dialogar com ele, sobre o acontecido. A festa prosseguiu. E, ele não

beijou mais a boca de nenhum a criança , durant e todo o percurso .

Senti que esta situação gerou, no agrupa m e n t o que ali estava, um

compor t a m e n to de duplo sentido: uns, entendia m que isto era uma

violação da ordem, tão significativa quanto a daqueles pais que jogara m

a criança no carro, o que pedia por si uma ação punitiva mais explícita ,

uma interdição de corpos; outros, que assimilavam e propunha m um

outro tipo de intervenção .

Sob o ângulo da discussão dos chamados “portador e s de futuro”, algo

me instigou profunda m e n t e neste pequeno acontecime n to e que trago

agora nesta fala. Fico pensando, que havia, ali, coisas acontece ndo que

me faziam atravess a r meus próprios olhare s sobre as cenas

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enxerga da s , ante r iorm e n te : em todas aquelas cenas de loucos e

loucuras , que descrevi - nas quais via como uma dificuldade tremen d a a

inscrição de processos que poderiam me arranca r destes lugares , ou

mesmo a existência de movimentos de futuros diferenciados -, percebi a

existência de realidades conviventes , interess a n t e s de serem

observadas . E, se fossem observadas , talvez permitissem olhar esses

encont ros/acon te cim en tos de um lugar diferent e de onde, no início,

mirava- os. Criei, para mim, desta maneira , uma tercei ra imagem:

pensei nestas cenas, sob a perspec t iva de uma micropolítica de

encont ros .

De posse desta idéia, da micropolítica de encont ros , tentei olhar, de

novo, para todas as cenas . Não mais sob a ótica de que o presen te era

duro e que o futuro seria muito mais duro. Procure i olhá- las como

“lugare s”, onde encont r a m- se ou relaciona m- se terri tórios e sujeitos,

em acontecimen tos e acontece r e s . E, aí, todas essas cenas começa r a m

a express a r outras possibilidades: ali, existiam sujeitos,

terri torializados e em dester r i tor ializações , encont ra n do- se nas suas

dificuldades , nas suas comensalida des , nas suas possibilidades , nas

suas lutas; o que me permitia olhar os encont ros , de terri tórios e

sujeitos em movimento, e tenta r criar novas categorias para mirá- los e

para pensa r o que acontecia , ou poderia acontece r , nesta micropolítica

dos encont ros.

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A primeira noção, que adotei, era que, ali, acontecia m várias coisas ao

mesmo tempo e que não, necess a r i a m e n t e , se excluíam. A segunda , era

que isso permitir ia ter uma outra chave para ver “portador e s de

futuro”, tanto quan to a redenç ão ou à mudança radical do encont ro. A

tercei ra , era de que, na micropolítica dos encont ros , que ocorriam nas

cenas, havia várias relações de interdições e fugas. Nesta micropolítica

dos encont ros terri torializam- se, dent ro das loucura s que ela contém,

relações onde terri tórios e sujeitos interdi ta m outros ter ri tó rios e

sujeitos. Os encont ros explodem como uma revelação de que

agrupa m e n tos de sujeitos colocam- se diant e de outros agrupa m e n tos ,

com a vontade e a ação de interdi ta r o outro, inclusive no seu

pensa m e n to . Parece que o outro, como estrange i ro , é, para ele, um

grande incomodo, não supor ta ndo a possibilidade deste existir nem

como imaginado r . Movimento que se dá em todos os lados, de um a

outro, sem para r .

Estas cenas continha m estes pontos, só que continha m també m outros

processos de encont ros, outras situações ocorrendo no mesmo tempo

do processo de interdição, como outras formas, destes mesmos

agrupa m e n tos sujeitos processa r e m suas micropolíticas, e que chamei,

para minha nova leitura, de encont ros autopoié ticos . Como um

acontece r no outro acontecime n to- interdição.

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O que é encont ro autopoié t ico? O encont ro autopoié tico é onde ocorre,

micropoliticam e n t e , encont ro de duas vidas, de três vidas, de quat ro

vidas, de n vidas, em mútuas produções. Esta palavra , autopoié tico,

pego empres t a do da biologia, que a utiliza para falar do movimento de

uma ameba, porque express a e significa uma imagem de que o

caminha r de um vivo/vida se produz em vida, para mante r- se como

ameba . Assim, tem a força de repres en t a r o movimen to da vida que

produz vida. A autopoiese , portan to, é isso, um movimento da vida

produzindo vida, permit indo- me ressignifica r as cenas, que passa r a m a

ter novos sentidos, para mim: o mesmo lugar , ocupado pela interdição,

é també m espaço de encont ro autopoié t ico. Havia uma micropolítica

inscrit a dentro da outra; e, é isso que permitia a sensação, por

exemplo, de em uma cena que transmi te a angús t ia da morte , que pode

inclusive tomar conta dela, de repen te , ser car rega d a , preenchida pela

possibilidade da produção da vida, no encont ro destes viveres.

E, de volta ao diário/blog do rapaz, de mais ou menos vinte anos,

relatando como estava sendo, para ele, o dia- a- dia da guer r a em Bagdá,

pude entendê- lo melhor . Antes só via no seu relato a descrição de

Bagdá como um lugar onde só havia interdição, onde só tinha

interdições de bombas , de agressões , só se produzia mortes , e que a

expect a t iva de quem ali estava era a de espera r o momento do seu fim.

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No diário/blog, daquele rapaz, pude percebe r uma situação muito

instigante , tão instigan te quanto os movimentos paradoxais que

habitam as outras cenas, relatad as ante rio rm e n t e : de que no seu texto

ele não fala em morte , rela ta como vai se produzindo o viver e a vida,

naquele momento, que está vivendo em Bagdá. Como é que ele vai

mudando as suas expect a t iva s e o seu jeito de caminha r , no cotidiano

da cidade, consider an do que a sua aposta é a de estar vivo, no dia

seguinte .

Agora posso ler que todos aqueles encont ros , que rela tei , são de fato

encont ros absoluta m e n t e paradoxais. Eles most ra m, nas relações

altamen t e agressivas de hoje, como se constitui a interdição da loucura ,

quando o outro se aprese n ta , para mim, sempr e como terri tório do

estranho, como ter ri tó rio do agresso r violento, como terri tório da

invasão; e, ao mesmo tempo, neste mesmo acontece r há, em processo,

encont ros de vidas e suas produções.

A parti r deste momento, que a gente pode desvenda r isto para nós,

també m podemos desejar , que em cada estágio desses encont ros , nos

quais existe vidas em produção, temos a chance de intervir , como

trabalha do r e s militant es autopoié ticos. Ou seja, colocar a nossa

capacidad e de explora r vivamen te , nestes espaços , a potência que a

vida tem de produzir vida e novos sentidos para ela, nós podemos

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entra r nestas cenas , nós podemos nos incluir nestas cenas e não morre r

delas.

Esta é a grande quest ão que para mim se tornou profunda m e n t e

relevante , agora, e que traz, para quem opera redes substi tu tivas, um

grande desafio. Se os trabalhado r e s das redes não se assumire m

efetivame n t e como militan tes destes processos sociais, se não se

colocare m definitivamen t e como portador e s de futuro, não será possível

opera r estes processos tão difíceis.

Creio que este tipo de instigame n to é automá tico: não consegui pensa r

dent ro deste processo, a que fui me apegan do , sem a forte imagem de

que os trabalha do r e s desta s redes , que somos nós, que são vocês; e os

usuários desta s redes, que somos nós, que são vocês, devem e têm que

refleti r, o tempo inteiro, sobre a micropolítica dos seus encont ros , e se

pergun t a r e m: como ocupamos estas cenas, como as produzimos, como

interdi tor es ou como produtor es da vida? Esta direção é funda me n t a l e

é esta impress ão que eu queria passa r , para vocês; mas, apesa r de

tudo, ainda um pouco angus tiado com os vários mapas que vi na minha

frente, e profunda m e n t e enfurecido com a guer r a do Iraque. Obrigado a

todos.

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