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MÍDIA E GOVERNOS AUTORITÁRIOS:60 ANOS DO SUICÍDIO DE GETÚLIO VARGAS E 50 ANOS DO GOLPE CIVIL-MILITAR NO BRASIL

Carla Montuori Fernandes

Genira ChaGas

(orGanizadoras)

João Pessoa - 2014

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FICHA TÉCNICA

Coordenador do ProjetoMarcos Nicolau

CapaRennam Virginio

Editoração DigitalMarriett Albuquerque

Alunos IntegrantesFabrícia GuedesFilipe AlmeidaKeila LourençoMarina MaracajáMarriett AlbuquerqueRennam VirginioBruno Gomes

Revisão:

Carla Montuori FernandesGenira Chagas

Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura das Mídias - UNIPNúcleo de Estudo em Arte, Mídia e Política (NEAMP) - PUC-SP

Livro produzido pelo ProjetoPara Ler o Digital: reconfiguração do livro na Cibercultura – PIBIC/UFPB

Departamento de Mídias Digitais – DEMID / Núcleo de Arte, Mídia e Informação Digital – NAMIDGrupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas – Gmid/PPGC/UFPB

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EDITORA

av. nossa senhora de FátiMa, 1357, Bairro torre CeP.58.040-380 - João Pessoa, PB

www.ideiaeditora.CoM.Br

atenção: as iMaGens usadas neste traBalho o são Para eFeito de estudo,de aCordo CoM o artiGo 46 da lei 9610, sendo Garantida a ProPriedade

das MesMas aos seus Criadores ou detentores de direitos autorais.

M629 Mídia e governos autoritários: 60 anos do suicídio de Getúlio Vargas e 50 anos do golpe civil-militar no Brasil [recurso eletrônico] / Carla Montuori Fernandes, Genira Chagas, organizadoras.-- João Pessoa: Editora Idéia, 2014.

CD-ROM; 43/4pol. (1.600kb) ISBN: 978-85-7539-922-41. Mídia e governos autoritários - Brasil. 2. Ditadura militar. 3. Estado

novo. I.Fernandes, Carla Montuori. II. Chagas, Genira.

CDU: 316.774:981.088(81)

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Sumário

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SOBRE AS ORGANIZADORAS

Carla Montuori Fernandes

É Pós-doutora e Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É docente do programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura das Mídias na Universidade Paulista (UNIP) e do Centro Universitário Assunção (UNIFAI). Escreveu as obras A liderança da presidente Dilma Rousseff na mídia interna-cional (Editora Scortecci) e Os contrapontos eleitorais e os cinco brasis em campanha pela Caravana JN (Editora Porto de Ideias).

Genira ChaGas

É Doutora em Ciências Sociais e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP) da mesma instituição. É jornalista e atua profis-sionalmente na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Publicou o livro Radiodifu-são no Brasil: poder, política, prestígio e influência (Editora Atlas).

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SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................................................................................. 07

PARTE I – MÍDIA E ESTADO NOVO

As trincheiras constitucionalistas nas ondas da PRB-9 Rádio Sociedade RecordAntonio Adami ............................................................................................................................................................. 12

Vozes no Estado Novo: música popular brasileira e o programa Hora do BrasilGenira Chagas ............................................................................................................................................................... 36

Cultura Política: a revista do Estado NovoMarcelo Barbosa Câmara ........................................................................................................................................ 58

Imagem de Getúlio Vargas no cinemaVera Chaia ..................................................................................................................................................................... 80

PARTE II – MÍDIA E DITADURA MILITAR

Entre letras e números: uma análise do jornal Folha de S.Paulo e de pesquisas de opinião do Ibope (1963-1964)Luiz Antonio Dias ..................................................................................................................................................... 97

Mídia radiofônica e política: lógicas autoritárias e movimentos sociaisCarla Reis Longhi ....................................................................................................................................................... 126

A ditadura miliar e o surgimento do Jornal Nacional: oficialismo e submissão na transmissão da notíciaCarla Montuori Fernandes .................................................................................................................................... 153

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APRESENTAÇÃO

A presente obra é uma coletânea de sete artigos nos quais seus autores buscaram refletir sobre a relação da mídia com os governos autoritários, cujos desdobramentos marcaram a história política brasileira. A publicação foi organizada tendo em vista os 60 anos do suicídio de Getúlio Vargas e os 50 anos do golpe civil-militar de 1964.

Intitulado Mídia e governos autoritários: 60 anos do suicídio de Getúlio Vargas e 50 anos do golpe civil-militar no Brasil, o livro está dividido em duas partes: “Mídia e Estado Novo” e “Mídia e ditadura militar”. Os trabalhos incluídos na primeira parte são dedicados ao período histórico sobre a influência do líder político Getúlio Vargas. Eles abordam a Revolução Constitucionalista de 1932 e algumas das diversas estratégias do Estado Novo para consolidar-se enquanto projeto de poder. Os artigos incluídos na segunda parte mostram a atuação da imprensa na ditadura civil-militar em vigor no Brasil de 1964 a 1985.

Em “As trincheiras constitucionalistas nas ondas da PRB-9 Rádio Socieda-de Record”, Antonio Adami resgata o envolvimento da emissora na Revolu-

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ção Constitucionalista de 1932, movimento deflagrado para forçar o gover-no de Getúlio Vargas a cumprir os compromissos assumidos na Revolução de 1930. O texto recria a atmosfera da época em que as rádios, enquanto atuavam no conflito, também buscavam afirmação comercial e artística no cenário da comunicação. A Record operava com um olho nas questões polí-ticas e outro na própria projeção.

Durante o Estado Novo, Getúlio Vargas fez uso intensivo do rádio para divulgar seu projeto de nação. Por meio do Departamento de Imprensa e Propaganda, órgão criado especialmente para controlar a produção cultural da época, os censores apertaram o cerco aos compositores populares. No artigo “Vozes no Estado Novo: música popular brasileira e o programa Hora do Brasil” Genira Chagas mostra como o DIP se apropriou do samba como instrumento pedagógico visando difundir os valores do trabalho. A autora também elucida as artimanhas dos artistas para driblar a censura.

Os intelectuais do Estado Novo também se preocupavam em disseminar os aspectos da organização do Estado varguista para o público leitor. Assim, sob os pilares da crítica à democracia liberal, da edificação da política ideal e da elevação do líder, promoveram entre 1941 e 1945 a publicação mensal de Cultura Política – Revista de Estudos Brasileiros, em cujo artigo Marcelo Barbosa Câmara desvenda o pensamento do regime a partir da publicação.

A intensidade e longevidade da liderança política de Getúlio Vargas ain-

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da inspiram uma infinidade de produtos culturais. Livros, documentários e filmes sobre Vargas e seu tempo político continuam a ser produzidos. No texto “Imagem de Getúlio Vargas no cinema” Vera Chaia discute as produ-ções de Ana Carolina (1974) e de João Jardim (2014), apontando a força do cinema como uma mídia fundamental para a construção da imagem pública de governantes e governos.

Já na segunda parte da publicação, no artigo “Entre letras e números: uma análise do jornal Folha de S.Paulo e de pesquisas de opinião do Ibo-pe (1963-1964)”, Luiz Antonio Dias chama a atenção para a forte campa-nha contra João Goulart, empreendida pelos meios de comunicação, com foco no editorial do jornal Folha de S.Paulo. Cotejando a campanha anti-Jango com resultados de pesquisa do Ibope, o autor aponta a dissintonia entre as letras impressas pelo jornal e os números levantados pelo insti-tuto de pesquisa.

Em “Mídia radiofônica e política: lógicas autoritárias e movimentos so-ciais”, Carla Reis Longhi retoma o contexto anterior ao golpe civil–militar brasileiro, em 1964, para analisar o papel exercido pelo rádio no processo de mobilização social e enfrentamento político. As ponderações são realizadas a partir de narrativas do rádio no Brasil, à luz dos estudos de Michel de Cer-teau, para comentar sobre lógicas de resistência; e de Martín-Barbero, para a análise das mediações.

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Concluindo a coletânea, o artigo de Carla Montuori Fernandes, “A di-tadura miliar e o surgimento do Jornal Nacional: oficialismo e submissão na transmissão da notícia”, expõe a trajetória do Jornal Nacional, da TV Globo, e sua intimidade com os círculos de poder. O trabalho aponta que o envolvimento palaciano proporcionou o crescimento da emissora acima das condições normais da época. Mas tal implicação repercutiu na linha editorial. No período tenso da ditadura civil-militar de 1964, enquanto a sociedade enfrentava os problemas de um país da periferia do mundo, a linha editorial do noticioso limitava-se a compor um cenário edificante e tranquilizador para a nação.

As efemérides sobre as quais esta obra está pautada nos colocaram o desafio de buscar novas abordagens sobre períodos históricos já bastante estudados. Partindo do pressuposto de que é exatamente este o ofício do pesquisador, os artigos que compõem Mídia e governos autoritários: 60 anos do suicídio de Getúlio Vargas e 50 anos do golpe civil-militar no Brasil trazem aspectos pouco examinados desses períodos e podem ser valiosos para os estudiosos do tema Mídia e leitores em geral.

Carla Montuori FernandesGenira Chagas

(Organizadoras)

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PARTE I

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AS TRINCHEIRAS CONSTITUCIONALISTAS NAS ONDAS DA PRB-9 RÁDIO SOCIEDADE RECORD

Antonio ADAMI1

ResumoEste artigo tem origem em pesquisa de pós-doutorado realizada em 2009-2010 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Universitat Autònoma de Barcelona (UAB) sob o título: PRB-9 Rádio Record de São Paulo e EAJ-1 Rádio Bar-celona: produção radiofônica e discurso em tempos de turbulência política. Também é parte do livro O rádio com sotaque paulista. No Brasil, o estudo se concentrou no período de nascimento da PRB-9 Rádio Sociedade Record, que coincide com a tra-ma getulista para assumir de vez o poder e desarticular politicamente o Estado de São Paulo. Este, por sua vez, cobrava um período mais moderno e constitucional para o Brasil. Getúlio Vargas ganhou a batalha, mas não a guerra!

Palavras-chave: PRB-9 Rádio Sociedade Record. Revolução Constitucionalista de 1932. História do rádio. Getúlio Vargas.

1 Pós-doutor pela PUC-SP e Universitat Autònoma de Barcelona e doutor pela FFLCH (USP). É professor do curso Midialogia do Instituto de Artes da Unicamp e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista. Atua nos grupos de pesquisa “Mídia, Cultura e Memória” da Unip e no Mediacom, da Universidad Complu-tense de Madrid.

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Introdução

A Rádio Record é uma dessas emissoras cuja data de fundação é incerta. Segundo vários radialistas, inclusive em fontes escritas nos anais do rádio, ninguém sabe ao certo, portanto, estabeleceu-se como sendo 11 de junho de 1929. O Almanaque do rádio paulistano traz que a Record já existia desde 1929, sendo propriedade de Álvaro Liberato de Macedo. Em 1930 foi com-prada por Jorge Alves de Lima, Leonardo Jones, João Baptista do Amaral e Paulo Machado de Carvalho. No site da emissora a data que aparece é 1927, mas não é precisa. Segundo o Anuário Estatístico do Brasil, sua “instalação oficial” ocorreu em 1928.

Em entrevista a Beth Carmona, sobre a história do rádio (1979), Paulo Machado disse que a comprou em 1931. As datas se perderam na história, mas nossa tendência é mesmo seguir os dados do Almanaque do rádio pau-listano. Na entrevista, Paulo Machado conta um pouco do início da PRB-9:

Mas as coisas iam prosseguindo, todo mundo ia procurando saber como que funciona isso e aquilo outro e nós tivemos, nesse principiozinho, com-panheiros muito bons. E eu sou obrigado a citar, que trabalhavam naqui-lo: eu e essa moça que... chamavam depois, veio a se chamar de Elizabeth Garcia e que era Natália da Fonseca (...) e então tinha um telefone, uma

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máquina de escrever, tinha um arquivo, que talvez tivesse uns dez discos e nós tomamos conta de tudo, do faturamento que era irrisório e nem havia faturamento, tomamos conta de arquivo e tomamos conta de tudo e aí co-meçamos a pensar em organizar um corpo de pessoas que fosse, aos pou-quinhos, entendendo do assunto. Não digo que foi difícil. Isso seria uma injustiça. Como digo no futebol, se o brasileiro é extraordinário, é simples-mente saber levá-lo, nós conseguimos um grupo, aí já vem um misto de 31 e 32, em que começaram a aparecer homens inteligentes, moços e que se dedicavam ao assunto. Nós tivemos, para se ter uma ideia, ainda outro dia, na distribuição do prêmio Sanyo e eles me honraram com um prêmio muito bonito, na distribuição do prêmio Sanyo havia a lista dos premiados: em 23 premiados, 21 tinham trabalhado na Record, comigo; o que é evidente que me encheu de grande prazer.

É impensável escrevermos sobre a cidade de São Paulo sem nos repor-tarmos ao Dr. Paulo Machado de Carvalho, dada sua inserção e importância na história da comunicação e na própria cidade. Advogado e empresário nasceu em São Paulo, no dia 9 de novembro de 1901. Formado na Faculda-de de Direito da Universidade de São Paulo, também estudou dois anos na Suíça. Paulo Machado casou-se com Maria Luiza Amaral de Carvalho e teve três filhos: Paulo Machado de Carvalho Filho, Erasmo Alfredo Amaral de Car-valho e Antonio Augusto Amaral de Carvalho.

Nos anos 1930 a emissora torna-se “A rádio da Revolução”, abrindo seus

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microfones para os constitucionalistas na Revolução de 1932. Corajosos ho-mens aqueles, que não faziam concessões e barganhas por interesses meno-res e valorizavam bem mais os companheiros, as ideias e o espírito criativo e democrático. Parece um chavão, mas, segundo documentos e entrevistas realizadas, era assim que os paulistas se sentiam naquele período.

Durante o processo da Revolução, ao lado do Dr. Paulo Machado de Carvalho, pessoas do nível intelectual do escritor Antônio de Alcântara Ma-chado, que trabalhou na rádio gratuitamente durante o período, escrevia mensagens inflamadas para a voz do locutor César Ladeira, sob o som da marcha Paris Belfort2, que se popularizou por todo o Estado. Tratava-se de um chamamento, tornando-se o hino da Revolução. A emissora não deixava faltar cobertores e agasalhos e tudo o que os soldados necessitassem. Tudo isso era fornecido por empresas, com boa vontade e cumplicidade com uma rádio que, então, representava os anseios da sociedade paulista. Sobre o período da Revolução Constitucionalista de 1932, os profissionais do rádio da época e pesquisadores da área são unânimes em afirmar que o Dr. Paulo Machado de Carvalho, João Batista do Amaral e o engenheiro Dr. Leonardo Jones investiram na Revolução, arriscando-se também a perder tudo. 2 Paris Belfort era a marcha executada como música de fundo durante a transmissão pela Rádio Record de São Paulo do assassinato dos quatro constitucionalistas que, com sua morte, passam a simbolizar o MMDC (Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo). O tema musical passou a ser reprisado sempre nas locuções de César Ladeira, Nicolau Tuma e Renato Macedo, sobre o desenvolvimento da guerra. A voz inflamada de César Ladeira movia multidões. A marcha é apenas musicada, não há letra.

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A concessão da rádio era do Governo Federal, como até hoje, e eles se jogaram de corpo e alma na guerra, influenciando até mesmo aqueles que estavam do lado das forças “legalistas” de Getúlio Vargas. Esta sempre foi a marca do Dr. Paulo Machado de Carvalho, um apaixonado pelo que fazia. Para alguns um sonhador, mas sem dúvida um homem com o olhar no fu-turo. Em entrevista concedida a este autor (2000), José Mauro Pires e Pau-linho Machado de Carvalho afirmaram que o Dr. Paulo, como era conheci-do, sempre foi um homem emotivo e um esportista fanático. Em 1944 ele adquiriu a Rádio Panamericana, “menina dos olhos” de Oduvaldo Vianna e Júlio Cosi, rebatizada em 1965 de Jovem Pan. Mesmo naquela época, já se pensava em ter uma rádio segmentada, cobrindo esportes o tempo todo. Inovando sempre, seja nas transmissões esportivas, seja na evolu-ção da reportagem, a Panamericana colocou pela primeira vez, na história das transmissões de futebol, um repórter de campo atrás do gol, o que se tornaria moda mundial. Hoje a Rádio Jovem Pan é administrada por seu filho Antonio Augusto Amaral de Carvalho (Tuta) e netos, particularmente o “Tutinha”. Segundo funcionários, possui um gênio bem diferente do pai “Tuta”, do tio “Paulinho” e do avô. Sobre o Paulinho, considerando a entre-vista citada, ocasião em que somava 72 anos, o que nos fica é que era um homem extremamente gentil e educado, com um conhecimento enorme sobre o rádio e a televisão, que nos contou detalhes surpreendentes sobre

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contratos de artistas, incêndios na TV Record, a emissora no sesquicente-nário da independência em 1972, venda da emissora para o Sílvio Santos, os festivais de música popular brasileira, enfim, a própria história da comu-nicação deste país.

PRB-9 na Revolução Constitucionalista de 1932

Afinal, por que Paulo Machado de Carvalho entrou na Guerra Civil? Em nossa análise, e tentando responder a esta questão, acreditamos que inicial-mente ele foi envolvido na guerra pelo decorrer dos acontecimentos e tam-bém para não ficar à margem do processo. Mas, principalmente, porque re-presentava exatamente o pensamento paulista de progresso e prosperidade, máxima que interessava ser difundida por empresários, latifundiários, entre outros profissionais. O rádio é o meio mais popular, assim, ideal para atingir as massas. Neste sentido, a Record realmente cumpriu o papel de aglutina-ção e, de certa forma, manipulação. Por outro lado, o Dr. Paulo parecia não ter a noção do terreno em que estava pisando, assim como a grande massa e a classe média que abraçou a Revolução. Acreditamos que por um pouco de ingenuidade Paulo Machado penetrou o mais fundo que pode na revolta. Fica claro que em um primeiro momento seu interesse era comercial (opor-tunidade de transformar a Record em uma emissora maior, com mais poder,

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que teve como espelho a aristocrática Rádio Educadora Paulista). Mas, pos-teriormente, já envolvido pelo próprio discurso e pela evolução dos fatos, se mostra ideologicamente comprometido com a Revolução, acreditando que poderia realmente ter um país mais justo, sem a tirania ditatorial de Vargas e também sem ter que se prostrar aos desígnios incertos dos tenentes.

Esta leitura se deve, principalmente, aos fatos pós-batalha. Os principais expoentes e líderes combatentes foram mortos no conflito, presos ou exila-dos. Com Paulo Machado, entre outros líderes de classes privilegiadas, nada disso ocorreu. Nossa análise é embasada nas palavras de Paulo Machado, em entrevista de 1979, para o documentário radiofônico comemorativo aos 45 anos da Rádio Record. Ele contou que o Movimento foi um marco idealis-ta da Rádio Record e a voz da Record estava presente nos corações do povo paulista, com a locução de César Ladeira, o que a transformaria realmente na “rádio da Revolução” e César Ladeira na “voz da Revolução”.

Eu outro dia mostrava ao Passos, que naquele tempo era Chefe de Gabinete de Pedro de Toledo, as intimações diárias que eu recebia para ir ao Largo do Palácio, onde era a Chefatura de Polícia. Todas as vezes que eu chega-va lá eles me diziam assim: bom, era pra ser o seu dia hoje (de ser exilado) mas não foi. O senhor vai receber uma outra intimação. Daí a três dias ou-tra intimação, daí a três dias outra intimação. Mas acontece que nesse vai e vem, tomou conta de São Paulo um homem a quem São Paulo deve muito,

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muito. Naquele tempo era o Coronel Cordeiro de Faria e, esse homem deu calma a todos que precisavam ter calma, não perseguiu a quem ele enten-dia que não tinha culpa no cartório e, por isso, ele me chamou, teve uma grande entrevista comigo e disse: “não! Você fez isso por um ideal muito bonito, muito defensável, muito claro, muito honesto e muito decente. En-tão, vai para sua casa e sossegue.

Ainda sobre a inserção da Record na Revolução e o papel que exerceu na articulação e liderança das massas, Paulo Machado conta que a Revolução trouxe grande prestígio para a Record, de tal forma que, por exemplo, a mú-sica que se tornaria símbolo, Paris Belfort, é também um símbolo muito bem guardado nos arquivos da rádio. De certa forma, quando a banda da Força Pública executa este hino, e faz isso nas principais solenidades de São Paulo, é também uma homenagem à rádio que o eternizou. Sobre o período, Paulo Machado disse:

Na revolução as coisas passavam-se daquele jeito: nós fazíamos o que era possível, tínhamos surpresas extraordinárias porque o alcance da estação que talvez fosse de 100 km, às vezes era ouvida na Bahia, e nós ouvíamos notícias da Bahia, que tinha ouvido lá um trecho...não sei do que. Nessa ocasião apareceu o seu César Ladeira, com uma voz linda, mas que deve também muito, muito, o seu sucesso, o que não o desmerece absolutamen-te, aos artigos, aos lembretes, às frases que eram escritas por Antonio de

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Alcântara Machado, que trabalhava conosco gratuitamente na revolução, que passava a noite inteira quase que lá, fazendo, ajudando, para que aque-le movimento valesse. De Antonio Alcântara Machado eu tenho uma coisa interessante: foi o primeiro, o primeiro homem de rádio que fez um anúncio fora do comum, inteligente e que marcou época, naquele tempo (...).

Assim como São Paulo, a Rádio Record atravessou todas as mudanças tecnológicas e culturais desde 1931, marcando uma época na radiodifusão brasileira, principalmente quando abre seus microfones para os constitucio-nalistas. Interessante observar a fala do Dr. Paulo sobre “corajosos homens aqueles, que não faziam concessões e barganhas por interesses menores e pessoais, valorizavam bem mais os companheiros, as ideias e o espírito cria-tivo”. Esta fala infelizmente caiu por terra, pois percebemos que próximo ao final, e ao final da guerra, a elite paulista já fazia acordos com o ditador, bei-jando sua mão nas escadarias do Catete.

Nos anos 1930, concorriam com a Record emissoras como a Rádio Cru-zeiro do Sul, Bandeirantes, Cultura, América e Difusora. Para fixar a marca junto ao ouvinte as emissoras passaram a fixar slogans, tais como: Rádio Bandeirantes “a mais popular”; Rádio Gazeta “a emissora da elite”; Rádio São Paulo “a voz amiga”; Rádio Record “a maior” ou “a voz de São Paulo”. Em 1937 entra em cena o poderoso Assis Chateaubriand que, ao seu império jornalístico, decide incorporar o rádio, inaugurando em São Paulo a Rádio

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Tupi em 4 de setembro de 1937, ampliando sua cadeia nacional de comu-nicação. As Emissoras Associadas não mais se limitariam à mídia impressa, jornais e revistas.

No ano anterior havia sido inaugurada no Rio de Janeiro, em 12 de se-tembro de 1936, a influente Rádio Nacional. No início, propriedade do gru-po jornalístico A Noite e, posteriormente, em 1940, durante a vigência do Estado Novo, encampada pelo Governo Federal e transformada na ponta de lança da propaganda varguista, não apenas no Brasil, mas irradiando com seus potentes transmissores para os cinco continentes.

Assim como os demais ditadores, desde os anos 1920 Vargas nutria uma verdadeira paixão pelo rádio, também como reflexo dos problemas ocasionados pela Record durante a revolta paulista em 1932. O sucesso da anti-propaganda revolucionária transmitida por rádios do lado da di-tadura e a lição que vinha da Alemanha nazista, de Mussolini, Salazar, fo-ram seus exemplos. Logo após assumir o poder em 1933, Hitler nomeou para o poderoso Ministério da Propaganda Joseph Goebbels, que ime-diatamente elenca o rádio como prioridade nacional: todo alemão deve-ria ter um rádio em casa. O líder soviético Lenin, ao assumir na Rússia em 1917, prioriza o jornal e o cinema. Ainda não havia rádio na Rússia. Por aqui, o rádio serviu para a divulgação ideológica populista/conservadora para a maior parcela da população.

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Naquele período, a Record contribuiu, e muito, para a união em favor de São Paulo e ajudou a formar o ambiente revolucionário. Sendo a música uma das matérias-primas do rádio, diversos hinos foram compostos durante a Revolução Constitucionalista de 1932. A Revolução visava forçar o cum-primento, pelo governo Vargas, dos compromissos da Revolução de 1930. Assim, algumas canções de 1930 foram atualizadas. Outros hinos, criados mais tarde, enalteciam a epopeia paulista. Porém, nenhum foi tão marcante e importante como “Paris Belfort”.

Uma atitude paulista que ficou marcada na história daquele período e para as gerações futuras foi a “campanha do ouro para o bem de São Pau-lo”. Tratou-se de um esforço geral de guerra, pelo qual a população se uniu e as indústrias se mobilizam para atender às necessidades de armamentos. Pela primeira vez buscaram-se iniciativas não apenas militares para romper o isolamento a que o Estado foi submetido. Faltaram, no entanto, as forças mineiras e gaúchas. Os governos de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, embora tenham apoiado a luta pela constitucionalização, decidiram manter-se leais ao Governo Provisório e, segundo a sociedade paulista, traíram São Paulo. Os boletins de César Ladeira e a marcha francesa Paris Belfort ecoa-vam pelas rádios de São Paulo da época, na capital e no interior do Estado. O jornal O Estado de S. Paulo e a família Mesquita foram, também, essenciais para a Revolução. Atualmente, na Rádio Eldorado, do grupo Estado, a mar-

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cha Paris Belfort é o prefixo oficial. São de César Ladeira as palavras a seguir, com gravação original da Rádio Record, em 1932, com o objetivo de alavan-car a campanha do ouro.

O paulista não mudou! Há três séculos, quando a epopeia das bandeiras subia brilhando ao delírio da riqueza e Anhanguera, o Diabo Velho, o ciclo de paulistas, surpreendido amava no sertão escuro. A tribo Goiás dançava ao luar, nua, suntuosa, e os cabelos embolados de ouro e arcas abarrota-das abriam-se como estojos e maravilhas despejando-se todas aos pés do monarca português, nessa idade do ouro de nossa história. Conta-se que os caçadores, à falta de chumbo, carregavam as espingardas com bolotas de ouro puro. O paulista não mudou. A campanha do ouro para a vitória reedita a proeza luxuosa dos ninrods da mineração. Enquanto o paulista faz recuar a ferro e a fogo e cada vez mais afastar-se, à força de bravuras épi-cas, as fronteiras do Brasil Constitucionalista, como antigamente fez retrair seu Meridiano de Tordesilhas, aqui, nas terras firmes da retaguarda, como aqueles caçadores do século XVII, outros paulistas, velhos, mulheres, crian-ças, carregam de ouro a arma certeira, que vai alcançar no seu voo alto e claro, a vitória de asas brancas. O paulista não mudou ! O Senhor deu, O Senhor tirou ! Seja bem-vindo o nome do Senhor! Sem se lamentar, sem maldizer um instante a vontade superior que tudo lhe tirava, Jó transfor-mava em riqueza a pobreza que a tinha aceitado e bem-dizia. Um divino desígnio exigiu também de São Paulo a entrega de seus filhos e seus bens. O paulista, orgulhoso do martírio, abençoou o sacrifício. Largamente abriu

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a porta de seus lares e o fecho de suas bolsas. E toda a sua mocidade, a sua inteligência, a sua beleza, a sua força, escorre e vão na confusão ávidas far-das, purificar-se toda. Pureza inabalável no heroísmo esplêndido das trin-cheiras. E o seu ouro se derrama todo, puro e instantâneo os guichês dos bancos para formar o tesouro de guerra, o alicerce precioso sobre o qual atentará o monumento eterno da honra paulista. Todo paulista sabe dizer como Jó: São Paulo me deu, São Paulo me tirou, seja Bendito o nome de São Paulo. Todo paulista sabe ser pobre como Jó, para com esta pobreza, alcançar a riqueza maior, a riqueza melhor, a riqueza gloriosa, a riqueza su-prema, a única riqueza que São Paulo quer: a vitória, a vitória, a vitória.

A mais poderosa mídia da época era o rádio e a Rádio Record, entre as demais, foi a que chamou para si a tarefa e a cumplicidade com a Revolução. Quando os manifestantes paulistas enfrentam, em 23 de maio de 1932, os membros da Legião Revolucionária (transformada no Partido Popular Pro-gressista, sob a liderança de Miguel Costa) e são mortos os jovens estudan-tes, a Record acompanhava tudo de perto, muito perto, pois estes aconteci-mentos se dão bem em frente ao número 17 da Praça da República, onde a Rádio situava-se.

A partir dos acontecimentos daqueles dias percebemos que a Rádio Record não tinha muita escolha. Os estúdios da emissora foram invadidos pelos manifestantes um pouco antes das manifestações e dos assassinatos dos jovens MMDC. Os estudantes, então, entraram na sala de Paulo Ma-

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chado de Carvalho e mandaram que ele abrisse os microfones e lesse ar um abaixo-assinado. Na verdade, a Rádio Record já havia se posicionado e, a partir daquele momento, investiu tudo o que possuía na Revolução. Com a invasão e a tomada da emissora, foi lido ao vivo: “Nós, os abaixo-assina-dos, declaramos que invadimos a valentona, os estúdios da PRB-9 Rádio Record de São Paulo, e conclamamos o povo para que se mude a situação política existente no Brasil”.

Após a leitura do abaixo-assinado, leem também um manifesto e eclode a Revolução. A Rádio Record não mais responderia ao Governo Federal, que controla todas as emissoras do país, menos em São Paulo e Mato Grosso. A Record demonstrava, assim, como previu Vargas, o poder do meio para mover as massas como um grande e ágil instrumento de comunicação. A Rádio Record de São Paulo assumiu o papel de porta-voz do movimento insurrecional, levando a todo país o noticiário dos revoltosos paulistas e furando o bloqueio da censura varguista, pelas vozes de três locutores: Cé-sar Ladeira, Nicolau Tuma e Renato Macedo, e tendo como fundo musical a marcha Paris Belfort.

A partir daquele momento, aos poucos as demais rádios e jornais foram se aproximando e se colocaram em favor dos constitucionalistas. No dia 9 de julho, tendo como fundo a Marcha da Revolução, César Ladeira, de forma grandiosa e eloquente, colocou no ar mensagens patrióticas, que aclama-

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ram o espírito paulista contra os varguistas. Guilherme de Almeida escrevia poesias para César Ladeira declamar, aumentando mais ainda a força dos revolucionários ouvintes da Rádio Record. As rádios de São Paulo tocavam a marcha o dia inteiro. Outro locutor da Record, João Neves de Fontoura, transmitia: “O espetáculo de São Paulo em armas entusiasma mesmo os cé-ticos’; há uma estranha beleza nesta metamorfose marcial. Um povo de tra-balhadores despe a blusa e veste a farda [...].”

Foi naquele período, auge das vibrações dos paulistas contra a posição autoritária e ditatorial de Vargas, que a Rádio Record foi aclamada como “A Voz da Revolução”. A PRB-6 Rádio Cruzeiro do Sul também estava em favor dos revolucionários, mas não com a mesma força da Record. Outros meios de comunicação foram extremamente significativos para o evento, tais como o radioamador e o telégrafo, utilizados pelas tropas em todas as cidades paulistas.

Intelectuais da época, como Monteiro Lobato, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Paulo Duarte, Paulo Setúbal e Mário de Andrade, coloca-ram-se à disposição do movimento. Menotti Del Picchia, pela Rádio Record, conclamava os paulistas: “Paulistas, vós que tendes o coração de ouro, daí ouro para São Paulo”. Pessoas de todas as classes sociais doaram suas joias, pratarias, alianças e objetos de ouro para financiar a Revolução. Em troca re-ceberam um anel com a inscrição: “Dei ouro para o bem de São Paulo”. Uma

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doação como esforço de guerra que nos chama a atenção em 1932, com grande destaque no rádio e demais meios de comunicação da época, partiu de Maria Zelinda de Glycério Torres. Abaixo, a publicação oficial do jornal A Tribuna, de Santos, edição de 28 de setembro de 1932 (documento original):

Ouro para a Victoria Continuam as offertas à Associação Commercial A campanha do ouro para o bem de São Paulo recebeu hontem uma dadiva que se singulariza pelo seu valor material e sobretudo pela sua valia estima-tiva e pelos alevantados e eloquentes motivos que a ditaram. Eis a carta que acompanhou essa expressiva offerta: “Corrente que pertenceu ao general Francisco Glycério, propagandista cam-pineiro da Republica; offerecida por sua filha ao ‘Ouro para a Victoria’, em memoria de seu inesquecível pae e como protesto ao bombardeio aéreo de Campinas pelos ditatoriais. Santos, 26 de setembro de 1932 - (a.) Maria Zelinda Glycério Torres”. A corrente, acompanhada de artístico medalhão com 2 diamantes e um bri-lhante, pesa 56 grammas de ouro e é obra de fino lavor. - Vem tendo lisonjeira repercussão o acto de algumas firmas comerciaes de offerecer ouro para a victoria. Ainda hontem os srs. Figueiredo, Lima e Cia. Ltd. offertaram também 200 grammas de ouro de 18 quilates. Cada dia se impõe mais à nossa admira-ção o apoio de nosso alto commércio a todas as iniciativas da campanha constitucionalista em Santos.

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- Cada dia avulta mais, em variadas modalidades, a cooperação patrióti-ca de Santos à campanha em que São Paulo se empenhou. Assim, pode-mos noticiar, com justificado desvanecimento, que a venda de objectos offerecidos ao “ouro para a Victoria” atingiu, nestes poucos dias, a 20 contos de réis. É intenso o movimento desse departamento de campanha, que funciona na rua 15, esquina da Frei Gaspar.

Muitos símbolos foram criados para a Revolução como esforço de guer-ra. O “Álbum de figurinhas da Revolução de 32” organizou todos aqueles símbolos, vendidos para a população. Todos os objetos estão listados no ín-dice da publicação, com os números que os identificam. Trata-se de objetos do esforço de guerra, mas também da criação de símbolos da identidade revolucionária. Por ter circulado pouquíssimo tempo, apenas alguns meses de 1932, o álbum tornou-se um documento raro. Ao término da Revolução, caiu na ilegalidade. A seguir ilustramos parte do álbum, que inclui o acervo pessoal do engenheiro José Paulo Cachei Roxo.

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Fig. 1 - Capa do álbum de figurinhas produzido para o esforço de guerra da Revolução de 1932.

Fonte: acervo pessoal José Paulo Cachei Roxo. Acesso ao acervo: outubro de 2008.

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Fig. 2 - Imagens do álbum de figurinhas de 1932.

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Fig. 3 – Índice indicativo das estampas do álbum de figurinhas de 1932

(imagem meramente ilustrativa).

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Sumário

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VOZES NO ESTADO NOVO: MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E O PROGRAMA HORA DO BRASIL

Genira CHAGAS1

ResumoComo estratégia midiática para consolidação do Estado Novo (1937-1945), Ge-túlio Vargas fez intenso uso político do rádio enquanto instrumento para for-mação da identidade nacional, além de veículo auxiliar na elaboração do sen-timento de pertencer à nação. Durante o período, a predominância da música popular nas emissoras de rádios revelou-se, conforme aponta Tota (1980), um dos recursos para consolidação da identidade nacional. Assim, este artigo tem por objetivo refletir sobre a utilização da música popular brasileira durante o Es-tado Novo e o sentido de sua veiculação obrigatória no programa institucional Hora do Brasil.

Palavras-chave: Cultura. Música. Política. Estado Novo. Rádio.

1 Doutora em Ciências Sociais e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atua como jornalista na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e como pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP.

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Introdução

No Estado Novo (1937-1945), o trabalho e a força que o desempenha – os trabalhadores – eram considerados peças fundamentais para dar conta do processo de transição de uma economia agrária exportadora para uma economia urbana industrial. Esse projeto de unificação nacional pelo de-senvolvimento proposto por Getúlio Vargas, no entanto, esbarrava em pro-blemas para a sua consolidação. Além do enfrentamento à velha oligarquia contrária aos projetos nacionalistas e da demanda de administrar os indus-triais emergentes, o Estado varguista confrontava-se, ainda, com a precarie-dade da mão-de-obra oferecida pelos candidatos ao trabalho urbano, em sua maioria oriundos dos meios rurais, portanto sem capacidade para ope-rar na indústria nacional em crescimento.

No enfrentamento dessas questões surgidas com a conjuntura econômi-ca, Vargas implementou mudanças no plano político-institucional, as quais culminaram na outorga da Constituição Federal de 1937, responsável pela implantação do Estado Novo, de perfil autoritário. Naquele regime, emergiu a figura de um Vargas ditador, cuja preocupação em dignificar o trabalhador – o motor da sociedade industrial – refletiu-se no artigo 136 da então nova Constituição, no capítulo “Da ordem econômica”:

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Art. 136 - O trabalho é um dever social. O trabalho intelectual, técnico e manual tem direito a proteção e solicitude especiais do Estado. A todos é garantido o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de subsistência do indivíduo, constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa.

Eli Diniz (1999, p.19) destaca:

Durante esse período dá-se continuidade à produção de extensa legisla-ção trabalhista e previdenciária, que regularia o trabalho urbano durante várias décadas de desenvolvimento da industrialização por substituição de importações. Segundo os princípios corporativistas, o status de trabalhador com carteira assinada e reconhecida pelo Ministério do Trabalho (criado em 1930) permitia o acesso aos benefícios dessa legislação, configurando a cidadania regulada.

Paralelamente à proteção do trabalhador, os ideólogos do Estado Novo pensavam também as implicações culturais que permeavam o tecido social do cotidiano do operário. No entendimento daqueles intelectuais, a emer-gência da música de mercado propagandeada pelo rádio, veículo em as-censão, dava preferência aos instrumentos rústicos, de origem negra, pela melhor adaptação ao veículo, em detrimento de composições elaboradas

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pela classe burguesa. Assim, o samba tornou-se o ritmo predominante nas emissoras e as composições a exaltar a malandragem a fonte de preocupa-ção de um Estado atento à força da música como catalizadora de impulsos sociais. Squeff e Wisnik (1982; p.139) assinalam:

O poder da música confere ao Estado, através de suas celebrações, um efeito de imantação sobre o corpo social (...). Introduzindo no mais ‘íntimo da alma’ o próprio nó da questão política, isto é, na justa afinação do in-dividual para com o social, a música aparece como elemento agregador/desagregador por excelência, podendo promover o enlace da totalidade social (quando o nó é pedagogicamente bem dado) ou preparando sua dissolvência (quando não). Por isso ‘a educação repousa na música’, ela é a imitação do caráter (elevado ou inferior) que redunda, por seus matizes éticos de profunda repercussão subjetiva, não só na contemplação do belo, mas também nas consequências práticas da realização da virtude. A ade-quada dieta músico-ginástica, base da formação do cidadão, imprimia nele o ‘caráter sensato e bom’, enquanto o uso malbaratado da música genera-lizaria, na concepção platônica, a ‘feia expressão’ e os ‘maus costumes’.

Os sambas cujas composições refletiam um caráter inferior, no entendi-mento de Martins Castelo, em artigo para Revista Cultura Política (Ano 2; n. 22, dez. 1942) “punha na boca de toda gente, inclusive das crianças, as pe-quenas tragédias domésticas (...). A preocupação da malandragem e o sonho

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do amor sem despesas conciliam-se no conformismo das Amélias”. A heran-ça musical dos filhos dos escravos libertos era o som a ecoar nas favelas e bairros operários. Esse mesmo repertório passou a compor a programação musical das emissoras de rádio, cujas gírias e expressões vulgares incomo-davam o Estado. Para este, o rádio e a música por ele amplificada deveriam estar a serviço do desenvolvimento do país. E esse desenvolvimento, na vi-são do Estado Novo, passava por uma mudança na linguagem e expressões utilizadas pelos compositores populares.

Música popular como instrumento de construção da identidade nacional

Na consolidação do processo de unificação nacional, Vargas elegeu o rádio como veículo essencial para servir como instrumento do governo na comunicação com as massas. Até por circunstâncias históricas, foi o primeiro presidente a utilizar o rádio a serviço de manifestações cultu-rais, por meio da música, do esporte e da informação (HAUSSEN, 2001). A autora lembra a importância que Vargas atribuiu ao rádio, na mensa-gem enviada ao Congresso Nacional, em 1º de maio de 1937, na ocasião em que anunciava o aumento do número de emissora no país. Segundo aponta Haussen (apud CABRAL, 1975), o presidente aconselhava os esta-dos e municípios a instalarem

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aparelhos rádio-receptores, providos de alto-falantes, em condições de fa-cilitar a todos os brasileiros, sem distinção de sexo nem de idade, momen-tos de educação política e social, informes úteis aos seus negócios e toda a sorte de notícias tendentes a entrelaçar os interesses diversos da nação.

No primeiro processo de modernização que ocorreu na América Latina, entre anos 1930 e 1950, as mídias de massa, de acordo com Martín-Barbe-ro (2001), foram imprescindíveis para construção e difusão da identidade nacional e do sentimento de nação. No período, a ideia que sustentava o projeto de edificação das nações modernas articulava o movimento eco-nômico com uma concepção política de afloramento de uma cultura iden-tificada com o nacional, possível somente com a comunicação entre as massas urbanas e o Estado.

Martín-Barbero (2001, p. 42) atesta que as mídias de massa tiveram um papel decisivo na constituição do processo de modernidade:

As mídias, especialmente o rádio, se converteram em porta-vozes da inter-pelação que, a partir do Estado, transformava a massa em povo e o povo em nação. O rádio, em todos, e o cinema, em alguns países – México, Brasil, Argentina -, irão fazer a mediação das culturais rurais tradicionais com a nova cultura urbana da sociedade de massas, introduzindo nesta elemen-tos de oralidade e da expressividade daquelas, e possibilitando que deem

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o passo da racionalidade expressivo-simbólica à racionalidade informativa instrumental organizada pela modernidade.

Com o crescimento da população urbana no Brasil, a estratégia para ma-nutenção da hegemonia varguista seguiu por um processo de incorporação das camadas populares ao Estado, baseado na ideia de uma cultura nacio-nal, que se transformaria

Na síntese da particularidade cultural e da generalidade política, da qual as diferentes culturas étnicas ou religiosas seriam expressões. A Nação in-corpora o povo, transformando a multiplicidade de desejos das diversas culturas (...) num único desejo: participar do sentimento nacional. (MARTIN--BARBERO, 1997, p. 229).

Empenhado em seu projeto, Vargas passou a investir em ações culturais visando à aceitação do novo ideal nacional pelos brasileiros. Para reelaborar o conceito de brasilidade de acordo com os interesses políticos, apoiou-se nos estudos de intelectuais como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holan-da, Caio Prado Jr. e da maneira estigmatizada com que tais autores trataram a miscigenação, onde a preguiça e a indolência eram consideradas inerentes à raça mestiça e às civilizações tropicais. O projeto nacionalista do governo buscava o deslocamento do mito da brasilidade para um povo trabalhador, sobrepondo-se à noção até então vigente.

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No âmbito da constituição de uma nova identidade para o país, Vicen-te (2006) destaca que a preocupação varguista pairava sob três aspectos: a consolidação de uma cultura nacional capaz de unificar o país sob a proteção do Estado; a elevação do nível estético da cultura popular para que o Brasil atingisse um novo patamar de “civilização” e a incorporação dos conteúdos ideológicos do Estado à cultura popular, em detrimento de produções con-sideradas indesejáveis, no entendimento do Estado.

Entre as medidas adotadas pelo Estado Novo deve-se destacar a censura às músicas que propagavam críticas ao governo, sobretudo as que traziam conte-údos do cotidiano dos morros, sem muita elaboração estética. Tal prática, alerta Paranhos (1999), ficou conhecida por silenciar os discursos que destoavam das normas instituídas, buscando construir a crença de uma suposta unanimidade.

Censura

A década de 1930 demarcou um campo abrangente para a divulgação do samba enquanto um gênero musical, em cujas composições costumavam-se exaltar a figura do malandro e da malandragem do povo brasileiro avesso ao trabalho. Evidentemente tais músicas não foram aprovadas pela ideolo-gia trabalhista do Estado Novo e entraram na mira da Divisão de Rádio do

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Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o órgão legitimador do Es-tado Novo. Criado em 27 de dezembro de 1939, em substituição ao Depar-tamento Oficial de Propaganda (DOP), segundo o artigo primeiro, item “a” do decreto nº 1.915 que o instituiu, o DIP tinha a finalidade de:

Centralizar, coordenar, orientar e superintender a propaganda nacional in-terna e externa e servir permanentemente como elemento auxiliar de infor-mação dos ministérios e entidades públicas e privadas, na parte que inte-ressa à propaganda nacional.

Outros itens destacavam expressamente as funções do órgão como au-xiliar ao projeto de construção de identidade nacional, como segue:

Item “c” – Fazer a censura do teatro, do cinema, de funções recreativas e esportivas de qualquer natureza, da radiodifusão, da literatura social e po-lítica, e da imprensa.Item “o” – promover, organizar, patrocinar e auxiliar manifestações cívicas e festas populares com intuito patriótico, educativo ou de propaganda turística, concertos, conferências, exposições demonstrativas das atividades do gover-no, bem como mostras de arte de individualidades nacionais e estrangeiras. Item “p” – organizar e dirigir o programa de radiodifusão oficial do governo.

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A ideologia nacionalista direcionada para a música buscava formas de separar a musica considera “boa”, resultante da tradição erudita com o fol-clore, da música avaliada como “má”, esta oriunda dos terreiros de candom-blé, executadas por cidadãos precários – os sambistas. Indignado com o que percebia como música inaceitável executada pelas emissoras de rádio, por fazer apologia à malandragem, Martins Castelo escreveu para a Revista Cul-tura Política (Ano 2, n. 13, mar. 1942):

Os nossos autores têm-se entregue, na verdade, com excesso, ao elogio da vadiagem, à exaltação do vagabundo de camisa listrada. Quem não se re-corda daquela crítica de Sinhô ao honesto Claudionor, que, para sustentar a família, foi fazer força na estiva, carregando fardos de sessenta quilos? E há muitos outros exemplos, principalmente entre as músicas carnavalescas, sempre tão cheias de malícia. (...) Os versos das favelas significam um esta-do de espírito que exprime as raízes histórico-sociais dessas coletividades. O capadócio, o capoeira e o malandro, três gerações de desajustados, são o enquistamento urbano do êxodo das senzalas no período imediatamente posterior à emancipação dos escravos. Torna-se, por isso mesmo lógico, nesses grupos humanos, o repúdio ao trabalho erigido em norma moral. Desprezando as realizações materiais, fugindo à labuta de sol a sol, mos-tram-se ainda em oposição ao eito. E, por inercia social, os versos dos netos livres continuaram destilando a amargura das existências sem liberdade.

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Observando a música enquanto lugar estratégico na relação do Estado com as minorias iletradas (SQUEFF e WISNIK; 1982, p.135), lugar a ser ocupado pela canção de qualidade, cujas composições exaltassem o progresso e o trabalho, o DIP recrudesceu a censura ao samba de apologia à malandragem.

Afinado com os princípios do Estado Novo, no campo do rádio o DIP mantinha estreito controle sobre a programação cultural. Tota (1989; p.36) chama a atenção para uma publicação do Departamento, segundo a qual:

Em 1940, foram submetidos à censura prévia da Divisão de Rádio 3.770 programas, 1.615 sketches, 483 peças e 2.416 gravações, existindo no país 78 emissoras de rádio. Ainda em 1940 foram proibidos 108 programas con-trários às determinações legais (...). Uma estatística sobre os programas ir-radiados no Distrito Federal: 202 programas infantis; 958 religiosos; 355 científicos; 1.750 humorísticos; 376 literários; 289 assuntos de interesse na-cional; 207 assuntos de interesse estrangeiro; 181.807 de música estrangei-ra; 5.695 de música nacional escolhida; 224.380 de música popular nacional.

Essa estatística evidencia a importância da canção popular utilizada como veículo educativo do regime. Em um ano, o número de composições popu-lares tocadas no rádio superou em 42.573 o número de músicas estrangei-ras. Mas não qualquer música. A programação musical, sob a tutela do DIP, fez o “samba descer o morro para o asfalto da avenida. E a certeza de que o

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trabalho representa a primeira condição humana chegou também ao reduto dos compositores. Os personagens de nosso cancioneiro empregam, hoje, a sua atividade nas fábricas e nos estabelecimentos comerciais,” escreveu Martins Castelo na Revista Cultura Política (Ano 2, n. 13, mar. 1942).

Hora do Brasil

Convertido em canal pedagógico da doutrina do Estado Novo, a partir de 1937 o programa Hora do Brasil passou a ser obrigatório e irradiado em cadeia de rádio para todo o país, sempre no horário noturno. A estra-tégia visava alcançar a maior parte da população recolhida às suas mo-radias. Em texto publicado na Revista Cultura Política, a Divisão de Rádio do DIP informava as razões de sua institucionalização, além de detalhar as finalidades do noticiário:

A Divisão de Rádio do DIP tem a seu cargo não apenas superintender todos os serviços de radiodifusão do país, como também orientar o rádio brasilei-ro em suas atividades culturais, sociais e políticas. A cooperação, a coorde-nação das atividades culturais do rádio, a unidade de espírito e de esforços que hoje reina nessa importante esfera da vida nacional, é obtida graças à orientação impressa nesse setor do DIP, numa atmosfera de perfeita com-

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preensão e espontânea colaboração de todas as emissoras brasileiras. (Cul-tura Política; ano 2, n. 20, out. 1942)

As intenções do institucional Hora do Brasil, segundo o DIP:

O Hora do Brasil, irradiado diariamente das 20 às 21 horas, em cadeia com todas a emissoras brasileiras, leva a todos os ponto do Brasil a certeza da nossa unidade social e política e, através de seu noticiário, põe em conta-to, uma com as outras, as mais longínquas regiões brasileiras. Diariamente fornece a Hora do Brasil e seus ouvintes: 1) noticiário da Presidência da República; 2) noticiário da Capital Federal, versando sobre acontecimentos de interesse imediato, particularmente para o ouvinte do interior; noticiário dos Estado, apresentando dados concretos sobre viação, agricultura, finan-ças, indústrias, segurança, etc.; 4) situação política na capital e nos Estados; 5) artigos, estudos e noticias sobre o Brasil; 6) a crônica “Talvez nem todos saibam que...”; 7) noticiário dos municípios, apresentando sua situação eco-nômica, agrícola, industrial, etc.; 8) programa musical, como parte acessória e ilustrativa do noticiário, porem apresentado sempre dentro das normas nitidamente nacionalistas e educativas. (Cultura Política; idem)

No espaço dedicado à música do Hora do Brasil, a Divisão de Rádio ir-radiava concertos sinfônicos, orquestras diversas e, principalmente, música popular brasileira. Os grandes cantores nacionais revelados nas décadas de

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1930 e 1940 em muito devem seus sucessos ao programa. Artistas como He-rivelto Martins, as irmãs Carmem e Aurora Miranda, apelidadas de “cantoras do rádio”, Francisco Alves, Ataulfo Alves, Ari Barroso, Dalva de Oliveira, entre outros, foram cooptados pelo regime e recompensados por isso. Tota (1980) conta que Herivelto Martins figura entre os artistas que se apresentava em Hora do Brasil por um bom cachê.

O DIP era implacável com os artistas mais ousados. Tornou-se famoso o episódio envolvendo os censores e os compositores Wilson Batista e Ataul-fo Alves, parceiros no samba “O Bonde de São Januário”, gravado por Ciro Monteiro no início dos anos 1940. Segundo versão original, (PEROSA; 1995, p. 45-56) a música dizia: “O Bonde São Januário / Leva mais um sócio otário / Sou eu que vou trabalhar...” Após análise do DIP, a composição foi modifi-cada. As palavras “sócio otário” foram trocadas por “operário”. “O Bonde São Januário / Leva mais um operário / Sou eu que vou trabalhar...”.

Era explicita a preocupação com a linguagem das composições. Não somen-te a malandragem era combatida, como os versos reveladores das dificuldades enfrentadas pelos operários. Martins Castelo justifica as razões da censura:

O povo, transportando as ideias do mundo abstrato ao mundo concreto, serve-se de uma série de processos lógicos que fazem a imagem descer até o homem, o animal, a planta, os objetos inanimados. A ideia é materializada

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através de comparações analógicas, que lhe emprestam um signum parti-cular, uma feição de caricatura. E, por força das alusões e das reticências, a sórdida verba dá, não raro às palavras mais nobres um sentido ignóbil. A censura precisa enxergar longe, descobrir intenções, proibindo as músicas imorais e dissolventes. (Cultura Política, ano 2, n. 11, jan. 1942)

Mas por vezes a tesoura da censura falhava, ou talvez, se deixasse levar pela astúcia de compositores a exaltar o trabalho, ainda que representasse sa-crifício pessoal, conformismo ou exibisse uma linguagem não refinada. Nesta linha entre trabalho, vida do morro e esperteza está o samba Oh! Seu Oscar de Wilson Batista e Ataulfo Alves. Essa composição foi sucesso no carnaval de 1940, ocasião em que venceu o concurso de músicas carnavalescas do DIP.

Cheguei cansado em casa do trabalho Logo a vizinha me chamou: Oh! seu Oscar Tá fazendo meia hora Que a sua mulher foi embora E um bilhete deixou Meu Deus, que horror O bilhete dizia: Não posso mais, eu quero é viver na orgia!Fiz tudo para ver seu bem-estar

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Até no cais do porto eu fui parar Martirizando o meu corpo noite e dia Mas tudo em vão: ela é da orgia.

Este samba também mereceu destaque no texto O samba e o conceito de trabalho, assinado por Martins Castelo para a Revista Cultura Política. O inte-lectual ressalta a importância das políticas sociais e culturais do Estado Novo:

A figura de seu Oscar só apareceu mais, com as leis que reconhecem e am-param os direitos do operariado, bem como com a derrubada das favelas. Estes dois acontecimentos assinalam, mesmo, uma nova etapa na evolução do samba, que veio respirar um ar diferente da atmosfera dos barracões do morro. (Cultura Política, ano 2, n. 22, dez. 1942)

Brasil do imaginário

É farta a literatura sobre a apropriação da cultura pelo Estado Novo como instrumento pedagógico e diversas são suas interpretações. No estudo da música popular, especificamente do samba, há trabalhos como os de Tota (1980), no qual o autor foca a estreita vigilância do DIP sobre composições de letras pobres e com linguajar do cotidiano dos morros, contrários ao gos-to elitista dos DIP. Por outro lado, há estudos como os de Paranhos (2007), a

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apontar autênticos artistas da malandragem, especialistas em driblar o em-penho da censura em aparar a linguagem do cancioneiro popular.

No tópico anterior mostrou-se o esforço do Estado em incentivar o tra-balho sob pena de ver por terra um projeto de Estado. Mas para além do ba-tente, os ideólogos do Estado Novo também pretendiam um gênero musical que valorizasse a imagem de Brasil grandioso. Tal expressão do país veio por meio de novas composições, como “Aquarela do Brasil”, composta em 1939 pelo pianista Ary Barroso. “Aquarela do Brasil” viria a tornar-se a marca do país, em extensão nacional e internacional (SANT’ANNA e MACEDO, 2009).

É certo que com “Aquarela do Brasil” Ary Barroso correspondeu aos an-seios do Estado Novo, sobretudo pelo fato de ter proposto outro tema para o cancioneiro, ao exaltar as maravilhas do país, em detrimento das lamen-tações. Destaca-se, no entanto, os antigos clichês da linguagem do samba presentes na composição. Ao gosto dos intelectuais do Estado Novo, como Martins Castelo, Ari Barroso deu uma roupagem erudita para as expressões que caracterizavam o estilo popular. Em lugar de palavras como “briguen-to”, “fofoqueiro” e “sonso”, o autor utilizou a expressão “mulato inzoneiro”; a “sensualidade” da mulher brasileira, que tanto incomodou os censores, foi traduzida por “morena sestrosa”.

Com Ari Barroso as redes deixaram de ser o lugar de “curtir preguiça” e fugir do trabalho, passando a ser um ponto de contemplação da noite en-

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luarada, aura de uma “terra de Nosso Senhor”. Com a estilização da lingua-gem, constrói-se um Brasil que samba e bate pandeiro de um jeito plausível, ao gosto do estrangeiro. Furtado Filho (2009) lembra que “o samba de Ari Barroso inscreve-se como novo padrão por sua musical originalidade e pela inventividade de sua orquestração”.

Considerações finais

A elevação da música à condição de instrumento pedagógico propor-cionou, sem dúvida, a criação de espaços de divulgação de novos artistas, colocou o rádio como mediador do cotidiano da população, sobretudo a urbana, e proporcionou outras formas de relacionamento social por meio de trocas simbólicas. A Rádio Nacional, emissora incorporada ao Estado em 1940, muito contribuiu com o entretenimento da população por meio dos programas musicais, da radionovela, do noticiário. A Nacional era uma refe-rência cultural para o ouvinte. Ainda que por força de uma doutrina, o samba exaltação contribuiu para criar a imagem de um Brasil musical e de natureza exuberante, de gente alegre e sensual tudo sob as bênçãos de nosso Senhor.

Mas não significava, contudo, a adesão incondicional dos artistas ao pro-jeto do Estado Novo. Até por isso o DIP era implacável no controle da pro-

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dução cultural cuja linguagem destoasse daquela prevista na legislação. Por força de sua doutrina, o Estado cooptou artistas populares buscando sua le-gitimação. Mas nem tudo saiu como o planejado. No carnaval de 1946, logo após o fim Estado Novo, o sambista e compositor mineiro Geraldo Pereira produziu o sucesso “Trabalhar, eu não!”. Além de criticar o modo capitalista de produção, a distribuição desigual da renda, a canção também aponta a falência da censura enquanto projeto de educação de uma sociedade.

Eu trabalho como um louco Até fiz calo na mão O meu patrão ficou rico E eu pobre sem tostão Foi por isso que agora Eu mudei de opinião Trabalhar, eu não, eu não! Trabalhar, eu não, eu não! Trabalhar, eu não!

Bem antes do fim do Estado Novo, no texto Radiodifusão, fator social (CULTURA POLÍTICA; ano 1, n.6, ago. 1941) Álvaro Salgado, da Rádio Minis-tério da Educação, já alertava sobre a questão:

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Dia virá, estamos certos, em que o sensualismo que, agora, busca motivo e disfarce nas fantasias de carnaval, seja a caricatura, o fantoche, o palhaço, o alvo ridículo dessa festa pagã. Enquanto não dominarmos esse ímpeto bár-baro, é inútil e prejudicial combatermos no broadcasting o samba, o maxixe, a marchinha e os demais ritmos selvagens da música popular. Seria contra-riarmos as tendências e o gosto do povo. A resolução está na elevação do nível artístico e intelectual das massas. Isso só se conseguirá paulatinamen-te, porque em arte, como em tudo, o Brasil só muito tarde teve voz ativa.

O Samba de Pereira e as palavras de Salgado resumem o final de um processo histórico, movido pela força e pela pressa de fazer acontecer, sem considerar um grande projeto de nação. Pelo fato de ter sido imposto, o Es-tado Novo não obteve os consensos necessários para avançar e concretizar seus objetivos.

Referências

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CULTURA POLÍTICA: A REVISTA DO ESTADO NOVO

Marcelo Barbosa CÂMARA1

ResumoO presente texto é desdobramento de tese defendida em outubro de 2010, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e que teve como objeto de pesqui-sa a publicação Cultura Política – Revista Mensal de Estudos Brasileiros e o Projeto Temático FAPESP - Lideranças Políticas no Brasil: características e questões insti-tucionais. Nessa oportunidade será feita uma reflexão acerca da linha editorial da publicação, suas influências, defesa do regime autoritário – o Estado Novo – e do condutor daquele regime, Getúlio Vargas.

Palavras-chave: Autoritarismo. Estado Novo. Cultura Política. Intelectuais. Liderança.

1 Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atua como pesquisador Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP. Participa do Projeto Temático FAPESP - Lideranças Políticas no Brasil: características e questões institucionais.

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Introdução

Sem um partido político que pudesse apontar as ações ou as ideias que embasariam o Estado Novo, nem por isso o projeto estava desprovido de um conjunto de pressupostos que o caracterizasse e lhe desse norte. Na-turalmente, deve-se à condução política de Getúlio Vargas a proposta de modernização do Estado e da economia brasileira. Porém, suas ações fo-ram, em boa medida, advindas de um conjunto de concepções que circu-laram no Brasil desde o fim do século XIX e consolidaram-se, em especial, nas primeiras décadas do século XX.

As ideias não agradam aos que presam pela democracia mas que, na-quela conjuntura, foram capazes de dar solução às questões nacionais, servindo como espírito do regime e de norte a seu condutor. O que circu-lou em Cultura Política, para além de outros temas da revista2, diz respeito a autores que se dispuseram a colaborar com a publicação concebida pelo escritor Almir de Andrade e que, em sua maioria, gravitavam em torno do que ficou conhecido como o pensamento político autoritário.

2 Salientamos que a revista possuía outras temáticas relacionadas ao teatro, folclore, literatura, costumes regionais, dentre outras. Entretanto iremos nos ater aqui aos autores que se dedicaram fundamentalmente à política.

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Cultura Política – Revista Mensal de Estudos Brasileiros

Em 1941, Lourival Fontes, então diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão do Governo Federal criado em 1939 e responsável pelo controle das mídias disponíveis na época, além de formulador da po-lítica cultural do Estado Novo, procura Almir de Andrade e o convida para empreender uma publicação que deveria demonstrar, segundo o diretor do DIP, o que seria os fundamentos do regime de Getúlio Vargas.

Para Almir de Andrade, Vargas não estaria contente com as diretrizes que Francisco Campos havia delineado em seu livro o Estado Nacional. Afora o nome da publicação, utilizado por Vargas e os partidários quando se refe-riam ao regime, o livro não representava, em absoluto, o que presidente en-tendia como os fundamentos do regime.

Ao fazer um balanço daquele período em 19813, Andrade afirma que não considerava a perspectiva de Francisco Campos fascista, porém não seria aquela concepção “fortemente direitista” a visão de Vargas acerca do Esta-do Novo. Para Andrade, o presidente era um “homem de espírito popular e aberto”, portanto distante das concepções de Campos.

Campos teve sua importância superestimada pelo senso comum, po-

3 Entrevista concedida em 1981 por Almir de Andrade ao projeto História Oral, FGV/CPDOC, 1985.

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rém, restringir o ideário do Estado Novo a um de seus quadros, mesmo que ele tenha sido fundamental para seu funcionamento, é de certo apa-gar outras influências, que sem dúvida, foram mais importantes para es-truturação do Estado Novo.

Na reedição do livro de Campos pelo Senado federal, em 2001, fica pa-tente a fórmula da análise que reduz o Estado Novo a satélite do fascismo italiano. Segundo o Conselho Editorial do Senado, a estruturação do regime poderia ser concebida por um trinômio Francisco Campos, fascismo e Esta-do Novo, e observa que a:

(...) coletânea de discursos, entrevistas e conferências proferidas pelo minis-tro da Justiça de Getúlio constitui uma espécie de fundamentação doutri-nária e filosófica do Estado Novo, a exemplo do salazarismo e do fascismo de Mussolini. Trata-se, portanto, de um pensamento político autoritário de característica francamente fascista. (CÂMARA, 2010, p. 13)

Nas concepções acerca do primeiro período de Vargas na Presidência da República, é empobrecedor deixar para traz uma gama de reflexões, não só sobre a República Velha e seus políticos, mas sobre a própria origem do pensamento político que seria a maior influência da política de 1937 a 1945.

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Almir de Andrade não vê em Francisco Campos o pensador do Estado Novo. É importante que se observe a diferença entre Francisco Campos aliado e quadro de primeira grandeza do regime do autor de Estado Nacional. A co-mentada insatisfação de Getúlio com interpretação dos sentidos da política para o Estado Novo não deixa em nenhum momento de descaracterizá-lo como quadro do regime de Vargas. É do ponto de vista da autoimagem do regime e daquilo que o regime gostaria de ser e parecer ser que Almir de An-drade desponta como quadro mais apropriado ao regime. Assim, a questão é o que Francisco Campos ou outros autores gostaria que fosse o Estado Novo e o que efetivamente o regime foi ou pretendia ser. Porém, face à projeção do ministro de Vargas, foram dadas às suas opiniões, em termos do que foi a ideologia do regime, uma dimensão além do que elas efetivamente tomaram no desenvolvimento do regime. (CÂMARA, 2010, p. 54)

Para além da justa preocupação em caracterizar o Estado Novo como de ruptura com o processo democrático, o mais produtivo para o entendimento do regime que Vargas instaura em 1937 é observar as críticas que os partidários do Estado Nacional lançaram sobre as vicissitudes da democracia da República Velha e nos atermos, sobretudo, às ideias que seriam absorvidas por eles.

As vicissitudes daquele período, iniciado em 1889 e interrompido em 1930, são as bases pelas quais o Estado Nacional não só promove o des-monte do processo democrático de então, mas, principalmente, onde o re-gime norteou suas ações.

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Portanto, ao aceitar o convite de Lourival Fontes, Andrade irá dar o tom da publicação que teria o nome de Cultura Política – Revista Mensal de Es-tudos Brasileiros. Cultura Política4 foi publicada pelo DIP de 1941 a 1945, e após o fim do DIP, em 1945, Andrade ainda publicaria, por sua conta, mais três números, completando 53 edições.

Em Força, Cultura e Liberdade, publicada por Almir de Andrade em 1940, já se notavam as questões que seriam tratadas na futura publicação do DIP. A busca do que chamou de tradições brasileiras, as causas que entendia como responsáveis pela falência do regime republicano da Constituição de 1891, a realidade na política como conflito entre as leis e a natureza das coisas e, principalmente, a incapacidade do regime inspirado no liberalismo são, para Andrade, os principais fatores que apontam para a necessidade de um re-gime centralizador, calcado também na presença de um condutor capaz de empreender suas realizações: Getúlio Vargas.

Compreendemos que era preciso substituir o Estado liberal por alguma coisa de melhor e mais fecundo. Compreendemos que o Estado deveria estar a serviço da cultura social, identificar-se com o grande ritmo histórico

4 “A distribuição de CP era feita nas bancas de jornal de todo país e organizada por Fernando Chinaglia – mesmo distribuidor da Revista Seleções. Com uma tiragem de três mil exemplares, CP era uma revista cujo conteúdo não era de consumo popular, como observa Andrade: Era outro tipo de revista – comparando-a a Seleções – pesada, maçuda, mas com a distribuição organizada de tal forma que seu primeiro número foi, segundo Andrade, um grande sucesso de venda”. (Andrade, Almir de. Almir de Andrade (depoimento, 1981). Rio, FGV/CPDOC- História Oral, 1985.)

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de nossa nacionalidade, refratário aos métodos da violência e ao fanatismo das grandes místicas da guerra.Não foi em vão que o nosso passado político nos ofereceu um exemplo constante de cordialidade, de moderação, de tolerância, de solidariedade humana. Esse equilíbrio entre tolerância e a força, aspiração obscura e in-consciente da nacionalidade, concretizada hoje em sistema consciente de governo pelo espírito de Getúlio Vargas e pela cooperação, vigilante e sere-na das Forças Armadas, deita raízes duradouras e profundas na intimidade da alma e do coração brasileiros5 (ANDRADE, 1940, p. 207).

Força, Cultura e Liberdade foi o ensaio do que seria a linha editorial de Cultura Política. Os artigos dos primeiros números foram selecionados pelo diretor da revista, mas, no decorrer do tempo, passaria a ser atribui-ção também de Graciliano Ramos. De certo que a revista não se constituía em sua totalidade de adeptos incondicionais do regime e de Vargas. Po-rém, a direção dada à publicação e o estudo dos artigos permite que seja reconstruído, do ponto de vista dos colaboradores, o estado de coisas do Brasil pré-1930 e, sobretudo, as razões para deflagração da política do 10 de novembro de 1937. Cultura Política nos permite a reconstrução do que - no imaginário daqueles autores - eram as falhas do político e da organi-zação política da república brasileira.

5 Optou-se por manter a ortografia da época em respeito à originalidade da obra de Almir de Andrade como um dos autores da revista Cultura Política que será citado neste texto.

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Assim é que, sob a forte influência do que ficou conhecido como pen-samento político autoritário, autores como Azevedo Amaral, Paulo Augusto de Figueiredo, Ulisses Ramalhete Maia e outros que não necessariamente se alinhavam a esta vertente do pensamento político brasileiro, como Nelson Werneck Sodré, por exemplo, construíram um cenário do contexto político em que o Estado Novo e a liderança de Vargas afloraram.

A publicação tratava de questões como a crítica ao liberalismo político, oligarquias, comunismo, fascismo, o individualismo e o ralo espírito público do político brasileiro afeito aos seus negócios e de seus grupos, sistema par-tidário de antes de 1930 e 1937, dentre outras que deveriam ser superadas para reverter o antigo estado de coisas em que o país se via enredado. Res-saltava um Estado forte capaz de uma política que fosse voltada ao povo era tarefa que clamava por um líder que compreendesse a cultura de seu povo, e ao contrário dos fazedores de leis e políticos de até então, baseasse suas ações na realidade do Brasil e não em perspectivas alienígenas.

O pensamento alienígena

Quando nos referimos às influências que o pensamento político ou a ação política brasileira sofria no período compreendido da fundação da re-

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pública até o período de existência da revista Cultura Política, um embate deve ser levado em consideração. Duas das formas de se compreender as soluções nacionais se opunham, no entendimento da publicação de Almir de Andrade: o pensamento com uma perspectiva que sustentava um simu-lacro de democracia, calcada em uma estrutura social oligárquica e baseada na política de governadores; e outra perspectiva que entendia que uma elite política capaz de compreender a cultura do país iria construir as instituições necessárias à nossa organização política.

A crítica à organização política do Brasil da República Velha advinha do que o pensamento de autores, como Oliveira Vianna, chamavam de pensa-mento alienígena. Eles entendiam que a constituição das instituições da so-ciedade brasileira havia se baseado em modelos políticos incapazes de dar conta da organização da república brasileira, pois - de acordo com aquele pensamento - estavam descolados de nossa cultura.

Em maio de 1941, na edição número 3 de Cultura Política, Azevedo Ama-ral reflete esta influência ao analisar a estrutura da república brasileira:

Para o autor, o republicanismo que desponta entre os membros da incon-fidência mineira já vem impregnado de ideias advindas de fora do país, assim ― O que se poderia chamar de autêntica tradição republicana do Brasil era anterior e nada tinha em comum com o pensamento promanado

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das influências que se originaram nas ideias de Rousseau e nas tendências enciclopedismo francês. (CÂMARA, 2010, p. 92)

Ainda no mesmo artigo, Amaral faz uso de um exemplo concreto das forças políticas que se enfrentavam no primeiro processo constituinte republicano:

[...] uma representada por Rui Barbosa e a outra por Júlio de Castilhos. Fruto da observação objetiva da realidade brasileira, do entendimento dos verda-deiros problemas do país, Castilhos não encontrou eco junto à sociedade, pelo menos na medida certa para dar outro encaminhamento aos trabalhos da constituinte que não fosse o que a conjuntura nacional comportava. (CÂMARA, 2010, p. 92 e 93)

A crítica àquela formação política carregava consigo não apenas uma parte do que formava o pensamento político autoritário, mas um embate que permeou não somente a linha editorial de Cultura Política, mas o Estado Novo. O liberalismo foi a preocupação dos intelectuais e dos quadros que apoiavam o regime, ainda que outras concepções políticas tenham sido cri-ticadas na revista ou perseguidas pelo regime estabelecido em 1937.

Amaral reserva elogios aos positivistas, sobretudo os militares, inspirados por Benjamin Constant, que na época exercia função de docente nas escolas

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militares. Para o autor as ideias autoritárias advindas dos positivistas foram as responsáveis pela boa ordem política estabelecida nos primeiros anos da República, mas que após a transmissão de poder aos presidentes civis as ―forças de ação centrifuga começariam o processo de afrouxamento da unidade nacional. (CÂMARA, 2010, p. 93)

Esta preocupação em formular pesadas críticas ao período democrático da República Velha - com seu binômio democracia/liberalismo - é melhor com-preendida quando se tem em mente que as críticas diziam respeito à forma-tação do simulacro que a democracia do pré-1930 efetivamente se constituía.

Quanto à fragilidade daquela democracia, apontada pelo pensamento político autoritário, e em especial pelos colaboradores de Cultura Política, é necessário que se aponte a visão cara a Oliveira Vianna: a fragilidade cultu-ral da população brasileira como fator impeditivo para constituição de uma democracia representativa.

Assim, na seção “Textos e documentos históricos” de Cultura Política, Vicente Licínio Cardoso6 condensou parte desta perspectiva quando ob-6 Vicente Licínio Cardoso nasceu no Rio de Janeiro, em 1890. Engenheiro civil, diplomado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, foi também sociólogo e professor universitário. Em 1924, foi lançada À margem da história da República, que teve em Vicente Licínio Cardoso seu organizador e prefaciador. Obra coletiva - que contou com a colaboração, entre outros, de nomes como Oliveira Vianna e Gilberto Amado -, À margem da história da República alcançaria grande repercussão por tratar, de forma objetiva, as principais questões enfrentadas pelo país na década de 1920. Além dessa obra, também foram publicadas, de sua autoria, Arquitetura norte (1916), A filosofia da arte (1918), Pensamentos brasileiros, vultos e ideias (1924), À margem da história do Brasil e, postumamente, Maracãs (1934). Faleceu no Rio de Janeiro, em 1931. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/vicente_licinio_cardoso>. Acesso em: 30 de jun. 2014.

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serva, em seu texto “A Primeira República”, que aquele período tratava-se de: “Um ambiente social sem coesão, constituído de forças sem compo-nentes definidas, um mundo social em formação, em suma: um caos de insuficiências acionado por um complexo veemente de componentes flá-cidas, sem resultante categórica final”. (Cultura Política, ano I, n. 1, mar. de 1941, p. 192 e 193)

Adiante complementa seu pensamento com dados da época acerca da es-colaridade no Brasil, no sentido de reforçar sua opinião de que a população não estaria preparada para lidar com as reflexões necessárias às escolhas inerentes à representação política característica da democracia de sufrágio universal:

[...] a carência de instrução e de educação das massas populares, documen-tada nesse teor de 75% de analfabetos de letras e de ofícios sobre o mon-tante total da população do país (descontados os menores de 7 anos) seria para o autor dado suficiente para inviabilizar a democracia representativa. (Cultura Política, ano I, n. 1, mar. de 1941, p. 192 e 193).

O amalgama que caracterizava a democracia da Primeira República, na concepção daqueles autores, se delineia também na opinião que emitiam acerca da política, dos políticos e seus partidos.

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Políticos e políticas no pré-1930 e 1937

Autoritário e centralizador, o regime buscou delinear suas justificativas também na história dos políticos anteriores a 1930/37 e seus partidos. Caro aos autoritários, a afirmação que imputava à cultura política da Primeira Re-pública, a pouca preocupação com as questões nacionais foi tida, por eles, como característica fundante na política brasileira. A energia e arranjos advin-dos daquela democracia, de seus políticos, estavam voltadas a seus negócios privados, formando, assim, uma política incapaz de gerir a república.

Ulisses Ramalhete Maia e Odorico Costa irão discorrer acerca do perfil que caracterizava o político que o Estado Novo rechaçaria e as ações deles, que além de se apegarem ao referido pensamento alienígena, já presente na constituição do império de 1824, repetiria a mesma perspectiva quando das constituições de 1891 e 1934.

Mas os dirigentes desses partidos, de antemão organizados, descuida-ram-se, mais uma vez, dos seus deveres cívicos e patrióticos para com o Brasil, consentindo e permitindo nas eleições o predomínio do interesse político de seus chefes que se sobrepunham a coletividade, com ma-nifesto e grande prejuízo para a nossa nacionalidade. (Cultura Política, ano I, n. 1, mar. de 1941, p. 78).

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Ainda na construção dessa cultura voltada a interesses privados, Costa retroage ao Império na formação de política que sobreviveria na República.

Liberais e conservadores, ninguém vacila em acreditar, não defendiam pro-grama algum de governo. Nem sequer apresentavam uma forma espetacu-lar de dissensão, uma divergência nos modos de querer construir a grande-za e a prosperidade do Brasil. O seu objetivo era utilitário e prático: a posse do poder. (CÂMARA, 2010, p. 110)

A construção do ordenamento do regime necessitava de políticos volta-dos para a cultura de seu povo, para a busca de um líder e um tipo de lide-rança advinda de um perfil específico de político. Cultura Política então per-corre um itinerário que vai desde a formação dos nossos políticos, da pouca formação do povo no tocante a possibilidade de construir uma democracia, apontando sempre para ordenação necessária e a condução ideal.

Ao fazer o levantamento histórico da política brasileira de antes da Revolução de 30 e seu corolário que seria em sua opinião o Estado Novo a revista cons-trói uma análise crítica dos partidos políticos, do político brasileiro e do povo brasileiro e o tipo de inserção que ele teve na vida política nacional, sobretu-do a partir do período republicano e aponta para o que seria para a revista - o encontro do Brasil com uma ordenação política compatível com sua cultura: o Estado Novo e seu condutor Getúlio Vargas. (CÂMARA, 2010, p. 114)

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Estado Novo e Getúlio Vargas

Sobre o que chamou de renovação política no Brasil, Almir de Andrade reflete sobre 1930, sobre as forças políticas que formaram o movimento e o direcionamento que Vargas lhe daria. Novamente em Força, Cultura e Liber-dade, base da linha editorial de Cultura Política, o autor delineia a condução daquele período:

Há dez anos que a vida política brasileira mudou de rumo, procurando in-tegrar-se nas novas tendências da evolução social, tentando adquirir cons-ciência das suas próprias realidades. Dois acontecimentos servem de marco a essa mudança: a revolução de outubro de 1930 e o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937. Êste completou aquela, dando uma orientação cons-ciente e definida a um movimento que se iniciara impreciso, desordenado e sem nenhum objetivo claro, a não ser a procura de uma nova ordem de coi-sas e de uma organização melhor para o Brasil. Num e noutro cooperaram as únicas forças até então verdadeiramente organizadas no país: o Exército e a Marinha de Guerra. Num e noutro se imprimiu o cunho de um pensamento inspirador e organizador: o de Getúlio Vargas. (ANDRADE, 1940, p. 52)

Vargas utilizou-se das mídias disponíveis em seu tempo para criação de sua imagem pública e a do regime que conduziu. Ambicioso, o projeto do

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DIP pretendia impedir que concepções políticas indesejáveis ao regime pu-dessem vir a público; projetou-se como órgão promotor capaz de plasmar a cultura brasileira de forma massiva, condição necessária para que os proces-sos de unificação, centralização e modernização fossem concretizados.

Uma das tarefas daquele departamento foi a amplificação da imagem de Vargas. A revista Cultura Política elaborou a critica e reverberou soluções que o regime buscou dar ao país. Sua linha editorial, do ponto de vista da política, foi formada por três pilares básicos: os problemas advindos da de-mocracia liberal calcada em uma cultura política alienígena somada a políti-cos e seus partidos com ambições privadas; o levantamento do que seria a forma de organização política ideal, que já existia em nossa cultura, mas que necessitava de uma direção que a organizasse e propagasse; e enfim, o líder que reunia as qualidades para construção do Estado Nacional em consonân-cia com nossa cultura.

A figura de Vargas teria, para Cultura Política, as condições de, uma vez suprimida a velha cultura política, promover a centralização necessária ao país e imprimir a ele os princípios advindos de nossa própria cultura. Quanto aos partidos políticos observou Ulisses Ramalhete Maia:

Foram, assim, dissolvidos todos os partidos que se organizaram depois da Revolução de 1930, bem como os Congressos Federal e Estaduais, conti-

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nuando o Presidente Getúlio Vargas, normalmente, o Trabalho de reconsti-tuição dos princípios vitais de nossa nacionalidade com a implantação do Estado Forte no Brasil. (Cultura Política, ano I, n. 1, mar. de 1941, p. 79).

O presidente aparece para os autores como a figura do condottieri capaz de compreender as mazelas da política brasileira: a dispersão de seu povo, a incapacidade dos políticos e suas organizações partidárias para lidar com as grandes questões nacionais, a precária industrialização do país, que en-controu em Vargas e no Estado Novo a ação política necessária. Assim, para a revista e seus autores, a imagem do presidente era indissociável da Revo-lução de 1930 e do Estado Novo.

Para Nelson Werneck Sodré, também colaborador da revista, o processo de integração e a continuidade da marcha revolucionária foram revitalizados com o golpe de 10 de novembro de 1937 e com a visão e o discernimento político de Vargas: “doutrinador, aquele que elaborou o pensamento político mais claro da nossa existência nacional e que soube traduzir os anseios revolucionários e executá-los, com clareza, precisão, conhecimento das necessidades e das carac-terísticas brasileiras”. (Cultura Política, ano I, n. 4, jun. de 1941, p. 159)

Cultura Política7 foi uma publicação que além de ser concebida dentro

7 Mais de 80% dos autores dos artigos sobre política estão de algum modo, vinculados à burocracia estatal e cola-boraram com quase 85% do total de matérias. Portanto, a maior parte da ideologia política do regime difundida em Cultura Política é formulada pela burocracia do Estado. (CORDATO e GUANDALINI JR, 2003, 150)

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do Estado contava com colaboradores, que em sua maioria, cerca de 80%, no tocante a matérias relacionadas ao tema política, eram quadros do Esta-do. Além de revista concebida para propaganda das questões relacionadas ao Estado Novo, muitas dos temas que durante aqueles anos pautaram suas matérias foram prementes da República.

A crítica da revista à democracia da época possui relevância, mesmo que a solução autoritária cunhada por seus autores e por Vargas não soe simpá-tica. A imagem de liderança construída durante as 53 edições também eluci-da as condições pelas quais a ação política daquele período se fazia possível. O condutor de 1930 e do Estado Novo foi o dirigente capaz de apreender o que seu tempo lhe proporcionou. O que a democracia e seus políticos não foram capazes de realizar. Segundo as matérias de Cultura Política, Getúlio Vargas foi o político que reuniu as qualidades necessárias para, naquele mo-mento, empreender com habilidade a ação política possível.

Referências

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Sumário

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SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e partidos políticos no Brasil (1930 a 1964). 3. ed. São Paulo: Editora Alfa-Omega,1990.

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VARGAS, Getúlio. Getúlio Vargas: Diário Volume II – 1937 – 1942. São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: FGV, 1995.

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Revistas

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CULTURA POLÍTICA. 1941 a 1945. (3 volumes – 51 a 53). Editadas por Almir de Andrade.

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Sites consultados

Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC. Disponível em <http://www.cpdoc.fgv.br>

Entrevistas

ANDRADE, Almir de. Almir de Andrade (depoimento, 1981). Rio, FGV/CPDOC - História Oral, 1985.

ANDRADE, Almir de. Almir de Andrade (depoimento, 1984). Rio, FGV/CPDOC - História Oral, 1986.

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IMAGEM DE GETÚLIO VARGAS NO CINEMA

Vera CHAIA1

ResumoO cinema brasileiro possui um histórico limitado de trabalhos que reproduzem a trajetória dos governantes. Somente nos anos 1970 é que começaram a ser produzidos, de maneira mais sistemática, filmes que buscam compreender as ações desses políticos nos períodos em que governaram o Brasil. O presente artigo tem como objetivo analisar a temática das Lideranças Políticas e Cinema, buscando compreender como alguns governantes são retratados em documen-tários e/ou filmes de ficção. Para tanto, iremos nos centrar na análise de dois filmes sobre Getúlio Vargas.

Palavras-chave: Liderança política. Mídia. Cinema. Getúlio Vargas. Brasil.

1 Livre Docente em Ciências Políticas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É professora do Departamento de Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, pesquisadora do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política) da PUC-SP, do CNPq e da FAPESP.

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Introdução

A preocupação do presente artigo é a de analisar o tema da Lideran-ça Política, agregando uma nova dimensão, desta vez dada pelo estudo da mídia audiovisual que repercute largamente no âmbito da sociedade con-temporânea. Desta forma, propõe-se analisar a construção cinematográfica das imagens do presidente Getúlio Vargas em dois filmes: Getúlio Vargas, da diretora Ana Carolina (1974) e Getúlio Vargas, do diretor João Jardim (2014). A análise deverá considerar as múltiplas facetas que encobrem as atividades políticas do político que governou no âmbito do Poder Executivo Federal.

Os filmes serão analisados internamente, sem desconsiderar o contexto histórico que envolveu esta liderança, bem como o momento histórico da produção e distribuição destas obras. De modo geral, assumimos que o arti-go está centrado nas áreas de conhecimento da Ciência Política e da Comu-nicação Política.

Neste sentido, pode-se entender cada sessão de cinema como se fosse um espaço coletivo de um ‘comício’, no qual são apresentados valores sim-bólicos que adensam a cultura política de um país. Imagens construídas de presidentes ou líderes nacionais são disseminadas como tiros certeiros no inconsciente individual e coletivo.

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Getúlio Vargas toma posse em 4 de novembro de 1930, instaura o Estado Novo em novembro de 1937 e é deposto em 1945. Retornando ao poder atra-vés do voto em 1951, se suicida em 24 de agosto de 1954. Vargas se suicidou após sofrer pressões das Forças Armadas e de setores da sociedade brasileira, incluindo a imprensa, que desencadeou uma campanha feroz contra esse go-vernante. Quais são as características dramáticas dessa liderança?

Para análise dos filmes serão adotados os seguintes procedimentos me-todológicos e de pesquisa: a) análise interna dos filmes selecionados que tratam do tema Liderança Política/Poder Executivo; b) análise histórica da trajetória dessa liderança retratada nos filmes, bem como análise das ques-tões institucionais, do comportamento político e da comunicação política no período abordado; c) vinculação orgânica entre a análise interna dos filmes e situação político-cultural da época retratada.

Getúlio Vargas: a imagem de um governante injustiçado

O filme Getúlio Vargas foi dirigido por Ana Carolina Teixeira Soares, no ano de 1974, e retrata a figura política de Getúlio Vargas, desde a Revolução de 1930 até o seu suicídio em 1954. A diretora recupera trechos de filmes produzidos pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão cria-

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do por Vargas durante a sua primeira gestão, que tinha entre outros objeti-vos divulgar as realizações do Governo Federal.

A diretora também utilizou materiais filmados nas décadas de 1920 a 1950. Na avaliação de Cláudio Aguiar Almeida (Almeida, 2007, p. 41), se faz neces-sário “problematizar a categoria de ‘filme documentário’ a partir de algumas considerações de Jean-Claude Bernardet e Alcides Freire Ramos”. No livro Ci-nema e História do Brasil, Jean-Claude Bernardet e Alcides Freire Ramos (1988) apontam as dificuldades de se conceituar o ‘filme documentário’, definindo-o como filmagens de algo que aconteceria independentemente da realização de um filme. Por exemplo: um jogo de futebol ocorre independentemente de ser filmado ou não, ao passo que, no caso de um filme de ficção, o que é fil-mado é preparado e representado especialmente para a filmagem.

Os limites dessa definição, construída em oposição ao filme de ficção, fi-cam bastante claros quando Alcides e Jean-Claude destacam os recursos e as estratégias mobilizados pelos cineastas para imprimir sentidos e significados às suas obras. Se os eventos captados pela câmera cinematográfica durante as filmagens de um documentário não são, pelo menos hipoteticamente, “pre-parados” e “representados”, o produto final do trabalho do cineasta — o filme — é resultado de diversas manipulações que definem sua forma final.

Por meio da escolha rigorosa de enquadramentos de câmera, seleção de imagens, montagem, inserção de entrevistas, diálogos, comentários, músi-

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cas e outros elementos que vão compor a trilha sonora, os documentaristas “constroem uma interpretação da realidade chegando mesmo, em alguns casos específicos, a construir ou falsificar a realidade que se pretende docu-mentar” (BERNARDET e RAMOS apud ALMEIDA, 2007, p. 41).

O documentário de Ana Carolina assume uma postura favorável à figu-ra política de Getúlio Vargas. A primeira cena é do enterro do presidente e a leitura de sua carta testamento, documento que explica as razões de seu suicídio. Selecionamos as partes mais contundentes da carta2, lida no do-cumentário, a qual Vargas escreve em 1ª pessoa e afirma que tudo que fez, enquanto governante, foi em nome do povo:

Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se no-vamente e se desencadeiam sobre mim.Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o di-reito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principal-mente os humildes. Sigo o destino que me é imposto.(...) Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciên-cia e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha

2 Carta testamento na íntegra. Disponível em <http://www0.rio.rj.gov.br/memorialgetuliovargas/conteudo/expo8.html>. Acesso em: 30 de jun. 2014.

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vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Te-nho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.

Getúlio VargasRio de Janeiro, 24 de agosto de 1954.

Após mostrar cenas do enterro de Vargas, a diretora faz uma retrospectiva da vida política do ex-presidente desde o período da posse. Todas as imagens e os trechos de discursos que aparecem no filme ressaltam e idolatram Var-gas: grandes retratos em locais públicos e músicas compostas especialmente para o documentário. Jards Macalé é um dos compositores e, em uma de suas canções, ele exalta a figura do governante, mesmo após o Golpe do Estado Novo, período conhecido por suas características ditatoriais: “Getúlio Vargas não tem defeito (...) e naquele Estado Novo foi o chefe enraizado (...)”.

Um aspecto fundamental do documentário Getúlio Vargas é o fato de Ana Carolina se apropriar, em grande parte, dos documentários produzidos pelo DIP durante o governo Vargas. Assim, as imagens do filme são origina-

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das de diversas peças de propaganda governamental. Por sua vez, Ana Caro-lina monta o filme sobre um áudio próprio e um encadeamento de imagens (montagem) de sua autoria.

Nesse sentido, assiste-se a imagens de Vargas em grandes manifesta-ções, em festas cívicas nas ruas, e em todas as cenas são executadas, exaus-tivamente, marchas militares. Em uma dessas festas cívicas, Vargas aparece sendo enaltecido por um coro infantil, e um canto em off reproduz as se-guintes palavras: “presidente leal e bondoso é Getúlio o nosso protetor, para as crianças ele é o amigo, para o futuro que ele chamou”.

O uso de crianças cantando, marchando e vestidas com uniforme de es-coteiros também é uma constante. Passa-se a ideia do futuro do Brasil, com a formação dos novos cidadãos e, ao fundo, aparecem retratos de Vargas e da bandeira brasileira.

Como as cenas do documentário de Ana Carolina são peças de pro-paganda produzidas pelo DIP, o filme é todo pontuado por festas e ceri-mônias militares. Também aparecem estádios de futebol, como o de São Januário, com uma partida clássica – Fla-Flu (Flamengo e Fluminense) –, cuja narração exalta o trabalho e o jogo coletivo, pois, sem o auxílio de uma equipe, o jogo fica desequilibrado e sem chances de vitória para o time que opta por jogadas individuais.

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Vargas surge em várias situações, sempre sorrindo, inaugurando ou visi-tando obras públicas ou setores de produção apoiados pelo Governo Fede-ral. O filme (áudio e imagem) exalta uma figura do político brasileiro, mos-trando um presidente dinâmico, empreendedor e amado pelo povo. Além de cerimônias militares, destaca-se a presença de militares que acompanham Vargas em suas peregrinações.

Para mostrar as realizações do governo, aparecem obras do Vale do Rio Doce, produções e fazendas experimentais, Petrobras, Indústria de Ferro e Aço, reforma do porto do Rio de Janeiro e o movimento deste, com a saída de mercadorias brasileiras para o exterior.

Trata-se, portanto, da produção de imagens para expressarem o potente desenvolvimento econômico e social do Brasil. D. Alzira Vargas, primeira-da-ma, distribui brinquedos para as crianças numa celebração natalina. Getúlio Vargas aparece logo em seguida, jogando pacotinhos, da sacada de um pré-dio, para a multidão que o aplaude efusivamente.

Chegando a um momento de tensão cinematográfica (e da realidade), Vargas é obrigado a sair da presidência. O documentário não explica direito as razões3, pois logo em seguida, em 1945, vemos o General Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro da Guerra de Vergas, sendo eleito presidente da Repúbli-ca pelo PSD (Partido Social Democrata). 3 Bibliografia de referência.

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Vargas é eleito senador por dois estados. O documentário avança no tem-po para o ano de 1950, ocasião em que o político foi eleito presidente do Bra-sil. As cenas mais marcantes são de sua campanha eleitoral, com palanques lotados de políticos e autoridades e com multidões prestigiando o candidato. Numa das cenas discursa, dando o tom de sua campanha eleitoral:

Quanto a vós trabalhadores, o que vos tenho a dizer é que eu tenho sido um dos homens mais traído, mais negado, mais injuriado por ter amparado os desprotegidos da sorte, por ter amparado os trabalhadores. E por isso mesmo sempre que saio no seio desses trabalhadores eu me ergo recon-fortado pela sua solidariedade e pelo seu entusiasmo.

Após essa fala, o povo que assiste ao comício grita entusiasticamente: “Getúlio, Getúlio”. O discurso prossegue: “Nunca, nunca me arrependi do que fiz pelos trabalhadores. Só tenho um cravo no meu coração que é de não ter feito por eles tudo o que desejava fazer”.

Todo discurso de Vargas começava com o lema: “Trabalhadores do Bra-sil”. Sua fala agora ressalta a volta do regime democrático, como direito dos trabalhadores. Após a sua posse como novo presidente do Brasil são retomadas as cerimônias cívicas e desportivas.

A cena mais marcante desse segundo período é sua entrada no estádio

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de futebol em carro aberto, sendo ovacionado pelos trabalhadores ali pre-sentes, que comemoravam o dia 1º de maio, dia do Trabalho. O que mais se destaca nessa cena é a presença de um de seus assessores que reproduz o começo do discurso, apenas movimentando os lábios no momento correto do discurso, e o que parece ser o seu ghost-writer.

Em outra cena destaca-se o encontro entre trabalhadores e o novo presi-dente e, em off, surge a voz de Vargas: “(...) linguagem simples, leal e franca que sempre vos falo”. O discurso enfatiza que vivemos agora uma verdadeira democracia social e econômica. Ele critica a democracia política que desco-nhece a desigualdade social. Na sua avaliação, o Brasil naquele período era diferente e salienta que a imprensa teria liberdade de criticar o governo. Voz em off do locutor reproduz o discurso do presidente:

Apelo à união nacional. Não quero governar sem oposição porque en-tendo que sem crítica livre não há democracia. Não pretendo o silêncio e muito menos omissão. Colaboração não implica servidão, nem im-porta em abdicação.

Os discursos foram se radicalizando e mostrando a imagem de um go-vernante nacionalista e que defendia uma orientação trabalhista: “Hoje es-tais com o governo, amanhã sereis governo”.

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A oposição estava se organizando e procurava desestabilizar o governo Vargas. Ocorre um atentado contra Carlos Lacerda, jornalista e líder da opo-sição, e quem morre é o seu acompanhante e segurança Major Vaz. É preso o guarda-costas de Vargas, acusado de executar o atentado: o documentá-rio mostra essa conjuntura em cortes rápidos, acelerando o tempo.

Vargas fica isolado politicamente, e ele já havia manifestado a sua opção: prefere sair morto a ser derrubado pela oposição. Vargas se sui-cida. Novamente aparecem imagens de Vargas na urna funerária, rode-ado de populares e de autoridades políticas. Não se ouvem as vozes, somente uma canção: “Grande Deus lá nas alturas, eterno pai tão cle-mente. Lá no vosso paraíso espera cheio de riso o nosso bom Presiden-te; eterno Pai tão clemente”.

Outra canção é ecoada até o final dos letreiros do documentário: “Getúlio foi outro Cristo, com uma bala sublime. Todo povo brasileiro tem o coração tranca-do por saber tristonhamente que o nosso Presidente morrera suicidado”.

As últimas canções e manifestações corroboram a imagem pública de um presidente que foi injustiçado e que deve ser sublimado pelo povo brasileiro. O mito Getúlio Vargas é perpetuado nas falas, nas imagens e nas canções.

Em nenhum momento a diretora do filme lembra que desde sua 1ª ges-tão, Vargas foi atacado pela imprensa brasileira, tanto que para se defender

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das acusações, ajuda a fundar, na 2ª gestão, o jornal Última Hora, dirigido pelo jornalista Samuel Wainer, simpatizante e aliado político do presidente. A primeira reação da oposição a Vargas foi criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instaurada na Câmara dos Deputados por parlamentares da UDN, que apresentaram denúncias de financiamento e favorecimento ir-regular feita ao jornal Última Hora pelo Banco do Brasil4.

Getúlio Vargas: as conspirações e o suicídio

No filme Getúlio Vargas, do diretor João Jardim (2014), faz-se um recorte histórico e reconstrói-se os 19 últimos dias de Vargas, culminando no suicí-dio no dia 24 de agosto de 1954. O filme é rodado quase que integralmente no Palácio do Catete, sede do Governo Federal, na cidade do Rio de Janeiro.

Uma das frases mais marcantes é a que inicia o trailer do filme: “Ele foi o presidente do Brasil por 15 anos. Foi deposto pelo exército. Voltou eleito pelo povo até um tiro mudar toda a história”. Esta frase marca toda a dra-maticidade do filme, por mostrar as artimanhas, perseguições, traições, ca-lúnias, conspirações e denúncias vivenciadas por Vargas.

4 Samuel Wainer, no seu livro de memórias, relata os acontecimentos que geraram a criação do jornal, a perse-guição de antigetulistas e de setores conservadores que contestavam não só a posição ideológica, mas a nacio-nalidade do jornalista.

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O início do filme é emblemático: tela escura, a voz de Tony Ramos (ator que encarna a figura de Getúlio Vargas) em off, assumindo logo de cara: “eu fui um ditador e não me arrependo”, com uma certa dose de rancor. Aos poucos seu rosto aparece, para que o público possa reconhecê-lo e, ao mes-mo tempo, se acostumar com a caracterização facial.

Apresentação feita, têm início as intrigas palacianas. As entranhas do po-der são expostas naqueles 19 últimos dias de vida, através de negociatas e conspirações tramadas nos bastidores. Tudo para que o presidente caia, cus-te o que custar (RUSSO, 2014).

No dia 05 de agosto de 1954, Carlos Lacerda, jornalista da Tribuna da Imprensa, que fazia oposição a Vargas, sofre um atentado executado por um pistoleiro contratado pelo chefe da guarda particular do presidente, Gregó-rio Fortunato. Na ocasião, Lacerda levou um tiro e seu guarda costas, o major Rubem Vaz veio a falecer. Carlos Lacerda denuncia que a culpa do atentado e o assassinato é do presidente da República Getúlio Vargas. A campanha con-tra Vargas é acirrada e Lacerda faz uso do jornal para desqualificar e exigir a saída do presidente, ao que ele responde que foi traído pelos seus amigos e que não estava envolvido no atentado.

A partir deste momento, o foco central do filme fica na figura de Vargas, nas suas relações com o grupo ‘palaciano’, composto por ministros civis e militares e pela presença de sua filha Alzirinha Vargas, personagem político

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representado pela atriz Drica Moraes, que dialoga, aconselha e apoia incon-dicionalmente seu pai, o presidente.

Carlos Lacerda, interpretado pelo ator Alexandre Borges, acusa que “Vargas já está deposto moralmente pelas próprias mãos”. Algumas ce-nas do filme mostram os confrontos entre getulistas e antigetulistas no Congresso Nacional e cenas de conspiração dos militares, chamados a tomar posição contra Vargas.

Após pressões vindas de todos os lados, Vargas resolve tirar uma licença forçada (afastamento temporário) até que a crise política e militar seja de-belada. Mas não é isso que acontece, Vargas já expressava que não iria sair do governo “enxovalhado” e que só sairia morto do cargo. O suicídio já era pensado como a única saída. No filme, Vargas escreve uma carta testamento, revista pelo seu assessor particular. Naquela noite, ao entrar em seu quarto e se trocar para dormir, pega seu revolver e se suicida com um tiro no peito.

O suicídio chocou o país, pela dramaticidade do ato. No filme aparecem cenas do enterro de Vargas e as reações do povo, que atacaram jornais an-tigetulistas, como a Tribuna da Imprensa, fábricas, lojas. As manifestações se estenderam a outras cidades do país.

O filme, embora restrito aos 19 dias que antecederam ao seu suicídio, mantém a aura e o mito de Getúlio Vargas. Os diretores dos filmes sobre

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Getúlio Vargas - Ana Carolina e João Jardim – reforçam o poder do cinema como uma mídia fundamental para a construção da imagem pública de um governante e de seu governo. Desde Getúlio Vargas até os dias atuais, vê-se uma política modernizada, que passa a se instrumentalizar tendo em vista ampliar a governabilidade. Rádio, cinema, imprensa escrita e, mais tarde, televisão serão requisitados por governantes para visibilizar os atos de seus respectivos governos e propiciar a construção ideológica das feições (auto) desejadas pelo governo político.

Referências

ALMEIDA, Cláudio Aguiar. O filme do documentário e a construção da história: Getúlio Vargas, de Ana Carolina. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria, v. 10, n. 17, jan./jun. 2007, p. 41-56.

ANDRADE, Auro Moura. Um Congresso contra o arbítrio: diários e memórias. Rio de Ja-neiro: Nova Fronteira, 1985.

BERNARDET, Jean-Claude; RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988.

CHAIA, Vera. Lideranças políticas e cinema: a imagem do poder. Revista Ponto e Vírgula, publicação do PEPG em Ciências Sociais da PUC-SP, nº 9, 2011. Disponível em: <http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula>

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CHAIA, Vera. Lideranças Políticas e cinema: a imagem construída de alguns presidentes brasileiros. São Paulo, Revista USP, v. 90, série 1, 2011.

GOMES, Wilson. Transformações da política na era da comunicação de massa. São Paulo: Paulus, 2007.

MESQUITA, Claudia. Retratos em diálogo: notas sobre o documentário brasileiro recente. Novos estudos – CEBRAP, no 86, São Paulo, mar. 2010.

RUSSO, Francisco. O homem por trás do presidente. Disponível em: <http://www.adoro-cinema.com/filmes/filme-219648/criticas-adorocinema/>

WAINER, Samuel. Minha razão de viver: memórias de um repórter. São Paulo: Planeta, 2005.

Filmografia

Getúlio Vargas, direção Ana Carolina, 1974.

Getúlio Vargas, direção de João Jardim, 2014.

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PARTE II

MÍDIA E DITADURA MILITAR

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ENTRE LETRAS E NÚMEROS: UMA ANÁLISE DO JORNAL FOLHA DE S.PAULO

E DE PESQUISAS DE OPINIÃO DO IBOPE (1963-1964)

Luiz Antonio DIAS1

ResumoEste trabalho objetiva analisar a linha editorial do jornal Folha de S.Paulo, no perío-do de outubro de 1963 – quando João Goulart encaminhou proposta de Estado de Sítio ao Congresso e por isso foi acusado de golpista pela imprensa - até abril de 1964, com o intuito de compreender a participação e influência do veículo no Golpe Civil Militar daquele ano e, também, na recepção ao novo regime. Ao mesmo tem-po, pretende-se verificar as pesquisas realizadas pelo Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública) para mostrar que, apesar da forte campanha de desestabilização realizada contra o governo, Goulart possuía altos índices de popularidade e apoio para as Reformas de Base.

Palavras-chave: Golpe de 1964. Ditadura. Imprensa. Folha de S.Paulo. Ibope.

1 Doutor em História Social pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Atua como docente da Pontifícia Uni-versidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas da Universi-dade Santo Amaro (Unisa).

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Introdução

O mês de outubro de 1963 começou de forma bastante intensa, ainda sob o impacto de uma revolta de sargentos – ocorrida em setembro na cidade de Brasília. Em primeiro de outubro, os leitores do jornal Tribuna da Imprensa puderam ler a entrevista concedida por Carlos Lacerda – governador da Guanabara - ao jornal Los Angeles Times, na qual atacava Goulart, as relações dele com os comunistas, o apoio à indisciplina nas Forças Armadas, bem como cobrava uma posição mais dura dos Estados Unidos da América contra tal situação.

O Estado de Sítio, marco inicial do recorte cronológico deste texto, foi solicitado por Goulart no dia 04 e, logo em seguida, no dia 07 de ou-tubro, ao perceber que não seria aprovado, retirou o pedido. Para Ferrei-ra (2011), os ministros militares, indignados com a postura de Lacerda, pediram para Goulart solicitar o Estado de Sítio, instrumento necessário para uma eventual intervenção na Guanabara. No entanto, faltou-lhe apoio de todos. Da direita - como esperado - e, mesmo dos setores da esquerda como, por exemplo, do PCB; do governador Miguel Arraes; da UNE. Importante destacar: “O grande receio das esquerdas era de que as leis de exceção se voltassem contra elas e o movimento sindical.” (FERREIRA, 2011, p. 368)

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A Folha de S.Paulo não poupou críticas ao episódio:

Resta saber se o presidente da República se mostrou sensível aos argumentos do bom senso (...) ou se apenas, mais uma vez, se dobrou à vontade daqueles ajuntamentos espúrios que, tendo agitado o país até o máximo, sentiram que o estado de sítio lhes poderia ser fatal. (Folha de S.Paulo, 08/10/1963)

Buscando demonstrar que, além de informar, esse grande representan-te da imprensa paulistana também tentou favorecer a opinião pública pela deposição de João Goulart, analisamos manchetes, editoriais e matérias vei-culadas naquele período, que de alguma forma fazem referências ao então presidente – sua ligação com os comunistas, suas propostas “revolucioná-rias” ou suas supostas tendências continuístas.

Procurou-se avançar nessa questão, buscando entender como as “letras”, representadas pelas matérias publicadas no referido periódico, influenciaram a opinião pública. No mesmo sentido, a análise das pesquisas do Ibope - “os nú-meros” - foi fundamental para a formação de uma ideia, mesmo que aproximada, das perspectivas da opinião pública, tais como seus anseios e suas preocupações.

Evidentemente, evita-se tomar esse documento – pesquisas de opinião – como um elemento indicativo de uma “verdade histórica”, uma vez que tais documentos foram produzidos dentro de um contexto histórico, encomen-

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dado por sujeitos históricos e, finalmente, elaborado por um instituto que possuía interesses políticos e econômicos relacionados, por exemplo, aos dos grandes empresários.

O mesmo cuidado foi tomado com relação ao jornal Folha de S.Paulo, que como toda a imprensa, deve ser analisado como um produto social, marcado por interesses diversos.

Nos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1980, verificou-se uma ampliação dos estudos tendo a imprensa como fonte ou objeto de pesquisa. Os historiadores abandonaram a ideia do jornal como uma “fonte suspeita”, pelo fato de ser produzido explicitamente por um grupo.

As pesquisas realizadas pelo Ibope e analisadas nesse trabalho consti-tuem respeitável documentação histórica e devem ser vinculadas às análises feitas sobre os episódios de 1964. Com isso pode ser questionado o suposto isolamento do presidente João Goulart.

A obra de Ferreira (2011) é importante para o entendimento da figura de Goulart, uma vez que, em linhas gerais, o autor apresenta a figura humana, a preocupação de Goulart em evitar uma guerra civil em 1964, sua proximi-dade verdadeira com o povo, com as pessoas mais humildes, que no decor-rer da crise sente-se realmente cansado. Em alguns momentos, disposto em apenas a aguardar o fim de seu mandato.

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Bandeira também sustenta que Goulart “(...) não era homem fraco ou inepto, como certos segmentos da esquerda, inclusive Leonel Brizola, pre-tenderam caracterizá-lo. Pelo contrário” (1977, p. 420). Justamente por isso o golpe teria logrado êxito, pois caso Goulart fosse fraco teria cedido às pres-sões da direita e o golpe poderia ser evitado.

Assim, é importante discutir em que medida os jornais criaram ou ape-nas difundiram uma ideia generalizada, entre as camadas médias e setores conservadores da sociedade civil, de que o país avançava para o caos: infla-ção crescente, quebra de hierarquia nas Forças Armadas, avanço comunista, ampliação exagerada de benefícios às camadas populares.

Além de analisar a produção jornalística e o conteúdo desse material, é intuito aqui compreender as várias possibilidades de entendimento dessas “notícias” pelos leitores, pois: “Abordar a leitura é, portanto, considerar, con-juntamente, a irredutível liberdade dos leitores e os condicionamentos que pretendem refreá-la”. (CHARTIER, 1990, p. 123)

A apropriação do texto pelo leitor opera por meio de interpretações, decisões, representações, que estão fora do controle daqueles que pro-duziram o texto, já que o vivido, o sentido e as experiências pessoais podem ser determinantes na leitura, compreensão e interpretação de qualquer texto.

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As pesquisas do Ibope no período foram importantes para tal debate. Elas mostravam que o apoio popular a Goulart era muito maior do que aquele di-vulgado pela mídia e apresentado por parte da historiografia no pós-1964.

Foram comparadas, por exemplo, as matérias sobre o suposto “repúdio popular” às reformas de Goulart com os dados colhidos por uma pesquisa – realizada entre 09 e 26 de março de 1964, em várias capitais - que aponta-vam um amplo apoio dos indivíduos pesquisados a essas mesmas reformas.

Desde a posse – em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros – Goulart sofreu uma forte oposição, os boatos de golpe de Estado eram recorrentes e ao longo de seu governo foram crescendo. Alguns acontecimentos de mar-ço de 1964 – como, por exemplo, o Comício pelas Reformas de Base e a Re-volta dos Sargentos – contribuíram para a intervenção das Forças Armadas no processo político, no entanto, é importante compreender a conjuntura histórica, tanto nacional, quanto internacional, para que não se aponte esse ou aquele episódio como responsável pela intervenção militar.

A situação de bipolarização mundial; a Revolução Cubana; a renúncia de Jâ-nio Quadros e a crise aberta com a posse de Goulart; as especulações de avanço do comunismo – dentro e fora do governo; a situação econômica são elemen-tos que contribuíram de forma decisiva para esse desfecho histórico.

Aliás, é importante destacar o discurso anticomunista, presente nos jor-

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nais e na sociedade desde o início do século XX. Dessa forma, Motta (2002, XXIII) indica três grandes momentos de anticomunismo, 1935-1937; 1946-1950 e 1964. “(...) sendo que em 1937 e 1964 a ‘ameaça comunista’ foi argu-mento político decisivo para justificar os respectivos golpes políticos, bem como para convencer a sociedade (ao menos parte dela) da necessidade de medidas repressivas contra a esquerda”.

Verificamos que o discurso anticomunista de a Folha de S.Paulo, apesar de sistemático, cresceu muito a partir de 1963, portanto, essa ideia de “ame-aça comunista” – real ou imaginária – era muito forte no período e teve con-tribuição significativa para o Golpe de 1964.

As letras

A Folha de S.Paulo lançou várias críticas ao pedido de Estado de Sítio e não poupou o presidente nem mesmo após a retirada do pedido.

Nos meses seguintes, por meio de vários editoriais, convocou os parla-mentares a manterem o Congresso Nacional em atividade durante o recesso parlamentar – que se iniciaria em 15 de dezembro de 1963 – para evitar que o Estado de Sítio fosse decretado no período. Este receio tinha por base as informações do deputado federal Anísio Rocha (PSD-GO), veiculadas pela

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Folha em matéria com grande destaque, intitulada “J. G. decretará Sítio e dará golpe no recesso da Câmara”. (Folha de S. Paulo, 09/11/63)

O ano que começou com uma grande vitória – plebiscito2 – findou com uma derrota – o episódio do Estado de Sítio – indicava certo isolamento po-lítico de Goulart.

Desarmado contra os governadores mais poderosos do país, sem o apoio das esquerdas, atacado pela direita e perdendo o controle sobre os mi-litares, o presidente saiu daquele episódio completamente enfraquecido. Diversos oficiais, até então legalistas, passaram a apoiar, ainda que de ma-neira passiva, o grupo de conspiradores, enquanto outros se integravam ativamente ao movimento. (FERREIRA, 2011, p. 371)

Outra acusação, recorrente no início de 1964, era de que Goulart pre-tendia manter-se no poder após o final de seu mandato, com alteração da Constituição ou mesmo com um golpe de Estado.

(...) tem bases inteiramente falsas e até impatrióticas o movimento a que de-terminados setores da esquerda, ligados ao Sr. João Goulart, vêm procurando dar consistência nos últimos dias: o de que a reeleição do atual presidente, em

2 Em janeiro de 1963 um plebiscito reestabeleceu o presidencialismo. Apesar disso, a situação política continuou tensa. Por um lado, os setores conservadores preocupados com os avanços das esquerdas; por outro, as esquerdas pressionando Goulart, ainda mais, em direção às Reformas de Base.

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1965, representa uma ‘solução’ para os problemas eleitorais das forças que a si se intitulam populistas progressistas (...). (Folha de S.Paulo, 10/03/1964)

Para o jornal, caberia a Goulart desestimular esse “queremismo” para evi-tar um colapso das instituições, uma vez que em outro editorial, afirma: “(...) é bem possível que, o plebiscito se destine a perguntar se o Sr. João Goulart deve ou não permanecer no poder ao término de seu mandato.” (Folha de S.Paulo, 20/02/1964). O plebiscito em questão diz respeito à ideia de Goulart realizar um referendo popular para aprovar as Reformas de Base.

Segundo Ferreira (2011), diante da grave crise política e econômica ve-rificada em fins de fevereiro de 1964, só restavam três opções para Goulart: a primeira opção seria não fazer nada até o final do seu governo, algo difícil diante das pressões. Como segunda opção, aproximar-se do Partido Social Democrático (PSD) e da União Democrática Nacional (UDN), aceitar as im-posições do Fundo Monetário Internacional (FMI), reprimindo os movimen-tos sociais e promover cortes no orçamento e arrocho salarial. Finalmente, radicalizar e se aproximar das esquerdas.

A oposição a Goulart, com raras exceções, era muito forte antes mesmo dessa radicalização, mas inegavelmente, nesse momento a crítica tornou-se mais ácida, sobretudo com o episódio do Comício da Guanabara, ocor-rido em 13 de março.

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A Folha, por exemplo, afirma que este comício foi organizado por gru-pos radicais de esquerda, que teriam apoio do presidente João Goulart. “(...) espetáculo (comício) que lembra as maciças concentrações populares or-ganizadas para sustentar ditadores ou aspirantes a tal.” (Folha de S.Paulo, 13/03/1964). Para o jornal, o comício seria uma forma de buscar apoio tan-to para as reformas de base, quanto para uma reforma da constituição que possibilitasse sua reeleição em 1965.

O comício de ontem, se não foi um comício de pré-ditadura, terá sido um comício de lançamento de um espúrio movimento de reeleição do próprio Sr. João Goulart. Resta saber se as Forças Armadas, peça fundamental para qualquer mudança deste tipo, preferirão ficar com o Sr. João Goulart, train-do a Constituição, a pátria e as instituições. Por sua tradição, elas não have-rão de permitir essa burla. (Folha de S.Paulo, 14/03/1964)

Neste editorial é possível verificar a mudança de posição do jornal. No episódio do pedido de Estado de Sítio, em 1963, o jornal convocou os deputados para evitar um “golpe” do presidente e agora convocava as Forças Armadas.

Para o veículo, o discurso governamental sobre as reformas era um instru-mento para encobrir a incapacidade administrativa do governo: “(...) muitas propostas de reforma que não passam de bombásticos discursos ou irres-

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ponsáveis plataformas concebidas para encher os olhos com fáceis promes-sas (...).” (Folha de S. Paulo, 02/01/1964)

No comício do dia 13 de março, o presidente lançou ataques violentos aos seus opositores, em especial à UDN, que o impedia de governar o país. Para demonstrar sua intenção de levar adiante, e de forma rápida, as reformas de base, ele apresentou o decreto 53.700, que seria o início da reforma agrária3.

A radicalização dos discursos, em certa medida, acabou municiando e unindo os críticos de Goulart e das reformas. Nesse sentido, a Folha, passou a olhar com muita apreensão o caminho que se descortinava.

A “Marcha da família com Deus pela liberdade” - ocorrida em São Paulo no dia 19/03/1964 - organizada pela CAMDE (Campanha da Mulher pela Demo-cracia) e patrocinada pelo IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) foi uma resposta para o Comício pelas Reformas de Base. Na manchete da Folha: “São Paulo parou ontem para defender o regime.” (Folha de S.Paulo, 20/03/1964). O jornal também afirmava que: “Poucas vezes ter-se-á visto no Brasil tão grande multidão na rua, para exprimir em ordem um ponto de vista comum, um sen-timento que é de todos”. (Folha de S.Paulo, 20/03/1964, grifos meus)

3 O Decreto nº 53.700, de 13 de Março de 1964, conhecido como o Decreto da SUPRA (Superintendência da Refor-ma Agrária), em sua ementa “Declara de interesse social para fins de desapropriação as áreas rurais que ladeiam os eixos rodoviários federais, os leitos das ferrovias nacionais, e as terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos da União em obras de irrigação, drenagem e açudagem, atualmente inexploradas ou exploradas contra-riamente à função social da propriedade, e dá outras providências”.

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Nos dias seguintes ocorreram várias “marchas” pelo estado de São Paulo. Todas contaram com o apoio da Folha, que criticava o governo por tentar minimizar e, mesmo ridicularizá-las:

O povo tem uma expressão muito feliz para designar o que está aconte-cendo. Trata-se de dor de cotovelo (...). A dor, entretanto aumentará – e as tentativas inúteis de ridicularização também – pois outras marchas seme-lhantes já se realizaram ou estão programadas (hoje em Santos, dia 2 na Guanabara) e o êxito delas é tão certo quanto incomodo para os que so-nham com a desordem. (Folha de S.Paulo, 25/03/64)

No dia 26 de março, sobre a marcha de Santos, o jornal destacava a grande adesão da população, inclusive de outras cidades, e os panfletos que indicavam o repúdio aos comunistas – “Vermelho bom só batom”, “Cristo contra o comunismo” - (matéria intitulada “Santos bisa o sucesso da ‘Marcha pela Liberdade’”, p. 21).

No mesmo dia da marcha em Santos (25/03), houve o episódio dos mari-nheiros no Rio de Janeiro4. Essa manifestação e, sobretudo a forma de inter-venção de Goulart, tornou a situação política ainda mais complicada. Com

4 “A Revolta dos Marinheiros” decorreu da ordem de prisão dada aos marinheiros que estavam no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro comemorando o aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, uma entidade considerada ilegal pela Marinha. Os fuzileiros que foram enviados para realizar as prisões acaba-ram aderindo ao movimento.

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a disciplina e a hierarquia das Forças Armadas definitivamente abaladas, os militares sentiam-se cada vez mais à vontade para criticar o governo.

A crise tinha versões diferentes: os marinheiros alegavam que estavam ape-nas realizando uma comemoração; os oficiais, ao contrário, viam uma gran-de quebra de disciplina e da hierarquia. Elas, de fato, foram rompidas quan-do a tropa de fuzileiros, com ordem para prender os colegas, também se rebelou. (FERREIRA, 2011, p. 447)

Esse episódio não pode ser visto como responsável pela intervenção dos militares no processo. Ele compõe um quadro que vinha delineando-se, pelo menos desde 1963, com o caso dos sargentos em Brasília. Mas, inegavel-mente, foi muito importante - naquele momento de radicalização - para a tomada de posições.

Ao lado da “ordem”, inicialmente a Folha criticou o movimento e, em segui-da, lançou ataques à saída do presidente ao incidente. Para o jornal: “A solução dada pelo presidente (...) à crise da Marinha (...) tem todas as características de uma capitulação. A indisciplina saiu vitoriosa, e aos indisciplinados só falta con-ceder medalha de honra ao mérito.” (Folha de S.Paulo, 29/03/1964)

A sensação de indisciplina e caos era muito forte, porém, a ação da impren-sa, que condenou de forma veemente a atuação do presidente Goulart, não

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pode ser vista como única responsável pela ação dos militares. Uma vez que não parece razoável imaginar que essa oficialidade tenha sido “manipulada” - tão intensamente e rapidamente - por notícias tendenciosas veiculadas pela imprensa. Provavelmente, as notícias alarmantes ou exigindo uma posição dos militares, tenham exercido um papel importante, não no sentido de formação de opinião, mas sim, para respaldar e legitimar a intervenção militar.

Na noite do dia 30 de março, João Goulart compareceu ao Automóvel Clube da Guanabara para comemoração do 40° aniversário da fundação da Associação dos Subtenentes e Sargentos da Polícia Militar. Em um discurso forte, muito próximo daquele proferido no dia 13, atacava a elite, uma mino-ria de privilegiados que lutava para manter o povo escravizado e, também, condenava a utilização da fé nas manifestações de oposição ao governo.

As críticas da Folha sobre esse episódio, mais uma vez, foram contun-dentes e indicavam para um desfecho: “Se infeliz foi o comício do dia 13 de março (...) mais infeliz ainda foi a manifestação presidencial de anteontem, em que o Sr. João Goulart parece haver desejado lançar um desafio a toda a oficialidade das corporações militares.” (Folha de S.Paulo 01/04/1964).

O “Basta”5 veio no dia 31 de março. Em Juiz de Fora (MG), Mourão Filho colocou sua tropa em marcha, iniciando o movimento. A resistência que

5 Título do famoso editorial do jornal carioca Correio da Manhã, do dia 31 de março. No dia seguinte, o jornal publi-cou outro editorial importante: o “Fora”.

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ocorreu em 1961, no Rio Grande do Sul, contra os golpistas – garantindo a posse de Goulart – não se repetiu por várias razões. As análises sobre o epi-sódio possuem, também, diversas posições.

Alguns autores acreditam que os setores da esquerda – como as Ligas Camponesas de Francisco Julião, os estudantes, o movimento dos sargen-tos – desarmados e desorganizados não conseguiram impor uma resistên-cia efetiva aos golpistas. “Nenhuma das lideranças operárias e nacionalistas mostrou audácia e iniciativa de luta. Todos ficaram à espera do comando do presidente da República.” (GORENDER, 1987, p. 66). Como o comando e a resistência do presidente não vieram, o golpe foi vitorioso.

Gaspari (2002) apresenta um Goulart fraco e vacilante. Na “cronologia do golpe”, o autor mostra que os golpistas avançaram muito pouco no início do movimento, portanto, não seria difícil Goulart detê-los, mas ele não tomou iniciativa.

Nessa vacilação, misturam-se dois ingredientes. Um de natureza histórica reu-nia o presidente, seu ‘dispositivo’ e todas as forças políticas que haviam ‘man-dado brasa’ nas últimas semanas. Vigorosos na retórica murcharam como um balão furado. O segundo ingrediente estava na própria personalidade de Jango. (...) ele seria sempre um pacato vacilante. (...). Não era um covarde, mas se habituara a contornar os caminhos da coragem. (GASPARI, 2002, p. 84).

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Essa ideia prevaleceu por muito tempo: um presidente vacilante e sem apoio, caia por sua própria incompetência. Incompetência em criar um dispositivo mi-litar contra os golpistas e incompetência em formar uma base de apoio popular sólida, pois era considerado “demagogo”, “retórico” e “populista”.

A obra de Ferreira (2011) e as pesquisas de opinião do Ibope, discutidas a seguir, indicam uma possibilidade diferente. Para Ferreira, de fato, Goulart evitou resistir, mas não por ser “vacilante” ou “covarde” e, sim, para impedir uma guerra civil. No entanto, Ferreira não crê que esse ato, isoladamente, tenha sido o responsável pelo sucesso do movimento golpista.

Voltando para a análise da Folha de S.Paulo, não se pode deixar de des-tacar um caderno especial, extremamente curioso, que circulou no dia 31 de março, intitulado: “64- O Brasil Continua”. Esse material, com 44 páginas, apresentava uma série de projeções para o ano e para o futuro do Brasil. Contava com vários anúncios de grandes empresas, fazendo referências ao futuro grandioso do país.

Evidentemente, o jornal já sabia da eminência de um golpe e estava pre-parando a população para essa ruptura, demonstrando que não haveria o que temer com o “novo futuro”, muito pelo contrário, seria um período de “progresso”, de “ordem”, de “virtudes”.

No anúncio do Grupo Votorantim, por exemplo, temos a seguinte mensagem:

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64 É O BRASIL: 1500: descoberta, mato, selva, nada / Quatrocentos anos se passaram / Quanto custou para um país começar a crescer? / Pense brasi-leiro, do nada se fez 80 milhões. // A selva foi cortada / (...) Do bum bum bum socando o arroz / Socando o café // E um dia, ao que se fez / Faltava / E criou-se a indústria // Pense brasileiro do nada se fez uma nação / Pense e ajude a paz / Brasileiro: 64 é o Brasil / E depende de você. (Folha de S.Paulo, 31/03/1964, grifos meus).

A comparação, do ponto de vista histórico, é surpreendente: 1964 seria uma nova “descoberta do Brasil”. Para isso, o papel dos brasileiros seria fun-damental: apoiar o que estava por vir, dentro da ordem e em paz.

Encerrando esse caderno, o jornal apresenta um texto com o sugestivo título: “Missão da imprensa é informar e formar a opinião pública” - mos-trando que acredita, realmente, que sua função é “formar” a opinião pú-blica - destacando que sempre teve uma posição de defesa dos princípios éticos, da democracia, das instituições, mesmo sofrendo com isso: “Não nos arrependemos, pelo contrário, rejubilamo-nos. Para céticos, jornal é papel pintado. Para nós, é papel sacrificado pelo ideal de liberdade e democracia.” (Folha de S.Paulo, 31/03/1964).

Para o jornal, a intervenção dos militares no processo político, a deposição do presidente – constitucionalmente eleito e empossado – significava a defesa da lei, da democracia. Assim, a Folha destacava em suas páginas que o fim do

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governo Goulart marcava o início de uma nova era; com o fim das Repúblicas Populistas, o liberalismo político e econômico poderia ser fortalecido.

(...) olhemos o futuro com olhos otimistas e digamos com inteira convicção a frase que serviu de título ao suplemento que, quase se diria uma espécie de premonição, publicamos juntamente com nossa edição do dia 31 do mês passado. O BRASIL CONTINUA. (Folha de S.Paulo, 03/04/1964)

De fato, o Brasil continuou, mas em um caminho bastante diferente da-quele que as forças progressistas imaginavam.

Os números Nesse tópico analiso duas pesquisas de opinião, de março de 1964, reali-

zadas pelo Ibope, que não foram divulgadas na época, em contraposição às ideias veiculadas pelo jornal Folha de S.Paulo.

Para Bourdieu (2004), as pesquisas de opinião seriam, muitas vezes, uma forma “rudimentar” de sociologia, “(...) por razões que se devem menos às qualidades das pessoas encarregadas de concebê-las, realizá-las e analisá--las, do que às coações da encomenda e às pressões da urgência.” (p. 221). Assim é importante levarmos em consideração quem encomendou as pes-

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quisas, quando possível, e quais seriam os resultados esperados, pelo insti-tuto e pelos clientes.

A primeira dessas pesquisas, de âmbito nacional, apontava, dentre ou-tras coisas, que Goulart e suas reformas possuíam um grande apoio, como indica a Tabela I:

TAB. I - Pesquisa Nacional

Pergunta: Consideram que a realização da reforma agrária é:

Necessária Desnecessária Não sabem

Fortaleza 68% 13% 19%

Recife 70% 7% 23%

Salvador 74% 9% 17%

Belo Horizonte 67% 16% 17%

Rio de Janeiro 82% 9% 9%

São Paulo 66% 13% 21%

Curitiba 61% 11% 28%

Porto Alegre 70% 17% 13%

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Pergunta: Se o presidente João Goulart também pudesse candidatar-se à Presidência

Votariam nele Não votariam Não sabem

Fortaleza 57% 34% 9%

Recife 60% 28% 12%

Salvador 59% 32% 9%

Belo Horizonte 39% 56% 5%

Rio de Janeiro 51% 44% 5%

São Paulo 40% 52% 8%

Curitiba 41% 45% 14%

Porto Alegre 52% 44% 4%

AEL – Ibope – Pesquisas Especiais. Notação PE 060 MR0277. Realizada em Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre, entre 9 a 26 de março de 1964. Sem identificação de contratante. 500 entrevistados em São Paulo

e Rio de Janeiro e 400 nas demais capitais. Tabela organizada pelo autor.

Os números da primeira pergunta apontam para a necessidade, na visão dos entrevistados, de realização da reforma agrária, contando sempre com índices acima de 60%. Na segunda questão, sobre a possível reeleição de Goulart, novamente verificamos dados bastante favoráveis ao presidente. Esses indices indicavam uma clara possibilidade de vitória de Goulart.

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Nessa mesma pesquisa foram realizadas várias simulações para a eleição de 1965, todas sem Goulart. Para efeito de comparação pode-se verificar a Tabela II, a qual demonstra que apenas em Fortaleza e Belo Horizonte Jusceli-no Kubitschek supera Goulart. Como foram perguntas distintas, essa compa-ração, evidentemente, apresenta alguns problemas, mas poderia indicar uma possibibilidade de vitória de Goulart, caso fosse possível sua candidatura.

TAB. II – Pesquisa Nacional

Pergunta: Para presidente da República, dentre estes candidatos, votariam em :

Adhemar de Barros

Carlos Lacerda

Juscelino Kubitschek

Magalhães Pinto

Em branco

Não sabem

Fortaleza 5,0 16,5 60,2 3,0 6,3 9,0

Recife 5,8 19,2 45,2 4,5 6,3 19,0

Salvador 9,5 18,1 45,2 6,0 8,0 13,2

Belo Horizonte

6,1 18,8 54,0 9,5 5,8 5,8

Rio de Janeiro

8,5 34,3 35,6 5,7 7,3 8,6

São Paulo 10,4 21,6 31,8 8,3 15,1 12,8

Curitiba 10,8 19,1 35,8 1,5 7,0 25,8

Porto Alegre

16,5 24,2 25,2 13,1 10,5 10,5

AEL – Ibope – Pesquisas Especiais. Notação PE 060 MR0277. Tabela organizada pelo autor.

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Ainda sobre a possivel candidatura de Goulart, é importante discutir outros números dessa pesquisa, por exemplo, os índices de acordo com os grupos sociais na cidade de São Paulo, nos quais verificou-se que, se entre os pobres, Goulart receberia 56% dos votos; entre os mais ricos ele teria apenas 23%, além de uma altíssima rejeição (72%).

Outra questão importante foi o apoio a uma das medidas tomadas por Goulart, no Comício do dia 13 de março na Guanabara, apontadas na Tabela III:

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TAB. III – Pesquisa Nacional

Pergunta: Em relação à desapropriação das terras que margeiam açudes, ferrovias e rodovias federais, são:

Favoráveis Contrários Não sabem

Fortaleza 60% 14% 26%

Recife 59% 13% 28%

Salvador 55% 11% 34%

Belo Horizonte 54% 22% 24%

Rio de Janeiro 66% 19% 15%

São Paulo 56% 21% 23%

Curitiba 55% 17% 28%

Porto Alegre 63% 22% 15%

Por classe social em São Paulo

Favoráveis Contrários Não sabem

Classes “A/B” Rica-Média

53% 27% 20%

Classe “C” pobre 60% 16% 24%

Classe “D” pobre inferior

58% 12% 30%

AEL - Ibope– Pesquisas Especiais. Notação PE 060 MR0277. Tabela organizada pelo autor.

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Esses índices indicam que o comício não foi repudiado pelo povo, nem mes-mo pelas camadas mais abastadas da sociedade como os jornais apontavam.

Finalmente, a pesquisa encomendada pela Fecomércio - uma das raras a indicar o contratante - a última realizada antes do golpe, apresenta índices semelhantes a essa pesquisa nacional.

Sobre o governo Goulart, há uma aprovação total de 72% (ótimo 13%, bom 29% e regular 30%), muito superior à reprovação de 19% (mau 7% e péssimo 12%). No entanto, quando há a separação por gru-pos sociais a aprovação entre os mais pobres chega a 86% (com apenas 6% de “mau” e “péssimo”).

Essa pesquisa, também, perguntou sobre a atuação do Congresso e do governador Adhemar de Barros. A Tabela IV serve para comparar a aprovação do presidente, do Congresso e do Governador. Os indices de aprovação de Goulart (72% de “ótimo”, “bom” e “regular”) são superiores aos do Congres-so (59%) e aos do governador Adhemar de Barros (54%).

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TAB. IV – Pesquisa em São Paulo

Presidente Congresso Governador

Ótimo13% 7% 3%

Bom29% 16% 16%

Regular30% 36% 35%

Mau7% 7% 12%

Péssimo12% 12% 21%

Não sabem9% 22% 13%

AEL - Ibope – Pesquisas Especiais. Notação PE 060 MR0277. Realizada nas cidades de São Paulo, Araraquara e Avaí. Contratante: Federação do Comércio do Estado de São Paulo. Entre 20 e 30 de março de 1964. 500 entrevistados em São Paulo, 300 em Arara-

quara e 150 em Avaí. Nessa tabela apontamos apenas os números da cidade de São Paulo.

Essa pesquisa também aponta que os decretos apresentados por Goulart, no comício do dia 13 de março, tiveram boa aceitação. Os decretos eram con-hecidos por mais de 80% dos entrevistados e 64% eram favoráveis. Apenas 20% contrários. Entre os mais pobres a aprovação alcançou 75%. As Reformas de Base também eram vistas como necessárias para quase 80% dos paulista-nos. Finalmente, a questão da reeleição também foi abordada, os números in-dicam que essa possibilidade não era rejeitada pela maioria dos entrevistados.

Quando perguntados se: “O sr. (a) acha que, de modo geral, deveria ser permitida a reeleição de prefeitos, governadores e presidentes da república?”, temos 47% favoráveis e 44% contrários (9% não souberam responder). Cabe

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destacar que o “continuismo” de Goulart foi constantemente utilizado, pelos jornais, como explicação para as manifestações de oposição. Em uma sepa-rata dessa pesquisa, indica que não existia um temor de ruptura institucional: apenas 12% acreditavam que Goulart planejava “um golpe para se tornar dit-ador”. Assim, não se justificaria a ideia de um “golpe militar preventivo” para evitar um continuísmo – legal ou não – de Goulart.

Considerações finais

Seria importante retomar e reforçar dois pontos. Em primeiro lugar cru-zar a discussão sobre a imprensa e as pesquisas de opinião. Ficou claro que existiu uma contribuição da Folha de S.Paulo – e de grande parte da grande imprensa - na desestabilização de Goulart, por meio das críticas ao governo, muitas vezes infundadas. No entanto, parece que isso não foi suficiente para tornar a opinião pública, em São Paulo, contrária ao governo Goulart e, so-bretudo, às suas propostas de Reformas de Base.

“Os textos não são depositados nos objetos, manuscritos ou impressos, que os suportam como em receptáculos, e não se inscrevem no leitor como o fariam em cera mole.” (CHARTIER, 1990, p. 25). Ou seja, o leitor é dotado de competências, possui uma história e individualidade, não existe um “lei-

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tor universal”. O indivíduo é capaz de repensar a notícia, de aceitar ou recu-sar informações em função da sua própria história, de suas crenças, de suas expectativas. Nesse caso, o jornal “falaria” de forma mais intensa apenas aos seus “leitores”, àqueles que já compartilham as opiniões do jornal. Nesse sentido - e as pesquisas de opinião indicam isso - há uma crítica maior ao governo Goulart entre os grupos mais abastados.

Talvez, as ações da imprensa tenham influenciado o pensamento das ca-madas médias, das elites, dos militares, mas mesmo assim, apenas teriam reforçado algo que esses grupos já acreditavam.

Existia, realmente, uma sensação de caos entre os militares, de baderna, de quebra da hierarquia, de indisciplina, de avanços comunistas. Entre as ca-madas médias, a visão de inflação alta e descontrolada, avanço das greves com apoio ou anuência do governo, benefícios exagerados aos pobres. Para os empresários, as Reformas de Base poderiam trazer prejuízos, os discursos de Goulart haviam se radicalizado, sobretudo em março de 1964, acusando esses grupos de sabotarem a economia, de trabalharem contra o país. As-sim, provavelmente, a imprensa tenha apenas reproduzido o discurso desses grupos, servindo como um “amplificador” desse descontentamento.

A segunda questão diz respeito aos anacronismos históricos. As esquer-das são cobradas pela suposta falta de apreço à democracia; João Goulart é cobrado por falta de iniciativa; as camadas médias por terem apoiado um

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golpe e uma ditadura. No entanto, nem atores - nem expectadores - sabiam do desfecho da peça, poucos poderiam imaginar que os militares ficariam tanto tempo no poder, poucos poderiam imaginar que a ditadura militar se-ria tão violenta. Caso contrário, se soubessem o que se sabe hoje, provavel-mente as escolhas seriam diferentes.

É necessário ainda considerar que para os protagonistas envolvidos nos conflitos daquela época, como as esquerdas, a direita civil, o Presidente da República e os militares golpistas, o golpe, em certa medida, surgia como uma grande incógnita. Uma ditadura com duração de vários anos não esta-va nos planos dos golpistas. (FERREIRA, 2011, p. 527).

Realmente esse quadro não era algo no horizonte de Goulart, caso con-trário, se ele imaginasse os rumos do Brasil, se ele imaginasse o significado de “64: o Brasil Continua”, provavelmente, suas escolhas seriam diferentes.

Referências

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964). São Paulo: Ed. Unesp, 2010.

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.

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CHARTIER, Roger. História cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Ber-trand, 1990.

DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.

FERREIRA, Jorge. Jango. Uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

GORENDER, J. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.

MOTTA, Rodrigo P. Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002.

REIS, D. A.; RIDENTI, M.; MOTA, R. P. S. (org.). O Golpe e a Ditadura Militar: 40 anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004.

Fontes primárias

Pesquisas Ibope Fundo Ibope – AEL (Arquivo Edgard Leuenroth –Instituto de Filosofia e Ciências Huma-nas – Unicamp)

Jornal Folha de S.PauloDisponível em <http://acervo.folha.com.br>

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MIDIA RADIOFÔNICA E POLÍTICA: LÓGICAS AUTORITÁRIAS E MOVIMENTOS SOCIAIS

Carla Reis LONGHI1

ResumoO contexto do pré-golpe civil–militar brasileiro foi denso e extenso, percorrendo todo o período do governo de João Goulart desde sua posse em 1961. Neste artigo, discu-timos o momento do conflito colocado com a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart, numa clara tentativa de golpe frustrado, analisando o papel exercido pelo rádio no processo de mobilização social e enfrentamento político. Para tanto, recupe-ramos aspectos da história do rádio no Brasil. Pautados por Michel de Certeau, para ponderar sobre lógicas de resistência; e por Martín-Barbero, para a análise das media-ções. Propomos a análise da conjuntura que atrelou um formato industrial adequado à especificidade do contexto e às demandas simbólicas presentes na sociedade.

Palavras-chave: Mídia radiofônica. Mediações. Estratégias e táticas.

1 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e Pós-doutoranda em Comunicação Social pela Facultad de Ciencias de la Información de la Universidad Complutense de Madrid. É Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Paulista. Atualmente é Coordenadora do Curso de História da PUC-SP. Realiza pesquisas no Grupo “Mídia, Cultura e Política: identidades, representações e configura-ções do público e do privado no discurso midiático”, cadastrado junto ao CNPq.

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Introdução

Como propõe Martín-Barbero, entendemos que a tessitura entre lógicas político-culturais e os processos comunicacionais se articula considerando a especificidade das formas de comunicação social de cada momento (pauta-das pela tecnologia e modos de produção existentes) e os costumes sociais, avaliando as formas de mobilização, as necessidades materiais e simbólicas colocadas, numa contínua alimentação mútua. Se tomarmos o contexto do pré-golpe civil-militar de 1964, encontraremos um país múltiplo e denso, com os principais centros urbanos extremamente mobilizados politicamen-te, num contexto de enfrentamentos intensos. Ponderemos sobre este pro-cesso retomando, em linhas gerais, as condições dos meios de comunicação e as formas de sociabilidade.

Ao tomarmos o tema das mediações tendo em vista os movimentos sociais e suas relações com os meios massivos, devemos estabelecer dois grandes momentos: o período de 1930-1950 e de 1960 para frente. Isto por que a primeira fase estaria centrada “no conflito entre massas e Estado e a solução de compromisso, sob a forma do populismo nacionalista e dos na-cionalismos populistas” (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 242), enquanto a partir de 1960 “os meios são desviados de sua função política, que o dispositivo econômico se apodera deles”. (MARTIN-BARBERO, p. 243)

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Apesar de não partirmos, tal qual Martín-Barbero, do conceito de populismo para analisarmos as relações estabelecidas entre Estado e massas, concordamos com as premissas quanto à articulação entre meios massivos e movimentos sociais e recortamos o primeiro período proposto como foco de nossa análise, vislumbrando para o mesmo, como principais mídias massivas, as mídias im-pressa e radiofônica. A mídia impressa apresenta-se, sempre, como uma mídia segmentada, tanto em função de seu custo quanto em função da demarcação territorial de sua circulação, além de especificidades do projeto editorial.

Já a mídia radiofônica foi a mídia massiva por excelência até o advento da televisão. O rádio, considerando as especificidades do período, nasceu sob a égide da política, servindo desde seu advento para a publicização das ideologias políticas pelos diferentes Estados e então, não por acaso, em con-textos políticos autoritários, como na Alemanha nazista, na Itália de Musso-lini, na Espanha franquista e isto não foi diferente no Brasil, considerando, contudo, o perfil de cada Estado citado. Em 1922, sua primeira transmissão oficial apresenta o discurso do então presidente Epitácio Pessoa no Rio de Janeiro. Levará ainda alguns anos para tornar-se uma mídia de forte articu-lação política e social, apesar de ter sido utilizada politicamente pelo então candidato à Presidência Júlio Prestes.

A lentidão em sua difusão deveu-se a um percurso de disseminação popular desta mídia que precisou, primeiro, baratear os custos dos equi-

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pamentos de rádio e estruturar um tipo de programação voltada a um público popular. Em 1931, com o decreto-lei n. 20.047, as atividades de ra-diodifusão tornam-se, legalmente, interesse nacional e o primeiro grande impulso para sua disseminação ocorrerá com Getúlio Vargas, em 1932, que criou um ordenamento legal para o uso da publicidade dentro desta mídia, alterando assim, a forma de estruturação econômica, o que possibilitou a redefinição do meio, em busca de um público mais vasto e uma programa-ção mais popular. Vemos, assim, o que Martín-Barbero denomina de ins-titucionalidade em seu mapa das mediações, ou seja, relações compostas de interesses contraditórios, sociais, econômicos e políticos, pressionando pela atuação governamental no processo comunicativo, que neste caso, viabilizou a criação de um aparato legal e a possibilidade econômica para a estruturação deste formato industrial:

A institucionalidade tem sido, desde sempre, uma mediação densa de interesses e poderes contrapostos, que tem afetado, e continua afe-tando, especialmente a regulação dos discursos que, da parte do Esta-do, buscam dar estabilidade à ordem constituída e, da parte dos cida-dãos - maiorias e minorias -, buscam defender seus direitos e fazer-se reconhecer, isto é, re-constituir permanentemente o social (...).Visto a partir da sociabilidade, a comunicação se revela uma questão de fins (...).Visto a partir da institucionalidade, a comunicação se converte em

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questão de meios, isto é, de produção de discursos públicos cuja he-gemonia encontra-se paradoxalmente do lado dos interesses privados. (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 17)

Muitos estudos apontam para o papel que o rádio cumpriu durante o co-mando de Getúlio Vargas destacando-se, por um lado, o papel do rádio na Revolução de 1932 e, por outro, o uso político desta mídia pelo próprio go-verno Vargas para fortalecimento de seu governo. Isto se consumará em 1938, com a criação do programa Hora do Brasil, com locução de Luiz Jatobá que, em 1939, com o decreto-lei 1949/39 torna obrigatória a transmissão deste programa em todas as rádios existentes; posteriormente, houve a transforma-ção da Rádio Nacional em porta-voz do governo federal. Os anos 1940 serão conhecidos como a época de ouro do rádio, pelos motivos já elencados: for-talecimento da publicidade, programação popular, incentivos fiscais.

Em 1941, o jornalismo radiofônico ganha força com o programa Reporter Esso, na Rádio Nacional, ficando 27 anos no ar. Em 1942, durante o perío-do ditatorial do governo de Vargas, o então Ministro do Trabalho, Alexan-dre Marcondes, passará a ter uma programação semanal, de dez minutos, dentro do programa Hora do Brasil. Gomes (2005) nos mostra o importante papel cumprido por esta programação na estruturação de um diálogo con-tínuo entre o governo e o público popular, criando visibilidade para o gover-

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no Vargas, pois o eixo do programa era a discussão da legislação trabalhista construída pelo ditador e dirigida principalmente ao público analfabeto.

O programa, cujo título era ‘Falando aos trabalhadores brasileiros’ busca-va esclarecer o conteúdo da legislação, proposta esta considerada vitoriosa, em função do número de mensagens que o programa recebia de diferentes estratos sociais, além do próprio tempo de permanência no ar, já que só foi encerrado em julho de 1945. Desta experiência, um aspecto nos interessa particularmente, indicado pelo próprio Alexandre Marcondes, no momento que fez uma avaliação de sua inserção, após cinquenta palestras proferidas:

(...) o programa semanal constituía uma experiência destinada a divulgar pelo processo mais rápido e amplo as medidas governamentais em matéria de legislação social. Em função das grandes distâncias do território nacional e das dificuldades de comunicação, o rádio fora o meio considerado mais conveniente para a realização desta obra de esclarecimento dos trabalha-dores de norte a sul do país. (GOMES, 2005, p. 212)

A composição ‘mobilidade-velocidade’ presente na fala destacada mos-tra-se como o eixo prioritário no uso da mídia radiofônica; estas eram as especificidades do formato industrial desta mídia, formato este possível a partir das tecnologias circulantes e dos investimentos público-privados dis-ponibilizados, viabilizando a sua difusão pela maior parte do território na-

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cional, inviável à mídia impressa em qualquer formato. Vemos que aqui, o formato industrial associa-se claramente às lógicas de produção, pois, como discutido por Martín-Barbero “[...] sobre sua competência comunicativa - ca-pacidade de interpelar / construir públicos, audiência, consumidores; e muito especialmente sobre sua competitividade tecnológica: usos da Tecnicidade” (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 18).

A maior parte dos programas radiofônicos de cunho político interagia, ao mesmo tempo, com a mídia impressa, através da publicação dos discur-sos proferidos em artigos dos diferentes jornais, integrando assim os dois principais expoentes da mídia massiva existentes naquele contexto. Mas é nítida como a especificidade da mídia radiofônica quanto à sua capacidade de mobilização foi fundamental em todos os momentos analisados. Jorge Ferreira, ao analisar o contexto de 1945, no chamado Movimento Queremis-ta, também aponta para a importância da especificidade desta mídia. Neste recorte, o autor se refere à luta das camadas populares em defesa da perma-nência de Getúlio Vargas no poder, contra o movimento orquestrado pela União Democrática Nacional (UDN), através de seu candidato à presidência, o Brigadeiro Eduardo Gomes. Este, em determinado momento de sua cam-panha eleitoral, proferiu um discurso se referindo à grande massa da popu-lação, que no contexto defendia seu opositor, como ‘malta de desocupados’. Esta frase intensifica o confronto:

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Malta, para o Brigadeiro, seria o conjunto de trabalhadores que participou dos comícios queremistas, porque, em sua percepção política, recebeu di-nheiro do Ministério do Trabalho para comparecer às manifestações pela continuidade de Vargas no poder. Borghi foi ao dicionário e leu: [Malta - agrupamento de lobos, conglomerado de má catadura, operários que per-correm as linhas ferroviárias levando suas marmitas, marmiteiros] marmi-teiros, pensou ele, era melhor que malta. Com sensibilidade política, não foi difícil perceber que marmiteiro pegava mais do que malta. No dia seguinte, Borghi acionou uma cadeia de 150 rádios. Sem meias palavras, declarou: ‘A maior prova de que o senhor Brigadeiro é o candidato dos grã-finos, dos milionários, dos ricos, dos barões, dos exploradores do povo é que ele de-clarou que não precisa do voto dos marmiteiros, que trabalham, que lutam. (FERREIRA, 2005, p. 81, grifo nosso)

Neste exemplo, está posta também a especificidade da mídia radiofônica: sua acessibilidade (para os que dela querem fazer uso e para atingir o públi-co alvo), sua mobilidade e velocidade. Teria sido inviável, articular em tempo recorde (no caso foi no dia seguinte) a difusão midiática via imprensa escrita, bem como, não atingiria a maior parte do território, nem o seu público alvo, as camadas populares. Contudo, não devemos entender a forte dissemina-ção da radiodifusão em função, apenas, de suas características técnicas. Os formatos industriais serão mais eficientes, quanto mais estiverem vinculados aos rituais de recepção, intensificando a sociabilidade existente e sendo, ao

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mesmo tempo, fomentados por estas. Nos dois casos citados há uma forte aproximação do conteúdo radiofônico com as expectativas e interesses das camadas populares, no que tange à conformação simbólica do trabalhador: no primeiro caso, as palestras de Alexandre Marcondes, há a proposição de valorização do trabalhador, na explicitação de seus direitos e, no segundo caso, de modo parecido, há a indignação quanto ao tratamento dado ao tra-balhador que precisa da marmita.

Com isto, entendemos que os programas radiofônicos relacionados à polí-tica nacional buscavam um reconhecimento contínuo e crescente de seu públi-co receptor, constituindo uma contínua negociação de sentido, na construção de um referencial simbólico sobre o trabalhador pois, como já indicado por Martin-Barbero, para os cidadãos, ‘a comunicação é uma questão de fins’. O trabalhador identificava um meio de confirmação de uma condição social bus-cada, tornando o rádio um importante mediador cultural. Junto a estes fatores e ainda retomando as ritualidades, devemos considerar que as mesmas “reme-te-nos ao nexo simbólico que sustenta toda a comunicação: à sua ancoragem na memória, aos seus ritmos e formas, seus cenários de interação e repetição... constituem uma gramática da ação - do olhar, do escutar, do ler (...)”. (MARTIN--BARBERO, p. 19) Esta gramática, no caso centrada na cultura do ouvir, recupera a longa tradição da oralidade popular, encontrando-se assim, numa forte matriz cultural, transformada e intensificada pela difusão das rádios.

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Destaquemos melhor o aspecto simbólico sem, contudo, nos estendermos em demasia. A ascensão de Getúlio Vargas a partir de 1930 se dá no proces-so de construção do trabalhismo no Brasil, ou seja, Vargas compreende que precisa atender a importantes demandas trabalhistas, demandas estas expli-citadas ao longo dos anos de 1920, num longo embate entre trabalhadores e empresários e industriais, embate este articulado, entre outros sujeitos, pelos anarquistas, hoje tão silenciados. Vargas capta as demandas trabalhistas como suas e negocia com estes personagens, alçando-os a interlocutores legítimos do Estado, constituindo, assim, a lógica do trabalhismo.

Este cenário explicita a conquista dos direitos em torno da legislação trabalhista, fato que favorece o forte apoio popular ao varguismo, mas im-põe uma contínua negociação, muito perceptível nos anos de 1940 e 1950, recheada de intensas greves e negociações. Além disto, ao tornar o traba-lhador um legítimo interlocutor atinge-o simbolicamente por redimensionar sua autoimagem. Assim, para entendermos o contexto de 1961 precisamos compreender as diferentes articulações das tessituras sociais, numa longa tradição de embates políticos, tendo a figura de Vargas e seus discípulos no cenário central e compreendendo que o apoio social vem sedimentado por lógicas culturais e facilitado por meios também relacionados a estas mes-mas matrizes culturais. Oralidade e apelo à dimensão simbólica são, então, dois importantes fatores que dotam o meio radiofônico de sentido.

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O contexto de 1961:

Precedentes - os personagens

Em 27 de agosto de 1961, o então presidente da República, o Sr. Jânio Quadros, renunciou ao poder, criando um dos maiores impasses políti-cos já vividos neste país. Isto por que o vice-presidente eleito, o Sr. João Goulart representava, para muitos setores, a ascensão tanto de setores da esquerda quanto do retorno de uma lógica populista de governo, como herdeiro legítimo de Getúlio Vargas. Sobre este aspecto, podemos tecer mais alguns breves comentários. Goulart, tal qual Vargas, começou sua carreira política no Rio Grande do Sul. Sob o apadrinhamento de Var-gas, que o introduz na vida política, inicialmente local, começando como presidente regional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), tornando-se deputado estadual em 1947 e presidente nacional do PTB em 1952. A carreira política de Goulart deslancha ainda mais em 1953, quando as-sume o Ministério do Trabalho de Vargas em seu último governo. Vale à pena aprofundarmos um pouco este momento, por que aqui se define sua conduta política e a alcunha, para alguns, de populista e para outros, de trabalhista. Jango, como ficou conhecido, teve um importante papel à frente do Ministério do Trabalho.

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Entre as atitudes tomadas enquanto esteve à frente do Ministério destaca-mos, pautados pela discussão proposta por Gomes (2007), a abolição do cha-mado ‘Atestado ideológico’. O documento era emitido pelo Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS) e atestava que o trabalhador que assumisse funções no sindicato não era comunista; assim, Jango traz a marca de vetar a perseguição ideológica, decisão esta acompanhada de outra, a ‘abolição da intervenção no sindicato’, quando assumia uma diretoria considerada de es-querda. Assim, qualquer tendência teria sempre a posse garantida.

Com estes procedimentos, o Ministério de Trabalho de Jango (assumido em 1953) inaugura uma fase coroada por ‘acordos entre as partes’, onde to-das as questões eram sempre negociadas. Isto possibilitou a aproximação das lideranças sindicais (petebistas ou comunistas) ao Ministério do Traba-lho, intensificada pela solicitação do apoio das lideranças sindicais na fisca-lização das leis trabalhistas. Isto foi considerado por empresários, políticos conservadores e a maior parte da imprensa como um ato invasivo, chamado pejorativamente até de ações subversivas e comunistas. Outra atitude que desgostou empresários e políticos conservadores foi a proposta de convo-cação do ‘Congresso da Previdência Social’ em agosto de 1953. Neste foi proposta a participação dos sindicatos na administração das autarquias da Previdência Social, numa comissão tripartite, composta de Estado, empresá-rios e trabalhadores, para a administração dos recursos da previdência.

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Além dos aspectos destacados, Jango inaugurou uma fase em que se abria mão da formalidade e da distância do Ministério em relação aos traba-lhadores, abrindo as portas do mesmo a qualquer trabalhador que quisesse uma audiência com o Ministro, a qualquer hora do dia. Notamos aqui lógicas rituais presenciais e midiáticas consonantes, baseadas no diálogo, no discur-so. Podemos perceber, também, que a atuação de Jango se aproximava de todo o referencial simbólico em construção sobre o papel do trabalhador, discutido anteriormente. O último ato de profunda repercussão à frente da pasta do Trabalho foi a proposição do aumento do salário mínimo, na ver-dade, sua duplicação, em 100%. A reação foi tão intensa que Jango saiu da pasta, mas o aumento foi anunciado em primeiro de maio de 1954.

Neste período, Jango demarcou seus traços de personalidade tanto pessoal quanto política, inaugurando uma fase de contínuas conversas; muitos são os depoimentos que indicam que Jango não estabelecia distinções entre seus in-terlocutores, recebendo indistintamente políticos, sindicalistas e trabalhadores, a qualquer hora do dia e sem agendamento prévio. Em função de todos estes aspectos, foi taxado de populista, fato importante nos acontecimentos do con-texto do pré-golpe. Antes de retomarmos o contexto recortado neste artigo, lembramos que Jango foi ainda, no período de 1956-1963, duas vezes eleito o vice-presidente mais votado de toda a história política brasileira, destacando-se o fato de que, neste período, a eleição de presidente e vice eram separadas.

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Em 1961, Jango era o vice-presidente de Jânio Quadros, eleito com maior votação que o próprio presidente e ainda representando o PTB, partido dis-tinto de Jânio. Estava em viagem oficial à China no momento da renúncia de Jânio Quadros, o que possibilitou uma articulação interna para impedir o seu retorno ao país. Esta articulação, ordenada por militares insatisfeitos, remete a um longo processo de enfrentamentos, com diferentes contextos de gol-pes militares, vitoriosos e frustrados, que não é objeto de nossa análise neste artigo, mas aponta para o fato de que a tentativa de golpe de 1961 era um projeto em construção e não uma reação específica ao contexto posto com a renúncia de Jânio. Martins Filho (2008) defende que os golpes frustrados efetivados pela Corporação Militar, desde 1945, não se deveram à fragilidade ou falta de projeto, como imaginavam os setores civis; deveram-se sim, à uma polaridade interna que gerava grupos em conflito quanto à sua atuação.

O cenário - um ambiente de posicionamentos e radicalização

O governo de Jânio Quadros começa com a demonstração de que não seguirá uma política ortodoxa. Assim, rompe com o alinhamento automáti-co aos Estados Unidos da América (EUA) e busca aproximações com a Áfri-ca, Ásia e países não alinhados, como o Egito e a Iugoslávia, causando forte mal estar na política externa. Outra situação tensa foi a posição brasileira de

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confirmação da independência cubana, contra a orientação norte-america-na, em começo de 1961 e a condecoração de Che Guevara com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, em solo brasileiro, por Jânio.

Internamente, viveu seu primeiro ano de governo com sindicâncias abertas e solicitadas por ele próprio para apurar denúncias de corrup-ção, numa clara tentativa de atingir politicamente tanto o vice-presidente, quanto seus oponentes políticos. No âmbito econômico, houve um gran-de aumento da dívida externa, do déficit público e da inflação, situação piorada por Jânio ao enviar ao Congresso Nacional um Projeto de Lei de controle das remessas de lucros das empresas estrangeiras. Neste contex-to, sua renúncia foi bem vinda, fato não esperado pelo próprio presidente, que achava que receberia apoio do Congresso e das Forças Armadas. Co-meça, então, um novo momento de tensão: a tentativa de cerceamento à ascensão do vice-presidente.

Quando se anuncia uma nova tentativa de Golpe, na articulação de se-tores das Forças Armadas com políticos da UDN, com o intuito de impedir que o vice-presidente assumisse, por se tratar de João Goulart, começam as mobilizações pró-legalidade. Consideramos este momento fundamental na análise das articulações entre o contexto político revolucionário e o papel do rádio na especificidade dos formatos industriais e ritualidades propostas.

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Na tarde de 27 de agosto de 1961, em Porto Alegre, o funcionário dos Cor-reios e Telégrafos João Carlos Guaragna calibrava um receptor para radio-amadores, um a mais, entre tantos outros. Com estranheza, João percebeu que, em uma das faixas do rádio, alguém transmitia mensagens em código Morse - algo inusual para aqueles aparelhos. Com a vivência dos profissio-nais, não foi difícil perceber a ansiedade do operador, refletida nos toques cada vez mais nervosos. Ao descobrir que a origem da transmissão provinha do QG do III Exército, sediado em Porto Alegre, imediatamente João muniu-se de um lápis e interceptou a mensagem do general Antônio Carlos Murici que, da capital do Estado, alertava o general Orlando Geisel, em Brasília: “Co-munico III Exército interceptou mensagem do Governador, endereçada ao Dr. Jango, oferecendo tropas do Rio Grande para serem enviadas via aérea para Brasília, a fim de garantir sua posse. Governador está armando o povo e pro-vocando agitações no interior do Estado. (...) Devido forte tensão é possível que menor incidente desencadeie a guerra civil, com graves conseqüências. (...) Operações-repressão em condições de serem desencadeadas momento oportuno”1. Assim, casualmente, João se deu conta de que o III Exército es-tava monitorando todas as comunicações do Palácio Piratini, sede do gover-no estadual. Preocupado e temeroso, João ainda interceptou diversas outras mensagens trocadas entre os altos escalões do Exército. Ao anoitecer, uma delas, em especial, o angustiou. Da Guanabara, generais instruíam o coman-dante do III Exército, general José Machado Lopes: “(...) é necessário firmeza e energia do III Exército a fim não permitir que cresça a força do adversário potencial que tem todo o interesse em manter a ordem a fim de que o Sr. João Goulart assuma a Presidência”. (FERREIRA, 1997, p.1)

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O trecho acima transcrito narra a tensão iniciada naquele dia 27 de agosto, com a renúncia de Jânio Quadros, ocorrida no dia 25. O relato de João Carlos Guaragna, recuperado por Ferreira (1997) apresenta o clima posto naquele contexto; os riscos envolvidos na operação; a profunda imprevisibilidade pre-sente no momento; a definição dos grupos que se colocavam em movimento e, por fim, o papel que o rádio adquiriu na situação. A primeira marca da es-pecificidade do rádio, posta na transcrição, é a de outra forma de acessibilida-de. Neste caso, é o da capacidade de interação, interceptação, possível pelas ondas do rádio, mas inviável na mídia impressa e mesmo na mídia televisiva, presente neste contexto, mas ainda pouco influente. Este pequeno fato pode ter alterado definitivamente o percurso dos acontecimentos, pois a resistência ao golpe teve condições de mobilizar grupos e articular táticas. Como colo-cado por Certeau, a estratégia “o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um ambiente” (CERTEAU, 1994, p.46) estava construída e os militares pu-nham em movimento uma articulação previamente traçada; mas, frente às es-tratégias temos as táticas “um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro.” (idem, ibidem)

Comecemos destacando o papel de Leonel Brizola. Político de longa data, também inserido na política por Getúlio Vargas, governador do estado do

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Rio Grande do Sul pelo PTB, cunhado de João Goulart. Torna-se a principal figura no contexto de 1961, por ser o responsável pela criação e articulação da Rede da Legalidade para garantir a posse de Jango como presidente da República. No momento da citação acima, Brizola já reunia as forças do III Exercito que lhe apoiavam para receber Jango no país e como visto, sua ar-ticulação foi interceptada pelos oponentes de Jango, que também passaram a organizar as forças oposicionistas a Jango, na efetivação de mais um golpe militar. A imagem reconstituída pela historiografia e pela memória daqueles que participaram diretamente no cenário da Rede da Legalidade foi a de um movimento, iniciado por Brizola, carregando uma arma em uma das mãos e um microfone na outra. Esta imagem é elucidativa, para mais uma vez, pensarmos sobre o papel político da mídia radiofônica, nos limites finais do primeiro ciclo indicado por Martin-Barbero.

A utilização das rádios foi fundamental para mobilizar a população, que respondeu prontamente aos apelos do então governador e partiu maciça-mente para a praça Matriz, em frente ao Palácio Piratini, na articulação da oposição ao golpe. Como discutido, a população sai às ruas, massivamente, e apoia o movimento, pois tem uma longa tradição de apoio político a estas bases e vê sentido na perspectiva proposta; havíamos retomado um longo percurso de embates e negociações políticas com o intuito de demonstrar que havia uma sociabilidade constituída que passava pela interlocução com

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estes sujeitos políticos que agora pediam o apoio. Inegavelmente, o peso desta mídia foi grande, em função da tecnicidade posta, mas se não houves-se ritualidades constituídas, o impacto seria menor.

Segundo o depoimento de Lauro Hagemann2, Repórter Esso por muito tempo, voz radiofônica reconhecida, o Departamento de Rádio do Minis-tério da Aviação e Obras Públicas mobilizou os seus fiscais e ordenou que confiscassem os cristais das rádios gaúchas para conter a mobilização. Os mesmos confiscaram os cristais das rádios Farroupilha, Gaúcha e Difusora, esquecendo a rádio Guaíba, fato que teria levado Homero Simon a sugerir a Brizola que utilizasse os transmissores desta rádio para continuar as trans-missões. A ideia foi acatada, a rádio instalada nos porões do Palácio Pirati-ninga e o transmissor ficaram sob os cuidados das tropas da Brigada, o que inviabilizou a ação dos golpistas. Inicia-se aí a Rede da Legalidade, com o apoio de outras 15 rádios de ondas curtas e médias espalhadas pelo país, além da tradução e transmissão, via ondas curtas, para outros países. Se-gundo o relato de Holmes Aquino3, isto demonstra que foi necessária uma profunda articulação entre as diferentes rádios para o uso das ondas no país e no mundo. No país, com auxílio das rádios gaúchas utilizaram as ondas médias e para os outros países articularam uma mesa de transmissão atra-2 Utilizamos um depoimento de Hageman em áudio, disponibilizado no site Campanha da Legalidade 50 anos3 Holmes Aquino era técnico da Rádio Guaíba e tem depoimento em áudio disponibilizado pelo site Campanha da Legalidade 50 anos.

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vés de ondas curtas, atingindo países de línguas alemã, inglesa, espanhola, numa rede claramente internacional. Em função disto tudo, Brizola precisava manter transmissões contínuas, que foram feitas através de gravações trans-mitidas pela rádio Guaíba, na articulação descrita.

Os diferentes relatos indicam as dificuldades enfrentadas para se garan-tir as transmissões. Erika Kramer, na época estudante de jornalismo com 23 anos de idade, conta4 que passava os dias na redação, a café e sanduíche, incumbida de fazer o texto e a locução em alemão, já que dominava a lín-gua. Hagemann, o Repórter Esso do Rio Grande do Sul, em depoimento em áudio, conta que ouvindo as transmissões da Rede da Legalidade percebeu que o radialista oficial da rádio Guaíba não tinha condições de se manter no ar 24 horas por dia, o que gerava uma série de inserções ruins, com pesso-as desqualificadas, conteúdos mal elaborados e o contato com vozes esga-niçadas, incompatíveis com a sonoridade necessária para o rádio. Por isto, entendeu que precisaria participar e se ofereceu como locutor. Segundo ele, depois disso, grande parte dos radialistas se ofereceu para participar, crian-do um fato inédito para a história do rádio: foi o primeiro momento que os radialistas se viram como classe e tomaram consciência da necessidade de mobilização e de discussão de seu papel civil, político e profissional.

4 Seu depoimento foi apresentado pelo jornal Folha de S. Paulo em 07/08/2011 por ocasião dos 50 anos da Rede da Legalidade, no Caderno Ilustríssima.

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Nasceu aí, ainda segundo Hageman, o Sindicato dos Radialistas, que em 1963, sob o governo de Leonel Brizola, fez o Primeiro Congresso Brasileiro dos profissionais de radiodifusão. O fato mostra as articulações entre a his-tória política e a história do rádio no país. Mostra também, que esta articu-lação política, que efetivamente evitou o golpe de 1961 e garantiu a posse do vice-presidente João Goulart, precisou do apoio de uma mídia, com as características específicas da mídia radiofônica: acessibilidade e mobilidade para montar um bunker no porão do palácio do Governo; mobilidade e velo-cidade para viabilizar a composição de uma mesa de transmissão com difu-são no país e fora dele, tudo isto em tempo recorde para gerar mobilização popular e pressão social. Observemos parte do discurso de Brizola proferido pela Rede da Legalidade em 28 de agosto de 1961:

Desde ontem organizamos um serviço de captação de notícias por todo o território nacional. É uma rede de radioamadores, num serviço organizado. Passamos a captar, aqui, as mensagens trocadas, mesmo em código e por teletipos, entre o III Exército e o Ministério da Guerra. As mais graves re-velações quero vos transmitir. Ontem, por exemplo - vou ler rapidamente, porque talvez isso provoque a destruição desta rádio -, o Ministro da Guer-ra considerava que a preservação da ordem “só interessa ao Governador Brizola”. Então, o Exército é agente da desordem, soldados do Brasil?! E ou-tra prova da loucura! Diz o texto: “É necessário a firmeza do III Exército para que não cresça a força do inimigo potencial”.

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“Eu sou inimigo, meus conterrâneos?! Estou sendo considerado inimigo, meus patrícios, quando só o que queremos é ordem e paz. Assim como esta, uma série de outras rádios foi captada até no Estado do Paraná, e aqui as recebemos por telefone, de toda a parte. Mais de cem pessoas telefona-ram e confirmaram. Vejam o que diz o General Orlando Geisel, de ordem do Marechal Odílio Denys, ao III Exército: “Deve o Comandante do III Exército impedir a ação que vem desenvolvendo o Governador Brizola”; “deve pro-mover o deslocamento de tropas e outras medidas que tratam de restituir o respeito ao Exército”; “o III Exército deve agir com a máxima urgência e presteza”; “faça convergir contra Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente”; “a Aeronáutica deve realizar o bombardeio, se for necessário”; “está a caminho do Rio Grande uma força-tarefa da Ma-rinha de Guerra”, e “mande dizer qual o reforço de que precisa”. Diz mais o General Geisel: “Insisto que a gravidade da situação nacional decorre, ain-da, da situação do Rio Grande do Sul, por não terem, ainda, sido cumpridas as ordens enviadas para coibir ação do Governador Brizola” “Aqui ficaremos até o fim. Podem atirar” (CAMPANHA DA LEGALIDADE, 50 anos)

Destacamos dois aspectos deste trecho do discurso. O primeiro é a importância dada ao papel da comunicação. Brizola insistiu neste fato em outros discursos e depoimentos, deixando claro que o golpe não se-ria evitado se não houvesse um meio de comunicação que se naciona-lizasse e se internacionalizasse; foi a comunicação, garantida e mantida pelas rádios, que possibilitou a informação, a conscientização do papel

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cidadão a ser cumprido, a mobilização social, que se tornou fator essen-cial para a vitória do movimento. Aqui, a comunicação se torna vínculo, constituindo sentido social e, logo, fortalecendo o próprio movimento. Todos os diferentes discursos apontam para esta questão: sem a difusão da informação via rádio, a população não teria saído às ruas; não teria se mobilizado na praça da Matriz; não teria se prontificado a participar como colaboracionista; não teria criado forças nacional e internacional, fato este que pressionou grande parte dos atores políticos a aderirem à legalidade. Ao mesmo tempo, sem um discurso constituído de sentido social, esta mesma população não se mobilizaria.

Aqui, destacamos, ainda, outro aspecto presente no discurso e funda-mental para o movimento: a mobilização em favor da ordem e da legalidade; a todo momento isto foi destacado nos diferentes discursos. O movimento buscava o cumprimento da Constituição que garantia o direito ao vice em assumir a presidência em caso de vacância. Os grupos de ultra-direita de-fendiam que o vice não poderia assumir a presidência. Novamente o Gene-ral Lott, agora na reserva, mas ainda um legalista convicto, mobiliza setores legalistas a favor do cumprimento da lei. Era a Campanha da Legalidade em movimento no cenário palaciano. Seu papel foi fundamental e o retomamos através da citação a seguir:

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A boa notícia, no entanto, veio do Rio de Janeiro, onde o marechal Henri-que Teixeira Lott, reformado mas com grande prestígio político, distribuiu, na noite do dia 25, um manifesto à Nação. Segundo o texto, apesar de ter se esforçado para demover o ministro da Guerra de impedir a posse de Goulart, seus apelos, afirmou, foram inúteis. Assim, declarou Lott:“(...) conclamo todas as forças vivas do país, as forças da produção e do pensamento, os estudantes e os intelectuais, os operários e o povo em ge-ral, para tomar posição decisiva e enérgica no respeito à Constituição, em preservação integral do regime democrático brasileiro, certo, ainda, de que os meus camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das tra-dições legalistas que marcam a sua história no destino da Pátria”.Antes de ser preso, por ordens de Denys, Lott orientou Brizola a procurar alguns militares no Rio Grande do Sul que seriam favoráveis à saída legal para a crise, entre eles os coronéis Roberto Osório e Assis Brasil, o general Pery Bevilácqua e o comandante da Primeira Divisão de Cavalaria, general Oromar Osório. Ao final da tarde do mesmo dia, as primeiras manifestações de rua surgiram em Porto Alegre. (FERREIRA, 1997, p. 6)

Este fator corrobora a percepção de que os militares não se constituíam de forma homogênea e entre eles sempre existiu um grupo legalista, a fa-vor do cumprimento formal da lei, grupo este, mais uma vez, fundamental para o contexto político em questão. O funcionamento da Rede da Legali-dade corrobora, também, o papel de mediação cultural estabelecido pelo discurso radiofônico. Vemos que houve, mais uma vez, profunda interação

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entre este discurso e o universo simbólico deste ouvinte, só que não mais na valorização do trabalhador, mas sim, do cidadão. O público é chamado a um papel cívico e se identifica com o mesmo, pois lhe garante distinção social, na condição de cidadão e cria uma rede de solidariedade, outro forte componente dos referenciais culturais populares. Com isto afirmamos que a Campanha da Legalidade só pode ser vitoriosa pela integração dos dife-rentes fatores abordados, fatores políticos, sociais e culturais, percebidos e alinhavados por Brizola, através do discurso radiofônico.

O poder de Jango, contudo, não foi garantido em sua totalidade. Ele teve que ser negociado e no momento foi cerceado, através da criação de uma lógica parlamentarista, na intenção de garantir a legalidade, mas não o po-der a este presidente. Jango volta ao Brasil e assumi o cargo na condição de presidente num regime parlamentarista, tendo Tancredo Neves como pri-meiro Ministro. Apesar de assumir o poder, o golpe será apenas postergado. Em 1964, o papel das rádios e de todas as mídias será alterado, como indi-cado anteriormente, principalmente a partir de 1968 com o recrudescimento da censura. Esta não terá um procedimento único e coloca a necessidade de pesquisas que aprofundem o caráter da censura na mídia radiofônica, já que existem muitas pesquisas e trabalhos analisando a censura na mídia impres-sa, mas poucos que abordem o tema nos rádios. Devemos considerar, ain-da, ao pensarmos o objeto radiofônico, sobre o impacto da mídia televisiva,

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principalmente a partir dos anos 1960. Todos estes elementos demonstram a riqueza do objeto aqui discutido - as conexões entre a mídia radiofônica e a conjuntura política no Brasil contemporâneo.

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.

FERREIRA, Jorge. A democratização de 1945 e o movimento queremista. In: O Brasil re-publicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

______. Imaginário trabalhista. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 2005.

______. A legalidade traída: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961. Rio de Janeiro, Revista Tempo, vol 2, n.3, 1997.

GOMES, Angela de Castro; FERREIRA, Jorge. Jango - as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

______. A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2005.

HAUSSEN, Dóris Fagundes e CUNHA, Magda. Rádio brasileiro - episódios e

personagens. Porto Alegre: Edipucrs, 2003.

MARTIN-BARBERO, Jésus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2003.

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MARTINS FILHO, João R. Forças Armadas e política – 1945 - 1964: a ante-sala do

Golpe. In: O Brasil republicano. n. 3. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 2008.

______.O palácio e a caserna. São Paulo: UFSCar,1995.

MEDITSCH, Eduardo (org.). Teorias do rádio. Florianópolis: Insular, 2005.

Acervos on-line pesquisados:

Jornal Folha de S.Paulo. Caderno Ilustríssima, 07/08/2011.

Campanha da Legalidade 50 anos. Disponível em: <http://www.legalidade.rs.gov.br/>

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A DITADURA MILITAR E O SURGIMENTO DO JORNAL NACIONAL: OFICIALISMO E SUBMISSÃO NA TRANSMISSÃO DA NOTÍCIA

Carla Montuori FERNANDES1

ResumoO presente artigo sintetiza a história do Jornal Nacional, da Rede Globo de Tele-visão, no período de repressão e ditadura militar no Brasil. Como objetivo, pre-tende-se retomar os principais episódios veiculados pelo noticiário, buscando analisar a possível produção de uma agenda jornalística favorável ao governo ditatorial. Como procedimento metodológico, recorreu-se à pesquisa documen-tal e bibliográfica, além do acesso a entrevistas de profissionais e empresários do setor de comunicação do país2.

Palavras-chave: Telejornalismo. Produção. Política. Memória. Ditadura Militar.

1 Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Atua como docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Paulista e professora do Centro Universi-tário Assunção (Unifai). É pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP.2 Esse trabalho faz parte da tese de doutorado em Ciências Sociais defendida em 2009, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP

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Introdução

A Rede Globo de Televisão surgiu coincidentemente no ano da criação do primeiro Código Brasileiro de Telecomunicações, em 1962, conhecido por centralizar em torno do Poder Executivo as atividades de telecomunicações no país. Michèle e Armand Mattelart (1997), ao reconstruírem o processo históri-co de formação da televisão no Brasil, não veem nessa junção de fatos, que se encontram aparentemente isolados, uma coincidência qualquer.

Para os autores, o golpe de Estado foi articulado dois anos antes, quando o Estado-Maior das Forças Armadas, mais precisamente a Marinha e o Exér-cito, fizeram pressão para que esse código surgisse o mais rápido possível. Ele forneceria, na visão de Mattelart (1997), o elo de que o regime militar precisava para garantir a integridade e a segurança nacional, por meio de uma rede nacional de comunicação.

Na ocasião da criação do Código Brasileiro de Telecomunicações, Ro-berto Marinho, detentor do jornal O Globo e da Rádio Globo, comandou a criação da emissora que se tornaria, não somente aliada do regime militar, como uma das maiores e poderosas redes de televisão do país. Assim, no ano de 1965, Roberto Marinho pôs em uso uma concessão de televisão, outorgada pelo presidente Juscelino Kubitschek, em 30 de dezembro de 1957, através do Decreto de n° 42.946.

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Para implantação de uma estrutura audiovisual mais moderna e arrojada em relação aos concorrentes, a Rede Globo iniciou suas negociações com o grupo norte-americano de multimídia Time-Life, mesmo conhecendo as normas reguladoras do setor e sabendo que tal acordo infringiria um artigo da Constituição brasileira, que proibia sociedades estrangeiras de participar da propriedade, administração e orientação intelectual de qualquer conces-sionária de um canal de televisão. (MATELLART, 1997)

Daniel Herz examinou com detalhes o período de implantação da Rede Globo no país e orientou-se sob a hipótese de que o Estado, regulamen-tando recursos públicos, foi instrumentalizado pelos interesses capitalistas predominantes na radiodifusão. Para confirmar sua tese, o autor analisou com precisão o acordo da Rede Globo com o grupo Time-Life, questionan-do a atuação e a aprovação dessa parceria pelo governo militar. Segundo Herz (1991), ao verificar mais de perto essa sociedade, é impossível não notar as incongruências do processo, visíveis já na base contratual, firmada em 28 de junho de 1962.

Nessa data foi consolidada a sociedade por cotas entre a Rede Globo e o grupo Time-Life, com um capital social inicial de Cr$ 500 milhões3, au-mentado em 14 de dezembro do mesmo ano para Cr$ 650 milhões. Desse último valor, Roberto Marinho ficou com Cr$ 390 milhões e sua esposa com 3 A moeda da época era o cruzeiro.

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Cr$ 187,3. Na integralização do capital, Marinho relacionou tudo que podia inclusive 10 martelos, cujo valor girava em torno de Cr$ 700 cada.

Entretanto, o autor esclarece que o caráter ilegal da transação não se encon-trava nos martelos, mas sim na forma como Marinho integralizou o seu capital de Cr$ 170 milhões, relacionando um equipamento completo de uma estação transmissora de TV, na Licença de Importação da FIBAN N° DG-60/7484/18056 e no contrato firmado com a RCA Corporation. O problema do contrato residia no fato de que o equipamento não pertencia a Roberto Marinho, já que havia sido importado pela Rádio Globo S.A., com isenção de direito e um câmbio favorecido. Sendo assim, estava impossibilitado de ser integralizado na sua parte de capital da TV Globo. (CALMON apud HERZ, 1991)

Outra divergência do processo estava no modelo de sociedade esco-lhido pela emissora. Ao optar pela sociedade de cotas, e não por ações, a Globo isentava-se das publicações exigidas pelo modelo de contrato que adotava para todos os seus demais empreendimentos no país. Além disso, em 24 de julho de 1962, a recém-constituída TV Globo assinou com o grupo Time-Life dois contratos. O primeiro, sob o título de Con-trato Principal, estabelecia uma joint venture, na qual a Rede Globo tinha como dever adquirir e instalar todo equipamento de transmissão de TV e terminar, no prazo de um ano, a construção daquilo que seria sua sede inicial, um estúdio no terreno da rua Von Martius.

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Já o segundo contrato, de caráter técnico, firmado no mesmo dia que o principal, foi dotado de uma transação com detalhes que, aparentemente, so-avam incoerentes. A começar pela discordância entre as empresas envolvidas no acordo: o Contato Principal foi assinado com o grupo Time-Life Broadcast International Inc., sediado em Delaware e o Contrato de Assistência Técnica foi firmado com a Time Incorporated, com sede em Nova Iorque. Entretanto, João Calmon explica a harmonia do processo, realizado com o intuito de disfarçar a relação clara e ilícita de sociedade que se firmou no país:

Para não tornar muito ostensiva a participação estrangeira de uma só em-presa, com 30% do lucro e mais a participação na receita, pretendeu-se, com péssimo disfarce, destinar o proveito alienígena a duas empresas norte--americanas que, na realidade, estão intimamente ligadas e se confundem no mesmo grupo Time. (CALMON apud HERZ, 1991, p. 181)

Daí decorre o caráter audacioso e ilegítimo da transação. Todavia, foi a partir dessa união, que a Rede Globo foi capaz de capitanear a indústria televisiva brasileira e inaugurar uma fase de crescimento acelerado para os meios de comunicação de massa, monopolizando o mercado e desestrutu-rando seus concorrentes, que se tornavam incapazes de disputar e encontrar um público cativo, perante as inovações tecnológicas que a emissora dispo-nibilizava a cada dia para sua grade de programação.

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Aliada do regime militar desde sua fase inicial, a Globo contou no final da década de 1960 com a estrutura adequada para estender seu império. Para Carlos Eduardo Lins da Silva, a identificação do regime com a editora era in-disfarçável, conforme relata o autor:

A Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados que in-vestigou o caso Time-Life aprovou por unanimidade o parecer do redator, deputado Djalma Marinho, segundo o qual os acordos entre a Globo e o grupo americano infringiam o artigo 160 da Constituição da República. Mas o procurador-geral da República e o presidente Castello Branco, em março de 1967, decidiam que a operação havia sido legal, o que seria referendado em 1968 pelo presidente Costa e Silva. (LINS DA SILVA,1985, p. 32)

A atitude dos militares em relação a Globo escondia uma intenção estra-tégica: o poder que a emissora conquistava gradativamente junto ao público seria utilizado na criação de uma imagem favorável ao governo. Além disso, a Rede funcionaria ainda como precursora do projeto de integração nacio-nal idealizado pelo regime.

E assim ocorreu. Em 1965, a Embratel (Empresa Brasileira de Teleco-municações) foi criada com o slogan: “A comunicação é a integração”, e os militares confiaram-lhe três missões, a saber: unir os estados da fede-

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ração através de um sistema de microondas, construir uma estação ter-restre de comunicação por satélite e lançar as bases de uma rede nacio-nal de televisão. (MATELLART, 1997)

Em fevereiro de 1969, os militares concluíram parte de seu projeto de integração nacional e inauguram a Rede Básica de Microondas, sistema de transmissão por satélites, que permitia a interligação e transmissão de pro-gramas ao vivo, em tempo real, para diversas regiões do país. No mesmo ano, a Rede Globo comprou 49% das ações que o grupo Time-Life detinha na sociedade e inaugurou, em 1° de setembro de 1969, o primeiro jornal de âmbito nacional, o Jornal Nacional. Produzido na central do Rio de Janeiro e disponibilizado para outros estados, a Globo, via telejornal, é a primeira a inaugurar um padrão de grande rede nacional.

Nesse sentido, esse artigo tem por objetivo sintetizar as principais marcas do Jornal Nacional durante o período de ditadura militar, retomando acon-tecimentos que indicam a presença de uma agenda jornalística favorável ao governo, construída por meio da veiculação de reportagens que reprodu-ziam um cenário nacional engradecedor para o Brasil.

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Surgimento e condução editorial do Jornal Nacional

O Jornal Nacional nasceu na fase mais repressora da ditadura militar. Meses antes de sua inauguração, mais precisamente em 13 de dezembro de 1968, entrava em vigor o Ato Institucional n° 5 (AI-5), decretado pelo presi-dente Artur da Costa e Silva. Com base nessa legislação constitucional, que tinha como premissa aumentar significativamente os poderes do presidente, a liberdade individual foi cerceada no país.

Um das características do AI-5 estava nas restrições que impunha à im-prensa. Matellart (1997) lembra que os delitos de imprensa passaram, do direito comum, ao crime político, proibido em todo território nacional. Qual-quer tentativa de ruptura com a lei promulgada era tida como ato de suble-vação e não conformismo social.

Com o endurecimento do regime, a participação do telejornalismo, que já era secundária na grade de programação, tornou-se quase restrita. Con-forme esclarece Simões (2000), logo após a promulgação do AI-5, os telejor-nais mantiveram-se no ar somente para cumprir a legislação. O conceituado Jornal Vanguarda da TV Excelsior, por exemplo, que usufruía de forte reputa-ção junto ao público por interpretar as notícias e manter uma estrutura com profissionais de prestígio, resolveu sair de cena logo após o ato.

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Enquanto a censura militar limitava o direito à liberdade de expres-são da imprensa no país, também dava amparo à incorporação de um telejornal sem qualquer teor crítico, como era o Jornal Nacional, nos seus primeiros anos de existência. Sem fortes concorrentes e aperta-do entre duas telenovelas, o Jornal Nacional cumpriria não somente a função de prender o público à grade de programação da emissora, no que ficou conceituado, posteriormente, como fórmula-sanduíche, como também de manter acesa a chama do “Brasil Novo”, ao vivo, para o lar de milhões de telespectadores.

Sob o argumento da rígida censura, o JN investia em uma programação com alto padrão de qualidade, que ignorava o conteúdo e os problemas re-ais do país. Por outro lado, a preocupação em dar sustentação ao regime e ao chamado “milagre econômico” foi apontada por Guilherme Jorge de Re-zende já no primeiro videoteipe do Jornal Nacional. O autor (2000) lembra das imagens de otimismo do então ministro da Fazenda, Delfim Neto, após sair de uma reunião com a Junta Militar.

O conteúdo exibido pelo telejornal era controlado não somente pela cen-sura, mas por profissionais da própria emissora. Simões (2000) relembra o episódio do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick por um grupo da luta armada brasileira. Uma das exigências dos sequestradores para libertar o embaixador era a leitura de um manifesto na TV. O JN estava

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a apenas um mês de sua estreia e o manifesto foi lido com um imenso cons-trangimento e certo pavor de Cid Moreira, que chegou a dizer ao vivo que estava ali como mero leitor.

Dessa forma, evitando confrontos com o governo e investindo em uma programação amena, não demorou para o noticiário alcançar um alto índi-ce de popularidade e conquistar os corações e mentes dos telespectadores cariocas e paulistas. Conforme demonstram Borelli e Priolli (2000), em 1971, um ano antes do ingresso da TV em cores no país, o Jornal Nacional já des-pontava entre os dez mais assistidos da programação brasileira.

No Rio de Janeiro, o Jornal Nacional estava em primeiro lugar e, em São Paulo, em sexto, liderança que conquistaria no ano seguinte. Para Borelli e Priolli (2000), foi também ao longo da década de 1970 que o telejornal transformou-se em um emprendimento quase monopolista. O noticiário chegou a ter quase 80 pontos de audiência, conforme indicaram os órgãos de pesquisa da época.

A estratégia para os altos índices de audiência também encontrava explicação na estrutura estética adotada pelo telejornal e, principalmen-te, na escolha dos apresentadores. Segundo esclarece Rezende (2000), José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, diretor-geral da emissora na época, carregava a firme convicção de que o visual do cenário devia ser complementado com a criteriosa seleção dos locutores. Para o diretor Boni, além da correção, da boa voz, do timbre bonito, os telejornais da

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emissora se beneficiariam muito com a presença de apresentadores que fossem competentes e bonitos para atrair o público majoritariamente fe-minino das telenovelas. (REZENDE, 2000)

Nessa perspectiva, Rezende (2000) indica que o apresentador Cid Mo-reira não só cumpriu o papel da boa aparência, como também projetou para o telespectador uma aparente “neutralidade” e formalismo, transmi-tindo uma imagem de objetividade na abordagem dos fatos, indispensável à conquista da audiência.

Apesar da falta de isenção na divulgação dos fatos, o Jornal Nacional investia na composição de uma estrutura estética, que reforçava para o te-lespectador seu aparente compromisso com a imparcialidade da notícia. Foi nessa fase que o cenário revelou-se uma preocupação especial para os pro-dutores do veículo. No tempo que a TV Globo era chamada de “vênus plati-nada”, Luís Gleiser definiu assim essa relação:

É tudo cinza-azulado como nos tempos da TV branco-e-preto, do paletó e gravata ao cabelo e ao cenário. Este avatar de cores da emissora (platina e azul, cores frias e raras nos trópicos, onde por acaso fica o Brasil) parece tra-balho num bloco de gelo, e é executado, iluminado e mantido com a mais rigorosa exatidão. (GLEISER, 1983, p. 32)

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E assim manteve-se o JN durante a fase mais rígida da ditadura: res-paldado pela estrutura estética e pelo padrão de qualidade Globo. Desta forma, não é incomum encontrar entre os depoimentos dos fundadores da emissora questionamentos sobre as diversas pesquisas que abordaram a li-gação promíscua entre o telejornal e o governo militar. Walter Clark (1991) considerava inequívoca a relação traçada por inúmeros pesquisadores. Para Clark, o Jornal Nacional operava na faixa de informação fria, hard news, sem comentários e seguia uma linha estritamente informativa.

Durante o período mais rígido da ditadura, a justificativa dos profissio-nais do JN para a exclusão de temas relevantes à população pairava única e exclusivamente sobre a censura, conforme se verifica em depoimento de Ar-mando Nogueira (diretor de Jornalismo na época), no livro de homenagem aos 15 anos de história do veículo:

Nós queríamos saber se tudo ia funcionar do ponto de vista técnico, es-tritamente técnico [...], não estávamos preocupados em fazer, no “Jornal Nacional”, um belo jornalismo, porque isso não seria possível debaixo de uma censura que era exercida de uma forma rigorosa [...]. Nossa preocupa-ção em matéria de telejornalismo [...] não ia além da forma, do formato, da parte visual, porque sofríamos restrições ao exercício da plena liberdade de informação. (JORNAL NACIONAL, 15 anos de história)

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É sabido que o Jornal Nacional, assim como todo jornalismo no país, mantinha uma linha editorial submetida às restrições da censura, mas no caso do JN, ele também estava sedimentado em uma agenda política que guardava uma valência positiva ao regime. O Jornal Nacional ajudava a construir uma imagem de Brasil que ocultava, conforme esclarece Matellart (1997), uma taxa efêmera de crescimento elevado, baseada em um custo social de concentração dramática das rendas (em 1986, ¾ da população brasileira ganhava apenas o salário-mínimo, que não cobria senão 1/6 das necessidades de uma família).

Para Lins da Silva (1985), uma análise com espírito crítico era capaz de perceber algumas técnicas através das quais o Jornal Nacional passava à população brasileira uma imagem altamente positiva do regime e negativa das oposições. Conforme lembra Simões (2000, p. 83), “no Jornal nacional, a estratégia era transparente e implicava começar o bloco noticioso relatando algum sucesso isolado da Arena”.

Já em relação aos opositores, mesmo quando o regime começou a enfra-quecer e a Globo pode dar os passos para conquistar sua autonomia, a visão ainda era áspera. A transmissão da greve dos metalúrgicos do ABC paulista, em 1978, pelo noticiário simboliza claramente tal postura. Simões (2000) destaca que a cobertura foi fraca, desqualificando a importância do evento, e mostrando-se favorável ao patronato.

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A partir de 1979, com a abertura política do governo João Baptista de Oliveira Figueiredo, a censura para o telejornalismo foi aliviada e o JN pode dar seus primeiros passos rumo à autonomia. Apesar de leve, o tom oficialista do regime cedeu lugar a uma crítica suave, construída em torno dos problemas do país, a partir de uma estratégia que não agredia, e, tampouco, rompia com o regime. Assim, quando precisava abordar os assuntos críticos, o telejornal concentrava-se em problemas regionais. (LINS DA SILVA, 1985)

Conscientes da sua força, Lins da Silva (1985) informa que as críticas ao conteúdo transmitido pelo JN eram repassadas diariamente a Roberto Ma-rinho, pelo próprio presidente da República e pelos ministros de Estado. Tal afirmativa foi ratificada posteriormente pelo dono da emissora em entrevista concedida ao jornalista Alain Riding, do jornal The New York Times. Segun-do Marinho, era ele quem determinava e acompanhava de perto o que seria transmitido pelo noticiário, conforme informa:

Como único proprietário da Rede, o homem ao telefone, Roberto Mari-nho, assiste ao noticiário com especial atenção. Após os 30 minutos de transmissão, o Sr. Marinho, invariavelmente, telefona para a redação e faz comentários, sugestões e críticas. Nós fornecemos todas as informa-ções necessárias, mas nossas opiniões são de uma maneira ou de outra,

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dependentes do meu caráter, das minhas convicções e do meu patriotis-mo. Eu assumo a responsabilidade sobre todas as coisas que conduzo, disse Roberto Marinho.4

Por outro lado, não se pode ignorar que a fidelidade da emissora ao Es-tado deu-se também para cumprir um aspecto contratual. Vale lembrar que um dos aspectos mais relevantes da concessão pública é sua reversibilidade, processo mediante o qual o Estado é capaz de reaver o que foi concedido por instrumento contratual.

A partir de 1979, sob o comando do general Figueiredo, o Brasil deu con-tinuidade à abertura “lenta, gradual e segura”, que tivera início no governo do general Ernesto Geisel. Do ponto de vista econômico, o país enfrentava a crise do “milagre econômico”, marcada pela inflação incontrolável, pela queda das exportações e pelo alto endividamento externo. A instabilidade que se instalava no país, freava bruscamente o projeto de modernização e ocasionava um alto índice de impopularidade ao regime.

A ditadura definhava e o fim da censura para publicações e espetáculos, decretada em 1978, pelo governo Geisel, permitia uma maior autonomia aos meios de comunicação. A Rede Globo, naquele momento, desfrutava de uma posição quase monopolista, conquistada facilmente pela falência

4 GLOBO. Times destaca sucesso da TV Globo e direção de Roberto Marinho. Rio, l3jan. 1987. p.5.

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da então concorrente TV Tupi. Por outro lado, seus elevados investimentos e seu tão apreciado padrão de qualidade não permitiam que o ingresso de novas empresas de comunicação ameaçasse sua soberania.5

No que diz respeito ao telejornalismo, sobretudo o praticado pelo Jor-nal Nacional, já era possível verificar algumas transformações. Lins da Silva (1985) esclarece que o clima de maior liberdade, atrelado ao sentimento de oposição ao regime, fez com que o telejornal adotasse uma postura mais crítica e condizente com as mudanças sociais.

Ficava evidente que o noticiário investia apenas em críticas fragmentadas e centradas nos problemas regionais, com foco estritamente pontual, apre-sentando-as de forma totalmente desvinculada do governo. Qualquer notí-cia que tivesse aspecto favorável ao regime era transmitida com entusiasmo, cercada de entrevistas com ministros competentes e sem a presença crítica da oposição. Já as notícias adversas em relação ao governo, como o aumen-to de preços, eram apenas registradas rapidamente. (LINS DA SILVA, 1981)

Outro estudo realizado durante o período demonstra que o JN conti-nuava investindo em uma agenda positiva ao governo. Em uma análise de seis edições do noticiário, realizada por Rezende (1985), em janeiro de 1982, pode-se observar que o telejornal elevava o regime e concedia um espaço

5 Conforme informam Borelli e Priolli (2000, p. 69), em 1980, 75% da audiência nacional era cativa da progra-mação da Rede Globo.

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reduzido à oposição. Além disso, atesta o autor: “o telejornal privilegiava ni-tidamente as regiões ricas, tanto no noticiário nacional como internacional, refletindo toda a ordem econômica a que se submetia o Brasil nos planos internos e externos”. (REZENDE,1985, p. 153)

Também no plano da barganha política, atraída, provavelmente, por in-teresses econômicos e financeiros, a Globo atuava como forte aliada da di-tadura. O autor Venício Lima (2001), em seus estudos sobre a relação da mí-dia com o poder, retoma três episódios que manifestam aquilo que o autor conceituou como omissão, distorção e promoção de informação, proferida pela emissora no campo político, visando interferir no meio, não somente de forma ideológica, mas também fraudulenta.

O primeiro refere-se às eleições para governador do Rio de Janeiro em 1982. O episódio político teve como autor principal o então candidato ao governo do estado do Rio de Janeiro na época, Leonel Brizola. A candi-datura de Brizola, que havia regressado ao Brasil em 1979, logo após a conquista da anistia, não agradava a Globo e o governo militar. Do lado da ditadura, a preocupação circulava ao redor das influências subversivas do candidato, já que ele fora o político mais combativo ao regime. Já em relação à Rede Globo, a confusão girava em torno do apoio à candidatu-ra, previamente definida por Roberto Marinho, ao opositor de Brizola nas urnas, Wellington Moreira Franco (LIMA, 2001)

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Diante dessa conjuntura política, pode-se supostamente atribuir à emis-sora um papel relevante no esquema fraudulento, organizado, principal-mente para impedir a eleição de Brizola. Segundo esclarece Lima (2001), o esquema tinha por objetivo iniciar as apurações no interior do estado, onde o partido do governo tinha a maior intenção de voto, causando a ilusão de uma iminente derrota de Brizola.

Oferecendo subsídios ao esquema, a Rede Globo contava, na época, com a empresa Proconsult, organização encarregada de trabalhar na con-tagem dos votos da eleição carioca. Para apurar os resultados, a Procon-sult havia desenvolvido um software, sob o comando de um programador oficial da reserva do Exército, que era capaz de subtrair votos de Brizola e adicionar a Moreira Franco.

O papel da Rede Globo seria então o de divulgar apenas o resultado da apuração oficial, aquela concedida pela Proconsult, conferindo legitimidade aos dados fraudulentos. Entretanto, o plano esbarrou nas ações desenvolvi-das pelo Jornal do Brasil, em conjunto com emissoras de rádio AM e FM, que criaram um serviço próprio de apuração, a partir dos boletins emitidos pelo Supremo Tribunal Eleitoral. O ingresso de outras empresas de comunicação no processo de apuração resultou em dados totalmente diversos daqueles que eram mencionados pela Globo.

Alertado sobre a suposta fraude, o próprio Brizola passou a realizar

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um trabalho paralelo de apuração, a partir de sua residência, o que aju-dou a comprovar a trama. Apesar de a Rede Globo negar o episódio e tentar responsabilizar a Proconsult como única autora do incidente, o próprio depoimento de Marinho, ao jornal The New York Times,6 ajuda a esclarecer ainda mais a trama:

Em um determinado momento, me convenci de que o Sr. Leonel Brizola era um mau governador. Ele transformou a cidade maravilhosa que é o Rio de Janeiro em uma cidade de mendigos e vendedores ambulantes. Passei a considerar o Sr. Brizola daninho e perigoso e lutei contra ele. Realmente usei todas as possibilidades para derrotá-lo na eleição.

Outro episódio importante que demarcou a influência da emissora em prol do regime, relatado por Lima, refere-se às greves ocorridas em Paulí-nia e no ABC paulista em 1983. O fato possuía um teor inusitado. Segun-do esclarece Lima (2001), era a primeira vez na história do sindicalismo brasileiro que operários de um setor considerado de segurança máxima entravam de greve. A reivindicação dos trabalhadores da Refinaria de Paulínia, que durou cinco dias, exigia o fim da rotatividade e a garantia de estabilidade no emprego.

6 RIDING, Alan. “One man`s views color Brazil’s eye”. The New York Times, 12/01/1987 apud Herz, 1991, p. 108

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Para obscurecer o cenário, operários de outras refinarias da Petrobras e metalúrgicos do ABC (Santo André, São Bernardo e São Caetano) ade-riram à greve, solidarizando-se com os trabalhadores da Petrobras. A ex-plosão simultânea de greves levou a imprensa, inicialmente, à busca por uma cobertura maciça dos fatos. Entretanto, não tardou para que o regi-me agisse duramente, lacrando os transmissores da Rádio Bandeirantes de São Paulo, no dia 8 de julho.

Intimidadas com a atitude arbitrária e autoritária do governo, diversas emissoras de rádio e TV ignoraram a cobertura, com exceção da Rede Glo-bo, que mantinha suas reportagens no ar. Todavia, segundo esclarece Lima (apud RAMOS, 1983) apesar de continuar cobrindo a greve, a Globo transmi-tia em seus telejornais uma visão negativa dos grevistas, minimizando suas ações, enquanto privilegiava as posições de crítica à greve, realizada tanto pelos executivos da Paulínia, como por membros do governo.

Essa era a forma com que os jornalistas da emissora, comandados pela voz de Marinho, tratavam os movimentos sociais no Brasil. Um dos acontecimentos mais significativos e reveladores dessa conduta é a co-bertura das eleições diretas em 1984. Sobre esse período, é unânime a posição de diversos pesquisadores que denunciaram a posição oficialis-ta da emissora, omitindo e distorcendo fatos, com o intuito de manter o apoio aos militares.

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Apesar dos impactos econômicos e do enfraquecimento dos governos militares na América Latina, uma ala da ditadura ainda desejava manter-se no comando do país. Ao mesmo tempo, o Brasil se defrontava com uma pro-funda crise econômica, social e política, seguida do insucesso nas implanta-ções de medidas que amenizassem o efeito avassalador dos altos índices de inflação e do elevado custo de vida para a maior parte da população.

Aquele representava o momento ideal para incutir no povo o desejo de mudanças, que, segundo a oposição, se efetivaria com as eleições diretas para presidente. Lima (2006) lembra que foi a partir dessa realidade política e social, que os partidos de oposição se uniram e passaram a pressionar o congresso para aprovar a emenda constitucional, proposta pelo deputado Dante de Oliveira, que previa eleições diretas para presidente da República no ano de 1984. Os políticos que lideravam o movimento de eleições diretas faziam parte do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Os comunistas, por sua clandestinidade, abrigavam-se no PMDB.

Paralelamente ao desenvolvimento de forças antagônicas e contrárias ao regime, a campanha para a sucessão presidencial por eleição indireta con-servava-se inabalável. Cada candidato tentava conseguir uma base de apoio dentro do círculo governamental. De um lado, estava o deputado Paulo Ma-luf, que contava com o amparo do general Golbery do Couto e Silva e do

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senador Roberto Campos; e, de outro, o candidato Aureliano Chaves, que ti-nha como aliado o general Ernesto Geisel e batalhava pelo apoio do general João Batista Figueiredo.

A campanha para as diretas alcançava um amplo consenso nacional. O governo perseguia um processo de conciliação e propunha eleições dire-tas para 1988, data que era rejeitada pela resistência. A população, lide-rada pelos movimentos oposicionistas, aclamavam, em grandes comícios, eleições diretas imediatas.

A Rede Globo, por sua vez, via telejornal, ignorou a cobertura da campa-nha, não transmitindo os comícios e atos públicos, que se espalhavam rapi-damente por diversos estados brasileiros. Segundo e Lima (2001), o Jornal Nacional ocultou completamente o comício de Curitiba, um evento político que mobilizou aproximadamente 50 mil pessoas.

Já em relação ao maior ato público pelas diretas, realizado na Praça da Sé, em São Paulo, que reuniu aproximadamente 300 mil pessoas, houve uma atu-ação tendenciosa e oportunista da emissora. Aproveitando a data do even-to, 25 de janeiro, dia em que a cidade comemorava seu aniversário, o Jornal Nacional mostrou imagens do comício de forma distorcida, sem mencionar a comoção popular pelas eleições diretas para a Presidência da República. Por fim, a Rede Globo deixou de transmitir com veracidade o terceiro grande ato público, realizado em 24 de fevereiro de 1984, que levou mais de 300 mil pes-

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soas às ruas centrais da capital mineira. O Jornal Nacional do dia cobriu rapi-damente as imagens da multidão e dos oradores, seguida de voz em off, que não retratava a magnitude da manifestação popular. (LIMA, 2001).

Considerações finais

A televisão brasileira obteve, desde sua fase inicial, certa intimidade com o poder político. A Rede Globo de Televisão foi a que melhor soube aprovei-tar as oportunidades e despontou rapidamente como empresa oligopolis-ta do setor de comunicações. Constituída em 1965, com base em elevados investimentos do grupo norte-americano Time Life, tornou-se rapidamente líder de audiência no Brasil. Para conquistar a simpatia do regime militar, a emissora apostava em uma grade de programação oficialista, visível espe-cialmente nos seus telejornais.

O Jornal Nacional, mais antigo noticiário da emissora, foi acusado de funcionar como porta-voz dos militares, por meio da manutenção de uma estrutura noticiosa de teor amenizador, isenta de conteúdos político e críticos sobre o governo militar. Para despontar à frente da concorrên-cia, o Jornal Nacional incorporou em sua estrutura noticiosa uma série de recursos para reter o telespectador. Desde o seu surgimento, o noticiário

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incorporou uma estética de apresentação em que o cenário e os apre-sentadores buscam transmitir os preceitos do jornalismo “ideal”, como a imparcialidade e a objetividade.

E, assim, durante todo o período de ditadura militar, atuando na linha do entretenimento, o Jornal Nacional dedicava-se a exibir espécies raras de ba-leias, inauguração de usinas, crianças acenando (SIMOES, 2000), resultado de uma linha editorial destinada a compor um cenário edificante e tranquilizador para a nação. Apesar de o Brasil não ser um mar de tranquilidade, os proble-mas nacionais não ganhavam destaque na pauta do telejornal nacional.

Referências

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CLARK, Walter. O Campeão de audiência. São Paulo: Editora Best Seller, 1991.

GLEISER, Luís. Além da Notícia: O Jornal Nacional e a televisão brasileira. São Paulo: 1983. Dissertação de Mestrado. Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

HERZ, Daniel. A história secreta da Rede Globo. Porto Alegre: Editora Tchê, 1991.

JORNAL Nacional. 15 Anos de história. Rio de Janeiro: Gráfica Editora, 1984.

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LIMA, Venício A. de. Mídia: teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.

______. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.

LINS DA SILVA, Carlos Eduardo. Muito além do Jardim Botânico: um estudo sobre a audi-ência do Jornal Nacional da Globo entre trabalhadores. São Paulo: Summus, 1985.

MATTELART, Armand e Michèle. História das teorias da comunicação. Porto: Campo das Letras, 1997.

REZENDE, Guilherme Jorge de. O Tele-espetáculo da notícia - análise morfólogica e de conteúdo de uma semana (7 a 13 de janeiro de 1982) do Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão. São Paulo: 1985. Dissertação de Mestrado em Comunicação. Universidade de São Paulo.

______. Telejornalismo no Brasil. Um perfil editorial. São Paulo: Summus, 2000.

SIMÕES, Inimá. Nunca fui santa. Episódios de censura e autocensura. In: BUCCI, Eugê-nio. (Org.). A TV aos 50: criticando a televisão brasileira no seu cinquentenário. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.