Metafísica da Morte - Pedro Galvão

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  • 7/24/2019 Metafsica da Morte - Pedro Galvo

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    METAFSICADAMORTE

    EDIODE2014do

    COMPNDIOEMLINHADEPROBLEMASDEFILOSOFIAANALTICA

    2012-2015 FCT Project PTDC/FIL-FIL/121209/2010

    Editado porJoo Branquinho e Ricardo Santos

    ISBN: 978-989-8553-22-5

    Compndio em Linha de Problemas de Filosofia AnalticaCopyright 2014 do editor

    Centro de Filosofia da Universidade de LisboaAlameda da Universidade, Campo Grande, 1600-214 Lisboa

    Metafsica da MorteCopyright 2014 do autor

    Pedro Galvo

    Todos os direitos reservados

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    ResumoEste artigo centra-se no problema do mal da morte, mas comea comuma breve discusso acerca da sua natureza. Argumenta-se que a melhorperspectiva da identidade pessoal leva concluso de que uma pessoahumana morre quando a sua mente deixa de existir, pelo que o seuorganismo poder sobreviver-lhe. A perspectiva mais influente sobre omal da morte a perspectiva da privao, tambm conhecida por com-parativismo ento apresentada, confrontada com os argumentosepicuristas que se lhe opem e examinada luz de problemas metafsi-cos sobre a forma apropriada de avaliar mortes particulares. Rejeita-sea perspectiva da privao na sua verso simples, considerando-se queesta mais plausvel numa verso que no pressuponha que a identidadepessoal o fundamento da preocupao prudencial.

    Palavras-chaveMorte, identidade pessoal, preocupao prudencial, comparativismo,epicurismo

    AbstractThis article is focused on the problem of the badness of death, but be-gins with a brief discussion of its nature. It is argued that the best viewof personal identity leads to the conclusion that a human person dieswhen his or her mind ceases to exist, and so might be outlived by hisor her organism. The most influent view on the badness of death thedeprivation account, or comparativism is then presented, confrontedwith the Epicurean arguments, and examined in the light of metaphysi-cal problems about the proper way to evaluate particular deaths. Thesimple deprivation account is rejected in favor of a comparative accountthat does not presuppose that personal identity is the basis of prudentialconcern.

    KeywordsDeath, personal identity, prudential concern, comparativism, Epicure-anism

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    Publicado pela primeira vez em 2014

    Metafsica da Morte

    1 A natureza da morte

    Onde a metafsica se intersecta com a teoria do valor, a morte temsido um dos temas mais salientes na investigao filosfica empreen-dida ao longo das ltimas dcadas. O problema central, que constituio objecto de quase todo este artigo, explicar o que torna a morteum mal para quem morre, bem como responder aos argumentos epi-curistas, que visam negar que a morte seja um mal.

    Outros problemas respeitam prpria natureza da morte. Umaquesto particularmente interessante a de saber em que consiste amorte de uma pessoa de uma pessoa humana, mais precisamente.Umapessoa, num sentido do lockeano do termo, um ser dotado deconscincia de si. Uma pessoa humanaser, ento, um ser conscientede si estreitamente relacionado com um certo organismo da espcieHomo sapiens. De acordo com os animalistas (e.g. Olson 1997), essarelao a de identidade: cada um de ns (uma pessoa humana) purae simplesmente um animal da espcie Homo sapiens. Sob esta pers-pectiva, a morte de cada um de ns ser nada mais nada menos que

    a morte do seu organismo. Sob outras perspectivas, no entanto, estaidentificao um erro, dado que cada um de ns poder morrerantesdo seu organismo. Numa das discusses sistemticas mais re-centes da filosofia da morte, Luper (2009: 24-38) destaca duas dessasperspectivas: o personismo e o mentismo.

    Segundo o personismo, somos pessoas essencialmente. Isto impli-ca que no poderemos sobreviver perda da capacidade da conscin-cia de si. Por sua vez, isto implica, por exemplo, que no poderemossobreviver num estado de demncia profunda, no qual esta capacida-de se extinguiu. Mas, nesse estado, o nosso organismo seguramenteno ter ainda morrido.

    Para os defensores do mentismo, somos sujeitos de uma menteessencialmente. Poderemos sobreviver perda da conscincia de si,mas no extino de todas as capacidades mentais, pelo que deixa-remos de existir se o nosso crebro perder at a capacidade mentalbsica de gerar estados conscientes, como dores e experincias vi-suais. Mas o nosso organismo poder continuar a existir aps a perda

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    dessa capacidade. isso que se verifica nos casos de estado vegetativopersistente.

    s trs perspectivas referidas correspondem perspectivas dis-tintas sobre as condies de persistncia das pessoas humanas. Poroutras palavras: correspondem respostas distintas ao problema daidentidade pessoal ao longo do tempo.

    O animalista, como afirma que cada um de ns tem as condiesde persistncia do seu organismo (porque pensa que cada um de nso seu organismo), negar que a identidade pessoal dependa de al-

    guma forma de continuidade psicolgica. Pois a sobrevivncia de umorganismo humano, como nos mostram os casos de estado vegetativopersistente, no depende de nenhuma forma de continuidade psico-lgica.

    Se aceitarmos uma perspectiva psicolgica da identidade pessoal,teremos de rejeitar o animalismo. As perspectivas psicolgicas dis-ponveis divergem entre si quanto ao tipo de continuidade psicolgicainvocado para explicar as nossas condies de persistncia. De acor-do com as perspectivas neo-lockeanas, a continuidade relevante con-siste na obteno de um certo t ipo de cadeia de conexes de contedosmentais, como crenas, memrias e intenes. Caso o tipo de cadeia

    apropriado s possa existir num indivduo enquanto ele conservar acapacidade da conscincia de si, o neo-lockeano ficar comprometidocom o personismo. De acordo com outras perspectivas psicolgicas,a identidade pessoal fundamentalmente uma questo de continui-dade de capacidades mentais. A perspectiva da mente incorporada, deMcMahan, enquadra-se nesta categoria. Diz-nos que continuaremosa existir enquanto a nossa mente continuar a existir e que a nos-sa mente continuar a existir enquanto o nosso crebro se mantiverminimamente capaz de gerar estados conscientes (McMahan 2002:67-69).

    A perspectiva da mente incorporada superior s suas rivais.1As-sim sendo, h que aceitar o mentismo e que conceber a morte das

    pessoas humanas como algo distinto da morte dos seus organismos.

    1Defendo esta perspectiva no artigo sobre identidade pessoal publicado nesteCompndio. Dado que nesse artigo o leitor poder encontrar uma discusso bas-tante pormenorizada deste problema metafsico, aqui optei por abord-lo de umaforma extremamente sucinta.

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    A morte de uma pessoa humana algo que, note-se, poder ocorrerdepois de ela ter deixado de ser uma pessoa consiste na obliteraoda sua mente, que se verifica quando o seu crebro perde as fun-es essenciais ocorrncia de estados conscientes. A morte de umanimal humano no consiste nisto, ainda que muitas vezes ocorrapraticamente ao mesmo tempo e no mesmo lugar que a morte deuma pessoa.

    Perceber a natureza da morte fundamental para avaliar e es-colher critrios de morte. Um critrio de morte apropriado indica-

    r, para o mundo actual, as condies necessrias e suficientes paraa ocorrncia de uma morte. A realizao dessas condies ter depoder ser aferida com a tecnologia disponvel. De acordo o critrioda morte cerebral, que hoje o mais adoptado, uma morte ocorrese, e apenas se, o crebro no seu todo deixou irreversivelmente defuncionar. Na sua crtica a este critrio, McMahan (1998) argumentaque ele no apropriado nem como critrio para a morte de um ani-mal ou organismo humano, nem como critrio para a morte de umapessoa humana:

    1. A cessao irreversvel do funcionamento do crebro no seu

    todo no para a morte de um organismo hu-mano, dado que h casos de organismos vivos que esto cerebral-mente mortos e.g. mulheres grvidas, que so mantidas vivascom apoio externo at a gestao se completar.

    2. A cessao irreversvel do funcionamento do crebro no seutodo no condio necessriapara a morte de uma pessoa humana,dado que basta que as regies superiores do crebro deixem defuncionar para que a obliterao da mente se verifique.

    McMahan conclui que, para determinar a morte de um organismohumano, ser melhor adoptar um critrio em desuso: o da cessao

    irreversvel da funo cardiopulmonar. Para determinar a morte deuma pessoa, um critrio como o da morte cortical (i.e. um critrioda morte do crebro superior) ser o mais apropriado. Aplicandoeste critrio, concluiremos que aqueles que entraram em estado ve-getativo persistente j esto mortos ainda que, obviamente, os seusorganismos continuem vivos.

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    2 A perspectiva da privao

    Admitamos, pelo menos para benefcio da discusso, que a morte aniquilao uma passagem para a inexistncia, por assim dizer. Noh nenhum Alm. morte sobrevm um vazio experiencial defini-tivo. Ser que, ento, a morte um malpara quem morre? O processode morrer pode ser mau em virtude de ser doloroso ou angustian-te, mas no isso que est em questo. Costuma-se presumir que amorte, mesmo quando ocorre de uma forma totalmente inesperada

    e indolor, geralmente constitui um grande mal ou prejuzo [harm]para aquele que morre. Presume-se, por outras palavras, que a mor-te geralmente no do interesse (i.e. que vai contra os verdadeirosinteresses) de quem morre. Mas como poder isto acontecer, se estarmorto no envolve nenhuma experincia negativa?

    Desde o ensaio seminal de Nagel (1979) sobre a morte, a perspec-tiva da privao (ou comparativista) conquistou uma ampla aceitaocomo explicao do mal da morte. H que reconhecer que a mor-te, contrariamente ao sofrimento, no intrinsecamente m. Mas comparativamente m. Ou seja, m por comparao com aquiloque exclui: uma vida consciente que teria sido globalmente valiosapara quem morreu. A morte prejudica [harms] quem morre em virtu-de de lhe impor a privao de um futuro que, ponderadas as todas ascoisas, teria sido bom. Numa verso extrema, a perspectiva da priva-o diz-nos que o mal da morte depende exclusivamente da privaoque impe a quem morre. Numa verso moderada, diz-nos antes quea privao de uma vida boa um dos factores que explica o mal demorte ainda que esse possa ser sempre o factor mais importanteou, em alguns casos, o nico a ter em conta.

    Em qualquer verso plausvel, a perspectiva da privao implicaque nem todas as mortes so ms. Pois em alguns casos pense-senum doente terminal que estaria condenado a agonizar, se no tives-se morrido aquilo que a morte exclui globalmente muito mau.

    Nesses casos, a morte ser (comparativamente) boa. A perspectivada privao tambm implica que algumas mortes so significativa-mente piores do que outras, dado que agravidadeda privao variarbastante de caso para caso. Normalmente, a morte de um nonage-nrio envolver uma privao de bens futuros muito menor do que amorte de um adolescente, pelo que a primeira no ser to m como

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    a segunda. Podemos tambm dizer: o interesse do nonagenrio emcontinuar a viver, frustrado pela sua morte, no era to forte comoo interesse do adolescente em continuar a viver. Isto no significa,claro, que o nonagenrio estivesse menos interessadoemcontinuar aviver. Significa antes que, por comparao com o adolescente, a con-tinuao da vida no era tanto do seu interesse que ele, por compara-o com o adolescente,perdeu menosao morrer.

    A perspectiva da privao pode conjugar-se com qualquer pers-pectiva acerca da natureza do bem-estar, isto , acerca daquilo que

    torna a vida de um indivduo boa para si mesmo. Um defensor daperspectiva da privao poder ser hedonista, caso em que, identi-ficando o bem-estar com o prazer e a ausncia de dor, julgar queuma morte ser m na medida em que imponha a privao de estadosde conscincia aprazveis. Mas ele poder optar pelo preferencismo.Nesse caso, entender que uma morte ser m na medida em queimponha a privao de uma vida em que certos desejos ou prefern-cias teriam sido realizados. Poder ainda advogar uma perspectiva dalista objectiva, identificando o bem-estar com a realizao de umapluralidade de bens (e.g. a obteno de conhecimento, o exerccioda autonomia, o desenvolvimento de relaes de amizade) que tm

    valor independentemente de serem desejados ou preferidos. Sob estaperspectiva, uma morte ser m na medida em que prive quem mor-re de uma vida em que os bens objectivos seriam realizados.

    Uma questo intrigante, que vale a pena mencionar, a de saberse podero existir . Ser que uma pessoa poder serprejudicada no (apenas) pela sua morte, mas por algo que ocorraaps a sua morte? A esta questo o hedonista ter de responder pelanegativa, j que para si o bem-estar resulta apenas de experinciasaprazveis e aps a morte estas deixam de poder ocorrer. J o pre-ferencismo deixa espao para a existncia de prejuzos pstumos.Dado que certos desejos podero s se realizar aps a morte (e.g.ser um msico reputado, ter um funeral grandioso), a sua frustra-

    o, segundo as verses de preferencismo em que esses desejos sejamrelevantes para o bem-estar, resultar num prejuzo pstumo. E asua realizao resultar num benefcio pstumo. Numa perspectivada lista objectiva, a possibilidade de prejuzos pstumos dependerdos bens listados.

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    3 Argumentos epicuristas

    Na Carta a Meneceu, Epicuro escreveu o seguinte:A morte, o mais temido dos males, portanto nada para ns, dado quequando existimos a morte no est presente, e quando est presenteno existimos. Deste modo, nada nem para os vivos nem para osmortos, visto no estar presente nos primeiros e os segundos j noexistirem.2

    Embora esta passagem levante questes exegticas, podemos ignor--las e extrair dela um argumento a favor da concluso surpreendentede que a morte nunca um mal para quem morre. Esta concluso a perspectiva epicurista. O argumento, numa reconstruo tpica(Johansson 2013: 255), o seguinte:

    1) Tudo o que mau para uma pessoa mau para ela em algumaaltura.

    2) No h nenhuma altura em que a morte seja m para a pessoaque morre.

    3) Logo, a morte no m para a pessoa que morre.

    De acordo com (1), todos os males que atingem um indivduo sodatveis. Se perguntarmos, por exemplo, quando que uma certa dorde cabea um mal para aquele que a sofre, a resposta evidente:durante perodo de tempo em que essa dor ocorre. E a morte? Sefor um mal, quando que ser um mal para quem morre? Parecedescabido supor que a morte um mal antes de ocorrer, mas a su-posio de que um mal depois da sua ocorrncia tambm suscitaperplexidade. Pois como poder algo ser um mal para uma pessoaquando essa pessoa j no existe? A premissa (2), semelhana da (1),afigura-se bastante plausvel.

    A lista das rplicas possveis e efectivamente defendidas a esteargumento mais extensa do que se poderia supor. O atemporalismo(Silverstein 2010) dist ingue-se das demais por fazer de (1) o seu alvo:a morte, por oposio a outros males (ou mesmo a todosos outros osmales), no m em nenhum momento: um mal atemporalmente.

    2Citado a partir de Mitsis 2013, que desenvolve uma anlise do pensamentode Epicuro sobre a morte.

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    Segundo o eternalismo (Feldman 1992), a morte um mal em todosos momentos, at naqueles que precederam a nossa existncia. Paraquem defende o concorrentismo (Lamont 1998), a morte um malquando ocorre, dado que nessa altura que nos acontece algo quegarante que no fruiremos o bem-estar que de outra forma teramosfrudo. De acordo com o anteriorismo (Pitcher 1984), a morte ummal antes da sua ocorrncia: enquanto estamos vivos que a mortenos prejudica, j que nessa altura que temos os desejos ou os inte-resses que a morte vir frustrar. Ao invs, o subsequentismo diz-nos

    que a morte um mal depois de ocorrer. Esta a posio menos sur-preendente por parte de quem subscreva a perspectiva da privao,pois no perodo que se segue morte que uma pessoa teria frudo obem-estar do qual ficou privada.

    Bradley (2009: 73-111), que se tem destacado entre os subsequen-tistas, sustenta que, aps a morte, cada pessoa passa a ter um bem--estar de nvel zero. E acrescenta que, para uma pessoa, a morteser um mal exactamente naqueles perodos em que ela teria tidoum bem-estar de nvel positivo, se no tivesse morrido quando ecomo morreu. Mas no ser absurdo atribuir um bem-estar de nvelzero a quem morreu e, portanto, j no existe? Como poder uma

    coisa inexistente ter propriedades, como um certo nvel de bem--estar? A esta questo, o subsequentista poder responder que quemmorreu inexistente apenas neste sentido: deixou de estar presente,no est situado nos momentos que se seguem sua morte. Toda-via, os objectos passados existem simpliciter, de tal forma que pode-mos atribuir-lhes correctamente propriedades e assim fazer afirma-es verdadeiras a seu respeito, como Plato est morto em 2015(Johansson 2013: 264). Pode-se alegar, no entanto, que quem j noest presente quem no existe no sentido em que a morte pe fim existncia no tem nenhum nvel de bem-estar. Opondo-se a estaalegao, Bradley convida-nos a imaginar dois futuros possveis: numdeles morremos imediatamente; no outro, entramos em coma tam-

    bm imediatamente e morremos passados dez anos, sem nunca ter-mos voltado a exercer a capacidade da conscincia. Prudencialmente,nenhum destes futuros melhor do que o outro. Mas, nesse caso,teremos um nvel zero de bem-estar no futuro que sobrevm morteinstantnea, dado que teremos seguramente esse nvel de bem-estardurante os dez anos de coma.

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    Kagan (2012: 213-224), que se inclina para o subsequentismo,examina o seguinte argumento epicurista:

    4) Uma coisa pode ser m para uma pessoa s se essa pessoa exis-te.

    5) Uma pessoa no existe quando est morta.

    6) Logo, a morte no pode ser m para uma pessoa.

    Kagan, que designa (4) por requisito da existncia, defende que h querejeitar esta premissa. Da sua negao, no entanto, parecem seguir--se consequncias absurdas:

    Ao rejeitar o requisito da existncia, estaremos a dizer que algo, emparticular a inexistncia, pode ser mau para uma pessoa mesmo que elano exista. por isso que a minha morte pode ser m para mim. Mas sea inexistncia pode ser m para uma pessoa mesmo que ela no exista,ento a inexistncia poder ser m para uma pessoa que nunca existe.Poder ser m para algum que uma pessoa meramente , paraalgum que poderia ter existido mas que nunca chegou a nascer. (2012:217)

    Em suma, a rejeio do requisito da existncia parece levar con-cluso extremamente contra-intuitiva, para dizer o mnimo, de que

    o facto de uma pessoa possvel nunca ter chegado a existir, ficandoassim privada de uma vida expectavelmente boa, um mal para elamesma. Para evitar esta concluso, Kagan distingue dois requisitosda existncia:

    Requisito modesto: Uma coisa pode ser m para uma pessoa s seessa pessoa existe em algum momento.

    Requisito ousado: Uma coisa pode ser m para uma pessoa s seessa pessoa existe ao mesmo tempo que essa coisa.

    O requisito ousado apoia a posio epicurista: a morte no pode-

    r ser m para uma pessoa, j que ela no existe na altura em queest morta. O requisito modesto, pelo contrrio, permite-nos tantoafirmar o mal da morte como negar que a inexistncia de pessoasmeramente possveis seja um mal para elas mesmas. Mas por querazo haveremos de julgar que necessrio uma pessoa existir em al-gum momento para que uma coisa seja m para ela, embora no seja

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    necessrio que ela exista ao mesmo tempo que o mal? O epicuristapoder alegar que aceitar apenas o requisito modesto da existncia uma opo injustificada.

    Consideremos agora um argumento epicurista muito diferente,que ter sido apresentado pela primeira vez por Lucrcio. conhe-cido por argumento da simetria. Luper (2009: 61) apresenta-o aproxi-madamente assim:

    7) No mau, para uma pessoa, que ela no tenha existido noperodo que precedeu a sua existncia.

    8) Em todos os aspectos relevantes, a inexistncia pstuma deuma pessoa como a sua inexistncia pr-vital (i.e. a sua inexis-tncia nesse perodo).

    9) Se duas coisas so iguais em todos os aspectos relevantes e umadelas no m para uma pessoa, ento a outra tambm no mpara uma pessoa.

    10) Logo, para uma pessoa, a sua inexistncia pstuma no m.

    Num aspecto parece haver consenso entre os que se opem a este

    argumento: (8) a premissa a refutar. Para o fazer, claro, h queapontar uma diferena entre a inexistncia pstuma e a inexistnciapr-vital que seja relevante, isto , que seja capaz de sustentar a pers-pectiva de que s a primeira um mal. Mas que diferena poder seressa?

    Nagel (1979: 67-68) diz-nos que a diferena relevante modal.Quando uma pessoa morre, geralmente poderia ter morrido bastan-te mais tarde, pelo que a inexistncia pstuma constitui uma perdagenuna. Mas uma pessoa, declara Nagel, no poderia ter comeado aexistir antes da altura em que de facto comeou a existir presumi-velmente porque cada pessoa tem necessariamente a sua origem nos

    gmetas a partir dos quais o seu organismo se desenvolveu, que esti-veram disponveis apenas durante um perodo bastante curto. Sendoimpossvel que o comeo da nossa existncia tivesse sido muito ante-rior ao seu comeo actual, conclui Nagel, a inexistncia pr-vital no equiparvel a uma perda.

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    Uma das objeces perspectiva de Nagel baseia-se num casoimaginrio. Suponha-se que, numa clnica de fertilizao, um certovulo e um certo espermatozide estiveram congelados durante s-culos, at que da sua juno resultou um organismo, que um poucomais tarde se tornou o organismo de uma determinada pessoa. Essapessoa, ento, poderia ter comeado a existir muito mais cedo. Eassim Nagel teria de dizer que os sculos de inexistncia pr-vital fo-ram um mal para a pessoa em causa algo equiparvel inexistnciapstuma. Isto sugere que a sua rplica ao argumento da simetria no

    convincente.Outras respostas ao argumento, como a de Feldman (1992: 154-156), falham totalmente o alvo. Quando nos pomos a imaginar queuma certa pessoa morreu mais tarde, observa Feldman, imaginamosuma situao em que ela teve uma vida mais longa. Mas quando ima-ginamos que uma pessoa comeou a existir mais cedo fazemos algodiverso: em vez de imaginarmos que ela teve uma vida mais longa,deslocamos toda a sua vida para um perodo anterior, sem alterar asua durao. Admitamos que isto verdade. Estes factos psicolgicospodero explicar, pelo menos em parte, as nossas atitudes valorativasopostas em relao inexistncia pstuma e inexistncia pr-natal.

    Mas, para responder aos epicuristas, o que importa mostrar queessas atitudes so i.e. que temos boas razes para consi-derar que s a inexistncia pstuma um mal. Os factos psicolgicosque Feldman invoca, no entanto, parecem no ter a menor relevnciajustificativa.

    Os argumentos epicuristas continuam a ser fonte de perplexida-de, mas poucos revelam-se dispostos a aceit-los. Isto pode parecersurpreendente, j que a posio de Epicuro tem um corolrio prticolibertador: como a morte no um mal, prudencialmente no te-mos razes para a temer. O medo da morte, que uma fonte con-sidervel de sofrimento, afinal no tem razo de ser. Mas aconteceque, se a morte no for um mal, dificilmente teremos razes pruden-

    ciais para a evitar ou para continuar a viver. Este corolrio menosatraente. Alm disso, sob a perspectiva epicurista, pode revelar-sedemasiado difcil explicar por que razo eticamente errado matarpessoas.

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    4 O mal da privao: dois problemas metafsicos

    Como poderemos sabero que teria acontecido a uma pessoa se elano tivesse morrido como morreu? Na maioria dos casos, embora ascertezas e as estimativas rigorosas estejam fora de questo, podemosformar crenas justificadas quanto extenso e qualidade do futuroque uma pessoa perdeu ao morrer e assim avaliar razoavelmente asua morte luz da perspectiva da privao. Os problemas mais pro-fundos que se colocam a esta perspectiva no so epistemolgicos,

    mas metafsicos. Numa das discusses mais originais e influentes domal da morte, McMahan (2002: 107-135) examina dois desses pro-blemas.

    Ao primeiro podemos chamarproblema da comparao. Para o elu-cidar, McMahan convida-nos a considerar este caso:

    O Jovem Doente

    Durante a infncia, uma certa pessoa foi exposta a radiao. Daexposio acabou por resultar uma mutao numa clula. Anosdepois, um catalisador levou replicao descontrolada da clula,o que fez essa pessoa desenvolver leucemia. Devido leucemia,sofreu uma hemorragia cerebral letal aos vinte anos.

    Suponha-se que, se no tivesse desenvolvido leucemia, o jovem te-ria vivido mais sessenta anos com um nvel elevado de bem-estar.Suponha-se tambm que, se no tivesse tido a hemorragia, teria vi-vido apenas mais alguns dias em agonia. Como avaliar esta mortesob a perspectiva da privao? Para proceder avaliao, temos decomparar a morte do jovem com o que lhe teria acontecido se ele notivesse morrido como morreu. Comparando a morte com a situaoem que ele no desenvolveu leucemia, chega-se concluso de quea sua morte foi um grande mal. Todavia, comparando-a antes com asituao em que a hemorragia no ocorreu, concluiremos antes que a

    sua morte foi boa. Qual ser, ento, a comparao correcta?Uma morte pode ser comparada com diversas situaes alterna-tivas nas quais no ocorreu. Sob algumas comparaes, poder sermuito m. Sob outras, menos m. Sob ainda outras, at ter sidoboa. Mas uma e a mesma morte no pode ser m, menos m e atboa. Para evitar o paradoxo, precisamos de critrios para identificar

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    a alternativa relevante morte i.e. a alternativa que sirva para fazera comparao apropriada de modo a determinar, luz da perspectivada privao, em que medida essa morte foi m. O problema da com-parao o desafio de encontrar esses critrios.

    Uma hiptese ser abraar a ideia relativista de que nenhumamorte m, menos m ou boa simpliciter. Todas as comparaes soigualmente vlidas, de tal forma que uma morte apenas poder serm, menos m ou boa relativamente a uma certa comparao. E,portanto, poder ser todas estas coisas relativamente a comparaes

    diferentes. McMahan descarta esta hiptese, pois entende que elatem implicaes inaceitveis. Consideremos este caso:

    O Peo Distrado

    Uma pessoa um jovem saudvel, podemos acrescentar morreinstantaneamente ao ser atropelado por um autocarro.

    Intuitivamente, a morte desta pessoa foi um grande mal. Mas supo-nha-se que ela no teria morrido se tivesse recuado um passo antesdo instante da coliso. Nesse caso teria sobrevivido, mas com lesespermanentes no crebro que a deixariam muito incapacitada e em

    grande sofrimento para o resto da vida. Afigura-se absurdo avaliar amorte em causa comparando-a com estapossibilidade alternativa econcluindo assim que foi bom o jovem peo ter morrido.

    Quais so, ento, os critrios para identificar a alternativa rele-vante morte? McMahan limita-se a explicitar vrios critrios queefectivamente usamos quando avaliamos mortes particulares. Emprimeiro lugar, temos uma tendncia para nos concentrarmos emalternativas que excluam, tanto quando possvel, o acontecimentoque identificamos como a causa da morte da que nos parea des-cabido comparar a morte do peo com uma alternativa em que oatropelamento no deixou de ocorrer. Em segundo lugar, inclinamo--nos a comparar a morte da vtima com uma alternativa em que o

    seu passado no seja muito diferente. Por exemplo, se uma pessoamorre devido a uma longa doena degenerativa, no avaliamos a suamorte comparando-a com uma situao em que ela nunca teve essadoena. Por fim, inclinamo-nos tambm para comparar a morte davtima apenas com alternativas razoavelmente realistas, nas quaisno ocorram, por exemplo, intervenes milagrosas.

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    Esta lista de critrios levanta duas questes importantes. Mes-mo que estes sejam os critrios que efectivamente adoptamos, seroque so justificveis? E, apesar de exclurem muitas comparaes,no acabaro por permitir demasiadas comparaes que resultem emavaliaes dspares de mortes particulares?

    Consideremos agora o outro problema metafsico oproblema dasobredeterminao. Podemos coloc-lo a partir deste caso:

    O Peo Distrado II

    Um jovem morre instantaneamente ao ser atropelado por um au-tocarro. Desta vez, a autpsia revela um aneurisma que o matariadentro de uma semana.

    A morte desta pessoa estava sobredeterminada neste sentido: se elano tivesse morrido como morreu, teria morrido pouco depois deoutra forma. Parece, ento, que a sua morte no foi um grande mal,dado que, aparentemente, a privou apenas de uma semana de vida.Esta concluso muito contra-intuitiva.

    Imaginemos agora que o jovem no foi atropelado e que acaboupor morrer uma semana depois devido ao aneurisma. Suponhamos

    tambm o seguinte: se ele no tivesse morrido devido ao aneuris-ma, teria morrido quarenta anos depois de ataque cardaco. luz daperspectiva da privao, admitindo que esses teriam sido quarentaanos bem vivos, teremos de concluir que a morte em questo foi umgrande mal. Chegamos assim a uma concluso ainda mais contra--intuitiva: ao ter morrido atropelado, o jovem peo foi poupado auma morte muito pior.

    Intuitivamente, a morte pode ser um grande mal mesmo quandoest sobredeterminada. O problema da sobredeterminao o desa-fio de pr esta intuio de acordo com a perspectiva da privao ouento de mostrar que a intuio enganadora. A estratgia da heranavisa o acordo. Quem a subscrever dir que, na verdade, a morte do

    jovem peo foi um grande mal, dado que a privao de bens futurosque ele sofreu no compreende apenas uma semana. Abrange tam-bm todo o bem-estar que ele teria frudo se, no tendo morridoatropelado, tambm no tivesse depois morrido devido ao aneuris-ma: a morte por atropelamento herda todo o mal envolvido nessa

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    morte hipottica que teria ocorrido uma semana depois. McMahanexplica assim esta resposta ao problema da sobredeterminao:

    Segundo a Estratgia da Herana, no avaliamos uma morte por com-parao com a vida que a vtima teria tido se a sua morte actual notivesse ocorrido. Avaliamo-la antes por comparao com o futuro que avtima teria tido se a sua morte no tivesse ocorrido ese todas as mortessubsequentes potenciais at a um certo ponto tambm no tivessemocorrido. (2002: 121-122)

    A estratgia da herana, no entanto, suscita uma questo delica-

    da. Que ponto ser esse? Este oproblema do trmino

    , para o qualMcMahan no encontra nenhuma resposta satisfatria. Parece sersempre apropriado continuar a perguntar: e o que teria acontecidose a pessoa no tivesse morrido nessa ocasio? No entanto, se vamospondo a questo indefinidamente, imaginando que a morte no ocor-re mas que tudo o resto (como a doena e o envelhecimento) segue oseu curso em conformidade com as leis da natureza, a partir de umacerta altura estaremos a imaginar uma existncia struldbruggiana i.e. extraordinariamente decrpita.3Ora, ficar privado de um futurostruldbruggiano ser sempre um bem. Por isso, o bem de cada mor-te no perodo de existncia struldbruggiana, que indefinidamentelongo, ser herdado pelas mortes hipotticas anteriores. E assim,

    ponderadas todas as coisas, qualquer morte actualser boa.Para evitar esta concluso inaceitvel, o defensor da estratgia da

    herana ter de descobrir uma boa resposta para o problema do tr-mino. McMahan segue outra via: rejeita esta estratgia e argumentaque, embora a morte do jovem peo na verdade no seja muito m,ainda assim ele sofre um grande infortnio. Em seu entender, h quedistinguir a perda que algum sofre devido morte da perda globalque algum sofre ao morrer. Esta ltima pode no ser atribuvel in-teiramente morte, dado que consiste na perda de todos os bens dosquais se fica privado devido a vrios factores incluindo a morte,mas em alguns casos tambm a doena.

    3Em , Jonathan Swift chama struldbrug aos seres huma-nos que so imortais, mas que nunca deixam de envelhecer.

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    5 O mal da privao: relaes prudenciais

    Segundo a perspectiva da privao, quando uma morte m, sertanto pior quanto mais grave for a privao que impe a quem morre.Mas do que depender a gravidade de uma privao? De acordo coma perspectiva simples, como podemos chamar-lhe, depende apenasdaquantidade de bem-estar perdido. Mas a verdade poder muito bemser mais complicada.

    Feldman (1992: 150-52) conta-se entre os que defendem a pers-

    pectiva simples. Para aferir o mal da morte de uma pessoa, P, diz--nos, h que comparar duas vidas possveis dessa pessoa: (A) aquelaque P efectivamente teve e (B) aquela, mais longa, que P teria tidose a sua morte no tivesse ocorrido. Cada uma destas vidas tem umcerto valor, que corresponde ao bem-estar total frudo por P ao lon-go do tempo. A morte ter sido m para P de forma proporcional diferena de valor entre as vidas A e B. Assim, se o bem-estar de Pem A e em B corresponder, respectivamente, a 300 e a 900, o valorda sua morte, digamos assim, ser -600. Se o bem-estar de P em Bcorresponder antes a 400, o valor da sua morte ser -100 o quesignifica que a morte ter sido m, mas no to m como na situaoanterior. Imagine-se agora que o perodo de vida que B tem a maisdo que A globalmente negativo, de tal forma o bem-estar de P emB inferior ao seu bem-estar em A. Suponha-se, por exemplo, que obem-estar de P em B de apenas 250. Neste caso, o valor da mortepara P ser positivo: 300 -250 =50.4

    O que poder haver de errado na perspectiva simples? Esta pare-ce pressupor uma perspectiva muito questionvel sobre a prudncia.Parece pressupor, mais precisamente, que a identidade pessoal arelao que fundamenta a preocupao prudencial, pois sugere-nosque mau uma pessoa ficar privada do bem-estar que o seu futuroincluiria simplesmente porque esse teria sido o seufuturo.5

    4Veja-se tambm Bradley 2009: 47-52.5Uma vez mais, remeto o leitor para o artigo sobre identidade pessoal publi-

    cado neste Compndio, mais precisamente para a seco 3, Identidade e aquiloque importa.

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    Rejeitando este pressuposto, McMahan (2002: 103-106, 165-174) desenvolve uma perspectiva alternativa, que designa porperspec-tiva do interesse relativo ao tempo. Esta perspectiva, diz-nos,

    avalia a morte em termos do seu efeito nos interesses relativos ao tem-po da vtima, e no no valor da sua vida como um todo. Defende que omal da morte proporcional fora do interesse relativo ao tempo davtima em continuar a viver. A fora do seu interesse relativo ao tempoem continuar a viver uma funo tanto (1) da quantidade de bem quea sua vida teria contido se ela no tivesse morrido como (2) da medidaem que ela estaria ligada a si mesma no futuro, se no tivesse morrido,

    pelas relaes de unidade prudencial. (2002: 105-106) na clusula (2) que reside o trao distintivo da perspectiva do in-teresse relativo ao tempo. As relaes de unidade prudencial ourelaes prudenciais, para abreviar so aquelas que, a existirementre P1 e P2, sendo P2 um indivduo situado num perodoposteriorquele em que P1 se situa, tornam racional ou apropriada a preo-cupao prudencial de P1 com o que acontecer a P2. So tambmaquelas que tornam apropriado seja quem for preocupar-se com oque acontecer a P2 . De acordo com a perspectivatradicional, a identidade pessoal a nica relao prudencial: serapropriado P1 preocupar-se prudencialmente com o que acontecer

    a P2 (ou algum preocupar-se com o que acontecer a P2 para bene-fcio de P1) se, e apenas se, P1 e P2 forem o mesmo indivduo. Masesta perspectiva, como McMahan reconhece, foi letalmente atingidapelos argumentos de Parfit (1984).

    Quais sero, ento, as verdadeiras relaes prudenciais? A teoriaque McMahan prope sobre esta matria consideravelmente com-plexa (McMahan 2002: 69-86). Embora negue que a identidade pes-soal, por si mesma, tenha relevncia prudencial, McMahan inclui asrelaes constitutivas da identidade pessoal entre as relaes pruden-ciais e isto porque considera indesejvel dissociar a identidade pes-soal da preocupao prudencial. Defende assim, mais precisamente,que P1 ter razes para se preocupar prudencialmente com o que

    acontecer a P2 se, e s se, entre P1 e P2 existir . Estas duas formas de continui-dade do crebro so as essenciais para a sobrevivncia da nossa mente e, assim, para a nossasobrevivncia.

    Para McMahan, no entanto, a relao prudencial mais significa-tiva a de . O grau de unidade psicolgica dentro

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    de um certo perodo de vida depende (1) da proporo da vida men-tal que sustentada ao longo desse perodo, (2) da densidade dessavida mental (que corresponde,grosso modo, quantidade de contedosmentais) e (3) do grau de referncia interna entre os vrios estadosmentais anteriores e posteriores (e.g. entre uma experincia percep-tiva e a memria dessa experincia). Quanto maior for o grau de uni-dade psicolgica que venha a existir entre ns agora e ns num certoperodo futuro, declara McMahan, mais fortessero as razes para nospreocuparmos prudencialmente (agora) com o que nos acontecer

    nesse perodo futuro.Para tornar clara a divergncia entre a perspectiva simples e aperspectiva do interesse relativo ao tempo, bem como para clarificaro contedo desta ltima, comparemos a morte de um recm-nascidocom a morte de um adolescente. A perspectiva simples implica que,ceteris paribus, a morte do recm-nascido bastante pior, dado queo priva de uma maior quantidade de bem-estar e isso tudo o queimporta. McMahan discorda. Ainda que o recm-nascido sofra umamaior privao de bens futuros, essa privao no to grave para elemesmo como aquela que atinge o adolescente. No to grave por-que o adolescente tem, na altura da morte, um interesse muito mais

    forte em continuar a viver. E o interesse do adolescente muito maisforte porque entre ele na altura da morte e ele como teria existidomais tarde teria havido um grau muito mais forte de unidade psicol-gica, que a relao prudencial mais significativa. O grau de unidadepsicolgica entre o recm-nascido e a pessoa que ele se tornaria, pelocontrrio, quase nulo, o que reduz significativamente a gravidadeda privao de bem-estar que a morte lhe impe.

    6 Alm do mal da privao

    Ser que a perspectiva da privao capta tudo o que h a dizer sobre omal da morte? muito provvel que no. Embora enfatize o interesse

    em continuar como explicao do mal da morte, alis, McMahan(2002: 136-165, 174-185) conta-se entre aqueles que sustentam quea avaliao de uma morte no pode atender apenas gravidade daprivao que impe.

    Comparemos a morte de um nonagenrio com a morte de umacriana com progria uma doena gentica extremamente rara que

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    resulta num envelhecimento acelerado. Suponha-se que, em ambosos casos, vrios rgos vitais estavam na iminncia de falhar quandoa morte ocorreu. Muitos diro que a morte da criana significa-tivamente pior do que a morte do nonagenrio. Se isto verdade,no h forma de o explicar a partir da perspectiva da privao, dadoque tanto o nonagenrio como a criana com progria sofreram amesma privao: se no tivessem morrido como morreram, ambosteriam vivido apenas mais alguns dias num estado de envelhecimentoextremo.

    Havendo uma diferena relevante entre os dois casos, parece queela ter de residir no na vida futura da qual as pessoas em causa fi-caram privadas, mas naquilo que aconteceu na sua vida passada. Umahiptese promissora a seguinte: quanto melhor tiver sido a vidaque termina, menos m ser a morte. Esta hiptese aperspectiva dosganhos prvios. Desde que a vida do nonagenrio tenha sido razoavel-mente bem vivida, poderemos dizer que a sua morte no foi to mcomo a da criana porque ela ganhou muito menos durante a suavida. No fcil, no entanto, encontrar um padro adequado paraaferir os ganhos prvios. A quantidade de bem-estar frudo ao longoda vida, por exemplo, parece no oferecer um padro minimamente

    aceitvel. Se um co, por exemplo, teve doze anos de vida aprazvelantes de morrer, provavelmente diramos que ele ganhou o sufi-ciente com a vida, mas jamais faramos este juzo a respeito de umapessoa cuja vida terminasse depois de ela ter frudo um bem-estarequivalente a doze anos de vida canina aprazvel.

    Vale a pena apontar outros dois factores que podero ser rele-vantes para avaliar mortes particulares e que, caso seja relevantes,apoiaro a perspectiva de que a morte de uma pessoanormalmente pior do que a morte de um animal ou de um ser humano ainda semconscincia de si. Imaginemos uma pessoa que, depois de ter feitograndes sacrifcios na execuo de um plano (e.g. exercer medicina,escrever um romance), morre antes de o completar. Arguivelmente,

    o facto de a morte tornar fteis os investimentosda vtima nesse planocontribui para torn-la pior. Se os bens dos quais o indivduo ficouprivado eram desejadospor ele na altura em que morreu, talvez issotambm torne a morte pior do que teria sido caso esses bens notivessem sido desejados.

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    7 Outros problemas

    O pensamento filosfico sobre a morte no abrange apenas questessobre a sua natureza e o mal que poder constituir. Outras questessalientes dizem respeito imortalidade. Um problema evidente ode saber se temos razes para acreditar na imortalidade dos seres hu-manos. Por influncia de Williams (1973), a discusso filosfica so-bre a imortal idade deslocou-se num grau aprecivel para o problemamais surpreendente de saber se esta (ou seria) realmente desejvel.

    Williams defende que a imortalidade humana seria sempre inde-sejvel. Ao longo de uma vida imortal, o carcter do indivduo po-deria (1) manter-se constante ou (2) ir mudando ao longo do tempo,caso em que acabaria por se transformar radicalmente. A hiptese (1)desdobra-se em duas possibilidades, ambas com um desfecho indese-jvel: se as experincias do indivduo fossem repetitivas, sobreviriao tdio; se fossem variando indefinidamente, sem no entanto afec-tarem o seu carcter, ele teria uma vida de alheamento. Na hiptese(2), sugere Williams (1973: 83), a imortalidade no seria melhor. Emseu entender, uma vida eterna s seria desejvel sob duas condies:por um lado, quem vivesse para sempre teria de ser eu claramen-te; por outro, eu teria de sobreviver num estado que, para mim aolhar para o futuro, estivesse adequadamente relacionado, na vidaque apresentasse, com aqueles objectivos que tenho agora ao querersobreviver. Williams sustenta que, havendo mudana de carcter,estas duas condies poderiam ser satisfeitas. Os seus crticos pemem causa a adequao das condies ou argumentam que, na verda-de, estas poderiam ser satisfeitas.

    Outras questes filosficas sobre a morte so de natureza estri-tamente tica, sendo de realar o problema de saber o que torna er-rado matar pessoas (Feldman 1992: 157-190; McMahan 2002: 232-265; Luper 2009: 143-170). Intuitivamente, matar errado porquea morte um mal para quem morre ou seja, algo contrrio ao

    interesse da vtima. No entanto, muito implausvel que a incorrec-o [wrongness] de matar pessoas dependa apenas do mal que a morteconstituiria para elas. Se assim fosse, no seria errado matar quem jno tivesse um interesse em continuar a viver, mas poucos julgaroque aceitvel matar uma pessoa que quer continuar a viver, aindaque o melhor para ela fosse morrer. Alm disso, como a fora do

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    interesse em continuar a viver muito varivel, teramos de consi-derar, por exemplo, que normalmente mais grave matar um jovemdo que um velho. Mas geralmente pensa-se que as pessoas, seja qualfor o seu interesse em continuar a viver, tm o mesmo direito moral vida um direito cuja fora no varia de indivduo para indivduo.Esta igualdade moral afigura-se incompatvel com a perspectiva deque a incorreco de matar depende apenas do mal que a morte cons-titui para quem morre. Assim, se queremos preservar as intuiesigualitrias, temos de encontrar outros factores que expliquem por

    que errado matar.Pedro Galvo

    Faculdade de Letras da Universidade de LisboaLANCOG Group Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

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