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// Revista da Faculdade de Direito // edição 5 // número 6 // 2º semestre de 2018
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MIGUEL REALE, TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. E ALYSSON LEANDRO MASCARO: TRÊS ESTÁGIOS DA TEORIA SOBRE DIREITO,ESTADO E CONFLITOS SOCIAISCamilo Onoda Caldas1
1. Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). Di-retor do Instituto Luiz Gama, entidade que atua na defesa dos direitos huma-nos. Professor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu em São Paulo/SP e do Programa de Mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD).
Resumo: O presente artigo descreve três estágios distintos da teoria sobre Direito, Estado e conflito no Brasil con-
siderando três pensadores do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo:
Miguel Reale, Tercio Sampaio Ferraz Jr. e Alysson Leandro Mascaro. O objetivo é apresentar o contexto histórico
no qual cada um está inserido a fim de indicar como a teoria a respeito do Estado e do Direito desenvolvida por
eles encontra-se em cenários de conflitualidade social distintos, resultando em abordagens teóricas que revelam
preocupações e horizontes diferenciados.
Palavra-chave: Conflito; Teoria Geral do Direito e do Estado; Miguel Real; Tercio Sampaio Ferraz Jr.; Alysson
Mascaro.
Abstract: Abstract: This article describes three distinct stages of law, state and conflict theory in Brazil considering
three thinkers from the department of philosophy and general theory of law of the University of Sao Paulo: Miguel
Reale, Tercio Sampaio Ferraz Jr. and Alysson Leandro Mascaro. The objective is to present the historical context in
which each one is inserted showing how the theory about the State and Law developed by them is found in different
social conflict scenarios, resulting in theoretical approaches that reveal distinct concerns and horizons.
Keywords: Conflict; General Theory of Law and State; Miguel Real; Tercio Sampaio Ferraz Jr.; Alysson Mascaro.
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Nos diferentes estágios do desenvolvimento da
economia brasileira no século XX e XXI, podemos
observar transformações no campo da conflituali-
dade que se refletem não apenas em diferentes formas de
organização do Estado e do Direito, mas também em teorias
jurídico-políticas distintas, pois as reflexões teóricas não se
desvinculam do contexto histórico no qual estão inseridas.
Se considerarmos o capitalismo no Brasil ao longo do sécu-
lo XX e início do XXI, podemos destacar três momentos dis-
tintos em seu desenvolvimento (sem negar outros recortes
possíveis, evidentemente). O primeiro é consequência da
introdução da mão de obra assalariada no final do século
XIX, com destaque para as plantações de café no Oeste
Paulista, e do movimento de imigração do início do século
XX. O segundo abrange o processo de industrialização e
de integração do mercado nacional promovido por Getúlio
Vargas e vai até o final da ditadura militar, período no qual
o Estado se destacava por suas atuações nesses âmbitos.
O terceiro inclui a crise estrutural do capitalismo a partir
da década de 1980, com a ascensão do neoliberalismo, fi-
nanceirização da economia, desindustrialização do Brasil e
domínio do modelo de acumulação denominado de “pós-
-fordista” em nível global.
Em cada um destes contextos, parte dos conflitos existen-
tes se modifica substancialmente e isso impacta o campo da
teoria do Direito e do Estado (vide WOLKMER, 2014). A era
Vargas é momento no qual se evidencia o conflito entre os
interesses regionais e os nacionais, entre as oligarquias rurais
do eixo Minas-São Paulo e a burguesia urbano-industrial. As
concepções de Estado e, consequentemente de Direito, for-
jadas neste momento histórico, conforme veremos, consis-
tem justamente numa forma de resposta a esse problema.
Do mesmo modo, a formação de um (inacabado) Estado de
Bem-Estar Social no século XX e as sucessivas crises do ca-
pitalismo no século XXI constituirão cenários que permeiam
as teorias jurídicas e políticas destes períodos.
Reconhecemos, evidentemente, que cada momento da his-
tória e cada autor poderia ensejar um artigo individualizado
com maior profundidade, contudo, optar por uma exposição
individualizada mais exaustiva enfraqueceria um de nossos
propósitos neste artigo: privilegiar a descrição do movimento
das ideias, o que é feito a partir da apresentação dos as-
pectos centrais de três diferentes autores e seus respectivos
contextos históricos (como forma de compensação para a
opção aqui adotada, indicaremos em cada capítulo um con-
junto de referências que permitirão ao leitor se aprofundar
em cada autor e em cada momento histórico em particular).
Para descrever diferentes estágios da teoria do Direito e do
Estado no Brasil, adotaremos um recorte específico que in-
Introdução
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clui três pensadores, e igualmente docentes, oriundos do
departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Uni-
versidade de São Paulo (USP) e igualmente separados en-
tre si por pouco mais de três décadas: Miguel Reale, Tercio
Sampaio Ferraz Jr. e Alysson Leandro Mascaro. Sabemos
que a opção adotada exclui diversas outras teorias que po-
deriam ser consideradas e analisadas. Contudo, existem
razões que justificam o recorte adotado. Além da neces-
sidade de delimitação do objeto, este artigo é a exposição
de um primeiro resultado de uma pesquisa em curso, cujas
futuras publicações incluirão outros teóricos do Direito do
Brasil, bem como, irá se aprofundar no estudo dos pen-
sadores mencionados. Consideramos que nesse momento,
as teorias dos três autores mencionados serão suficientes
para o propósito deste artigo: descrever três estágios dis-
tintos da teoria sobre Direito, Estado e conflito no Brasil,
indicando que cada qual encontra-se inserido em diferen-
tes momentos da nossa realidade histórica, procurando
responder questões teóricas e práticas próprias de seus
respectivos tempos.
1. Miguel Reale: culturalismo jurídico, teoria tridimen-sional do Direito e o papel do Estado na formação da identidade nacional.
“[...] talvez pela primeira vez no Brasil, um imenso esforço
de síntese e superação, na direção de um sistema jusfilosó-
fico elaborado a partir de premissas universais, das quais
se extraem consequências próprias” – Tercio Sampaio Fer-
raz Jr. a respeito de Miguel Reale.
Miguel Reale, filho de imigrantes italianos, nasceu em 1910
e sua formação jurídica desenvolveu-se ao longo da déca-
da de 1930. Expoente do culturalismo jurídico, sua teoria
apresenta uma releitura da filosofia de Kant, Hegel e dialoga
com Nicolai Hartmann, Max Scheler e Husserl (Vide REALE,
354, et seq). Dentro da distinção estabelecida por Alysson
Mascaro – que delineia os três caminhos do pensamento
jurídico contemporâneo (MASCARO, 2016, p. 310) – Reale
é considerado um pensador do juspositivismo eclético. No-
tabilizou-se por sua Teoria Tridimensional do Direito – con-
cepção oriunda de pensadores europeus e norte-america-
nos (REALE, 1994, p. 23) – na qual o Direito é conceituado
nos seguintes termos:
Direito é a realização ordenada e garantida do bem comum
numa estrutura tridimensional bilateral atributiva, ou, de
uma forma analítica: Direito é a ordenação heterônoma,
coercível e bilateral atributiva das relações de convivência,
segundo uma integração normativa de fatos segundo valo-
res. Ultimamente, pondo em realce a idéia de justiça, temos
apresentado, em complemento às duas noções supra da
natureza lógico-descritiva, esta outra de caráter mais ético:
Direito é a concretização da idéia de justiça na pluridiver-
sidade de seu dever ser histórico, tendo a pessoa como
fonte de todos os valores. (REALE, 2002a, p. 67).
Nosso objetivo neste artigo não é destacar as mudanças
em seu pensamento no curso do tempo, nem simplesmente
apontar um substrato comum entre tais escritos. Tampou-
co pretendemos fazer um juízo de valor sobre suas posições
política ou destacar os (des)acertos de sua teoria sobre o
Direito e o Estado (sobre o tema, vide: ARAÚJO, 1988; CAR-
VALHO, 2011; COELHO, 2003, p. 285-298; MASCARO, p.
2016, 324-336). Nosso propósito é contextualizar a teoria de
Miguel Reale, apresentando-a como uma teoria que procura
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responder aos problemas políticos e econômicos, nacionais
e internacionais, colocados naquele momento da história.
A adesão de Miguel Reale aos movimentos integralistas é
pública e notória, sendo que até os últimos momentos de
sua vida, Reale procurou justificar suas posições, explicar
em que termos concordava com o integralismo e demonstrar
que não tinha simpatia com partidários do movimento que
se alinhavam com o ideário nazista e antissemita (Bertonha,
2013, p. 281). O ponto que queremos destacar é que essa
relação, do ponto de vista político e teórico, com o movimen-
to integralista, transparece nos escritos do filósofo brasileiro,
desde sua obra Estado Moderno (1934), passando por Filo-
sofia do Direito (1953), Teoria Tridimensional do Direito (1968)
até seu clássico Lições Preliminares do Direito (1973), ainda
que de maneira modificada ao longo do tempo.
Conforme dissemos, o nacionalismo é um elemento chave
do integralismo. A partir da década de 1920 no Brasil há
uma série de movimentos relevantes com objetivo de cons-
tituir a identidade nacional brasileira (no campo das artes, A
Semana de Arte Moderna de 1922 tornou-se o maior ícone
nesse sentido). O integralismo no Brasil, portanto, é um dos
movimentos políticos que se desenvolve com essa finalida-
de. Havia, naquele momento histórico, um acirramento de
conflitos sociais e políticos e o integralismo concebia que a
atuação do Estado deveria ocorre dentro de uma ambiva-
lência: de um lado, forjando o sentimento de nacionalidade
enquanto força moral e espiritual; de outro lado, encarnan-
do os valores contingentes e específicos herdados de um
determinado momento histórico (ABUD, 1998).
A república velha (1889-1930) foi período de reorganização
dos espaços de poder político e econômico existentes no
período do Brasil Império (1822-1889). O interregno entre
1930 e 1950, por sua vez, foi justamente o período no qual
se operou a transição para se estabelecer um verdadeiro
Estado nacional, sem, contudo, provocar uma ruptura ra-
dical com a hegemonia paulistana-mineira. O Estado Novo
de Getúlio Vargas se colocou como condutor desse pro-
cesso, feito para que “o sentimento de identidade nacio-
nal permitisse a omissão da divisão social, a direção das
massas pelas elites e a valorização da ‘democracia racial’,
que teria homogeneizado num povo branco a população
brasileira” (ABUD, 1998). Assim, não por acaso, dada suas
convergências, as diferenças entre varguistas e integralistas
puderam ser acomodadas entre si no decurso do tempo
(BERTONHA, 2013, p. 279).
Influenciado pelo contexto acima descrito, Miguel Reale vai
forjando sua Teoria Tridimensional do Direito e formulan-
do suas concepções de Estado. Para ele, Estado e Direito
estão vinculados a uma realidade fática e um conjunto de
valores que se manifestam historicamente. Assim, Reale re-
jeita a existência de um direito natural (ideia presente em
muitos pensadores liberais) e pode defender que o Direito e
o Estado se alinham com determinada experiência histórica
e, consequentemente, com valores específicos presentes
na cultura particular de uma nação. Wolkmer explica o de-
senvolvimento histórico este tipo de teoria no Brasil:
Concomitante com a crise socioeconômica que sacudiu a
estrutura capitalista da Velha República liberal-positivista
e com as contradições sociais decorrentes da emergên-
cia dos novos atores no âmbito da dominação política
burguesa oligárquica, sobressaíram novas teses como o
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culturalismo, a conciliação, o nacionalismo de esquerda e
o desenvolvimentismo. Essas tendências ideológicas ma-
terializadas em fins dos anos 30 (Revolução de 30, Estado
Novo, integralismo, nacionalismo conservador etc.) e ao
longo dos anos 40-50 (Segunda Grande Guerra, democra-
tização social do Brasil, populismo e desenvolvimentismo)
deixaram sulcos também na linearidade do pensamento
político-jurídico institucionalizado. Entende-se, assim, a
crise que atravessou o positivismo jurídico liberal (em suas
vertentes evolucionistas, naturalistas, sociológicas e cien-
tificistas) diante das críticas vigorosas e das renovadoras
propostas epistemológicas arguidas pelo ecletismo conci-
liador e pela retórica culturalista introduzidas na esfera da
teoria jurídica. O Culturalismo Jusfilosófico, que teve gran-
de impulso no Brasil após a Segunda Grande Guerra, ins-
pirando-se em Kant e considerando-se herdeiro de Tobias
Barreto, busca reorientar as diversas tradições filosóficas
nacionais rumo a uma interlocução centrada nos valores,
na pluralidade e no mundo da cultura. Sob a condução de
Miguel Reale e integrado por muitos pensadores, dentre
os quais Luiz Washington Vita, Renato Cirell Czerna, Djacir
Menezes, Paulo Mercadante, Nelson Saldanha e Antonio
Paim, a corrente culturalista fundou o Instituto Brasileiro de
Filosofia (IBF), que se projetou como “instituição devotada
a promover o diálogo entre as diversas correntes de filo-
sofia existentes no país”. [...] Provavelmente, a crítica mais
incisiva e mais séria à realidade de exaurimento e de derro-
cada do naturalismo jurídico-sociológico, enquanto estatu-
to epistemológico hegemônico, foi a tese de teor culturalis-
ta desenvolvida em Fundamentos do Direito, apresentada
por Miguel Reale, em 1940, no concurso para a cátedra de
Filosofia do Direito [...]. (WOLKMER, 2014, p. 357-358).
Reale, ao conceituar o que é o Estado, o define como “[...]
a organização da Nação em uma unidade de poder, a fim
de que a aplicação das sanções se verifique segundo uma
proporção objetiva e transpessoal. Para tal fim o Estado de-
tém o monopólio da coação no que se refere à distribuição
da justiça” (REALE, 2002a, p. 76). E também afirma que as
normas jurídicas devem “visar à realização de valores ou
fins essenciais ao homem e à coletividade” (REALE, 2002a,
p. 115). Com base em tais ideias, Reale afirma que o Esta-
do utiliza seu poder para garantir que as normas jurídicas
sejam respeitadas (impondo sanções aos eventuais trans-
gressores) e, ao mesmo tempo, encarna a realidade fático-
-axiológica existente. Noutras palavras, Reale afirma que as
normas jurídicas, garantidas e constituídas por um poder
coator, possuem correspondência com valores da socieda-
de, portanto, a cultura – enquanto produto histórico particu-
lar de uma nação – se expressa tanto no Estado quanto no
Direito enquanto fato, valor e norma (tridimensionalidade).
O culturalismo de Miguel Reale, portanto, expressa a ideia
de um Estado e de um Direito que correspondem à realida-
de fático-axiológica de uma nação e, ao mesmo tempo, se
apresenta como uma teoria de legitimação à submissão do
ordenamento jurídico e da autoridade estatal. Não quere-
mos problematizar aqui como Reale acredita que essa cor-
respondência entre valores sociais e normas jurídicas deve
ocorrer2. Queremos apenas destacar outro ponto: a teoria
de Reale expressa o momento de constituição da identida-
de nacional mediada pelo Estado responsável por positivar
as normas jurídicas.
Assim, a teoria culturalista de Miguel Reale encontra seu
sentido em um momento histórico no qual se pretende legi-
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timar a autoridade do Estado e do Direito por meio da ideia
de que os valores nacionais, historicamente constituídos,
ganham corpo e concretude por intermédio desta ordem
jurídica-estatal (logo, o Estado seria o ordenador social que
se contrapõe aos movimentos anarquistas e marxistas que
trazem ao mesmo tempo uma suposta “desordem” e valo-
res “estranhos” à cultura nacional)3. Tais ideias fazem Reale
concluir que “o Estado é, ao mesmo tempo e complemen-
tarmente, um meio e um fim” (REALE, 2002a, p. 107) em
relação à cultura/valores nacionais e que existe um proces-
so dialético de implicação e polaridade na constituição dos
fenômenos jurídicos, que implica “a solidariedade dinâmica
de vários elementos, segundo forças que tendem a preser-
var os bens já adquiridos, e outras que se projetam na liber-
dade constitutiva de novos bens” (REALE, 2002b, p. 362).
2. Tercio Sampaio Ferraz Jr.: modelo linguístico-prag-
mático, decidibilidade e o Estado de Bem-Estar Social
“Destacando-se por alguns anos do que lhe era
mais caro, Tercio deu exemplo de dedicação, à qual
se referiram com entusiasmo professores como
Von Rintelen e Theodoro Viehweg” – Miguel Reale.
Tercio Sampaio Ferraz Jr. nasceu em 1941 e sua formação
em Direito e Filosofia se desenvolveu ao longo da década
de 1960. Foi orientando de Miguel Reale e seu pensamento
sofreu influências de Theodor Viehweg e Niklas Luhmann,
com os quais teve contato em seu doutorado na Alemanha
(EDITOR, 1979). Sua doutrina sobre o direito encontra-se
permeada pela teoria da linguagem moderna, em especial
pela pragmática linguística. Na sua conhecida obra Teoria
da norma jurídica ele escreve:
c) finalmente, falamos, num terceiro sentido, do direito
enquanto linguagem, num relacionamento que assimila o
direito à linguagem; neste ultimo caso, estamos diante de
uma tese filosófica – tese da intranscendentalidade da lin-
guagem – que vai afirmar, de modo geral, que o jurista, em
todas as suas atividades (legislação, jurisdição, teorização)
não transcende jamais os limites da língua.
Assumimos, quanto à questão, uma posição intermédia.
Da terceira possibilidade (c), aceitamos limitadamente que
o fenômeno jurídico tem, basicamente, um sentido co-
municacional, que nos coloca sempre no nível da analise
linguística. Todo direito “tem por condição de existência
a de ser formulável numa linguagem, imposta pelo postu-
lado da alteridade”. Dizemos, entretanto, limitadamente,
porque recusamos a redução total do direito à linguagem,
mesmo tomando-se esta num sentido amplo de comuni-
cação. Nestes termos, preferimos dizer que o direito não
é só um fenômeno linguístico. Se ao nível normativo – o
direito como sistema de proposições normativas –, o as-
pecto linguístico pode ser encarado como fundamental,
não se pode esquecer que ele corresponde também a uma
série de fatos, empíricos, que não são linguagem, como
relações de força, conflitos de interesse, instituições admi-
nistrativas, etc., os quais, portanto, se não deixam de ter
uma dimensão linguística, nem por isso são basicamente
fenômenos linguísticos. Nossa opção pela possibilidade (c)
é, nestes termos, epistemológica e não ontológica, no sen-
tido de que, ao pretender-se o tratamento da norma como
linguagem, se o faz por necessidade operacional, sem fa-
zer-se, com isso, qualquer afirmação sobre a essência do
direito. (FERRAZ JR., 2006, p. 6-7).
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Mais adiante, em sua obra Introdução ao Estudo do Direi-
to: técnica, decisão e dominação, Tercio Sampaio apresen-
ta sua teoria sobre o Direito mantendo, no centro de suas
preocupações, a abordagem do fenômeno jurídico a partir
das contribuições oriundas da linguística moderna. Isso fica
evidenciado, por exemplo, no modo como o autor trata da
compreensão do conceito de “direito”, no qual ele destaca
que tal análise pode feita a partir das diversas vertentes lin-
guísticas existentes .
Em qual contexto histórico no qual Tercio Sampaio encon-
tra-se inserido nas décadas 1960-1970? Do ponto de vis-
ta político, existe no período uma forte repressão política
contra as correntes marxistas, seja na América Latina, seja
na Europa (na República Federal da Alemanha, por exem-
plo, o Partido Comunista da Alemanha (KPD) foi banido em
1956). Concomitantemente, neste período, será observado
o apogeu do Estado de Bem-Estar social na Europa (inclusi-
ve como resposta aos movimentos marxistas), preocupado
em organizar a economia capitalista a partir de maior inter-
venção no campo econômico e do incremento dos direitos
sociais (vide WOLKMER, 2014). No Brasil, o movimento de
construção desse modelo culminará na Constituição Fede-
ral de 1988, cujo caráter social superou em muito todas as
constituições anteriormente criadas no país. Assim, um dos
debates centrais neste período é o papel do Estado no pro-
cesso de reprodução do modo de produção capitalista, um
fenômeno que não escapa da análise de Tercio Sampaio
Ferraz Jr.:
O Estado serve ao desenvolvimento do capitalismo e à
acumulação contínua e eficiente da riqueza.
Essa nova forma de soberania exige do Estado uma ca-
pacidade gestora dos bens comuns, em consequência, a
ideia de cálculo, de arte econômica (economia política).
Como nos mostra Foucault (1982:188), o crescimento po-
pulacional exigiu uma espécie de quantificação raciona-
lizada da produção e do consumo social (estatística). As
populações passam a ser, simultaneamente, o sujeito das
necessidades, das aspirações, e o objeto nas mãos do go-
verno. Assim, a soberania, antes uma relação externa entre
o senhor e o súdito, toma agora a forma de um exercício
interno de comando e de organização. Ela burocratiza-se.
Multiplicam-se as agências estatais. O direito de sobera-
nia transforma-se também num direito de sistematização
centralizada das normas de exercício do poder de gestão.
(FERRAZ JR., 2018, p. 142).
A concepção de Estado de Bem-Estar social aponta para
uma atividade estatal muito mais ampla do que aquelas
desenhadas pelos autores liberais. O Estado não é mero
defensor da legalidade e das liberdades individuais (pres-
supostos necessários para reprodução do capitalismo). O
Estado assume outras funções no campo social e econômi-
co, atuando em diversos domínios e, ao mesmo tempo, tor-
nando-se elemento indispensável para o desenvolvimento e
a expansão do capitalismo em nível global (CALDAS, 2018,
p. 82 et seq). O Estado assume uma feição de gestor eco-
nômico-social e não meramente de repressor de condutas
contrárias à lei. Tercio Sampaio destaca que isso impacta
a própria função legiferante do Estado – exigindo dele uma
maior produção de normas jurídicas – trazendo consequên-
cias para a teoria das fontes do Direito . Conforme explica
Gilberto Bercovici:
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Com o advento do Estado Social, governar passou a não
ser mais a gerência de fatos conjunturais, mas também, e
sobretudo, o planejamento do futuro, com o estabelecimen-
to de políticas a médio e longo prazo. Com o Estado social,
o government by policies vai além do mero government by
law do liberalismo. A execução de políticas públicas, tarefa
primordial do Estado social, com a consequente exigência
de racionalização técnica para a consecução dessas mes-
mas políticas, acaba por se revelar muitas vezes incompa-
tível com as instituições clássicas do Estado Liberal.
Com as novas tarefas do Estado, o livre desenvolvimento
da personalidade é fundado nas próprias prestações esta-
tais. Ou seja, confia-se à instância estatal totalizante o po-
der de decidir, em nome de todos, o que é o bem de cada
um, por meio dos direitos sociais [...]
O Estado Social fundamenta e consolida a unidade política
materialmente, tornando–se o locus da luta de classes. Sua
função, geralmente, é de mediador, tentando buscar a inte-
gração social com base em um mínimo de valores comuns.
Não há, portanto, o desaparecimento da luta de classes,
mas a criação de meios que garantam que ela não irá, ne-
cessariamente, se degenerar em um confronto aberto.
A ampliação dos direitos políticos e o conteúdo material
dos direitos sociais tornou o pós Segunda Guerra Mundial
o período em que a emancipação e a reivindicação da de-
mocracia econômica e social chegaram ao seu momento
mais elevado.
No centro do sistema econômico mundial, o direito econô-
mico substituiu, de certo modo, o direito privado e a lógi-
ca da codificação como instrumento jurídico garantidor da
estabilidade do sistema. (BERCOVICI, 2013, p. 136-137).
Assim, o Estado de Bem-Estar Social aumenta a atuação
das três funções do Estado: legislar, julgar e exercer a ad-
ministração pública. Há o aumento da quantidade de textos
normativos (as demandas sociais são positivadas na forma
de leis e outras espécies normativas), consequentemente, o
Poder Executivo precisa adquirir uma nova postura diante
dessa normatividade (dando às leis maior ou menor eficá-
cia a depender do contexto), bem como o Poder Judiciário
passa a ser demandado para dar eficácia às normas positi-
vadas, sanando eventual inércia do legislador (e.g. não re-
gulamentando determinada norma já existente) e do Execu-
tivo (e.g. não implementando política pública determinada
pela lei), bem como circunscrevendo quais são os limites e
o alcance das normas jurídicas positivadas (e.g. decidindo
em relação às políticas públicas, direitos sociais e poder de
intervenção do Estado na economia etc). Portanto, nesse
contexto, diante das possiblidade abertas pela presença e
pela ausência do texto normativo, a decidibilidade é apre-
sentada por Tercio Sampaio como um conceito essencial
para se compreender o Direito:
O direito continua resultando de uma série de fatores cau-
sais muito mais importantes que a decisão, como valores
socialmente prevalentes, interesses de fato dominantes,
injunções econômicas, políticas etc. Ele não nasce da pena
do legislador. Contudo, a decisão do legislador, que não o
produz, tem a função importante de escolher uma possi-
bilidade de regulamentação do comportamento em detri-
mento de outras que, apesar disso, não desaparecem do
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horizonte de experiência jurídica, mas ficam aí, presentes e
à disposição, toda vez que uma mudança se faça oportuna.
Ora, essa situação modifica o status científico da Ciência
do Direito, que deixa de se preocupar com a determina-
ção daquilo que materialmente sempre foi direito com o fito
de descrever aquilo que, então, pode ser direito (relação
causal), para ocupar-se com a oportunidade de certas de-
cisões, tendo em vista aquilo que deve ser direito (relação
de imputação). Nesse sentido, seu problema não é propria-
mente uma questão de verdade, mas de decidibilidade.
[...] os enunciados da ciência jurídica têm sua validade
dependente de sua relevância prática. Embora não seja
possível deduzir deles as regras de decisões, é sempre
possível encará-los como instrumentos mais ou menos
utilizáveis para a obtenção de uma decisão. Assim, por
exemplo, Mário Masagão, em seu Curso de Direito Admi-
nistrativo (1977:108), após examinar, entre outras, uma teo-
ria sobre a função executiva do Estado, refuta-a, afirmando
que sua fórmula, segundo a qual essa função é desempe-
nhada quando o Estado “cria situações de direito subjetivo,
obrigando-se a si mesmo, ou aos indivíduos, ao cumpri-
mento de certa prestação’’, é manifestamente “estreita e in-
suficiente para caracterizar o Poder Executivo, que não se
limita a criar situações jurídicas de caráter subjetivo, mas
por meios diretos e indiretos promove a manutenção da
ordem e o fomento da cultura e da prosperidade do país’’.
A questão “como entender a função executiva do Estado
em relação à função legislativa e judiciária?’’ tem como
cerne dubitativo não diretamente a ocorrência histórico--
-social do fenômeno do Estado, mas uma concepção de
Estado que deve fomentar o bem-estar e a prosperidade
geral. A questão é tipicamente de decidibilidade. (FERRAZ
JR., 2018, p. 62-63).
O Brasil pós Constituição Federal de 1988 irá vivenciar exata-
mente essa experiência. O Poder Executivo e o Poder Judiciá-
rio, diante do texto normativo positivado, passaram a moldar,
por meio de seu poder concreto e de suas decisões políticas
(muitas vezes travestidas de decisões “técnicas”), o alcance
e os limites das normas constitucionais e infraconstitucionais.
O Legislativo, por sua vez, passou a agir no mesmo sentido,
emendando a constituição ou regulamentando as diretrizes
constitucionais por meio de leis complementares e outras
espécies normativas. Conforme assevera Gilberto Bercovici,
parte substancial deste movimento teve por finalidade “blo-
quear a realização do programa emancipatório e transforma-
dor presente no texto, de 1988, privilegiando a realização de
políticas ortodoxas de ajuste fiscal e a inclusão, pela via da
reforma constitucional, de dispositivos que servem para ‘blin-
dar’ a sua opção política, contrária às decisões fundamentais
originais da constituinte” (BERCOVIC, 2007, p. 463).
3. Alysson Leandro Mascaro: materialismo histórico, de-
rivação e os impactos das crises capitalistas no Estado.
“Simplesmente a obra mais importante do pensa-
mento político marxista nas últimas décadas” – Sla-
voj Žižek na quarta capa da obra Estado e Forma
Política de Mascaro.
A teoria do Direito de Alysson Mascaro, jurista nascido em
1976, surge no século XXI assentada sobre as premissas do
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materialismo histórico de Karl Marx. Se adotarmos a clas-
sificação de Ingo Elbe (2010, p. 29), podemos considerá-la
como integrante da nova leitura do marxismo, uma terceira
“etapa” do pensamento marxista iniciada a partir de 1965,
que agrupa determinadas correntes de pensamento (althus-
serianos, derivacionistas, críticos do valor etc) a partir de cri-
térios metodológicos e não simplesmente cronológicos. No
campo do Direito, Mascaro tem como principal referência a
teoria jurídica de Evguiéni Pachukanis (CALDAS, 2017), juris-
ta soviético que ganhou notoriedade por apresentar a formu-
lação marxista mais profícua a respeito da relação entre eco-
nomia e Direito (NAVES, 2010). A teoria pachukaniana trata
de mostrar a correlação intrínseca entre forma mercadoria
(nos termos definidos por Marx) e a constituição do Estado
de Direito (PACHUKANIS, 2017, p. 139 et seq). Assim, par-
tindo dessa premissa, Mascaro apresenta uma teoria sobre o
Estado e o Direito, explicando a derivação6 da forma política
e da forma jurídica a partir da forma mercadoria:
A forma jurídica é uma forma de sujeitos de direito atomi-
zados que se submetem ao poder estatal e transacionam
conforme mercadorias. A estrutura do capitalismo mercan-
til enseja as formas do direito, que então passam a pos-
sibilitar as próprias relações do capital. As normas e as
atitudes específicas dos juristas, muitas delas podem até
mesmo ir contra o capitalismo. A forma do direito não. Para
as atividades mercantis, a estrutura jurídica lhe é um dado
necessário e imediatamente correlato. Tal estrutura jurídica
– técnica, normativa, fria e impessoal, apoiada em catego-
rias como o sujeito de direito, o direito subjetivo e o dever –,
que vem a ser o fenômeno jurídico tal como o conhecemos
modernamente, nasceu apenas com o capitalismo, como
sua forma correlata necessária. (MASCARO, 2015, p. 06).
O fim da União Soviética e dos países que em seu redor,
levando a um refluxo global do marxismo, é uma contin-
gência histórica que não impacta o surgimento da teoria
mascariana do Direito. Pachukanis, aliás, sequer teve sua
teoria absorvida pela doutrina jurídica soviética oficial (pelo
contrário, suas ideias se contrapunham ao pensamento so-
viético-stalinista e esse confronto lhe custou a vida - CAL-
DAS, 2017). O elemento histórico central no qual a teoria de
Alysson Mascaro é outro: a crise do capitalismo no século
XXI, que tem por consequência outras subcrises e movi-
mentos reativos: crise do fordismo e ascensão do pós-for-
dismo; crise do Estado de Bem-Estar Social e ascensão do
neoliberalismo; crise dos regimes democráticos e ascensão
do pensamento neoconservador.
A crise estrutural do capitalismo após a década de 1980 ini-
ciou um novo regime de acumulação denominado de pós-
-fordista, no qual as tradicionais formas de organização do
trabalho e da economia existentes no fordismo passaram
a se modificar (sobre o tema, vide: HIRSCH, 2010, p. 33
et seq; BAUMAN, 2016; CLARKE, 1991). As consequências
no campo jurídico-político, inclusive, são visíveis e atuais:
diminuição de direitos trabalhistas e previdenciários, pre-
carização do trabalho, cortes de orçamento na área social,
privatização de empresas estatais, permanente limitação
dos gastos públicos, etc.
Esse cenário se combina (e ajuda a provocar) à crise política.
Os Estados encontram-se cada vez mais impotentes em re-
lação aos ditames das grandes corporações e do mercado
financeiro. Os indivíduos vivenciam ambiente de crescente
competitividade econômica que traz como consequência
o aumento da opressão no mundo do trabalho. Ao mesmo
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tempo, o trabalhador encontra-se cada vez menos provido
das garantias jurídicas tradicionais e vivencia um permanente
sentimento de desesperança para com o futuro (as perspec-
tivas de empregabilidade estável e aposentadoria se mos-
tram cada vez menos promissoras). Enquanto cidadão, tal
indivíduo vivencia dois sentimentos igualmente negativos:
(i) perde a convicção de que o voto e as eleições (e con-
sequentemente os representantes políticos) podem conduzir
o Estado a adotar políticas que mudem significativamente
as condições econômicas e os horizontes desalentadores;
(ii) culpa a suposta presença excessiva do Estado na eco-
nomia como responsável pelos problemas existentes, mas
não encontra ao redor do mundo, experiências socialmente
exitosas nas iniciativas neoliberais, pelo contrário, se depara
com o oposto (CALDAS, 2018, p. 27-28).
Nesse contexto, a teoria do Direito de Mascaro tem sua
trajetória permeada por duas grandes questões do século
XXI: (i) explicar como Estado e Direito estão estruturalmen-
te vinculados à reprodução do capitalismo e, portanto, são
incapazes de superar as contradições e consequências de-
letérias inerentes a este modo de produção; (ii) demonstrar
que o capitalismo é crise (sua ocorrência não é acidental, é
inevitável e agravada no curso do tempo) e que o Estado e
o Direito se reformulam como elementos de resposta à essa
dinâmica, criando mecanismos distintos para lidar com os
fenômenos emergentes (HIRSCH, 2010, p. 45 et seq). Tais
ideias, presentes nas obras de Mascaro, são apresentadas
de forma mais bem acabada em Estado e Forma Política, no
qual o autor argumenta:
Se os regimes de acumulação seguem uma tendência ao
seu constrangimento econômico, os modos de regulação
se assentam sobre uma multiplicidade de interesses, forças
e relações sociais. As crises no capitalismo podem se re-
velar tanto na dinâmica econômica – crise de acumulação
– quanto na consecução institucional da sociedade – crise
de regulação. Pelo acoplamento imperfeito entre economia
e politica, as crises parciais procedem a abalos que são rea-
bsorvidos posteriormente, ensejando novos níveis de arti-
culação sociais. Por sua vez, crises estruturais são aquelas
que comprometem a própria reprodução econômica geral
do capitalismo. Elas não só envolvem descontinuidades no
regime de acumulação e insuficiências nos modos de regu-
lação, mas também contradições profundas entre acumu-
lação e regulação, de tal sorte que não haja dinâmica eco-
nômica que carreie transformações politicas, institucionais e
sociais tampouco peso estatal e social suficiente para alterar
o modelo econômico. (MASCARO, 2013, p. 126).
Assim, a teoria mascariana do Direito se insere no contexto
da crise de legitimidade do Estado, provocada pela des-
crença nas instituições estatais, fenômeno que se manifes-
ta no nível político (questiona-se a possibilidade da vonta-
de popular ser respeitada) e no econômico (questiona-se
a capacidade do Estado enfrentar as crises sistêmicas do
modo de produção capitalista). Nesse contexto, inclusive,
é que surge a resposta neoconservadora ao fenômeno da
crise de legitimidade do Estado e da impotência de suas
instituições: apreço pelo autoritarismo, proliferação do dis-
curso de ódio, defesa da relativização dos direitos huma-
nos, diminuição da intervenção do Estado na economia
etc. Mascaro, se opondo ao pensamento neoconservador,
procura mostrar que o “fracasso” do Estado – em termos
político-econômicos – não são produto de uma falência
ética ou da incompetência administrativa dos governantes,
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D
Notas
1. Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). Diretor do Instituto Luiz Gama, entidade que atua na defesa dos direitos humanos. Professor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu em São Paulo/SP e do Programa de Mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD).
2. “Bonfim (1995; 2001) indica, aliás, um ponto extremamente interessante. Para ele, Reale se aproximaria das crenças de outros autoritários – brasileiros e internacionais – para os quais o sistema liberal poderia até funcionar, desde que houvesse cidadãos habilitados para tanto. Num primeiro momento, a real participação no poder deveria se dar apenas para as elites, representadas nas corporações e no topo do poder. Com o tempo, contudo, se as condições educacionais e de esclarecimento das massas melhorassem, talvez fosse possível a elas sair da participação limitada nos municípios, exercendo plena-mente a sua cidadania dentro do Estado. Uma proposta próxima à de vários dos autoritários do Estado Novo, como Oliveira Vianna, e que, talvez, possa ter facilitado muito a transição de Reale de um grupo para outro”. (Bertonha, 2013, p. 281).
3. O Estado é “um meio na medida em que sua estrutura e sua força originam-se historicamente, através de mil vicissitudes, para possibilitar aos indivíduos uma vida condigna no seio de uma comunidade fundada nos valores da paz e do desenvolvimento. Por outro lado, o Estado se põe como fim, enquanto representa, e tão-somente enquanto representa, concomitantemente, uma ordem jurídica e uma ordem econômica, cujos valores devem ser respeitados por todos como condição de coexistência social harmônica, onde os direitos de cada um pressupõem iguais direitos dos demais, assegurando-se cada vez mais a plena realização desse ideal ético” (REALE, 2002a, p. 80).
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4. “Uma posição convencionalista exige ademais que se considerem os diferentes ângulos de uma análise linguística. Quando definimos o conceito de direito é, pois, importante saber se estamos preocupados em saber se se trata de um substantivo ou de um adjetivo, ou de um advérbio, tendo em vista seu relacionamento formal (gramatical) numa proposição. Ou se estamos preocupados em saber aquilo que queremos comunicar com seu uso, ou seja, se que-remos saber se direito se refere a um conjunto de normas ou a uma faculdade ou a uma forma de controle social. Ou ainda se nos preocupa a repercussão desse uso para aqueles que se valem da expressão quando, por exemplo, alguém proclama: “o direito é uma realidade imperecível!” No primeiro caso, a análise é sintática, isto é, estamos preocupados em definir o uso do termo tendo em vista a relação formal dele com outros vocábulos (por exemplo, direito é uma palavra que qualifica (adjetivo) um substantivo, digamos o comportamento humano, ou direito modifica um modo de agir – agir direito: advérbio). No segundo caso, a análise é semântica, isto é, queremos definir o uso do termo tendo em vista a relação entre ele e o objeto que comunica (por exemplo: direito designa um comportamento interativo ao qual se prescreve uma norma). No terceiro, definimos o uso do termo tendo em vista a relação do termo por quem e para quem o usa e, nesse caso, a análise é pragmática (por exemplo: a palavra direito serve para provocar atitudes de respeito, temor)”. (FERRAZ JR., 2018, p. 16).
5. “Na verdade, o advento e o crescimento do Estado-gestor tornou muito mais complexa a legislação como fonte do direito. Se no início ela pôde-se restrin-gir à produção de leis, hoje abarca um rol enorme de atos, como resoluções, regimentos, instruções normativas, circulares, ordens de serviço etc. que, em tese (liberal), deveriam estar subordinados às leis enquanto expressão da vontade do povo, mas que, na prática, implodem a chamada estrutura hierárquica das fontes. O que observamos, na verdade, é que a chamada hierarquia das fontes, não obstante ocultar uma relação de poder e de exercício de poder, num âmbito circunscrito, tecnicamente é um instrumento importante para o mapeamento formal das competências estatais. O ponto de partida é a Constituição, que, por pressuposto analítico, determina todas as competências normativas do Estado”. (FERRAZ JR., 2018, p. 192).
6. Sobre a teoria e conceito de derivação vide CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do Estado e do Direito. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitário. 2015.
7. Um estudo dentro dessa linha de pensamento aplicado à um tema específico pode ser observado em: ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
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