146
SUMÁRIO I- Considerações gerais........................ 2 1- Conceito de exegese................................. 2 2- Importância da exegese.............................. 2 3- Perigos da exegese.................................. 3 II-A leitura do Antigo Testamento.............. 4 1- Os níveis de leitura................................ 4 2- Dificuldades na leitura do Antigo Testamento........ 5 3- Erros hermenêuticos freqüentes...................... 5 4- Tradução e uso de traduções......................... 8 III Os textos “originais”.................... 12 1- O texto do Antigo Testamento........................ 12 2- O texto massorético................................. 15 3- O pentateuco samaritano............................. 24 4- Qumran.............................................. 24 5- O Antigo Testamento em grego........................ 29 IV- Crítica textual do Antigo Testamento....... 34 1- Texto "original".................................... 34 2- A edição crítica da Bíblia.......................... 34 3- Trabalhando com uma edição crítica.................. 35 4- Considerações prévias............................... 38 5- Crítica textual..................................... 39 V- A delimitação do texto...................... 47 1- Os limites do texto................................. 47 2- Critérios para a delimitação do texto............... 48 VI Metodologia da exegese do A.T............. 54 1- Diacronia........................................... 54 2- Sincronia........................................... 66 3- Hermenêutica e pragmática........................... 85 4- A leitura fundamentalista...........................100 VII- A prática exegética.......................104 1- a exegese e o texto original........................104 2- O texto.............................................104 3- A tradução..........................................112 4- O contexto histórico................................116 5- O contexto literário................................119 6- A forma.............................................121 7- A estrutura.........................................123 8- Os dados gramaticais................................126 9- Dados lexicais......................................133 10- Contexto bíblico...................................136 11- Teologia...........................................139 12- Literatura secundária..............................141 13- Aplicação..........................................143 VIII- Referências Bibliográficas...............146

metodologia exegese cássio murilo dias da silva

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

SUMÁRIO

I- Considerações gerais........................ 2 1- Conceito de exegese................................. 2

2- Importância da exegese.............................. 2

3- Perigos da exegese.................................. 3

II-A leitura do Antigo Testamento.............. 4 1- Os níveis de leitura................................ 4

2- Dificuldades na leitura do Antigo Testamento........ 5

3- Erros hermenêuticos freqüentes...................... 5

4- Tradução e uso de traduções......................... 8

III – Os textos “originais”.................... 12 1- O texto do Antigo Testamento........................ 12

2- O texto massorético................................. 15

3- O pentateuco samaritano............................. 24

4- Qumran.............................................. 24

5- O Antigo Testamento em grego........................ 29

IV- Crítica textual do Antigo Testamento....... 34 1- Texto "original".................................... 34

2- A edição crítica da Bíblia.......................... 34

3- Trabalhando com uma edição crítica.................. 35

4- Considerações prévias............................... 38

5- Crítica textual..................................... 39

V- A delimitação do texto...................... 47 1- Os limites do texto................................. 47

2- Critérios para a delimitação do texto............... 48

VI – Metodologia da exegese do A.T............. 54 1- Diacronia........................................... 54

2- Sincronia........................................... 66

3- Hermenêutica e pragmática........................... 85

4- A leitura fundamentalista...........................100

VII- A prática exegética.......................104 1- a exegese e o texto original........................104

2- O texto.............................................104

3- A tradução..........................................112

4- O contexto histórico................................116

5- O contexto literário................................119

6- A forma.............................................121

7- A estrutura.........................................123

8- Os dados gramaticais................................126

9- Dados lexicais......................................133

10- Contexto bíblico...................................136

11- Teologia...........................................139

12- Literatura secundária..............................141

13- Aplicação..........................................143

VIII- Referências Bibliográficas...............146

Page 2: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

2

I- CONSIDERAÇÕES GERAIS

1- Conceito de Exegese D. A. CARSON

Exegese é a interpretação crítica de algum

texto. A exegese bíblica está relacionada à real

interpretação das Escrituras. Uma interpretação

critica deve possuir justificação lexical,

gramatical, cultural, teológica, histórica,

geográfica, etc.

A exegese crítica é contrária a opiniões

pessoais, reivindicações de autoridades

ilegítimas, interpretações arbitrárias e pontos de

vista especulativos. Nem mesmo a piedade e o dom

do Espírito Santo garantem interpretações

infalíveis.

Há uma necessidade de se fazer uma disjunção

entre exegese e hermenêutica. Muito embora as duas

disciplinas estejam intimamente relacionadas, a

hermenêutica diz respeito à natureza do processo

interpretativo (técnicas, pressuposições, etc.). A

exegese está relacionada à real interpretação do

texto. A exegese diz: "esta passagem significa

isto". Nesse sentido, a hermenêutica não tem um

fim em si mesma, ela serve à exegese.

Por último é preciso lembrar que um

"distanciamento" para o exercício da exegese é de

fundamental importância.

2- A Importância da Exegese A exegese é importante para:

* Interpretar corretamente a Palavra de Deus.

* Identificar as falácias exegéticas, ou seja,

erros de interpretação correntes.

* Rejeitar justificativas infundadas.

* Avaliar interpretações tradicionais de

terceiros.

* Enfrentar aos que se opõem à autoridade das

Escrituras, alegando problemas de ordem

hermenêutica ou exegética.

Page 3: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

3

3- Os perigos da exegese São perigos da exegese:

* O negativismo contínuo, ou seja, a constante

procura por erros de outros.

* Relacionado ao perigo anterior, o sentimento de

superioridade espiritual é outro perigo que

ronda o exegeta.

* Temor de não estar interpretando corretamente as

Escrituras.

* Conclusões contrárias às suas convicções

pessoais.

Page 4: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

4

II - A LEITURA DO ANTIGO TESTAMENTO

1- Os vários níveis de leitura CÁSSIO MURILO DIAS DA SILVA

A competência de uma leitura depende

diretamente da capacidade que o leitor tem de

formar um quadro abrangente dos diversos fatores

que concorreram para a formação do texto.

Dependendo da intenção da leitura, nossa

interpretação do texto bíblico e nossa

sensibilidade ao que ele nos sugere pode variar.

Silva aponta os seguintes níveis de leitura:

* Oração - busca no texto bíblico respostas para

nossos anseios e luz para as decisões. Serve como

instrumento para falarmos com Deus.

* Liturgia - esse nível requer o conhecimento dos

fatos bíblicos. Está ligado à reflexão e tem como

objetivo relacionar o texto à nossa situação

presente ou à situação do povo de Deus.

* Ensino - nesse nível há necessidade de

conhecimento doutrinário, além dos fatos. Ele

serve para solidificar nossa fé e direcionar nosso

intelecto e vontade.

* Teologia - o objetivo desse nível é articular

uma reflexão mais racional. Requer o conhecimento

da Teologia dos autores bíblicos e da reflexão

teológica posterior.

* Exegese - busca-se nesse nível, compreender o

texto bíblico em si mesmo: as idéias, as

intenções, a forma literária de um texto

específico e suas relações formais com outros

textos. Para tanto, utiliza-se métodos,

pressupostos e critérios altamente elaborados ao

longo de séculos. Enquanto nos níveis anteriores a

importância se dá na síntese, na exegese a

preocupação está na análise.

Page 5: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

5

2- As dificuldades objetivas na leitura do

Antigo Testamento JEAN LOUIS SKA

Ska resume as questões mais discutidas pelos

leitores do Antigo Testamento a três problemas

principais: a moralidade das grandes figuras

bíblicas, a dureza manifestada por Deus em algumas

narrativas e a insuficiente teologia referente ao

além. Ele, após analisar o caráter dessas

dificuldades, as propostas de interpretação

possíveis e expor uma tentativa de resposta às

interrogações que surgem dos textos, conclui que

os relatos do Antigo Testamento não respondem

inteiramente as nossas perguntas, não oferecem

produtos acabados, mas oferecem pistas apropriadas

para partir em busca das respostas, colocam em

nossas mãos instrumentos necessários para que

forjemos no laboratório da leitura uma nova

experiência de fé.

3- Lista de erros hermenêuticos freqüentes DOUGLAS STUART

a)- Personalização: Assumir que alguma ou todas as

partes da Bíblia aplicam-se a você de uma forma

que não se aplicam a ninguém mais. ("O que a mula

de Balaão diz a mim é que eu falo demais.") Erro

também conhecido como individualização.

b)- Universalização: Assumir que uma coisa única

ou incomum na Bíblia aplica-se a todos igualmente.

('Todos nós temos nossos Getsêmanis.") Erro também

conhecido como generalização.

c)- Espiritualização: Assumir que eventos e

fatores têm sua aplicação concreta em alguma

verdade religiosa além do que eles realmente

dizem. ("A adorável estrutura do templo de

Jerusalém nos encoraja a ter nossa própria vida

bem ordenada.")

Page 6: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

6

d)- Moralização: Assumir que princípios para a

vida diária podem ser derivados de qualquer

passagem. ("Podemos aprender muito sobre criação

de filhos observando como o pai do filho pródigo

tratou com seu filho teimoso.") ("Os egípcios se

afogaram no mar Vermelho porque vacilaram. Você

não pode vacilar e ainda esperar ter sucesso nesta

vida.")

e)- Exemplarização: Assumir que porque alguém fez

alguma coisa na Bíblia, isso seja um exemplo para

nós seguirmos. ("Para aprender como contar

histórias no sermão, vamos examinar como Jesus

contava histórias.") ("Vejamos como Jesus chamou

os discípulos e que isso seja um modelo para nosso

evangelismo.") ("O que podemos aprender sobre

adversidade a partir de como os israelitas

suportaram seu tempo de escravidão no Egito?")

f)- Alegorização: Assumir que os componentes de

uma passagem têm significado somente como símbolos

de verdades cristãs. ("O 'amado' é Cristo; a

'amada' é a Igreja; as 'filhas de Jerusalém' são

as Escrituras.")

g)- Tipologização: Assumir que algumas personagens

ou coisas concretas são mencionadas para

prenunciar outras personagens ou coisas concretas

e mais importantes. ("Josué tinha o mesmo nome de

Jesus, como um conquistador ele aponta para 'O

Conquistador'.") ("Esdras veio ao seu povo de

longe; entrou em Jerusalém montado em um jumento;

orou nas ocasiões de crise; ensinou o que para

muitos era uma nova lei; purificou a nação etc.

Sua vida aponta diretamente para o Salvador.")

h)- Falácia da raiz: Assumir que o/um significado

original de uma palavra acompanha seu uso. ("Ser

santo significa ser separado.") [cf. amor =

sentimento/amante = parceiro sexual/amador = não-

profissional]

i)- Confusão de gênero: Assumir que as regras de

interpretação para um gênero literário aplicam-se

Page 7: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

7

a outro. ("A parábola de Jesus dos trabalhadores

na vinha contém sete perspectivas úteis sobre o

valor do trabalho duro.") ("O salmo 23 nos ensina

como cuidar daqueles que estão sob nossa

autoridade.") ("De acordo com Deuteronômio 33, se

nós confiamos em Deus nunca teremos falta de

nada.") ("Mas Provérbios promete que se honrarmos

a Deus seremos bem quistos por todos!")

j)- Transferência de totalidade: Assumir que todos

os significados possíveis de uma palavra ou frase

a acompanham sempre que ela é usada, ("cabeça

[kephale], é claro, significa 'fonte' aqui, assim

como em uma referência de Xenofonte à fonte de um

rio.")

k)- Argumento a partir do silêncio: Assumir que

tudo que é relevante para uma questão é mencionado

na Bíblia toda vez que a questão é mencionada.

("Note que Paulo não condena o sexo pré-nupcial em

nenhum lugar em suas cartas.")

l)- Argumento a partir da autoridade: Assumir que

as opiniões de "especialistas" ou de grande parte

deles deve ser correta. ("Smith, que dedicou sua

vida ao estudo de Rute, deve estar correto...")

("Já que isso é sustentado por poucos eruditos,

não parece defensável.")

m)- Confusão Israel—Igreja: Assumir que aquilo que

se aplica ao Israel bíblico também se aplica à

igreja. ("Podemos aprender como disciplinar

crianças impertinentes a partir dessa lei sobre

apedrejar filhos desobedientes.")

n)- Confusão Israel—nações modernas: Assumir que

coisas que se aplicam ao Israel bíblico também se

aplicam às nações modernas ("De acordo com

2Crônicas 7.14, se orarmos e nos arrependermos

Deus sarará o Brasil.")

o)- Confusão Israel bíblico—Israel atual: Assumir

que o Estado secular atual chamado de Israel no

Oriente Médio é o Israel mencionado na Bíblia.

Page 8: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

8

("Como podemos apoiar os sauditas se eles são

inimigos do povo escolhido de Deus?")

p)- Falsa combinação: Juntar duas passagens ou

afirmações de forma a produzir uma conclusão

híbrida. ("Em Mateus 25 Jesus chama o inferno de

trevas exteriores e também de fogo, então o fogo

do inferno deve ser algum tipo de fogo divino

especial que não emite nenhuma luz. E possível

senti-lo mas não vê-lo.")

q)- Confusão de figura de linguagem: Incapacidade

de entender as muitas expressões não-literais na

linguagem humana, especialmente as metáforas.

("Imagine a massiva escala de criação de gado

leiteiro e apicultura cananitas que levou Canaã a

ser chamada de terra que mana leite e mel.")

r)- Equívoco: Confundir um termo ou conceito com

outro termo ou conceito não entendendo assim seu

significado. ("I Tessalonisenses 5 diz para

'abster-se de toda aparência do mal' então não

podemos nem pedir informações sobre endereços para

uma prostituta.")

s)- Falsa pressuposição: Basear todo ou parte de

um argumento ou conclusão sobre pressuposições

incorretas. ("A mente hebraica pensava de forma

concreta; a mente grega era abstrata. É por isso

que o AT tem mais rituais e o NT mais símbolos.")

4- Tradução e uso de traduções CÁSSIO MURILO DIAS DA SILVA

Caso trabalhemos com as línguas bíblicas

(grego e hebraico), antes de qualquer procedimento

exegético, devemos traduzir o texto que estamos

por analisar. O resultado deste ato é a primeira

objetivação de nosso esforço em compreender o

texto. Nenhuma tradução substitui o original, mas

quando se traduz, já se fazem opções e

interpretações, que podem, é claro, ser

modificadas ao longo do trabalho. Comparar a nossa

Page 9: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

9

versão com traduções já existentes pode ser útil

para verificarmos a reta compreensão do original,

ou como auxilio para evidenciar e superar

eventuais impasses.

Se não estivermos capacitados para trabalhar

com os textos em hebraico e em grego, a comparação

de diversas traduções pode nos ajudar a perceber

as dificuldades presentes na língua original. E,

ainda que nosso objetivo seja preparar uma

homilia, algum tipo de artigo ou comentário, é

aconselhável tomar como base a tradução mais fiel

e literal (se não for possível no original).

Jamais partamos, porém, de uma paráfrase

popular(ou tradução do lecionário ou folheto),

ainda que depois esta seja usada na celebração ou

na catequese.

Esta última recomendação deriva do Seguinte

fato: há dois tipos de tradução, a saber. (1)

formal ou literal e (2) funcional ou dinâmica.

Compreendamos a problemática de base: qualquer

tradução deve contemplar dois elementos, o

significado da frase e sua forma (ou expressão)

lingüística.

A tradução formal preocupa-se em respeitar a

forma lingüística do original. Por isso, sem

deixar, de ser compreensível, renuncia à

compreensão imediata, para manter a fidelidade ao

original. O resultado é uma versão mais pesada e

mais cheia de redundâncias do que a tradução

funcional. Por isso, algumas vezes articula as

idéias de maneira pouco comum ao padrão coloquial

da língua de chegada. Isso não significa que ela

deva ser incompreensível.

Aliás, toda versão formal deve ter a mesma

força que o original tem, a fim de produzir os

mesmos efeitos e as mesmas emoções no leitor. Com

efeito, versar palavra por palavra do Hebraico (ou

do grego) para o português, sem levar em

consideração as particularidades de cada língua e

o sentido do texto em seu conjunto, não significa

fazer uma tradução formal. É apenas "escrever"

hebraico (ou grego) com palavras portuguesas.

Page 10: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

10

Um exemplo curioso do texto hebraico: ISm

25,22.

Jysi)y hkov4 dv9dA ybey4xol; Myhilox< hW,f3y1-hKo Rq,Boha-dfa Ol-rw,x3-lKAmi ryxiw;xa-Mxi :ryqiB; NyTiw;ma

Literalmente seria: "Assim faça Deus aos

inimigos de Davi e assim continue, se eu deixar,

de tudo o que é dele, até amanhã, UM 'MIJADOR' DE

MURO".

Risadas à parte, e descontando o neologismo, o

problema reside exatamente na expressão

ryqiB; NyTiw;ma, literalmente "mijador de

muro, aquele que urina no muro". Trata-se de um

eufemismo para "varão, macho", seja ele um homem

ou um cão. Uma tradução que optasse por "varão" e

apresentasse a seguinte versão "assim aja Deus com

os inimigos de Davi e o faça ainda mais, se eu

deixar com vida, até amanhã, algo de tudo o que

pertence a ele, mesmo um só VARÃO", não deixaria

de ser considerada formal. No entanto, seria

apropriado que, ao longo de toda a tradução, fosse

sempre utilizado o mesmo vocabulário.

Mas isso nem sempre acontece. A Bíblia -

Tradução Ecumênica, mais conhecida por TEB (sigla

para Tradução Ecumênica da Bíblia), uma tradução

considerada formal, infelizmente, apresenta

inconstâncias. Em ISm 25,22.34, traz literalmente

"o que urina contra o muro". Contrariamente, em

IRs 14,10; 16,11; 21,21 e 2Rs 9,8, traz "varão". A

nota de ISm 25,22 explica que o sentido é incerto:

Seria um cão, um homem ou um menino? Além disso,

notemos que todos esses textos falam de exterminar

a família de alguém. Portanto, nada impediria que

os editores da TEB tivessem adotado o termo

"varão" para traduzir ryqiB; NyTiw;ma [o que

urina no muro} e, mantendo a nota explicativa de l

Page 11: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

11

Sm 25,22, nos demais textos, remeter a esta

primeira ocorrência da expressão.

Quase todas as edições brasileiras podem ser

consideradas formais. Algumas, é claro, com um

cuidado maior do que as outras quanto ao

vocabulário da versão. São claramente eruditas A

Bíblia de Jerusalém e a TEB. Esta última adota,

para os nomes próprios, a transliteração dos menos

conhecidos e a forma abrasileirada para os mais

usados. A Bíblia Sagrada traduzida por João

Ferreira de Almeida possui duas edições em nossa

língua: a publicada em Portugal e a publicada no

Brasil. Destas, a edição portuguesa é mais formal

que a edição brasileira.

Por sua vez, a tradução funcional visa superar

a dificuldades que o leitor hodierno tem em

compreender a Sagrada Escritura. Para eliminar as

tensões, modifica as estruturas frasais, utiliza

palavras mais simples e articula as idéias de

forma a tornar o texto imediatamente

compreensível. Tanto quanto a formal, a tradução

funcional busca reproduzir, na língua de chegada,

a força do texto na língua original (qual a

expressão correspondente e que produz os mesmos

efeitos), mas sem a preocupação de manter a forma

do texto. Tal é o caso da Bíblia - Edição

Pastoral, da Bíblia na Linguagem de Hoje, da

Bíblia Viva e da Bíblia Fácil.

Só para termos uma idéia das transformações de

forma e de sentido que operam as traduções

funcionais, o mesmo texto usado como exemplo

anteriormente, l Sm 25,22, foi assim versado na

Bíblia - Edição Pastoral: "que Deus castigue Davi,

se até amanhã cedo eu deixar vivo qualquer um de

Nabal que urina na parede". Vemos que a

preocupação com o entendimento imediato fez surgir

o nome "Nabal", que não aparece no hebraico. Além

disso, parece que a ameaça de extermínio refere-se

tão-só aos "mijadores" de muro.

Page 12: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

12

III – OS TEXTOS “ORIGINAIS”

1- O texto do Antigo Testamento STEPHEN PISANO

O texto do Antigo Testamento transmitiu-se ao

longo de séculos sob a forma de manuscritos. É

natural, portanto, que durante esse longo período

de transmissão tenham-se introduzido erros de

transcrição. O texto também foi objeto, antes do

séc. I de nossa era, de mudanças e acréscimos que

espelhavam diversas tradições. Sua fluidez sugere

que a preocupação de conservar o texto numa única

forma pura passou a ser valorizada somente por

volta do séc. I. O resultado dessa outra

mentalidade é que existem diversas formas do

texto, que se evidenciam, por exemplo, no texto

massorético, na tradução grega dos LXX e no

Pentateuco Samaritano.

1.1- Problemas introdutórios

1.1.1- A crítica textual em geral

Pode-se atribuir à crítica textual dupla

finalidade: restaurar o texto danificado para

chegar à lição do próprio autor, ou pelo menos à

que mais se lhe aproxima, e determinar a história

da transmissão e do desenvolvimento do texto

escrito de que temos várias formas hoje (trata-se

aqui de textos não necessariamente danificados,

mas cuja forma sofreu mudanças ao longo da

história).

O texto hebraico do Antigo Testamento conheceu

longa história evolutiva. Aquele que se tornou o

texto "oficial" pelos fins do séc. I de nossa era

é o "texto massorético" (TM), fruto do trabalho

dos massoretas e de seus antepassados. Os mesmos

massoretas, trabalhando do século VI ao séc. X

d.C. para estabelecer os pontos vocálicos e as

diversas observações da masorah, eram herdeiros de

um texto hebraico já em uso antes de seu tempo. De

seu tempo em diante, o texto permaneceu estável,

mas o que se tornou o texto massorético era, ao

Page 13: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

13

que tudo indica, um texto escolhido entre outros.

Uma parte de nosso trabalho é então determinar a

história do texto antes do período dos massoretas.

E possível fazê-lo valendo-se dos testemunhos do

texto no hebraico e nas várias traduções antigas.

Por meio desses testemunhos pode-se fazer a

pergunta sobre a relação entre o TM e a forma

original dos escritos do AT.

Analisando a história do texto do AT, podem-se

determinar até quatro ramos que indicam formas

diversas do texto: 1) o (proto)massorético; 2) o

Pentateuco Samaritano; 3) as várias formas do

texto encontradas entre os documentos do mar Morto

(sobretudo em Qumran); 4) as traduções gregas, a

começar pela Septuaginta (= LXX), a tradução grega

feita em torno dos sécs. III e II a.C., que leva a

supor um texto hebraico de base (muitas vezes

chamado pelo termo alemão Vorlage) diverso do TM.

Entre os testemunhos de um texto

"protomassorético", além dos manuscritos

hebraicos, há traduções feitas do séc. II ao séc.

VII d.C.: os targumim, tradução aramaica baseada

no texto massorético que remonta ao séc. II d.C.,

pelo menos em sua forma oral; a versão siríaca,

iniciada por volta do séc. II d.C.; as traduções

gregas de Áquila, Símaco e Teodocião (do séc. II

d.C., ainda que a situação de Teodocião seja mais

complexa, como veremos em seguida); a versão

latina de são Jerônimo (a Vulgata), do séc. IV

d.C.; as revisões feitas na tradução grega da

Septuaginta que a aproximam do TM (por exemplo, em

parte, as Hexapla de Orígenes do séc. in d.C.,

conhecidas parcialmente pela Siro-hexaplar,

tradução siríaca da obra de Orígenes feita no séc.

VII d.C.).

O Pentateuco Samaritano conhecido hoje é o

herdeiro do texto dos samaritanos que se separaram

dos judeus no séc. IV a.C.

Em Qumran encontra-se variedade bastante

grande de formas do texto. Esses textos, que

remontam ao período que vai do séc. I d.C. ao séc.

III a.C., espelham o TM ou a Septuaginta, mas

também outras formas até agora desconhecidas.

Page 14: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

14

Quanto à Septuaginta, há traduções (por exemplo, a

Vetus latina do séc. II d.C.; a versão copta do

séc. III d.C.) que permitem às vezes tornar mais

exato nosso conhecimento do texto grego da LXX.

Os manuscritos de todas essas formas do texto

(e também de outras) indicam freqüentemente certa

influência de um texto sobre o outro, e parte do

trabalho da crítica textual é reencontrar as

lições "originais" das diversas formas acima

mencionadas, para poder, primeiro, examinar a

natureza de cada texto em particular e, depois,

determinar a história do desenvolvimento das

várias formas. Além disso, uma vez que se trata de

uma história manuscrita, ou seja, de textos

escritos à mão, é preciso ter presente a

possibilidade de erros introduzidos ali. O estudo

de todos os manuscritos disponíveis e das diversas

formas do texto pode ajudar a reparar os textos

que se suspeita estarem prejudicados.

1.1.2- Sobre as origens do texto hebraico

Não se sabe precisamente qual seja a origem do

texto hebraico do AT. Há pelo menos quatro teorias

a esse respeito, contraditórias entre si. A

primeira, que se pode chamar de teoria do "texto

único original", é proposta por P. A. de Lagarde.

Segundo esse autor, na origem havia um texto único

e todas as formas do texto existentes hoje são

desdobramentos daquele único texto original. A

segunda, a teoria dos "textos vulgares", de P.

Kahle, afirma que em vez de um texto original

havia diversos textos populares em diversas

localidades, que só foram unificados em tempo

muito posterior ao de sua formação. Uma terceira

teoria, a dos "textos locais" de W. F. Albright e

F. M. Cross, propõe que o texto talvez se tenha

desenvolvido em três regiões: Babilônia, Palestina

e Egito. Segundo essa teoria, o massorético seria

o texto lido na Babilônia, o Pentateuco Samaritano

seria da Palestina, e o da versão grega teria sido

elaborado no Egito com base em texto exportado da

Palestina para lá. Uma quarta teoria é de S.

Talmon, que sustenta que das múltiplas formas do

texto em circulação só se teriam conservado as que

Page 15: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

15

eram próprias a determinada comunidade

sociorreligiosa.

1.1.3- Fases de desenvolvimento

É possível falar de quatro fases no

desenvolvimento do texto hebraico. A primeira

seria a da produção escrita (e oral) do texto, que

remonta aos "autores originais" ou aos "textos

originais". Já não existem "autógrafos" que seriam

testemunhos diretos dessa fase do texto. Quando

muito se pode chegar a ela apenas pela análise

literária, para tentar reconstruir os textos em

que se pensa que os testemunhos originais tenham

sofrido transformações. Uma segunda fase é a da

forma mais antiga (ou das formas mais antigas) a

que se pode remontar por meio dos testemunhos

existentes, diretos ou indiretos. Em geral é essa

a fase em que se concentra a aplicação da crítica

textual. A terceira fase é a do texto hebraico

consonântico, que se tornou normativo pelo fim do

séc. I de nossa era. Uma vez que é a forma aceita

pelos massoretas e sobre a qual eles trabalharam,

pode-se chamar essa fase de "protomassorética". A

quarta seria a do texto massorético, o texto com a

vocalização escrita e com o conjunto das

observações elaboradas pelos estudiosos do texto

(os massoretas e os soferim [escribas] antes

deles), que se encontram nos manuscritos hebraicos

a partir do séc. X d.C.

2- O texto massorético No estudo do texto massorético (TM), convém

iniciar a exposição a partir dos estudos críticos

modernos para, depois, remontar na história de

modo a entender a natureza dos estudos feitos

sobre o texto massorético e por fim indagar sobre

suas origens e sua idade.

2.1- Período dos críticos (séc. XVI até hoje)

Depois da invenção da imprensa, um dos

primeiros livros impressos foi a Bíblia. Também o

texto hebraico foi muito cedo objeto dessa nova

invenção. A primeira Bíblia completa impressa

(editio princeps) foi publicada em 1488 no norte

Page 16: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

16

da Itália, em Soncino, por R. Joshua. Sempre na

Itália, em Veneza, houve intensa atividade gráfica

por parte do holandês Daniel Bomberg. Em 1516-1517

ele publicou, em quatro volumes, a primeira edição

da Bíblia Rabínica, assim chamada porque traz não

só o texto bíblico mas também alguns comentários

medievais sobre o texto, por exemplo os de Rashi,

de Ibn Ezra e de Qimhi. O editor desse grande

empreendimento é conhecido pelo nome cristão que

adotou depois da conversão, Félix Pratensis.

Depois do sucesso dessa obra, Bomberg publicou uma

segunda edição dela, em 1524-1525, sob a direção

de Jacó ben Chayim. Essa edição traz não só os

comentários rabínicos mas também a masorah,

preparada por Ben Chayim segundo os manuscritos

que ele consultou. Vê-se que essa edição obteve

grande autoridade pelo fato de seu texto hebraico

permanecer em uso comum até a publicação da

terceira edição da Bíblia Hebraica de R. Kittel em

1937.

Entrementes, na Espanha, o cardeal Xismenes de

Cisneros, arcebispo de Toledo, publicou sua Bíblia

Polyglota Complutensia, reunindo vários

estudiosos, também judeus, para preparar uma

edição integral da Bíblia. Quanto ao AT, o texto

foi disposto em três colunas segundo as línguas

hebraica, grega e latina. Os seis volumes foram

preparados entre 1514 e 1517, mas por vários

motivos só se publicou a obra em 1522.

Em certo sentido o texto hebraico da

Complutense é preferível ao de Ben Chayim. Mas

eles não se deram conta de que alguns desses

manuscritos eram de proveniência babilônica e,

portanto, de outra tradição vocálica. O resultado

foi que a edição complutense trazia um texto um

tanto misto, impresso com os sinais vocálicos, mas

sem os sinais dos acentos, que os autores não

encontraram em seus manuscritos mais antigos. Ben

Chayim estava convencido de que seu texto era fiel

à tradição de Ben Asher, mas utilizava manuscritos

mais recentes que os utilizados pela Complutense e

por Félix Pratensis.

Page 17: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

17

2.2- Debate sobre o valor das vogais no texto

massorético:

Já no séc. XVI e depois no séc. XVII discutia-

se sobre as origens das vogais no TM. Tratava-se

de discussão hermenêutico-teológica para saber:

a) a que época remontava o uso dos pontinhos para

expressar as vogais e,

b) se as vogais gozavam da mesma inspiração que

as consoantes.

Elias Levita publicou um comentário sobre a

masorah (Massoreth Ha-Massoreth [Veneza, 1538])

mostrando que nem o Talmud nem o Midrash conheciam

o sistema massorético de vocalização e assim

concluindo que os pontinhos eram posteriores

àquelas obras. Além disso, mostrava que os nomes

dos pontinhos eram de origem babilônica e aramaica

e, portanto, introduzidos depois do exílio da

Babilônia.

Johannes Buxtorf, Sr., em seu Tíberias sive

commentarius masorethicus (Basiléia, 1620), tentou

mostrar a origem divina dos pontinhos vocálicos.

Queria demonstrar que não eram invenção dos

massoretas, mas tinham a mesma autoridade divina

que as consoantes por ter sido inseridos no texto

no tempo de Ezra (séc. IV a.C.). L. Cappel

rebateu-o em sua obra, Critica sacra (Paris,

1650), sustentando que o texto hebraico devia ser

submetido a um estudo crítico análogo à crítica de

qualquer obra antiga. Servindo-se dos comentários

marginais dos massoretas e também do texto da

Septuaginta, dos Targumim e da Vulgata, tentou

mostrar a origem meramente humana desses

pontinhos. J. Buxtorf Jr. deu seqüência ao debate

em sua Anticrítica seu vindiciae veritatis

hebraicae (Basiléia, 1653), tentando mostrar, ao

contrário, sua origem divina.

2.3- Coletâneas de variantes nos manuscritos

hebraicos:

Examinando o texto hebraico, os estudiosos

perceberam que nem todos os manuscritos eram

iguais. Ainda que os escribas copiassem os

manuscritos com grande exatidão, havia pequenas

divergências no texto. B. Kennicott (Vetus

Page 18: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

18

Testamentum Hebraicum cum variis lectionibus, 2

vols., Oxford 1776 e 1780), publicou um estudo de

615 manuscritos hebraicos e de 51 edições

impressas para recolher as variantes

consonânticas. Sua conclusão foi de que todos os

manuscritos apresentavam o mesmo texto, com

pouquíssimas variantes que poderiam servir para

corrigir eventualmente o TM. G. B. de Rossi

(Variae lectiones Veteris Testamenti, 4 vols. +

supp., Farina, 1784-1788) consultou 1.418

manuscritos e 374 edições impressas para completar

o trabalho de Kennicott. Apontou também as

divergências vocálicas. As indicações de variantes

nos manuscritos hebraicos no aparato crítico da

Bíblia Hebraica Stuttgartensia (publicada pela

Sociedade Bíblica Universal em Stuttgart em 1976)

provêm dessas duas obras.

As obras de Kennicott e de De Rossi fornecem

muitas informações sobre as variantes, mas nota-se

que todos os manuscritos consultados eram da

tradição massorética e, portanto, pouco úteis para

sugerir eventuais correções ao texto. Em geral as

divergências encontradas nos manuscritos são meros

erros de escrita que confirmam a unidade da

tradição massorética. Às vezes, porém, as

variantes sugerem que se introduziram em alguns

manuscritos modificações que não seguem o texto

massorético tradicional. Por exemplo, em ISm 9,1,

em que o versículo começa com "e havia um homem",

existem nove manuscritos que acrescentam o

adjetivo "um", como se encontra na frase

semelhante de ISm 1,1, acréscimo que se acha

também no targum e na versão siríaca. Não parece,

porém, que haja manuscritos que sigam

sistematicamente tradição diversa da massorética.

Vê-se nascer nesse período um espírito crítico que

entendia a necessidade de confrontar o TM com

outros manuscritos hebraicos e com as versões

antigas a fim de chegar a texto mais fiel ao

original. Os primeiros estudos nesse sentido são

os de L. Cappel (Commentarii et notae criticae in

Vetus Testamentum, Amsterdam, 1684) e C. F.

Houbigant (Bíblia Hebraica cum notis criticis et

Page 19: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

19

versione latina ad notas criticas /betas, 4 vols.,

Paris, 1753).

2.4- Período dos massoretas (sécs. VI-X)

Vamos agora dar um salto na história, deixando

de lado os trabalhos dos exegetas hebreus

medievais, como Abulvalid e Ibn Ezra, que

escreveram comentários, sobretudo gramaticais, ao

texto hebraico. Seu texto já estava estabelecido

no que diz respeito aos sinais vocálicos e às

acentuações pelos massoretas e pela transmissão do

texto consonântico pelos escribas que os tinham

precedido.

Os massoretas (o nome provém provavelmente da

palavra hebraica masorah, "tradição") eram

estudiosos que desenvolviam dois tipos de trabalho

sobre o texto: punham os sinais vocálicos no texto

e faziam observações sobre palavras e frases em

particular. O conjunto dessas observações, a

masorah, acha-se nas margens dos manuscritos ou em

listas no fim do texto bíblico. Os massoretas, que

quase sempre eram da mesma família, trabalhavam

nos grandes centros do judaísmo, na Babilônia e na

Palestina. As duas famílias mais famosas foram a

de Ben Naftali e a de Ben Asher. Os manuscritos

feitos por essa última são considerados os mais

fiéis à tradição autorizada de leitura do texto

bíblico.

Os grandes manuscritos dessa época (em forma

de códice e não de rolo, e portanto não destinados

ao uso litúrgico na sinagoga) contêm o texto da

família Ben Asher, da tradição tiberiense dos

massoretas:

• Códice dos Profetas do Cairo [C]: 895/896

d.C., provavelmente transcrito por Moisés ben

Asher, pai de Aarão ben Asher. Esse códice contém

os "profetas anteriores" (Josué, Juizes, 1-2

Samuel, 1-2 Reis) e os "profetas posteriores"

(Isaías, Jeremias, Ezequiel, Profetas Menores).

• Códice de Alepo [A]: 925/930 d.C. (em parte

destruído: começa com Dt 28,17 e faltam algumas

outras partes do texto). E considerado por muitos

o manuscrito mais fiel à escola de Ben Asher,

Page 20: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

20

porque, segundo a tradição, sua masorah foi

composta por Aarão ben Moisés ben Asher e é o

manuscrito utilizado pelo texto de "The Hebrew

University Bible" (até agora foi publicado Isaías

1—44).

• Códice de Leningrado B 19A [L]: 1008/1009 d.C. É

o mais antigo manuscrito da Bíblia hebraica

inteira e foi utilizado para o texto da Bíblia

Hebraica (3a ed.) de Kittel (1937) e da Bíblia

Hebraica Stuttgartensia (1966-1976). No final, o

copista, Samuel ben Jacó, escreve que copiou o

texto de exemplar escrito por Aarão ben Moisés ben

Asher.

O sistema de vocalização que se acha nesses

manuscritos é o tiberiense. Havia também outros

sistemas, pré-tiberienses, porém desaparecidos sob

a influência da popularidade do sistema

tiberiense. Manuscritos com essa vocalização foram

encontrados no fim do século passado na "Guenizá"

de Cairo. A Guenizá era um esconderijo para

manuscritos usados ou não mais adequados para o

uso, e no século passado a da sinagoga do Cairo,

construída em 882 d. C., foi reencontrada cheia de

manuscritos bíblicos e não-bíblicos, um milhar de

manuscritos e fragmentos. Entre os textos mais

importantes estão os fragmentos do texto de Ben

Sirac em hebraico. Em geral os manuscritos

encontrados aí são do séc. VI ao séc. IX d.C. e,

ao passo que o texto consonântico é o massorético,

eles têm dois tipos diversos de vocalização:

"oriental", da Babilônia, e "ocidental", da

Palestina. Ambos são sistemas supralineares.

Os acentos, introduzidos nesse período, são

indicações para a leitura do texto. Podem servir

também para encaminhar o leitor a determinada

exegese dos textos15. Por exemplo, Is 56,9:

"Animais todos dos campos, vinde comer, vós todos

os animais da selva". Lido assim esse versículo

abre a seção da profecia que denuncia os chefes

ineptos do povo. Mas, nos códices leningradense e

cairense, depois desse versículo há um espaço e

também a indicação de uma pausa (o acento atnah)

Page 21: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

21

sob a palavra "campos". Assim o versículo é

traduzido: "Animais todos dos campos, vinde comer

todos os animais da floresta". Com essa pontuação

o versículo é lido unido com os w. 1-8, ou seja,

com o que precede e não com o que segue. Lida

dessa maneira, a promessa de prêmio para aqueles

que conservam a justiça e observam o sábado (w. 1-

8) vem seguida de outra promessa, a de que os

animais dos campos (os fracos) comerão os da

floresta (os fortes), ou seja, os justos

prevalecerão sobre os maus. Dessa maneira, a

acentuação posta pelos massoretas proporciona

outra maneira de compreender o texto.

2.5- Período dos escribas (soferim) (séc. I a séc.

VI)

Os soferim (literalmente, "contadores") contavam o

número de palavras e versículos do texto bíblico

para controlar a autenticidade do texto nos

manuscritos. Por exemplo, Lv 8,8, em cuja margem

vem escrito h'si hatõrah tfpesuq, "a metade da

torah segundo os versículos", para indicar o

versículo central da Torah. Além disso, faziam

observações acerca de alguns textos difíceis para

estabelecer a leitura "correta" e ortodoxa:

• pontos extraordinários: em quinze passagens da

Bíblia são indicados pontinhos sobre algumas

letras ou palavras para assinalar que os soferim

tinham dúvidas sobre a forma ou a doutrina. Por

exemplo, em Is 44,9 há pontinhos sobre as letras

da palavra hemmah para indicar uma ditografia, ou

seja, um erro de um es-criba que tinha repetido as

últimas letras da palavra precedente, we'dehem.

• nun inverso: em nove passagens encontra-se a

letra hebraica nun escrita de maneira inversa no

fim de um versículo. Por exemplo, em Nm 10,34-36

encontra-se essa indicação para sugerir que é

preciso transpor os w. 34 e 36.

• sebir: da palavra aramaica para "supor". Há

mais ou menos 350 passagens em que se acha essa

nota para indicar que a forma presente no texto

não é a esperada, assinalando na margem a

Page 22: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

22

considerada correta. Por exemplo, em Gn 19,8

encontra-se a palavra ha 'êl, "Deus"; o aparato

crítico põe ha'èlleh, "estes", com a indicação

"Seb" para assinalar a leitura correta dessa

palavra.

• qere-ketib: "dito" e "escrito". A leitura qof

com um pontinho em cima posta na margem indica que

uma palavra está escrita de um modo, mas deve-se

pronunciar de outro. Por exemplo, em Gn 6,7 a

primeira palavra é escrita com as consoantes que

indicam "e disseram", no plural, mas vocalizada

como se estivesse no singular; na margem encontra-

se o [ ] com a forma escrita no singular.

• "não há outro": a letra lamed com um pontinho

em cima na margem é abreviação para lõ' 'et ("não

há outro"), indicando palavras ou combinações de

palavras que aparecem uma só vez na Escritura.

Todos esses comentários textuais tendiam a

explicar, ou pelo menos indicar, palavras ou

expressões que criavam dificuldades, ou propunham

leituras alternativas, deixando intacto o texto

consonântico. Indicações posteriores dos soferim

parecem indicar modificações e emendas ao texto,

algumas delas visando evitar falta de respeito

para com Deus. São ao todo dezoito passagens com

essas características, denominadas tiqqunê

soferim, ou seja, emendas dos escribas16. Por

exemplo, em Gn 18,22 se lê "Abraão estava ainda

diante do Senhor". No elenco dos tiqqunê soferim

vem indicado, nesta passagem, uma mudança que nos

leva a supor que houve um tempo em que se lia "O

Senhor estava diante de Abraão", cujo significado

suscitava problemas, pois o "superior" estaria

diante do "inferior".

Desse mesmo período, do séc. II ao séc. IV

d.C,, existem também outros testemunhos

contemporâneos da situação do texto bíblico

consonântico. Há um manuscrito hebraico dos Doze

Profetas proveniente de wadi Murabbacat (cerca de

135 d.C.)17 em que há um texto que se pode dizer

igual ao maso-rético. Há em vários lugares

Page 23: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

23

indicações ou correções que indicariam

divergências menores (por exemplo, a presença de

uma mater lectionis em Gl 4,5 para indicar a

vocalização de uma palavra). Em Gl 3,2 a palavra

hahem foi corrigida por hâhêmmãh para concordar

com o TM. Além disso, há as traduções gregas do

séc. II d.C. de Áquüa, Símaco e Teodocião (ainda

que a deste último pareça antes a revisão de uma

tradução grega mais antiga; cf. a discussão sobre

as traduções gregas).

Desse mesmo período fazem parte os targumim,

traduções aramaicas das Escrituras hebraicas.

Ainda que existam em formas um pouco diversas, os

targumim foram traduzidos do texto massorético e,

portanto, não constituem testemunho que lhe seja

independente. Uma vez que surgiram como traduções

orais, pode-se notar certa fluidez em suas formas

antes de terem sido colocados por escrito18.

A Vulgata de são Jerônimo (séc. IV d.C.) — sua

tradução latina baseada no texto hebraico, a

veritas hebraica — reconduz-se a esse mesmo

período. Também essa tradução é testemunho do

texto massorético. Por sua tradução e por seus

comentários nota-se, porém, que Jerônirno conhecia

o texto da Septuaginta e também as diversas

recensões gregas do séc. II ao séc. IV.

O estudo destes três períodos leva-nos a

concluir que o texto massorético, no que diz

respeito ao sistema de vocalização e, em parte, à

gramática, é obra da escola massorética de Ben

Asher. O texto consonântico, porém, remonta

provavelmente ao séc. IL, ou talvez ao séc. I d.C.

Segundo Gordis19, o manuscrito escolhido como

normativo para o texto hebraico foi adotado no

tempo de R. Aquiba (cerca de 100 d.C.), se não

antes.

2.6- Período anterior à estabilização do texto (do

séc. I d.C. para trás)

No que diz respeito ao tempo antecedente ao

séc. I d.C., observa-se notável variedade na forma

do texto bíblico, como se encontra nos manuscritos

hebraicos e gregos de Qumran, no texto da LXX e no

texto do Pentateuco Samaritano. As relações entre

Page 24: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

24

esses textos e o texto "protomassorético"

constituem em boa parte o objeto do trabalho da

crítica textual do AT.

3- O Pentateuco Samaritano O Pentateuco Samaritano é a Bíblia da

comunidade samaritana antes e depois do cisma dos

judeus (séc. IV a.C.). Os samaritanos conservaram

o Pentateuco como o único corpo de Escritura

inspirada, enquanto os judeus acrescentaram os

livros dos profetas e os hagiográficos.

Confrontando o Pentateuco Samaritano com o TM,

encontram-se mais ou menos 6.000 variantes, das

quais cerca de 1.600 concordam com a LXX. Em geral

as variantes são de tipo ortográfico (por exemplo,

matres lectionis) ou morfológico. Há, todavia,

algumas que indicam os interesses teológicos dos

samaritanos (por exemplo, em Ex 20,17 e Dt 5,21

encontramos uma longa interpelação de Dt ll,29s;

27,2-7, que traz as palavras do povo depois da

entrega dos dez mandamentos). A construção de um

altar sobre o monte Garizim torna-se uma parte do

decálogo. Às vezes a forma do texto é diversa em

comparação com a do TM e da LXX (por exemplo, as

cronologias de Gn 5 e 11 existem em três formas:

TM, LXX, Pentateuco Samaritano).

Notou-se, de mais a mais, que alguns

manuscritos de Qumran contêm lições "samaritanas"

(por exemplo, HQpaleoExod™). Isso sugere que houve

uma forma própria palestinense do texto pré-

massorético.

4- Qumran Sem dúvida a descoberta entre 1947 e 1956, dos

manuscritos de Qumran, localidade na margem

noroeste do mar Morto, foi o maior acontecimento

deste século no que se refere ao texto do Antigo

Testamento, enriquecendo de maneira notável nossos

conhecimentos do texto bíblico hebraico dos

primeiros séculos antes de Cristo. Antes disso, os

manuscritos bíblicos mais antigos disponíveis

datavam do séc. V d.C. A maior parte dos

documentos do mar Morto remontam provavelmente ao

Page 25: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

25

séc. I a.C., e alguns datam do séc. II e até mesmo

III a.C. Tem-se assim uma visão direta sobre o

estado do texto naquele período. A importância

desse descobrimento não se atem somente ao texto

bíblico, porque foram encontrados também outros

escritos da comunidade religiosa lá residente.

Aqui, porém, só levamos em consideração os

escritos bíblicos. Cerca de um milhar de

manuscritos, em geral muito fragmentários,

encontrados em onze grutas mostraram como o texto

era lido naquele período. Outros manuscritos que

datam do mesmo período e de uma época um pouco

posterior foram encontrados nas vizinhanças de

Qumran: Wadi Murabbacat, Masada, Enguedi, Kirbet

Mird, Wadi Khabra.

4.1- Inventário dos manuscritos bíblicos

Os manuscritos encontrados nas diversas grutas

de Qumran e vizinhanças, e identificados até

agora, trazem textos de todos os livros da Bíblia

hebraica, exceto Ester. Na 1a gruta: Pentateuco,

Jz, Sm, Is, Ez, SI, Dn; nas "grutas menores" (2,3,

5-10): Pentateuco, Rs, Jr, Am, SI, Jz, Jó, Rt, Ct,

Lm, Dn, Sr; na 4a gruta: Pentateuco, Js, Jz, Sm,

Rs, Is, Jr, Ez, Profetas Menores, SI, Jó, Pr, Qo,

Lm, Dn, Esd, Cr; e na 11a gruta: Dt, Lv, Ez, SI.

Além dos hebraicos, foram encontrados

manuscritos gregos e aramaicos. Quanto aos gregos,

encontraram-se fragmentos de Êxodo, Levítico,

Números e Deuteronômio. Em geral o texto grego é o

da LXX ou muito próximo a ela, com algumas

variantes.

Em aramaico há partes dos livros de Daniel e

Tobias e também fragmentos dos targumim do

Levítico e de Jó.

Quanto aos livros deuterocanônicos, foram

encontrados fragmentos do Sirácida e da carta de

Jeremias em grego e de Tobias em aramaico e

hebraico. Estão representados também outros

livros, não-canônicos, como Henoc, em aramaico e

hebraico, e o Livro dos Jubileus em hebraico.

Em suma, pode-se dizer que, no que diz

respeito ao cânon hebraico, todos os livros,

exceto Ester, estão representados. Entre os livros

Page 26: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

26

deuterocanônicos faltam Macabeus, Judite, Baruc e

Sabedoria. Os livros não-canônicos como Henoc e

Jubileus estão, porém, bem representados. Da

presença desses escritos não podemos chegar a

conclusões absolutas com referência ao cânon da

sagrada Escritura próprio dos moradores de Qumran.

Eles conheciam e liam livros tirados do cânon

hebraico (a partir da ausência de Ester não se

pode concluir de maneira definitiva que esse livro

fosse desconhecido) e em parte também os que não

foram considerados canônicos pelas correntes

principais do judaísmo do séc. I a.C.

4.2- Variedade dos textos de Qumran e seu valor

para a crítica

Alguns exemplos podem mostrar a variedade e o

valor dos textos para a crítica textual do AT:

a. Isaías (IQIs" e QIsb)22

Confrontando as 1.400+ variantes de IQIs3, do

séc. I a.C., com o TM, um estudo recente concluiu

que só nove foram consideradas válidas pelos

tradutores recentes de Isaías para sugerir uma

correção do TM23. A maior parte dessas 1.400

variantes concernem à ortografia ou são erros de

copistas e, portanto, não-pertinentes para

correção do texto. Ainda que o número das

variantes pareça bastante elevado, o texto de

IQIs3 mostra-se muito próximo ao do TM: as

divergências mais notáveis do TM encontram-se

somente em Is 53,12-13, onde lQIsb segue a LXX.

b. Samuel (4QSama'b'c); 4QSama'c do séc. I a.C.;

4QSamb do séc. II ou III a.C.

Os três textos em geral parecem mais próximos

à LXX que ao TM. Quanto a 4QSama, do séc. I a.C.,

os estudos de F. M. Cross24 e de E. C. Ulrich25

mostraram as semelhanças com o texto da LXX. Mas

contém variações que não se encontram noutra parte

e que poderiam indicar diversas tradições ou

desenvolvimentos posteriores do texto. Em ISm

1,11, por exemplo, o texto de 4QSama traz a

palavra nazir na descrição que Ana faz do filho

que ela pede ao Senhor. Quanto a 4QSamb, segundo

dois estudiosos, Anderson e Freedman, o texto

Page 27: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

27

mostra, do ponto de vista de certos fenômenos

ortográficos, semelhança com o TM, ainda que do

ponto de vista das lições variantes venha posto em

relação com a Vorlage da LXX.

c. O Pentateuco

Foram encontrados cerca de 30 manuscritos do

Pentateuco, semelhantes a um dos três tipos

textuais conhecidos antes do descobrimento de

Qumran: a) "protomassorético" (a maioria dos

manuscritos); b) tipo LXX: por exemplo, 4QExoda27;

c) tipo "samaritano": por exemplo, HQpaleoExod™.

Essa variedade mostra que não havia para o

texto hebraico lido em Qumran traduções textuais

"sectárias" (ou pelo menos não somente sectárias).

Muitos dos textos, inclusive 4QExodf (de cerca de

250 a.C.), são do tipo TM, ou foram corrigidos

para aproximá-los do TM. Entre os textos

considerados próximos da LXX, somente 4QJerb (que

contém o texto mais breve de Jeremias como se acha

na LXX) parece pode ser posto em estreita relação

com a Vorlage da LXX28.

4.3- Conclusões

Os manuscritos que concordam com o TM indicam

que o "protomassorético" já existia entre os sécs.

I-III a.C., e seu número majoritário indica certa

preferência por esse tipo de texto. Isso é provado

também pela presença de manuscritos do tipo TM

fora de Qumran. Pela presença desses textos, vê-se

que o termo "protomassorético" é apenas convenção

e talvez fosse mais justo relacionar aquele texto

mais tardio com os textos do mar Morto.

De um estudo das variantes do TM conclui-se

que não existia uma forma única e sectária do

texto em Qumran. Além disso, as formas do texto

conhecidas de outras fontes (por exemplo, LXX,

Pentateuco Samaritano) são testemunhadas também em

Qumran. Enfim, as lições de Qumran divergentes do

TM nem sempre são superiores a ele. Há muitos

erros de co-pistas e também indícios de elaboração

posterior do texto. É preciso julgar cada caso por

si mesmo.

Page 28: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

28

Quanto a nosso conhecimento da história do

texto bíblico, a multiplicidade de formas em

Qumran abre a questão das fronteiras entre a

crítica textual e a crítica literária. Além disso,

o uso de expressões como "tipo textual" e

"recensão" deve ser repensado com base nessa

variedade de formas textuais.

Recentemente, E. Tov sugeriu um modo diferente

de considerar os "tipos textuais", à luz da

diversidade dos textos descobertos em Qumran29.

Tov põe em questão o método clássico de falar de

dois "tipos textuais" (TM, LXX) (ou três, se

acrescentado o Pentateuco Samaritano). Um

manuscrito como HQpaleoLev, cujo texto é acorde em

parte com o TM, em parte com a LXX, em parte com o

Pentateuco Samaritano, e em parte com nenhum dos

três tipos clássicos, sugere que um manuscrito

pode ser independente, ou seja, não refletir

nenhuma dependência de qualquer dos três tipos.

Uma conseqüência dessas observações de Tov é

que devemos repensar eventualmente nossa concepção

do desenvolvimento do texto antes de sua

estabilização, para reconhecer talvez maior

liberdade por parte dos escribas e dos estudiosos

do texto antes do séc. I de nossa era. Seria

preciso pôr em questão também a "teoria dos textos

locais" de F. M. Cross, segundo a qual, a partir

dos três grandes testemunhos do texto bíblico, se

poderia remontar à existência de três centros de

elaboração do texto (TM: Babilônia; Qumran:

Palestina; LXX: Egito)30.

Da variedade dos textos encontrados em Qumran

comprova-se uma dupla atitude dos escribas. Uma,

"livre", verifica-se sobretudo nos manuscritos

produzidos em Qumran com características

ortográficas e lingüísticas próprias (vemo-lo

também nos textos que se aproximam mais do

Pentateuco Samaritano). A segunda atitude é mais

"conservadora" e observa-se nos manuscritos que,

por um lado, são próximos ao TM e, por outro,

próximos à LXX. Tomam-se aqui em consideração

também os textos "independentes" que, juntamente

com os que se aproximam do TM e da LXX,

Page 29: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

29

provavelmente refletem a tentativa de conservar um

texto antigo.

O estudo dos manuscritos de Qumran está longe

de ser definitivo, de forma que qualquer conclusão

é ainda provisória.

5- O Antigo Testamento em grego

5.1- A Septuaginta (LXX)

A diáspora judaica suscitou a necessidade de

ter as sagradas Escrituras em língua compreensível

aos hebreus residentes no Egito, sobretudo em

Alexandria, onde havia uma importante comunidade

judaica. Essa tradução, em primeiro lugar da Torah

— o Pentateuco —, ocorreu provavelmente em fins do

séc. III a.C., ainda que suas origens sejam

bastante obscuras.

a. O que é a LXX?

Segundo a tradição descrita na Carta de Aristéias,

foram setenta ou setenta e dois estudiosos (seis

escolhidos de cada uma das doze tribos de Israel)

que traduziram a Torah para o rei Ptolomeu III

Filadelfos (séc. III a.C.) e, sendo assim, o nome

"Setenta" aplica-se antes de tudo à tradução grega

da Lei. Em seguida veio a ser usado para a

tradução grega de todas as sagradas Escrituras.

Parece, porém, que seja antes uma tradução feita

pelos próprios judeus para os que já não liam o

hebraico. O Prólogo do livro de Ben Sirac afirma a

existência de tradução grega não só da Torah más

também "dos profetas e dos outros livros de nossos

pais".

b. As origens da LXX

De modo a entender as teorias propostas para

explicar as origens da LXX, é importante notar a

existência de várias formas do texto grego. Por um

lado, a partir da desigualdade da tradução,

reconhecível às vezes no mesmo livro, pode-se

concluir que não se trata de trabalho feito por

uma só pessoa e reconduzível a um só período. As

variantes no texto mostram, também, que ele

conheceu ao longo do tempo diversas revisões, que

tornam difícil a busca da forma original (ou das

Page 30: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

30

formas originais). As duas teorias principais

sobre a origem da LXX podem ser denominadas como a

do "targum grego" e da "versão única".

• "Targum grego": segundo P. Kahle, as origens da

LXX devem-se a várias traduções parciais do Antigo

Testamento usadas nas sinagogas helenísticas

sobretudo para a liturgia e, depois, assumidas e

unificadas pelos cristãos31.

• "Versão única original": segundo essa teoria,

pelos testemunhos existentes pode-se remontar ao

texto "arquétipo"32. Baseando-se em informação

dada por são Jerônimo no Prólogo à sua tradução

latina do livro das Crônicas acerca de três formas

diversas do texto (recensões; cf. abaixo, pp. 59-

61), P. de Lagarde pensava que, se se pudesse

determinar essas formas e eliminar as

características próprias às recensões, poder-se-ia

reencontrar a forma original da LXX. Ainda que sua

tentativa de reencontrar a forma "luciana" (de

Luciano de Antioquia) não tenha tido êxito33, a

maior parte dos estudiosos está de acordo em dizer

que a Septuaginta constituiu em suas origens uma

tradução única.

Vê-se que as teorias propostas por esses dois

autores assemelham-se a suas teorias sobre as

origens do texto hebraico (veja acima). Se se

partir da segunda teoria, poder-se-á esperar

reencontrar o texto único arquétipo (que poderia

ser útil para emendar o texto hebraico onde está

corrompido); partindo da primeira, porém, isso não

seria possível.

c. A importância da LXX

A tradução grega do AT constitui evento importante

na história da Bíblia e também para o conhecimento

de seu texto. Por meio dessa única tradução,

possuímos uma forma do texto anterior à sua

estabilização. Além disso, o texto grego do AT foi

a Bíblia do NT: toda a pregação primitiva e as

citações do AT no NT provêm da Bíblia grega. Para

o estudo dos inícios da teologia cristã, essa

tradução é muito significativa porque foi a Bíblia

dos Padres da Igreja (também dos Padres latinos

Page 31: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

31

mediante a "Vetus Latina"). Sendo assim, o

pensamento teológico dos primeiros séculos

cristãos e seu vocabulário foram influenciados

pela formulação grega das Escrituras. Por fim,

sendo tradução feita do texto hebraico no séc. II

a.C. (ou talvez já iniciada no séc. ni a.C.), pode

ser útil para emendar o texto hebraico do AT.

Ainda que hoje se utilize com mais discrição para

essa última finalidade, respeitando o fenômeno de

tradução e também a possibilidade de que o texto

hebraico subjacente a essa tradução fosse diverso

em não poucas passagens daquele que se tornou o

texto massorético, a versão grega antiga continua

a ser mina muito rica para entender o texto do AT.

d. Natureza da tradução da LXX

A LXX é uma tradução do hebraico, mas de um texto

hebraico que às vezes diverge do TM. Por exemplo,

o Livro de Jeremias em grego é cerca de 1/8 mais

breve que o TM. Portanto, ainda que sua tradução

seja bastante literal, é claro que o texto

hebraico de que foi traduzido era diverso do TM.

Às vezes a tradução demonstra a mentalidade ou a

sensibilidade do ambiente alexandrino. Por

exemplo, em Ex 3,14, quando Deus se apresenta a

Moisés dizendo: "eu sou o que sou", a tradução

grega é evgw eivmi ov wvn .

Pode-se concluir a variedade de tradutores a

partir da diversidade de traduções para as mesmas

palavras ou para os mesmos termos. Por exemplo, a

palavra qahãl, "assembléia", é traduzida por

sunagwgh em Gn, Ex e Lv e nos profetas, mas por

Evkklhsiva em Dt e nos livros históricos.

Vê-se às vezes que a tradução grega é

resultado de uma falta de compreensão do texto

hebraico, ou de uma divisão das palavras hebraicas

diversa da tradicional. Por exemplo, no SI 4,3 o

texto hebraico é d mh kbwdy Iklmh, "Até quando

será humilhada a minha glória?"; a LXX traduziu:

Evwz povte barukavrdioi ivna ti..., "Até quando

serás taciturno? Porque...". Vê-se que é tradução

das consoantes cd mh kbdy Ib Imh, trocando k e ò

(que têm quase a mesma forma em hebraico) e

dividindo Iklmh em duas palavras: Ib Imh34. As

Page 32: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

32

vezes a divisão representada pela LXX pode

testemunhar um texto melhor; por exemplo, em ISm

1,24, onde no texto massorético se lê "juntamente

com três vitelos", é provável que a LXX tenha

conservado uma lição melhor dizendo "juntamente

com um vitelo de três anos", que reflete um

hebraico bpr mslsy em vez de bpryrn slsh do texto

massorético. Esse último exemplo é confirmado pelo

texto de ISm de Qumran, 4QSama, que tem bqr rnsls.

Nos manuscritos cristãos da LXX, traduz-se o

nome divino por Cuvrioz. Vê-se, porém, que o uso

dos hebreus era deixar o tetragrama não-traduzido

e em geral escrevê-lo com letras paleo-hebraicas.

O manuscrito dos Profetas Menores de Nahal Hever35

e os fragmentos dos Livros dos Reis na Guenizá do

Cairo (do séc. V ou VI d.C.), que contêm a

tradução de Aquila, confirmam esse uso36.

5.2- Traduções gregas do séc. II d.C.

Parece que o fato de os cristãos utilizarem a

LXX como sua Escritura provocou, no séc. II d.C.,

outras traduções gregas por parte dos hebreus. Há

três traduções, ou pelo menos reelaborações de

traduções já existentes, que remontam a esse

período.

• Aquila (cerca de 130): foi estudante do rabino

Aquiba e fez uma tradução literalíssima (por

exemplo, 'et, que pode significar "com" mas também

pode ser o sinal de objeto de um verbo, é

traduzido sistematicamente por oúv).

• Símaco (cerca de 170): fez uma tradução fiel ao

hebraico mas em bom grego. Não se sabe muito dele,

mas por informações fornecidas por Orígenes parece

que foi samaritano convertido ao judaísmo. Talvez

tenha sido ebionita, e provavelmente deve ser

identificado com um tal de Sümkhôs, discípulo do

rabino Meir37.

• Teodocião (cerca de 150/160): não fez nova

tradução, mas antes uma revisão que aproximava o

texto ao hebraico. Há testemunhos de uma tradução

"prototeodociana" (por exemplo, no NT, Barnabé,

Clemente, Hermas), que talvez fosse uma tradução

Page 33: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

33

grega da Bíblia diversa da tradução alexandrina

(LXX) já existente antes da era cristã38.

Note-se também a existência de uma recensão

grega do séc. II d.C., feita por judeus, que

poderia estar na base das traduções daquele

século. Essa recensão foi observada, para os

Profetas Menores, por D. Barthélemy ("Redé-

couverte d'un chaínon manquant de rhistoire de Ia

Septante", em RB 60 [1953], pp. 18-29), que a

verificou em seguida em outras partes da Bíblia39.

As relações dessa recensão com a tradução grega

antiga ainda são discutidas40, mas fica claro que

o texto grego foi modificado para aproximar-se a

um texto hebraico consonântico que era o

protomassorético. Assim, pelo menos para seções da

Bíblia que atestam esse trabalho de recensão, vê-

se que foi tentativa feita por hebreus de

conformar o texto da Septuaginta ao

protomassorético. Barthélemy chamou os editores

dessa recensão de os deuanciers de Aquila, porque

eram mestres da exegese rabínica palestinense da

primeira metade do séc. I d.C. que modificaram o

texto segundo os princípios de tal exegese41.

Barthélemy chamou-a de "recensão xatye" segundo a

tradução literalíssima de garn e vfgam por Kccíye.

5.3- As recensões gregas do séc. II ao séc. IV

d.C.

Podemos definir a recensão, pelo menos

genericamente, como o texto que foi mudado de modo

consciente (e sistemático) segundo princípios

precisos e para uma finalidade desejada. Pode-se

pensar, por exemplo, num texto grego modificado

para torná-lo mais semelhante ao texto hebraico,

ou num texto em que a gramática ou o vocabulário

foram mudados para torná-lo mais "moderado" ou

"adaptado" a determinada época.

Page 34: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

34

IV- CRÍTICA TEXTUAL DO ANTIGO

TESTAMENTO

1- Texto "original"? CÁSSIO MURILO DIAS DA SILVA

Não podemos fazer trabalho sério em exegese ou

em teologia bíblica se não partirmos do texto

"original". O termo "original" deve ser colocado

entre aspas já que o "verdadeiro texto original"

não existe. Isto é, ninguém possui a primeira

edição do Livro dos Números, ou mesmo do evangelho

de Lucas. O primeiro manuscrito de qualquer texto

bíblico perdeu-se no tempo e no espaço. Em outras

palavras, como se já não fosse pouco o fato de

termos de trabalhar com os textos em grego, em

hebraico e, eventualmente, em aramaico, temos o

seguinte complicador: a primeira redação, tal qual

saiu das mãos do autor, já não existe mais. Negá-

lo, seria ingenuidade nossa. Tudo o que nos resta

são cópias, por vezes, defeituosas, incompletas,

ou mesmo muito tardias.

Como, então, podemos ousar fazer afirmações do

tipo "Tal texto quer dizer tal coisa", se nem

podemos "jurar de pés juntos" que o texto é

exatamente aquele?

Por isso, é necessário reconstruir o texto

"original", isto é, o texto que provavelmente

tenha saído das mãos do autor. Para tanto,

trabalha-se sobre os manuscritos disponíveis.

Claro que não precisamos fazer tudo sozinhos. Só

isso seria a tarefa de toda uma vida... e muitas

mais.

2- Uma edição diferente da bíblia: a edição

crítica Sem nenhuma dúvida, houve um texto que podemos

chamar de "original". Este, no entanto, sofreu re-

elaborações e mais re-elaborações. Além disso, não

podemos nos esquecer que, antes de serem escritos,

muitos relatos pertenciam à tradição oral. A

fixação por escrito, o texto estável, é apenas

parte de um processo mais amplo, pois um novo

Page 35: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

35

contexto é sempre ocasião para a re-leitura e a

re-elaboração de um texto do passado. Em outras

palavras, um texto fixado e amadurecido pode

tornar-se a base para uma nova re-elaboração.

Muitas vezes, o próprio texto oferece indícios que

permitem reconstruir as etapas da redação que hoje

possuímos.

Como veremos em breve, a ciência bíblica

desenvolveu certos critérios, a fim de refazer o

caminho "que o texto percorreu até chegar às

nossas mãos. O resultado desse trabalho de

reconstruçao é encontrado nas chamadas "edições

críticas". São edições dos textos do Antigo e do

Novo Testamentos (em hebraico, em grego, em

aramaico e, ainda, em latim) que trazem, no

rodapé, o "aparato crítico", isto é, o elenco das

principais leituras variantes e os tipos textuais.

Nas margens laterais, encontramos outras

observações e anotações a respeito do texto. Para

economizar espaço, quase todas as informações do

aparato crítico e das margens estão abreviadas ou

codificadas em símbolos, cuja decodificação

encontramos nas introduções e nos apêndices de

cada edição crítica.

As variantes decorrem, em parte, por erro de

transcrição e, em parte, por correções

intencionais dos copistas. Sobre isso, falaremos

mais à frente.

Cada edição crítica é o resultado de anos de

dedicação em consultar TODOS os manuscritos

existentes (textos bíblicos, Targumim, Midrashim,

lecionários, fragmentos, inscrições, comentários,

textos patrísticos, e outros mais).

3- Trabalhando com uma edição crítica As edições críticas publicadas em Stuttgart,

na Alemanha, pela Deutsche Bibelgesellschaft,

acabaram se impondo como padrão. Cada uma delas é

o resultado de muitos anos dedicados à pesquisa e

à atualização de edições anteriores. Além disso,

têm o mérito de poderem ser adquiridas com muita

facilidade e por um preço relativamente acessível.

Page 36: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

36

Vejamos o elenco destas publicações:

Texto Massorético(TM): ELLIGER,K.& RUDOLPH, W. Bí-

blia Hebraica Stuttgartensia

Setenta(Septuaginta ou LXX): RAHLFS,A. Septuaginta

Novo Testamento: NESTLE, E. & ALAND, K. Novum

Testamentum Graece

UNITED Bible Societies, The

Greek New Testament

Vulgata: WEBER, R. Bíblia Sacra Vulgata

3.1- Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHS) Precisamos, pois, aprender a manusear essas

edições da Bíblia. A seguir, vamos tratar

brevemente do Antigo Testamento em hebraico e,

posteriormente, do Novo Testamento Grego.

Acabamos de afirmar que tornou-se padrão

utilizar a Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Ela

traz o chamado "Texto Massoretíco" (TM), a versão

escrita do Antigo Testamento hebraico que acabou

se impondo como padrão. Os massoretas

estabeleceram um sistema altamente elaborado e

complexo de vocalização (supra e infra-linear) e

acrescentaram ao texto uma série de sinais

disjuntivos, para indicar a pontuação (vírgulas,

pontos etc.) e a entonação (acentuação, pausas,

cantilenação) com que deve ser lido o texto.

Além da vocalização e dos sinais disjuntivos,

a fim de se evitar a corrupção e a perda de

palavras no texto, os escribas massoretas

desenvolveram um sistema para garantir a

integridade da Escritura. É a chamada "massorah".

Não queremos aborrecer o leitor e, por isso,

não vamos expor com minúcias a massorah. A modo de

ilustração, daremos apenas dois exemplos.

a) A Massorah Final: ao final de cada livro,

encontraremos uma nota que nos informa quantos

versos e quantos sedarim aquele livro possui e

onde está o seu meio. Por exemplo: ao final de Dt,

é-nos dada a seguinte informação: o livro possui

955 versículos, seu meio está em £yPi-lfa

tAyWifAv4 [agirás conforme] (17,10) e são 31 os sedarim. Além disso ficamos também informados que

Page 37: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

37

o conjunto da Torah possui 5.845 versículos, 167

sedarim, 79.856 palavras e 400.945 letras.

b) A Massorah Marginal: trata-se, como o nome

diz, do conjunto de notas que os massoretas

colocaram às margens do texto. Nessas notas, eles

fazem comentários a respeito do texto, preservam

tradições não textuais, identificam palavras ou

frases raras, indicam o meio dos livros e das

grandes seções, dão-nos outras informações

estatísticas e uma espécie de concordância.

Devemos destacar o chamado Qerê/Ketîb (o que deve

ser lido / o que está escrito), um recurso dos

massoretas para esclarecer dificuldades com a

vocalização, quando esta é incompatível com as

consoantes. Ou seja, quando o texto apresenta

consoantes de uma palavra com vogais de outra. E

sempre indicado da seguinte forma: no texto

(Ketîb), aparece um pequeno círculo sobre a

palavra em questão; na margem (Qerê), as

consoantes corretas estão impressas sobre um q encimado por um ponto. Um bom exemplo podemos

encontrar em 2Rs 20,4. O Ketíb traz as consoantes

ryfh com a seguinte vocalização ryfehA. O Ketîb

tem as consoantes da expressão "a cidade", mas a

vocalização é totalmente outra. Tal discrepância

só fica esclarecida ao consultarmos o Qerê, que

propõe as consoantes rcH, que não significa

"cidade", mas "pátio". Ou seja, os massoretas

propõem que "aquilo que está escrito" (Ketíb)ryfh

[a cidade], "seja lido" (Qerê) rcH [pátio]. Mas,

como não podem alterar o texto (que possui só as

consoantes), vocalizam-no segundo a correção

indicada na margem lateral.

E, por fim, o aparato crítico. No texto

hebraico, aparecem pequenos caracteres

latinos(a,b,c...) que remetem ao fundo da página.

Aí, encontramos as principais variantes do texto e

a referência dos manuscritos ou das versões que

lêem tais variantes. Essas informações são dadas

por meio de numerosas abreviações em latim e/ou

símbolos. Um breve exemplo: Dt 32,35. O Texto

Page 38: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

38

Massorético lê ML.ewiv4 Mq!n! yli[para mim a

vingança e a recompensa]; já o Pentateuco

Samaritano e a Septuaginta lêem ML.ewiv4 Mq!n!

MOyli [para o dia da vingança e da recompensa].

4- Últimas considerações prévias Um bom começo é tomar as edições críticas e

ler as páginas introdutórias, nas quais, além das

informações expostas anteriormente, vamos

encontrar muitas outras, que nos serão muito

úteis, tais como um histórico da presente edição

crítica e suas particularidades: os critérios e as

siglas adotados, os manuscritos consultados, os

apêndices.

Cada livro desses é uma verdadeira

enciclopédia sobre o texto bíblico. A Bíblia

Hebraica Stuttgartensia (BHS) possui "prolegomena"

em alemão, inglês, francês, espanhol e latim, mas

a lista completa dos sinais e dos manuscritos

utilizados possui sua explicação somente em

latim!... Quem não tem intimidades com essa língua

pode consultar a seguinte obra: SCOTT, William R.

A Simplified Guide to BHS. Berkeley, Bibal, 1987.

Nesta publicação, além da tradução, em inglês, das

abreviaturas e das siglas utilizadas no aparato

crítico, pode-se encontrar informações adicionais

sobre as duas messarot, as pausas e os acentos, e

muito mais. Em português, um breve elenco com as

principais abreviações e termos latinos pode ser

encontrado em MAINVILLE, O. A Bíblia à luz da

História. Guia de exegese-histórico-crítica. São

Paulo, Paulinas, 1999. pp. 147-152.

Por fim, apenas um comentário.

Para quem usa os recursos da informática,

recomendamos tomar contato com o excelente

programa BibleWorks for Windows, atualmente na

versão 4.0, em CD-ROM. Embora o aparato crítico

completo para a Bíblia Hebraica, a Septuaginta e o

Novo Testamento Grego ainda seja uma promessa,

este programa é de extrema utilidade, pois, as

mesmas fontes requeridas pelo Windows para a

visualização dos textos grego e hebraico podem ser

utilizadas por qualquer programa de elaboração de

Page 39: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

39

textos e nos permite escrever diretamente nas

línguas bíblicas. Além disso, o BibleWorks possui

vários outros recursos que podem ser acionados

durante o uso do programa: léxicos em grego e

hebraico, concordâncias, estatísticas, análise

morfológica, versão grega (LXX) para o AT, versão

latina (Vulgata), e muitas versões em línguas

modernas, até em português (três edições da

clássica tradução de João Ferreira de Almeida:

corrigida, revista e atualizada; revista e

corrigida).

5- Crítica textual Agora que já sabemos o que é uma edição

crítica, precisamos saber para que serve. Para

responder a tal pergunta, devemos lembrar que uma

edição crítica apresenta as lições ou lectiones

variantes para um mesmo texto. Não há dois

manuscritos perfeitamente idênticos e as

diferenças são apresentadas no aparato crítico.

Quando encontramos uma divergência nas tradições

de um texto bíblico, ou quando é difícil sua

leitura, pode-se pensar em uma eventual emendação,

baseada sobre as várias lições, ou, em casos mais

raros, sobre conjecturas (quando o contexto ou a

gramática exigem mudanças não atestadas em

manuscritos).

Como os estudiosos chegaram à conclusão de que

o texto mais próximo do original é este e não

aquele? E como explicam as mudanças?

Reconstruir a (provável) redação original a

partir dos manuscritos atualmente conhecidos supõe

realizar um trabalho crítico em duas direções, a

crítica externa e a crítica interna. A crítica

externa toma em consideração o aspecto físico dos

manuscritos: quantidade, qualidade, datação. Por

sua vez, a crítica interna analisa o texto

propriamente dito: articulação das idéias, uso das

palavras, estilo, teologia. Cada uma dessas duas

críticas (externa e interna)" possui seus próprios

critérios.

São critérios para a crítica externa:

a) múltipla atestação;

Page 40: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

40

b) manuscritos antigos e confiáveis;

c) manuscritos independentes entre si (genealogia

e geografia);

São critérios para a crítica interna:

a) a lição mais difícil é preferível à mais fácil

(lectio difficilior);

b) a lição mais breve é preferível à mais longa

(lectio brevior);

c) estilo e teologia do autor;

d) não influência de passos paralelos.

Claro que uma conclusão guiada pelos critérios

externos pode divergir daquela baseada nos

internos. Para superar tal impasse, uma vez

estabelecida a forma original, deve-se explicar o

porquê das diferenças, reconstruindo a genealogia

das variantes.

Mas, devemos levar em consideração que o

trabalho de reconstrução do texto a partir dos

manuscritos já está realizado por estudiosos que

dedicaram toda sua vida a isso. Ou seja, não

precisamos partir do zero. Por isso, tendo em mãos

uma edição crítica, que nos fornecerá as

principais variantes para cada versículo, nossa

tarefa será tentar entender as razões que levaram

os críticos textuais a tal veredicto. Para tanto,

nosso trabalho deve se pautar nos seguintes

critérios:

a) a lição mais difícil é preferível à mais fácil

(lectio difficilior);

b) a lição mais breve é preferível à mais longa

(lectio brevior),

c) a lição divergente em lugar paralelo é

preferível à concordante;

d) é genuína a lição que explica a origem das

demais.

Aliás, esse último critério exige não só

sensibilidade, mas também certa dose de intuição.

Quanto à sua origem ou à sua causa, as mudanças

podem ser inconscientes ou conscientes. Os

exemplos a seguir vão nos ajudar a classificar tal

problemática.

Page 41: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

41

5.1 - Crítica textual do Antigo Testamento

5.1.1 - Mudanças inconscientes

Consideradas erros de escritura (quase sempre

anteriores ao I d.C.).

a) Erro de ouvido:

Para se multiplicar os textos, um dos escribas

ditava e os demais transcreviam. Em alguns casos,

podia acontecer de o copista compreender mal a

leitura e confundir alguma letra. Tal é o caso de

SI 28,8. A versão hebraica do TM lê

Aml'-z[o hw"hy> YHWH é força para eles

Mas outras versões, tal como a siríaca, apresentam

AM[!l.-z[o hw"hy> YHWH é força para seu povo

seguindo a LXX (Septuaginta):

ku,rioj kratai,wma tou/ laou/ auvtou/ o Senhor é força de seu povo

O leitor pode ter pronunciado não muito

claramente o f (que possui um som gutural, mas

alguns o pronunciam mudo ou levemente aspirado),

provocando uma alteração na cópia.

b) Haplografia (haplos = simples):

Quando determinada palavra, sílaba ou letra,

que ocorre mais de uma vez, é escrita somente uma.

Assim acontece em Is 26,3-4. O TM e, com ele, o

Targum e a Vulgata lêem

hw"hyb; Wxj.Bi `x;WjB' ^b. yKi porque em Ti ela confia. Confiai em YHWH

Em Qumran, no entanto, temos outra lição,

semelhante à LXX:

hw"hyb; Wxj.Bi `x;WjB' hk!b. yKi porque em Ti . Confiai em YHWH

Neste caso, é preferível a versão do TM.

Page 42: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

42

Outro exemplo: SI 17,10. Caso se trate de uma

haplografia, é muito antiga, pois já está presente

na LXX.

c) Ditografia (ditto = duplo):

É o inverso do erro anterior. Palavra, sílaba

ou letra, que ocorre uma só vez, é duplicada. Em

Is 40,12, o TM e a LXX lêem, respectivamente,

~yIm; Al[\v'B. dd;m'-ymi Quem mediu com a palma da mão as águas

ti,j evme,trhsen th/| ceiri. to. u[dwr Quem mediu com a palma da mão as águas

Em Qumran, porém, o manuscrito da primeira

gruta duplica o y de ~yIm; [águas] e lê

My! Yme Al[\v'B. dd;m'-ymi Quem mediu com a palma da mão as águas do mar

d) Paráblepsis:

Quando a mesma palavra ou frase se repete e o

copista, por ter saltado da primeira para a

segunda ocorrência, omitiu tudo o que estava entre

elas. Isso ocorre em Js 21,35-38: devido a um

fenômeno de paráblepsis, os vv. 36-37 (entre

colchetes) estão ausentes em vários manuscritos e

em várias edições impressas do TM, bem como em

manuscritos do Targum e da Vulgata. Entretanto, o

TM pode ser reconstituído em base à LXX e à lista

paralela de ICr 6,63-64.

h'v,r'g>mi-ta,w> ll'h]n:-ta, h'v,r'g>mi-ta,w> hn"m.DI-ta, 35 `[B;r>a; ~yrI['

hc'h.y:-ta,w> h'v,r'g>mi-ta,w> rc,B,-ta, !beWar> hJeM;miW]36 `h'v,r'g>mi-ta,w>

h'v,r'g>mi-ta,w> t[;p'yme-ta,w> h'v,r'g>mi-ta,w> tAmdeq.-ta, 37

Page 43: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

43

[`[B;r>a; ~yrI[' dg"-hJeM;miW 38

35 Dimná com suas pastagens, Nahalal com suas

pastagens: quatro cidades,

36 [ Da tribo de Rúben: Bétzer com suas pastagens,

lahtzah com suas pastagens;

37 Qdemot com suas pastagens, Mefáat com suas

pastagens: quatro cidades. ]

38 Da tribo de Gad

e) Metátese (transposição de letras):

Ocorre quando o copista transcreve as letras

corretas, mas em ordem trocada, tal como em IRs

7,45. O Ketîb traz

hf'[' rv,a] lh,aoh' ~yliKeh;-lK' taew> e todos os vasos a tenda que fez

mas é corrigido pelo Qerê (e, com este, a versão

siríaca e a LXX [7,31]).

hf'[' rv,a] hL,aeh' ~yliKeh;-lK' taew> e todos aqueles vasos que fez

f) Confusão de letras

Isso pode se dar, seja no alfabeto quadrático

(r / d; h / H / t), seja no paleohebraico (t / x; c /

y; n / p / n). Um exemplo encontramos em Gn 14,14, com as letras r e d. O TM lê

wyk'ynIx]-ta, qr,Y"w: ele armou (?) seus seguidores

enquanto no Pentateuco Samaritano temos

Page 44: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

44

wyk'ynIx]-ta, qd,Y"w: ele esmagou (?) seus seguidores

5.1.2- Mudanças conscientes

Ocorrem quando o copista altera

propositadamente o texto. Isso pode ser feito em

virtude de o texto estar ainda vivo: as mudanças

não traem a fidelidade à sua transmissão. Para o

AT vemos, por exemplo, as diferenças de ortografia

entre os Manuscritos do Mar Morto e o Texto

Massorético, bem como as lições da LXX.

a) Glosa:

Trata-se de um acréscimo para ...

aa) ... corrigir:

Em Jr 10,25, o TM diverge da LXX. Respectivamente

temos:

WhLuk;y>w: Whluk'a]w: bqo[]y:-ta, Wlk.a'-yKi Pois devoraram Jacó, devoraram-no e aniquilaram-no

o[ti kate,fagon to.n Iakwb kai. evxanh,lwsan auvto.n Pois devoraram Jacó e aniquilaram-no

Neste caso, pode-se explicar o TM assim: 1) um

escriba teria escrito Whluk'a]w: [e devoraram-no] em lugar de WhLuk;y>w: [e aniquilaram-no]; 2)

posteriormente, a fim de corrigir, ele mesmo ou

outro teria inserido WhLuk;y>w: [e aniquilaram-no],

sem apagar a forma errada.

bb) ... esclarecer palavras obsoletas:

No TM de Is 51,22, temos duas palavras que se

referem ao mesmo objeto:

ytim'x] sAK t[;B;qu-ta, a taça do cálice do meu furor

Este texto pode ser assim explicado: t[;B;qu [taça] é um termo raro (só ocorre na Bíblia

Page 45: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

45

Hebraica) e foi glosado por sAK [cálice], termo mais comum para o mesmo objeto. Cf. Is 51,17.

cc) ... explicar textos teologicamente difíceis:

O texto hebraico de Ex 24,10 apresenta uma

dificuldade:

laer'f.yI yhel{a/ tae War>YIw: E eles viram o Deus de Israel

Como é possível contemplar a Deus diretamente?

Os tradutores da LXX, para eliminar tal problema,

acrescentam alguns vocábulos:

kai. ei=don[to.n to,pon ou- eisth,kei evkei/]o` qeo.j tou/ Israhl E eles viram [o lugar onde parou] o Deus de Israel

Ninguém pode ver a Deus, mas não há nenhum

problema quanto a se ver o lugar onde Deus se

posiciona.

b) Mudanças por razões teológicas:

Algumas alterações ocorrem para substituir

palavras ou expressões que "ofendem"

teologicamente:

aa) Alterações antipoliteístas:

Segundo ICr 8,33 e 9,39, o nome do quarto

filho de Saul é lfaBaw;x,['Eshbba'al\. A

vocalização parece ser uma pequena variante de

lfaBa-wyxi['Ish-ba'al = homem de Ba'al]. No

entanto, o infante recebe outro nome no Texto

Massorético de 2Sm 2,8.10.12.15; 3,8.14-15;

4,5.8.12: tw,Bo-wyxi['Ish-bosheth = homem da

vergonha]. Embora Crônicas tenha sido composto

depois de Samuel, seus manuscritos preservam,

neste caso particular, antigas tradições textuais,

as quais, por sua vez, refletem um tempo em que o

elemento teofórico lfaBa [Ba'al] deve ter sido

comum em nomes próprios. Em outras palavras, o

Page 46: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

46

nome original é encontrado em Crônicas, e a forma

corrigida em Samuel.

De fato, uma antiga recensão da LXX, o texto

antioqueno (normalmente chamada "recensão de

Luciano" e que parece reportar uma versão pré-

massorética do texto hebraico) lê diferentemente o

livro de Samuel: o rapaz é denominado 'Eisbaal. [Eisbaal = homem de Ba'al] .

bb) Alterações eufemísticas:

No TM, termos pesados são substituídos por

outros mais brandos, tal como em Jó 2,9. Se o

texto hebraico dá ares de ironia

`tmuw" ~yhil{a/ %reB' Abençoa a Deus e morre!

a versão da LXX é ainda mais neutra

eivpo,n ti r`h/ma eivj ku,rion kai. teleu,ta Diga uma palavra ao Senhor e morre!

Ao invés de jrb[abençoar], o verbo que melhor se

encaixaria aqui é seu oposto, rrx [amaldiçoar], mas que foi evitado por respeito a Deus.

V- A DELIMITAÇÃO DO TEXTO

1- Os limites do texto

Page 47: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

47

CASSIO MURILO DIAS DA SILVA

Uma das qualidades de um texto é a sua

delimitação, isto é, ele precisa ter começo, meio

e fim. Delimitar um texto, portanto, significa

estabelecer limites para cima e para baixo, ou

seja, onde ele começa e onde ele termina. O trecho

da Escritura resultante dessa delimitação recebe o

nome de “perícope”.

Em geral, nossas edições da Bíblia já trazem

os livros divididos em perícopes, cada uma delas

ostentando um título. No entanto, nem o título nem

a divisão constam no original: ambos, divisão e

título, são definidos pelos editores. Em tal

trabalho editorial, podem ocorrer dois fenômenos.

No primeiro, pode-se quebrar uma unidade textual,

isto é, pode haver uma má delimitação das

perícopes, e, em conseqüência, isolam-se

versículos de seu contexto. O segundo fenômeno é

oposto ao primeiro: perícopes que, claramente,

deveriam ter sido separadas encontram-se agrupadas

sob o mesmo título. Se compararmos várias edições

da Bíblia, sentiremos que, por vezes, faltou um

maior cuidado quanto à delimitação dos textos. Em

decorrência, os títulos são infelizes e

insustentáveis. Três casos pinçados e

confrontados:

a) Ecl 4,1-5,8. As divisões e os títulos

atribuídos ao livro do Eclesiastes são muito

insólitos e genéricos. Quanto aos versículos do

exemplo ora proposto, a Bíblia de Jerusalém os

considera como uma única perícope sob o título "a

vida em sociedade", embora a nota d, referente ao

título, apresente as várias "misérias da vida em

sociedade: opressão pelo abuso do poder e

desamparo do homem isolado (4,1-12); maquinações

políticas (32, 1 3-16); religiosidade motivada

pelo espírito de massa e abuso na prática de fazer

promessa (4,17-5,6); tirania do poder (5,7-8)".

Apesar da imprecisão, por que apresentar essa

divisão na nota e não no texto? A João Ferreira de

Almeida é ainda mais problemática. A primeira

discrepância refere-se à própria numeração dos

versículos. Seu versículo 5,1 corresponde ao 4,17

Page 48: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

48

das outras duas bíblias comparadas. Quanto à

divisão em perícopes e respectivos títulos, temos:

4,1-16 ("os males e as tribulações da vida"); 5,1-

20 ("vários conselhos práticos"). Por sua vez, a

TEB apresenta um trabalho mais acurado quanto à

divisão em perícopes, mas os títulos continuam

questionáveis: 4,1-3 ("a sorte dos oprimidos");

4,4-6 ("o trabalho e seus riscos"); 4,7-12 ("a

solidão e os seus incovenientes"); 4,13-16 ("o

poder político e seus riscos"); 4,17-5,6 ("o gesto

ritual e seus riscos"); 5,7-8 ("a autoridade

necessária e seus abusos").

Os exemplos poderiam se multiplicar

indefinidamente, quer confrontando outras

traduções, quer comparando outros textos. Esse

exemplo, porém, basta para nos deixar claro quanto

as divisões e os títulos que aparecem nas

traduções da Bíblia carecem de critérios sólidos e

demonstram-se, por vezes, aleatórios.

Ora, é verdade que os autores bíblicos não

dividiram explicitamente suas obras. No entanto,

não nos abandonaram "no mato sem cachorro". Antes,

deixaram alguns indícios, a fim de evidenciar onde

começa e onde termina determinada perícope. Tais

indícios divisores de texto não devem se limitar

apenas à língua original, mas devem, igualmente,

fazer parte da tradução.

2- Critérios para a delimitação do texto

2.1- Elementos que indicam um novo início

Ao iniciar um novo relato ou um novo

argumento, o autor precisa chamar a atenção do

leitor para esse fato. Para tanto, lança mão de

alguns recursos de abertura ou de focalização:

a) Tempo e espaço:

Como todo episódio narrado se desenvolve

dentro dessas coordenadas, tempo e espaço são

indícios importantes. O tempo pode indicar o

início, a continuação, a conclusão ou a repetição

de um episódio. O espaço, por sua vez, localiza

fisicamente a ação e dá a noção de movimento (2Sm

11,1; 2Rs 4,38; Mt 2,1; 4,1; 8,5; Mc 16,1; Lc

1,5).

Page 49: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

49

b) Actantes ou personagens:

Em textos narrativos, a nova ação pode se

iniciar com a chegada, a percepção ou a mera

aparição de um novo personagem, ou com a atividade

de alguém que até agora estava inativo (Ex 2,1;

2Rs 4,42; Mc 7,1; Lc 1,26).

c) Argumento:

Podemos identificar uma nova perícope pela

mudança de assunto, muitas vezes, introduzido por

fórmulas de passagem: "finalmente...", "quanto

a...", "a propósito de...", "por essa razão..."

(ICor 12,1; 2Tm 4,6). Às vezes não acontece uma

mudança de argumento, mas apenas de perspectiva.

Nas cartas paulinas, é muito comum o uso da

diatribe (o argumentador introduz um interlocutor

fictício, com o qual mantém uma discussão e

responde a questões que tal personagem propõe)

para assinalar essa passagem (Rm 7,13; 11,1).

d) Anúncio de tema:

Alguns textos retóricos, ao término de uma

parte da argumentação, introduzem ou antecipam os

assuntos que serão tratados a seguir. Um bom

exemplo é Hb 2,17-18, que anuncia o próximo tema,

Jesus Cristo como Sumo Sacerdote fiel e

misericordioso, que será tratado em 3,1-5,10.

e) Título:

Alguns autores deixaram explicitamente o

título que demarca uma parte importante de seu

escrito (Is 21,1.11.13; Ap 2,1.8.12).

f) Vocativo e/ou novos destinatários:

Um novo oráculo profético ou uma nova mensagem

podem ser demarcadas por um vocativo que explicita

a quem tais palavras são dirigidas. Esses

destinários podem ser os mesmos de até então (Gl

3,1; Uo 4,1.7), ou destinatários novos (Os 5,1; Jl

1,13; Ap 2,1.8.12). Esses mesmos indícios podem

evidenciar uma nova fase da argumentação (Ef

5,22.25; 6,1.4.5.9).

Page 50: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

50

g) Introdução ao discurso

Como o próprio nome diz, introduz a fala de um

dos personagens (Jó 6,1; 8,1). Mas, algumas vezes,

pode funcionar como separação entre algo ocorrido

ou contado pelo personagem e o comentário que este

mesmo personagem faz a respeito (Lc 15,7.10;

18,6.14).

h) Mudança de estilo:

O texto pode sofrer uma ruptura quando o autor

mescla dois tipos diferentes de exposição. É o que

acontece quando se passa do discurso para a

narrativa (Mt 10,4-5), da prosa para a poesia (Jz

5,1; Fl 2,5-6), ou da poesia para a prosa (Jz

5,31; Mt 11,1-2; Fl 2,11-12).

2.2- Elementos que indicam o término

Ao término do episódio ou do argumento, outros

indícios nos informam que a conclusão está

próxima.

a) Actantes ou personagens:

O número de personagens pode ser multiplicado,

de modo a obscurecer o foco (Mc 1,45; Lc 5,15), ou

mesmo reduzido, de modo a provocar uma mudança na

focalização (Mt 17,19; Mc 9,28).

b) Espaço:

A narrativa pode ficar igualmente desfocada

por causa de um deslocamento do tipo partida (2Sm

19,40; At 12,17) ou de uma extensão (Mc 1,39; At

14,6-7).

c) Tempo:

Informações temporais também podem indicar que

a ação narrada está acabando. Pode acontecer a

expansão do tempo, que dispersa nossa atenção (Nm

20,29; IRs 10,25; At 10,48), bem como o chamado

"tempo terminal", com o qual o autor dá a

narrativa por concluída (Gn 32,22; Jo 13,30; At

4,3).

d) Ação ou função do tipo partida:

Trata-se daquela ação ou função expressa por

verbos como sair, despachar, expulsar: alguém

(normalmente o personagem pivô dos acontecimentos

Page 51: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

51

narrados) sai de cena, separando-se dos demais

(ISm 16,23; Mc 8,13; At 9,25).

e) Ação ou função terminal:

Terminais são aquelas ações ou funções do tipo

morrer, sepultar, bem como as reações decorrentes

do episódio narrado, tais como rezar, admirar-se,

ficar angustiado, converter-se, temer, glorificar

a Deus etc. (Gn 49,33; At 5,5-6; Mt 9,8).

f) Ruptura do diálogo.

Muito freqüente em relatos que envolvem uma

controvérsia, o último a falar é o herói (profeta,

Jesus, apóstolo). Isso ocorre porque chegamos ao

clímax da discussão. O protagonista do episódio

profere uma palavra tida como final. Pode ser uma

questão retórica que ficará em aberto, uma citação

da Escritura, ou um dito ao estilo sapiencial. Às

vezes, o autor somente acrescenta uma breve

conclusão redacional (Lc 14,5-6; At 11,17-18).

g)Comentário:

O narrador pode interromper sua exposição para

fazer algumas observações que dão o sentido do

relato (Jo 2,21-22; 20,30-31), ou para expor o

sentimento dos personagens (Jo 2,24-25).

h) Sumário

Típico do expediente redacional do hagiógrafo,

o sumário pode ser considerado, em si mesmo, uma

breve perícope, na qual o autor interrompe a

narrativa para apresentar, de modo resumido,

aquilo que acabou de expor (Lc 3,18; Jo 8,20), ou

para abreviar o tempo e, assim, chegar logo ao

episódio que interessa (Lc 2,51-52).

2.3- Elementos que aparecem ao longo do texto

Neste último grupo, arrolamos elementos cuja

função não se reduz a assinalar o início ou o fim,

mas a imprimir ao texto certo ritmo ou dinâmica.

Podem aparecer simultaneamente no início e no fim

da perícope, ou mesmo ao longo do seu

desenvolvimento.

a) Ação:

Page 52: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

52

Normalmente constituída por princípio, meio e

fim, a ação é o núcleo de qualquer narrativa.

Novas indicações de tempo, espaço e personagens,

geralmente, são completadas com o início de uma

nova ação (Gn 18,16; Jz 2,6; ISm 19,11; Mc 6,17).

b) Campo semântico:

Grupo de palavras cujos significados estão de

alguma forma relacionados, normalmente por terem

uma referência comum (tema, idéia, ambiente). Numa

perícope, pode funcionar como pano de fundo para o

relato ou o argumento, mesmo que não seja

utilizado explicitamente. Gênesis 22,6-10, utiliza

palavras do campo semântico "sacrifício": lenha,

fogo, cutelo, cordeiro, altar.

c) Intercalação:

Às vezes, uma ação iniciada pode ser

interrompida para ser retomada mais na frente. Em

decorrência, temos um episódio dentro do episódio,

como se fosse um sanduíche. É uma técnica muito

comum em Marcos (3,l-3.4-5a.5b-6; 5,21-24.25-

34.35-43), às vezes para preencher o arco de tempo

entre dois acontecimentos (Mc 3,21.22-30.31: os

parentes de Jesus partem de Nazaré no v. 21, mas

só chegam a Cafarnaum no v. 31; nesse meio tempo,

Jesus entabula uma controvérsia com as autoridades

judaicas, nos vv. 22-30).

d) Inclusão:

Uma palavra, uma frase ou um conceito presente

no início reaparece no fim e funciona como um

enquadramento, que delimita e encerra tudo o que

ficou "incluído" entre elas (SI 8,2.10; Am 1,3.5;

Mt 5,3.10).

e) Quiasmo:

Quando uma seqüência de palavras, frases ou

idéias reaparece em forma invertida (Is 6,10).

Também perícopes podem estar agrupadas em forma

quiástica (2Sm 21,l-14[a]; 21,15-22[b]; 22[c];

23,l-7[c']; 23,8-39[b']; 24[a']). Por vezes, no

centro do quiasmo, encontra-se um elemento

isolado, sem outro correspondente (Is 53,4-5a). A

Page 53: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

53

técnica do quiasmo pode servir para evidenciar a

importância do(s) elemento(s) que está(ão) no

centro (Lc 4,16c-20a). No entanto, há outro uso do

quiasmo: assinalar a reversão da situação inicial.

Neste caso, o que realmente importa não é o que

está no centro, mas a mudança ocorrida. O elemento

central é apenas o fator que provoca ou explica

tal processo (Lc 11,8).

VI – METODOLOGIA DA EXEGESE DO ANTIGO

TESTAMENTO

1- Diacronia: os métodos histórico-críticos HORÁCIO SIMIAN-YOFRE

Page 54: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

54

1.1- Problemas introdutórios

Geralmente, designa-se o método histórico-

crítico como "diacrônico". Como veremos, essa

denominação somente em parte é correta e carece de

esclarecimentos.

1.2- Os conceitos

Precisemos o sentido dos termos "método",

"histórico" e "crítico".

"Método" designa um conjunto de procedimentos

que permitem acesso mais objetivo a um objeto de

pesquisa. Deve ser transmissível, é preciso que

possa ser ensinado e aprendido. Uma exegese, por

mais bela que seja, e eventualmente também

verdadeira, que não se possa aprender ou repetir

não é um método, mas, quando muito, leitura livre,

que pode ser mais ou menos rica. Os Padres da

Igreja, ou os autores antigos, em particular

quando desenvolvem a exegese alegórica, no sentido

negativo habitual da palavra, mas também certas

interpretações "espirituais" modernas, dão muitas

vezes a impressão de uma exegese que pode ser

aceita ou rejeitada sem argumentos intrínsecos à

interpretação. O "método" então deve ser

compreensível, imitável e controlável com

elementos ao alcance das mãos de quantos têm certa

familiaridade com a disciplina a que se dedicam.

O termo "histórico" implica reconhecer que os

textos bíblicos foram concebidos e compostos em

tempos idos, que se desenvolveram num processo

histórico e que, por conseguinte, a relação com

aquele tempo tem provavelmente algo a dizer sobre

o sentido de tais textos, embora possam ter ainda

vida e sentido atuais.

A palavra "crítico", tal como se costuma

interpretar, significa estabelecer distinções e

com base nelas poder julgar os diversos aspectos

do texto ligados à história: o processo de

constituição do texto, a identidade do autor, o

tempo da composição, a relação com outros textos

contemporâneos, e a referência do conteúdo do

texto à realidade extratextual (por exemplo, a

Page 55: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

55

história política, social e religiosa que o texto

subentende).

Esse aspecto "crítico" está ligado, talvez

necessariamente, a aspectos ideológicos. Certos

pressupostos políticos ou religiosos, gerais ou

próprios de determinado período da história,

favorecem determinada interpretação dessas

realidades. A descoberta, na metade do século

passado, de textos do Oriente Próximo antigo, em

que também se fala da criação e do dilúvio, levou

exegetas como Loisy, professor do Institut

Catholique de Paris, a concluir que a inspiração

ou a inerrância da Bíblia eram conceitos

definitivamente superados. Suas conclusões não

eram resultados da aplicação do método histórico-

crítico, mas de certa tendência racionalista da

época, que ele compartilhava. Não obstante essas

conclusões ilegítimas, a aplicação do método

histórico-crítico obrigou a teologia a repensar as

próprias concepções sobre a verdade e a inspiração

da Bíblia, repensamentos que foram atingindo

progressiva clareza nos documentos da Igreja, até

chegar à Constituição dogmática Dei verbum do

Concilio Vaticano II.

Com base nessas observações, podem-se

descrever os métodos histórico-críticos como

aqueles que, de um ponto de vista histórico,

buscam explicar todo texto a partir de seus

pressupostos e entender sua intenção original. De

um ponto de vista crítico, buscam entender os

textos da maneira mais diferenciada possível, seja

no que diz respeito à sua compreensão original,

seja no que diz respeito às interpretações

sucessivas que o texto — ainda em seu processo de

crescimento — foi recebendo.

1.3- Os limites dos métodos histórico-críticos

Entre os limites do método não se deveria

mencionar, como acontece muitas vezes, a

dependência de determinada situação histórica e

cultural em que as pessoas se tornam, a partir do

século XVI, conscientes da historicidade do ser

humano. Este fato em si é positivo e significa

avanço no amadurecimento da consciência humana —

Page 56: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

56

ainda que esse processo nos tire a segurança

espiritual oferecida pela concepção segundo a qual

o ser humano move-se, sempre igual a si mesmo, na

esfera provisória e reduzida de sua existência

pessoal antes de se confrontar, na morte, com as

realidades eternas do céu e do inferno.

A consciência da história confere densidade

espiritual à vida sobre a terra. É lógico então

que se reflita e se queira saber acerca do devenir

do ser humano e sobre tudo o que o envolve, assim

como também acerca do devenir de sua fé, de sua

imagem de Deus, das próprias sagradas Escrituras

sobre as quais suas convicções se apoiam.

Também não se deveria considerar limite

decisivo certa maneira de conceber a história e os

métodos para chegar a seu conhecimento. Todo

método, em qualquer campo, nasce ligado ao cordão

das pré-compreensões culturais. Apenas é preciso

tornar-se progressivamente conscientes, para poder

controlá-lo e educá-lo.

Gostaríamos de mencionar três limites que deve

levar em conta o exegeta que usa o método

histórico-crítico:

• O primeiro é a dificuldade de estabelecer

relação objetiva entre o método histórico-crítico

e outros resultados válidos obtidos por outras

interpretações, como, por exemplo, pela

interpretação tipológica que o NT faz de certas

passagens do AT, pela exegese alegórica dos

Padres, ou pela leitura teológica do Magistério da

Igreja. De que forma o método histórico-crítico,

que em Is 7—8 descobre uma mensagem político-

religiosa do profeta Isaías ao rei Acaz, põe-se de

acordo com a interpretação que faz da passagem Mt

1,23 ("Eis que a virgem conceberá e dará à luz um

filho") aplicando o texto ao nascimento de Jesus,

que depois se retoma como formulação teológica da

Igreja?

• O segundo limite, próprio de qualquer método

exegético, é a contra-parte teológica e espiritual

do primeiro. É sua incapacidade de nos fazer

atingir certas verdades teológicas ou de fé,

verdades de salvação, que a Escritura nos quer

Page 57: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

57

transmitir. Essas, com efeito, absolutamente não

dependem do conhecimento histórico, nem da

interpretação que dele se deriva. Como passar da

leitura histórico-crítica de Gn 2—3 às formulações

teológicas do pecado original? Em que nível deve-

se colocar a integração dos resultados dos

diversos métodos, neste caso o método exegético e

o método teológico? Talvez se deva afirmar que o

método histórico-crítico atinge negativamente a

verdade histórico-salvífica, na medida em que nos

protege do perigo de entrar por caminhos errôneos,

de depositar nossa confiança em hipóteses

insustentáveis.

• O terceiro limite é a incapacidade de o método

histórico-crítico abrir-se a uma interpretação

atual do texto, superando assim a distância entre

texto e leitor. Uma solução parcial dessa

dificuldade vem da aplicação do método não apenas

a uma fase do texto — a primeira e originária —,

mas também às fases sucessivas, pelo menos no

interior da própria Escritura. Há, contudo, um

último passo rumo ao leitor atual que o método

histórico-crítico não está em condições de dar,

devendo deixá-lo por conta dos métodos

hermenêuticos. Mas essa dificuldade os métodos

histórico-críticos compartilham com outros métodos

exegéticos (criticismo retórico, estruturalismo,

narratologia).

1.4- A prática dos métodos histórico-críticos

A apresentação dos métodos histórico-críticos

inicia-se freqüentemente com uma introdução à

crítica textual. Este é na verdade o primeiro

passo para decidir sobre a "constituição", os

limites, a unidade e a forma de um texto. Que

texto escolher para leitura válida da sagrada

Escritura? Uma tradução qualquer (como faz o

estruturalismo), uma tradução eclesiástica

autorizada, como, por exemplo, a de uma

Conferência episcopal, o texto massorético (TM),

ou seja, o texto hebraico vocalizado, o texto

consonântico, a tradução grega dos Setenta (LXX),

uma reconstrução do texto hebraico a partir do

Page 58: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

58

grego, ou a versão latina chamada Vulgata? E, no

seio dessa escolha, como resolver os problemas das

ambigüidades?

Falamos de "métodos histórico-críticos", no

plural, porque vários métodos coincidem com a

descrição geral proposta acima. Cada um deles tem

suas técnicas próprias e uma finalidade

particular, mas se vinculam estreitamente. Tanto

que se poderia falar de diversos momentos ou

etapas do mesmo método, não fosse o fato de que

nem sempre nem necessariamente podem ser

desenvolvidos todos os momentos do método a

respeito de todo texto. É, finalmente, problema de

nomes, que não é preciso discutir em particular.

Esses métodos, ligados estreitamente entre si,

não permitem total liberdade de escolha (eu

utilizo este, eu aquele outro), nem toleram ser

usados em ordem arbitrária (eu começo daqui, eu de

lá).

Uma ordem bastante lógica de apresentar os

métodos histórico-críticos, ou os momentos do

método histórico-crítico (como tentaremos

justificar em seguida), é a seguinte. Por um lado,

temos:

a) a "crítica da constituição do texto" (que

corresponde ao conceito alemão de Literarkritik).

A palavra alemã Literar- não qualifica o tipo de

Kritik, mas designa o objeto sobre o qual se

exerce a crítica, ou seja, um "texto literário" no

sentido geral de "texto que encontrou forma

escrita", e isso em oposição à Traditionskritik

que trabalha sobre prováveis tradições orais

subjacentes ao texto. A tradução do conceito

alemão muitas vezes usada, "crítica literária",

exige especificação de sentido, uma vez que faz

pensar, nas línguas românicas, em estudo no

interior da ciência da literatura, sentido que não

se faz presente na expressão alemã;

b) a crítica da redação e da composição, que na

terminologia alemã se chamam Redaktionskritik e

Kompositionskritik;

c) a crítica da tradição e das fontes do texto

(Überlieferungskritik e Quellenkritik).

Page 59: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

59

Por outro lado, temos:

a') a crítica da forma (Formkritik);

b') a crítica do gênero literário

(Gattungskritik)',

c') a crítica das tradições (Traditionskritik).

Evitamos usar aqui termos freqüentes como

"história das formas" (Formgeschichte) ou

"história da tradição" (Traditionsgeschichté), que

são muitas vezes empregados como sinônimos dos

termos precedentes, mas designam realidades

derivadas das anteriores. Esses termos, com

efeito, não designam métodos, mas os eventuais

resultados da aplicação dos métodos histórico-

críticos. Quando uma forma literária foi

identificada, é possível determinar a história

dessa forma literária no interior de uma

literatura.

A necessidade de distinguir esses dois grupos

de métodos é condicionada pela realidade dos

textos: a aplicação de um grupo de métodos ou de

outro é, aliás, o resultado da percepção correta

ou errônea do exegeta.

Se um texto aparece como unidade clara, o

exegeta poderá começar com o segundo grupo de

métodos. Se, porém, sua unidade é problemática,

não obstante um primeiro esforço de encontrar um

sentido total, será preciso começar por inquirir a

"constituição do texto". A palavra "unidade" é

usada na exegese em dois sentidos. Por um lado,

designa a qualidade de um texto, dotado de

unidade; por outro, designa o próprio texto que

possui tal qualidade, que é uma "unidade textual"

ou "unidade de texto".

O conceito de "unidade de texto" é relativo.

Pode referir-se a uma "pequena unidade", ou seja,

à menor quantidade de texto que possui sentido

completo (por exemplo, uma cena de um relato, um

oráculo profético, um poema no interior de uma

coletânea). Mas também pode referir-se a conjunto

mais amplo (um "ciclo de histórias patriarcais",

uma coletânea de oráculos ou poemas, um poema

inteiro, como o Cântico de Salomão em determinada

Page 60: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

60

interpretação). O trabalho de crítica da

constituição do texto costuma começar pelas

unidades menores.

A decisão do exegeta acerca da necessidade da

crítica da constituição do texto pode prejudicar a

totalidade de sua pesquisa e levar à superava-

liação crítica e racionalista de certos elementos

do texto para chegar a mostrar sua não-unidade,

coisa que uma atitude mais positiva em prol da

unidade teria podido evitar. O hipercriticismo

nesse sentido esteve muito em voga nos primeiros

cinqüenta anos deste século e em parte é culpado

pela perda de credibilidade do método.

Qualquer que seja sua decisão inicial, o

exegeta honesto deverá sempre ter olhos abertos

para a possibilidade contrária da escolha feita.

Ao tratarmos dos métodos, iniciaremos com o

primeiro grupo, sem querer afirmar — como já

dissemos — que seja sempre necessário partir da

crítica da constituição do texto.

1.5- A crítica da constituição do texto

A finalidade desse método é dupla:

• delimitação do início e do fim do texto;

• prova de sua unidade.

Somente quando se constatam esses elementos, de

modo intuitivo em casos óbvios, ou analiticamente

quando o requer o caso, é que se pode falar — se

bem que ainda não definitivamente, porque faltam

outras características — de "texto" em sentido

próprio. Se não for assim, estaremos diante de

certa quantidade de palavras que não constituem um

texto.

Os dois problemas, a delimitação e a prova da

unicidade do texto, estão estreitamente

vinculados. Com efeito, duas unidades textuais

diversas podem parecer ao leitor leigo um único

texto pelo fato de seguirem um ao outro sem sinais

formais de início ou de fim (título ou capítulo),

caso freqüente nos textos proféticos.

1.6- Delimitação do texto

Page 61: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

61

Na literatura moderna, pode-se reconhecer o

início e o fim de um livro, de um capítulo ou de

uma seção também tipograficamente. A delimitação

do início e do fim de um texto na Bíblia, porém,

faz-se necessária por seu caráter antológico, caso

em que nem sempre a ordem ou a sucessão são

evidentes. Muitos textos foram incorporados num

"livro" bíblico sem nenhuma razão evidente. A

delimitação torna-se, portanto, necessária para

saber qual é a mensagem de um texto.

Se, por exemplo, os oráculos proféticos de

condenação jamais tivessem fundamento, poder-se-ia

pensar que a condenação é mero capricho divino, e

que, sendo assim, a imagem de Deus que têm os

profetas é simplesmente inaceitável.

Por certo, o leitor poderá sempre cortar um

texto onde lhe aprouver, e deixar fora dele o que

não lhe agradar. Nessa altura, porém, o texto já

não é meio de comunicação entre emissor e

destinatário, mas mera realidade física (palavras

escolhidas) à qual se atribui um sentido, mesmo

contra o sentido pretendido pelo emissor.

1.7- Unidade do texto

O exame da unidade de um texto bíblico é

necessário pela convicção, partilhada hoje pela

grande maioria dos exegetas (com exceção de certas

tendências fundamentalistas), de que a literatura

bíblica, não só como conjunto, mas também como

unidades menores (livros, seções de livros, perí-

copes), passou por processo de evolução e

crescimento, de modo que poucas unidades textuais,

e provavelmente nenhum "livro bíblico", pelo menos

do Antigo Testamento, nos tenham chegado na forma

em que saíram das mãos de um primeiro autor-

redator.

Esse fato não criaria dificuldade se os textos

tivessem atingido tal unidade que tornasse

supérflua a pesquisa sobre a pré-história do texto

atual. Torna-se, porém, condição sine qua non da

interpretação quando o próprio texto deixa

entrever suas diversas fases de vida independente.

A determinação da unidade de um texto é

importante, portanto, para a compreensão do

Page 62: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

62

próprio texto, não para identificar seu autor.

Esse era, porém, o ponto de vista na época em que

a autenticidade de um texto — sua pertença ao

autor ao qual se atribuía — era considerada ligada

a seu valor como texto inspirado ou canônico.

Por isso, também no caso de um texto que por sua

natureza nasceu da justaposição de elementos —

como por exemplo as coletâneas de leis —, o estudo

da unidade e, portanto, de sua evolução é

importante, para entender não o sentido de uma lei

em particular, mas a história da legislação e da

mentalidade jurídica de um grupo humano.

O estudo da unidade do texto, portanto, ainda

é válido e útil mesmo que se tivesse a certeza de

autor único, se ele faz afirmações incompatíveis

com certa linha unitária de pensamento.

1.8- A crítica da redação (e da composição)

O objeto da crítica da redação, assim como o

da crítica da composição, é um texto não-unitário.

Supõe, portanto, que tenha havido processo de

crescimento do texto. Se um texto se manifestasse

como absolutamente unitário e homogêneo, não

haveria espaço para a crítica da redação. Um texto

unitário (A) pode eventualmente ser encontrado em

texto não-unitário (B). A crítica da redação então

não procederá a partir de (A), mas de (B), e será

crítica da redação desse último texto, que

precisamente não é unitário. Essa maneira de

considerar a crítica da redação elimina perguntas

a priori inúteis, como, por exemplo, se um texto

foi composto para "viver por si" ou para integrar-

se em um complexo mais amplo.

Se a finalidade da crítica da constituição do

texto era apenas constatar a existência de

diversos estratos de texto, cabe à crítica da

redação mostrar a relação entre eles. À redação, e

portanto à crítica da redação, interessa não só o

texto redacional que se acrescenta ao texto de

base mas também esse último.

A crítica redacional pergunta-se qual teria

sido a cronologia das intervenções redacionais,

quais os recursos utilizados por cada uma delas,

Page 63: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

63

quais suas peculiaridades culturais e religiosas,

qual a intenção das diversas reelaborações,

confrontando-as umas com as outras, e essas com a

intenção do texto original. Só como conseqüência

de tudo isso se poderá ainda tentar identificar os

autores dos diversos níveis do texto.

1.9- A crítica da transmissão do texto

Reserva-se, o termo "transmissão do texto"

mais propriamente, como fazem diversos autores e

também nós, ao processo da transmissão oral. Sendo

assim, não inclui as fases sucessivas da gênese do

texto escrito que cabem ao trabalho redacional.

Abandonamos, portanto, neste momento do método

histórico-crítico, o território seguro do texto

escrito, para nos aventurar pelo campo mais

fantasioso e dificilmente controlável, mas

absolutamente real, das tradições orais.

Pressuposto da crítica da transmissão do texto

são a existência e a importância da tradição oral

como meio de preservar o patrimônio cultural.

1.10- A crítica da forma

"Forma" significa para nós, em oposição a

"conteúdo", todos os aspectos de um texto que

"conformam" ou configuram sua peculiar

personalidade. A "forma" é a carteira de

identidade de cada texto.

O objeto da crítica da forma é o texto

escrito, determinado pela crítica da constituição

do texto e eventualmente pela crítica da redação,

quer se trate de uma unidade de base, de um

fragmento, de uma expansão ou do texto composto em

sua fase final. Neste último caso, a crítica da

forma deverá proceder por partes, indagando

sucessivamente sobre cada elemento, mas também

levando em conta fenômenos lingüísticos que se

referem ao estado final do texto e talvez o

expliquem.

A crítica da forma diz respeito a todo aspecto

propriamente lingüístico de um texto. Os aspectos

lingüísticos organizam-se em cinco ambientes

diversos: fonemático, sintático, semântico,

estilístico e estrutural. Os quatro primeiros

Page 64: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

64

ambientes dizem respeito a cada um dos três níveis

de elementos constitutivos da linguagem, ou seja,

fonema, proposição e morfema/ lexema. O último

ambiente, o estrutural, trabalha, ao contrário,

somente no nível da proposição e, mais ainda, do

texto.

1.11- A crítica do gênero literário

Determinar o gênero literário é de particular

importância no caso de textos que fazem parte de

mundo cultural diferente do nosso. A Bíblia contém

gêneros literários tais como listas de nomes ou

genealogias, que no mundo moderno fazem parte da

burocracia estatal ou de institutos de pesquisa

heráldica.

Esse problema pesou sobre a interpretação de

textos bíblicos por longo tempo. O caso clássico é

Gn 1—11. Mas de vez em quando ainda se fazem

tentativas de leitura sociopolítica de textos que

não parecem permitir semelhante abordagem.

A função e o sentido de um texto só poderão ser

descobertos em muitos casos ambíguos a partir da

justa determinação de seu gênero literário, e da

precisa descrição e compreensão desse gênero.

É bem diversa a imagem teológica que

proporciona o relato da ascensão de Jesus quando

se o lê como se fosse relato único ou tendo como

fundo o gênero literário do arrebatamento ao céu

ou do desaparecimento misterioso de personalidades

célebres (Moisés, Elias).

É preciso distinguir entre forma e gênero

literário. Forma é, como dizíamos antes, o

conjunto dos elementos lingüísticos — fonemáticos,

sintáticos, semânticos, estilísticos e estruturais

— que dão fisionomia precisa e única a um texto.

Gênero literário, ou tipo de texto, é, ao

contrário, uma abstração lingüística que permite

associar na mesma categoria os textos que possuem

forma literária semelhante.

1.12- A crítica das tradições

O último passo do método histórico-crítico

parte também da unidade textual sob estudo,

todavia não para estabelecer eventuais momentos de

sua evolução literária (crítica da redação) ou

Page 65: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

65

pré-literária (crítica da transmissão oral dos

"textos" que antecedem ao texto escrito), mas para

indagar sobre seu hinterland cultural — no sentido

mais amplo da palavra, compreendendo a religião e

a teologia.

A crítica das tradições é equivalente, em seus

pressupostos, à crítica do gênero literário: mas,

com respeito a esta, implica um passo à frente do

ponto de vista metodológico, um passo atrás do

ponto de vista histórico.

Para fechar uma áspera discussão política, uma

pessoa mais jovem dizia a uma mais velha:

"Pertencemos a gerações diferentes". Esta

respondeu: "Não, lemos livros diferentes".

A crítica das tradições busca descobrir "os

livros" que leu o autor, e que contribuem para

fazer entender sua mensagem, ou seja, as

influências que sofreu de:

• motivos literários, como a criação do homem do

barro, a "mulher estéril curada", ou "o justo

sofredor";

• imagens como os querubins e as serpentes,

guardiães e assistentes da divindade; ou os

exércitos celestes de lahweh;

• conhecimentos, como a semana de sete dias ou os

antigos códigos legislativos:

• concepções, como a libertação da escravidão, a

inviolabilidade de Sião, o dia de lahweh e o

templo como morada da divindade;

• crenças, como a relação pobreza-justiça-

riqueza, ou a correspondência entre pecado e

punição imediata.

Todos esses elementos são, em sentido amplo,

tradições culturais que os autores sagrados

receberam, seja da própria cultura bíblica que os

precedera, seja da cultura do Oriente Próximo

antigo, ou de uma cultura geral não mais

identificável.

Em sentido estrito, é preciso distinguir entre

uma tradição já constituída e os elementos

(motivos, imagens, conhecimentos, concepções,

crenças) que se integram no decorrer do tempo para

chegar a constituí-la.

Page 66: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

66

A crítica das tradições é instrumento útil

para entender o fundo cultural e histórico em que

se desenvolveu o pensamento de um autor e para

descobrir as relações entre diversos elementos

presentes na história de um povo, que sem essa

reflexão permaneceriam isolados, como produto

próprio de uma personalidade de destaque. Assim a

crítica da tradição permite uma aproximação mais

abrangente da história cultural e religiosa de um

grupo humano.

2- Sincronia: a análise narrativa JEAN LOUIS SKA

2.1- A narrativa e a exegese bíblica

No fim da parábola do filho pródigo, o pai diz

ao filho mais velho, que se recusa a participar do

banquete pela volta do irmão: "Meu filho, você

está sempre comigo, e tudo o que é meu é seu; mas

era preciso fazer festa e alegrar-se, porque esse

seu irmão estava morto e retornou à vida, estava

perdido e foi reencontrado" (Lc 15,30s). A

parábola termina com essa frase, antes de o filho

mais velho ter podido responder. Ignoramos,

portanto, se cedeu ou não às razões do pai. Mas,

se o filho mais velho não responde, quem escreverá

a conclusão que não se encontra no evangelho?

Esse gênero de problemas é peculiar a um novo

método exegético dito "narratologia". Esta

sublinha no texto os pontos interrogativos, as

lacunas e as elipses que interrompem o fio da

narrativa. Além disso, e é ponto essencial desse

método, ela mostra como esses indícios são sinais

dirigidos ao leitor. Cabe a ele responder a essas

interrrogações. E sem sua resposta o texto fica

incompleto. Em outras palavras, a narrativa requer

contribuição ativa por parte do leitor para

tornar-se o que realmente é. Certamente, essa

contribuição não é arbitrária, e a narratologia

lhe fixará as regras, mas nem por isso a parte do

leitor é dispensável. As narrativas dormem até o

leitor vir despertá-las de seu sono.

Page 67: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

67

2.2- A Bíblia e a literatura

A narratologia ou estudo narrativo dos relatos

é posta em relação com os recentes

desenvolvimentos dos estudos no campo da

lingüística e da crítica literária. A exegese

bíblica beneficiou-se de sua contribuição mediante

certo número de análises que trataram a Bíblia

antes de tudo como fenômeno literário.

O sentido de uma narrativa é o resultado de

uma ação, ou seja, de um processo de leitura. Isso

significa que é impossível separar o sentido de um

texto em geral e de uma narrativa em particular do

"drama da leitura", para empregar o vocabulário de

M. Sternberg. Os métodos da exegese clássica, ou

seja, histórico-crítica, tendem a considerar o

texto antes de tudo documento que fala do passado.

O intérprete serve-se do texto para atingir o

mundo que se esconde por trás do texto. A exegese

literária influenciada pela assim chamada Nouvelle

critique vê no texto não mais um documento que

conduz para um além de si mesmo, mas um monumento

que merece plena atenção em si mesmo. Qualquer

texto é um todo coerente de que é preciso elucidar

as estruturas expressivas, sem nenhuma referência

nem ao universo do autor, nem ao do leitor, nem ao

mundo externo. O texto é um universo fechado em si

mesmo. Para o método narrativo, é um evento vivido

pelo leitor. Assim como a música de uma partitura

permanece morta até o intérprete a executar, assim

também o texto permanece letra morta até o leitor

lhe dar vida no ato da leitura. Mas não será

arbitrária essa leitura? E o confronto com a

literatura moderna, com a literatura da fiction,

não será perigoso? não será falso, no final das

contas? Tais objeções são sérias e merecem

resposta circunstanciada. E estão de mais a mais

interligadas.

2.3- Os princípios da leitura ativa

Antes de tudo, é óbvio que a leitura narrativa

não elimina as outras abordagens. Assim, R. Alter

e M. Sternberg insistem, ambos a seu modo, na

necessidade de incluir no estudo os principais

Page 68: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

68

resultados da exegese histórico-crítica, entre

outros, o fato de os textos bíblicos serem em

geral compósitos. Todavia — retomando uma idéia

diretriz de vários exegetas —, é preciso estudar

os princípios adotados pelos últimos redatores que

deram ao texto bíblico sua forma final.

O ato da leitura não é ingênuo, devendo assim

respeitar as convenções que o texto fornece ao

leitor. Se o texto provém de outra época, é

preciso buscar as convenções próprias de então

para interpretá-lo corretamente.

Do mesmo modo, o método narrativo deve

respeitar a estrutura lingüística e estilística

das narrativas. É partindo de exame preciso e

rigoroso dos diversos elementos do estilo e da

forma que é possível determinar a direção que toma

a narrativa. Nesse sentido, o método narrativo

muitas vezes se afasta bastante das escolas que

tendem a impor aos textos esquemas preesta-

belecidos. Estes podem ser válidos, e o são o mais

das vezes, mas sua aplicação não pode fazer jorrar

do texto um sentido tão genérico quanto os

próprios esquemas. O método narrativo é mais

pragmático, pois prefere proceder por indução. Por

outro lado, ele não se limita a estudo meramente

estilístico. Numa narração, o estilo fornece

indicações que revelam o movimento do texto e

permitem acompanhar o traçado dos "percursos

narrativos" ou das "transformações", se nos é

permitido empregar essa linguagem técnica.

Essas poucas observações mostram

suficientemente como esse método leva em conta

antes de tudo as transformações e o progresso da

narrativa. O aspecto dinâmico é primário na

leitura narrativa.

2.4- Alguns princípios básicos da análise

narrativa

A análise narrativa é um tipo de análise que

se aplica, enquanto tal, unicamente ao gênero

literário dos relatos. Faz parte de um movimento

que se desenvolveu no campo dos estudos literários

Page 69: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

69

há mais de quarenta anos, chamado, segundo as

épocas culturais ou lingüísticas, New criticism,

Werkinterpretation, explication du texte. No campo

exegético, os primeiros defensores desse método

criticaram a fundo os métodos mais clássicos, em

particular o histórico-crítico. R. Alter, por

exemplo, falando da exegese clássica, usa a

expressão excavatiue exegesis, exegese preocupada

em escavar no passado dos textos. Mas não existe,

em princípio, incompatibilidade entre esses

diversos métodos, que tendem antes a completar-se

mutuamente, como veremos. As soluções de

continuidade ou as tensões que os exegetas

encontram muitas vezes em muitos textos

veterotestamentários aparecem claramente a todo

aquele que estuda honestamente as tramas dos

próprios relatos. Por outro lado, um maior

conhecimento das técnicas narrativas usadas pelos

autores bíblicos permite evitar juízos apressados

sobre aquelas que podiam parecer em certos casos

incoerências e que se revelam, num exame mais

aprofundado, como convenções literárias. Além

disso, a análise narrativa estende sua pesquisa às

técnicas de composição usadas pelos redatores de

textos compósitos e por autores de acréscimos

redacionais. Mas sua finalidade fundamental é

diversa. Ela consiste em compreender qual é o

itinerário que o texto propõe ao leitor: as

perguntas que lhe são postas, os elementos de

resposta que aí se podem encontrar, as impressões,

as idéias, os valores e os juízos que se lhe

oferecem e a síntese que só ele pode operar.

2.5- As principais etapas da análise

2.5.1- A trama

A trama ou enredo é o elemento essencial de um

relato, o que preside à disposição de seus

diversos componentes. Essa disposição é sobretudo

cronológica ou, pelo menos, supõe uma cronologia

da "história" ou "diegese". E essa ordem

cronológica supõe, por sua vez, uma forma de

seqüência lógica: post hoc, propter hoc. Quando

dois elementos seguem-se num relato, é

Page 70: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

70

praticamente inevitável pensar que o primeiro seja

a causa do segundo.

a)- Trama de ação — trama de revelação

A partir de Aristóteles, os críticos

distinguem dois grandes tipos de trama: a trama de

ação e a de descobrimento ou revelação.

Numa trama de ação, o relato descreve uma

mudança de situação, ou a passagem de uma situação

inicial feliz a uma situação final infeliz, ou

vice-versa. O momento em que acontece a passagem

chama-se em grego peripeteia ("mudança da

situação").

Numa trama de revelação, o problema é antes de

tudo questão de conhecimento, e o relato descreve

a passagem da ignorância inicial ao conhecimento

final. O momento do descobrimento ou da revelação

chama-se em grego anagnorisis ("reconhecimento").

Muitos relatos combinam juntos esses dois

tipos de trama. Assim, a história de José descreve

a passagem do conflito inicial à reconciliação de

Gn 45 a 50. Trata-se, pois, de uma mudança de

situação. Mas, para reconciliar-se com os irmãos,

José deve também se fazer reconhecer por eles.

Eles ignoram quem seja o grão-vizir do Egito que

os recebe e os põe à prova. A mudança de situação

(peripeteia) coincidirá com o momento do

reconhecimento (anagnorisis) (Gn 45,1-4). Gn 22

apresenta antes de tudo uma trama de revelação:

Deus põe à prova Abraão porque quer "saber" se o

teme. O v. 11 é o momento da anagnorisis: "Agora

sei que temes a Deus..." Essa intervenção divina

põe fim à prova de Abraão e corresponde, portanto,

também a uma peripeteia. Gn 38 é outro exemplo de

relato em que ação e movimento caminham pari

passu. A "situação" de Tamar muda no momento em

que o sogro "reconhece", mediante as provas por

que a faz passar, que a nora é "justa" e que ele

errou (Gn 38,25-26).

b)- Trama unificada e trama episódica

Os autores distinguem também entre trama

unificada e trama episódica.

Numa trama unificada, cada episódio tem sua

importância. Está claramente ligado ao que o

Page 71: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

71

precede e tem peso imediato sobre o que o segue.

Em outras palavras, todos os episódios são

necessários ao desenvolvimento da trama. Exemplos

de trama unificada: o Livro de Jonas, o Livro de

Rute, o Livro de Ester, a história de José, a

história da sucessão de Davi.

Numa trama episódica, o nexo entre os

episódios é mais frouxo. A ordem dos episódios

pode ser invertida, o leitor pode facilmente

saltar um episódio e passar diretamente ao

seguinte, uma vez que todo episódio forma uma

unidade em si e requer do leitor apenas um

conhecimento geral da situação e dos personagens

para ser entendido. A unidade de uma trama

episódica é dada com freqüência pela presença de

um mesmo protagonista. Exemplos de trama

episódica: a história das origens (Gn 1—11), a

história de Sansão (Jz 13-16) e o Livro dos Juizes

em geral.

Certamente, também aqui cada "relato" é mais

ou menos unificado ou mais ou menos episódico. O

ciclo de Abraão é menos unificado que o de Jacó, e

este último menos que a história de José.

2.5.2- As subdivisões da trama

a)- O modelo clássico

No modelo clássico, seguido por muitos

exegetas, os diversos momentos de uma narração são

a exposição, o início da ação, a complicação, a

resolução e a conclusão.

A exposição contém os elementos que o leitor

deve conhecer para compreender a ação antes de seu

início. Trata-se, em geral, de certo número de

informações sobre os atores e as principais

circunstâncias da ação (lugar e tempo). Na

diegese, os dados da exposição precedem

logicamente ao início da ação. No relato real, ao

contrário, a exposição pode encontrar-se

logicamente no início do relato, recolhida num só

ponto no interior do relato, ou as informações

podem ser dadas pouco a pouco, aqui e acolá,

quando se demonstrarem mais úteis. No Livro de

Rute, por exemplo, o relato fornece as principais

informações da exposição num "sumário": a

Page 72: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

72

carestia, a estadia de Elimelec e Noemi no

território de Moab, a morte de Elimelec, o

casamento dos dois filhos de Noemi e a morte deles

(Rt 1,1-5). Em seguida serão fornecidos outros

dados do quadro do relato: a existência de um

parente próximo, Booz (2,1), o fato de ele ser um

possível "redentor" (2,20), a existência de outro

redentor (3,12) e de um campo que pertence a Noemi

(4,3). Em geral, na exposição encontram-se as

formas verbais utilizadas para o "quadro" e para o

"fundo" do relato (sobretudo o imperfeito).

O início da ação (inciting moment) é o momento

em que aparece pela primeira vez o problema ou o

conflito do relato. Ora, ele pode aparecer de

diversos modos. A esterilidade de Sara (Gn 11,30)

é ao mesmo tempo um elemento da exposição e o dado

que contém o principal problema de todo o ciclo de

Abraão. O conflito entre José e seus irmãos

aparece já em Gn 37,4. Em outros casos, no início

da ação do relato encontra-se uma ordem, como a de

Deus a Jonas (Jn 1,2), como as instruções da

missão de Moisés (Ex 3-4) e a vocação de Abraão

(Gn 12,1-3).

A complicação corresponde às diversas etapas

que conduzem à solução do conflito ou do problema:

as diversas tentativas de resolver o problema, as

etapas de um itinerário, as mudanças progressivas

etc. Os relatos comportam um "obstáculo" que

retarda a solução e aparece desde o início do

relato. Para sublinhar essas diversas etapas, as

narrativas bíblicas usam freqüentemente uma

"estrutura escalar", elementos x = l, o último dos

quais contém a solução. Por exemplo, no fim do

dilúvio Noé manda três vezes um pássaro, e na

terceira vez o pássaro não retorna (Gn 8,8-12). O

anjo de Deus pára três vezes Balaão; na terceira

vez ele se revela ao adivinho (Nm 22,21-35). Ou,

ainda, há dez pragas do Egito e só na décima o

faraó deixa Israel partir (Ex 7-12).

Em geral, o desenvolvimento do relato ou

complicação consta de uma série mais ou menos

longa de cenas e episódios. As narrações hebraicas

utilizam diversos meios para assinalar essas

Page 73: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

73

etapas da ação: formas verbais, fórmulas, mudança

de atores, indicação do tempo e do lugar etc.

A resolução ou solução pode ser, como vimos

acima, uma mudança de situação (peripeteia) ou de

conhecimento (anagnorisis). Desde esse momento, a

tensão dramática diminui quase completamente e o

relato chega rapidamente à conclusão. Assim, a

história de Esaú e Jacó termina com a cena de

reconciliação de Gn 33. Em seguida, o relato

contém somente episódios pouco ligados entre si, e

o leitor se cansa ao querer perceber o fio

condutor (Gn 34-35).

b)- As "cenas típicas"

O termo é derivado dos estudos da literatura

homérica. Trata-se de "tipos" ou "convenções

literárias". Quem quer que tenha lido Gn 12,10-20;

20; 26,1-14 (as três versões da "esposa em

perigo") não pode deixar de reconhecer-lhes um

mesmo esquema. Esse esquema contém certo número de

elementos, em certa ordem, reconhecíveis em todos

os relatos que os utilizam. Todavia, cada relato

real pode permitir-se variações com referência ao

esquema abstrato, acrescentando, suprimindo ou

modificando a ordem e introduzindo novos

elementos. Essas variações em geral evidenciam a

intenção do relato.

Citemos, como exemplo, as principais "cenas

típicas" do Antigo Testamento, além da da esposa

em perigo: encontro junto ao poço: Gn 24; 29,1-14;

Ex 2,15-21; cf. Jo 4,1-42; encontro de um "anjo"

no deserto: Gn 16,6-14;21,14-19; IRs 19,4-8;

relato de vocação: Ex 3,1-4,17; Jz 6,11-24; Is

6,1-11; Jr 1,4-10; hospitalidade oferecida a um

ser divino: Gn 18,1-15; 19,1-3; Jz 6,11-24; 13,2-

24; anúncio de um nascimento: Gn 16,7-14; 18,9-15;

Jz 13,2-24; ISm 1,1-28; 2Rs 4,8-17; cf. Is 7,14-

17; relatos de murmuração no deserto sem castigo

do povo: Ex 15,22-25; 17,1-7; Nm 20,1-13; relatos

de murmuração no deserto com castigo do povo: Nm

11,1-3; 17,6-15; 21,4-10; cf. Nm 13-14; relatos de

milagres realizados com a ajuda de elemento

material: Ex 15,22-27; 17,1-7; 2Rs 2,19-22; 4,38-

41; 6,1-7; plebiscito ou introdução de um chefe ou

Page 74: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

74

de um soberano: Ex 14,1-31; Jz 3,7-11; 3,12-30; 6-

8; ISm 7,2-17; 11,1-15; IRs 3,16-28; Deus que

sanciona a autoridade de seu mandatário: Ex 14,1-

31; Nm 17,16-26; Js 3-4; ISm 12,16-18; IRs 18,30-

39.

Um texto pode naturalmente combinar vários

"esquemas". Enfim, como regra geral, deve-se falar

de "cena típica" quando se dispõe de mais de dois

textos, bíblicos ou extrabíblicos.

2.5.3- Os personagens ou atores

a)- Observações preliminares

Dados o interesse contemporâneo pela

psicologia e a utilização que se faz de certos

textos bíblicos na pregação, existe forte

tendência a "psicologizar" e "moralizar" quando se

depara com personagens dos relatos bíblicos. Sem

negar a legitimidade desse empreendimento, é

preciso afirmar muito claramente que a finalidade

da análise narrativa dos personagens não consiste

nem em reconstruir os moventes ou os processos

mentais que determinaram suas ações, nem em fazer

juízo moral a seu respeito. A leitura visa antes

de tudo a fixar as coordenadas de seus papéis no

interior da trama do relato.

b)- Classificações

Existem diversos modos de classificar os

personagens de um relato. Os especialistas da

literatura contemporânea falam de personagens

dinâmicos ou estáticos, conforme evoluam ou não no

decorrer do relato, de personagens "chatos"

(estereotipados) se permanecem idênticos a si

mesmos, ou "redondos" (complexos) se entregues a

tendências contraditórias durante a narrativa.

Outros preferem classificar os personagens

conforme seu papel na trama: o protagonista ou

ator principal; o antagonista ou adversário

principal; as figuras de contraste, que servem

sobretudo para ressaltar a personalidade dos

outros atores; os agentes ou funcionários, que

realizam ações secundárias; os comparsas.

Enfim, segundo o modelo semiótico, não existem

personagens verdadeiros e próprios, mas funções e

Page 75: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

75

actantes. Esse modelo actancial, bastante

conhecido, comporta seis membros:

Destinador —> objeto —> destinatário

ajudante —> sujeito <— opositor

Esse modelo tem a vantagem de ilustrar

bastante bem os dados de um relato. Note-se que,

no mesmo relato, um mesmo personagem pode

corresponder a diversas "funções actanciais". Em

Gn 24, por exemplo, Abraão deseja encontrar uma

mulher para seu filho Isaac. Abraão é portanto o

"destinador", aquele que enuncia o programa

narrativo. O "objeto" (o termo não tem nenhuma

conotação pejorativa) é a futura esposa, Rebeca, e

o destinatário é Isaac. Abraão encarrega seu servo

dessa missão. Esse servo torna--se, pois, o

"sujeito" do relato, aquele que deve realizar o

programa narrativo. O ajudante, neste caso

específico, é nomeado por Abraão no decorrer da

conversa em que enuncia as condições da missão: é

o anjo enviado por Deus (24,7). Enfim, o eventual

opositor é a mulher escolhida ou a família, que

podem recusar o casamento (24,5.55). Rebeca será,

pois, nesse relato "objeto" e eventual "opositor"

a um só tempo.

Para a análise, é de fundamental importância

perceber exatamente a função de um personagem no

interior de uma trama. Não é certamente difícil

perceber quem é o herói ou o protagonista de um

relato. E menos fácil, porém, definir a função dos

personagens subalternos que o narrador faz

intervir em certos momentos, como um jogador de

xadrez joga esta ou aquela peça para vencer a

partida.

E claro, por exemplo, que as três intervenções

de Judá na história de José são todas decisivas

(Gn 37,26-27; 43,8-10; 44,18-34). Sem elas a

história de José teria tomado rumo muito

diferente. Quanto a Rúben, ele encarna antes o

"contraste", no sentido de que suas intervenções

são infelizes e preparam, por antítese, os

Page 76: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

76

"golpes" decisivos de Judá (cf. Gn 37,21-22.29-30;

42,22; 42,37-38).

Na história de Davi, o general Joab e o

profeta Nata intervém em momentos críticos. Joab

assassina Abner (2Sm 3), obtém o retorno de

Absalão (2Sm 14), decide matar o filho rebelde

contra a vontade de seu pai (2Sm 18,14), depois

faz o rei esquecer por um momento sua dor (2Sm

19,5-9); assassina Amasa, seu rival, chefe das

tropas de Absalão (2Sm 20); enfim, desaconselha ao

rei fazer um recenseamento, e a história demonstra

que o general tinha razão (2Sm 24,3-4). Joab

poderia representar a "razão política" de Davi. O

profeta Nata, por sua vez, seria antes de tudo sua

consciência moral (cf. 2Sm 7; 12,1-15), para se

tornar, com Betsabé, sua "consciência política" em

IRs 1,22-27. É neste momento que Joab perde a

partida. Na realidade ele escolhe outro campo, e

este lhe tira a vida (IRs 2,28-35). Em termos

narrativos, há aqui substituição de papéis: Nata e

Betsabé substituem Joab em momento-chave do

relato.

É na análise dos percursos narrativos que o

papel dos diversos atores surge mais claramente. A

linha de um relato pode tomar rumo inesperado, a

ação pode ser bloqueada, ou pode amadurecer

lentamente uma mudança.

Na história das origens e no ciclo de Abraão,

o "destinador", Deus, intervém com muita

freqüência para dirigir a ação, reconduzi-la a seu

curso inicial ou imprimir-lhe novo rumo. O mesmo

ocorre em muitos relatos do êxodo e da permanência

no deserto. No relato de Jacó e Esaú, os atores

gozam de maior liberdade. Em Gn 27, por exemplo, é

Rebeca quem imprime à trama rumo definitivo. Na

história de José, tudo depende na realidade dos

atores humanos. Os juizes, no livro homônimo, são

"sujeitos" (protagonistas) escolhidos em geral

pelo "destinador", Deus, para desbloquear

situações sem vias de saída. Com Davi, os atores

humanos em geral voltam a retomar as rédeas da

ação. No Livro de Rute, Noemi desempenha o papel

de "destinador", ao passo que no Livro de Ester é

Mardoqueu quem exerce essa função. Concluindo, é

Page 77: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

77

importante perceber que jogo faz cada personagem

na trama e em que coisa pode influenciar seu

curso.

c)- A descrição dos personagens

Diga-se uma vez mais, a finalidade deste item

não é mostrar de que forma se pode analisar o

"caráter" de um personagem, mas antes indicar como

seu caráter determina os percursos narrativos do

relato. Os relatos bíblicos conhecem vários modos

de descrever o caráter dos personagens e sua

ligação com a ação do relato. Elenquemos as

principais possibilidades: o nome do personagem,

sua descrição no início e durante o relato, o uso

do "monólogo interior", o diálogo, a irrupção do

divino por meio de visões, sonhos ou oráculos, ou

o recurso a textos líricos (poesias ou salmos).

Esses momentos da narração em geral não têm como

finalidade principal fazer conhecer a vida

interior do personagem, mas mostrar os moventes de

sua ação.

2.5.4- Narrador, narração e leitor

A estrutura presente em qualquer comunicação

lingüística, e portanto em todo relato, comporta

três pólos principais: o "emissor", a "mensagem" e

o "receptor". Cada um desses pólos envolve

diversas facetas que devem ser atentamente

consideradas na analise. Notemos logo que aí se

estabelece a relação entre o mundo do relato e o

da experiência, entre o mundo representado e o

real, como veremos em seguida.

No esquema clássico proposto pelos críticos

literários, a estrutura de comunicação de um

relato é a seguinte:

autor real // autor implícito —» narrador —»

narração —» narratário —» leitor implícito //

leitor real.

O autor real e o leitor real (todo leitor que

lê de fato o relato) são externos ao relato e

chamados, portanto, de "extradiegéticos". Todos os

Page 78: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

78

demais são internos ao relato ou

"intradiegéticos".

O autor implícito é a imagem do autor

refletida pelo relato, ou seja, a personalidade do

autor, suas preocupações, escolhas de valores,

opções existenciais, assim como resultam do texto

e não, por exemplo, de sua biografia. Quanto aos

escritos bíblicos, só conhecemos, na maior parte

dos casos, o autor implícito. Os textos são as

únicas fontes de informação que possuímos e, no

caso dos livros históricos (Gn—2Rs), os autores

permaneceram anônimos.

Chama-se de narrador a "voz" que narra o

relato. Na maior parte dos casos, como na Bíblia,

a distinção entre "narrador" e "autor implícito"

não tem nenhuma importância, razão pela qual os

exegetas falam de modo geral de "narrador". E útil

a distinção apenas em casos particulares, como

quando um autor põe em cena um personagem que se

relata, mas que o autor desaprova. Nesse caso, o

mundo do narrador e o do autor implícito não

coincidem e a finalidade da leitura é medir essa

distância. A voz do narrador se faz presente de

modo particular nas "intrusões", as observações

que interrompem o relato e voltam-se diretamente

ao leitor. É sempre o narrador o responsável pela

distribuição dos diálogos, e cabem a ele todos os

"ele disse", "ela disse", "eles/elas disseram" dos

relatos bíblicos.

O narratário é o destinatário do relato. Na

maior parte dos casos não aparece no relato e,

conseqüentemente, não se distingue do "leitor

implícito".

O "leitor implícito", por sua vez, é o

destinatário ideal do relato, o "leitor virtual",

"potencial", capaz de decifrar e compreender a

mensagem que lhe envia o autor implícito. Todo

relato supõe esse leitor ao mesmo tempo que o

"constrói" paulatinamente por meio da resposta ou

respostas que o convida a dar no decorrer da

leitura.

Essa estrutura da comunicação narrativa é mais

evidente quando um relato aparece no interior de

outro relato mais amplo. Assim, quando Nata conta

Page 79: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

79

a parábola do pobre e do rico a Davi (2Sm 12,1-

15), Nata é o narrador da parábola e Davi é seu

narratário. O autor implícito é aquele que põe em

cena todo o episódio e deseja "formar" seu leitor

virtual — um membro do povo de Israel — sugerindo-

lhe que interprete moralmente essa parte da

história de Davi. O autor real é o que redigiu o

relato, e os leitores reais são os que de fato o

lêem. É importante distinguir entre "leitor

implícito" e "leitor real". É raro que se enderece

um relato diretamente ao leitor real, razão pela

qual, quando a análise fala de "leitor", em geral

tem em mente o auditório dos relatos e não

diretamente o leitor hodierno. No que diz respeito

ao Antigo Testamento, trata-se portanto de um

membro ideal do povo de Israel, que conhece o

hebraico e busca definir a própria identidade e a

identidade coletiva do povo a partir das

experiências do passado.

Por outro lado, às vezes é preciso distinguir

entre o "leitor virtual" ou "implícito" e os

personagens — intradiegéticos — que podem

representá-lo no relato. Nos relatos da

permanência de Israel no deserto, por exemplo, é

bastante evidente que o leitor virtual é convidado

a tomar certa distância de seus antepassados

rebeldes. O mesmo vale, mutatis mutandis, para a

maior parte dos discursos do Deuteronômio. Moisés

dirige-se aos membros do povo de Israel que

chegaram ao planalto de Moab. Indiretamente, o

autor do Livro do Deuteronômio faz refletir os

"leitores virtuais", pertencentes às gerações

posteriores de Israel, sobre esses discursos de

Moisés. No Novo Testamento é bastante evidente que

o leitor virtual do Evangelho de Marcos não é

chamado a identificar-se em tudo com os

discípulos, especialmente quando esses últimos

demonstram-se incapazes de compreender a mensagem

de seu mestre.

A análise narrativa, ao buscar definir com

maior precisão os contornos do autor implícito e

do leitor implícito, não pode deixar de enfrentar

alguns problemas de crítica histórica. As duas

instâncias narrativas levam na verdade o selo de

Page 80: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

80

seu ambiente histórico. Sendo assim, todo relato

define as próprias relações com o mundo real

mediante as convenções literárias que usa. Também

nesse caso é necessário, portanto, situar o mundo

do texto em relação com seu "referente", o mundo

histórico e real, o mundo da experiência ao qual

reenvia por meio dos códigos que utiliza. Um

relato não é necessariamente puro reflexo de uma

experiência. Ele oferece uma interpretação dela, e

muitos relatos bíblicos buscam não só informar mas

também formar; um relato enraíza-se efetivamente

em determinado mundo e quer transformar

determinado mundo. Essa interação é, em última

instância, o verdadeiro objeto da análise

narrativa. Por outro lado, também é certo que as

divergências, as tensões, as narrações duplas e as

repetições de um relato obrigam a descobrir neles

uma pluralidade de "vozes" e, em última análise,

uma pluralidade de autores.

2.5.5- Ponto de vista

Esta noção, talvez uma das mais sutis da

análise narrativa, foi objeto de muitas discussões

entre os especialistas. Mas no campo bíblico é

melhor limitar-se a uma teoria simples, que aliás

deriva da estrutura da comunicação delineada no

item anterior.

Assim como nessa estrutura de comunicação

existem três pólos principais, assim também há

três "modos" principais de relatar. O "ponto de

vista" ou a "focalização" de um relato é na

realidade um problema de "percepção". A pergunta a

se fazer é: Quem percebe o que se relata? Em

terminologia cinematográfica, o problema seria

saber onde a câmera se encontrava quando foram

filmadas as diversas cenas que se desenrolam na

tela.

Como dissemos acima, existem três "pontos de

vista" ou três "perspectivas": a do

autor/narrador, a do relato ou dos personagens do

relato, e a do leitor. Traduzidos em termos de

percepção e conhecimento, o narrador pode relatar

desde sua própria perspectiva e fornecer ao leitor

todas as informações de que dispõe; pode

Page 81: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

81

contentar-se com descrever o que percebem um ou

mais personagens do relato; enfim, pode limitar a

percepção à de um observador externo.

No primeiro caso, o ponto de vista é o do

"narrador onisciente". Temos "perspectiva" desse

tipo, por exemplo, nos relatos da criação, uma vez

que o narrador pode descrever-nos eventos que

precederam ao aparecimento do primeiro homem e

conseqüentemente não tiveram testemunhas. Ela

poderia ser chamada de "perspectiva total", uma

vez que nenhuma — idealmente — escapa da percepção

do narrador e que a informação do leitor é máxima.

Quando o narrador limita a percepção à dos

personagens, a "perspectiva" é chamada de

"interna" (à dos personagens em questão). Neste

caso, o leitor vê, entende, percebe e compreende o

que vêem, entendem, percebem e compreendem um ou

mais personagens. O leitor não consegue saber nada

a mais que aquilo que sabe e diz determinado

personagem.

Enfim, a perspectiva pode ser "externa". Nesse

caso, o narrador nunca entra no mundo interior de

seus personagens, não revela nada dele, e o leitor

encontra-se na posição de observador externo.

No primeiro caso, o leitor sabe mais que os

personagens; no segundo, quanto sabe o personagem

(pelo menos quanto o personagem que serve de

"focalizador"); e no terceiro sabe menos que ele.

Nos relatos bíblicos, aplicam-se tais noções

não tanto a longos episódios, mas antes a

fragmentos de relato. Em muitos relatos, a

perspectiva é a de um observador externo

(pespectiva externa ou ponto de vista do leitor).

Mas o narrador de vez em quando amplia a

perspectiva e informa o leitor desde o ponto de

vista de narrador onisciente. Ou então escolhe,

para um momento preciso, adotar o "ponto de vista"

ou a "perspectiva interna" de um dos atores do

relato.

Por exemplo, no relato da rebelião de Absalão,

a maior parte dos acontecimentos é relatada

segundo perspectiva objetiva, externa. O leitor

"assiste" a todos os acontecimentos, sem jamais

poder lançar o olhar para o que ocorre nos

Page 82: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

82

bastidores. De vez em quando, porém, o narrador

informa o leitor sobre certo número de coisas que

ficaram por longo tempo secretas ("perspectiva

total" ou "ponto de vista do narrador

onisciente"). Em 2Sm 13,22 temos um primeiro

exemplo disso: "Absalão não disse mais uma palavra

a Amon, nem em bem nem em mal, pois Absalão odiava

Amon pelo fato de ele ter violentado Tamar, sua

irmã". A explicação "pois odiava" é do narrador.

Para um observador, essa explicação é uma das

tantas possíveis: Absalão pode estar prostrado

pela dor, pode ter vergonha etc. Mas a afirmação

do narrador será confirmada em seguida, uma vez

que Absalão assassina Amon (2Sm 13,23-33). A voz

do narrador volta a fazer-se ouvir ao interromper

o relato para descrever Absalão (14,25-27).

Durante a cena da deliberação entre Absalão,

Aquitofel e Cusai (2Sm 16,15-23), o narrador

intervém duas vezes. Na primeira vez explica como

eram então os conselhos de Aquitofel muito

apreciados: "Naqueles dias, um conselho dado por

Aquitofel era como uma palavra dada por Deus a

quem o consulta. Isso valia de todos os conselhos

de Aquitofel para Davi e para Absalão" (16,23).

Por que ampliar a perspectiva e dar essa

informação? Provavelmente porque o leitor tem

necessidade de um guia para interpretar a

situação. Deve compreender que Aquitofel é homem

perigoso, o que não resulta imediatamente do

contexto; Aquitofel, com efeito, acaba de aparecer

em cena, e o leitor ainda não o viu agindo. Neste

caso, a intervenção do narrador é o meio mais

econômico de situar o personagem e sua influência.

Além disso, ele tinha dado somente um conselho a

Absalão, o de freqüentar as concubinas de seu pai

(16,21). O motivo pelo qual Absalão segue esse

conselho não é necessariamente, para o leitor, o

prestígio de Aquitofel. O narrador esclarece por

isso as coisas. Na segunda vez, o narrador diz: "O

Senhor tinha decretado malograr o conselho de

Aquitofel, se bem que fosse o melhor, para fazer

cair a desgraça sobre Absalão" (17,14). Essa

"percepção" dos fatos não pode vir nem de um

personagem nem de um observador. Só o narrador,

Page 83: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

83

que conhece o fim trágico da história, pode

pronunciar essas palavras a partir de seu ponto de

vista "onisciente" e, assim, penetrar até nas

intenções de Deus.

Nos mesmos capítulos, temos um exemplo de

passagem em que o leitor sabe menos que os

personagens ("perspectiva externa"). Dessa vez, o

narrador opta por esconder uma informação a seu

leitor para aumentar a tensão dramática do relato.

No capítulo 14, quando Joab imagina um estratagema

para fazer retornar Absalão, faz vir uma mulher de

Técoa e dá-lhe instruções. Mas, no diálogo, o

narrador refere assim as palavras do general:

"entra para junto do rei e fala-lhe assim e assim"

(14,3). Em vez de dar o conteúdo da mensagem, o

narrador resume-o dizendo: "E Joab lhe colocou na

boca as palavras" (indicou-lhe o que devia dizer).

Hoje se diria: sussurrou-lhe ao ouvido o que devia

dizer. Aí o leitor é observador externo que só

descobrirá a astúcia quando ouvir a mulher falar

com o rei Davi.

No mesmo relato, temos um exemplo de

"perspectiva interna" (capítulo 18, v. 24). Depois

da derrota, Davi acha-se na entrada da cidade e a

sentinela está sobre a torre, esperando que chegue

algum mensageiro. O v. 24 descreve assim a chegada

de Aquimaas, filho de Sadoc: "A sentinela subiu ao

terraço da porta, na muralha. Levantou os olhos e

eis um homem a correr sozinho". Quem vê o homem

correndo sozinho? Certamente é a sentinela. Mas o

texto não diz: Vi um homem correndo sozinho.

Tratar-se-ia então de percepção do narrador. Nesse

trecho, o narrador opta por ver e fazer ver a

chegada do mensageiro com os olhos da sentinela, a

primeira pessoa a vê-lo. Nesse caso, o hebraico

usa a partícula "e eis que" (vehinnêh).

Essa passagem da perspectiva neutra ou total

do narrador para a perspectiva interna de um

personagem é muito clara em dois relatos de

teofania, Gn 18 e Ex 3. No primeiro, o narrador

informa logo seu leitor sobre o conteúdo do relato

que segue com uma espécie de "retomada

proléptica": "O Senhor apareceu [a Abraão] junto

aos Carvalhos de Mamre" (18,1a). O leitor sabe

Page 84: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

84

desde o começo que lahweh em pessoa aparece a

Abraão. O versículo seguinte passa à perspectiva

de Abraão: "levantou os olhos e viu: eis que três

homens estavam de pé diante dele". Para o narrador

é lahweh que aparece, mas na perspectiva de Abraão

trata-se de três homens. No relato da sarçà

ardente, a estratégia narrativa é a mesma. Para o

narrador e o leitor, é o anjo do Senhor que

aparece a Moisés "numa chama de fogo no meio da

sarça" (Ex 3,2a). Moisés, por sua vez, não vê de

início mais que uma chama: "viu, e eis que a sarça

queimava, estava toda em chamas, mas não se

consumia" (3,2b). A mudança de perspectiva é

particularmente freqüente nos relatos de visões e

de sonhos.

2.6- Conclusão

Todo método tem seus pontos fortes e seus

pontos fracos. O método narrativo tem certamente

uma vantagem: aplicar às narrativas bíblicas um

método adequado ao próprio objeto, uma vez que

analisa os relatos como relatos e não só, por

exemplo, como possíveis documentos históricos. Por

outro lado, um método é verdadeiramente rigoroso

quando sabe fixar os próprios limites e não

pretende ultrapassá-los. A análise narrativa tem,

como primeira finalidade, penetrar no mundo do

relato. Seus instrumentos são menos adaptados à

análise das relações entre o relato e o mundo de

experiência. Nesse terreno, os métodos mais

clássicos da exegese histórico-crítica são mais

adequados. Esperemos, pelo menos, que o olhar

sobre o método oferecido nesse capítulo tenha

permitido ver como esses diferentes modos de

praticar a exegese muito mais se completam do que

se excluem. Como o bom artesão, o exegeta não

escolhe primeiro os instrumentos e depois o objeto

a trabalhar. Ele examina longamente o material a

trabalhar e só depois escolhe os instrumentos mais

adequados para o trabalho que deve realizar.

3- Ana-cronia e sincronia: hermenêutica e

pragmática

Page 85: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

85

HORÁCIO SIMIAN-YOFRE

À diferença dos capítulos anteriores, nos

quais nos movíamos em terra segura, conquistada em

decênios de debate, se bem que nem todo problema

tivesse sido resolvido, caminharemos agora em

dunas que mudam de conformação a cada nova

ventania.

"Hermenêutica", tomada aqui no sentido

descritivo que a palavra adquiriu nos últimos anos

na discussão sobre a interpretação da Escritura,

quer indicar uma interpretação que conecta o

sentido histórico do texto com seu significado

para o leitor atual em cada momento da história do

texto. A essa correlação entre significado e

significação correspondem a correlação de

explicação e interpretação, a de Deutung und

Bedeutung e a categoria de "leitura

contextualizada".

Neste capítulo refletimos sobre três

importantes esferas de problemas relativos à

leitura hermenêutica. A primeira diz respeito ao

sujeito da leitura da Escritura, a segunda à

possibilidade e justificação de uma leitura

hermenêutica, a terceira à estratégia concreta que

implica essa leitura.

Por causa das circunstâncias de origem dessas

reflexões, elas manifestam particular preocupação

pela hermenêutica da teologia da libertação, à

qual se referem alguns exemplos. Aplicam-se,

porém, também ao problema da leitura hermenêutica

como tal.

3.1- O sujeito natural da leitura da bíblia

3.1.1- O problema

Quem é o legítimo sujeito da leitura da

Bíblia, e, em correspondência a essa pergunta,

quem é seu destinatário? É sujeito o teólogo ou

biblista, que sabe mais e lê a Bíblia para o povo,

ou é o "povo", a comunidade crente, que, não

obstante suas limitações naturais, lê a Bíblia por

si mesmo, inaugurando assim uma nova forma de

Page 86: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

86

leitura? Tinham necessidade os ouvintes das

narrativas patriarcais ou os ouvintes dos

ensinamentos dos profetas e de Jesus de um exegeta

que lhes interpretasse as palavras que tinham sido

propostas?

Da tragédia grega à oratória latina e às

homílias dos Padres da Igreja, dos grandes textos

dramáticos ingleses, franceses ou espanhóis aos

romances contemporâneos e aos discursos políticos,

todo texto, por sua natureza comunicativa, exige,

em princípio, ser interpretado, não por um

intermediário, mas por seu destinatário final.

Somente as dificuldades técnicas (línguas

mortas, evolução da cultura, estado dos

manuscritos) podem requerer e justificar a ajuda

do mediador. Mas fora desses casos permanece

válido o princípio fundamental de que o

destinatário final é o intérprete legítimo de um

texto.

A grande massa pode ser o destinatário final

de textos orais, grupos particulares de nível

cultural médio o destinatário de textos concebidos

como escritos, e ainda um grupo mais particular

(juristas, cronistas, teólogos) o destinatário de

textos mais ou menos técnicos. Em todo caso, o

destinatário dos textos bíblicos não foram

certamente os especialistas da religião, ou da

sagrada Escritura. Como acontece com os conceitos

fundamentais, não parece que se possa encontrar

argumento decisivo para estabelecer se o povo é

somente destinatário passivo ou também sujeito

ativo da leitura da Escritura.

As afirmações da própria Escritura sobre a

presença do Espírito no povo e na comunidade

cristã favorecem a tese da comunidade intérprete.

Nem sequer a doutrina tradicional sobre o

Magistério da Igreja pode responder à pergunta. A

relação entre o "mestre" da Escritura e o povo

põe-se antes de se chegar ao caso excepcional em

que a autoridade última do Magistério é chamada a

resolver um problema de interpretação.

Quando faltam os argumentos, parece que é o

tempo dos testemunhos. Em diversos ambientes, e

muito intensamente na América do Sul, houve

Page 87: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

87

esforços para retornar a uma leitura popular — do

povo em primeira pessoa — da Bíblia.

Essa interpretação da Escritura, que parte do

povo e endereça-se ao povo, funda a própria

exegese sobre a autoridade do "Sr. Paulo" ou de

"Dona Maria", camponeses desconhecidos que mal

sabem ler e escrever e, em todo caso, não utilizam

esse conhecimento para interpretar a Escritura,

mas reagem com senso cristão a um texto. A pessoa

que coordena o grupo de leitura limita-se a

purificar a sintaxe e o vocabulário, e a eliminar

as repetições. Daí surge uma interpretação da

Escritura que não é a do catequista, mas a do povo

de Deus.

Esse modo de ler a Escritura destaca um

problema da filosofia moderna que a hermenêutica

bíblica muitas vezes esquece: o consenso como

critério de verdade.

Na radical formulação de Jürgen Habermas, se

uma proposição pode ser considerada verdadeira

quando o predicado convém ao objeto, "então e

somente então se pode atribuir um predicado a um

objeto, quando toda pessoa que se pusesse em

comunicação comigo atribuísse o mesmo predicado a

tal objeto".

Como teoria geral da verdade essa formulação

recebeu numerosas críticas, e deveria ser

precisada de muitos modos, como o próprio Habermas

o fez sucessivamente. Ela oferece, porém, um

elemento importante para a reflexão hermenêutica,

bíblica e geral.

Quando um grupo de pessoas sofre intensamente

por uma situação de injustiça e opressão, de modo

que somente ele pode entrar em comunicação a esse

propósito, e quando ele atribui o mesmo

significado ao mesmo sujeito, ou seja, interpreta

de modo comum tal situação, parece realizar-se o

postulado de Habermas. Se, além disso, a situação

é interpretada a partir de um texto bíblico, então

se poderá dizer que também a interpretação bíblica

é legítima.

É lógico e óbvio, ao contrário, e não debilita

a legitimidade da precedente interpretação, que

uma pessoa fora daquele grupo, não tocada pela

Page 88: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

88

situação, a interprete de modo diverso. As pessoas

"bem-pensantes" de todos os tempos pensaram — como

os amigos de Jó — que o desgraçado é um pecador,

que o pobre é punido por sua preguiça, e que o

estrangeiro não progride porque não se empenha.

Quando se trata de interpretar com relação a

uma situação concreta, e não somente de explicar

em abstrato, parece que se pode aplicar o consenso

como critério operativo de verdade sobre a justa

interpretação. Falar de "critério operativo"

significa reconhecer a validade de tal consenso

dentro de deteminados limites de espaço e de

tempo. Pela mesma razão, esse critério operativo

do consenso deverá ser submetido constantemente a

verificação, para evitar que se torne também ele

uma proposição teórica não mais válida na situação

concreta.

Nesse contexto pode-se entender como é justo

que um grupo encontre nos eventos do êxodo dos

hebreus do Egito uma parábola de sua própria

situação, e releia o texto a partir desse ponto de

vista.

O critério do consenso, que lembramos,

encontra importante fundamento teológico quando se

reflete sobre a importância da tradição na

comunidade cristã como critério de verdade.

Pensamos aqui no momento da origem de um aspecto

particular dessa tradição, quando se revela como

um processo vivo e como o impulso a elaborar novas

interpretações ou formas de vida que,

progressivamente e mediante várias tentativas,

chegam à sua forma justa e podem eventualmente

completar e corrigir as precedentes formas e

interpretações.

De modo semelhante, uma interpretação

consensual da Escritura poderá revelar-se, por

meio de sucessivas purificações, e num processo de

assunção sempre mais universal no seio da Igreja,

como parte de sua permanente tradição. Ou, pelo

contrário, poderá ter apenas valor limitado a um

momento e a um grupo concretos.

3.1.2- O povo pobre como intérprete da Escritura

Page 89: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

89

Uma vez que os pobres (no sentido econômico da

palavra) são a imensa maioria da população do

planeta Terra e, pelo que se pode prever,

continuarão a sê-lo por muitos séculos, falar de

"povo" como sujeito da leitura da Escritura obriga

a considerar o "pobre" de fato e concretamente (se

bem que não exclusivamente) como tal sujeito.

A falta dessa reflexão nos faria recair no

elitismo de uma interpretação elaborada nos

centros da cultura rica e oferecida —- no melhor

caso — ou imposta — no pior — ao indefeso povo de

Deus.

As conotações da pobreza não são as mesmas em

todo país ou continente. Em países como o Chade ou

Bangladesh parece assinalada pela radical dureza

das condições de vida (terra desértica e

inundações periódicas); na índia e, até há pouco

tempo, na China, parecia ligada a um crescimento

excessivo da população sem qualquer previsão e

controle. Nesses casos, a pobreza não caracteriza

antropologicamente de modo decisivo a relação

desses povos com outros.

Na África negra a pobreza não parece resultado

direto da exploração daqueles países por parte de

outros, mas conseqüência de uma situação de

inferioridade racial à qual o mundo islâmico e

branco condenou o mundo africano, com a

escravidão, primeiro, e com um maldisfarçado

desprezo depois. É lógico, portanto, que uma

leitura africana da Escritura se interesse mais

pelo problema das relações entre os povos do que

pela pobreza, uma sua conseqüência.

No contexto latino-americano, a pobreza é

vista como o resultado injusto de uma opressão que

se desenvolveu num processo complexo, que vai da

provável influência da colonização inicial até a

história moderna, na qual os interesses

internacionais se entremesclam com aqueles de

grupos locais privilegiados.

A pobreza na América Latina aparece assim,

mais que em outros continentes, não como resultado

de dificuldades naturais ou técnicas que se devem

superar, e portanto como etapa necessária no

processo de crescimento, mas como o resultado do

Page 90: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

90

egoísmo de grupos e pessoas, como efeito da

vontade de poder e conquista da parte de nações

estrangeiras, como manifestação de uma desordem

estrutural da sociedade, e enfim, para o crente,

como concretização do pecado.

Sendo assim, a pobreza torna-se lugar de

encontro do bem e do mal, manifestando-se ao mesmo

tempo, para o crente que reflete a partir da fé,

como lugar da vizinhança de Deus.

Em tais circunstâncias até a pobreza concreta,

bruta e suja, que se pode encontrar todos os dias

em tantos lugares urbanos e rurais da terra,

aquela pobreza aceita — ainda que não tematizada —

com paciência, com verdadeira alegria

freqüentemente, faz descobrir e viver intensamente

valores evangélicos (confiança no amor paterno de

Deus, aceitação de seus caminhos, descobrimento do

sentido da dor, compreensão para com os outros,

generosidade, paciência e criatividade perante

situações não atualmente modificáveis, alegria de

viver, apreço pelas pequenas satisfações que a

vida pode oferecer), valores dificilmente

encontrados nas sociedades desenvolvidas, ricas

até a saciedade, enfastiadas até a neurose.

Diante dessa constatação, é preciso perguntar-

se seriamente se a opinião daqueles que vêem na

pobreza um momento de passagem da humanidade,

incompatível com a riqueza e plenitude de Deus —

que se toma como analogatum princeps —, pode ainda

ser mantida. Nem a escassez de bens materiais, nem

a renúncia, necessária ou voluntária a eles, é

verdadeiramente incompatível com a riqueza de

Deus, mas somente a pobreza que é expressão da

injustiça, miséria que degrada a humanidade, a

maior riqueza de Deus.

Parece, portanto, tarefa iniludível de uma

reflexão hermenêutica que queira ser válida para a

maioria das pessoas criar uma metodologia de

leitura bíblica capaz de encontrar na Escritura

não só a inspiração para uma ação política

libertadora, quando necessária, mas, para além

dessa finalidade, limitada teoricamente a um

período de transição, estabelecer a pobreza como

Page 91: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

91

chave definitiva de leitura: uma pobreza entendida

como dom de Deus, cultivada voluntariamente e não

produto de opressão; oposta ao consumismo e ponto

de partida de liberdade interior, de vontade de

compartilhar os bens da terra, de respeito pelo

universo.

3.2 - Justificação de uma leitura hermenêutica .

3.2.1- Características de uma leitura

contextualizada

Em artigo que foi como que a magna charta da

leitura contextualizada da Bíblia na América

Latina, Carlos Mesters apresenta os traços

fundamentais da concepção e realização de uma

hermenêutica bíblica.

O processo de leitura descrito poderia

organizar-se em três pontos:

• a leitura da Bíblia é feita por uma comunidade

orante e militante;

• portanto, não a partir de um lugar social e

culturalmente neutro, mas engajado;

• ela busca não a compreensão de uma história

passada, ou de um sentido em si, mas de uma

história que reflete a atual e, portanto, de um

"sentido para nós".

Sobre a comunidade como sujeito da leitura já

falamos no item I. É preciso acrescentar ainda que

aquela comunidade ("o povo pobre"), sujeito da

leitura e interpretação da Escritura, concebe-se

aqui como militante e, portanto, consciente de

seus problemas e empenhada em encontrar-lhes

solução; e, como crente, em que a oração é

manifestação da fé, a partir da qual se buscam

soluções.

A segunda característica dessa leitura está

implícita na primeira. Se a comunidade que lê a

Bíblia é militante, significa que tem uma visão de

sua situação e uma vontade de encontrar uma

solução a partir de sua fé. Como toda

hermenêutica, a hermenêutica bíblica latino-

americana insiste na impossibilidade de exegese

neutra da Bíblia. A aparente exegese científica,

neutra e objetiva, não passaria de uma leitura a

Page 92: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

92

partir de uma situação de satisfação econômica e

de conformismo político e social, que permite

substituir a necessidade de encontrar uma mensagem

"para mim" por um "jogo de pérolas de vidro",

passatempo elegante, que nem prejudica nem ajuda.

A terceira característica segue a segunda. É

impossível ter consciência de uma situação de

leitura engajada sem sentir a necessidade de

buscar uma "palavra para mim". Toda palavra que

não se possa referir a tal situação será ignorada

como alienante e desviante.

A atitude tradicionalmente aconselhada pela

"direção espiritual" privada, pelas homílias e por

certos documentos eclesiásticos, voltados para

encontrar na Bíblia uma interpretação pessoal, não

é problemática quando se limita aos problemas

"pessoais" e "espirituais". Torna-se, porém,

suspeita ao afirmar que a Bíblia pode falar à

comunidade sobre seus problemas políticos e

sociais, que, de outro lado, estão ligados, em

todo caso, aos problemas "espirituais".

3.2.2- Relação entre hermenêutica e métodos

histórico-críticos

Tanto a leitura contextualizada como a exegese

histórico-crítica recusam, com bom senso, uma

interpretação meramente formal, estilística ou

estruturalista, que não consegue abandonar o

claustro do texto para retornar ao mundo. Ambas

reconhecem que o texto está ligado a uma história

e a reflete. Diferem, porém, quando buscam

determinar a que história está ligado: apenas à

história contemporânea à produção do texto, ou

também à história atual de cada receptor do texto?

Ambas tentam evitar divórcio completo. A

exegese histórico-crítica constata que perdeu seus

fiéis no novo e no velho mundos, que é desprezada

não só como inútil mas também como obscura e

caprichosa, pela direita e pela esquerda, por uma

boa parte da exegese técnica, e por quase todas as

leituras engajadas, em virtude da multiplicidade

de opiniões inconcludentes sobre os mesmos temas.

Page 93: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

93

Por outro lado, as leituras contextualizadas

não querem ganhar para si o epíteto de ignorantes

ou de inimigas nas centrais do poder exegético,

que costumam ser controladas pelos que possuem

mais meios econômicos, e concedem assim, por

escolha ou por força, que não se pode prescindir

do sentido literal e do trabalho exegético para

"controlar" o sentido "espiritual", e que "o

sentido espiritual deve ser sempre o sentido do

texto". Diz-se do exegeta profissional que ele é

"guarda" do "sentido textual e histórico do

texto", e reconhece-se que a "pesquisa exegética

européia" ajuda a "iluminar o texto e aprofundar o

trabalho interpretativo".

É difícil, porém, encontrar concretamente um

estudo bíblico, de uma e de outra parte, em que se

integrem harmoniosamente exegese e hermenêutica.

3.2.3- As promessas de uma leitura hermenêutica

a. Relação entre verdade e linguagem

Uma leitura hermenêutica legítima deverá levar em

conta também esse problema epistemológico, muitas

vezes negligenciado pelos biblistas, que retoma a

velha tese escolástica do juízo como sede da

verdade.

A variedade dos modos de linguagem implica uma

variedade formal da verdade, que não se deixa

reduzir a um denominador comum que incluiria, como

que numa síntese, todas as variantes.

Há uma verdade de correspondência,

"indicativa" ou tautológica, que consiste em

assinalar a presença de um objeto e atribuir-lhe

um nome. Essa verdade exprime-se num juízo

existencial e reside na linguagem, enquanto supõe

uma linguagem adquirida e aceita por uma

comunidade. Fora dela, o juízo é incompreensível,

e em conseqüência a verdade que aí se expressa,

irrelevante. A esse tipo de verdade corresponde o

juízo sobre a presença de objetos ("este é um

livro de metodologia exegética").

Não inteiramente diversa dessa parece ser a

verdade de evidência. A diferença consiste no fato

de o objeto agora designado ser imediatamente

perceptível e não poder ser submetido a discussão.

Page 94: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

94

Essa "verdade" é, pois, indiscutível, e também

incontrolável. A ela corresponde o juízo sobre

sentimentos internos ("estou triste", "estou

enamorado").

Claramente diversa, porém, é a verdade de

coerência (formal), que se expressa num juízo que

é verdadeiro na medida em que desenvolve

coerentemente um sistema de proposições não-

contraditórias e progressivamente descritivas de

um objeto não imediatamente perceptível na

experiência sensível. A esse tipo de verdade

correspondem as descrições das realidades

complexas, históricas, culturais ou religiosas,

cujos elementos constitutivos e cujas relações

percebem-se progressivamente e com forte

dependência de certos pressupostos teóricos por

parte do observador.

b. A hermenêutica e sua possibilidade de relação

com os métodos histórico-críticos

Os métodos histórico-críticos trabalham com

uma verdade de coerência. Trata-se de explicar

coerentemente situações, personagens, concepções e

eventos, dos quais não temos experiência interna e

com os quais não podemos estabelecer uma

correspondência, indicando-os. Essa tarefa se

realiza com um instrumento técnico, estruturado

numa linguagem própria, de que faz parte o

vocabulário da história, da literatura, da

arqueologia, da religião e da teologia.

A hermenêutica bíblica, ao contrário, trabalha

inicialmente com uma verdade de correspondência,

na medida em que atribui a determinada situação

contemporânea um texto bíblico que a reflete: ela

"denomina" uma situação contemporânea com um texto

bíblico. O juízo assim estabelecido é do tipo: "A

situação refletida no texto X corresponde à

situação contemporânea Y".

A correspondência entre a situação do êxodo,

ou do personagem dos Cânticos do Servo sofredor, e

a situação do povo nicaragüense em certo momento

de sua história, ou do povo brasileiro do Nordeste

em outro, não parece que possa ter outra

justificação que a percepção de determinado grupo

Page 95: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

95

de pessoas que lê uma situação como pecaminosa,

não-desejada por Deus, e encontra na situação

descrita num texto bíblico o equivalente da

própria situação, e na solução aí proposta o

modelo de solução para a própria situação.

Da verdade de correspondência, assim como a

experimenta a hermenêutica bíblica, pode-se

afirmar o que G. Vattimo afirma da experiência do

verdadeiro em geral, enquanto residente na

linguagem: "Andar na verdade não quer tanto dizer

atingir o estado de luminosidade interior que

tradicionalmente se indica como evidência quanto

passar para o plano das admissões participadas e

condivididas que, mais que evidentes, surgem como

óbvias e não-necessitadas de interrogação, e por

isso nem sequer, talvez, tais que possam

individuar-se como autênticas evidências no

sentido forte".

Quando se introduz um termo novo numa língua

para expressar uma realidade já existente, mas da

qual havia somente uma consciência obscura, pode-

se considerar o novo termo mais ou menos adequado,

mas não se poderá negar nem seu direito de

existir, nem a realidade que quer expressar.

A leitura hermenêutica de um texto bíblico

poderá ser considerada mais ou menos expressiva da

realidade que quer refletir. O consenso da

comunidade que percebe de modo semelhante uma

situação concede inicialmente a essa leitura sua

carta de cidadania. Mas a partir desse momento

deve entrar em jogo a verdade de coerência, no

sentido que tentaremos explicar na seção seguinte

deste capítulo, para determinar de modo mais

preciso a legitimidade da correspondência

estabelecida.

Em sua meditação "Vom Lesen und Schreiben"

escrevia F. Nietzsche: "De tudo o que foi escrito,

só gosto daquilo que se escreveu com o próprio

sangue. Escreve com o sangue, e experimentarás que

o sangue é espírito".

A interpretação hermenêutica é um livro

escrito com o sangue das próprias experiências,

percepções e decisões. É isso que lhe dá

Page 96: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

96

vitalidade e obriga-nos a interrogar-nos sobre seu

espírito.

Uma vez estabelecidas as premissas sobre a

legitimidade do discurso hermenêutico, precisamos

perguntar-nos agora se é possível estabelecer um

programa de conversão que permita a passagem da

epistemologia histórico-crítica ao discurso

hermenêutico.

3.3- A leitura hermenêutica: alegórica ou

pragmática?

3.3.1- Pragmalingüística e texto

A importância adquirida pelos estudos teóricos

e práticos sobre a comunicação em todos os seus

níveis (técnico, psicológico, sociológico,

filosófico) teve, a partir da década de 60,

repercussão intensa nos estudos lingüísticos, e

levou em muitos países a um desenvolvimento sempre

mais sistemático da pragmalingüística.

A pragmalingüística é a parte da lingüística

que se ocupa com os sinais lingüísticos como

elementos de comunicação.

Todo texto, e portanto também o texto bíblico,

não é senão o elemento lingüístico constitutivo do

ato de comunicação de um processo comunicativo,

tematicamente orientado, que cumpre uma função

comunicativa reconhecível. O tema da atividade

comunicativa não se identifica, portanto, com a

finalidade, mas é o meio para alcançar uma

finalidade.

Em outras palavras, o texto não é simplesmente

um sistema fechado de sinais que funcionam quase

independentemente de seu produtor e de seu

destinatário (como parecia ser o pressuposto dos

métodos estruturalistas), mas o ponto de contato

entre ambos, o núcleo que libera a energia

comunicativa.

Isso implica dois aspectos: primeiro, que a

linguagem, seja ela oral ou escrita, não

"acontece" só, mas junto com outros fatores no

quadro complexo da situação comunicativa. Segundo,

que a realidade primária da linguagem, objeto de

experiência, não é constituída por sons, palavras

ou frases, mas é uma realidade complexa,

Page 97: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

97

multíplice, que desempenha uma função

comunicativa. Essa realidade é o que aqui chamamos

de "texto". O estudo de um texto deve, portanto,

investigar não só sua realidade lingüística mas

também a linguagem em seu contexto

sociocomunicativo.

A atividade comunicativa tem como finalidade

produzir um efeito: transmitir concepções, induzir

reações emocionais ou motoras. Mais precisamente,

o emissor da comunicação (o produtor atual do

texto) busca atrair o destinatário a suas próprias

concepções, convicções e finalidades.

O receptor da comunicação (o destinatário),

por seu lado, busca receber, compreender e

responder na medida em que se espera dele, ou,

pelo contrário, recusa a cooperação. No primeiro

caso o destinatário/receptor busca influir sobre o

emissor, no segundo interrompe-se completamente a

comunicação.

Uma vez que tanto o emissor como o

destinatário da comunicação incluem-se

necessariamente num grupo social, os efeitos da

comunicação superam a esfera individual de cada um

e estendem-se ao conjunto da sociedade.

Esse processo manifesta a impossibilidade de

atribuir papéis exclusivos e absolutamente

determinados aos sujeitos da comunicação. Cada um

deles interage alternativamente como emissor e

receptor.

A comunicação é portanto, por sua natureza,

ilimitada. O processo de aproximação das

concepções, emoções e realizações pode ser sempre

aperfeiçoado. O processo comunicativo de que

falamos implica obviamente mais que a satisfação

de uma demanda ou de uma pergunta pontual ("que

horas são?"), processo que chega a seu termo com a

informação ou com a recusa de fornecê-la, e que

talvez não se deva considerar "comunicação" em

sentido estrito, mas somente "informação".

Considerar a Sagrada Escritura como Palavra

supõe que essa palavra não seja mera informação

divina atemporal, oráculo pronunciado

independentemente do caráter concreto do

"receptor" e de sua situação, mas processo

Page 98: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

98

articulado de comunicação, que não só propõe como

também escuta, e modifica os termos tanto quanto

necessário para obter êxito no processo

comunicativo. A palavra de Jesus ou dos profetas

não atinge sua meta com a proclamação de certo

conteúdo, mas com o estabelecimento de um processo

comunicativo que leve os protagonistas da

comunicação a relação sempre mais estreita.

Além disso, se a palavra de Deus, segundo a

natureza comunicativa da palavra, consiste em

comunicar-se, é possível que aquilo que a

Escritura nos quer dizer em certos casos não

coincida precisamente com o conteúdo propo-

sicional dos textos pronunciados pelos diversos

personagens, mas se exprima no próprio processo

comunicativo, ou seja, na interação dos

personagens.

Assim, a parábola que Natã conta a Davi (2Sm

12,1-15) não passa de elemento menor na

constituição da "mensagem" da cena, que se deveria

ler nas atitudes subseqüentes dos dois personagens

que se concluem com a confissão de Davi.

O princípio, hoje geralmente aceito na

interpretação da Escritura, de que o elemento que

transmite a palavra de Deus não é constituído por

palavras isoladas, nem sequer por frases fora do

contexto, mas pelos textos considerados em sua

unidade, e pelo conjunto da Escritura como unidade

canônica, deve receber ainda essa

particularização: não são somente os "textos" como

proposição o que transmite a mensagem, mas os

textos como parte constitutiva de um processo

comunicativo.

Não há, portanto, textos in actu completamente

assépticos, gratuitos, indefinidos em sua

intenção, atemporais em seu valor, utilizáveis de

muitas maneiras; nem sequer, pelo contrário,

textos que dizem sempre a mesma coisa. Todo texto

implica uma pré-compreensão do mundo e do

interlocutor, ou do receptor, e tem intenção

persuasiva (a confirmação ou modificação de uma

atitude ou posição tomada). Todo texto em ação tem

uma intenção precisa. Dizer "eu te quero bem"

Page 99: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

99

indica a vontade de comprometer-se com essa

afirmação, e a intenção de produzir uma reação

afetiva no interlocutor.

Um estudo pragmalingüístico pretende,

portanto, descobrir o que um texto (sistema de

sinais lingüísticos num contexto de sinais

paralingüísticos) (re)produzido por um emissor

(produtor atual) pode e quer obter de determinados

ou menos determinados destinatários (ouvintes,

leitores.

A esse conjunto de elementos pode-se aplicar a

categoria "intenção do texto", enquanto diversa da

"intenção do autor". Esta última é na realidade um

conceito psicológico, não-lingüístico, que se

refere à intenção interna do produtor do texto, a

qual pode manifestar-se de modo mais ou menos

explícito no texto produzido.

Nos textos de comunicação habitual (nas

relações pessoais cotidianas), o autor busca

delimitar rigorosamente seu texto, de modo que

seja evidente sua intenção e possa atingir sua

finalidade — a não ser que considere que sem

expressar a própria intenção se atinja melhor a

finalidade prevista.

Os textos "literários" tomam, ao contrário,

distância com respeito ao autor, cuja intenção

sobre sua obra habitualmente nos foge e em todo

caso não é interessante. Valorizar essa intenção

do autor fora da intenção do texto como tal

levaria a ignorar o texto e a buscar por vias

laterais — por exemplo no "diário íntimo" do autor

— sua intenção: que coisa queria dizer ou

pretendia obter.

A intenção do texto é dada, ao contrário, por

um conjunto de elementos que em boa parte não se

acham submetidos à vontade do autor. Ela poderia

definir-se, portanto, como a capacidade de ação ou

influência que determinado texto tem em certas

circunstâncias, podendo essa intenção coincidir ou

não com a do autor. A determinação da intenção do

autor, dado que se possa saber, seria eventual

ajuda para determinar a intenção do texto.

Page 100: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

100

4- A leitura fundamentalista CASSIO MURILO DIAS DA SILVA

Embora nosso interesse seja a leitura

fundamentalista da Bíblia, precisamos começar

notando que o fundamentalismo é algo bem mais

amplo do que uma simples postura hermenêutica

diante dos livros sagrados. E não obstante esteja,

hoje, presente também no Islamismo, no Judaísmo,

no Hinduísmo, no neo-confucionismo e em outras

seitas asiáticas radicais e extremistas, o

fundamentalismo teve seus inícios entre os

cristãos protestantes nos Estados Unidos e no

Canadá, no período imediatamente posterior à

Primeira Guerra Mundial. Suas raízes, no entanto,

remontam à ortodoxia confessional do século XVIII.

4.1- O fundamentalismo

O tema é, sem dúvida, bastante complexo e não

é nossa pretensão esgotá-lo aqui. Cada vez mais,

sociólogos, antropólogos, psicanalistas,

historiadores e estudiosos da religião se

interessam por esse fenômeno que tende a crescer

em períodos de incerteza, ocasionados por mudanças

sociais, econômicas, culturais e políticas, a

serem enfrentadas tanto pela coletividade como

pelo indivíduo. Com efeito, Shupe e Hadden definem

"em termos extremamente simples" o fundamentalismo

como "um movimento que visa recuperar a autoridade

sobre uma tradição sagrada que deve ser

reintegrada como antídoto contra uma sociedade que

se soltou de suas amarras institucionais".

Em quase todas as línguas, o termo

"fundamentalismo" evoca as idéias de reacionário,

antimoderno, conservador, contrário à evolução da

ciência, adverso a novas idéias, literalista e até

paranóide.

Em uma abordagem psiquiátrica, Hole confronta

fundamentalismo, dogmatismo e fanatismo e procura

distinguir estes três fenômenos tão aparentados. A

atitude fundamentalista é entendida como "a

orientação para um valor ou uma idéia básica que

Page 101: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

101

tem que ser perfeccionisticamente protegida; além

disso, o medo de perder esse valor mediante

compromissos" e caracteriza-se "pela necessidade

de:

• embasamento (Verankerung),

• identificação clara,

• perfeccionismo,

• simplicidade".

4.2- Fundamentalismo e Bíblia

Retornando à temática que nos interessa e em

base a essas premissas, podemos elaborar algumas

ponderações breves e sumárias.

O fato de se ler a Bíblia de forma

fundamentalista, isto é, acentuar e aferrar-se à

autoridade absoluta da Escritura entendida como

inspirada e infalível, reflete uma atitude, uma

tomada de posição diante da vida e da conjuntura

social. Em um mundo sempre mais complexo,

incoerente, plurifacetado e em mutação, a busca de

valores simples, coerentes, unitários e perenes

acaba excluindo os pontos de vista diferentes.

A honestidade científica nos leva, porém, a

reconhecer que um fenômeno tão ligado à

subjetividade humana adquire manifestações

bastante complexas e variadas (mesmo

especificamente quanto à leitura da Bíblia),

decorrentes de uma "atitude fundamentalista",

presente em maior ou menor grau e, por vezes,

inconsciente e bem articulada. Em outras palavras,

tratar o fundamentalismo de modo simplista e

descartá-lo a priori como característico de

indivíduos afetiva e intelectualmente inferiores

ou perturbados seria encarar o fundamentalismo

fundamentalisticamènte.

Devemos, portanto, focar as variadas facetas

da atitude fundamentalista quanto à leitura da

Bíblia. A primeira delas é a dificuldade em lidar

com a complexidade do texto bíblico e o pluralismo

de idéias e de teologias por ele propostas, o que

leva a uma rejeição. Para o fundamentalista, a

Palavra de Deus está livre dos erros e das

incoerências próprias da palavra humana. As

limitações culturais, lingüísticas e científicas

Page 102: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

102

dos hagiógrafos são minimizadas, quando não

descartadas, pois os autores/redatores agiram sob

a divina inspiração, capaz de remover e superar

todos os obstáculos.

A segunda pode ser definida como realismo

ingênuo. O leitor fundamentalista julga

desnecessário interpretar o escrito e tende a

ignorar outras possíveis significações e as

variadas perspectivas de abordagem do mesmo texto.

Para tal leitor, o sentido é claro e está

claramente expresso em palavras perfeitamente

adequadas. Questionado acerca das dificuldades e

das várias opções de uma tradução, o realista

ingênuo dirá que, mesmo no original, o sentido é

claro e, portanto, também a tradução o será. E

qualquer tradução divergente daquela que tal

leitor acredita ser autêntica será tida como

falsificação realizada por gente mal-intencionada.

A terceira faceta disfarça a atitude

fundamentalista sob a égide da confessionalidade e

se manifesta quando determinada doutrina ou

teologia se utiliza do texto bíblico para

comprovar seus dogmas. O texto bíblico, visto como

linear, coerente e harmônico, torna-se um tesouro

de argumentos que corroboram o credo e a doutrina

de um grupo. Típico desse expediente é a

utilização de variados versículos, que foram

pinçados de seus contextos e sem levar em

consideração a questão do gênero literário, para

comprovar um artigo da fé e motivar ou legitimar

um comportamento.

A confessionalidade se desdobra em

espiritualidade. Bem mais numerosos que os

fundamentalistas crassos e declarados são os que

abdicam do senso crítico e da própria capacidade

de buscar sentidos novos para as perícopes

bíblicas e se deixam conduzir acriticamente por

líderes e movimentos espirituais. Esses leitores

interpretam o texto bíblico sempre da mesma

perspectiva, normalmente de cunho moralizante, e

descartam (ao menos para a própria vivência) a

possibilidade de interpretações baseadas nas

ciências bíblicas. Quando muito, aproveitam-se das

conclusões e dos questionamentos dos estudiosos

Page 103: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

103

apenas para comprovar as interpretações que já

operavam anteriormente, mas rejeitam tudo o que

coloca em dúvida uma leitura já assumida e tida

como o sentido evidente e claro do texto.

Por fim, a última faceta do fundamentalismo

aponta para a própria ciência bíblica. Mesmo entre

os exegetas, não pode haver um "fundamentalismo"?

Não falamos apenas das pesquisas históricas,

arqueológicas, antropológicas etc., que se

empenham em provar a historicidade dos relatos

bíblicos. Falamos de algo bem mais sutil. Em vez

de dar a liberdade ao texto para que diga o que

quer (ou o que pode), a atitude fundamentalista

pode levar o exegeta a realizar uma trapaça

metodológica, que pode ser assim definidida: não é

a "interpretação" que abre o texto e sim o texto

que comprova a "interpretação". O termo

"interpretação" aparece entre aspas, pois não se

trata mais de uma verdadeira interpretação, e sim

de uma abordagem pseudocientífica: o que deveria

ser provado é utilizado como pressuposto. Em

decorrência, não importa qual o texto — se do

Antigo ou do Novo Testamento, se um Salmo ou uma

perícope tirada da epístola de Tiago, se uma lei

do Deuteronômio ou a genealogia de Jesus no

evangelho de Mateus —, ele será sempre lido de

modo a confirmar determinada "interpretação".

Imaginemos um estudioso da Sagrada Escritura que

adota somente uma teoria ou uma linha de

interpretação e que força os textos para fazê-los

concordar com as idéias que quer provar. Não

haveria nisso uma manifestação de fundamentalismo?

Em outras palavras, só porque utilizamos o Método

Histórico-Crítico, ou fazemos uma leitura

feminista, ou realizamos estudos sócio-

antropológicos, isso significa que tenhamos

superado a atitude fundamentelista?

VII- A PRÁTICA EXEGÉTICA

1- A exegese e o texto original DOUGLAS STUART

Page 104: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

104

O propósito deste capítulo é ajudá-lo a ter

uma idéia mais clara do processo da exegese,

apresentando ilustrações de como certas partes

desse processo poderão funcionar em várias

passagens do AT. Um bom número de passagens é

usado de modo seletivo — algumas vezes, mais do

que uma para determinado passo exegético —, a fim

de proporcionar-lhe uma exposição à rica

diversidade de material no AT. Portanto, você não

verá a cobertura exegética sistemática de nenhuma

passagem em particular. Para obter exemplos disso,

os comentários exegéticos recentes e técnicos,

como a série Word Biblical Commentary, ou a série

Hermeneia, serão úteis, como também,

ocasionalmente, artigos exegéticos em periódicos

tais como Interpretation.

Mesmo quem não lê hebraico perceberá que o

conteúdo deste capítulo é útil e, em geral,

inteligível. Para os que conhecem hebraico, a

consulta regular à BHS é essencial para a

apreciação dos contextos mais amplos dos quais os

trechos escolhidos deste capítulo são tirados.

Nem todos os passos exigem uma ilustração;

mas, quando isso for útil, pelo menos uma

ilustração será oferecida. Ilustrações mais longas

ou múltiplas serão apresentadas quando

esclarecerem o processo exegético.

2- O texto

2.1- Confirmando os limites da passagem

Existem dois recursos aos quais poderá

recorrer a fim de conseguir ajuda imediata para

confirmar os limites de uma passagem: (1) o

próprio texto hebraico na BHS ou BH3, e (2)

praticamente qualquer tradução moderna. O que deve

ser examinado aqui é a paragrafação delas. No caso

do texto hebraico, o material bíblico é arranjado

em forma de parágrafos por meio de variação na

endentação na margem direita. Quando muda o local

da margem, seja por avançar para o meio da página

seja por recuar mais para a margem direita, isso

sinaliza a opinião do editor de que uma nova seção

Page 105: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

105

lógica começou. No caso das versões modernas, a

endentação simples da primeira palavra em uma

oração indica um novo parágrafo. Ao examinar o

arranjo da passagem, de preferência tanto em

hebraico como em português, logo poderá perceber

se sua própria tentativa de identificar uma

passagem condiz ou não com a avaliação desses

eruditos quanto ao agrupamento natural do

conteúdo.

As decisões sobre paragrafação são, às vezes,

subjetivas. Assim, notará que os diversos

agrupamentos de conteúdo feitos pelos editores nem

sempre concordam entre si. Entretanto, se decidir

iniciar a passagem onde nenhum editor começou um

parágrafo, ou encerrar sua passagem onde ninguém

terminou um parágrafo, será sua a responsabilidade

de justificar integralmente a decisão de

selecionar ou configurar a passagem desse modo.

2.2- Comparando as versões

Para analisar as muitas versões do AT, você

precisa verter cada uma delas de volta para o

hebraico, pelo menos até o ponto de ser capaz de

dizer se refletem ou não o TM. Como esse processo

pode ser complicado, será útil fazer uma tabela

com todas as versões alistadas, linha por linha,

facilitando a comparação das leituras. Lembre-se

de comparar as palavras das versões da passagem

inteira. Se você consultar as versões somente

quando o TM for problemático, você deixará de

observar todas as variantes resultantes da

corrupção do TM, as quais eram óbvias, mas que,

depois, foram abrandadas e reescritas num hebraico

mais legível (mas não necessariamente original)

por escribas bem intencionados do passado.

A comparação palavra por palavra no caso de l

Samuel 20.32 (para o qual existe uma versão dos

escritos de Cunrã) ficará parecida com a tabela na

página seguinte.

Você poderá ver facilmente como as versões se

comparam, ao escrever o hebraico do TM, da direita

para a esquerda (de acordo com a estrutura

semítica), alistando diretamente abaixo deste as

versões selecionadas (incluindo a LXX). Na tabela,

Page 106: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

106

os parênteses são um modo conveniente de indicar

que tanto o texto de Cunrã como a LXX omitem

qualquer equivalência a vylx, do TM, sugerindo que essa palavra seja uma expansão (nesse caso, um

acréscimo explicativo) no TM. A LXX, no entanto,

também omite qualquer correspondência aos termos

rmxyv vybx do TM e de Cunrã. Talvez isso reflita uma haplografia (a perda de algo que estava

presente) no texto hebraico usado pelo tradutor da

LXX. A Peshita e o Targum, como geralmente fazem,

seguem o TM. A Vulgata, como é típico, segue o TM.

(A Peshita, o Targum e a Vulgata são muito menos

freqüentemente reais testemunhas "independentes"

de um original que difere do TM do que é a LXX.

Mesmo os manuscritos de Cunrã, escritos em

hebraico, demonstrarão com mais freqüência seu

caráter independente do TM hebraico que a Peshita,

o Targum e a Vulgata.)

Incluímos, na tabela da próxima página, a

tradução em português de acordo com a ordem das

palavras no hebraico. Você poderá achar útil fazer

isso, pelo menos enquanto está começando a

aprender o método. Poderá também incluir a

tradução em português sob qualquer palavra

diferente do TM que as versões trouxerem,

especialmente se tiver dificuldade em traduzir

instantaneamente as várias versões! Consulte o

livro de Brotzman, Old Testament Textual

Criticism: A Pratical Introduction, ou de Tov,

Textual Criticism of the Hebrew Bible, ou ainda,

Textual Criticism: Recovering the Text of the

Hebrew Bible, de McCarter para consultar exemplos

e explicações dos princípios envolvidos na decisão

sobre qual versão reflete melhor o original.

ISamuel 20.32

wybia' lWav'-ta, !t'n"Ahy> ![;Y:w: TM

seu pai a Saul Jônatas E respondeu

Page 107: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

107

" " [Faltam as 2 Cunrã

primeiras linhas]

( ) tw/| Saoul Iwnaqan kai. avpekri,qh LXX

" " " "(TM)Peshita

" " " " (TM)Targum

" " " "(TM)Vulgata

`hf'[' hm, tm;Wy hM'l' wyl'ae rm,aYOw: ele fez? O que deve ele Porque a ele e disse

Morrer?

" " " " ( ) "

pepoi,hken ti avpoqnh,|skei i[na ti ( ) ( )

" " " " " " "

" " " " " " " " " " " " " "

2.3- Reconstruindo o texto, fazendo anotações

Damos aqui dois exemplos para ilustrar o

processo de reconstrução e anotação do texto.

Muitas vezes uma passagem não exigirá nenhuma

reconstrução. Depois de comparar as versões, você

poderá concluir que a passagem preserva

adequadamente o original da maneira impressa na

Page 108: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

108

BHS ou BH3 (ambas contêm o texto do Códice de

Leningrado, de 1008 d.C.). Mas, quando as versões

antigas discordam muito entre si, você deve tentar

determinar como essa discordância surgiu. Isto é,

tente estabelecer que palavras originais dariam

melhor base para as leituras divergentes atuais.

Isso significa trabalhar no sentido inverso, a

partir do que está presente nas várias versões

antigas até o que, teoricamente, deveria constar

do texto original.

Centenas de diferenças de tradução entre as

versões modernas do AT em português e em outras

línguas provêm, simplesmente, de reconstruções do

texto hebraico feitas pelos tradutores. Nenhuma

versão moderna segue servilmente o texto hebraico

da BHS ou da BH3. Todos os tradutores modificam o

texto quando concluem que a evidência das versões

antigas aponta para um texto hebraico original

diferente do preservado no Códice de Leningrado.

Desse modo, eles freqüentemente traduzem em

português a partir de um texto hebraico

reconstruído. Assim, você deveria saber alguma

coisa a respeito de como se reconstrói um texto,

mesmo que seja só para entender por que as versões

modernas fizeram o que fizeram. Os exemplos a

seguir devem ajudar.

a)- Reconstruindo dois nomes hebraicos: Josué 7. 1

A comparação cuidadosa das versões antigas

confirma o alerta, de forma abreviada, das notas

textuais 1a e lb da BHS . Ou seja, o hebraico (TM)

yDIb.z:-!b, ymir>K;-!B, !k'['

Page 109: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

109

é, possivelmente, o resultado de um erro de cópia

em algum ponto da longa história da transmissão do

texto de Josué. Para o nome !k'[' (Acã), você verá que certo número de textos importantes da LXX

(grego), bem como da Peshita (siríaco), têm o

equivalente rk'[') (Acar), que é a forma do nome em l Crônicas 2.7. Além disso, o nome do avô dessa

pessoa, yDIb.z: (Zabdi), em hebraico, é traduzido por um número importante de textos da LXX como o

equivalente de yrim;zi (Zimri), a forma do nome

também em l Crônicas 2.6.

Qual dos dois é o correto: Acã, neto de Zabdi,

ou Acar, neto de Zimri? Três considerações o

ajudarão a decidir. Primeiro, lembre que a

evidência do texto grego (LXX) deve ser levada

muito a sério. Isso faz com que a escolha seja,

pelo menos, entre duas possibilidades. O apoio

evidencial da Peshita para o primeiro nome

confere-lhe ainda maior peso. Segundo, observe que

as leituras comparativas em Crônicas são evidência

bastante forte para os nomes Acar e Zimri,

respectivamente. Por quê? Porque o cronista,

escrevendo muito depois do livro de Josué estar

completo, refletiria uma leitura independente dos

nomes. Não temos evidência de que o cronista teria

alterado um nome. Ao contrário, temos muitas

evidências de que sua preocupação com genealogias

precisas poderia preservar um nome mais

acuradamente do que até o livro de Josué o faria.

Terceiro, veja que a passagem destaca um artifício

mnemônico, um jogo de palavras pelo qual os

israelitas lembrariam o vale onde Acã/ Acar foi

apedrejado. Eles o chamaram (Js 7.26)rOkfA qm,fe , Vale da Desgraça, sendo que a palavra para

desgraça (rOkfA, Acor) tem as mesmas consoantes

de Acar, mas não as de Acã.

Você precisará apresentar essa evidência e o

seu arrazoado (breve ou longo, dependendo da

extensão do trabalho) a favor da originalidade de

Acar e Zimri, em anotações ao texto que deverá ser

Page 110: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

110

impresso em seu trabalho. Se usar colchetes, terá

o seu texto reconstruído da seguinte forma:

yb<r9m;>z9-Nb, ymir4Ka-NB, a<r>kAfA Hq01y09v1

As letras sobrescritas a e b alertarão o

leitor para olhar as explicações de reconstruções

textuais nas anotações que você fez.

b)- Reconstruindo um termo comum: 1 Samuel 8.16

Perto da metade do versículo, o hebraico (TM)

lê:

~ybiAJh; ~k,yreWxB;-ta,w> e vossos melhores/seletos jovens

O exame cuidadoso das versões antigas

revelará, porém, que o grego (LXX) traz nesse

mesmo lugar

ta. bouko,lia u`mw/n ta. avgaqa. vosso melhor/seleto gado

Qual era o original: "gado" ou "jovens", ou

nenhum dos dois? Como decidir? Primeiro, seguindo

o mais básico princípio de crítica textual

(explicado em qualquer obra de crítica textual),

você tentará determinar que palavras no original

teriam produzido, ao longo da história de cópia e

transmissão da passagem, tanto "jovens," no

hebraico, como "gado", no grego. Para fazer isso,

traduza o grego de volta para o hebraico, pois a

leitura original era hebraica, não grega. Aqui, ao

consultar Hatch e Redpath, A Concordance to the

Septuagint, você verificará de imediato que

(bouko,lia é como a LXX freqüentemente traduz o

hebraico rq!BA, gado.

Agora, restam apenas dois passos. Primeiro,

compare rUHBA com rq!BA. As palavras são

iguais, exceto pela consoante do meio, H ou q. A

Page 111: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

111

vogal U shuruq, embora escrita com waw, é somente uma vogal e representa uma decisão sobre a

vocalização que os copistas fizeram muito tempo

depois de l Samuel ter sido escrito (cf. Cross e

Freedman. Early Hebrew Orthography). Que palavra

original teria sugerido as leituras rqb e rHb?

Sua resposta é rqb, "gado". O H de rHb é,

provavelmente, um erro de cópia. Segundo, você

confirmará sua decisão pela análise do contexto.

Depois de "escravos" e "escravas" (um par lógico),

"jovens" e "jumentos" dificilmente combinam. Mas,

"gado" e "jumentos" (outro par lógico) certamente

combinam.

Por último, faça um apanhado final da

evidência e de sua argumentação para o leitor,

seja qual for a extensão apropriada para o seu

trabalho. O texto reconstruído será assim:

MybiOF0ha Mk,yr2a<Q!>B;-tx,v4

O ª direcionará o leitor para a anotação,

i.e., o resumo da evidência textual e a explicação

nas notas de rodapé.

2.4- Colocando a passagem em forma versificada

A fim de economizar espaço, tanto a BHS como a

BH3 dispõem a poesia de forma que parelhas de

versos paralelas (bicolon) ou tercetos paralelos

(trícolon) apareçam na mesma linha impressa. No

entanto, na exegese é melhor alistar cada parte da

linha dupla ou tripla separadamente. Assim, a

correspondência entre as linhas poéticas paralelas

torna-se mais evidente.

A seguir, temos Números 23.8-9 versificado

desta maneira:

Como posso amaldiçoar lae hBoq; al{ bQoa, hm'8 a quem Deus não amaldiçoou?

E como posso denunciar hw"hy> ~[;z" al{ ~[oz>a, hm'W a quem Javé não denunciou?

Page 112: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

112

Pois do topo das montanhas WNa,r>a, ~yrIcu varome-yKi9 eu o vejo,

E das colinas eu o contemplo. WNr,Wva] tA[b'G>miW

Veja, o povo habita sozinho !Kov.yI dd'b'l. ~['-!h,

E entre as nações bV'x;t.yI al{ ~yIAGb;W ele não se conta

A partir desse arranjo é muito mais fácil

perceber que a parelha de versos no v. 8 é um

paralelismo sinonímico simples, palavra por

palavra, enquanto as parelhas no v. 9 representam

paralelismos sinonímicos mais complicados.

A propósito, a não ser que pretenda analisar o

sistema melódico medieval dos massoretas, ou

contar seus acentos (poéticos) como uma maneira

simples de analisar a métrica de um poema, não há

por que incluir os acentos no seu texto escrito.

3- A tradução O propósito das ilustrações a seguir é

incentivá-lo a fazer a sua própria tradução de uma

passagem, em vez de simplesmente utilizar as

traduções das principais versões modernas. Todos

estes breves exemplos são de frases hebraicas

relativamente simples que, ainda assim, não são

sempre traduzidas de forma clara e adequada.

Page 113: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

113

Que direito você tem de discordar das

traduções produzidas por "especialistas"? Você tem

todo o direito! Considere os seguintes fatos:

Todas as traduções modernas (e todas as antigas

também) foram feitas ou por comissões que

trabalham contra o tempo, ou por indivíduos que

não podiam conhecer tão bem a Bíblia toda, no

original, de modo a produzirem traduções

impecáveis em cada parte. Além disso, no mercado

atual de publicação de bíblias, quanto mais

"diferente" for a tradução, tanto maior é o risco

de ser rejeitada e não vender. Assim, há uma

pressão sobre os tradutores, as comissões, os

editores etc., para que suas traduções sejam

conservadoras no significado, embora normal, e

felizmente, sejam apresentadas em linguagem

atualizada. Por fim, a maioria das pessoas detesta

ficar isolada com uma tradução diferente da

Bíblia. Muitos problemas de tradução são questões

de ambigüidade: há mais de uma maneira de

interpretar o original. Contudo, as limitações de

espaço não permitem que os tradutores ofereçam uma

explicação cada vez que desejarem traduzir algo do

original de um modo completamente novo.

Conseqüentemente, eles quase sempre erram,

pendendo para o lado da cautela. Como resultado,

todas as traduções modernas são, apesar de bem

intencionadas, exageradamente "seguras" e

tradicionais. No trabalho de uma comissão de

tradução, o gênio solitário é, normalmente,

derrotado pela maioria cautelosa.

Portanto, não raras vezes, você poderá fazer

uma tradução melhor do que outros fizeram, pois

pode investir muito mais tempo trabalhando

exegeticamente numa passagem do que tradutores ou

comissões de tradução puderam fazer por causa da

velocidade em que foram levados a trabalhar. Além

do mais, estará escolhendo uma tradução mais

adequada para o seu leitor em particular, em vez

de para todo mundo que fala o português. Lembre-

se: Uma palavra não possui um significado

individual, mas um conjunto de significados.

Escolher a partir de um conjunto de significados

é, freqüentemente, subjetivo; deve ser algo que

Page 114: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

114

você faz para o benefício de seu público, em vez

deixar isso inteiramente para outras que não

conhecem o seu público e precisam traduzir

estritamente para as massas. Felizmente, num

trabalho exegético você poderá explicar de modo

breve para o seu leitor, nas anotações relativas à

sua tradução, suas opções e as razões de escolher

determinada palavra em português. Aqueles que

trabalharam nas várias versões, antigas ou

modernas, não tiveram essa oportunidade.

3.1- Uma tradução que esclarece o comportamento de

um profeta: Jonas 1.2

`yn"p'l. ~t'['r' ht'l.['-yKi h'yl,[' ar'q.W

A tradução comum para a parte final do

versículo é mais ou menos a seguinte: "clame

contra ela, pois a sua maldade subiu até diante de

mim". Essa tradução, porém, tem sido sempre

problemática. Ela representa apenas uma maneira de

traduzir algumas palavras hebraicas que possuem

extensos conjuntos de sentidos e também não se

encaixa facilmente na lição da história como um

todo. Afinal de contas, essa é uma ordem que Jonas

tenta desobedecer, ao recusar ir para Nínive.

Contudo, da maneira típica como é traduzida, soa

como uma ordem que Jonas teria gostado de

obedecer. Por que não estaria ele feliz em pregar

contra uma cidade que Deus tinha declarado ser má?

Seguindo a orientação de "traduzir de novo,

desde o início", e determinado a não aceitar a

tradução comum como a única opção razoável —

somente por ser a mais comum —, você considerará o

sentido das palavras hebraicas de novo, procurando

sua definição num léxico bom e atualizado, tal

como o de Holladay ou o de Koehler-Baumgartner.

Eis o que encontrará: lfa pode ter o sentido de "contra", mas também de "a respeito de". yKi pode ter o sentido de "porque", como também de "que", hfArA pode significar "mal", mas mais geralmente

significa "aflição". E yn!pAl;...htAl;fA é mais

Page 115: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

115

bem traduzido idiomaticamente, não como

"chegou...diante de mim", mas como "chegou à minha

atenção". Por último, concluirá que a frase toda

pode muito bem ter o sentido de "proclame a

respeito dela, que a aflição deles chegou à minha

atenção".

As implicações exegéticas dessa leitura são

significativas. Em contraste com a tradução usual,

sua tradução esclarece por que o hipernacionalista

Jonas fugiu de sua responsabilidade: Deus o estava

enviando numa missão de compaixão, não de

denúncia. A leitura cuidadosa do restante do livro

confirma isso várias vezes (cf., especialmente, Jn

4).

3.2- Uma modesta tradução não-interpretativa:

Provérbios 22.6

`hN"M,mi rWsy"-al{ !yqiz>y:-yKi ~G: AKr>d; yPi-l[; r[;N:l; %nOx]

Este versículo é, normalmente, assim

traduzido: "Ensina a criança no caminho que deve

seguir, e quando for velha não se desviará dele".

No entanto, quando analisar mais cuidadosamente o

conjunto de sentidos das palavras, notará que não

existe nenhum equivalente hebraico para o

português "deve". Isso motivará seu interesse,

pois a tradução comum parece prometer muita coisa.

De fato, esse versículo, muito popular, tem sido

freqüentemente citado como apoio à idéia de que os

pais podem praticamente garantir que seus filhos

crescerão como adultos piedosos, se criados de

forma adequada. A maioria dos provérbios, é claro,

se compõe de generalizações, e as generalizações

têm exceções. Mas você pode fazer uma nova

tradução desse provérbio, não importando o quanto

ele seja conhecido. (Lembre-se de que quanto mais

conhecida é a leitura de um versículo da Bíblia,

tanto mais hesitarão as traduções modernas em

diferir, mesmo quando não gostam dela, por medo de

que as pessoas não comprarão uma Bíblia que mudou

a redação de um de seus "versículos favoritos").

Page 116: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

116

O processo de fazer uma nova tradução de um

versículo não é muito complicado. Requer,

principalmente, a disposição de considerar, lenta

e cuidadosamente, as combinações possíveis de

significado. Assim, quanto a Provérbios 22.6, o

que você poderá determinar facilmente ao consultar

um léxico é que yPi-l[; significa "de acordo com"; e que j;r,d, significa "caminho". Dessa forma,

AKr>Da significa "o seu caminho" ou "o seu próprio caminho". A primeira metade desse dístico poético

diz, então, o seguinte: "Ensine a criança de

acordo com o seu (próprio) caminho". Você não

encontrará nenhuma referência a "deve" aqui. A

lição do versículo, você concluirá corretamente, é

que a criança, abandonada à sua própria vontade

egoísta quando jovem, terá as mesmas tendências

egoístas como adulto.

Nota: Excelentes fontes de tradução alternativa

são as traduções dos autores de comentários

técnicos. Um erudito que tenha estudado um livro

intensivamente é mais capaz de apresentar uma

tradução alternativa. E para informação atualizada

sobre os sentidos mais precisos de palavras

hebraicas, consulte a lista anual de palavras

discutidas nos artigos resumidos em Old Testament

Abstracts, via livro ou em formato eletrônico.

4- O contexto histórico A situação histórica na qual, ou para a qual,

uma parte específica das Escrituras foi escrita

precisa ser entendida para que o seu significado

seja plenamente compreendido. É claro que há

passagens menos rigorosamente "históricas" do que

outras. O salmo 23, por exemplo, trata de

preocupações que quase todas as pessoas, em

qualquer época e lugar, são capazes de avaliar. O

salmo 117, com a ordem simples de louvar a Deus e

a afirmação da lealdade divina ("Louvem ao SENHOR

todas as nações ... a fidelidade do SENHOR

subsiste para sempre") é tão pan-histórica e

pancultural quanto a literatura bíblica pode ser.

Page 117: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

117

Mas conhecer o contexto, o ambiente social, o

cenário histórico e geográfico, e a data, é

normalmente essencial para a avaliação do

significado da passagem. A maior parte dos textos

do AT contém material bastante relacionado com

esse tipo de consideração. A Bíblia é uma

revelação tão historicamente orientada que ignorar

o contexto histórico tende a garantir uma

interpretação equivocada. Um princípio básico da

hermenêutica (a ciência da interpretação) é que

uma passagem não pode significar o que ela nunca

quis significar. Em outras palavras, você deve

saber a que fatos, situações, épocas, pessoas e

lugares a passagem se refere, se não quiser

removê-la do contexto específico que lhe confere o

seu verdadeiro sentido. A ilustração a seguir foi

escolhida como exemplo de uma passagem cujo

significado não pode ser adequadamente captado, a

não ser que se dê atenção ao seu contexto

histórico, ambiente social, cenário histórico e

geográfico, e data.

4.1- O contexto histórico esclarece uma profecia:

Oséias 5.8-10

À primeira vista este breve oráculo profético

é enigmático. Por que tanta ênfase em trombetas

(hr!c;coHE, rpAOw)e alarme (Ufyr9hA)? Por que a

profunda preocupação com um marco de fronteira

(lUbG;)? E por que tudo isso faz Javé proclamar a sua ira (ytir!b;f,)?

"O contexto histórico", descobre o seguinte.

Primeiro, consultando o índice de referências

bíblicas em quase todos os livros sobre a história

de Israel , verá que Oséias 5.8-10 tem um claro

referente histórico: o contra-ataque de Judá a

Israel (o Reino do Norte) na guerra siro-efraimita

de 734-733 a.C. À medida em que você lê, além

dessas fontes, em comentários historicamente

orientados, e segue os detalhes geográficos em um

bom atlas bíblico, notará o seguinte (aqui apenas

de forma resumida).

Page 118: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

118

Contexto. O rei Rezim, de Aram-Damasco, e o rei

Peca, de Israel, propuseram ao rei de Judá, Acaz,

que se unisse a eles numa coligação militar para

desbancar o domínio assírio da Palestina, iniciado

por Tiglate-Pileser III (745-728 a.C.). Acaz,

porém, recusou a aliança, seguindo a palavra de

Deus dada por intermédio de Isaías. Rezim e Peca,

temendo que houvesse um traidor entre eles,

atacaram Judá (734) a fim de depor o rei Acaz. Mas

Acaz, prontamente (e contra a ordem de Deus, dessa

vez), buscou a ajuda de Tiglate-Pileser, o qual

imediatamente atacou Aram-Damasco e Israel. Judá,

tirando vantagem da situação, fez planos para

contra-atacar Israel. Foi, mais ou menos, nessa

época que a palavra de Oséias 5.8-10 foi

proclamada (733).

Cenário. No ataque ao norte, os homens do reino de

Judá avançariam, naturalmente, pela estrada da

cordilheira central, de Jerusalém (ao sul do

limite do território de Benjamim) para Gibeá, Rama

e Betel (chamada, de maneira pejorativa, por

Oséias, Nv@xA tyBe, Bet-Áven, "Casa da

Nulidade"). O contra-ataque foi bem-sucedido. Judá

capturou não só a maior parte do território de

Benjamim como também Betel, na fronteira sul de

Efraim. Judá, então, controlou Betel até a época

de Josias (640-609; cf. 2Rs 23.4, 15-19).

Agora você percebe a razão pela qual Deus

derramou a sua ira (j;OPw;x,, v. 10). Judá está no processo de capturar uma parte do território do

norte, como alguém que sub-repticiamente "move um

marco" a fim de apropriar-se de terra que pertence

ao vizinho (cf. Dt 27.17). As trombetas e o alarme

são os avisos de guerra.

Benjamim e Efraim são os alvos. O ataque

original de Israel e Aram-Damasco contra Judá, em

734, foi errado. Mas o contra-ataque vingativo de

Judá, em 733, também foi errado. Isaías condenou o

primeiro (Is 7.1-9), enquanto (aqui) Oséias

condena o segundo.

5- O contexto literário

Page 119: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

119

A análise do contexto literário tem interesses

diferentes dos da análise histórica. A preocupação

aqui não é com todo o contexto histórico, que se

aprende de quaisquer fontes, mas com a maneira

peculiar pela qual um autor inspirado, ou editor,

colocou uma passagem nos limites de todo um bloco

de literatura. Na maioria das vezes, o contexto

literário mais importante de uma passagem será o

livro no qual a própria passagem se encontra. Como

a passagem se encaixa no livro — qual é a sua

contribuição para o desenvolvimento estrutural do

livro, e qual a contribuição da estrutura do livro

para a passagem — estão entre as principais

perguntas no estudo do contexto literário na

exegese.

5.1- Examinando funções literárias: Como um

capítulo se encaixa num livro: Lamentações 5

Quando você lê o livro de Lamentações

rapidamente, começa a perceber a forma em que é

organizado. Ao consultar uma introdução ao AT

sobre Lamentações , ou um artigo num dicionário

bíblico, você confirmará sua impressão inicial:

cada um dos quatro capítulos iniciais é um poema

de lamentação, organizado em maior ou menor grau

em forma de um acróstico.

No capítulo l, você verá que cada versículo

contém três dísticos poéticos, sendo que o

primeiro dístico poético de cada versículo começa

como uma letra do alfabeto hebraico, em seqüência:

hkAyxe (1.1); OkBA(1.2); htAl;GA(1.3); etc.

Existem 22 versículos no capítulo l,

correspondendo às 22 letras do alfabeto hebraico.

O capítulo 2 tem uma organização similar. No

capítulo 3, porém, você encontrará um formato

triplo de acróstico. Os 66 versículos estão

dispostos em grupos de três, tendo no início de

seus dísticos a mesma seqüência de letras

hebraicas: ynixE, ytiOx , j;xa em 3.1, 2 e 3;

hl.ABi, hn!BA, MyKiwaHEmaB; em 3.4, 5 e 6;

rdaGA, MGa, rdaGA em 3.7, 8 e 9 etc. Esse

terceiro poema não lhe parecerá mais longo do que

Page 120: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

120

os dois anteriores; e assim concluirá que a

versificação diferente não é problema. É a

"intensidade" desse poema que intriga: poderá o

poeta desenvolver ainda mais a sua estrutura

acróstica do que nesse capítulo?

Uma olhadela no capítulo 4 responderá a essa

pergunta. Há novamente 22 versículos, e esses

versículos formam um acróstico simples (hkAyxe, 4.1; yn2B;, 4.2; MGa, 4.3; etc.) Existem somente dois dísticos por versículo. A julgar pelo padrão

dos acrósticos e dos dísticos, você perceberá que

o livro não continua se intensificando, mas vai

perdendo a ênfase do seu ponto mais intenso no

capítulo 3.

5.2- Examinando a localização de uma passagem

Quando a atenção se volta para o quinto e

último poema (cap. 5), percebe-se uma situação

muito interessante. Cada versículo é constituído

de um dístico simples. Além disso, esses dísticos

não estão mais dispostos num acróstico. Somente o

número total de dísticos, como indicado pelos

versículos (22), reflete uma estrutura acróstica —

e isso de forma suave. O relacionamento do

capítulo 5 com o restante do livro está, agora,

bem mais claro. Ele está posicionado no final de

uma progressão que inicia vigorosamente (caps. l e

2), atinge o ápice (cap. 3), diminui de

intensidade (cap. 4) até se tornar apenas uma

pequena lamúria (cap. 5). Esse tipo de progressão

é um dos formatos clássicos da literatura

tecnicamente chamada "tragédia".

5.3- Analisando os detalhes

Até mesmo o versículo final (v. 22) reflete o

estado trágico de Jerusalém depois da conquista

babilônica: Teria Deus rejeitado seu povo,

enfurecendo-se contra eles dxom;-dfa, "completamente"? Esta declaração tocante sobre as

pessoas que agonizavam pela incerteza dá destaque

ao pedido dos sobreviventes.

5.4- Analisando a autoria

Page 121: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

121

A respeito da autoria, você concluirá

provisoriamente que, visto que o cap. 5 se

relaciona de forma integral com o restante do

livro, talvez escrito pelo mesmo autor dos

capítulos 1-4. Ao consultar as introduções ao AT,

os dicionários bíblicos e especialmente as partes

introdutórias de comentários sobre Lamentações,

você descobrirá um grande número de teorias

conflitantes sobre a autoria do livro e/ ou de

suas diversas partes. Outras etapas do processo

exegético (especialmente contexto histórico,

forma, estrutura e conteúdo léxico) são relevantes

para a questão da autoria. Assim, ela ainda não

pode ser respondida de modo definitivo.

Entretanto, diante das opiniões conflitantes dos

especialistas, você precisará tomar a sua decisão.

Quando a sua exegese indicar unidade de autoria,

você não deverá deixar de expor a própria opinião.

6- A forma Conhecer a forma de uma passagem certamente

traz dividendos exegéticos. Se você pode

categorizar de forma precisa uma peça de

literatura, poderá também compará-la com precisão

com passagens semelhantes e, desse modo, apreciar

tanto os aspectos em que ela é típica quanto os

aspectos em que é singular. Além do mais, a forma

de uma peça literária está sempre relacionada, de

algum modo, com sua função.

O exemplo abaixo se concentra especialmente

nesse relacionamento entre forma e função. Nesse

processo, ele trata dos aspectos da análise do

tipo literário geral, tipo literário específico,

subcategorias, contexto vivencial e integridade

relativa da forma.

6.1- A forma como chave para a função: Jonas 2.3-

10 [2.2-9]

Ao analisar o contexto literário deste "salmo

de Jonas", você toma conhecimento de que existe um

questionamento sobre o seu lugar no livro. Alguns

estudiosos o consideram uma interpelação

inadequada ao seu contexto atual. Na verdade,

alguns chegaram a sugerir que seu estilo difere do

Page 122: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

122

restante do livro, ignorando o fato de que o

estilo é quase sempre uma função do gênero e da

forma, de modo que um salmo poético dificilmente

deixaria de refletir um estilo diferente do resto

do livro, que é uma narrativa. A fim de avaliar os

argumentos desses estudiosos, você precisará

determinar que tipo de salmo ele é, i.e., qual é a

sua forma.

Para isso, você consultará um livro ou

comentário que classifique os salmos de acordo com

as suas formas. Ao consultar, por exemplo,

Bernhard W. Anderson, Out of the Depths: The

Psalms Speak for Us Today (3. ed., Westminster

John Knox Press, 2000) concluirá que o salmo de

Jonas é, aparentemente, um "salmo de ação de

graças", pois ele tem as cinco características

que, segundo Anderson, compõem a maioria dos

salmos de ação de graças. As cinco características

são: (a) uma introdução que resume o testemunho do

salmista (v.3[2]); (b) o trecho principal que

descreve as aflições passadas (v.4-7a[3-6a]); (c)

a súplica por auxílio (v.8[7]); (d) uma descrição

do livramento (v.7b[6b]); (e) uma conclusão, na

qual a graça de Deus é louvada e o salmista

promete demonstrar sua apreciação por Deus (v. 9-

10[8-9]). Você já deve ter notado que os salmos de

ação de graças são orações de gratidão por

livramento da aflição já passada.

Isso o fará refletir. Você sempre presumiu,

talvez até foi ensinado assim, que o fato de Jonas

ter sido engolido pelo peixe fora uma punição. Mas

Jonas ora um salmo de gratidão a Deus pelo

livramento! Relendo a história, perceberá que a

punição de Jonas foi ter sofrido a tempestade e

sido lançado ao mar (Jn 1.12-15).

O peixe, portanto, representa o resgate do

afogamento. Agora as peças começam a encaixar-se.

O salmo contribui para o propósito da história ao

demonstrar nitidamente a incoerência de Jonas.

Ele, eloqüentemente, expressa gratidão a Javé pelo

próprio resgate, embora merecesse a morte; porém,

mais tarde se ressente do livramento de Javé para

os ninivitas, e continua desejando a morte deles

Page 123: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

123

(cap. 4). Saber a forma do salmo permite, de fato,

uma avaliação mais abrangente do caráter de Jonas.

Uma nota explicativa acerca do contexto

vivencial de Jonas 2.3-10 [2-9]. Alguns eruditos

têm proposto a teoria de que os salmos de ação de

graças têm seu contexto vivencial na adoração no

templo. O israelita traria sua oferta ao templo,

recitaria (ou ouviria) um salmo de ação de graças

enquanto fazia sua oferta e sairia, depois de

prometer voltar para oferecer outros sacrifícios.

A evidência, no entanto, sugere que os salmos eram

recitados em muitas ocasiões na vida dos crentes

(cf. os títulos dos salmos, apesar de muitos sem

dúvida serem secundários; o uso dos salmos pelos

profetas; e o cantar dos salmos em contextos

outros que não o do templo no NT, como em Mc 14.26

ou At 16.25; cf. Ef 5.19; Cl 3.16). Dessa forma, o

uso que Jonas faz de um salmo de ação de graças

era, de fato, típico. O contexto vivencial para

esse tipo de salmo era qualquer ocasião em que

coubesse gratidão pelo livramento de uma aflição.

7- A estrutura Entender a estrutura de uma passagem é captar

o fluxo de conteúdo projetado nela pela mente do

autor, consciente ou inconscientemente. Contudo,

além disso, é importante considerar que o

significado não é comunicado apenas por palavras e

frases. Como as palavras e frases se relacionam

entre si, e onde ocorrem na passagem, pode ter um

impacto profundo na compreensão da mesma. De fato,

com freqüência, a estrutura é o principal critério

de decisão para determinar se um bloco de material

é uma única passagem ou um grupo independente de

passagens independentes. Uma palavra-chave na

análise estrutural é "padrões". Padrões indicam

ênfases e relacionamentos; e ênfases e

relacionamentos, por sua vez, priorizam

significado. A pergunta básica que você deve fazer

ao analisar a estrutura de uma passagem é: o que

posso aprender do modo como isso foi montado?

Surpreendentemente o bastante, depois de um estudo

cuidadoso, pode-se aprender bem mais do que vemos

num primeiro vislumbre.

Page 124: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

124

7.1- Analisando a estrutura e a unidade: Amos 5.1-

17

Ao trabalhar com Amos 5, você percebe que não

é óbvio de imediato que o trecho de 1-17 forma ou

não uma unidade. Notará que os estudiosos,

normalmente, atribuem quase todo esse material a

Amos. Entretanto, alguns têm sugerido que esses

versículos são um compêndio de pequenas unidades

de discurso pregadas por Amos em vários lugares e

momentos. Seguindo as orientações, você esboçará a

passagem com cuidado, procurando por padrões,

analisando o paralelismo poético. Você observará

algumas correspondências interessantes.

Os v. 1-3 falam de lamentação (hn!yqi) e

predizem a ruína de Israel. Os v. 16-17 são

semelhantes, com sua ênfase no pranto (dPes;mi),

lamentos (lb,xe) etc. Na verdade, os v. 16-17

parecem quase descrever a dor resultante da

destruição apresentada nos v. 1-3. Prosseguindo

para os v. 4-6, perceberá que eles têm como tema a

busca (wrd) de Javé e da vida (hy!HA) livre da

prática de coisas más e proibidas. É interessante

que os v. 14-15 empregam o mesmo vocabulário e, da

mesma forma, contrastam o fazer a vontade de Javé

com a prática do mal. Poderia haver ainda outras

correspondências? No v. 7, o assunto é a

injustiça: as coisas são o oposto do que deveriam

ser. Olhando mais adiante, notará que os v. 10-13

compartilham desse tema. Ali Javé denuncia, com

algum detalhe, as injustiças que os israelitas

praticavam nos dias de Amos. No v. 13, hfArA tfe ("tempo de desgraça") certamente resume o que os

v. 7 e 10-13 descrevem em comum. Restam apenas os

v. 8 e 9. Como eles se enquadram? Você verá que o

v. 8 apresenta o fato de que o poder de Javé para

criar implica também no poder de destruir. E o v.

9 também fala que ele é capaz de destruir, até

mesmo a fortaleza (CfA). Por último, você

observará que, na BHS, as palavras Omw; hvhy, no final do v. 8, estão isoladas, aparecendo sozinhas

numa linha. Aparentemente, o editor de Amos na BHS

Page 125: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

125

(Elliger) alerta para o fato de que essas duas

palavras se destacam por não terem paralelo no

texto. Uma vez que essas palavras ("Javé é o seu

nome") estão mais ou menos no centro da passagem,

você poderá verificar se é possível estruturar

simetricamente a passagem a partir delas. Aqui

está o resultado:

1-3

4-6

7

8a-c

8d (Omw; hvhy) 9

10-13

14-15

16-17

Você reconhece um quiasmo de grandes

proporções aqui. Um formato literário

propositadamente concêntrico. Supondo que Amos

estruturou, intencionalmente, sua revelação dessa

maneira, você concluirá, com razão, que a passagem

é uma unidade.

Ao utilizar os procedimentos descritos no

Passo 11 (a seguir) você verificará que J. DeWaard

confirma amplamente sua análise e provê uma

descrição cuidadosamente detalhada dessa passagem,

no artigo em Vetus Testamentum 27 (1977), p. 170-

177, cujo título é "The Chiastic Structure of Amos

v 1-17" ("A Estrutura Quiástica de Amos 5.1-17").

Você poderá, então, usar o artigo de DeWaard para

aperfeiçoar e ajustar suas conclusões onde

necessário. Mas você não precisará começar pela

análise de DeWaard a fim de descobrir as

características estruturais básicas. Isso você

pode, com cuidado, fazer sozinho. Além disso,

tendo concluído a análise estrutural básica, você

se encontrará numa posição bem mais confortável

para avaliar e pesar a contribuição feita pelo

artigo de DeWaard para a sua exegese. Em outras

palavras, o exegeta cuidadoso é invariavelmente um

"consumidor" da melhor qualidade do que encontra

Page 126: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

126

na literatura secundária a respeito de uma

passagem do que a pessoa que dá atenção

primeiramente à literatura secundária, sem fazer a

análise crítica necessária pela qual essa fonte

pode ser utilizada e aproveitada de forma mais

eficaz.

8- Os dados gramaticais É aqui que todas aquelas horas investidas em

aprender a gramática hebraica vão, por fim, trazer

dividendos. O alvo da gramática é a exatidão. Em

qualquer língua, gramática ruim pode ofender o

nosso bom gosto, mas seu maior perigo é que ela

pode bloquear a nossa compreensão. De igual forma,

uma falha em avaliar a gramática numa passagem do

AT é, não somente, deixar de observar sutilezas da

linguagem, mas é, também, deixar de entender

exatamente o que foi e o que não foi dito.

8.1- Identificando ambigüidades gramaticais:

Juizes 19.25

~h,ylea] aceYOw: Avg>l;ypiB. vyaih' qzEx]Y:w:

assim, o homem tomou a sua concubina e a trouxe

para eles

Ao fazer a exegese de Juizes 19, você encontra

uma aparente incoerência que causa surpresa. O

levita parece agir sem consideração alguma (v. 28)

para com a sua concubina ao entregá-la a um grupo

de estupradores (v. 22-25). Todavia, mais tarde,

ele parece ter ficado tão furioso com o que eles

fizeram (previsivelmente) com ela a ponto de

convocar todo o Israel para a guerra por causa

disso (v. 29-30; cap. 20). Com sua atenção voltada

para a precisão gramatical, você relê

cuidadosamente as partes relevantes do texto a fim

de determinar se a sua impressão inicial foi

correta. Seu interesse principal será o de

compreender exatamente quem eram as partes

envolvidas no v. 25.

Page 127: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

127

Você observará que cada uma das personagens da

história é nomeada de mais de uma forma.

Especificamente, o levita é identificado como

yv9le wyxi("levita", v. 1); h0wAyxi ("seu

marido", v. 3); OntaHE ("seu genro", v. 5, 9); e

wyxihA ("o homem", v. 7, 9, 17, 22, 28 etc.). O

homem de Efraim, em cuja casa ele se hospedou em

Gibeá, é chamado de Nq,zA wyxi ("um homem idoso",

v. 16); wyxihA ("o homem", v. 16, 22, 23, 26); e

Nq,zA0ha wyxihA ("o homem idoso", v. 17, 20

etc.) Você percebe numa comparação rápida que

tanto o levita como o homem idoso podem ser

identificados como, simplesmente, wyxihA. Qual

deles, então, é o referente gramatical para a

expressão wyxihA no v. 25? A identidade da

concubina é bastante clara, mas wyxihA ("o

homem") é aparentemente ambíguo. A decisão aqui

requer a avaliação das evidências em duas frentes.

Primeiro, você notará que fora do v. 25, tanto

o levita como o homem idoso podem ser

identificados estritamente como wyxihA, ou podem

ser chamados wyxihA com um modificador, tal como

em Har2xohA wyxihA ("o homem que estava

viajando", v. 17), ou ty9Baha lfaBa wyxihA ("o

dono da casa"', v. 22). Portanto, wyxihA no v. 25

é realmente ambíguo. A ausência de um modificador

o deixa assim.

Segundo, você observará que os v. 22-25 deixam

claro que o dono da casa é quem estava conversando

com os estupradores, mas não há nenhum indício de

que o levita também estivesse. Você, então, decide

(corretamente) que wyxihA tem o homem idoso como

o seu referente gramatical, não o levita.

A análise gramatical tem os seus limites, é

claro. No caso de Juizes 19, permanece uma

questão: Teria o levita conhecimento do que o

homem idoso fez? A gramática pode levantar essa

pergunta, mas não pode respondê-la. A solução

Page 128: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

128

encontra-se tanto na análise da estrutura da

passagem como na análise do contexto histórico.

Essa é uma típica narrativa bíblica lacônica: a

passagem omite qualquer detalhe não-essencial e

espera que o leitor conclua que o levita não

estava ciente das ações do homem idoso. Sobre o

contexto histórico: arqueologicamente, muitas

casas de israelitas tinham seus aposentos e

dormitórios — onde o levita, presume-se, estava

alojado —, tão distante quanto possível da porta

de entrada da casa.

8.2. Identificando uma especificidade gramatical:

Oséias 1.2

~ynIWnz> ydel.y:w> ~ynIWnz> tv,ae ^l.-xq; `hw"hy> yrex]a;me #r,a'h' hn<z>ti hnOz"-yKi

Vai, toma uma mulher de prostituições e terás

filhos de prostituição, porque a terra se

prostituiu, desviando-se de Javé.

Ao fazer a exegese de Oséias l, você é

imediatamente confrontado com uma questão de

interpretação: Deus realmente ordenou que Oséias

se casasse com uma prostituta? Muitos

comentaristas respondem de forma afirmativa,

sugerindo, não raro, que a mulher de Oséias

voltou-se para a prostituição algum tempo após o

casamento, e Oséias, observando seu passado num

período posterior, enquanto procurava por uma

analogia para descrever a infidelidade de Israel

para com Javé, conta a história do próprio

matrimônio como se lhe tivesse sido ordenado

casar-se com uma prostituta. Entretanto, esses

intérpretes não têm necessariamente a gramática

hebraica a seu favor.

Há apenas três palavras hebraicas que designam

a prostituta(o): hwAdeq4 ("prostituta cultuai"), hn!z* ("prostituta comum") e bl,K, ("prostituto"). Observe o óbvio: nenhuma das três formas é usada

aqui. Em lugar disso, surge um composto especial:

Page 129: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

129

a palavra hwA0xi (mulher ou esposa) é usada no modo designado pelos gramáticos do hebraico de

"forma presa", ou mais comumente "forma construta"

em combinação com o substantivo regente no

masculino plural, Myn9Unz4 Procurando em

qualquer gramática hebraica de referência (4.7.1),

você será lembrado de que o masculino plural é o

modo padrão em hebraico para referir-se à

abstração - neste caso, não "prostituta(o)", mas o

conceito de "prostituição", i.e., no contexto

teológico, o oposto de "fidelidade". Além disso,

você descobrirá que os substantivos no "construto"

relacionam-se logicamente com o substantivo

regente no sentido de "algo caracterizado por",

portanto Myn9Unz4 tw,x2 tende a significar "uma mulher caracterizada por [pelo conceito abstrato

de] prostituição" em vez de "uma prostituta".

Observe também que os filhos de Oséias são

designados Myn9Unz4 ydel;y1 "filhos de

prostituição" numa construção hebraica paralela e

precisa, i.e., "filhos caracterizados por [pelo

conceito abstrato de] prostituição" em vez de,

"filhos de uma prostituta". Repare também que o

versículo prossegue afirmando que a terra (de

Israel), hn@z4t9 hn*z!, "se prostituiu". E por fim, os gramáticos lhe dirão que a preposição

empregada no fim do versículo, yreHExame, "para longe", é um composto que significa literalmente

"para longe de após", i.e., "em outra direção que

não após [seguindo]" Javé.

O mesmo então está sendo dito a respeito da

mulher de Oséias, a respeito dos filhos que lhe

nasceram posteriormente, e acerca da terra de

Israel em geral - e em nenhum caso o significado

literal está aparentemente relacionado com a venda

de sexo. O que, então, está sendo dito? Se nem a

mulher nem os filhos, e tampouco a população de

Israel, estão sendo literalmente chamados de

"prostitutos", qual é a acusação contra eles? Esta

pergunta deve ser respondida parcialmente pela

referência ao contexto literário e bíblico, embora

ainda com o olhar perspicaz voltado para a

Page 130: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

130

gramática envolvida. Observando a forma em que a

raiz hebraica em questão, hnz, é usada

predominantemente em Oséias (e em outros contextos

proféticos, especialmente Ezequiel), você

encontrará que o uso dessa expressão é

majoritariamente metafórico, para designar o

sentido de "infidelidade [religiosa] máxima" a

Javé. Retornando a Oséias 1.2, você concluirá que

o versículo é conceitualmente paralelo a Isaías

64.6 ou a Salmos 14.2-3 (cf. Rm 3.10-12). O ponto

é, de um modo hiperbólico, que todo o Israel

abandonara a aliança de Javé, de modo que até

mesmo a mulher e os filhos de Oséias — não importa

com quem ele se case — serão maculados pela mesma

infidelidade demonstrada de forma geral pela

"terra".

8.3- Analisando a ortografia e a morfologia

A análise da ortografia ou da morfologia

hebraica não é uma tarefa fácil para iniciantes no

hebraico. Mas o seu valor é, muitas vezes,

inestimável em conexão com passagens

problemáticas, especialmente quando pode haver

suspeita quanto a decisões dos massoretas

medievais sobre como as palavras deveriam ser

entendidas.

a)- Utilizando a análise ortográfica para remover

uma leitura estranha: Gênesis 49. 10

hd'Whymi jb,ve rWsy"-al{ wyl'g>r; !yBemi qqexom.W hl{yvi aboy"-yKi d[; `~yMi[; th;Q.yI Alw>

Na terceira linha, o hebraico parece dizer:

"até que venha Siló" ou "até que ele venha a

Siló". Ambos os sentidos, você concluirá, são

estranhos, e sua leitura revela o descontentamento

generalizado da parte dos tradutores com a

vocalização massorética atual. Nesse caso, uma

solução convincente exigirá alguma habilidade em

avaliar a ortografia hebraica antiga (o estilo da

Page 131: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

131

escrita), o que implicará num conhecimento do

hebraico para além do nível inicial.

O problema poderá envolver vocalização,

ortografia e, até mesmo, divisão de palavras. A

combinação yKi dfa ("até") parece suficientemente clara. Todavia, existe algum outro modo de se

interpretar hloywi xboy!? Visto que hloywi ("Siló") é o real elemento estranho aqui, você

deverá analisá-lo outra vez. Retirando-se as

vogais se remove a possível opinião incorreta dos

massoretas medievais sobre a vocalização. Agora

você tem hlyw. Pode-se dividir essa palavra? Será

que um problema de espaçamento resultou na grafia

hlyw? Você separa yw de hl. Ao investigar yw,

verá que suas consoantes são as mesmas da palavra

hebraica normal (ywa), que significa "oferta(s)",

"presente(s)", "tributo(s)". Mas, e quanto a hl? Consultando Cross e Freedman, Early Hebrew

Orthography (4.7.2), você descobre que hl era como se escrevia Ol ("para ele") antigamente. Assim,

hlyw poderia ter sido o mesmo que hlo ywa, "tributo para ele". Agora você observará

cuidadosamente xboy!. Mais uma vez, retirando-se os sinais massoréticos, a fim de reavaliar a

vocalização, fica xby. Cross e Freedman o

informarão que em poemas primitivos, como Gênesis

49, a ortografia original não tinha vogais e era,

portanto, muito ambígua. Assim, as consoantes xby poderiam representar o que mais tarde foi

vocalizado como xboy! ("ele vem"), ou xybiy!

("ele traz", no hifil), ou, ainda, xbAUy ("é

trazido", no hofal) etc. A última opção acabará

chamando sua atenção, pois se encaixa muito bem no

contexto.

A opinião dos massoretas sobre a vocalização

do texto surgiu de sua interpretação muito tempo

depois da redação original da passagem. Por essa

razão, sua reavaliação da vocalização é uma

sugestão válida e justificada. Você concluirá que

Page 132: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

132

a linha que, tradicionalmente, fala de "Siló"

deveria ser:

Hlo ywa xbAyu yKi dfa

"até que lhe seja trazido tributo"

O fato de que esse sentido se enquadra

perfeitamente na próxima linha paralela ("e a

obediência das nações é dele") confirma a sua

conclusão.

A verificação da literatura relevante (Passo

12) será um apoio importante: O prof. W. L. Moran

propôs precisamente essa interpretação, a mais

convincente na literatura, num artigo em Bíblica

39 (1958), p. 405-425, cujo título é "Gênesis

49:10 and Its Use in Ezekiel 21:32" ("Gênesis

49.10 e seu uso em Ezequiel 21.32").

Nota: Parte do mesmo tipo de habilidade para se

chegar a uma conclusão poderá ser necessária para

se avaliar uma conclusão com segurança. Ainda que

nunca lhe tenha ocorrido reconstruir Gênesis 49.10

como acima, decidir entre as opções que ocorreram

a outros também exige trabalho cuidadoso. Dessa

forma, seu labor exegético vai recompensá-lo como

avaliador de erudição, não somente como autor

dela. Em outras palavras, à medida que suas

habilidades exegéticas forem desenvolvidas, você

se tornará um leitor melhor — e não apenas um

melhor autor - de estudos exegéticos.

9- Dados lexicais Existe um considerável grau de subjetividade

no processo de decidir que palavras e frases são

as mais importantes numa passagem. Esta é uma das

razões para incluirmos esse passo neste ponto do

processo, e não antes: Você precisa familiarizar-

se com a passagem o máximo possível antes de

escolher e classificar os termos para um estudo

mais profundo. Deixe-se guiar pela própria

curiosidade e pelo perfil intelectual de seu

público. Onde necessário, veja quais palavras os

Page 133: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

133

estudiosos selecionam para comentar. Mas seja

cuidadoso aqui. Um comentarista que investiga uma

palavra no capítulo 5 de seu comentário pode não

estar inclinado a comentá-la no capítulo 10.

Confie em seu julgamento quanto ao que é mais

importante. Quanto à freqüência de ocorrências de

uma palavra no AT, pode-se consultar quase

qualquer concordância em computador ou a

concordância de Even-Shoshan. Para ter uma idéia

do quanto se pode dizer sobre um termo, se se

quiser ser relativamente exaustivo na análise,

veja TDOT [Theological Dictionary of the Old

Testament], TWOT ou DITAT [Dicionário

Internacional de Teologia do Antigo Testamento].

9.1- A importância do exame de palavras-chave:

2Crônicas 13

Você passará por todo o capítulo escolhendo

termos que possam exigir uma explicação. No

início, escolherá livremente, sem se importar com

o número de termos apontados. São estes os termos

que você selecionará:

v. 3, 17 @l,a, "mil" v. 3, 17 rWxB' vyai "soldado em plena forma" v. 4 ~yIr;m'c. rha "Monte Zemaraim"

v. 4 laer'f.yI-lKA "todo Israel"

v. 5 hk'l'm.ma "reinado"

v. 5 ~l'A[l. "para sempre" v. 5 xl;m, tyrIB. "aliança de sal" v. 6 hmol{v. db,[, "servo de Salomão" v. 7 ~yqire "imprestáveis" v. 7; S. R. l[;Y:lib. "vadio" v. 7 bb'le-%r; "indeciso" v. 8 ~yhil{ale "como deuses"

Page 134: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

134

v. 9 Ady" aLem;l. "consagrar-se"

v. 9 ~yhil{a/ al{ "não são deuses" v. 10 tk,al'm.B; "no serviço" v. 11 rAhJ'h; !x'l.Vuh; "a mesa pura" v. 15 W[yrIY"w: "e eles gritaram" v. 15, 20 @g:n" "derrotou/feriu" v. 18 ~h,yteAba] yhel{a/ "Deus de seus antepassados"

v. 19 h'yt,AnB.-ta,w> (lae-tyBe) "(Betel) e seus povoados" v. 22 AD[i aybiN"h; vr;d>mi "comentário do profeta Ido"

Quantos desses termos você será capaz de

discutir e quais desses selecionará, depende do

alcance do seu trabalho. Procure escolher

relativamente poucas palavras, levando em conta

que os termos que não necessitam de discussão mais

extensa podem ser comentados nas notas a respeito

da tradução ou em outro lugar na exegese. Você

escolhe cinco termos que demandam maior discussão.

Eles são:

@l,a, "mil" (v. 3, 17) Sua leitura informou-lhe que @l,a, significa

uma "unidade militar", em vez de mil,

literalmente. Você terá de explicar o significado

disso na sua exegese.

xl;m, tyrIB. "aliança de sal" (v. 5) Esse termo incomum, atestado já em Números

18.19 e atestado conceitualmente, embora não com

essa mesma linguagem, em Levítico 2.13 e Esdras

4.14, certamente lançará luz sobre o que Abias

pensa da linhagem real davídica.

~yhil{a/ alo "não são deuses" (v. 9)

Page 135: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

135

Esse termo deve ser importante para a

compreensão do politeísmo/idolatria da perspectiva

ortodoxa de Judá.

@g:n! "destruir, derrotar, ferir" etc. (v. 15, 20) A maioria das traduções traduzem a palavra de

forma diferente no v. 15 e no v. 20. Entender seu

uso pode auxiliar na identificação da função

divina nos fatos descritos.

AD[i aybiN"h; vr;d>mi"comentário do profeta Ido"(v.22) A compreensão desse documento seria, sem

dúvida, uma grande contribuição para a avaliação

de como o cronista compilou a sua história e como

era o público para quem ele estava escrevendo.

Desse grupo de cinco, escolha xl;m, tyrIB. para a an álise lexical completa. Por meio de consultas

aos dicionários teológicos (4.8.4), bem como aos

dicionários bíblicos maiores (IDB, ISBE etc.),

você descobrirá que xl;m, tyrIB. é uma maneira de

dizer, na verdade, "aliança perpétua"; quem sabe

até, talvez, "aliança régia perpétua", por causa

do papel que o sal desempenhava como

preservador/perpetuador (cf. Lv 2.13), e por causa

de sua associação com as refeições régias de

aliança (cf. Ed 4.14). De fato, a riqueza desse

termo originou o livro de H.C. Trumbull, cujo

título é The Covenant of Salt [A Aliança de Sal]

(Charles Scribner's Sons, 1899), que, se estiver à

sua disposição, seria de grande valor nesse ponto

do estudo lexical.

10- Contexto bíblico A observação de como a passagem é usada em

outros lugares na Bíblia (se for usada — nem todas

as passagens são) ajuda a determinar sua relação

com o restante das Escrituras. Isso, por sua vez,

leva a uma estimativa de sua importância para o

entendimento das Escrituras.

Page 136: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

136

10.1- Observando o contexto mais amplo: Jeremias

31.31-34

A sua primeira preocupação nesta parte é

verificar se a passagem é citada ou se há alusão a

ela em outra parte na Bíblia. Uma vez que a

citação de uma obra literária em outra obra é fato

muito raro no antigo Oriente Próximo antes da

época dos romanos, você não deverá esperar

encontrar um trecho do AT citado no próprio AT.

Entretanto, alusões podem existir, e o NT,

certamente, tanto cita quanto alude a passagens do

AT. Há dois auxílios que em muito adiantarão sua

pesquisa, antes mesmo de precisar consultar os

comentários: o "Index of Quotations" (i.e.,

"índice de Citações"; às vezes chamado "Index of

Citations and Allusions", i.e., "índice de

Citações e Alusões"), encontrado na maior parte

dos Novos Testamentos gregos; além das listas de

referências das bíblias de estudo ou das chaves

bíblicas.

Ao consultar o índice do NT, você encontrará o

seguinte sobre a sua passagem:

Jeremias 31.31 Mt 26.28; Lc 22.20; ICo 11.25

31-34 2Co 3.6; Hb 8.8-12

33 2Co3.3;Hb l0.16

33-34 Rm ll.27; 1Ts 4.9

34 At 10.43; Hb 10.17; Uo 2.27

Ao examinar cada um desses textos num NT grego

(ou em português), você verá que os três primeiros

(Mt 26.28; Lc 22.20; l Co 11.25) estão

relacionados com a instituição da Ceia do Senhor,

e parecem representar alusões genuínas, e não

necessariamente citações, a Jeremias 31.31. A

partir disso, concluirá que, além de outras

coisas, a Ceia do Senhor constitui um lembrete do

cumprimento do tipo de profecia feito em Jeremias

31.31. A quarta referência, 2Coríntios 3.6, parece

aludir tanto a Jeremias 31.31 como a 31.34. Esse

texto confere à predição original certo grau de

profundidade de interpretação, ao destacar a

enorme vantagem de um relacionamento espiritual

com Deus sobre um puramente técnico, no qual a

Page 137: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

137

observação de regras escritas constitui a essência

da justiça.

A referência de Hebreus 8 é uma citação

completa de toda a passagem de Jeremias, o que

mostra seu grande significado (é uma das mais

longas citações do AT no NT). Mas, além disso, o

seu uso em Hebreus, um livro parcialmente dedicado

a demonstrar a superioridade da Nova Aliança sobre

a Antiga, destaca de modo especial como a passagem

de Jeremias implicitamente chama a atenção para a

natureza temporária da aliança do Sinai.

O uso de Jeremias 31.33 em 2Coríntios 3.3 é

outra alusão (não citação) na qual Paulo destaca a

participação humana numa aliança de vida,

permitindo, assim, que você note que ele considera

a profecia como algo que diz respeito a um modo

diferente de se relacionar com Deus — mais

responsivo e vital. Hebreus 10.16 apresenta uma

outra citação da passagem, dessa vez com o

propósito de destacar como a profecia de Jeremias

prevê uma era em que os atos redentores de Deus

vão tornar desnecessário o sistema sacrificial do

AT. Essa é uma perspectiva que, com certeza, você

desejará registrar.

Partes dos versículos 33 e 34 da profecia

aparecem em Romanos 11.27, com referência à

restauração da nação de Israel. Esse aspecto das

palavras de Jeremias não pode ser ignorado (cf. Dt

4.31). Paulo encontra na Nova Aliança o verdadeiro

cumprimento das promessas a Israel.

Ao examinar a próxima referência,

ITessalonicenses 4.9, você não reconhecerá nenhuma

alusão óbvia a nada de Jeremias 31.31-34. "Amar

uns aos outros" parecerá mais uma alusão a

Levítico 19.18, ou a Deuteronômio 10.18,19, ou a

Provérbios 17.17, ou a alguma outra passagem

similar, do que a Jeremias 31. O "índice de

Citações" está errado neste ponto? É muito

provável que sim. Trata-se claramente de uma lista

que você deverá utilizar com cautela.

De igual modo, Atos 10.43 somente pode ser

considerado como referindo-se a Jeremias 31 de

forma muito geral. O perdão é uma promessa

profética muito mais ampla do que apenas um texto.

Page 138: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

138

Hebreus 10.17, porém, é na verdade uma citação de

parte de Jeremias 31.34, com a ênfase na

possibilidade de os pecados serem perdoados sem a

oferta contínua dos sacrifícios da Antiga Aliança

(cf. Hb 10.16, acima). Mas l João 2.27, a última

referência, com a afirmação, "e não precisam que

alguém os ensine", também parecerá não ter relação

alguma com Jeremias 31.34. Mais uma vez, o "índice

de citações" é um tanto desorientador e você

deverá considerar essa citação como irrelevante.

Consultar uma bíblia de estudo ou uma chave

bíblica pode produzir resultados semelhantes.

Muitas referências serão extremamente úteis,

outras estarão erradas, baseando-se em

similaridades de palavras ou tópicos, demonstrando

não serem alusões nem citações, quando melhor

examinadas. A pesquisa nos resultados gerados por

uma concordância no computador também exige

seletividade da sua parte. O trabalho exegético

sensato o ajudará a distinguir entre o relevante e

o irrelevante. Também o ajudará a preparar-se com

antecedência para avaliar o desempenho dos

comentaristas no seu tratamento das questões

relacionadas ao uso bíblico do texto.

Mas como achar passagens semelhantes ou

relevantes àquela que está estudando quando o

"índice de citações" e as listas de referências

nada indicam, ou quando você quiser ir além

daquilo que encontrou nessas fontes? Para fazer

isso, você precisará contar com o seu próprio

conhecimento do contexto bíblico e com quaisquer

outras indicações que puder colher em livros,

artigos e comentários que abordem sua passagem

e/ou seus temas. Lembre-se, porém, de que é o seu

próprio julgamento que deve prevalecer aqui. O que

alguém considera "relacionado" pode ou não ter

relação com o texto. É você quem decidirá.

Nosso exemplo foi de uma passagem do AT usada

no NT. Para a maioria das passagens, os "usos"

serão limitados a outros contextos do AT. Em

muitos casos, passagens paralelas ou relevantes

devem ser localizadas com base exclusivamente em

conexões temáticas ou lexicais, as quais você

deverá pesquisar e avaliar com muita atenção.

Page 139: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

139

Concordâncias de tópicos podem ser úteis em muitos

casos — se houver vocabulário em comum. Se não

houver, você descobrirá como a passagem deve ser

entendida num contexto mais amplo somente ao ler

os comentários ou artigos sobre a passagem em

estudo.

Nota: Livros do nível de ElwelVs Topical Analysis

ofthe Bible ou Handbook of Basic Bible Texts, de

Davis podem ser muito úteis tanto aqui como no

próximo passo.

11- Teologia Se você é cristão, o Antigo Testamento também

é sua herança teológica (Gl 3.29). O que você crê

é informado pelo seu conteúdo, corrigido por suas

fortes advertências, e incentivado por seus

ensinos. A teologia é uma grande, e por vezes

complexa, empreitada que não pode ser ignorada.

Como uma passagem se enquadra no quadro geral do

sistema de fé cristão merece atenção cuidadosa. A

partir das muitas passagens da Bíblia vemos um

quadro daquilo que Deus revelou especificamente. E

a partir de todo o conjunto da teologia podemos

ter uma perspectiva adequada para apreciar as

verdades de textos individuais.

11.1- Uma perspectiva especial sobre a doutrina de

Deus: Oséias 6.1-3

Este breve oráculo é uma das diversas

promessas de restauração encontradas em Oséias.

Entre os anúncios da destruição e do exílio

vindouros, aqui e ali se encontram lembretes de

que Javé não irá destruir completa e

definitivamente o seu povo, mas restaurará e

abençoará, algum dia, um remanescente resgatado do

exílio.

Assim, ao examinar Oséias 6.1-3 quanto à sua

relação com a teologia cristã em si, você notará,

primeiramente, que a sua mensagem não é limitada à

Antiga Aliança. (De modo geral, promessas de

restauração abrangem a Nova Aliança.) A essência

da passagem parece ser um convite à (re)aceitação

de um povo por Deus, uma vez que a linguagem é

Page 140: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

140

plural e coletiva, e não singular e individual.

Portanto, a passagem é escatológica, da

perspectiva do AT, e também representa uma

escatologia parcialmente realizada, da perspectiva

do NT. Pela consulta de uma ou mais teologias

sistemáticas, para obter uma noção das categorias

apropriadas, você determinará que ela trata da

doutrina do pecado, pelo fato de que o perdão é

parte da promessa; e trata, também, da doutrina da

igreja, no que se refere à promessa da fidelidade

de Deus ao seu povo como uma entidade coletiva

(cf. Gl 3.26-29; Ef 2.11-22) etc. Mas, é provável

que o seu impacto teológico mais direto seja na

área da doutrina de Deus (teologia própria). Você

observará que toda a passagem focaliza no

relacionamento do povo de Deus com ele mesmo. Ele

trouxe a punição; ele trará a cura (v.l). Ele dará

vida nova e restauração (v. 2). Se reconhecido,

ele mostrará a sua fidelidade (v. 3). Assim, a

coerência de Deus, a sua misericórdia em contraste

com o seu julgamento, sua acessibilidade etc. são

aspectos incluídos no oráculo.

Você tentará avaliar a contribuição da

passagem para a nossa compreensão da teologia da

forma mais específica possível. Neste caso, a

passagem não diz nada inteiramente exclusivo no

que diz respeito a seus temas (conceitos) gerais.

Entretanto, utiliza uma linguagem até certo ponto

exclusiva (palavras, fraseologia) no que afirma.

Por exemplo, você observou no v. l que a descrição

da punição divina, usando os verbos Jr1FA

("despedaçar"), e hkAn! ("atacar"), combinada com

as promessas imediatas de cura (xpArA), e de por

bandagens nas feridas (wbaHA), é uma descrição

metafórica sem paralelo preciso na Bíblia. A

linguagem dos "dois" e "três" dias é, também,

bastante dramática, mas não é usada com a intenção

de dar alguma pista sobre o espaço de tempo entre

a crucificação e a ressurreição, você concluirá

acertadamente. A idéia de que Javé mostra sua

fidelidade por meio da natureza, e é também tão

confiável quanto as partes mais estáveis da

Page 141: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

141

criação (v. 3), tem analogia nas Escrituras. No

entanto, as combinações de palavras, tais como

rfadalA hpaD4r4n9 ("esforcemo-nos por conhecê-

lo"), e rHawa ("o nascer do sol"); Mw,G,

("chuva") e wOql;ma ("chuva de primavera")

oferecem uma descrição analógica da confiança em

Deus que não se encontra dessa forma em outros

contextos. Você concluirá, portanto, que a

contribuição mais importante da passagem para a

teologia cristã é a sua forte reafirmação da

doutrina da fidelidade de Deus, usando uma

linguagem dramática, até mesmo surpreendente,

incluindo metáforas e símiles cativantes.

12- Literatura secundária Você desperdiçará tempo e energia na sua

exegese se deixar de pesquisar artigos, livros ou

comentários relevantes à sua passagem. Utilizando

os procedimentos esboçados aqui, poderá sempre

localizar, de forma rápida, a maior parte da

literatura relevante. Esse processo não é

completo, mas é uma boa maneira de cobrir muita

coisa rapidamente.

a. Procure a passagem na qual está trabalhando em

todos os três volumes de Langevin, Biblical

Bibliography. Você terá uma lista da maioria dos

livros e artigos escritos sobre a sua passagem

entre 1930-1985.

b. Procure a passagem nos volumes anuais(outubro)

de Old Testament Abstracts, a partir do ano de

1978.

c. Se você tiver tempo, pode também procurar a

passagem no Elenchus Bibliographicus Biblicus,

para os anos que ele abarca. Isso pode algumas

vezes acrescentar um item ou dois a sua lista,

principalmente de antes de 1930.

d. Da Introdução de Dillard e Longman ou da

Introduction de Soggin, e/ou da Introduction mais

antiga de Eissfeldt, e, em menor medida, Langevin,

Biblical Bibliography, você poderá obter uma boa

Page 142: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

142

lista de comentários sobre o livro que inclui sua

passagem. Para atualizar essa lista, indo além do

fim da década de 1970, você terá de consultar as

listas anuais em Old Testament Abstracts, tarefa

bem mais fácil se você possuir a versão

eletrônica.

e. Passe rapidamente por toda a lista de artigos,

livros e comentários que estão à sua disposição,

procurando os livros e artigos mencionados como

relevantes para a sua passagem; acrescente-os à

sua lista. (Lembre-se: muito do que é relevante

para a passagem não terá sido escrito diretamente

sobre ela.) Especialmente úteis aqui são os

volumes em séries tais como Hermeneia e Word

Biblical Commentary, porque essas séries instruem

seus autores a compilar bibliografias

relativamente completas tanto sobre os livros

bíblicos como sobre passagens individuais, até a

data da publicação do volume em questão.

f. Mesmo que você não seja capaz de ler os

livros, artigos e comentários em língua

estrangeira alistados nos passos anteriores, ainda

assim poderá averiguar aqueles que estão à sua

disposição para ver se mencionam artigos e livros

relevantes escritos em alguma língua que você

entende. Se esse for o caso, acrescente-os à sua

lista.

O processo aqui descrito, mesmo que não

exaustivo, fará você progredir rapidamente. Você

terá à disposição um bom número de obras úteis,

com as quais poderá verificar o trabalho exegético

que tiver feito até este ponto.

13- Aplicação Sem a aplicação, a exegese é apenas um

exercício intelectual. Todos os passos do processo

da exegese deveriam ter como alvo fé e ação

corretas. As Escrituras cumprem o seu propósito

inspirado não só ao entreterem nosso cérebro, mas

ao influenciarem toda a nossa vida. A Bíblia é tão

diversificada que as aplicações de suas várias

partes serão diversas. Isso, porém, não significa

que uma aplicação qualquer não deveria ser o

Page 143: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

143

resultado de um trabalho rigoroso e disciplinado.

As orientações têm como propósito manter as

implicações de uma passagem tão fiéis quanto for

possível à sua legítima aplicabilidade.

13.1- Amostra de uma vida correta: Jó 31

Jó conclui aqui sua "alegação de inocência",

uma forma de discurso também encontrada em l

Samuel 12.3-5 e Atos 20.25-35. Ele admite que se

de fato tivesse cometido vários tipos de atos

imorais, ele mereceria o castigo divino. Mas ele

persistentemente nega ter violado a lei de Deus e,

ao fazê-lo, descreve como uma pessoa decente e

moralmente correta deveria ou não se comportar. É

essa a perspectiva que interessa a você. Com base

em Jó 1.8; 2.3 e 42.7-8, você tomou conhecimento

de que a vida de Jó é algo como um modelo de

comportamento. Agora, você quer saber o que se

pode aprender de suas afirmações sobre seu estilo

de vida.

Quando analisar as questões relacionadas à

vida mencionadas nesta passagem, você alistará

seis que parecem claramente comparáveis a questões

de vida atuais: comportamento sexual apropriado

(v. 1-4,9-12); honestidade (v. 5-8); tratamento

justo dos empregados (v. 13-15,31); generosidade

para com o necessitado (v. 16-23,29-34);

materialismo e idolatria (esses dois itens são

comumente inter-relacionados no pensamento

bíblico; v. 24-28); e administração financeira (v.

38-40). Alguns desses seis itens sem dúvida se

sobrepõem parcialmente. Mas tratá-los

separadamente a princípio ajudará a manter as

questões bem focalizadas.

Uma vez que Jó 31 não contém um mandamento

direto, determinando que o leitor faça alguma

coisa, a natureza da aplicação aqui é de que ela

informa. Contudo, isso não implica que a aplicação

seja menos urgente ou menos importante.

A passagem fala principalmente de fé ou de

ação? Embora existam alguns elementos relacionados

à fé (v. 35-37, por exemplo), o interesse

principal está centralizado no comportamento de

Jó, i.e., ação.

Page 144: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

144

E a respeito dos ouvintes? Aqui a resposta

pode variar, dependendo da questão específica.

Todos se relacionam pessoalmente com a questão do

comportamento sexual apropriado; portanto, ninguém

está excluído desse tópico de vida. De igual modo,

honestidade, generosidade para com o necessitado e

administração financeira dizem respeito a todos.

No entanto, nem todos têm empregados. A maioria

das pessoas é composta de empregadores e de

empregados, mas os aposentados e as crianças,

normalmente, não pertencem a nenhuma dessas

categorias. Além disso, no mundo moderno, muitos

empregadores não são indivíduos, mas pessoas

jurídicas. O reconhecimento dessas nuanças o

ajudará a tornar suas aplicações mais precisas.

Jó 31 trata de diversas categorias de

aplicação. Ela é tanto pessoal como interpessoal;

trata dos aspectos sociais, econômicos, religiosos

e financeiros. De particular interesse é a menção

do culto idólatra nesse contexto, nos v. 24-28

(i.e., a adoração de corpos celestes como símbolos

das divindades, cf. 2Rs 21.3; 23.5, 11; Sf 1.5

etc.). Essa menção o ajudará a lembrar que um dos

aspectos importantes da idolatria, como sistema

religioso, era a sua transigência com o egoísmo e

o materialismo, enquanto a religião da aliança não

era assim.

Quanto à época focalizada, você perceberá que

é relativamente ilimitada. O potencial para o

pecado nas áreas mencionadas por Jó certamente

continua no presente e vai persistir até a

consumação dos tempos — múltiplas passagens do NT

confirmariam essa conclusão.

Finalizando, você precisa tentar estabelecer

os limites da aplicação. A sua preocupação

principal aqui é a de impedir que haja mal-

entendidos da parte de seu público-alvo. A

aplicação central de Jó 31 é que uma vida íntegra

deve ser decente, honesta, generosa, imparcial,

leal, não egoísta e não exploradora. Contudo, a

passagem não sugere que a opressão legal de órfãos

deve ser punida pela amputação do braço do

transgressor (v. 21-22), nem que a porta da frente

Page 145: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

145

fechada é evidência da pecaminosidade do

proprietário da casa (v. 32). Assim, também, as

maldições que Jó, potencialmente, pronuncia sobre

si mesmo como prova de sua decência não são

indicadas como apropriadas ou punições normais

para os dias de hoje. Da mesma forma, afirmações

metafóricas, tais como "a minha porta sempre

esteve aberta", não são afirmações literais de

fatos. No entanto, se o público-alvo para o qual

está fazendo sua exegese não tem conhecimento de

algumas dessas coisas, tudo o que puder fazer no

sentido de evitar mal-entendidos quanto à passagem

será uma contribuição positiva para a sua

aplicabilidade.

VIII – Referências bibliográficas

ARTOLA, A. M. et alii. Bíblia e Palavra de Deus. AM Edições, 1996.

AUVRAY, Paul. Iniciação ao Hebraico Bíblico. Petrópolis: Vozes, 1997.

BACON, Betty, Estudos na Bíblia hebraica: exercícios de exegese. São Paulo: Vida

Nova, 1991.

BEREZIN, Jaffa Rifka. Dicionário hebraico-português. Edusp, 1995.

BORN, A. van Den. DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DA BÍBLIA. Vozes, 1977

CARDOSO, C. F. Sociedades do Antigo Oriente Próximo. Ática, 1986.

CARSON, D. A. A exegese e suas falácias. São Paulo: Vida Nova, 1992.

CONCORDÂNCIA BÍBLICA. SBB.

DAVIDSON, Benjamim. The analytical hebrew and chaldee lexicon. First

Page 146: metodologia exegese cássio murilo dias da silva

146

softcover edition. Michigam: Zondervan Publishing House, 1993.

DINOTOS, Sábado. Dicionário Hebraico-Português. Brasil: H. Koersen, 1962.

DOUGLAS, J. D. O NOVO DICIONÁRIO DA BÍBLIA. Vida Nova, 2006.

FEE, Gordon D. & STUART, Douglas. Entendes o que lês? Vida Nova, 1997.

_______________________. Manual de exegese bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2008.

GODOY, A. Oliveira. Prática exegética: noções elementares. Campinas: 1979.

HARRIS, R. L.; Archer, Jr., G. L.; Waltke, B. K. (eds.) Dicionário internacional de

teologia do Antigo Testamento. Vida Nova, 1998.

HATZAMRI, Abraham & HATZAMRI Shoshana More. Dicionário Português-

Hebraico Hebraico-Português. Tel Aviv, Israel: 1995.

HEBREW OLD TESTAMENT. The British and Foreign Bible Society.

KAISER JR., Walter C. Teologia do Antigo Testamento. Vida Nova, 1996.

KELLEY, Page H. Hebraico bíblico: uma gramática introdutória. Sinodal, 2000.

KERR, Guilherme. Gramática elementar da língua hebraica. Rio de Janeiro:

Juerp, 1979.

KIRST, Nelson. et. al. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português.

São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 1989.

MENDES, Paulo. Noções de hebraico bíblico. São Paulo: Vida Nova, 1991.

PINTO, Carlos O. Cardoso. Fundamentos para exegese do Velho Testamento.

São Paulo: Vida Nova, 1998.

SAYÃO, Luiz. ed. Antigo Testamento poliglota. Vida Nova, 2003

SCHICK, George V. Gramática elemental del hebreo bíblico. Version castelhana

de Ernesto Weigandt. Buenos Aires: Semnario Concordia, 1959.

SCHMIDT, W. H. Introdução ao Antigo Testamento. Sinodal, 2004.

SCHÖKEL, Luis Alonso. Dicionário bíblico Hebraico-Português. São Paulo:

Paulus,1997.

SCHULTZ, Samuel J. A história de Israel no Antigo Testamento. Vida Nova, 1992.

SILVA, Cássio M. Dias da. Metodologia da exegese bíblica. São Paulo: Paulinas,

2000.

TREGELLES, Samuel Prideaux, LL.D. Geseniu's hebrew and chaldee lexicon to

the Old Testament Scriptunes. Michigan: Baker Book House Company, 1980.

YATES, Kyle M. Nociones esenciales del hebreo bíblico. El paso: Casa Bautista de

Publicaciones, 1970.

SIMIAN-YOFRE, Horacio (Coord.) et alii. Metodologia do Antigo Testamento. São

Paulo: Loyola, 2000.