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IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA Isabel Vaz Ponce de Leão O essencial sobre MIGUEL TORGA

MIGUEL TORGA - Imprensa Nacional-Casa da MoedaContos da Montanha, Poemas Ibéricos… É por esta al-tura que publica O Quarto Dia d’A Criação do Mundo, onde verte amargas reflexões

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IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

Isabel Vaz Ponce de Leão

O essencial sobre

MIGUEL TORGA

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É em S. Martinho de Anta, no distrito de Vila Real,que nasce, a 12 de Agosto de 1907, Adolfo CorreiaRocha. Esta pequena vila transmontana, a que regressasempre que a necessidade de retemperar forças se fazsentir, permanecerá o seu axis mundi, corroborando-oas incessantes referências, ao longo da sua obra, àquelaterra que «não é um lugar onde, mas um lugar deonde…».

Os pais, camponeses pobres, marcaram-no decisi-vamente, sendo multímodas as referências que lhes fazn’A Criação do Mundo e no Diário. No pai, FranciscoCorreia Rocha, admira a tenacidade, a grandeza de ca-rácter, o sentido de justiça e aquele amor à terra que ésua marca distintiva. Com a mãe, Maria da ConceiçãoBarros, mantém uma relação de afecto e cumplicidade,documentada nas obras supracitadas e, muito particular-mente, num poema que lhe dedica aquando da suamorte, em 1948, inserto no Diário IV.

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Dos dois irmãos que teve, José emigrou para o Bra-sil, onde ficou; já Maria se converteu numa espécie dematriarca, assumindo, na aldeia natal, a liderança da casade lavoura, depois da morte dos pais. Com ela manteveo poeta uma relação de estreita cumplicidade, porven-tura porque «tudo nela era, […] ligação à terra, às tra-dições, às origens».

Depois de fazer a instrução primária na escola deS. Martinho de Anta, vai para o Porto, durante um ano,como criado de servir, tendo, depois, o mesmo destinode todas as crianças menos abonadas da região — oSeminário de Lamego. Aí ingressa, em 1918, ficandoapenas um ano. Resulta dessa estada um profundo co-nhecimento dos textos bíblicos que os títulos das suasobras A Criação do Mundo ou O Outro Livro de Job,entre outros, denunciam.

Mas a falta de vocação sacerdotal era manifesta. É as-sim que, aos 13 anos, em 1920, parte para o Brasil, ondetrabalha durante cinco anos na fazenda do tio, no estadode Minas Gerais. Este, que ganhou a vida com grandetenacidade e não menor abnegação, também não opoupa a sacrifícios e, desde capinar café até laçar cobrasvenenosas ou fazer a escrita da fazenda, tudo decorre aseu cargo.

Esta estada no Brasil proporciona-lhe experiências devida merecedoras de sistemáticas alusões ao longo da

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obra. Aí frequenta, em 1924, o Ginásio Leopoldinense e,em 1925, regressa a Portugal, onde vai continuar os es-tudos, pagos pelo tio como recompensa dos cinco anosde trabalho na Fazenda de Santa Cruz.

Conclui o curso dos liceus em três anos e matricula--se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coim-bra, que frequenta entre 1928 e 1933, habitando umarepública de estudantes — Estrela do Norte —, ondedesenvolveu amizades que se perpetuaram.

Em 1928 publica a sua primeira obra em verso, An-siedade, que acaba por retirar do mercado e, entre 1929e 1930, é chamado a colaborar na revista presença, di-rigida por José Régio, João Gaspar Simões e Branqui-nho da Fonseca. A passagem por esta revista, ainda quebreve, foi determinante na sua formação literária, propi-ciando-lhe o contacto com a obra de escritores estran-geiros e despertando-lhe o fascínio pela 7.a Arte, se bemque a sua independência e o seu antiacademismo o fi-zessem rapidamente dela dissidir.

Lança-se, então, com Branquinho da Fonseca, naaventura efémera da revista Sinal (um número único),de marcadas influências presencistas, e recomeça a suapublicação individual: Rampa (1930), ainda sob a chan-cela da «Presença» e, em edições de autor, Pão Ázimo(1931), Tributo (1931) e Abismo (1932).

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Terminado o curso de Medicina, Adolfo Rocha re-gressa a S. Martinho e exerce, depois, como clínico ge-ral, em Vila Nova de Miranda do Corvo.

Em 1934 publica, já com o pseudónimo MiguelTorga, A Terceira Voz. Miguel, como Cervantes e Una-muno, duas referências da cultura ibérica; Torga, comoa urze resistente da sua terra transmontana.

O Outro Livro de Job vê a luz em 1936, ano em que,juntamente com Albano Nogueira, funda a revista Ma-nifesto, onde colaboram, entre outros, Vitorino Nemé-sio, António Madeira, Joaquim Namorado e FernandoLopes Graça, e que se afasta já do esteticismo indivi-dualista da presença, apontando para uma reflexão sobreo papel dos intelectuais e artistas na sociedade. A pu-blicação termina por problemas com a Censura, sendoo seu último número (o quinto) constituído apenas portextos de Miguel Torga.

Entretanto, em 1937, saem O Primeiro Dia e O Se-gundo Dia d’A Criação do Mundo e, em 1938, O Ter-ceiro Dia.

Termina, em Coimbra, a especialidade em otorrino-laringologia e começa as suas viagens — por enquantosó pela Europa —, que nunca mais deixaria de fazer,como se estas fossem mais do que um complemento nasua formação de homem e poeta observador da realidade.

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Corre o ano de 1939, e fixa residência em Leiria,onde exerce a sua profissão. Não perde, todavia, o con-tacto com Coimbra, onde se desloca todos os fins-de--semana. Assim, colabora na Revista de Portugal, diri-gida pelo seu amigo Vitorino Nemésio, em casa de quemconhece a belga Andrée Crabbé, uma ex-aluna do poetaaçoriano que se encontrava a frequentar o curso de fé-rias na Universidade de Coimbra, mais tarde, sua mulher.

É o tempo da Guerra Civil de Espanha e o poeta vive--o amargamente; nela se jogavam ideais geracionais porele também acalentados; por isso são recorrentes as refe-rências a este triste episódio da humanidade em várias dassuas publicações — A Criação do Mundo, Diário, NovosContos da Montanha, Poemas Ibéricos… É por esta al-tura que publica O Quarto Dia d’A Criação do Mundo,onde verte amargas reflexões sobre essa guerra fratricida.O livro é apreendido e Miguel Torga preso no Aljube.A sua detenção é acompanhada pela solidariedade dosseus amigos leirienses. Aí compõe, em 1940, «Ariane»,o seu poema mais belo de intervenção e resistência:

Ariane é um navio.Tem mastros, velas, e bandeira à proa;E chegou num dia branco, frio,A este rio Tejo de Lisboa.

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Carregado de sonhos, fundeouAli onde os meus olhos vãoAgora vê-lo — o cisne que chegou,Ali onde pedia o coração.Duas fragatas foram ver quem eraUm tal milagre assim; era um navioQue se balança ali à minha esperaEntre gaivotas que se dão no rio.Mas eu é que não pude ainda por meus passosSair desta prisão em corpo inteiroE levantar a amarra e cair nos braçosDe Ariane, o veleiro.

Posto em liberdade nesse mesmo ano, casa comAndrée Crabbé, publica os contos Bichos e fixa resi-dência em Coimbra, numa modesta casa sita à Estradada Beira, onde são frequentes as tertúlias com inte-lectuais como Eugénio de Andrade, Ruben A. e Ribei-ro Couto. As suas impressões desta cidade, com a qualsempre foi exigente, encontram-se plasmadas ao longode toda a obra e, particularmente, no volume Portu-gal (1950).

Aberto consultório no Largo da Portagem, 45, hojesede de um banco, aí exerce a sua profissão — não sóde otorrinolaringologista, mas, conforme as necessida-

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des, de pediatra, ortopedista, psiquiatra… —, escreve erecebe amigos e intelectuais durante mais de cinquentaanos. Frio e austero, o seu local de trabalho possui umajanela com vista sobre a cidade e o Mondego, numacomunhão com o mundo. A ele se dirige, quotidiana-mente, utilizando os transportes colectivos, não semantes aproveitar para entrar nas principais livrarias daBaixa. Não contrariando os hábitos geracionais, detém--se pelos cafés em tertúlias com amigos — primeiro naCentral e, posteriormente, no Arcádia.

Um dos anos mais férteis da sua produção literária é1941. Publica Diário I, o volume de teatro Terra Fir-me, Mar e a colectânea de contos Montanha. Desta,apreendida pela Censura, é feita uma edição em 1955no Rio de Janeiro com o nome Contos da Montanha,que cautamente circula em Portugal. Neste mesmo anoprofere, no Segundo Congresso Transmontano, a con-ferência «Um Reino Maravilhoso», posteriormente in-serta em Portugal.

Continua a publicar, sempre em edições de autor, deaspecto austero e frio, por razões económicas mais dosleitores do que propriamente suas, seguindo-se Rua(1942), Lamentação, Diário II e O Senhor Ventura(1943), Libertação e Novos Contos da Montanha (1944),Vindima (1945), Odes e Diário III (1946).

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Em 1947, vê a sua mulher, por ordem de OliveiraSalazar, ser demitida de professora da Faculdade deLetras da Universidade de Lisboa e publica o poemadramático Sinfonia. O ano seguinte é o da morte de suamãe, dando disso conta num belo poema do Diário.Envolve-se no projecto, abortado pela Censura, do lan-çamento da revista Rebate. Publica Nihil Sibi (1948), apeça de teatro O Paraíso e o Diário IV (1949) e Cân-tico do Homem (1950), que, juntamente com OrfeuRebelde (1958), detém os poemas de maior intervençãoe resistência.

A paixão pela caça e pelas viagens, muito especial-mente em Portugal, de que o livro homónimo dá conta,as idas anuais às termas do Gerês, as peregrinações cí-clicas a S. Martinho de Anta são gostos simples destehomem que vive a vida com igual simplicidade. Toda-via, não descura as viagens além-fronteiras e, em 1950,faz um périplo de automóvel pela Itália e, em 1953, umcruzeiro pela Grécia e Turquia com Fernando Vale, omédico de Arganil, amigo de todas as horas e, tambémele, opositor ao regime de Salazar. As suas obras co-meçam, então, a ser traduzidas em inglês.

As publicações sucedem-se: Pedras Lavradas e Diá-rio V (1951), Alguns Poemas Ibéricos (1952) e Diário VI(1953). É precisamente em 1953 que passa a morar na

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Rua de Fernando Pessoa, 3, casa onde ainda hoje ha-bita a sua viúva.

Em 1954 revisita com a mulher o Brasil, nomeada-mente os locais onde passou a sua adolescência e di-vulga a sua terra, através da conferência «Trás-os--Montes no Brasil». Recusa o prémio comemorativo damorte de Garrett, do Ateneu Comercial do Porto, ofere-cendo o dinheiro a esta instituição para que invista napublicação de obras de jovens poetas. Nasce, no anoseguinte, a sua única filha — Clara — e publica os en-saios Traço de União, a que se segue o Diário VII, em1956, ano do falecimento de seu pai.

Edita ainda Orfeu Rebelde (1958) e vê a sua peça deteatro Mar ser representada pelo Teatro Experimental doPorto, com encenação de António Pedro. Neste mesmoano, aquando da realização das bodas de prata do seucurso, é-lhe promovida uma homenagem, levada a caboa 7 de Dezembro, na antiga república Estrela do Norte,onde é descerrada uma lápide. As reuniões de cursosucedem-se e os discursos que Torga nelas proferiu vãosendo publicados nos volumes do Diário.

Vê o Diário VIII (1959) ser apreendido pela Censurae o seu nome proposto e apoiado com entusiasmo parao Prémio Nobel que, lamentavelmente, ele, como ou-tros, nunca chegaria a receber. Publica Câmara Arden-

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te (1962), Diário IX (1964) e Poemas Ibéricos (1965);a peça Mar é agora (1966) representada pelo TeatroExperimental de Cascais, numa encenação de CarlosAvilez, com cenários de Almada Negreiros.

Intervém no Colóquio Internacional Comemorativo doCentenário da Abolição da Pena de Morte em Portugalcom a conferência «Pena de Morte», posteriormenteinserta no Diário X (1968), que também regista os acon-tecimentos da Primavera de Praga e os de Maio de 68.

Assumindo-se, claramente, contra a situação política,subscreve o manifesto «Dos Escritores ao País», onde aliberdade é reclamada, participa no II Congresso Repu-blicano em Aveiro e recusa o Grande Prémio Nacionalde Literatura por ser outorgado pelo regime, aceitando,todavia, o Prémio Literário Diário de Notícias.

Sempre vigiado pela PIDE, visita Angola e Moçam-bique e publica o Diário XI (1973). Começa, com arevolução de 25 de Abril de 1974, a participar, não semum certo cepticismo, em manifestações e comícios li-gados ao Partido Socialista, onde discursa, ainda queassumindo-se sempre como independente — a mesmaindependência que pauta a sua criação literária.

Passados que são trinta e cinco anos da publicaçãode O Quarto Dia d’A Criação do Mundo, surge O QuintoDia, que privilegia a sua experiência na prisão.

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Enfim, parece que Torga é final e abertamente reconhe-cido, também pelos prémios que lhe são atribuídos, a sa-ber: Prémio Nacional de Poesia das Bienais de Knokke--Heist (1977), Prémio Morgado de Mateus (1980), PrémioMontaigne (1981), Prémio Camões (1989), Prémio VidaLiterária da Associação Portuguesa de Escritores (1992),Prémio Figura do Ano da Associação dos Correspon-dentes da Imprensa Estrangeira (1992), Prémio Écureuilde Literatura Estrangeira do Salão do Livro de Bordéus(1992) e o Prémio da Crítica do Centro Português daAssociação Internacional dos Críticos Literários (1993).

As distinções, provenientes de instituições várias, deigual modo se multiplicam. Assim é homenageado por:Fundação Calouste Gulbenkian (1978), Conselho Cien-tífico da Faculdade de Letras da Universidade de Coim-bra (1979), Rotary Clube de Leiria (1980), Goethe Ins-titut de Coimbra (1990), Conselho Distrital de Coimbrada Ordem dos Advogados (1994)…

Várias são também as adaptações da sua obra: SindeFilipe realiza uma curta-metragem baseada no conto«O Leproso» (1975) e uma adaptação cinematográfica de«O Milagre» (1978); de «Natal» (1980) e d’«O Vinho»(1988) são feitas adaptações televisivas, e o grupo deteatro O Bando leva à cena uma notável adaptaçãod’Os Bichos (1990).

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Miguel Torga colabora ainda no filme Eu, MiguelTorga, rodado em Trás-os-Montes e Coimbra, realiza-do para a Televisão por João Roque. Grava também umdisco, Oitenta Poemas, comemorativo dos seus 80 anos.A RTP 2 dedica-lhe, em 1994, o programa Artes &Letras, onde projecta o documentário, realizado porJorge de Campos, Torga.

Duas universidades promovem congressos interna-cionais em sua homenagem: Universidade de Massachu-setts (1992) e Universidade Fernando Pessoa, no Porto(1994). Destes congressos editaram-se livros de actas,indicados na bibliografia final, que muito contribuempara o estudo da poética torguiana.

Paralelamente, continua a escrever e assim publica:Fogo Preso (1976), Diário XII (1977), O Sexto Diad’A Criação do Mundo e Antologia Poética (1981),Diário XIII (1982), Diário XIV (1987), Diário XV (1990)e Diário XVI (1993); e continua também a viajar: idasperiódicas ao Gerês e a S. Martinho de Anta, visita aoMéxico (1984) e aos Açores (1989). É, no entanto, umadeslocação a Macau (1987), onde profere a conferência«Camões», que mais pormenorizadas referências mereceno Diário. De regresso passa por Cantão, Hong Konge Goa, onde, com mágoa, mal vislumbra a presença por-tuguesa.

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Autor de uma obra traduzida em várias línguas, é pro-posto, em 1978, mais uma vez, para o Prémio Nobel quenão chega a obter.

Familiarizado mas não conformado com a doença quehá vários anos o consome, testemunhada especialmenteno comovente Diário XVI, Miguel Torga morre emCoimbra a 17 de Janeiro de 1995, sendo sepultado nocemitério de S. Martinho de Anta, a «terra onde têmraízes, os versos» que escreveu.

Repartindo-se pelos vários géneros literários, a obrade Miguel Torga não deixa de configurar um continuumde preocupações sistemáticas e coerentes, ainda quesejam manifestas as diferenças como as vai expressando.Por questões práticas, afastar-me-ei da nomenclaturausual para seguir a usada pelo alinho feito pelas Publi-cações Dom Quixote. Assim, referir-me-ei, e por estaordem, aos ensaios e discursos, ao teatro, aos contos,aos romances, aos diários e, por fim, à poesia.

Quando no prefácio de Fogo Preso Torga afirma que,ao «fazer-se homem público, o poeta empresta a voz aquem a não tem», está, implicitamente, a definir umamissão plasmada não só no volume Ensaios e Discursos,

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mas também em alguns passos do Diário. Ciente de quea voz dum escritor «é sempre a voz que fala por todos»,como afirmou em entrevista concedida, em 1951, ao Diá-rio de Lisboa que não chegou a ser publicada, o poetanão oculta a sua missão buscadora e intelectiva postaao serviço de causas em que, como ser autoconsciente,testemunha, denuncia, autentica, constrói, revela…

É desta missão/visão que dão conta as obras Portu-gal (1950), Traço de União (1955) e Fogo Preso (1976)insertas no acima referido volume Ensaios e Discursos(2001).

Portugal é o elogio a essa «nesga de terra / Debrua-da pelo mar», revisitando províncias, regiões e cidadesportuguesas, numa divisão pessoalíssima em que de-senvolve um conceito alterável e dinâmico de pátria.Da «portuguesa Galiza» ou do «pesadelo verde», que éo Minho, penetra no seu «Reino Maravilhoso» escalpeli-zando as gentes, os costumes e, muito particularmente,a energia vital da terra que «tanto se levanta a pino numímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismosde angústia, não se sabe por que telúrica contrição».Passa no «drama cruciante e ciclópico» que é o Douro,para se deter no Porto, configurador da «própria ima-gem do futuro sonhado: — um enxame de fraternidadea mourejar e a progredir dignamente num jardim de

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camélias». Destacando a figura beirã do pastor no seu«reencontro com a natureza», dirige um olhar cáusticoà sua Coimbra, hipnotizada por um «sentimentalismo demeia-tigela», adormecida à sombra duma «Universidadeque se basta no simples facto de o parecer aos olhosda ignorância colectiva». Do litoral que «devia formaruma província à parte, esguia, fresca e alegre, só de areiae espuma», olha as «dunas e calcário» da Estremadura,que aponta como a figuração da alma portuguesa pelosvestígios do passado histórico. Vivencia o sentido ale-górico das Berlengas e entra no Ribatejo, «grito de feli-cidade incontida no corpo da nação», onde prolifera alealdade da luta entre o homem e a besta. Numa atitudenarcísica de autocontemplação se ergue a Lisboa que,sendo «Terra de encruzilhadas da História», parou nasua auto-suficiência. «O fôlego, a extensão do alento»fazem do Alentejo, província irmã daquele Reino Mara-vilhoso, um «mundo livre, sem muros, que deixou passartodas as invasões e permaneceu inviolado, alheio às mu-tações da história e fiel ao esforço que granjeia». Do Al-garve, «espécie de limbo da imaginação, onde tudo éfácil, belo e primaveril», chega a Sagres, «a seta indica-dora dum rumo perdido, real e simbolicamente».

Assim termina uma viagem que, mais que física, ésimbólica e histórica, erigindo os vícios e as virtudes

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de um país adormecido à sombra de um passado, na horaem que, porventura, deveria fixar o futuro. Viagem deamor, onde não se alimentam derrotismos apriorísticos,mas em que se olha com reserva o devir de uma pátriaem letargia, cumprindo-se, assim, a missão do escritor.

Traço de União é um conjunto de reflexões sobre asrelações entre Portugal e o Brasil. Contém alguns dis-cursos proferidos no «país onde vale a pena ser poeta»,outros em Portugal, sobre aquela terra e suas figuras,fazendo a apologia de dois vultos cimeiros da literaturabrasileira — José Lins do Rego e Ribeiro Couto. Desteconjunto de textos ressalta a mágoa de umas relaçõessubaproveitadas, de um desconhecimento entre os po-vos. O português, com os complexos de superioridadedo colonizador e sem «compreender o sentido do quefez outrora», deslembra-se de olhar um país que é «omaior troféu do […] adormecido espírito de aventura».

Da sua vivência naquelas terras, o escritor sabe quea juventude delas promete a pujança assegurada por uma«consciência da nacionalidade» geradora do «sentimen-to liberal da igualdade perante a lei». Sabe que não háressentimentos nem «complexos na alma dos brasilei-ros», gestores que são de um país que sabem ter futuro.Esse futuro está na alegria de um povo, como a falta deo perspectivar está na tristeza do outro, «porque enquan-

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to o brasileiro procura na multiplicação de formas docorpo ou de facetas da alma uma lúdica confraterniza-ção com as sombras que o acompanham, envolvemosnós o espírito num burel, a chorar por dentro». Se há,da parte de Portugal, o manifesto desejo de ligar o Bra-sil a um passado histórico honroso, concomitantementedeve haver a preocupação de com ele construir o futuro.Será esta a ideia que ganha contornos mais definidos aolongo de Traço de União.

No prefácio de Fogo Preso, o autor arroga que estassão «páginas de circunstância, realmente, datadas comonenhumas outras no tempo e na motivação. Redigidasno ardor da refrega, sem premeditação e sem vagar, àqueima-roupa.» Trata-se, efectivamente, de um conjun-to de textos que, pela época da sua publicação, neces-sariamente com ela se comprometem. O próprio títuloremete para uma dualidade assim interpretada pelo es-critor: «tão premente e subversivo foi, em dado momen-to, acusar o poder armado, tecto de todas as arbitrarie-dades, como alertar agora a consciência nacional contraos equívocos de uma libertação sem francas vocaçõesde liberdade». Fiel a uma independência, que lhe viabi-liza um acentuado senso crítico, Torga, denunciando umpassado, bate-se contra o que no presente pode obsta-culizar a liberdade ansiada.

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Compõe-se o volume de um prefácio, três entrevis-tas, dois textos sobre escritores portugueses — Eça deQueirós e Teixeira de Pascoaes — e treze que, assumin-do embora títulos vários, resultam de discursos profe-ridos em determinados eventos. Registe-se ainda «CartaVagante», texto primeiramente publicado em forma decarta aberta no jornal A Capital, dirigido a Natália Cor-reia, num gesto de solidariedade, pela maneira como aescritora denunciou o silêncio dos intelectuais duranteo PREC. De uma forma ou outra, são textos de mani-festa contestação e intervenção, afirmando o autor:«acossado pelos problemas do quotidiano pátrio, vin-culado pela dignidade e solicitado por mil apelos, tam-bém eu roubei às minhas horas autónomas de criadoralgumas horas de contestação directa». Assim define ereclama a missão que lhe é devida e que fora alvitradaaquando da sua laboração na revista Manifesto.

No prefácio, o autor define a missão atrás referida eanuncia que, «ao lado de outras, que darão testemunhado poeta, ficarão estas páginas, sem vocação e sem tor-no, a mostrar o cidadão». É pois este cidadão que sedesnuda nas três entrevistas insertas. Na primeira, de-fine o papel devido aos intelectuais e artistas na politi-zação do povo, aquando da campanha eleitoral de 1945.Reforçando esta ideia, na segunda, faz um apelo ao voto

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popular na campanha eleitoral de 1949, confiando numavitória da oposição, numa democracia consciente, omesmo acontecendo, ainda que em tom mais amargo, naterceira, dada aquando da campanha eleitoral de 1951.

Nos discursos por ele intitulados «Palavras ditas emVila Real, Coimbra…», «Palestra» e «Mensagem a …»,o poeta difunde os seus valores socialistas, sem que, comisto, perca a sua independência de pensamento, insti-gando à luta pela liberdade e pela igualdade entre oscidadãos. Textos que são de intervenção, são tambémrevestidos da sensatez, prudência e humanismo que tãobem o caracterizam.

Mas se os acontecimentos nacionais o envolvem, nãose alheia dos internacionais e, em «Alocução», mostrauma enorme revolta pela execução de cinco patriotasvascos. São palavras de raiva incontida e de repúdioveemente pelo cerceamento das liberdades fundamentais.

Referindo-se a Eça, aquando das comemorações docentenário do seu nascimento, não deixa de lhe tecer osnecessários, e não mais que os necessários, elogios, maslamenta que ele não tenha peregrinado mais no seu país,para que assim se apagasse a mediocridade coimbrãpautada pela ausência dum «projecto válido de vidafutura» que o caracteriza. Já a Teixeira de Pascoaes,«o trágico aedo existencial desta nossa condição de eter-

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nos exilados da realidade, de encobertos no descoberto,de perseguidores de miragens», não regateia elogios, pelasua íntima identificação com as raízes, o que, porventura,faltou a Eça.

De facto, os textos insertos neste volume são a res-posta a estímulos exteriores ou, melhor dito, a necessi-dades sociais às quais a missão de escritor e intelectualdeve dar voz.

De todos os géneros que Torga cultivou, o dramá-tico parece-me ser aquele em que menos investiu, o que,de certa forma, pode ter que ver com a sua personali-dade introspectiva e nada exibicionista; efectivamente,na fase de maturidade da sua produção literária, abando-nou por completo o teatro. São todavia incontornáveisas peças Terra Firme e Mar (1941) e O Paraíso (1949),porquanto revelam a coerência da sua obra e o conti-nuum que ela configura.

Em Terra Firme, através de um enredo simples, asimplicidade do quotidiano das gentes que nela habita,se desenha o drama da espera — um regresso, sempreadiado, de quem, abandonando a vida do campo, seguea de marinheiro, deixando a família e Maria, a «noivaeterna», numa situação de expectação que os vinte anosde ausência tornam corrosiva. Dando uma lúcida per-cepção das limitações humanas, a peça é, antes de mais,

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a conversão do espaço em tempo, do passado em pre-sente, erigindo como protagonista a Vida e como palcoa Terra. António é, porventura, Abel e Caim tipifican-do as referidas limitações. Configura o Homem, cria-tura débil, revoltada contra os limites da sua condição,mergulhando nos abismos da sua própria corrupção.A Terra, enquanto garante dos valores do passado, dopresente e do futuro, sacrifica o herói, convocando-o arenovar estruturas decadentes com o fito de salvar ahumanidade. Tragédia de carácter, drama romântico,teatro de situação ou do absurdo? A peça é estranha,como estranho é o mundo fantástico em que as perso-nagens se movimentam. Tripla tragédia, talvez, consu-mada ao longo dos três actos, com a morte física damãe e de Maria e a psicológica do pai.

Esta estranheza cessa em Mar. Personagens simplesde um simples enredo, dependentes de um mar e de umDeus que medem forças, põem em causa a posição dabeata Capitolina quando afirma: «A bondade de Deus émaior do que o mar!…» De facto, não foi e Domingos,o alegre e sonhador pescador configurador da alegria deviver e símbolo do sonho e de liberdade do Poeta, láfica, fazendo mergulhar no desespero Rita, assim tor-nada em noiva/viúva eterna. Intrincadas relações huma-nas de amor e desprezo. Simulações e dissimulações de

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quem sabe que a «maior desgraça que pode acontecera uma criatura é ficar viúva do seu próprio amor…». E,no meio do desespero, da alegria e sempre, a figuracordata e resignada de Mariana, a dona da taberna Flordos Pescadores, centro de tudo e de todos, sentencian-do como se de um fatalismo se tratasse: «É o mar queos cria, e é o mar que os leva… E nós só podemoscobrir-nos de luto e chorar por eles.» Poema dramático,lhe chama o autor. Porque não, se o projecto de conti-nuidade se configura no gesto do Rapaz, resgatado domar por Valadão, quando ia levar flores ao Domingos.As mesmas que Rita lhe leva quando, desvairada, vaimar dentro, rumo a um reencontro, através do suicídio.

Quando, no prefácio de O Paraíso, Miguel Torgaafirma: «Farsa triste, esta agora. […] grotesca panto-mina arbitrária amarga […] tão longe de ser uma inter-pretação sábia do mundo, como de pretender apertá-lonum espartilho teológico», quando assim o faz, denun-cia, de forma mais ou menos explícita, as limitações dacondição humana. Recuperando figuras e situaçõesbíblicas — que os próprios nomes das personagens tes-temunham (Caim, Abel, Adão, Eva…) —, desenha umambiente carnavalesco do faz-de-conta onde o «herói ésó um: o bicho-homem a afirmar a sua liberdade e aperdê-la a seguir, na tentação de solicitações confessio-

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nais, ideológicas e outras». Resta a estes comparsas,que «mais não fizeram que viver a vida por procuração»,«a perdição total e sem remédio». De facto, em O Pa-raíso, dá o autor conta, inicialmente através de um pro-cesso alegórico, dos riscos da humanidade, ultrapassa-dos os limites razoáveis da ambição. Por tal, assim sedefine a personagem Amigo, alegoria do Diabo: «Soualguém que recusou a paz da submissão, os favores dacumplicidade, os sucedâneos do medo, o império servildos sentimentos, as miragens da esperança…», o mes-mo que, no final, debaixo de grande trovoada admiteque o «homem fabrica sem querer as suas próprias fa-talidades». Esperança, medo, submissão e revolta sãovivenciados pelo casal que alegoriza o modo diferentecomo cada um dos dois assumiu o acto de liberdade decomer a maçã e ser expulso do Paraíso. Aqui se levan-ta o problema da liberdade adâmica e do livre arbítriodo homem que fica entregue a si mesmo e, por isso,paga o preço.

O teatro de Torga sujeita-se, deliberadamente, à linhade coerência visível ao longo de toda a sua obra. Une-aa luta do homem pela sobrevivência, condicionado peloseu livre arbítrio, mas também pelas limitações que acondição humana lhe impõe. Na luta consigo próprio,parece sair vencido, como também o sai na luta com for-

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ças adversas. Reduzido a uma instrumentalização supe-rior, o desespero é manifesto por não conseguir a liber-tação — o mesmo desespero humanista, do vencido,mas não convencido, de que a poesia ou o Diário dãoigualmente conta.

O conto, pela sua concentração diegética e espácio--temporal, também pelo seu carácter incisivo e pela artede sugestão que o envolve, foi uma das formas literá-rias que o autor mais desenvolveu, talvez por ser aquelaque, inicialmente, melhor servia os seus desígnios.Abandona-a, posteriormente, quando começa a ganharmaior fôlego a escrita de primeira pessoa.

É logo aos 24 anos que publica o volume Pão Ázi-mo (1931). Trata-se de uma série de doze narrativascurtas, sendo uma delas uma «Comunicação à Academiadas Ciências» sob a forma de um conto protagonizadopor Labão, que «não escreveu livros. Em compensaçãodeixou grandes heranças à sociedade.» A simplicidadede todas estas pequenas narrativas não obsta a leiturade preocupações obsessivas que se unem numa matrizúnica — a condição humana, submetida a forças ocul-tas e superiores, lutando contra o diabo e contra a pró-pria morte, a que não escapa mesmo a compleição depoeta, ser sensível que busca a imaterialidade. «O Ca-minho do Meio» e «A Transfiguração» são aquelas

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que, porventura, melhor conta dão desta complexa linhamatricial, ouvindo, José Filipe, uma voz do céu que,afirmativamente, dizia: «A vida do homem sobre a terraé um combate contínuo.» A problemática da morte estáadjacente a textos como «Neve» ou «A Lei», destacan-do-se Maria Balbina e Etelvina dos Prazeres enquantoseres que, não a podendo evitar, com ela, pelo menos,sabem lidar. Da condição de poeta dão conta «A Decla-ração», bem próximo da poesia, e o enigmático «Restodo Tombo», onde parece ser configurada essa figura daimaterialidade, que afirma, pela voz de Martinho Roalde,nascido em S. Martinho da Anta: «Como depois de mor-to cevada ao rabo, quero que os meus ossos sejamdesprezados como foi o seu possuidor.» Pão Ázimo,como o próprio título indicia, concita a simplicidade depessoas também simples, debatendo-se com o intrin-cado problema da sua condição humana.

Em A Terceira Voz (1934), são recorrentes as refe-rências bíblicas para ilustrar situações da vida real.Depois de, no prefácio, discutir e dilucidar a passagemde Adolpho Rocha a Miguel Torga, é através do géneroepistolográfico que explica a D. Diogo, não sem algu-ma ironia, a relação que o ligou à filha Maria Adelaidee a subsequente gravidez. Assumindo-se já como Mi-guel Torga, faz um gesto de penitência pelos seus ac-

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tos, não esquecendo um tom acusatório para quem nãosoube usar de benevolência para analisar as suas con-sequências. Do seu envolvimento com Maria Adelai-de — qual anátema de uma vida futura que rasgos au-tobiográficos fazem antever — resulta uma carta brevede Joana, a ama, anunciando: «A menina Maria morreude parto. A criança era menino e nasceu morto.» Ainda,e mais uma vez, a morte a apagar tudo o que a vida fez:o sofrimento e martírio de Maria Adelaide, o despotismode D. Diogo e a terrível inabilidade de um eu à deriva,mas com enorme dignidade, o que, lamentavelmente, foiinsuficiente.

O interesse desta obra reside na passagem do nomepróprio ao pseudónimo. A história, em si, não é das maisinteressantes e a atitude do autor, em nunca a ter reedi-tado, é sintomática de uma quase rejeição.

«São horas de te receber no portaló da minha peque-na Arca de Noé», diz Miguel Torga ao «Querido leitor»no prefácio de Bichos (1940), como que a convocar,indirectamente embora, uma leitura simbólica da obraque ora apresenta. Obra que, longe de ser um merosomatório de contos, se configura como um verdadeiromacrotexto de unidades interaccionais e intencionaiscuja estrutura, de feição lírica, confunde a sintagmáticanarrativa.

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À semelhança de outras obras, também Bichos inten-cionaliza as grandes temáticas difusas ao longo de todaa obra torguiana, através de uma contenção ética e es-tética que o põe na linha da fábula, predisposta a carac-terizar o homem cuja rebeldia e inconformismo se esten-de pelos vários episódios que cada conto enforma; portal lhe chamei macrotexto ou, se se preferir, hipersignolato sensu, também pelo continuum a que os contos sesujeitam.

«Cega-Rega» parece-me ser a narrativa de onde di-vergem e para onde convergem todas as forças textuais.Aqui se vislumbra a condição de poeta que, passandopor «embrião, larva, crisálida…», aparece, já adulto, pre-disposto a cantar e que, tal como a cigarra, sabia «quecantar era acreditar na vida e vencer a morte». Cantosque alegram, cantos que incomodam — o da cigarra e odo poeta —, concisos, incisivos, exactos.

A centralidade deste conto, mesmo em termos de es-trutura externa, denuncia a transformação inevitável esofrida a que os seres vivos estão sujeitos. Equidistan-te de «Bambo» e de «Farrusco», ensaia com eles umjogo de cumplicidade e complementaridade, uma vezque, para se completar, precisa das características dosseus protagonistas — a sabedoria e a alegria, a reflexãoe o riso.

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Assim «Bambo», o sapo, que se criou «ao deus--dará, como tudo o que é bom», expressa essa sabedo-ria e uma serena contemplação do mundo. Na Quintada Castanheira, leia-se na Terra, em parceria com o sol-teiro e solitário Tio Arruda a quem ensinava a «ciênciada vida», tornou-se no «guarda zeloso dum mundo fre-mente de germinações». É esta sabedoria do sapo, nãoalheia à solidariedade, que o poeta pretende, porqueconsciente de que cada ser humano «é um enigma quea maior parte das vezes fica por decifrar». Sabedoriaque o Tio Arruda conhecia, mas cuja morte calou. Já«Farrusco», o melro brejeiro de gargalhada irónica, con-voca toda a natureza para celebrar a vida. Sem preo-cupações existenciais e obedecendo aos impulsos daespécie, solta risadas sonoras perante as perplexidadesde Clara, leia-se dos homens. Depois, cai o dia, e ele fe-cha «docemente os olhos, deitado na cama dura. A vidaque lhe ensinara a mãe, simples, honesta, espartana,não lhe consentia luxos de noitada.»

Destarte, estes três contos criam campos isotópicossistematicamente representados ao longo da obra — mor-te/vida, independência/conformismo, liberdade/opres-são — na supramencionada feição de complemen-taridade com «Cega-Rega» e prenunciando todos osoutros.

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Assim «Nero», o «cão que se respeitava, que tinhadignidade», configura a morte, sublimemente descritapelo autor: «quando o cheiro da última perdiz se es-vaiu dentro de si, […] quando a imagem do filho selhe varreu do juízo, fechou duma vez os olhos e mor-reu». Conto de morte, sem dúvida, mas também contode uma vida exemplar em contenção e cumprimento deuma missão; e ainda conto de vida, prolongada esta porJau, o filho, mesmo se com um projecto diferente. Já«Mago», o gato, é a imagem de um conformismo trá-gico. Trocando a liberdade pelo bem-estar — «o paraísoda sua perdição» —, assiste, passivamente, à sua pró-pria decadência sem forças para lutar. A tragicidadeestá, precisamente, nessa profunda consciência de umainércia que o faz mergulhar na «paz podre dum con-forto castrador», a que reage tão-só com um pensamentofrouxo — «Que abjecção! Que náusea!», são os braçosbalofos da D. Sância outrora rejeitados.

Por outro lado, a defesa da liberdade e a insubmis-são estão simbolizadas pelo touro «Miura», «o rei dacampina», por cujo ponto de vista é relatada a toura-da — luta com o homem à qual se entrega inteiramente,em nome da sua dignidade, disposto a matar, e por fima morrer. A vida é cantada pela rebeldia de «Vicente»,o corvo, que «escolhera a liberdade» e, ao contrário do

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«Mago», encarava de frente a degradação que recusara.Propositadamente colocado em último lugar, este contoencerra a mensagem que perpassa ao longo de toda aobra. Vicente, o símbolo das contradições, configura oser rebelde e são ambos cúmplices e vítimas de umacondição. Na luta com Deus, perante a perplexidade dosoutros animais da Arca, eleva-se «a total autonomia dacriatura em relação ao criador». E Deus sai vencidoperante «aquela vontade inabalável de ser livre». Assimse insinua, ainda que com um final distinto, mais umaoposição recorrente nas obras de Miguel Torga. Comfinal distinto, dizia, ou não fosse Vicente um corvo, eBichos uma tábua de mandamentos valorizadores daliberdade.

Referência ainda merecem «Morgado», o macho, quevê que o dono, para quem sempre trabalhara, cruel-mente «Salvava a vida com a vida dele…». Ou «Tenó-rio», o galo, que assiste ao seu trágico envelhecimentoe se apercebe como a velha facilmente o substituiquando, olhando-o, «começou a afiar a faca no algui-dar». Casos de morte contrariados por «Ladino», opardal, que, manhoso, como o próprio nome indica,preferia a protecção do ninho às vicissitudes do ar.Obrigado à aprendizagem da vida, desta tira partido comalegria e perspicácia. «O destino fazemo-lo nós», sen-

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tencia Ladino, cuja morte ocorrerá, segundo ele,tão-só «quando acabar o milho em Trás-os-Montes».Ainda que envelhecido, o pardalito, em jeito de fábula,proclama, no final do conto, uma quase moralidade:«a vergonha é a mãe de todos os vícios». Por isso elea não teve.

Dentro desta Arca de Noé, onde os bichos simbo-lizam homens, e em harmoniosa coabitação, surge obicho-homem. Assim «Madalena» que, por conven-ções sociais, acaba por «saborear o alívio» de ver o seufilho nado morto, depois de um longo e solitário so-frimento de parto. Nome bíblico, de pecadora, que aquiresponsabiliza, indirectamente embora, os tabus sociaispelo seu pecado. Também «Ramiro», dono de um almaque «era muda como um túmulo» e que, em jeito ani-malesco, mata Ruela, o homem que lhe sacrificou a cor-deira. Ou ainda o «Sr. Nicolau», mórbido coleccionadorapaixonado de insectos mortos. Em «Jesus», porventuraum dos mais belos contos de Torga, a voz da verdadeé posta na boca de uma criança, filha da terra que res-suda vida: «Sei um ninho!» Precipitando, com um beijoterno no ovo, o milagre da criação e depositando, emseguida, o pintassilgo recém-nascido no ninho, celebraa vida dando-lhe continuidade. A criança Jesus ou o

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Jesus criança, que para o caso tanto faz, deixa, à noi-te, «cair a cabeça tonta de sono no regaço virgem daMãe». Erguendo-se também como protagonista pluralda obra, este petiz sem nome — petiz Jesus — configuraa coragem e a capacidade de amar só possíveis numestágio de plena lucidez e de autenticidade de carác-ter, símbolo da vida em estado puro e que, por isso mes-mo, é a voz da verdade.

É assim que estes contos, numa toada polifónica, ser-vem um todo harmónico que projecta a passagem dohomem pela vida e a sua inevitável caminhada para amorte. Do poeta, do homem-bicho e do bicho-homemdarão conta estes Bichos em feição alegórica, consti-tuindo um continuum impossível de ser dissociado. Con-tinuum que se configura em termos de estrutura inter-na e externa, coadjuvando, assim, a arquitectura domacrotexto antedito.

Continuando a reflexão sobre a narrativa breve deMiguel Torga, referir-me-ei, agora, ao corpus constituí-do por Contos da Montanha (1941) e Novos Contos daMontanha (1944). Se aqui junto estas duas obras, éporque os quarenta e cinco contos que as constituemapresentam uma enorme homogeneidade, quer pela loca-lização espácio-temporal — a Montanha, o «sítio ondemedram as raízes deste livro» —, quer pelo grupo social

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que os protagoniza. Através de uma uniformidade te-mática, Torga convoca indivíduos das colectividadesmontanhosas e agrestes — as suas «criaturas humil-des», as «Almas-penadas dum Portugal nuclear» —,assim ensaiando uma ligação telúrica. A simplicidadedestes contos não inviabiliza a abordagem de grandestemáticas existenciais, como o nascimento e a morte, járeferidos em Bichos e, embora enfoquem uma sociedaderural, assumem uma dimensão claramente universal.

A construção destas narrativas breves assenta emoposições, quer ao nível das personagens, quer dosgrandes temas recorrentes, como se todos os elementosque as constituem precisassem de complementos para,assim, alcançarem o equilíbrio e ensaiarem o absoluto.

No que diz respeito às personagens, e dado o intrin-camento das relações humanas, são recorrentes os con-flitos sobretudo entre o indivíduo e a colectividade,como, por exemplo, em «O Leproso», onde Julião é mor-to pelos de Loivos, e entre aquele e a terra, assumindoesta um duplo papel de mãe e madrasta, visível em«Mariana» ou «O Caçador».

Sobretudo as mulheres são personagens carismáticasna obra de Torga pela personalidade dúplice que lhes éinerente. Se em «O Bruxedo» se abrem, entre elas, hos-tilidades — «Apesar de a Gomes ter as farroncas que

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toda a gente sabia, a Melra foi-lhe àquele corpo que lhoderreteu» —, já em «Inimigas», Sofia, seca dos peitos,assiste à amamentação do seu filho por Cacilda, a ini-miga de uma vida; e quando se depara com a atitudealtruísta desta, apenas arranja coragem para dizer combonomia: «— Olha lá se me engasgas o rapaz, ó Cacil-da.» Numa outra perspectiva, o elemento feminino tan-to ostenta um temperamento forte, determinado e inde-pendente como configura a opressão e a dependência.Por isso, também varia o seu relacionamento com o ele-mento masculino. Se em «A Caçada» se verifica o do-mínio de Felismino sobre Joaquina através do sexo, jáem «A Revelação» a relação entre Matilde e Artur é pe-jada de carinho: «Casaram pouco depois, e, contra to-das as expectativas, não houve ralhos nem desavençasnaquela casa.»

No que diz respeito aos principais temas veiculados,também eles parecem sugerir um mundo de oposições.O milagre da reprodução e do nascimento, seja entrehumanos, seja entre animais, é um lugar-comum. A títu-lo de exemplo, e sem preocupações exaustivas, refira-seo já citado «Inimigas», em que nascem os filho de Ca-cilda e Sofia, ou «Fronteira», em que Isabel tem um fi-lho de Robalo, ou o «O Sésamo», em que a ovelha Rolapare, com facilidade, um cordeiro. Uma referência espe-

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cial merece o conto «Mariana», qual celebração da fe-cundidade e da maternidade assumidas, garantindoquando lhe perguntam pelos pais dos seus filhos: «nãotêm pai… São só meus.»

À reprodução e ao nascimento se opõe a esterilida-de e a morte como cumprimento do ciclo humano. Em«A Paga», os irmãos de Matilde vêm do Brasil para ca-par Avelino, vingando assim a sua desonra; em «O Lu-gar do Sacristão», a tristeza e a solidão de Felisbertoadvém de não ter casado com Deolinda; Marciana de«Um Coração Desassossegado» calou o amor que tinhapelo cunhado. «A Maria Lionça» enterra o marido e ofilho; «O Alma Grande» é morto por Isaac. Em «Fron-teira», surge a morte de vários contrabandistas, cul-pando-se a esterilidade da terra que os faz percorrer es-tes caminhos ínvios na luta pela sobrevivência, e em«Renovo», a «pobre Felisberta tinha pago o seu tributocom três filhas, dois netos e o marido» à epidemia quelhos levou.

A religião, aparentemente oposta à superstição, comela, frequentemente, se confunde. Se Faustino, em «UmRoubo», é castigado com uma broncopneumonia portentar roubar a Igreja da Senhora da Saúde, já o PadreJoão de «Homens de Vilarinho», apesar de ter mulher efilhos, era respeitado pelo povo; e quando chamado ao

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Bispo, que o acusa de concubinato, desmistifica a si-tuação dizendo:

— Olhe, senhor Bispo, cá por cima são estesusos. Padre sim, padre não, faz o mesmo. Tenho acerteza. O que são é mais finos do que eu. Às fê-meas chamam-lhe criadas; e aos filhos, afilhados.Ora eu cá sou pão, pão, queijo, queijo. Não nego.Para quê? A mulher é minha, nunca foi doutro,gosto dela e não a largo; os filhos tenho já cinco,quero criá-los e ver se lhes deixo alguma coisa.

A superstição está configurada em «O Bruxedo» ouem «O Caçador» onde Tafona desconfiava que «asmenstruações de Camila, a vizinha do lado, lhe mu-davam a direcção do chumbo». Também em «O Sésa-mo», Rodrigo mostra a sua crença na superstição e nosmitos a que, depois, se sobrepõe o nascimento de umcordeiro. As críticas à igreja e aos seus representantessão, de igual modo, recorrentes. Tal é o caso de «O De-samparo do S. Frutuoso» ou «Renovo», onde se salien-ta a ineficácia daqueles em momentos de crise. Já em«O Senhor», em feição pedagógica, se indica a missãoque a igreja deve ter na terra — o padre Gusmão, cons-ciente que primeiro se devem salvar os corpos, e só de-

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pois as almas, abandonando o pálio, atrasa a sacramen-tação de um moribundo para servir de médico parteiro,porque, «inopinadamente, os valores mudavam de sinal,o transitório sobrepunha-se ao eterno, e só uma coisase mantinha firme diante dos seus olhos de homem:a moleira estendida no leito, com um filho dentro delaa pedir mundo.» Assim salva a vida de Filomena e dofilho que deu à luz e só depois «chegou à porta, ecobriu-se novamente do pálio da sua glória».

A religião e a superstição, o sagrado e o profano pa-recem interagir em contos como «Teia de Aranha» ou«A Festa» onde se ouve «um padre-nosso e uma sarai-vada de asneiras ao mesmo tempo», onde um homem é«capaz de tudo: de matar o semelhante e de comungar».

A emigração e o respectivo regresso são tambémrecorrentes, ou não tenha sido o autor dos contostambém ele um emigrante. Vejam-se, a título de meroexemplo, contos como «A Maria Lionça», «A Pro-messa», «O Regresso» ou «A Confissão».

Da inocência da juventude, a que se segue, quaseinevitavelmente, a desilusão, dão conta «O Cavaqui-nho», «O Marcos», ou «O Sésamo», onde Rodrigo que«tentara ver de perto a miragem, acordava cruamentetraído», verificando não serem verdadeiras as históriafantásticas contadas por Raul.

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Liberdade e livre arbítrio, a resignação e a resis-tência são outros temas que podem ser analisados.Referir-me-ei, para terminar, ao tema que me parece tra-tado com maior acuidade e que prolifera em mais de dezcontos — a luta entre a justiça e a injustiça, seja estasocial, oficial ou poética. «Um Roubo», «Justiça»,«O Castigo», «A Confissão» ou «O Artilheiro», entreoutros, dão conta, de forma mais ou menos directa, maisou menos crítica, de uma procura incessante da justiça.Por trás de todos, a voz judicativa do autor na formacomo manipula as personagens e as situações, dando--lhes, não raro, uma feição pedagógica e, porventura,moralista — não a moral de sacristia, outrossim a moralda coerência e da autenticidade.

Do que dos contos ficou dito se infere que temas emotivos se complementam e se repetem numa metafo-rização da condição espiritual dos seus protagonistas.Contos regionais, o lugar onde é a Montanha, símbolodo Éden primitivo, raiz do Portugal torguiano e local cós-mico onde Deus se encontra a si próprio sem peias ins-titucionais. Aí se situam os arquétipos do inconscientecolectivo regidos por uma simbiose de forças centrípe-tas, prenhes de um poder telúrico, mas também centrífu-gas pela sua dimensão universal que fazem que ultrapas-sem o espaço a que, só aparentemente, estão confinados.

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Destarte cumpre o objectivo que anuncia no Diário:«Trazer os deuses à terra, integrá-los num quotidianomaterial e social que, embora fosse apreensivo, perma-necia enraizado, era preservar a alma no seu corpo decarne, sem deixar evolar-se num vazio transcendente.»Assim Mariana, Julião, Tafona, Garrinchas… E assim osonho do «Portugal nuclear», onde procura o seu eutelúrico no contacto com instintos, vivências e emoçõesem bruto — bons ou maus, mas não adulterados.

Ora esse sonho do «Portugal nuclear» segue em Pe-dras Lavradas (1951), volume constituído por vinte eduas narrativas breves que em muito se assemelham àsprecedentes. Uma toada mais disfórica percorre estaobra, onde, por exemplo, Pedro de «O Segredo», nãoconseguindo conviver com o seu desgosto, opta pelosuicídio, ou Belmiro, o cego de «A Barragem», que, embusca da terra perdida, morre afogado, ou ainda Gonçaloe o touro de «A Glória», que «eram o testemunho paté-tico de que a pura e perfeita glória é morrer». Num outroregisto, mas disforicamente ainda, se assiste à profundadesilusão de Rodrigo de «Desencanto», à quebra de rela-cionamento de Clarisse com o Engenheiro de «Areia Hu-mana», à vanidade da devota paixão de Lúcio de «Mari-nha» ou ao amor serôdio de «Outono». O desencontrode sentimentos torna-se dramático em «Silêncio», já

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que nem a maternidade emergente propicia um desejá-vel reencontro — assim, Matilde e Fernando protagoni-zam a história de um desamor confesso, duro, cruel, pelafrontalidade com que é assumido. Esta frontalidade/lealdade/honestidade de Matilde, disposta a tudo na as-sunção da verdade, é rito de outras personagens comosejam D. Aurora de «A Herança» ou Bernardo MendesCapelo de «Regeneração», que não suportou a «honra-da vida de figurante ordeiro na comédia do mundo».

Por outro lado, não deixam de fazer esboçar um sor-riso as estratégias de Bráulio, primeiro para mendigar edepois para conquistar Filomena, em «O Pedinte», ou oequívoco da prisão de Leonel em «A Identificação»,equívoco que, providencialmente, o faz desistir de umcasamento.

Questões de liberdade e livre arbítrio surgem em«O Juiz» e, de forma assaz arrebatada, em «O Cobarde»,onde Paulo se debate com a questão: «Opor História àHistória, ou simplesmente não colaborar na História?»Ao optar pela via do anonimato, da não intervenção,talvez por inépcia, restou-lhe tão-só a tristeza e a amar-gura, melhor, um «coração morto que jazia».

Uma referência ainda merece o conto «A Consulta»,onde um episódio do quotidiano profissional de ummédico sem nome faz que questões de natureza ética

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entrem em colisão com os sentimentos humanos. A pre-valência daquelas poderá trazer a noção do dever cum-prido, mas não corrobora, claramente, na pacificação docoração do homem. Recorrente em Miguel Torga, sobre-tudo no Diário e n’A Criação do Mundo, mas tambémneste caso, é o facto de a escrita se alimentar difusa-mente da prática médica. Documento humano, «A Con-sulta» aponta, afinal, a directriz de uma forma intransi-gente de viver a vida. E se, num momento de hesitação,provocado pela enigmática beleza de uma paciente, estemédico anónimo se questionou se «não seria também ointeresse dela fazer-lhe sentir que viera lançar uma pe-dra na superfície quieta e pesada de uma vida», no mo-mento seguinte, «ergueu-se, entregou-lhe a receita, fezum leve gesto de fim»; contrariando-se, por certo, masanunciando aquela linha de coerência, que é marca dis-tintiva de todas as personagens dos contos torguianos.

Da narrativa breve, que me parece ter sido o primei-ro grande passo para o reconhecimento do autor, segui-rei para uma outra menos breve, sem que, por isso, sejalonga. Refiro-me a O Senhor Ventura (1943), de quem oautor diz, dirigindo-se ao leitor, no seu prefácio: «Nãosei com que palavras te hei-de apresentar este livro.»De facto, na senda de Peregrinação, de Fernão MendesPinto, ou de O Soldado Prático, de Diogo do Couto,

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nele ocorre um relato que desmistifica as façanhas dosportugueses andarilhos, erguendo o seu protagonista,segundo José-Augusto França, à condição de mito.Novela de uma desventura lhe chamarei então, onde umnarrador omnisciente, intensamente comprometido coma sua personagem, recupera o traço irónico, também visí-vel em contos como «A Teia de Aranha» ou «O Cava-quinho», para dar conta do seu anti-herói, o emigranteportuguês que luta contra um destino trágico, não porcarências económicas, mas pela índole aventureira que,aqui e agora, consubstancia um profundo traço do ca-rácter do povo português.

Ventura abandona Penedono, no Alentejo, onde sededicava à pastorícia, para fixar residência em Xunquim,depois de desertar em Macau. Aí se desenrola, de formalinear, uma vida de amor e morte onde a inversão de valo-res é notória. Herói de influências picarescas, configurao ladrão, o traficante de armas e de droga, e mesmo ohomicida, sem, contudo, deixar de ser generoso e respei-tador dos elementares princípios do amor e da amizade.É a sua ternura, a sua faceta humorística, a sua saudadecósmica que levam o narrador a, evocando-o, afirmar:

Na sua figura ponho a realidade do que sou ea saudade do que podia ser. Entrelaço no desenho

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do seu nome quanto a imaginação me pede dedistância e de perigo. Vivo nele. E, enquanto duraa memória dos seus passos, sinto-me tão verda-deiro que quase sou feliz.

A grandeza de Ventura é inequívoca no bem e nomal — seja a empunhar a pistola pronta para matar, sejano gesto de aprender a ler para providenciar o futuro dofilho. Tatiana, a mulher interesseira e libertina que amoue que lhe deu o filho, coadjuva o desenho do herói pi-caresco que, por ela e com ela, transforma o amor emódio por causa de uma «traição humana para lá de tudoquanto uma alma sem amor podia entender»; da mesmaforma, o desaparecimento do amigo Pereira, desertorcomo ele, desvenda o peso da solidão; também a mor-te inviabiliza os anseio de liberdade.

Uma história de glória e de patifaria, ingénua e mali-ciosa, pícara e trágica, é a deste homem que morre deamor, vitimado por traições — dos amigos, da mulher eda saúde. O cancro que o arruinou configura todas astraições a que o Homem está vulnerável.

Neste desventurado e na sua história se revê umpaís inteiro: o emigrante que desafia o destino é aque-le que de forma paradigmática simboliza os ciclos dasvidas — Sérgio, o filho que Tatiana abandona na China,

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regressa um dia, respondendo ao apelo das sua origens,ao Alentejo, para aí, de igual modo, repetir as vivên-cias da avidez e da alucinação da liberdade como«pastor, que foi por onde o Senhor Ventura começou».E assim, por aí fora, todos os emigrantes portuguesesque tiveram a desdita de ir morrer longe do solo pátrio,«na terra estrangeira», onde era devido «o preço das suasaventuras».

A brevidade desta narrativa, a que se poderá chamarnovela, poderá querer relevar a brevidade da vida, im-posta pela condição humana, que tanto atormentou oseu autor.

Revisitando agora o romance Vindima (1945), lê-seno prefácio da tradução inglesa a seguinte advertênciaao leitor: «Vais ler um livro que eu hoje teria escritodoutra maneira. Cingido à realidade humana do momen-to, romanceei um Doiro atribulado, de classes, injusti-ças, suor e miséria.» Ora, esta advertência remete, porum lado, para a consciência de escritor ciente de que asua obra deve ser sistematicamente actualizada e, poroutro, para o dever, urgência e capacidade de denúnciade que a mesma deve ser dotada.

Da consciência plena de que o conhecimento do «pas-sado ajuda às vezes a entender o presente» nasce estaVindima, onde grupos de homens e mulheres, «numa re-

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signação de bois condenados ao jugo eterno», colhemos cachos de uvas, transformados posteriormente em vi-nho, em condições de habitabilidade degradantes:

Longe do terreiro, sobradada de palha e dividi-da em dois por uma meia parede que teias de ara-nha prolongavam até ao telhado, de um ladoamontoavam-se as mulheres, do outro ressonavamos homens e as crianças, quando, depois de umdia de corte, de cestos e de lagar, caíam comotordos no chão.

De Penaguião, onde depois regressarão, cumprindo ociclo da vida e da morte, vêm para o Doiro, para ga-nharem a subsistência numa vindima trágica, confi-gurando, assim, o «sofrimento e o protesto de muitasgerações». Através deste colectivo de trabalhadores,psicologicamente indiferenciado, o narrador assume oseu compromisso de denunciar as injustiças sociais daépoca. É sobre esta classe explorada que o Lopes daCavadinha afirma: «— O povo só a chicote. Nada depalavreado, de conversa fiada, de explicações. […] Aspessoas não são iguais. Umas nascem para subir emandar, outras para ficar onde estão e obedecer.» É ma-nifesta a sua estranheza por este mesmo povo falar em

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«salários mínimos, seguros de vida, indemnizações nosacidentes de trabalho».

De matriz claramente neo-realista, até pela existênciadesta personagem colectiva, há, todavia, indivíduos quese personalizam manifestando a sua revolta perante osistema de que são vítimas. Tal é o caso de Júlia Choa,que prefere morrer de fome em Penaguião a ir trabalharpara o Doiro, do feitor Seara, que, vivendo numa situa-ção ambígua, «sem o equilíbrio perfeito de ser dono outrabalhador», se recusa a continuar a servir o Senhor Lo-pes, ou de Preciosa, que repele violentamente os assédiossexuais de um amigo dos patrões, dizendo: «— Ó seubandalho! A sua irmã não lhe serve? […] Se anda ale-vantado, vá às putas, à Vila.» Curiosamente, Alberto, ofilho do patrão, defende a rapariga, o que leva a incré-dula Angélica a exclamar: «— Há sessenta anos que ve-nho ao Doiro, e é a primeira vez que vejo um rico pôr--se ao lado da gente…»

Mas se, por um lado, como ficou dito, há nesta obravestígios da estética neo-realista, por outro — traçoinconfundível de Torga —, regista-se uma manifestaindependência. É assim que, já dotados de densidadepsicológica, aparecem os grupos de burgueses lati-fundiários — os Lopes da Cavadinha e os Meneses daJunceda — que postergam a luta explorados/explora-

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dores, emblemática naquela estética. Famílias rivais,os primeiros configuram os oportunistas que, apro-veitando-se da crise económica, se tentam impor emtermos sociais e materiais; os segundos, retratam aaristocracia latifundiária tradicional. Caracteriza-os edistingue-os moralmente também a figura de Jerónimo,que, despedido da Cavadinha, onde se feriu, por inca-pacidade para o trabalho, é recebido com benignidadena Junceda.

É contudo, Alberto, o filho do Lopes, o que defen-deu Preciosa, o que demandava «o absoluto com forçasrelativas», a personagem com maior densidade psicoló-gica. As suas preocupações humanistas levam-no a umavida de incomodidade e desespero. São dele estaspalavras:

Que desgraçada geração, a nossa! […] Des-truíram a esperança dentro de nós. A esperança eo amor. Secaram-nos essas fontes de alegria e deconvívio. Ensinaram-nos a matar, a odiar e a tor-turar, como se a vida fosse apenas uma arena deinimigos jurados desde o berço.

De facto, Alberto é, em Vindima, a única personagemcônscia das suas limitações enquanto ser humano, pa-

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radigma de uma angústia existencial, porque convictoda sua alienação social e espiritual. Por tal se isola nacaça, em comunhão com a natureza, tendo por compa-nheiro o cão Nilo. Procurando no suicídio a soluçãopara um desengano amoroso, é o cão que o acompanhanaquela noite de trovoada que escolhe para o seu gran-dioso fim:

Foi o clarão de um raio que teve de o empurrar.— Queres vir também, amigo?Mas o animal recuou. Ganiu doloridamente, e

arredou-se.Alberto, então, sozinho, avançou. E desapare-

ceu no abismo.

Vindima é, antes de mais, um monumento de ética eestética, uma estética emancipada que descobre grupossociais injustos e injustiçados; destes grupos, algunselementos se individualizam ganhando uma profundadensidade psicológica que insere este romance no con-tinuum que é a obra do seu autor. Assim se repetemtemas e motivos anteriormente referidos; assim o en-forma o Doiro, «único rio que entra e sai de Portugal aroer pedra»; Doiro que «já não tem cachões, afogadosem albufeiras de calmaria»; Doiro «em vias de mudar»,

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porque «Desapareceram os patrões tirânicos, as car-denhas degradantes, os salários de fome» agora re-tratados.

Publicados entre 1937 e 1981, os cinco volumes queformam A Criação do Mundo, compactados num só, em1991, pelo seu autor, inscrevem-no no chamado romancelongo na senda de um Balzac, de um Tolstoi ou de umaGeorge Eliot. Como que cumprindo um cerimonial, osseis dias, que aqui se demora a criar o mundo, são asetapas de um amadurecimento, como se o exercício daescrita se inscrevesse num rito de aprendizagem comvista ao depuramento e à perfeição. Nele se faz uma ca-pitalização de vivências, onde há muito de confessionale de autobiográfico, como testemunha Torga no pre-fácio à tradução francesa: «Homem de palavras, teste-munhei com elas a imagem demorada de uma tenaz,paciente e dolorosa construção reflexiva feita com omaterial candente da própria vida.»

A introspecção e a análise, prolongadas no longotempo de escrita, presentificam, neste romance, as gran-des linhas matriciais da vida e da obra torguiana, de-monstrando, de forma inequívoca, que o ficcional nãovira costas à autenticidade e à sinceridade.

Destarte, se configura um longo processo de auto-gnose que não posterga o sofrimento, projectado em

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autoficção, para o qual são convocados elementos epersonagens que, pertencendo a um mundo real, en-tram, por direito próprio, no mundo ficcional sem que,por tal, percam a sua identidade e a sua real represen-tatividade.

A Criação do Mundo é, afinal, a ficcionalização docosmos do seu criador «plasmado em prosa», e enqua-drado pela cronologia dos factos políticos, históricos esociais do Portugal do século passado que o próprioassim legitima:

Todos nós criamos um mundo à nossa maneira.[…] Criamo-lo na consciência, dando a cadaacidente, facto ou comportamento a significaçãointelectual ou afectiva que a nossa mente ou anossa sensibilidade consentem. E o certo é quehá tantos mundos como criaturas. O meu tinhade ser como é, uma torrente de emoções, voli-ções, paixões e intelecções a correr desde a in-fância à velhice no chão duro de uma realidadeproteica.

O Primeiro Dia e O Segundo Dia, publicados numsó volume em 1937, parecem-me alcançar alguma au-tonomia em relação aos restantes por darem conta da

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formação do eu pessoal e, de certa forma, do futuro eupoético. Tendo como pano de fundo Trás-os-Montes eo Brasil, deles emerge, de forma obsessiva, a temáticada emigração desenvolvida em três momentos decisi-vos: a necessidade de partir, o contacto com o novopaís, o regresso.

Da necessidade de partir dá conta O Primeiro Dia.Aqui, a criança, concluída de forma brilhante a instru-ção primária, vê, por carências económicas, bloqueadaa prossecução dos seus estudos. As alternativas possí-veis — seminário ou emigração — por agora não o preo-cupam, vivenciando ainda aquela dádiva de uma semi--inconsciência inerente aos seus 10 anos. É assim que,por resolução do pai, vai trabalhar para o Porto, comocriado dos meninos de uma família abastada. A leiturade livros das crianças e o encontro com um antigo co-lega que frequenta o liceu fazem nascer nele o desgos-to e a revolta, despertando-o para a consciência da sualimitada condição; por tal afirma a um colega: «Gosto detrabalhar, mas não de ser criado dos outros.» Voltandopara casa, comunica aos pais a sua vontade, que tam-bém era a deles, de entrar para o seminário — únicoprocedimento, para ele e por agora, aparentemente exe-quível, de acesso à cultura. Dois anos foram suficien-tes para aprender que aquele alheamento do mundo cir-

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cundante não lhe era conveniente e para se aperceberde que «sem dar bem conta disso, perdera a fé». Paraalém do mais, a forma respeitosa como era tratado nasvisitas à aldeia incomodava-o. Com determinação decideque para «o seminário é que não voltava, nem entravamais na igreja». A emigração surge, então, como proces-so libertador do seminário e da pobreza, e também comoprocedimento viabilizador de acesso à cultura. Lá longe,iria ganhar dinheiro para custear os seus estudos, paranão ficar carreiro ou almocreve como os avós paternoe materno — «ambos honrados e trabalhadores, e am-bos pobres toda a vida». Parte para o Brasil na com-panhia do Senhor Gomes, que leva a incumbência de oentregar ao tio ou, caso este não aparecesse, de o em-pregar.

É já em O Segundo Dia que o narrador autobiográ-fico cumpre a segunda etapa da sua evolução/formação.Chegado ao Rio de Janeiro, apercebe-se de que «nadado que aprendera em Agarez servia ali». A sua forma-ção processa-se a dois tempos: o que passou na fazen-da e o que esteve a estudar em Ribeirão. Quanto aoprimeiro, é-lhe grato o exemplo de homem trabalhador,honrado e valente do seu tio, que consubstancia oexemplo a seguir. Por isso, aceita, orgulhosamente, astarefas agrícolas e a direcção da fazenda, em termos fi-

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nanceiros e de gestão de pessoal. Desgosta-o, por ou-tro lado, o mau carácter da tia, as calúnias que inventae os castigos físicos que lhe impõe, por nele ver o pos-sível candidato à herança da fazenda. A sua reacção aosataques da tia é por de mais reveladora do carácter, nãode uma criança, mas de um homem magnânimo, nobre ecoerente. Apercebendo-se destas desavenças, o tio,apesar da sua rudeza, grato pelo desempenho profis-sional e pela dedicação, entende que o rapaz deve ir es-tudar. Vai, então, para Ribeirão, local de várias aprendi-zagens — a intelectual, de que dão provas os êxitosobtidos no liceu, e a afectiva, que sobrepuja os limitesda satisfação de necessidades físicas. Até agora «se-quioso de ternura, sem a receber», é com Lia e Dina queaprende o amor e com o colega Jorge a amizade. Rela-ções breves, mas sentidas, que corroboram o cresci-mento do protagonista mesmo pelo sofrimento que asdesilusões carreiam. Das ligações com Lia e Dina, o pro-tagonista descobre que o amor é, prioritariamente, umarelação de cumplicidade e de reciprocidade e aprendemais, aprende que na mulher tem que procurar, funda-mentalmente, a companheira. Com Jorge, compreende acomplexidade das relações humanas e rejeita as carac-terísticas morais que, durante as férias na fazenda, lhedescobriu.

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A sua formação como emigrante termina quando o tiovende a fazenda e regressa à pátria. Com ele regressatambém, bem mais rico do que sonhara — capacidadede assumir responsabilidades, lucidez perante a vida,objectivos clarificados e, sobretudo, amadurecimentoindividual propiciador da resolução do seu conflito exis-tencial.

É já em O Terceiro Dia (1938) que o jovem completao seu processo de formação. Regressado à terra natal,depreende que a sua realização não passa por esse es-paço físico. Não renegando as suas origens, não con-segue a interacção com os pais nem com os amigos,apesar das tentativas de inserção. Também por eles nãoé aceite, estranho que se tornou pelos hábitos, pelogosto e pela cultura. Lucidamente conclui: «Ninguém ti-nha coragem de mo dizer: Mas a minha presença erademais ali.» Começa a sentir-se, tal como nos temposde seminário, «cercado dum muro de solidão».

Parte então para Coimbra e compreende que tudo oque faça deve estar ao serviço da humanidade. Porisso, «só na arte de Hipócrates poderia encontrar umaprofissão». Por outro lado, o livre acesso a bibliotecasonde contacta, pela primeira vez, com Antero de Quen-tal, consciencializa-o da sua vocação de escritor. Conhe-ce, ao mesmo tempo, o poeta boémio Alvarenga e é pelo

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confronto de ambos que o eu autobiográfico opta poruma escrita do real que tem como pano de fundo o con-fronto do homem com a sociedade e com Deus. O seuprocesso de formação conclui-se com o início do cursode Medicina e com a publicação do seu primeiro livro.

O Terceiro Dia é insuperável na sinceridade com quefala dos seus insucessos de escritor — «O último livroque publicara fora um fracasso»; dos seus êxitos demédico — o parto de Deolinda; do seu problema reli-gioso — «Um Cristo que, afinal, eu nunca traíra, apesarde muitas vezes o haver negado»; dos descomedimen-tos emocionais — veja-se o caso de Alice; ou da suapersonalidade vulnerável à fragmentação:

E dois opostos viviam dentro de mim. O cam-pónio de Agarez, a caminho da formatura, pragmá-tico, acautelado, instintivamente necessitado deprolongar a espécie; e o poeta, sedento de abso-luto, inconformado com a precariedade das coisasterrenas, insocial e rebelde. Igualmente poderosas,as duas forças exigiam igual aceitação.

Incontornável é a referência feita à revista Vanguarda,de que fez parte, e onde «a inquietação mais inconfor-mada encontrava esperança». Dela disside, posterior-

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mente, porque «nunca valorizara suficientemente a reali-dade», fundando «a revista independente Facho, quemorreu ao nascer». Ao referir-se a esta ocorrência, onarrador vai dando informações da sua atitude poéticae remete o leitor para factos verídicos — colaboração eposterior dissidência da presença e publicação do nú-mero único da Sinal — que lhe conferem o estatuto decomentador da vida. Jamais abandonará este papel,como ocorre na viagem que agora inicia por França eItália com os quase desconhecidos Lopes e Castro,numa revivescência do seu espírito de emigrante.

O Quarto Dia (1939) narra, todo ele, essa viagempela Europa, assumindo o protagonista posturas judi-cativas em relação a tudo com que se depara. Assim, achegada a Espanha e o visionamento do cartaz onde selia «FRANCO ¡Mar Nacional de todos los rios de Es-paña!» causa-lhe uma revolta que só, e aparentemente,foi controlada pela mescla de indiferença e temor dosseus companheiros de viagem. Como forma de con-testação, recorre à escrita, o que, em tempo de aperta-do policiamento, se torna perigoso porque subversivo.O Lopes alerta-o para isso sem sucesso porque, diz onarrador: «não eram os terrores e as ameaças do Lopesque me fariam desistir. […] Nem ele, nem todas as for-

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ças do mundo juntas seriam capazes disso.» Nomescomo os de Lorca e de Unamuno são agora relembra-dos pela coragem mental demonstrada. Aliás, deste úl-timo é manifesta a influência na obra de Miguel Torga.

Entram, com algum alívio em França, mas o «bambotemperamento lusitano reagia tão mal à violência espa-nhola como à serenidade francesa. Em ambos os climasse sentia contrafeito. […] E se do primeiro fugia ater-rado, em silêncio, do segundo afastava-se com igualpressa às asneiras.» Chegados a Itália, a recepção éidêntica à de Espanha: «Mussolini! Noi Tiraremo Di-ritto», propiciando novos comentários ao nosso herói,sempre silenciados pelos seus acompanhantes.

Este périplo pela Europa, que é, afinal, O Quarto Dia,relata um aglomerado de experiências de viagem, rele-vando o eu autobiográfico a panorâmica das ditaduraseuropeias, a ponto de o livro ter sido apreendido, a crí-tica ao esquerdismo contestatário e gasto dos intelectuaisfranceses, a paixão pelos museus e monumentos, agen-tes da cultura que sempre procurou, o confronto deideias sobretudo com a pobreza de espírito e cobardiados seus companheiros de viagem, as impressões docarácter dos povos, as relações amorosas com a ju-goslava Nella, a lembrança longínqua de Marguerite e,

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muito particularmente, a correspondência trocada comos pais, que, continuamente, tentavam desencorajar asua veia de escritor. É, afinal, um prolongar daquele es-pírito do emigrante, cioso de conhecer mundo, massempre com o fito na sua terra natal.

Deste confronto com outras terras e outros povos,parece-me sair vitorioso Portugal, nome com que iniciaO Quinto Dia (1974) e onde se lê, em arrebatamentotelúrico:

Não havia país igual no mundo. Os ares, a terra,a gente… Tudo a condizer… Já sem falar na His-tória, a pedir meças a qualquer outra. Feitos nuncaigualados! Heróis, santos, navegadores… Além dese tratar da nação mais velha da Europa…

É nesta pátria que quer viver, insurgindo-se emboracontra o ambiente político e social e, porventura,questionando-se a si próprio para questionar o mundo.Instala-se, então, em Leiria, por ser perto de Coimbra, deque continuava a fazer «ponto de apoio clínico e respi-radoiro literário». A descrição do ambiente social leirien-se, do seu consultório e das histórias dos seus doen-tes assume aqui protagonismo. Não se pense, contudo,que o escritor desaparece. Bem pelo contrário, pois ao

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longo de toda a obra de Torga, contra tudo e contra to-dos, o escritor prevalece sobre o médico. São longas asmeditações sobre o acto da escrita e é manifesto o pu-dor e a insatisfação com que o assume. É pela mão doDr. Olívio que conhece os arredores e a sociedade deleirienses e (re)conhece a amizade que não o abandonaráem momentos dramáticos. De facto, quando a polícia oprende, depois do último volume do Diário apreendidoporque nele defendia «ideias subversivas», ainda que acausa da prisão fosse O Quinto Dia, na camioneta emque foi obrigado a viajar para Lisboa, ia o Dr. Olívio afolhear o jornal, em sinal de alento e cumplicidade. E emcada paragem da camioneta, um amigo saía e outroentrava: D. Gena, o marido. Olhando para a estradaviu um velho «Ford escalavrado», conduzido por Tomé,«a apoiar aqueles revezamentos». A comovente descri-ção desta viagem que o conduzia aos calabouços daPIDE evidencia, fundamentalmente, um carácter capazde gerar este tipo de amizades que, no momento oportuno,dizem, «num testemunho sem palavras, que não estavasozinho no mundo». O resto deste volume é constituí-do pelas suas vivências na cadeia, de onde se sobrele-vam a ignorância e a hipocrisia. Preso sem explicações,assim foi posto em liberdade e transportado ao seuposto de trabalho por Tomé e pelo Dr. Olívio, dos pou-

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cos amigos fiéis, porque os outros, como o Santos, pre-feriam afastá-lo.

Chegados que somos a O Sexto Dia (1981), o último,porque no sétimo até Deus descansou, encontramos onosso herói, o médico e o poeta, instalado no seu con-sultório de Coimbra que o Mondego ladeia. Aí tentaesquecer a estada na prisão e encontra Jeanne, a com-panheira com quem viria a casar não sem antes a ad-vertir: «Vou tentar ser um marido cumpridor. Masquero que saibas, enquanto é tempo, que em todas ascircunstâncias te troco por um verso.» Apesar dos con-selhos do pai — «deixa-te de escrevedoiros, que é o teumal…» —, os livros sucediam-se e o eu narrador justi-fica assim a necessidade de escrita e respectiva publi-cação, apesar do perigo iminente: «Não me sentia umavocação póstuma. Escrevia para a hora que passava,para o meu tempo.» Sucedem-se as perseguições que opoder instituído lhe fez, bem como à mulher — despe-dido ele do Centro de Saúde de Buarcos, e exoneradaela da Universidade de Lisboa. Mas a vida continuava.Viaja pela Europa com a mulher, aos domingos continuaa cultivar o hábito da caça e, de quando em quando,desloca-se a Agarez. É numa dessas viagens que assisteao funeral da mãe, experimentando «um sentimento decatástrofe». O fantasma da morte, da sua impotência,

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enquanto médico e homem, perante ela, jamais o aban-donaria. É o próprio que o afirma:

Esse sentimento profundo do nada irremediávela que o homem estava condenado, velho em mim,tornou-se obsidiante a partir daí, e agravava a vi-são pessimista do mundo, que sempre tivera, eque a aparência voluntariosa disfarçava.

Revisita o Brasil, matando saudades de outros tem-pos, senhor sempre de um apurado sentido crítico quelhe permite separar as terras dos homens. Também ascríticas à ditadura portuguesa se sucedem — note-seque este volume foi publicado em 1981, logo, já não pas-sou pelos crivos da Censura — de forma livre e quaseobsessiva; e, sem referir nomes, antevemos Salazar nafigura do ditador e Marcello Caetano na de «o novopríncipe», que vinha como «um continuador» quando«era necessário um iniciador». O eu autobiográfico,remetendo-se ao tempo da escrita, sente que a falta deliberdade também o afectou e afirma: «O silêncio à voltados meus livros era agora quase total.» Apesar de tudo,aos poucos, as suas obras apreendidas começaram, com«o novo príncipe», a deixar de estar interditadas. Umaviagem a África propicia-lhe amargas reflexões nos âm-bitos político e cultural.

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Sobre o 25 de Abril, sobre a instauração da democra-cia em Portugal, sobre o abandono das colónias, opinacom desalento:

Sol de pouca dura. Passado o momento de eu-foria, a realidade voltou negra e desalentadora[…]. Numa precipitação de culpados, pusemos fimà guerra sem condições e iniciámos uma descolo-nização insensata. Nenhum dos legítimos interes-ses da nação foi acautelado. […] E foi a derroca-da. Ainda seguros de nós na véspera, acordámosestremunhados num mundo de perplexidades.

Desencantado, o eu isola-se, ciente de que o seu«tempo estava realmente cumprido». E, numa toada dis-fórica, encerra esta Criação que retém os ciclos da vidaonde, à sua maneira, cumpriu a sua missão declarando--se embora pouco animado com ela, e assumindo-acomo obra incompleta: «o mais essencial de mim porexplicitar, as obrigações cumpridas, os afectos gastos,os sonhos acordados».

A Criação do Mundo é, antes de mais, uma capitali-zação de vivências, mas é, concomitantemente, o teste-munho de um eu autobiográfico que se sentiu incapazde «deixar a verdade sepultada no tinteiro, nem a sin-ceridade disfarçada na penumbra das palavras».

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Essa mesma capitalização de vivências, agora em jeitode memória, não como proposta narcísica, antes comoforma construtora da sua história, ou, melhor dito, en-quanto centro da existência, assoma nos dezasseis vo-lumes do Diário (1932-1993), obra de característicashíbridas, em que se funde e confunde toda uma diver-sidade de géneros literários, como dá conta o próprioautor: «Porque sempre considerei os géneros literárioscamisas-de-força complacentes que cada possesso alar-ga à sua medida, nunca me senti apertado em nenhumdeles. Este diário que o diga.»

Recusando o intimismo, por poder comportar os pe-rigos do narcisismo, mesmo assim, considera-o «o úni-co caminho viável de acesso individual à liberdade».Destarte, para além do intimismo inerente ao género,porque «nunca as circumnavegações interiores deixarãode ser aventuras de toupeira no seio da escuridão», oDiário contém lúcidas reflexões sobre acontecimentosdo mundo, apontamentos de viagens, cogitações de ca-rácter político, protestos cívicos, comentários de leitu-ras, desabafos líricos, problematizações metafísicas, paraalém de constantes obsessões metapoéticas…, tor-nando-se «exercício intelectual e oficina de ideias»,num gesto de partilha com o cosmo em «duplo movimen-to de interiorização e exteriorização».

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Assumindo-se poeta — «Passa um rei — é o Poe-ta» —, propõe-se uma longa caminhada em que vai fa-zendo o balanço das suas vivências e, contabilizando--as, também como homem, suporta a tensão inerente àdialéctica eu/mundo. Daqui resulta a conflitualidade dequem, ao longo de anos, obstinadamente se procura,procurando também uma coexistência frontal e coeren-te com toda a humanidade. A essa conflitualidade nãoé, de todo, alheia a lúcida consciência que de si pró-prio tem.

Porque não logra, o poeta, a definição do eu pela in-trospecção, tenta-o através da comunhão com os outrose com o mundo, constituindo, assim, o seu Diário umasúmula de notas heterogéneas, autónomas em si pró-prias, mas que não negam o todo de que fazem parte eque, como escreveu David Mourão-Ferreira, constituin-do-se «por sobrepostos e seleccionados blocos de pe-dra, encontra-se bem longe de ser comparável a um sim-ples amontoado de pedras soltas».

A poesia tem nele papel privilegiado porque é atravésdela que o poeta alcança a elevação ao sagrado. Natu-ralmente sintética, a escrita torguiana encontra na pala-vra poética a depuração plena, viabilizadora da concisãode ideias e de emoções, marca distintiva também da suaprosa, muitas vezes prenhe de poeticidade, e cúmplices,

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ambas, de uma ânsia de plenitude, construtora destedocumento que é, antes de mais, um itinerário humano.

Não é gratuito o facto de o Diário abrir e encerrarcom um poema; muito menos o é o caso de o poema deabertura — «Santo e Senha» — ser um grito de alerta, umcartão de apresentação do eu real e do eu textual aquiconfigurado, de forma mais intensa do que extensa, napostura de poeta, vate de um sonho, símile da realidade:

Deixem passar quem vai na sua estrada.Deixem passarQuem vai cheio de noite e de luar.Deixem passar e não lhe digam nada.Deixem, que vai apenasBeber água de Sonho a qualquer fonte;Ou colher açucenasA um jardim que ele lá sabe, ali defronte.Vem da terra de todos, onde moraE onde volta depois de amanhecer.Deixem-no pois passar, agoraQue vai cheio de noite e solidão.Que vai serUma estrela no chão.

Apesar deste anúncio, deste alerta, a estratégia giza-da pelo autor é a do comedimento e da selectividade

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daquilo que pode ou não interessar ao leitor. O seuDiário está longe de ser uma feira literária com um pal-co de exibições eufóricas ou disfóricas. Abandonando,radicalmente, toda e qualquer herança ostentosa quemarcou a geração presencista, à qual chegou a perten-cer, e negando o tom meramente confessional ao gostoromântico, é logo no III volume que define a sua obra:

De resto um diário não é necessariamente umperpétuo mea culpa. Pode ser um simples memen-to, um exercício espiritual, um caderno de apon-tamentos, tudo o que se queira. […] Pela minhaparte, não sou delator, nem meu, nem dos outros.[…] Da minha pena de artista quero que saia ape-nas aquela intimidade que me parece ser suficien-te para matar a justa curiosidade do leitor devota-do, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhoticesdoentias.

Estas páginas, que pretendem evitar ao leitor «o es-pectáculo de uma exibição confrangedora», são o areja-mento de temas e motivos, aliás recorrentes ao longode toda a sua obra, através dos quais o autor se dá aconhecer, sempre circunscrito à realidade que o cerca.É a coerência consigo próprio e com a verdade que, fa-

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zendo deste Diário o pioneiro do género em Portugal,lhe retira o tom livresco que o podia afastar do leitor,admitindo o próprio autor que «a maior desgraça quepode acontecer a um artista é começar pela literatura emvez de começar pela vida».

Que Miguel Torga começou pela vida, atestam-noestes registos mais ou menos íntimos, mais ou menossofridos, de quem viveu muito em dessintonia com oseu tempo e, porventura, consigo próprio.

A sua relação com a Pátria é cheia de ambiguidades.Se, por um lado, se entusiasma sempre que fala deTrás-os-Montes e, mais especificamente, de S. Marti-nho de Anta, naquele telurismo tão terno que o remetepara uma posição de paridade com as fragas, numarevisitação do mito de Anteu, e se o seu telurismo setorna universal na contemplação não só de todo o solopátrio como também de toda a natureza, por outro, éela quem mais desilusões lhe propiciou, afirmando opoeta: «Descobri Portugal sofregamente em pecado degula. Agora arrasto-me por ele em penitência.» Mas,apesar de todas as desilusões, assume mesmo que«Não queria outra pátria». De facto, os referidos desen-ganos ultrapassam largamente o plano geopolítico parase situarem, muito particularmente, num outro, tambémcultural e humano, onde ganha expressão a ideia do

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iberismo por oposição ao europeísmo que nunca acei-tou como denunciam as suas palavras aquando da ade-são de Portugal à CE: «Somos agora oficialmente euro-peus de primeira, espanhóis de segunda e portuguesesde terceira.»

Também por aqui se vê que o poeta viveu intensa-mente o seu tempo, nunca prescindindo de posturas ju-dicativas em relação aos factos políticos advindos. Des-tarte, são recorrentes referências discordantes ao regimesalazarista ou à integração europeia, revelando tambémdescrença pelo rumo dos acontecimentos subsequentesao 25 de Abril. Olha, ainda com cepticismo, o «plu-ripartidarismo na Rússia», receia as consequências danecessária «reunificação alemã», observa «a farsa doconflito no Golfo», a desarticulação da Jugoslávia,«o calvário do povo curdo», «o folhetim trágico-cómicodo Lusitânia Expresso, na sua ida de protesto e soli-dariedade a Timor», a exoneração do presidente brasi-leiro «por indecente e má figura», a guerra em Angola,e exulta com a reabilitação de Xanana Gusmão que «ati-rou à cara dos juizes serviçais toda a verdade da suarevolta contra a opressão e fidelidade à terra nativa»,para além de um inimaginável etc. de considerações re-lativas à política nacional e internacional, de «umaépoca incapaz de compreender ou tolerar a mais inofen-

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siva opinião tresmalhada, e que se esforça por esmagara liberdade do pensamento».

Tudo isto contribui também para uma certa intran-quilidade do eu, senhor de uma personalidade divi-dida — o escritor-poeta, o homem, o médico — e, portal, agónica. De igual modo se manifesta inconciliável asua faceta de homem da terra com a do intelectual. Daluta entre o instinto e o intelecto, diz Torga: «Li cen-tenas de livros, e continuo a ler. Mas é na cartilha danatureza que aprendo o que à minha inquietação maisimporta.»

Sob forma de contenda se erige a sua relação comDeus, interlocutor privilegiado das suas angústias e re-voltas, a quem se dirige com uma exaltação e uma vio-lência que vai descendo de tom à medida que os volu-mes saem. Assim, a obstinação dos primeiros temposdá lugar a uma não aceitação calma e pacífica. Ateuconfesso, paradoxalmente, todos os anos, no dia 25 deDezembro, faz um poema sobre o Natal como se estefacto fosse, para ele, portador de alguma esperançatransmitindo também a ideia de ritual.

Talvez que, procurando-o, se procure dentro da luci-dez da sua consciência. Todavia, quer do homem, querdo poeta, é o próprio que afirma: «Morro sem sabernada de mim.» Instaura-se assim o conflito consigo pró-

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prio e também com os outros. Um pouco em jeito român-tico, o eu automarginaliza-se, demarcando-se de um vul-gus com quem, claramente, não se identifica. Ao neleprocurar o homem das fragas, apenas encontrou mes-quinhez, vaidade e conformismo. Por tal, o poeta seconfigura como um solitário que convive, essencialmen-te, com a sua própria interioridade.

Também, e quiçá por tudo isto, são recorrentes inú-meras reflexões metapoéticas, erigindo-se o acto da cria-ção como um momento de procura e de dor, mas tam-bém de elevação. Dando maior relevo ao verso que àprosa, porventura por aquele alcançar a concisão que ocaracteriza, Miguel Torga inicia e encerra os dezasseisvolumes do Diário com um poema, a acrescentar a to-dos os outros — verdadeiros momentos de sensibili-dade e grandeza —, insertos ao longo da obra.

A oposição morte/vida é constante no Diário, e se,por um lado, e tal como nos contos, nele regista ver-dadeiros hinos à vida, a verdade é que, à medida quea publicação dos diferentes volumes vai avançando,se torna obsessiva a temática da morte. Sentindo que«a vida é irremediavelmente um dom provisório», eainda que afirme: «Nasci para cantar a glória da vida enão para cronista da humilhação da morte», adianta tam-bém: «Penso e repenso dia e noite na morte», assu-

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mindo assim a sua condição humana, humanizadora,esta, ainda mais, se possível, das suas derradeiras pá-ginas, em que, através de um contido desespero hu-manista, consente que toda «a vida humana é umabreve ou demorada despedida, que começa, de facto,logo à nascença, e acaba aparentemente no dia damorte». O poeta distancia-se e observa a sua decre-pitude física, mantendo um belíssimo diálogo com a an-gústia da morte, que, paradoxalmente, enquanto ateu,sacraliza. Destarte, diz da aprendizagem da morte numacelebração da vida, em que a luta e a paixão pela artee pela ética se sobrepõem à tragicidade dos últimosmomentos, já que sabe que tem uma missão a cumprirporque «os poetas mostram-se sempre como são. Nãopor serem mais sinceros, mas por imposição da própriapoesia.»

Como Sísifo, arrasta a sua pedra até ao derradeiromomento, sendo manifesta uma paulatina transparência,concomitantemente atroz e pungente, com que se vaidespedindo da vida. Falta-lhe, no entanto, qualquercoisa por cumprir. A sua missão de poeta só acabaquando o coração parar. Por isso, no último volume doDiário, afirma sobre esta obra: «Mais do que páginasde meditação, são gritos de alma irreprimíveis dum mortalque torceu mas não quebrou, que, sem poder, pôde até

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à exaustão», procurando, assim, uma reconciliação como destino e com a morte através de uma ética só pos-sível a quem, como ele, entendeu a dimensão da vida eda arte.

O último poema, «Requiem por mim» desconcertapela coragem desmedida de quem nada quis deixar porcumprir; através dele se eterniza, sublimando a sua cons-ternação num hino elegíaco que celebra o belo e que oresgata do seu destino de mortal. Congregam-se peni-tência e catarse, a aceitação da morte surge num pro-cesso de pacificação, através da missão de poeta que,essa, sim, perdurará mesmo até nas imagens de umanatureza triunfante, rumo a uma projecção cósmica.Porque cumpriu esse dever, coube-lhe a dolorosa massublime missão de antecipar o seu próprio «Requiem»:

Aproxima-se o fim.E tenho pena de acabar assim,Em vez de natureza consumada,Ruína humana.Inválido do corpoE tolhido da alma.Morto em todos os órgãos e sentidos.Longo foi o caminho e desmedidosOs sonhos que nele tive.

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Mas ninguém viveContra as leis do destino.E o destino não quisQue eu me cumprisse como porfiei,E caísse de pé, num desafio.Rio feliz a ir de encontro ao marDesaguar,E, em largo oceano, eternizarO seu esplendor torrencial de rio.

Se mais não fosse, mas, com certeza, é, este Diário,para além de uma referência literária, é, sobretudo, umareferência ética, moral e cultural, uma lição de coerênciade uma filosofia de vida apostada na honestidade poé-tica e humana, tomada, esta, como missão.

Considerando agora a poesia, parte dela, como já re-feri, encontra-se inserta nos dezasseis volumes do Diá-rio, e, a partir de 1965, apenas aí. A que antecede estadata figura nas seguintes publicações: Ansiedade (1928),Rampa (1930), Tributo (1931), Abismo (1932), O OutroLivro de Job (1936), Lamentação (1943), Libertação(1944), Odes (1946), Nihil Sibi (1948), Cântico do Ho-mem e Portugal (1950), Penas do Purgatório (1954),Orfeu Rebelde (1958), Câmara Ardente (1962) e PoemasIbéricos (1965). As Publicações Dom Quixote editaram

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em 2000 um volume intitulado Poesia Completa e reedi-taram Antologia Poética, que o próprio autor fizera sairem 1981, dando uma visão globalizante da sua produçãopoética.

A poesia não trai aquele continuum, configurador deum macrotexto, que enforma toda a obra de Miguel Tor-ga. De facto, ela recupera temas e motivos a que tenhovindo a aludir, e afirma-se como um complemento daescrita diarística. Há, todavia, vectores incontornáveisque nunca é de mais salientar.

Quando se refere a si próprio, Torga nunca se auto-denomina escritor, mas, sim, poeta, transfigurando-senum Orfeu Rebelde que, através da poesia, busca a re-denção. Comprometendo-se com a salvação de tudo oque é humano, só através de uma luta obstinada e re-belde poderá ser o Orfeu que, pela palavra poética, ligatodo o universo. A sua intranquilidade resulta da difi-culdade de, qual poeta artesão, encontrar a palavra de-finitiva, bem como da sua aceitação pelos outros, comorefere em «Exame»: «Só em raros momentos / De inspi-ração / Eu consigo o milagre dum poema, / Teorema /Indemonstrável pela multidão.» Assim, o vate possessofrequentemente dá lugar ao poeta insatisfeito semprecom «o mesmo trágico desejo / De dar outra expressão

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ao que foi dito!». Destarte, procura a «palavra, sínteseou imagem» que resgate a sua «Mudez».

Apesar de recorrentes frustrações, a figura do poetanão é a dum desistente, antes a de alguém para quemum momento de possessão poética redime uma vida deluta e procura. Numa visão romântica que o superiorizaao vulgus, de que dão conta poemas como «Majesta-de», é assim que se define em «Ficha»:

Poeta, sim, poeta…É o meu nome,Um nome de baptismoSem padrinhos…O nome do meu próprio nascimento…O nome que ouvi sempre nos caminhosPor onde me levava o sofrimento…

Poeta, sem mais nada.Sem nenhum apelido.Um nome temerário,Que enfrenta, solitário,A solidão.Uma estranha misturaDe praga e de gemido à mesma altura.O eco de uma surda vibração.

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Poeta, como santo, ou assassino, ou rei.Condição,Profissão,Identidade,Numa palavra só, velha e sagrada,Pela mão do destino, sem piedade,Na minha própria carne tatuada.

Desta aguda consciência de uma missão/vocação,recorrem multímodas reflexões metapoéticas, visandosempre a perfeição e a dilucidação da palavra explicativado humano. A ponderação sobre o fenómeno da criaçãopoética torna-se, assim, em Torga quase obsessiva. Deladão conta vários poemas através de metáforas e desímbolos que enformam uma preocupação constante demeditação no acto criativo que se torna, não raro, refe-rente de si próprio. Para além dos já citados, poder-se--ão relevar «A Orfeu», «À Poesia», «Aos Poetas», queenformam «As humanas cigarras», ou o por de maisenigmático «Santo e Senha», em que o demiurgo se de-mite do vulgus procurando as trevas propiciadoras doacto criativo. Identificando a poesia com Deus — «Deusé pura poesia» —, sabe que tudo agora vai «além daspalavras», mas sabe também que deu provas de «poetaardente», e que soube demonstrar que «a verdadeira

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vida vive-se a viver». O poema «Madrigal para depois»enforma uma paixão desgarradora pela poesia, perpe-tuadora da missão do poeta no mundo.

Numa ânsia de aclaração, distingue o poeta e o ho-mem que dentro de si coabitam em permanente inquie-tude. Assumindo-se a poesia como forma absoluta deverdade, deveria revelar o eu profundo. Uma vez quetal não acontece, e ainda que se diga «retratado» nosseus versos, o poeta vive, sem derrotismos exagerados,a condição humana. Por tal admite: «Sim, fui sincerocomo poeta. Mas, como homem? Em que medida con-segui sê-lo, sempre a pautar o comportamento, mesmoquando me desmedia? […] E só me conheço inteiramen-te nos versos que escrevo», acabando por concluir, deforma cordata consigo próprio: «Mas é desse limite queme ufano: / Ser humano / E poeta.»

É o homem/poeta ou o poeta/homem que vivencia oapelo da terra-mãe revitalizador da vida. Por isso, em«Regresso», a natureza festeja a sua chegada — «Can-tava cada fonte à sua porta: / O Poeta voltou!» —, comose, em contacto com ela, se engrandecesse, engran-decendo-a também. Numa recuperação do mito de An-teu, o retorno às fragas, «o dicionário da terra, a gra-mática da paisagem, o Espírito Santo do povo», restituiforças ao homem e ao poeta para que continue a ca-

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minhada. Não se pense, contudo, que tão-só a S. Mar-tinho de Anta é votado o arrebatamento telúrico de Mi-guel Torga. Se é lá que simbolicamente recupera forças,é o país inteiro e, porventura, todo o mundo que oenraízam numa índole que, sendo nacional, é tambémuniversal — «o local é o universal sem paredes», afir-mou. Destarte, a terra em que Anteu tocou, pode ser atransmontana como a brasileira, como a da pátria míticadas suas memórias pessoais, em que o presente dialo-ga com o passado, ou mesmo aquele pedaço de mar queassazmente contempla. Confirmam estas asserções as pa-lavras do próprio em vários poemas e também no Diá-rio XV: «Os que falam do meu telurismo, nem de longeimaginam o fascínio que sinto pelas ondas. Nasci, defacto, em terra firme. Mas sou anfíbio, carnal e espiri-tualmente.»

Deste telurismo universal, dizem também os PoemasIbéricos, onde respira uma pátria que vivencia uma«História Trágico-Telúrica» — «Fado», «A Raça», … —por oposição a uma outra «Trágico-Marítima» — «Sa-gres», «Tormenta»… — e que são, afinal, a mesma.Na senda de Unamuno, aqui evidencia o seu amor ibe-rista, sublimando, na mesma ara, «Camões» e «Cervan-tes» ou «Pessoa» e «Lorca». Em jeito intimista, segre-da em «Pesadelo de D. Quixote»: «Sancho: ouço uma

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voz etérea / Que nos chama… / Ibéria, dizes tu?!… Dis-seste Ibéria?! / Acorda, Sancho, é ela a nossa dama!»

Um não muito diferente pesadelo é por de mais evi-dente no belo poema «Não passarão», onde, retoman-do o famoso grito da Pasionaria na Guerra Civil de Espa-nha, denuncia as transgressões e a privação da liberdadeimpostas pelo Estado Novo. Assim, transfigura a Ibériaroubada a Sancho Pança no Portugal roubado aos Por-tugueses.

Eu social por querer e dever, não recusa posturas ju-dicativas defensoras da liberdade e da justiça social, eé com coragem que escreve páginas de intervenção po-lítica, geradoras da apreensão pela Censura de algumasdas suas obras, ou da sua própria detenção em estabe-lecimentos prisionais. Foi, de facto, a insígnia do incon-formismo em tempos de opressão. Espalhadas por todaa sua vasta obra, estas páginas de revolta são porven-tura mais acutilantes em Cântico do Homem e em Or-feu Rebelde. Se são recorrentes poemas de intervençãoe revolta perante injustiças políticas e sociais como «ArLivre» ou «Há Ratoeiras», atravessa estas obras umaespécie de culpabilização geracional, em que o poeta seinclui, por esta não ter tido uma participação mais acti-va na luta pelos mais elementares direitos humanos.Sempre em toada metafórica, para iludir a Censura, se

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denunciam as arbitrariedades do poder instituído emPortugal e se lamenta a fraqueza dos que não o soube-ram contestar como dá conta «Maceração»:

Peço-te, Vida, que não leves tudo.Dá-nos a caridadeDesta humana ilusãoDe que não foi nossa a cobardiaQue nos perdeu.Humilhados e tristes no caixão,Será mais triste ainda apodrecerSob o peso de verQue nem sequer de nós temos perdão.

O que pede à vida, o que pede aos outros, pedetambém o poeta ao amor. Não sendo obsessiva a te-mática amorosa na produção torguiana, também não énegligenciada em alguns belíssimos poemas. Tal é ocaso de «Certeza», poema de um desamor consciente,ou de «Confidencial» e «Absolvição», paradigmas domistério revelador do jogo de ocultação e desven-damento em que é pródiga a sua poesia. Neste último,a raiva incontida gera um erotismo resgatador de aci-dentais mas recorrentes desencontros. Já em «Evoca-

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ção» e «Espólio», o tempo é o da memória de um gran-de amor, e em «Frustração», como o próprio nome in-dicia, a paixão é gorada pelo poder corrosivo da pas-sagem do tempo, por isso nunca «houve frutos / Dessaprimavera». Todavia, «Prenda de Aniversário» é, por-ventura, um dos poemas mais sentidos. Dedicado àMulher, nele evoca toda uma vivência de amor e decumplicidade de que ficou a lembrança muda «da fo-gueira apagada»:

É o que ficou.A lembrança pereneDo que fomos, sentimos e pudemosNo tempo intemporal da juventude.Ilusões de energia e de saúdeEm cada gesto que já não fazemos,Mas apetecemos.É o vazio de nósCheio de nós.As indeléveis pegadas que deixamosNos líricos caminhos percorridosInvisíveis à vista desarmada.É o que ficou. O calor memoradoDa fogueira apagada.

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Todos os Orientes da imaginação,Visitados,Presentes no arroz quotidianoComido destramenteCom triviais tridentesOcidentais.É o que ficou e ficará, Mulher.A cinza destes versos invernaisDe amor e de tristeza,E a íntima certezaDe que é tudo verdadeO que de nós disserA mudez da saudade.

O eu social convive com um outro, o individual, cujaconflitualidade se configura quase irresolúvel. Insatis-feito por natureza, perfeccionista também, procurarespostas explicativas e objectivas. Daqui advém o seu(re)conhecido conflito religioso. Ateu confesso, apresença do sagrado é recorrente na sua obra. Vejam--se as alusões bíblicas presentes mesmo em alguns tí-tulos — O Outro Livro de Job, Penas do Purgató-rio… —, a recorrência da mitologia cristã, bem comopoemas de que é exemplo «Livro de Horas», em que opoeta se confessa a si mesmo «possesso» dos «peca-

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dos mortais» e das «virtudes teologais», assumindo,assim, a sua dupla condição de anjo e demónio.

Ainda que Torga nunca tenha declarado, como Nietz-sche, que Deus estava morto, vê nele um adversárioque tenta vencer. Em «Desfecho», o desalento peranteum interlocutor mudo é manifesto:

Não tenho mais palavras.Gastei-as a negar-te…(Só a negar-te eu pude combaterO terror de te verEm toda a parte.)Fosse qual fosse o chão da caminhada,Era certa a meu ladoA divina presença impertinenteDo teu vulto caladoE paciente…E lutei, como luta um solitárioQuando alguém lhe perturba a solidão.Fechado num ouriço de recusas,Soltei a voz, arma que tu não usas,Sempre silencioso na agressão.Mas o tempo moeu na sua móO joio amargo do que te dizia…

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Agora somos dois obstinados,Mudos e malogrados,Que apenas vão a par na teimosia.

Assumindo este «tu» as funções de carrasco e cúm-plice, vai dando argumentos ao poeta para afirmaro desejo de liberdade a que o ser humano tem direito.A igualdade entre o humano e o divino é agora ma-nifesta. Não o negando e tornando-o num compa-nheiro de jornada, o poeta mais não faz que avocaruma atitude de profundo respeito. Diria, com Eduar-do Lourenço, que «Deus não é uma palavra morta napoesia de Miguel Torga». O poeta vive, de facto, noseio de uma contradição que o angustia. É ainda omesmo Eduardo Lourenço que acrescenta que essacontradição é «a de um homem que escreve Deus e nãosabe ao certo se pensa Nada. Mas esse Nada o inquietacomo se fosse Deus.» Daí a profunda ambiguidadegeradora do conflito que não oblitera uma veneraçãoantiga, uma religiosidade atemporal. A disputa como Criador, na tentativa de o igualar, exige a auto--responsabilização e o livre arbítrio, sem deixar de sofrera consternação da sua procedência divina. O Deus deTorga é, em última instância, o Homem circunscrito àTerra, conciliador do projecto de Vida da Humanidade;

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daí talvez, os poemas ao Menino Jesus, tornado Ho-mem, que faz cada Natal.

É ainda nesta luta que se desenha o seu desesperohumanista. Só Deus é culpado dos pecados do homemque assim, como Adão, carreia estoicamente o seu des-tino. Destarte, este não se considera culpado, outrossimrevoltado por uma criação imperfeita. Por isso se rebe-la e desafia a divindade, prometendo não trair a suacondição de pecador. Ainda por isso, o seu desesperoé manifesto. A vida é o obstáculo a vencer, mas, paratal, terá que vencer a sua alma aflita de poeta, oriundada consciência da crise dos valores éticos, estéticos,políticos, morais e sociais. Terá que cessar a luta con-sigo próprio para, segundo Ortega y Gasset, poder lu-tar contra os outros.

O manifesto exercício de auto-reflexibilidade remete opoeta para atitudes de elevada conflitualidade consigopróprio de que dão provas poemas como «Tribunal» ou«Guerra Civil». Este conflito individual, gerador igual-mente do desespero humanista, leva a que a temáticada morte seja obsessiva também na poesia de MiguelTorga. Desde jovem este fantasma o perseguia, nãopossuindo, quer como médico, quer como poeta, respos-ta para o sossegar. O seu «velho problema religioso»corrobora o mau relacionamento com a morte, que se

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agrava à medida que a sua idade avança. Todavia, a lu-cidez e a coragem são seu rito, por isso, poemas há queainda ousam o afastamento da morte. Em «Cordial», opoeta pede: «Não pares, coração! / Temos ainda muitoque lutar»; já em «Visita», a ironia enforma esse mesmoafastamento quando, em jeito de sobranceria, comunica:«Bateu a morte à porta e não entrou. / Também a tantoa não convidei.» Aceita então, na dolorosa caminhada,a panaceia que «Viver é ser no tempo intemporal», ten-tando afastar a mais que provável condição humana:«Vida! / Como te quero / Agora que te sei perdida!»Mas tudo segue o seu curso e os próprios títulos dosúltimos poemas são a legenda de uma agonia. Enfrentao «Juízo Final», lamentando os «Longos dias de vidasem motivo», mas nunca abandonando a sua condiçãode poeta, lembra que, como tal, deve morrer «No tor-mentoso mar dos seus pecados». Demiurgo e Homem,sabe que a «hora é de finados» e corajosamente a elase entrega declarando: «Quero ser autêntico até ao fim,e levar comigo as provas de que fui realmente, para meidentificar e credenciar, se tiver necessidade disso, nocéu ou no inferno.»

A obra de Miguel Torga configura, antes de mais,uma coerência inabalável. Através de um estilo desafec-tado e despojado, ela assume-se como um macrodis-

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curso «defensor incansável do amor, da verdade e da li-berdade, a tríade bendita que justifica a passagem dequalquer homem por este mundo». Assim a justificou e,ciente de que «Nem tudo é lei da vida ou lei da morte»,inscreveu o seu nome, de forma independente mas cheiade humanidade, junto dos maiores das letras portugue-sas, erigindo-se, por direito próprio, como uma referên-cia moral e cultural.

Como homem, como médico, como escritor — «É bomisto de ser médico e poeta» —, conservou uma fideli-dade intransigente aos preceitos norteadores da suaconduta de vida: «Ser idêntico em todos os momentose situações. Recusar-me a ver o mundo pelos olhos dosoutros e nunca pactuar com um lugar-comum.» Assu-miu o sentido do dever como missão e condição na aci-ma referida tríade; fez dele uma manifestação constru-tiva do homem — eu individual e eu social.

Deveu-se a Hipócrates e a Orfeu. Mais a este, direi,que àquele. Mas sem as vivências do primeiro, o segun-do teria saído visivelmente empobrecido.

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Colóquio/Letras, n.o 98 (homenagem a Miguel Torga), Lisboa,Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

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COLECÇÃO ESSENCIAL

Últimas obras publicadas:

58. Saúl Dias/Júliopor Isabel Vaz Ponce de Leão

59. Delfim Santospor Maria de Lourdes Sirgado Ganho

60. Fialho de Almeidapor António Cândido Franco

61. Sampaio (Bruno)por Joaquim Domingues

62. O Cancioneiro Narrativo Tradicionalpor Carlos Nogueira

63. Martinho de Mendonçapor Luís Manuel A. V. Bernardo

64. Oliveira Martinspor Guilherme d’Oliveira Martins

65. Miguel Torgapor Isabel Vaz Ponce de Leão

2. Antero de Quentalpor Ana Maria Almeida Martins(3.ª edição, revista e aumentada)

9. Fernando Pessoapor Maria José de Lencastre(reimpressão da edição de 1985)

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Esta reimpressão foi executadana

Imprensa Nacional-Casa da Moedacom uma tiragem de quinhentos exemplares.

Orientação gráfica do Departamento Editorial da INCM.

Acabou de imprimir-seem Abril de dois mil e sete.

ED. 1007792ISBN 978-972-27-1223-1

DEP. LEGAL N.º 191 910/03

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MIGUELTORGA

IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA9 7 8 9 7 2 2 7 1 2 2 3 1

ISBN 978-972-27-1223-1

Isabel Vaz Ponce de Leão

O essencial sobre

MIGUEL TORGA

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