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HISTÓRIAS BRASILEIRAS MIL&CADAS VOLUME 1 2ª EDIÇÃO REVISTA José NOGUEIRA Sobrinho Tenente-Coronel Especialista em Avião RECIFE – MAI 2016

Mil&Cadas - Histórias Brasileiras - José Nogueira Sobrinho

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HISTÓRIAS BRASILEIRAS MIL&CADAS

VOLUME 1 2ª EDIÇÃO REVISTA

José NOGUEIRA Sobrinho

Tenente-Coronel Especialista em Avião RECIFE – MAI 2016

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HISTÓRIAS BRASILEIRAS

José NOGUEIRA Sobrinho MIL&CADAS

Volume 1 2ª Edição Revista

DEDICATÓRIAS

Para Isis e Gabriel. Para Mirian, Leonardo e Vinicius. Para Lili e Renata. Para Seu Napoleão, Dona Naninha, Ana, Zélia, Beta, Aeudson, Mary e Maria. Para todas as mulheres do mundo. Para os companheiros da Força Aérea.

Capa: Caricatura do autor (Trigueiro – 2005) Contatos com o autor: [email protected]

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SUMÁRIO Da Obra e do Autor – Orelhas – 5 Quarta Capa – 6 Caro Leitor – 7 Apresentação – 8 Considerandos – 9 MIL&CADAS Voo de Desopilação – 11 Ataque ao Farol de Touros – 12 O Ofício de Voar – 15 Taxiando o “Mata-Sete” – 17 Código Alfanumérico – 19 BCR – 20 Diário de Bordo – 21 Nem Brigadeiro! – 22 O Cinema da Base – 23 Voo de Saco – 24 Chateaubriand – 25 Valdemira – 26 Buraco Cheiroso – 27 Primeiro Voo – 28 A Verdade – 30 Incidente em San Juan – 31 Uma Noite nos Afonsos – 33 Nome de Brigadeiro – 34 Heróis Brasileiros – 35 Lixo Atômico – 37 Brigadeiro Mota Paes – 38 QI – 39 O Sermão – 40 Charlie Uniform – 41 Nos Tempos do AI-5 – 42 Mordido do Porco – 44 Dona Naninha – 45 Ataque ao Solo – 46 Samurai – 47 Lema da Turma – 48 Professor Pardal – 50 Chibatinha – 51 Sargento Federal – 52 2

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Cupim – 53 Madame Mum – 54 Comportamento – 55 Comunista – 56 Jaguá... o Quê? – 57 Januário Bravo – 58 You Ramp Kula? – 59 Caça & Pesca & Cia – 60 Clube da Aroeira – 61 Galego D’Água Doce – 63 Troféu Camburão – 64 Requerimento – 65 Amigo é Bom – 66 Promoção por Milagre – 67 Caneco Amassado – 68 O Milagre de Fazer Chover – 69 Cavalo Inteligente – 70 O Bêbado – 71 O Equilibrista – 72 História de Uma Canção – 73 O Peso da Torre – 75 Baseball – 76 Saudosa Maloca – 77 Exercícios de Guerra – 78 Herói de Combogó – 79 Ecos da Guerra – 80 A Bênção, Meu Padim – 81 Casamento Abençoado – 82 Historinha – 83 Julieta – 84 Velame! – 85 Moacir – 86 Soldados e Oficiais – 87 Ossos do Ofício – 88 Corredor Livre – 89 Pane de Impedância – 90 Chupeta – 91 Arapuca – 92 Babacômetro – 93 “JS” – 94 Pomba, Tchê! – 95 Sabotagem – 96 Puxa! – 97 3

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De Bronze – 98 Esquadrão Hiena – 99 Tango Delta – 100 Mão no Escovão – 101 “Dono” do Esquadrão – 102 “Dono” da Manutenção – 103 Flap! – 104 Colt .45 – 105 O Carona – 106 “Paraíba” – 107 Esquadrão Poti – 108 Paná... Vinte! – 109 Impedímetro – 110 O Praça e o Marquês – 111 Dom Troncho – 112 O Sargento Zé Pretinho – 113 Abacate Voador – 114 (In)certeza no Galeão – 115 Uma Noite no Galeão – 117 Noites de Abril no Galeão – 118 Linha 328 Castelo-Bananal – 119 Lavagem Cerebral – 121 Tribunal Revolucionário – 123 Ideologia, Máquinas e Motores – 124 Prova de História – 125 Carta “C” – 126 Casa-Grande & Senzala – 127 Estrelas ou Divisas? – 129 Ou, da Gravata! – 130 Metáfora – 131 Oficial de Fandango – 132 Quando Eu For Ministro! – 133 Admirável Mundo Novo – 134 Brigadeiro da Graxa – 135 Romaria – 136 CURTAS Histórias Curtas – 138/179 GLOSSÁRIO Glossário– 181 TOTAL: 465 histórias: 111 pequenas 354 curtas 4

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DA OBRA E DO AUTOR (Orelhas) boa prosa é uma tradição brasileira que acontece, desde o conto oral, na soleira do alpendre das casas de fazendas, no interior do país, ao portão das casas nos subúrbios das metrópoles onde ainda se conserva esta tradi-ção. José NOGUEIRA Sobrinho se utiliza de um eficaz recurso literário para contar suas histórias. Além de nos presentear com o sabor das tradições brasileiras, bem ao gosto da nossa gente, oferece, ainda, um tempero de civismo e de humor; civismo, porque traz notícias em suas páginas de uma Instituição amada e respeitada pelo nosso povo: a Força Aérea Brasileira; humor, pelo fato de que muito das suas linhas nos arrancam sorrisos espontâneos que fazem bem à nossa alma. É, portanto, uma lei-tura recomendada para todos os nossos momentos, como se fos-se um vinho que se degusta, seja nas horas de um brinde ou nos momentos de reflexão. São histórias de sua vida, resgatadas de experiências na caserna, mas que aguçam o interesse de todos os que apreciam uma boa leitura. Fala de aviões e de solenidades, de nomes e de fatos que envolvem a atividade aeronáutica militar com especial sabor de «contos», histórias brasileiras, que se inserem num cenário tão particular quanto se configura sua trajetória de vida. Uma vida que se inicia, em 1957, como soldado da Aeronáutica, chegando, em 1988, a Tenente Coronel Especialista em Avião; a essa jorna-da, se acrescenta mais um nobre título: o de um escritor que soube recolher os fatos da existência profissional para o gosto popular brasileiro num esmerado estilo literário. Ubirajara Carvalho da Cruz – Coronel Av Ref Editor (1ª edição)

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4ª CAPA: ada momento da sua vida na aviação militar é lembrado nestas páginas pelos contos de José NOGUEIRA Sobrinho. Assim, a prosa cumpre, mais uma vez, sua função social, traduzindo em arte literária as mais notáveis manifestações subjetivas do espírito humano. Essas “Histórias Brasileiras” se inserem em um cenário que desperta o interesse pelo nosso folclore, pelos nossos valores e tradições, além dos costumes que moldam a vida de uma das nossas mais queridas instituições – a Força Aérea Brasileira – cuja missão se estende em cada cantinho de nossa terra no exercício de garantir a soberania do espaço aéreo do Brasil. Este livro não é apenas uma expressão da arte literária, mas, também, e sobretudo, é um registro de amor à aviação militar de nosso país – a FAB – de tantas lutas e glórias em nossa terra, Instituição acima dos homens e das mulheres que a integram. – Ubirajara – Cel Av Ref 6

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CARO LEITOR: ocê tem a liberdade de compartilhar esta obra (co-piar, distribuir e transmitir), sob as seguintes condi-ções: 1) a obra deve ser creditada ao autor; 2) o uso da obra deve ser não comercial; 3) você também não poderá alterar, transformar ou criar em cima desta obra. As condições acima são dispensáveis quando: 1) autorizadas pelo autor: 2) a obra ou qualquer dos seus elementos estiver “em domínio público”; 3) quando não prevalecerem em confronto com outros di-reitos, como: a) limitações e exceções aos direitos autorais; b) os direitos morais do autor; e c) os direitos que outras pessoas podem ter sobre a obra ou sobre a utilização da obra, tais como direito de imagem ou privacidade. Na reutilização ou distribuição da obra, é preciso deixar claro a terceiros os termos da presente licença.

REPRODUZA E DIVULGUE

OBRA EM PROGRESSO ÚLTIMA REVISÃO:

Abril 2016

“Poeira da memória, da memória dos homens/ que irá um dia perder-se no universo.” Joaquim Cardoso – poeta. “O passado é o que ficou do que passou.” Tristão de Athayde

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APRESENTAÇÃO dito popular nordestino “O caso eu conto como o caso foi”, mostra que se conta o caso e não o causo. De 1957 a 1988, fui soldado (S2/S1), graduado (3S) e oficial (de aspirante a tenente-coronel). As histórias de MIL&CADAS versam sobre a vida nos quartéis, nos hangares, nas pistas, nos aviões da Força Aérea, e falam de homens e mulhe-res, e não da Instituição. Contadas com o “molho” que dá leveza ao texto, sem inventar e sem fugir dos fatos, cuidou-se, ainda, de preservar nomes, exceto quando autorizados, necessários à clareza ou no caso de não causarem constrangimento aos cita-dos, conforme regras usuais. Muitas histórias se passaram faz tempo, mas só foram contadas depois de cuidadoso exame das deduções feitas para ligar os fragmentos da memória. E sempre que possível submeti-das à apreciação dos seus protagonistas. MIL&CADAS conta a história que a história oficial não con-ta, enveredando pelas brincadeiras, os apelidos e situações sur-preendentemente reveladoras da verdadeira alma castrense, com as suas grandezas e as suas pequenezas, próprias da condição humana, presenciadas, vividas, lidas por mim ou contadas por outros, e aqui adaptadas. E a par de tudo isso, e ao contrário do que se pensa, mili-tar tem senso de humor e não é diferente de ninguém: “A farda não abafa no peito do soldado o cidadão.” – Osório. Por fim, uma reflexão sobre o que se diz do que se conta aqui para ajudar a entender melhor como funciona o garimpo da memória na difícil arte de contar histórias: “Há, nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se perdem, outros que a imaginação inventa para suprir os perdidos, e nem por isso a história morre.” – Machado de Assis. José NOGUEIRA Sobrinho Tenente-Coronel Especialista em Avião Aspirante EOEIG 1969 Recife – 2013. 8

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CONSIDERANDOS vida é aquilo que acontece enquanto você está planejando o futuro” (John Lennon). Já para a atriz americana Ava Gardner, “a vida seria ma-ravilhosa se soubéssemos o que fazer com ela”. Ora, a vida é maravilhosa exatamente porque acontece e não sabemos o que fazer com ela. E por razão simples: vivemos o tempo presente de acasos e escolhas, e não o passado, onde mora nossa memória e identidade, e muito menos o futuro, apenas uma possibilidade. Na verdade, queria ser engenheiro da Petrobras e nunca imaginei ser soldado (BARF, 1957) e acabar atraído pelo encan-tamento dos infindáveis segredos da aerodinâmica e da mecânica aeronáutica, as coisas mais belas do mundo, depois das mulhe-res. Até então, só se podia estudar essas matérias na Força Aé-rea, e mergulhei de cabeça nessa escolha, que o acaso apontou e o tempo, senhor de tudo, confirmou o acerto. Por isso, evito di-zer, como Fernando Sabino, que “o diabo desta vida é que entre cem caminhos, temos que escolher apenas um e viver com a nostalgia dos outros noventa e nove”. Pois o que me tocou o co-ração adolescente foi o som dos motores, a mecânica tanto en-genhosa quanto simples e bela de antigamente e a mística da Fortaleza Voadora B-17, além da farda cáqui, depois azul da cor do céu, da Força Aérea. Foram muitas as canseiras para pequenos grandes avanços nos mistérios do avião revelados pela tecnologia. Não é algo que cai do céu, nem se consegue com diletantismo e voluntarismo guiados, quando muito, pelo precário domínio dos fenômenos mais imediatos e observáveis, o lado fácil do saber, que Aristóte-les classificou como enganoso. Há uma ideia comum, sem pai, de que todo mundo tem uma vocação, mas a carreira é construída a partir de oportunida-des, principalmente em um contexto de sobrevivência, de vez que a realidade está sempre à frente do simples desejo. Nesse quadro, ficando tudo o mais por minha conta, devo à FAB a opor-tunidade do meu feliz encontro com a graxa. Incorporando-me à Força Aérea Brasileira...

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MIL&CADAS

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VOO DE “DESOPILAÇÃO” FPM – Natal – 1970. Segundo Tenente Especialista em Avião, solteiro, chefe da Manutenção (54 aviões T-23, 25 T-37, 2 T-6 D e 2 C-45 “Mata-Sete”), eu morava no quartel com o “bandão” de tenentes, também solteiros, instru-tores de voo. Voos de “desopilação”, na gíria dos instrutores, eram aqueles em que eles viajavam para cidades próximas, cada um no seu avião, como prêmio, e para fugirem um pouco da du-reza da instrução. Certa manhã recebo telefonema de um desses instrutores, pousado em Mossoró com quatro T-23 (Uirapuru), pedindo para que eu não fosse almoçar nesse dia (hora em que não há nin-guém na pista e nos hangares) a fim de aguardar a chegada da esquadrilha com esquema pronto para ocultar a indisciplina de voo cometida por um dos pilotos. O piloto, em rasante sobre o campo, “trisca” a ponta de uma das asas do seu avião na escada de apoio aos aviões de carreira e milagrosamente rasga apenas 5 cm do alumínio de revestimento do aileron (5), mas sem maiores danos, segundo laudo do Aeroclube local. Com o tenente Marco Antônio, intendente de suprimento, chefe do Projeto T-23, retirei do armazém um aileron sem dar baixa do estoque (para não deixar pista do “crime”), e quando a esquadrilha pousou, fiz a troca (com checagem estrutural com-pleta) sem abrir a Ordem de Serviço (OS) e lançar a “pane” no Relatório de Voo, disponibilizando o avião. O aileron, recuperado pelo setor de estruturas, também sem “OS”, voltou para o estoque e ninguém ficou sabendo de nada, nem o Esquadrão de Instrução Aérea (EIA), que puniria os pilotos, nem a Divisão de Apoio Militar (DAM), que me puniria. Isso porque as OS, abertas e controladas por mim, geravam rela-tórios diários de Suprimento e Manutenção lidos todos os dias pelos meus superiores, Maj Holleben (Chefe da DAM – Divisão de Apoio Militar) e Cap Bambini (Chefe do Material). “A Esquadrilha é um punhado de amigos”...

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ATAQUE AO FAROL DE TOUROS FPM (*) – Natal – 1970. O Farol de Touros, ou Farol do Calcanhar, sua designação oficial, na praia de mesmo nome, fica no Município de Touros, na Costa Branca do Rio Grande do Norte. Como relatam os protagonistas desta história, em 1969, o 1º/4º GAv (*), BAFZ, formou vinte e dois jovens pilotos de caça (1), e com a criação, no ano seguinte, em Natal, do Centro de Formação de Pilotos Militares (CFPM), dezessete deles foram designados instrutores de jato T-37C da nova unidade. No primeiro semestre de 1970, uma parte dos cadetes do 1º ano, (EPCAR-67), foi transferida para o CFPM, a fim de receber a instrução primária de voo no Uirapuru T-23, a outra parte foi fazer o mesmo nos Afonsos (2), no Fokker T-21, enquanto os jovens pilotos de caça foram mandados para a AFA, Pirassununga, a fim de ministrar instrução de jato T-37C aos ca-detes que se formariam em dezembro daquele ano. No início do segundo semestre, porém, reuniam-se em Natal todos os cadetes do 1º ano, mais os jatos T-37C e seus respectivos instrutores, para o início da instrução de voo avançada. Na AFA, os jovens pilotos de caça, após a instrução diá-ria, decolavam com quatro jatos T-37C para o que eles chama-vam de “voo da alegria”. Era uma hora de voo local, quando en-tão podiam pilotar, coisa que a instrução aos cadetes pouco per-mitia. Em Natal, o “voo da alegria” lhes foi negado, sob alegação de falta de experiência para acrobacias em voo de grupo. Então surgiu entre eles a ideia de aproveitar entre cinco e dez minutos finais de cada instrução de 1h10 para reunir dois aviões. Para os encontros, estabeleceu-se uma frequência em VHF e códigos das “esquadrilhas”. Naqueles poucos minutos faziam manobras, como oito preguiçoso, touneau-barril, looping e evoluções em ataque dois (3) e “cobrinha”, adestrando-se e motivando os cadetes para o voo de caça e as fases futuras da instrução. Depois de algum tempo, já “exímios líderes e alas de elemento” (dois aviões), evo-luíram para voos de quatro aviões (grupo), cujo ponto alto era o looping com desfolhamento ascendente fechado em quádruplo cruzamento e, claro, o combate aéreo. Instrutores de T-37, não caçadores, também criaram as suas esquadrilhas, como a Bode 12

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Preto e a Macaco Roxo, apelidos jocosos dados por eles mesmos referentes às dificuldades naturais que enfrentavam nas evolu-ções do voo em aeronaves a jato. Num fim de tarde, reuniram-se quatro jovens caçadores e simularam ataque ao Farol de Touros, típico emprego tático da aviação de caça, como faziam nos voos de ataque número 1 (3) com o TF-33 no litoral cearense. Depois do ataque, regressaram à base na proa Sul, com evasivas rasantes, variações constantes de atitude, curvas de grande inclinação, ataques a alvos de opor-tunidade e recuperações às vezes girando touneaux, de forma a evitar forças G (gravidade) negativas, consideradas má pilotagem na aviação de caça. Só no dia seguinte souberam que foram avis-tados por um capitão, também instrutor, lotado na Seção de O-perações do Esquadrão de Instrução Aérea, como auxiliar de O-perações, que tentou anotar os números dos aviões, sem suces-so, devido à natureza do voo de fuga e evasão, após o ataque. O comandante do esquadrão de instrução aérea, em reu-nião com todos os instrutores de jato, pediu que os infratores se apresentassem. Para surpresa, além dos quatro esperados, mais um caçador também se acusou. Número três da esquadrilha “Ín-di”, sem que os outros quatro soubessem, tentara reunir como número 5, durante o ataque, mas quando percebeu que havia mais uma aeronave no circuito (a do capitão de Operações), a-fastou-se e alertou a “esquadrilha” sobre o “intruso”. Os cinco foram punidos com rigor em virtude de dois an-tecedentes de indisciplina de voo, um esclarecido e o outro não, reportados pelo Comandante do CFPM. No primeiro, dois aviões reuniram-se em elemento e antes de pousar fizeram uma passa-gem baixa, próximos e paralelos à arrebentação da Praia do For-te, mais ou menos um quilômetro e meio à frente da residência do comandante, também situada na praia. Consta que este avis-tou os dois aviões e telefonou para o Centro, possibilitando a i-dentificação e punição dos tenentes. No segundo, num sábado de manhã, um T-37 fez voo rasante sobre a Praia do Forte, tendo passado sobre a residência do brigadeiro comandante, em alta velocidade, já na proa da perna base (4) e autorizado para pou-so, situação que livrou o piloto de ser identificado. Podia estar fazendo apenas passagem baixa sobre a praia, não se podendo afirmar a alegada intenção de afronta ao comandante, pois a re-sidência oficial deste era mais uma entre tantas casas, naquele trecho. Na época, não se teve conhecimento de nenhum outro “voo da alegria” naquela área. 13

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Da mesma forma, o episódio da esquadrilha punida pelo ataque ao Farol de Touros não passou de simples violação, sem qualquer outra conotação, mas, apesar de lenda, a versão do rasante intencional sobre a casa do brigadeiro comandante, im-putada à esquadrilha, sobrevive há mais de quarenta anos. E como alguns dos pilotos reivindicavam transferência para unida-des de caça, suspeitou-se que a intensificação de atos de indisci-plina de voo comporia ações de confronto deliberado. No entanto, extravasamentos, como esses, são comuns entre jovens aviado-res, ávidos por aventuras, e feitas longe dos olhos dos superio-res, que não perdoam quando surpreendem subordinados desafi-ando os regulamentos militares. Desafios motivados por sonhos que não cabem na compreensão dos chefes, mas que são o mo-tor do mais puro espírito “Senta a Pua” dos pilotos de caça. (*) No glossário, as siglas do livro, além dos postos e gra-duações na FAB. E indicados por números entre parênteses no decorrer do texto, o significado de terminologias técnicas e ou-tros. 14

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O OFÍCIO DE VOAR avião C-47 2086, do antigo Comando Aerotático Naval (CATNAV), ficava sediado no Santos Dumont. Dos seus tripulantes, o mais moderno entre os avia-dores era o capitão Próspero Punaro BARATTA NETO, já falecido como coronel, ex-exilado político, por ter participado da revolta de Aragarças, e por isso mesmo, eterno insatisfeito com os rumos do Brasil; e entre os mecânicos, o 3S QAv José Batista LEANDRO, atualmente na inatividade como tenente-coronel especialista em avião, de minha turma (EOEIG – Esp Av – 1969), profissional brilhante, e que me contou esta história. A condição de mais mo-dernos os colocava constantemente no ar, pois toda “boca pobre” era com eles, nascendo daí, por afinidade, grande amizade, con-fiança e cumplicidade profissional entre os dois. Foi assim que, em uma ensolarada manhã de sábado, de-colaram juntos para mais uma missão: transportar de Belo Hori-zonte para Curvelo caravana de deputados federais e estaduais mineiros. Missões, como essa, irritavam profundamente o capi-tão, mas a chegada em Curvelo o deixou ainda mais desolado. A “comitiva” foi recebida pelo prefeito, e os puxa-sacos de sempre, que os levou diretamente para a melhor churrascaria da cidade, convite também feito aos tripulantes e aceito pelo major coman-dante do avião e pelo RT-VO (telegrafista de voo). Os dois amigos ficaram debaixo da asa do avião almoçando lanche de bordo: “Não podia”, disse o capitão, “aceitar o convite dessa corja de aventureiros da política”. Durante o “almoço”, conversa vai, conversa vem, o capitão contou que tinha um sonho, só que, para realizá-lo, “preciso da conivência de um desajustado, como eu, um comparsa”. E abriu o jogo: decolar com o C-47, subir a 10 mil pés na vertical de um lugar seguro, embandeirar (6) os dois motores e planar (7), “mas como fazer isso?” Leandro disse que tinha a solução e topava ser parceiro de aventura. Bastava decolar do Galeão, onde o C-47 fazia as revisões, só os dois, para voo de experiência depois do expediente, afastando olhares curiosos, e aproar SBNY. Como aluno do Aeroclube de Nova Iguaçu (NY), e morador de São João de Meriti, conhecia cada palmo daquele chão. Discutidos e aprovados os detalhes da missão, restava a-guardar a oportunidade de executá-la. Não demorou muito: tan-ques (*) com apenas 1h30 de autonomia (mais ou menos 150 15

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galões), pista 32 do Galeão (8), motores a 2750 RPM (rotações por minuto) e subida quase na vertical na proa de NY, e em pou-cos minutos eram atingidos os 10.000 pés sobre o Aeroclube. Os dois sabiam o que fazer e ficaram em absoluto silêncio. Nessa altitude, tinham como alternativas, no caso de dar algo errado, a pista dos Afonsos e a 14 do Galeão. Após 720º de giro sobre a pista do Aeroclube e proa de volta para o Rio, Barata Neto acio-nou o “passo bandeira” (6) do motor esquerdo. Feitas as devidas correções, foi a vez de Leandro fazer o mesmo com o motor direi-to. E começaram a flutuar. “Cara, foi uma sensação indescritível. Era o Paraíso!”, disse-me Leandro. Ao cruzarem os 6.000 pés, deram partida nos motores e aproaram a pista 20 do Santos Du-mont, onde pousaram em segurança, apertaram-se as mãos e guardaram segredo do feito, que recordavam quando, já na re-serva, encontravam-se no Clube da Aeronáutica para um chope amigo. História maravilhosa de gente que conhece o ofício (o seu ofício) e não os truques do ofício, e por isso mesmo faz a diferen-ça e a grandeza da FAB e do Brasil. (*) C-47: Transporte bimotor, quatro tanques de combustível, 200 galões cada, num total de 800 galões, propiciando autonomia má-xima de oito horas de voo à velocidade cruzeiro de 270 km/h. Tripula-ção: 1P (1º piloto); 2P (2º piloto); MC (mecânico de voo); e RT VO (ra-diotelegrafista de voo). 16

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TAXIANDO O “MATA-SETE” “Há dois tipos de pessoas que não interessam a uma boa empresa: as que não fazem o que se manda e as que só fazem o que se manda.” – Henry Ford FPM, Natal, maio de 1970. O “Mata-Sete” (9) do Co-mando (bimotor C-45 1354), pilotado pelo major Hol-leben, dá troca de motor em Uberlândia. Tenente che-fe da Manutenção fui para o Parque de Aeronáutica dos Afonsos (Rio) com a equipe de troca e a missão de “me virar” em um mo-tor e acertar com o Comando de Transporte Aéreo (COMTA) para nos transportar (equipe e motor, mais equipamentos fornecidos pelo Parque) para Uberlândia. Tudo resolvido, em 19 de maio decolamos no C-47 2015, pilotado pelo Cap Moral. Do pequeno prédio do aeroporto, onde fomos deixados, vimos o C-45 a 1 km de distância. Como não havia meios para rebocar o avião, o sol do Triângulo Mineiro cas-tigando, o estacionamento livre e sem movimento, muito traba-lho pela frente e necessidade de ganhar tempo, chamei o 1S MAv Figueiredo para me ajudar a taxiar (10) o “Mata-Sete” para as proximidades do prédio do aeroporto, onde havia banheiro, água, café, lanche. O taxi foi complicado por dispormos de um só motor, obri-gando-nos a uma briga constante com os freios e a manete de aceleração, dificuldades que se somavam aos pneus-balão desca-librados, o “molejo” do trem de pouso e a bequilha (11) lá atrás, prejudicando a visão dos “pilotos”, além da falta de prática. Mas foi bem feito. Pronto o avião, avisei Natal via fonia do destaca-mento, onde deixei o motor avariado e o equipamento, para transporte e entrega, pelo CAN, ao Parque dos Afonsos. Quem chegou para levar o avião de volta foi o próprio ma-jor Holleben. Minutos antes da decolagem, diante da equipe em forma, e praticamente me acusando, ele questionou: “Tenente, deixei o avião lá embaixo. Como é que ele veio parar aqui?” “Empurrado, major”, respondi. Se tivesse me perguntado por quem, eu teria dito que pelo vento trator da hélice do motor 1. Como não perguntou... Não menti. À moda de Sto Agostinho, fiz uma “restrição mental”. O “fora-de-forma” para o embarque seguiu-se de inusita-da comemoração dos graduados, e aí percebi o valor de se traba- 17

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lhar em equipe, da lealdade, da cumplicidade (não confundir com promiscuidade, permissividade) entre o oficial e a tropa. Mas, com isso, notando-se claramente em seu semblante, o major ficou ainda mais desconfiado. O sistema (12) não compreende que, nesse campo, não há meio termo: o oficial é ou não é ofici-al, e quem define isso são duas coisas em conjunto: as atitudes do oficial e a política (sem aspas) de pessoal. A disciplina, excelente meio de conjugar esforços, não po-de ser tratada como um fim em si, quando usada pelo chefe para tolher iniciativas ou pelo subordinado para fugir das responsabili-dades. Consta da literatura militar que Frederico II da Prússia, re-criminando a falta de iniciativa de certo comandante de batalhão, ao ouvir a justificativa de que apenas cumpria ordens teria decla-rado: “O Rei não faria do senhor um oficial se imaginasse que não saberia quando descumprir ordens”. Diz-se que há referência a esta frase em uma parede da Academia Militar alemã. Clausewitz também afirma que, sob certas circunstâncias, a consciência do oficial fala mais alto do que a obediência cega. 18

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CÓDIGO ALFANUMÉRICO FPM, Natal, 1970. Com a desativação da Base Aérea de Natal e criação do Centro de Formação de Pilotos Militares (CFPM), o número de oficiais do efetivo dis-parou. Além do comandante, agora brigadeiro, triplicou o número de oficiais superiores e de capitães e tenentes instrutores. Com o inusitado aumento de oficiais superiores, o baixo cle-ro (13) da graxa concluiu que a situação pedia cuidado. Como, entre nós, precisávamos saber e, vez por outra, citar quem era quem sem nos expormos a ouvidos bisbilhoteiros, propus a adap-tação do código alfanumérico (14) de Suprimento Técnico, abaixo descrita, e baseada em chistes nordestinos, logo aprovada. O código dava a posição hierárquica, e por antiguidade, de todos os oficiais, sem citar nomes, da seguinte forma:

Chefe – o comandante; Có-Chefe – o subcomandante; Chefe-Cocô – o terceiro mais antigo; Cocô-do-Chefe – o quarto mais antigo. E na sequência, os Embola-Bostas (EB) e seus traços: EB-1 – o quinto mais antigo (Embola-Bosta traço 1); EB-2 – o sexto mais antigo (Embola-Bosta traço 2); EB-3 – o sétimo mais antigo (Embola-Bosta traço 3); e

assim por diante, até o oficial mais moderno.

Quando o inusitado apontava para determinado oficial, este recebia um código reforço, como, por exemplo, CCM (Cabelo de Cu de Mocó), BP (Boi Pintado), BCR (Boi do Cu Riscado), BTL (Boi da Testa Lascada), CB (Cu de Bronze). Do capítulo da psicologia e sociologia dos apelidos, essas brincadeiras constituem atributo importante do equilíbrio psicos-social da tropa, nem sempre levado em conta.

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B C R FPM – Natal – anos 1970. O major, durão e, virtude de poucos, leal, reclamava de tudo com a voz um tom (às vezes dois, três) acima da simples conversação. O problema é que fazia isso na frente da tropa, obrigando o tenen-te, aos poucos, a reagir, até chegar ao nível desrespeitoso (de ambos lados) do bate-boca, que levou o tenente a dizer para o major que não era seu empregado, que trabalhava para o Brasil e para a Força Aérea, e acabou sendo expulso do hangar. Morador do cassino (15), o tenente dirigiu-se para lá, no aguardo da punição e do pedido de transferência, que certamente faria, citando os fatos. No dia seguinte, com planos de passar o dia na praia de Ponta Negra, acordou tarde, e quando tomava café no bar do cassino, o telefone tocou. Era o major, com voz de “sopa grossa”, mandando o tenente voltar para o trabalho. Tem que tirar o chapéu: o major tanto dava tranco, como aguentava. E porque dava tranco adoidado, ficou conhecido como Boi-do-cu-riscado (*), ou BCR, o seu código reforço.

(*) Na boiada em deslocamento, tem sempre um touro que con-funde o touro à sua frente com uma vaca e tenta cobri-la. Naturalmente o touro assediado se esquiva (quando não, vira Boi Manso ou Boi-do-cu-branco), mas não escapa de ter o pelo do traseiro queimado e, desse modo, riscado pelo “sabugo” do outro. Um dia, porém, e essa é a moral da história, apesar de brabo e arisco, o Boi-do-cu-riscado vacila e... já era! 20

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DIÁRIO DE BORDO ia 06 de agosto de 1970, PAMA-AF, Rio. Saindo de inspeção, recebi o C-45 1354 “Mata-Sete”, do Co-mando do CFPM, Natal. Depois do voo de experiên-cia, feito por mim e um piloto do Parque, pousamos no Galeão, onde entregaria o avião a determinado oficial superior do CFPM, para viagem de volta a Natal, mas não o encontrei. Esse oficial tinha como código-reforço as letras BTL – Boi da Testa Lascada (vide a história Código Alfanumérico), porque tinha a singularidade de, ao franzir a testa, apresentar um grande sul-co vertical do prolongamento do nariz até os cabelos da cabeça, quando o normal são dois ou três sulcos ao longo da testa. Dia 07, BAGL, Rio, cinco horas da manhã. Dormindo no ho-tel de trânsito, apenas de cueca, acordei com alguém me puxan-do pelo pé e xinguei. Era o tal oficial superior, que fingiu não me ouvir e me mandou fazer pré-voo (16), porque queria voar expe-riência e insistiu, mesmo eu dizendo que o voo já havia sido fei-to. Decolamos. Eu, na cadeira do 2P. Sobre a Ilha do Governa-dor do tempo do tráfego aéreo tranquilo, fez curvas e curvas de grande inclinação e relativa baixa altura. E eu me segurando. Pousamos. Recebi ordem de localizar um copiloto, para a viagem de volta, mas não consegui. Os pilotos, ao ficarem sa-bendo quem era o comandante do voo, recusavam a missão. No fim do dia, quando o informei do meu insucesso na bus-ca de um piloto, disse que eu não tinha iniciativa e citou o nome do tenente Valdomiro Kos, que sacou da lista do CAN, e que ia para o Recife, onde seria deixado depois da missão. Retruquei que o ten Kos, por ser oficial de reconhecimento foto do 1º/6º GAv, não seria melhor copiloto do que eu, especialista em avião e engenheiro de voo. Surpreso, mandou-me continuar na busca do copiloto. Depois de mais um dia de busca sem sucesso, e um banho frio “de descarrego”, dirigi-me ao refeitório para jantar e encon-trei, se não me engano, o tenente Viana, instrutor de voo do CFPM, mineiro de Alfenas, hoje major-brigadeiro inativo, que me confirmou ser o copiloto da missão. Respirei aliviado. Dia 08 de agosto de 1970: enfim, no primeiro aniversário do meu aspirantado, decolamos de volta para Natal. PS: Datas tiradas da caderneta de voo, onde não consta o nome do copiloto. 21

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NEM BRIGADEIRO! ANT – ESM – 1969. Sexta-feira, final de expediente. O cabo velho pediu dispensa de segunda e terça-feira (emendando com o fim de semana), para fazer a mu-dança de domicílio da família de São José do Mipibu para Parna-mirim, onde fica a Base Aérea, cidades próximas. Nego alegando que, além de a distância entre as cidades ser pequena, nem brigadeiro tinha tanta tralha, que precisasse de quatro dias para se mudar. O cabo, não se dando por vencido, saiu-se com argumento demolidor: “Aspirante, o senhor não sabe como pobre junta ca-co!” Ganhou a dispensa. 22

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O CINEMA DA BASE FPM – Natal – anos 1970. O Cine Navy ou o “Cinema da Base” (expressão usada pelos natalenses desde os tempos da guerra) era o preferido de militares e civis da sociedade local. Tinha quem perguntasse o nome do filme: conta-se que certo coronel telefonou querendo saber o filme do dia. Do outro lado da linha o soldado respondeu: “O filme é: ‘Eu, Ela e o Se-nhor’.” Na verdade, o filme era: “Eu, Ela e o Coronel”. E tinha quem não perguntasse: para os seis filhos do major Lampert, todos homens entre cinco e dez anos de idade (o casal não tentou o sétimo filho, que com certeza seria também ho-mem, optando por adotar uma menina), os filmes só tinham duas classificações: “de cowboy” ou “de assunto”. Eles não queriam saber do pai o nome do filme. Perguntavam apenas se era “de cowboy” (*), porque não perdiam tempo vendo filme “de assun-to” (**). O cinema apresentava a melhor programação da cidade, sustentada pelo seu chefe, o ten int Domingos, que tinha uma peculiaridade: gostava de se perfumar. Cheirava tanto, que chei-rava mais do que rapariga de Roraima (***), a rapariga mais cheirosa do Brasil. (*) O filme “de cawboy” ou bangue-bangue daquela época, de en-redo simples, apresentava quatro personagens centrais: o mocinho (ou “artista”), a mocinha (namorada do mocinho), o bandido (vilão da histó-ria) e o doidinho (ajudante atrapalhado do mocinho). Os outros perso-nagens eram meros figurantes. (**) O filme “de assunto” tinha enredo rebuscado e, por isso mesmo, não interessava aos meninos. (***) As “meninas” usavam os perfumes Bond Street, fabricado na Inglaterra pela Yardley, e o argentino Vitess, “perfum para caballe-ros”, traduzido como “perfume para cabelos”, ou o Royal Briar. 23

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VOO DE SACO ormando da EEAR (135ª Turma, 21 Jul 1961), partici-pei do estágio final de curso, com outros companhei-ros, na Base Aérea dos Afonsos, Rio de Janeiro, então comandada pelo coronel Délio Jardim de Matos. No final do expediente, na pista, vimos, eu e Echebarra, capitão dirigindo-se para um C-41 Morane Saulnier 760 Paris, o famoso jatinho Paris, da Seção de Aviões do QG-3. Depois de nos apresentarmos, ficamos sabendo do oficial que decolaria para o Calabouço (Aeroporto Santos Dumont). Pe-dimos carona para um voo de saco de apenas 15 minutos. Voa de saco o carona, nosso caso, ou o tripulante extra, o famoso CDPA (Come, Dorme, Peida e Atrapalha). Echebarra, que estava na frente, ao lado do piloto, leu o check list (17) e decolamos. No pouso, de novo nos apresenta-mos e partimos para o Aeroporto Santos Dumont fardados de “homem-bala”: calça presa por elástico no boot, gandola com as estrelinhas de aluno na manga, tarjeta e bibico. No banheiro do aeroporto, tiramos o bibico, a tarjeta, as es-trelas, colocamos no bolso, desfizemos o homem-bala e jogamos a gandola (camisa da farda) por fora das calças – o famoso “vai morrer”. Tomamos um ônibus até a Estação Pedro II, entramos em um trem (quase não conseguimos, de tanta gente), descemos em Marechal Hermes, tomamos outro ônibus até os Afonsos, on-de nos recompusemos e entramos na Base, ainda a tempo de pegar o rancho. 24

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CHATEAUBRIAND ANT (1969) – CFPM (1970). Funcionário civil do cas-sino dos oficiais desde a guerra, Chateaubriand, ser-tanejo simples, chamava a atenção por suas tiradas curiosas. O tenente casou com uma americana, e enquanto montava casa ficou com a mulher hospedado em anexo do cassino, onde havia algumas gaiolas com pássaros. Diante do corrupião (*), ela ficou encantada, tanto com o porte e a beleza do pássaro, quanto com a habilidade deste com uma caixa de fósforos, que segurava com as garras da pata, abria com o bico e tirava um a um todos os palitos. Chateaubriand, que observava a cena de perto, referindo-se ao pássaro saiu-se com esta para a estrangeira, que não falava português e ficou sem entender nada: “Esse aí, madame, é very good”. Em uma cidade sem motéis pelo menos medianos, era para Chateaubriand que os estagiários mais ousados apelavam para suprir a demanda, cansados de namorar no escurinho do entorno do Farol da Mãe Luiza. Eles conseguiam com Chatô a chave da suite destinada a oficiais-generais em trânsito, para furtivos en-contros amorosos. O cassino de Natal era uma festa, pela juven-tude dos seus residentes, e os dias, lá, impagáveis e inesquecí-veis, para quem teve, como eu, a ventura de vivê-los. (*) – Corrupião: “ave passeriforme, icterídea (icterus jamacaii), do Brasil este-setentrional de coloração geral preta, dorso e barriga verme-lhos com tons alaranjados, e asa com espelhos brancos” – Dicionário Aurélio. 25

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VALDEMIRA FPM, Natal, 1971. VALDEMIRO, aspirante especialista em avião, recém chegado da Escola (EOEIG), pede a funcionário civil que arranje uma secretária de assun-tos domésticos. Dias depois, no café da manhã, antes de sair para o traba-lho, Valdemiro recebe em casa, na vila dos oficiais, o funcionário com a candidata ao emprego, nova, bonita, alta, magra e... de nome VALDEMIRA! A mulher de Valdemiro, desconfiada, dá o primeiro jeito: “Vamos chamá-la VALDA”. Valda vai lá para dentro, troca de roupa e volta para a sua primeira tarefa, varrer a casa... de short, blusinha amarrada na cintura e cantarolando o brega francês Mon amour, mon bien, ma femme. A própria pin up girl tupiniquim. Valdemiro quase se en-gasga no café, e a mulher de Valdemiro olhando. O aspirante vai para o trabalho e, na volta, depois do expe-diente, toma conhecimento do segundo jeito dado pela sua mu-lher: a demissão sumária da Valdemira. 26

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BURACO CHEIROSO Na FAB, voava-se muito, ensejando o contato direto dos tri-pulantes com manifestações locais do imenso mosaico cultural do Brasil. Em Belém do Grão Pará, por exemplo, lojinha chamada Buraco Cheiroso vende perfumes de ervas amazônicas. Essas essências rivalizam com outros perfumes populares, como Chama Amor, encontrado em armarinho de ervas e macumba do Merca-do São José, do Recife, e Bond Street, industrializado, preferido das raparigas de Roraima, as mais cheirosas do Brasil. O popular Mercado Ver o Peso, da mesma cidade de Belém, a capital morena do Brasil, igualmente comercializa seus perfu-mes, além de tiradores de feitiços de botos e candirus, ervas para chás, infusões, compressas, pomadas e banhos de cheiro e de descarrego, tudo tirado da rica flora amazonense. Por conta disso, vendo o jornal da TV, surpreendi-me com jornalista novinha e bonitinha entrevistando uma figura folclórica de Belém, Dona Cheirosa, proprietária de uma dessas lojinhas de ervas no Ver o Peso. Pergunta vai, pergunta vem, e Dona Cheirosa respondendo a todas com o seu grande conhecimento da fitoterapia cabocla. Por fim, a moça bonita aponta determinada erva e quer sa-ber para que serve. E Dona Cheirosa, sem titubear: “Essa aí, mi-nha filha, é pra potência”. A moça, embaraçada, pergunta o que é potência. E Dona Cheirosa, fazendo a moça corar e ficar sem jeito: “Potência, minha filha, é a força do ‘neuvo’ (*) do homem”.

(*) Nervo 27

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PRIMEIRO VOO ARF – 1º/6º GAv – 1957. Ao término da instrução de recruta, fui transferido para o 6º GAv (dois esqua-drões de B-17, em hangares contíguos, 1º/6º e 2º/6º GAv) e matriculado no curso de formação de cabo (CFC) mecâni-co auxiliar de avião. Eu e o Jonas Pereira da Silva colega de tur-ma, planejávamos voar pela primeira vez, e a oportunidade apa-receu. Do mecânico da missão ficamos sabendo que o voo local duraria três horas, a grande altitude, longe da costa e sobre o mar. O B-17 era do Esquadrão Busca (o outro Esquadrão era Fo-to) e tinha duas grandes janelas laterais e uma poltrona em cada uma delas, para os observadores de voos SAR. Colocamos um paraquedas, uma máscara de oxigênio e um colete inflável “pa-po-amarelo” em cada cadeira e ficamos no aguardo dos pilotos. Quando chegaram, o mais antigo era o Cap Luz (note-se bem a pronúncia, com o “z” final bem definido, própria do Sul, terra do capitão). Primeiro a me apresentar, bati continência e disse alto e claro: “Licença, Capitão Lúiz”, com o meu sotaque de arataca, acentuando o “u”, mas acrescentando um “i” inexistente. Fui interrompido pelo capitão, de dedo em riste: “Lúiz, não, meu filho, meu nome é Luz!”. E repetiu: “Luz!” Mas aí, vendo aqueles dois ainda imberbes soldadinhos na posição de sentido, com a mão na pala em continência e acuados, logo nos chamou de filhos e perguntou se queríamos voar. Como não conseguía-mos falar (oficial, naquele tempo, era quase um deus), ele com-pletou: “Têm um minuto para se equipar e embarcar”. Aliviados, e como, prevenidos, já havíamos nos equipado, demos a volta no avião (B-17 5402, atualmente monumento à entrada da BARF) e nele subimos pela portinhola traseira, proeza que repetimos muitas vezes. Hoje, quando entro e saio da Base Aérea do Recife, lembro do soldadinho que fui e dos tempos de tenente, nas madrugadas de serviço contemplando, do Portão das Armas, o imponente monumento, e bato continência para o “meu” avião (B-17 5402): Cheirando a óleo e graxa das ferragens da mecânica de imortal beleza antiga, a impressionante leveza da Fortaleza Voa-dora, o espaço desafiando ainda as asas mortas pousadas para sempre no Ibura. Quando a noite cai, como moldura, por sobre a velha e heróica Fortaleza, um frêmito traspassa o imaginário e 28

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ouve-se no ar os sons familiares de aviões saindo dos hangares como de grandes úteros paridos para a liberdade das estrelas. São os velhos soldados bombardeiros, pilotos, mecânicos, arti-lheiros que de muito longe vêm para voar. Ah! o som dos hangares!... 29

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A VERDADE ARF – 1º/6º GAv (avião B-17) – 1958. Terminado o curso de cabo mecânico, fui promovido a S1, solda-do de 1ª classe. Numa segunda-feira, após 24 horas de serviço de sentinela na guarda do quartel, apresentei-me para a dura rotina na manutenção do Esquadrão e logo fui escalado para lavar uma majestosa fortaleza voadora, tarefa que me to-mou a manhã toda. No almoço, driblando o supervisor do rancho, 1º Sargento Infante Josias, Ministro da Fome, como o chamávamos, consegui que os taifeiros enchessem para valer a minha bandeja. Não deu outra: mal sentei-me à mesa, o “Ministro” decretou que ou eu comia tudo ou ficava preso. Suei frio, mas cumpri o trato, mesmo porque, sem dinheiro para fazer lanche, tinha que estar pelo me-nos “de tanque cheio”, para aguentar o tranco das atividades mais pesadas, que sempre sobram para o soldado. Na folga do almoço, cansado e de barriga cheia, deitei-me no chão, em um canto do hangar, e adormeci profundamente. Acordei com o “fora de forma” da formatura de início do 2º expe-diente, formatura a que faltei, mas não ao expediente. Chamado para me justificar à presença do então Tenente Paulo Moreira LEAL, hoje major-brigadeiro do ar na inatividade, limitei-me a contar o ocorrido sem tentar fugir da responsabilidade. O Tenen-te Leal me ouviu atentamente e para surpresa minha, que espe-rava ser punido, como era do costume, relevou a falta, segundo as suas palavras, “por eu ter falado a verdade”. Nunca esqueci dessa história, nem do Tenente Leal, e de sua atitude, que reforçou em mim, ainda adolescente, o conceito de verdade, que aprendi com o meu pai. São estas pequenas coisas, pequenas só na aparência, que fazem do oficial um líder. 30

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INCIDENTE EM SAN JUAN allas, EUA, 21 Nov 1974. Sete novos helicópteros UH-1H, comprados pela FAB, decolaram da Planta 2 da Bell rumo ao Brasil. Eu era tenente, oficial de manutenção do EMRA-2, e equipava o UH-1H 8662, junto com o capitão Hélio e o tenente Kisiolar. Como o México só permitia dois helicópteros de cada vez no seu espaço aéreo, o traslado foi feito pelas Bahamas e o Caribe. Por conta disso, cada helicóptero re-cebeu dois tanques auxiliares de combustível e dois deles, guin-chos de içar, as tripulações reduzidas ao mínimo (1P, 2P, MC) e as bagagens e os bagulhos comprados (como plantas de plásti-co), passaram para o Búfalo de apoio, a fim de aliviar o peso. Mesmo assim, no salvamento, em caso de acidente, os helicópte-ros com guincho só poderiam pairar (obrigatoriamente, no caso, porque sobre o mar) depois de mais ou menos duas horas de voo, com o alívio na carga proporcionado pela queima do com-bustível. No dia 24 Nov, pouso em Miami (Homestead Air Force Ba-se). Nos dois primeiros dias, revisão dos helicópteros para a tra-vessia, e mais quatro dias de espera, devido às condições dos ventos na rota. Na revisão, não podíamos nos afastar dos heli-cópteros, e tudo o que precisávamos era providenciado por jo-vem major da Força Aérea americana, especialista em suprimen-to técnico, falando espanhol perfeito, e a gente, portunhol. No dia 02 Dez, Miami-Nassau, Bahamas. Dia 03, Nassau-Grand Turk, com novos pilotos no 8664, capitão Dias Filho e capi-tão Dellamora. Dia 07, novamente por causa dos ventos, Grand Turk-Porto Rico, 04h:30 de voo. Nesse trecho, o indicador de temperatura dos gases de escapamento da turbina (EGT) come-çou a deslocar o ponteiro da faixa verde (segurança) para a ama-rela (atenção) e estacionou no limite desta com a faixa vermelha (perigo). Como não dava para pousar no mar, nem regressar, fomos em frente, até o pouso na base americana de São João de Porto Rico (Roosevelt Roads Naval Air Station), onde constatei não ser pane do indicador, pois a turbina estava tão quente, que não consegui descarenar (18) o motor. O passo seguinte, pela singularidade do solenóide de comando, seria testar o sistema anti-icing, o que não foi possível de imediato, pois estava tudo muito quente. O capitão Dias Filho, mais antigo, não queria re-portar a pane, ao contrário do capitão Dellamora. Expliquei que, em voo, sem ter sido comandada, muito provavelmente a válvula 31

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solenoide de controle do ar quente tinha saído da posição fecha-da (energizada) para a posição aberta (desenergizada), por pane dela ou do circuito alimentador. E que seria essa a causa do su-peraquecimento do motor, potencialmente perigoso, pelo desvio do ar pressurizado e quente do difusor para a entrada do com-pressor, que não precisava de descongelamento. Essa pane se confirmou, mas teve de esperar de um dia para o outro, porque, como os pilotos continuavam não se entendendo, coloquei uma cruz vermelha (19) no Relatório de Voo, comuniquei o fato ao major chefe do A-4 (material) do deslocamento, a quem estava diretamente subordinado, e recebi ordem dele de deixar o serviço para o dia seguinte. No dia seguinte, 8 Dez, o major comandante determinou o embarque rápido para a decolagem. Como o major chefe do A-4 não se pronunciou, dirigi-me ao comandante, comuniquei a pane e fui por ele censurado publicamente, pelo atraso na comunica-ção. Evitando mais constrangimento, só reagi quando os dois majores ficaram a sós. Voltei a eles e, dirigindo-me ao coman-dante, contei a conversa que tive com o A-4, que ouviu tudo e não me contestou. No suprimento trazido pelo avião Búfalo de apoio, não havia válvula solenóide para troca, e o jeito foi apelar para o “gatilho”. Gatilho é um procedimento não previsto nos manuais, contraria a segurança de voo e é uma variante perigosa do “jeitinho brasileiro”. Devido ao gatilho, o tumulto se instalou, com todo mundo dando palpite, mais uma característica brasilei-ra ditada pelo exibicionismo, a falta de conhecimento e o des-compromisso profissional. Sugeriram até usar uma moeda de 25 cents de dólar americano para “fechar” o duto de ar quente da válvula, ideia vetada porque a moeda poderia derreter e avariar o motor. No fim, fabricou-se um tampão de aço de alta resistência, inspecionado depois do voo de experiência e aprovado. Decola-mos e esqueci o fato. No dia 12, quando chegamos a Belém, o comandante do deslocamento, na presença do A-4, me pediu desculpas em particular, longe da tropa. E esqueci de tudo no-vamente. 35 anos depois (Dez 2009), um capitão, hoje coronel inati-vo, tripulante dessa missão, perguntou-me a razão de eu ter dei-xado a pane para o outro dia, “tumultuando a decolagem”. Com-preendi que ele estava me julgando pelas aparências, agradeci pela franqueza e pela oportunidade que me dava de esclarecer a verdade, e então contei a história como a história foi, de um co-mandante que, também, tinha me julgado pelas aparências. PS: Datas da missão tiradas da caderneta de voo. 32

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UMA NOITE NOS AFONSOS AAF, avião C-82, junho de 1961. Alunos da EEAR, estagiamos na Base dos Afonsos comandada pelo Coronel Délio Jardim de Matos. Desde muito tempo, Fernando e Manzella viviam se agredindo. Certa noite, depois de os dois quase irem às vias de fato, Echebarra, lutador de boxe, pegou as suas luvas e fomos para o estádio da Base, longe das vistas de estranhos, para que, em uma luta limpa, os desafetos resolvessem de vez as divergências. Echebarra canta as regras da disputa e funciona como juiz. Vários rounds depois, com os contendores cansados e chei-os de escoriações, resolvemos acabar com a briga e cumprir o combinado: um aperto de mão dos dois celebrando a paz. A dias da formatura, estava na hora de darmos adeus à condição juvenil e nos tornarmos homens, em virtude das responsabilidades que assumiríamos, como técnicos da Força Aérea. E essa hora havia chegado, embora não soubéssemos, como também não sabíamos que a noite estivesse longe de acabar. José VICENTE de Lima, de Santo Antônio do Salto da Onça, Rio Grande do Norte, ao contrário de nós outros, mostrara-se alheio à luta no estádio. Ardia em febre. No alojamento, não con-seguimos dormir, com ele delirando. Levado ao Hospital da Guarnição dos Afonsos, ao clarear o dia estava morto, vítima de pneumonia fulminante. Imaturos, longe de casa, nessa noite convivemos íntima e profundamente com a realidade da vida, que se mostrou violenta no estádio, e ainda mais violenta no sofrimento e morte do jovem companheiro. Fomos tomar o café da manhã na Base. Quando voltamos ao hospital, encontramos o corpo no necrotério, onde estava sendo embalsamado para a última viagem de volta para casa. E vimos, chocados, ao lado do cadáver de Vicente, as vísce-ras dele retiradas e expostas na laje fria do necrotério. E de re-pente acordamos para a vida como ela é. 33

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NOME DE BRIGADEIRO ARF, 2º EMRA, anos 1970. Eu, tenente especialista em avião, chefe da Manutenção, e o 1S QAv Ribeiro, o popular GG (Joinha-Joinha), fomos matriculados em Santos nos cursos de helicóptero básico de H-13 e avançado de UH-1H, mas só nos deram passagem pelo CAN, em um domingo, até o Rio de Janeiro. E as aulas começavam na segunda-feira. No desembarque (Galeão antigo), havia uma ambulância do Hospital Central esperando um doente. Não demora muito, e Ri-beiro chega para mim dizendo que havia conseguido uma carona na ambulância para nós dois até a Rodoviária, na Praça Mauá. Na Rodoviária, embarcamos para São Paulo e, de lá, para Santos. Lá pelas três horas da madrugada, o ônibus parou e nos avisaram que era o ponto final da viagem. Descemos e descobrimos que estávamos em São Vicente, depois de Santos, onde devíamos ter ficado para pegar a barca. Nós, que só conhecíamos Santos pelo ar. Demorou, mas conseguimos um taxi. Devido à hora, não ti-nha mais barca, e o motorista nos deixou nos arredores do mer-cado de Santos, onde, disse, poderíamos alugar uma catraia, que nos levaria até a Base por canal subterrâneo que deságua no mar. E assim foi feito. Nessa jornada, andamos de carro, avião, ambulância, ônibus, taxi e catraia, mas chegamos a tempo. Antes do início da primeira aula, Ribeiro apresenta-me velho suboficial e me diz, piscando o olho, que ele, o sub, é amigo de uma penca de brigadeiros. E foi dizendo nome após nome de bri-gadeiros, e o sub confirmando que tinha voado com todos eles, e piriri e parará. E aí, de chofre, surpreendendo-me, Ribeiro per-gunta se o sub conhece o brigadeiro Leon Heimer. Para surpresa minha, ele confirma que sim. Fiquei intrigado, mas deixei pra lá. Na folga do almoço, digo a Ribeiro que Leon Heimer é nome de firma de equipamentos elétricos do Recife, e que seria muita co-incidência um brigadeiro com o mesmo nome. O brincalhão Ribei-ro explica que o sub é um cascateiro e, para provar isso sem le-vantar suspeitas, apelou para o bem soante Leon Heimer, por ser nome de brigadeiro. E arrematou, como amostra do elitismo que nos cerca: “Pois só vai a brigadeiro quem tem nome de brigadei-ro”.

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HERÓIS BRASILEIROS

batalha do Monte Castelo começou em 24/11/1944 e terminou em 21/02/1945, depois de seis ataques, quando o Monte foi tomado dos alemães pelo Exér-

cito Brasileiro. Depondo no IV Exército (15 Fev 2012), o tenente reforma-do José SOUTO MAIOR, 88 anos, contou uma das histórias dessa batalha: ele e um amigo, ambos de São Lourenço da Mata, Zona da Mata Norte de Pernambuco, foram convocados para a Força Expedicionária Brasileira, compondo a 1ª DIE – Divisão de Infan-taria Expedicionária. Souto tinha o ginasial e recebeu divisas de sargento; e o amigo, por estar cursando agronomia, a patente de tenente. Quase não treinaram e partiram para a guerra. Souto, mais uma vez, foi sorteado (a escolha era por sor-teio) para comandar patrulha de reconhecimento, 12 homens, ao todo. Com céu claro, muita neve e frio cortante, começou a se esgueirar na direção de algum vilarejo próximo às elevações onde estavam os alemães, dentre elas o Monte Castelo. Com a patru-lha abrigada em depressão do terreno, vasculhou tudo com o seu binóculo, não percebeu nada de anormal e decidiu avançar. Ins-tantes depois, uma rajada de metralhadora matou um homem e feriu outro, fazendo os demais voltarem ao abrigo. Viu, então, sair de uma igrejinha e tomar posição para o ataque companhia inteira de alemães, deixando-o num impasse. Se abandonassem o abrigo, seriam mortos pelo metralhador; e se não, também seriam, pela companhia inimiga. Explicou a situação aos solda-dos, conhecedores dos maus tratos, inclusive, fome e morte, se caíssem prisioneiros, e decidiu combater. Com eles rezou um Pai Nosso, como preparação para a batalha derradeira. Eles eram nossos heróis nas terras da Itália. Enquanto rezavam, ouviram barulho de motor ao longe, que não sabiam o que era, e que foi se aproximando, e de repente viram um P-47 brasileiro bombar-dear a tropa alemã, dando-lhes tempo para salvar o companheiro ferido e retornar à base em segurança. Souto dispunha apenas de três carregadores da metralha-dora Thompson e duas granadas de mão. Seriam, no máximo, cinco minutos de combate, até serem mortos ou aprisionados. Mesmo assim, decidiu reagir segundo o que aprendeu: o máximo

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de ações ofensivas é um dos princípios básicos da defensiva, e são executadas por patrulhas de reconhecimento e de combate. E foi o que alemães e brasileiros fizeram durante o inverno. No re-lato do ocorrido ao seu capitão, precisou ser veemente para ser acreditado. A 1ª DIE entrou em contato com o 1º Grupo de Caça brasileiro, que não só confirmou o bombardeio, como o nome do piloto: tenente Roberto PESSOA RAMOS, nosso herói nos céus da Itália, que conheci tenente-coronel comandante da Base Aérea do Recife, onde incorporei, como recruta, em 17 de Junho de 1957.

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LIXO ATÔMICO capitão, trato fácil e bom caráter, apesar dos (obri-gatórios) anos de “prática” como graduado, ainda não havia se encontrado profissionalmente (e isso é mais comum do que se pensa, e em todos os Quadros), e virou “lixo atômico”: ninguém da hierarquia o queria e agora estava ameaçado de preterição no curso de aperfeiçoamento (EAO). Essa exigência de “prática” (compreensão das partes), que vem antes da teoria (compreensão do todo), contrariando a me-todologia moderna de ensino e lembrando as guildas medievais, é feita exclusivamente para o candidato a oficial técnico. Consa-grada na FAB como a “invenção brasileira que deu certo”, virou política de pessoal, mas não foi copiada por nenhuma grande força aérea. Isso porque, em vez de ajudar, atrapalha o futuro oficial, por se tratar de atividades repetitivas que só servem “pa-ra secar e endurecer a estrutura do pensamento” (Liddel Hart), reafirmando a unanimidade dos pensadores sobre o tema. Inadaptado, ele não deu certo como “lambe-lambe”, no 1º/6º GAv (Esquadrão Foto); não deu certo como “lambe-graxa”, no ESM (Esquadrão de Suprimento e Manutenção); e não deu certo como “lambe-ficha”, no EP (Esquadrão de Pessoal), para onde por último foi mandado. O comandante do EP, a quem cou-be dar o conceito anual antes da matrícula do capitão na EAO (ficha CPO – Comissão de Promoções de Oficiais), de próprio pu-nho escreveu argumentando favoravelmente pela matrícula deste no aperfeiçoamento, pois defendia, como nas grandes forças aé-reas, um programa de redirecionamento de pessoas inadaptadas à profissão, antes de julgá-las definitivamente incompetentes. Terminado o aperfeiçoamento, o capitão foi promovido, concluiu o bacharelado em direito e finalmente achou o lugar cer-to para dar certo: chefe da seção de investigação e justiça do COMAR-2 e assessor jurídico de sua excelência, o comandante. Confirmou o que dizia Santo Agostinho: “O mau monge pode ser um bom clérigo”. 37

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BRIGADEIRO MOTA PAES FPM – Natal – 1970. O primeiro Comandante do CFPM foi o Brigadeiro Mota Paes, herói do 1º Grupo de Caça na Itália. Na sua 24ª missão de combate, foi abatido pela artilharia inimiga, saltou de paraquedas e ficou prisioneiro dos alemães até o fim da guerra, quando foi libertado pelos ame-ricanos. Uma, duas vezes, por mês, saía sozinho e a pé do Comando e se dirigia aos hangares da Manutenção dos aviões (54 T-23, 25 birreatores T-37, 2 T-6 D e 2 C-45 “Mata-Sete”) que eu, 2º te-nente especialista em avião, recém promovido, chefiava. Da pri-meira vez que fez isso me pegou de surpresa: os mecânicos só me avisaram de sua presença quando ele já estava dentro do hangar. Montei esquema de “alarme antecipado” para evitar ser surpreendido novamente. E funcionou. Toda vez que o Brigadeiro “aproava” os hangares, alguém me avisava e eu partia para “in-terceptá-lo” no meio do caminho. Na distância regulamentar, parava, me apresentava, dava um passo atrás e à esquerda da autoridade e percorria com ele todas as dependências. O Brigadeiro sabia que a instrução de voo dependia da dis-ponibilidade dos aviões, (tal como, na guerra, o combate) e ia buscar informação diretamente na fonte, no calor dos aconteci-mentos. 38

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QI om a compra do avião C-130 Hércules, a FAB selecio-nou graduados de voo e de terra para o curso do avi-ão nos EUA. Exigências: proficiência na especialidade e razoável domínio do idioma inglês. Humberto Bezerra MAIA (morto ainda na ativa, por atrope-lamento, como TCel Esp Av), o popular “Zé Trindade”, cearense do Juazeiro do “Pade Ciço”, graduado, meu companheiro de ma-nutenção e, depois, de turma (Avião) da EOEIG (1969), um dos mais completos mecânicos de avião que conheci, foi ao Esqua-drão de Pessoal pedir informações sobre o curso. Mal abriu a boca, Maia foi questionado se dominava, no mí-nimo, duas mil palavras em inglês. Espirituoso e brincalhão, res-pondeu: “Conta aí: chiclete, coca-cola, lifeboy, gilete, ping-pong, I love you, Freitas “Pump” (apelido de um companheiro), holly-wood, hot dog, milk shake, Pindamonhangaba”... Maia não foi para a América. 39

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O SERMÃO ARF – Anos 1960. Seu Marinho, funcionário civil da Base, contando como construiu sozinho a sua casa, disse que começou pelo alicerce, depois piso, pare-de, telhado, pia, banheiro, isso, aquilo e, junto com o hidrômetro, um... um... um... “Um fesiômetro!”, alguém completou. E Seu Marinho: “Isso mesmo, esse menino!”. É esse tipo brincalhão, divertido, sem papas na língua, que de repente, contrariando a sua natureza, surpreende conver-tendo-se à igreja protestante. Dono de vocabulário próprio (playboy é freibói; cesariana, severiana; automóvel dauphine, docine), tenta nos converter citando trechos da Bíblia que, provocado, interpreta à sua manei-ra, com histórias engraçadas e curiosas. No final do expediente de uma sexta-feira, avisa que, no próximo domingo, faz sermão para a assembleia lotada de fiéis. É a prova final do curso de preparação do batismo e aceite como irmão. Para surpresa ainda maior, e motivo de grande alegria, Seu Marinho chega para o expediente da segunda-feira pós-sermão sem a Bíblia e com a mesma irreverência de antes, até então contida. Perguntado sobre o sermão, diz que começou citando uma verdade bíblica: “Irmão, irmão que é irmão não trepa todo dia”... e não entendeu porque foi interrompido e expulso da igreja. Revoltado com os crentes, que lhe ensinaram só haver na vida duas coisas certas, salvação ou condenação, seu Marinho saiu-se com esta: “Só tem duas coisas certas no mundo: boca de bode e ‘mobília’ de moça”. E reforçou: “De moça!” 40

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CHARLIE UNIFORM ARF – 1º/5º GAv (avião B-26) – 1972. A Base está tomada de cachorros. O comandante se recusa a chamar a “carrocinha” para recolhê-los. O Esquadrão localiza-se em dois velhos hangares sem portas, que foram do antigo 6º GAv (dois esquadrões de B-17, Foto e Busca). Com a desativação dos B-26, os hangares passam para o 2º EMRA, atu-al 2º/8º GAv, que se mudou, em 2011, para Porto Velho. Nas inspeções dos aviões, constata-se aumento no número e na extensão da corrosão nos discos de freio e respectivos con-juntos. O fato se deve aos cachorros, que fazem pipi nos pneus dos aviões, atingindo em cheio o sistema de frenagem. E agora eu, tenente chefe da Manutenção, tenho que declarar guerra aos “protegidos” do comandante da Base. Escalo soldados para es-pantar os cachorros, tanto dos hangares, como da pista de esta-cionamento, tarefa que passa para o pessoal de serviço depois do expediente. Medida surpreendentemente eficaz por um simples detalhe. Detalhe que logo sou chamado a explicar ao comandante do Esquadrão, o então major av Flávio da Rocha FRAGA, oficial que se destacava pela firmeza, seriedade, competência e cavalheiris-mo. Não tento me defender. Digo apenas que julguei a ordem de espantar os cachorros tão simples (como a gente se engana!) que não me dei ao trabalho de instruir seus executores, que sur-preendem pelo excesso de iniciativa etc etc. O comandante obvi-amente não concorda com os meus argumentos. Reúno os soldados (agora, sim, ajo corretamente), louvo a “criatividade” deles no cumprimento da missão, até justificável quanto ao custo-benefício e eficácia, motivos de minha “vista grossa”, pois os bichos aos poucos desaparecem dos hangares e da pista. Digo também tratar-se de procedimento condenável de maus-tratos aos animais e não autorizado de emprego incorreto de insumo, desaprovados pelo comando do Esquadrão. E que a ordem de espantar os cachorros continua, mas sem a tal criativi-dade. Os soldados jogavam gasolina de aviação de alta octana-gem (à base do antidetonante e agressivo chumbo tetraetila) no “traseiro” dos cachorros, que disparavam para longe numa velo-cidade incrível uivando de dor, para nunca mais voltarem. Cruel, efetivo, além de inventivo, mas condenável. 41

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NOS TEMPOS DO AI-5 comandante, vindo diretamente do SNI (Serviço Nacional de Informações) para comandar a BARF, gostava de faxina e detestava comunista. O oficial de dia (tenente), todos os dias, às 5h da manhã, comandava faxina nas ruas do quartel, com soldados de folga dos postos de serviço da Base e Unidades Aéreas. Eu, quando de serviço, próximo do término do expediente, determinava ao adjunto que telefonasse para os sargentos de dia, a quem cabia apresentar o pessoal de folga na manhã seguinte, lembrando da faxina e da hora. Sempre deu certo. Mas, um dia, o adjunto, chegado a uma pinga, telefonou para os sargentos de serviço dizendo que, por ordem minha, oficial de dia, as Unidades Aéreas (1º/6º GAv, E-TA-2 e 2º EMRA) e demais Esquadrões da Base deveriam entrar em forma, às 5h da manhã do dia seguinte, em frente ao Portão Sul (guarda do quartel). A poucos minutos do fim do expediente, o tumulto foi geral, com os comandantes querendo saber do co-mandante da Base se a ordem procedia, mesmo absurda. Chamado para me explicar, fui ouvido pelo major chefe da segurança (à época comandante do EP – Esquadrão de Pessoal) e acreditei que tivesse desfeito o mal-entendido. Ledo engano. O major queria, inclusive, prender o adjunto, mas eu assumi a cul-pa dizendo que não tinha mandado que ele, adjunto, repetisse para mim a ordem recebida. E que não tinha feito isso confiando na antiguidade e experiência do sargento. De volta à guarda, no fim do expediente (16h), fui procura-do pouco depois pelo capitão intendente Floriano, que não me pediu segredo do que me disse, guardado por mim e só agora revelado. Ele contou que se encontrava na sala do comandante da Base quando presenciou o comandante do EP recomendar que eu, oficial de dia, fosse preso pelo visível ato de guerrilha e in-quietação que praticara, e respondesse a IPM por subversão. Fi-quei pasmo, porque tinha acabado de conversar com essa autori-dade sobre o referido acontecimento, que, da forma como foi interpretado pela tal autoridade, só poderia ter saído da imagina-ção de guerrilheiro muito burro. Assim reputações são destruídas. O caso acabou bem porque o coronel comandante da Base era homem de atitude. Depois que comandei a formatura da Bandeira (18h) e a fiscalização do rancho (19h), mal sentei-me à mesa para jantar, o coronel apareceu para jantar comigo. Está- vamos sós. Percebendo a manobra, e sem revelar a conversa 42

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com o capitão Floriano, mas em função dela, disse que só havia me explicado com o chefe do EP, e como pretendia, depois de passar o serviço, solicitar audiência para me explicar com o co-mandante, aproveitava a oportunidade para pedir que fosse de pronto novamente ouvido. De vez que, sabiamente sozinho, ha-via me procurado exatamente para isso, me ouviu e me tranquili-zou. Se tivesse sido cassado como comunista (que dependia só da vontade do comandante), com mulher e dois filhos pequenos teria que vender livro de porta em porta, pois a “revolução” não permitia que subversivos trabalhassem em nada mais, nem na aviação civil. Devo ao capitão FLORIANO Machado Fernandes da Silva, aspirante intendente de 22/11/1968, morto como coronel na ina-tividade, esse preito eterno de gratidão, louvor e apreço. Mesmo se arriscando, o Capitão Floriano preferiu ficar do lado da verda-de, leal e corajosamente alertando-me da traição feita a mim pelo major, que não teve coragem de me acusar quando esteve frente a frente comigo. Assim reputações são preservadas, gra-ças a homens corretos e de boa vontade, como o capitão Floriano e o comandante da Base. Por ter vivido o pesadelo daquela época, que reconheço ter evitado mal maior, embora com excessos, é que abomino qual-quer manifestação de autoritarismo. A última vez que nos vimos, eu era major e o Floriano, tenente-coronel, em dezembro de 1986, na BAGL, quando almoçamos juntos. 43

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MORDIDO DO PORCO OMAR-2, anos 1970. O brigadeiro assumiu o coman-do às vésperas do carnaval. No dia seguinte, toda a guarnição da “Aeronáutica” do Recife, comandantes, oficiais, graduados, praças, funcionários e funcionárias civis, nos reunimos, em pé, no novo e espaçoso hangar do 1º/6º GAv, ain-da não inaugurado, para ouvir a palavra do comandante. No meio de um discurso com bravatas, ameaças, pala-vrões, gestos obscenos, saiu a pérola: que o pior aconteceria ao militar preso pela polícia durante o carnaval, que se identificasse como militar. E mandou todos sentarem no chão, “para descan-sar as pernas”, pois ainda tinha muito o que dizer. A ordem de sentar no chão, por incrível que pareça, foi momento de descontração. Formaram-se pequenos tumultos, com as pessoas limpando o lugar onde iam sentar. Só quem não se mexeu foram os comandantes, e notava-se nas feições deles a desaprovação do que viam e ouviam, e o constrangimento por que passavam, encorajando os demais oficiais, e a quem mais quisesse, a permanecerem de pé. No final de mais de duas horas de arenga, outro momento de descontração: começou a correr entre os presentes, incluindo aí os oficiais, o apelido colocado no novo “comandante”: “Mordido do Porco”. “Mordido” era, na época, famoso bandido recifense. Assaltante, ganhou o apelido porque, além de depenar as suas vítimas, costumava arrancar delas uma unha das mãos, com um pequeno alicate... 44

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DONA NANINHA AO – Base Aérea de São Paulo (Cumbica), 1983. Com a passagem do Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais para o Rio de Janeiro, a minha turma foi a última do famoso “Casarão”. Eu conhecia a figura do sabichão, mas não a expressão “fast thinker”, traduzida livremente pelo sociólogo Roberto Martins co-mo “o pensador ligeirinho” (Diário de Pernambuco, 26/6/2008, pág Opinião) usada para designar pessoas que têm respostas prontas para tudo em tiradas curtas, rápidas e na ponta da lín-gua, porque sabem tudo. Em uma roda de capitães-alunos, da qual eu participava, um desses tipos começou a dominar a cena. E era tão cheio de si que não se deu conta que estava sendo sutilmente ironizado pe-los demais. Chegou ao ponto de eu perguntar se conhecia Dona Naninha, e ele ingenuamente respondeu que não. E aí questionei se ele, tão bem informado, não lia a grande imprensa internacio-nal, The New York Times, Washington Post, The Guardian, Le Monde, Der Spiegel, El País, a ponto de não conhecer Dona Nani-nha. Ele, então, fez a pergunta que eu queria: “Quem é Dona Naninha?” “É minha mãe!”, respondi. A reunião acabou ali mes-mo, mas a brincadeira se espalhou, proporcionando a Dona Nani-nha os quinze minutos de fama a que todos têm direito. 45

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ATAQUE AO SOLO aspirante (hoje coronel na inatividade e companhei-ro de caminhadas no calçadão de Boa Viagem) che-gou ao CFPM, Natal, em 1970, como instrutor da avioneta T-23 Uirapuru. Depois de quatro anos no sacrifício, foi transferido para o 2º EMRA – BARF, para voar... avionetas T-6 e L-42, quando queria voar o quadrimotor C-130, como prêmio, no 1º/6º Gav. Insatisfeito, fechou-se com todos, menos comigo, que tam-bém tinha vindo do CFPM. Um dia, na sala dos pilotos, irritado, começou a puxar a fita-de-rolo daqueles gravadores grandes e antigos e que contava a história do Esquadrão. Tentei impedir, mas não consegui. A fita, desenrolada, ficou no chão, com mais de 1 m de altura. Mas o pior estava para acontecer. No dia do voo solo de T-6, o avião, pronto no pátio, esperou pelo tenente o dia todo. O comandante do Esquadrão percebendo que este só iria voar de-pois do expediente, sem ninguém por perto para lhe dar o banho tradicional e fazer festa, ordenou aos oficiais que, ao final do ex-pediente, fingissem que tinham ido embora e se escondessem. Quando o avião decolou, saímos dos esconderijos e nos postamos na pista, ao lado do carro de bombeiros. O pouso foi normal, o taxi também, e de repente o T-6 acelerou, quase “pilo-nando” (20), na direção dos oficiais, que corremos para todos os lados, mas com o avião quicando no chão pra lá e pra cá em nos-so encalço. A coisa foi feia, embora parecesse a quem a visse de fora uma comédia pastelão. Felizmente ninguém se acidentou. Terminado o “ataque ao solo” o avião foi deixado a mais de 1 km do Esquadrão e o piloto sumiu, livrando-se do banho e da festa que não queria. E final-mente premiado, foi pilotar C-130! 46

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SAMURAI EAR, Guaratinguetá, 1960. Da Escola, só podíamos sair nos fins de semana, fardados, e depois da última aula da sexta-feira, com regresso obrigatório às 22h00 de cada dia de folga. Num dos primeiros licenciamentos, namorava a Leonôôôôôrrrrr quando tive que correr, para não apanhar dos “guaraínos”. No dia seguinte, sábado, a cidade ama-nheceu em guerra com os alunos: na Praça (horta, pronúncia local: óita) “RPM”, no centro, a estátua de Rodrigues Alves, per-sonalidade que dá nome à praça, ex-presidente da República, filho e orgulho da terra, amanheceu com um quepe de aluno na cabeça cheio de excrementos humanos. A praça, ponto de pa-quera, era chamada “RPM” (Rotações por Minuto), porque as mo-ças “giravam” em um passeio que a contornava. Até as coisas acalmarem, ficamos sem sair da Escola. O Comandante, Briga-deiro Homero Souto de Oliveira, casado com a gaúcha e ex-miss Brasil Dona Iolanda Pereira, recomendou que andássemos no mínimo em duplas, nas saídas semanais, para melhor nos prote-germos das agressões da rapaziada da cidade, por causa da con-corrência no namoro com as moças. Eu tinha uma máquina foto Kodak tipo caixão “Super Box”, com um único comando, o botão do diafragma, e tiramos, eu (aluno arataca e soldado da FAB) e Anabuki (aluno paulista e motorista de taxi), algumas fotos juntos, que ele mandou para a família, em São Paulo e no Japão, e daí nos tornamos amigos. Graças a isso, o meu companheiro de turmas (EEAR e EOEIG), hoje tenente-coronel infante na inatividade, me escolheu para fazermos dupla nos licenciamentos, mas impôs as condições: sairmos com o cinto de guarnição por baixo da túnica e um cani-vete no bolso, este como último recurso. O cinto, rústico, largo, pesado e com enorme fivela de metal, que fazíamos girar acima da cabeça, para manter o agressor longe e abrir caminho para a fuga, mostrou-se utilíssimo, revelando o faro para o combate do meu amigo Samurai. 47

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LEMA DA TURMA ase Aérea do Recife, 17 de junho de 1957. Envergan-do o uniforme cáqui de então, incorporei como recru-ta S2 QIG FI 57 2002 430 (*), reduzido, por instruto-res, monitores e colegas, para “Quatro Trinta”, meu nome, a par-tir dali. O primeiro dia de soldado foi de longas preleções e exausti-vas marchas, quando fomos informados que ficaríamos de qua-rentena no quartel. No final desta, com noções básicas dos regu-lamentos militares, deveríamos saber nos fardar, marchar, atirar, bater continência, identificar oficiais e graduados, ocasião em que receberíamos, envelopado, o primeiro soldo da boca do caixa da tesouraria da Base, no final do expediente da sexta-feira, e a liberação para o primeiro fim de semana livre. Dado o "fora-de-forma", para a entrada na fila do caixa, a surpresa ficou por conta do recruta "Lascadinho", que recebeu o apelido no mesmo dia da incorporação por ter se apresentado de "paletó-lascado-atrás", naquele tempo "não recomendável para homem". Com o soldo na mão, mostrando entusiasmo pelo pri-meiro licenciamento, ele contou para todos:“Vou me mandar pro ‘Curral das Éguas’ (cabaré famoso), dançar ao som da radiola de ficha (jukebox) e gritar para as meninas: ‘Hoje não tem puta po-bre’!" O grito virou lema da turma, ruidosamente proclamado toda vez que recebíamos o soldo, em dinheiro vivo, para alegria nossa e maior das moças de vida fácil, as únicas acessíveis naqueles anos dourados, pois não podíamos bulir na “mobília” das moças de família. O Recife Antigo, nossa Pasárgada (Vou-me embora pra Pa-sárgada / Lá sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei – Manuel Bandeira), ilha onde nasceu a cidade e abriga o cais do porto, de noite era o reduto, naqueles bons tempos, de sadia e ingênua boemia. Não havia violência e a maior aventura era fumar, beber cerveja, rum com coca-cola, namorar e dançar com as “meninas” ao som da radiola de ficha (**), em lugares como Curral das Éguas, Pensão da Laura (de mulheres lindas), Bar do Grego, Flutuante, Avenida, Moulin Rou-ge, Maria Magra, e outros, como Rendeuz Vous, Night and Day e bar e restaurante O Gambrinus, que funcionavam no belo edifício Chanteclair, de estilo eclético, construído entre 1910 e 1926, e desde 2001 aguardando, do Patrimônio Histórico, restauração pa- 48

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ra funcionar como centro de cultura, abrigando cafés, livrarias e galerias de arte. E quando a fome apertava, fazer um lanche na famosa Lan-chonete As Galerias, fundada em 1928, no térreo de imponente prédio antigo (Companhia Aliança de Seguros da Bahia), onde funcionou por 74 anos, no encontro das Ruas Marquês de Olinda e Rio Branco, hoje magnificamente restaurado. Em 2002, a lan-chonete mudou-se para a vizinha Rua da Guia, mas continua ser-vindo o famoso maltado cubano com o tradicional bolo de trigo com castanhas. A terceira geração da família, dona do negócio, tem planos de voltar para o antigo endereço, antes do aniversá-rio de cem anos. A música ia dos bolerões de Bienvenido Granda, Nelson Gonçalves, Trio Iraquitã ao dramático tango argentino, cujo ban-doneón lembra a sanfona nordestina. Depois, na madrugada, voltar pra casa liso (ou direto para o trabalho), até o próximo pagamento, sem tostão, sem lenço, sem documento, feliz, feliz. Éramos todos jovens e não sabíamos. (*) S2 – Soldado de 2ª Classe; QIG FI – Quadro de Infantaria de Guarda – Fileiras; 57 – Ano da incorporação; 2002 – Prefixo da 2ª Zona Aérea (hoje COMAR-2); 430 – Meu número-nome de Recruta, pelos colegas apelidado “Capitão”. (**) RADIOLA DE FICHA – Depois do último bolero, um tango na ma-drugada, / porque o frevo rasgado da alvorada / já sacode os clarins chamando o dia. / Os ventos alísios sopram os bandoneóns / dos coquei-ros entremeando os sons / da festa, na noite quente, que agoniza. / Bandoneóns, milongas, el hombre burlador / que mantiene a una mujer, quanta dor / no tango libertino (libertário?) da madrugada / saído da radiola de ficha do bar pagado ao cais. / O Recife boêmio sangrando nos finais / de noite dos dedos cor de rosa da alvorada. 49

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PROFESSOR PARDAL OEIG – Curitiba – 1968-69. O professor Balin, no cur-so básico, ensinava química teórica e prática. No labo-ratório, armávamos as equações químicas e passáva-mos às experiências, com tubos, pipetas, bicos de Bunsen. Numa delas, o resultado era carbono puro, que o professor comia na nossa frente, para provar que era carbono mesmo. Para o pessoal do Curso de Avião, no curso especializado, o mestre ensinava química dos combustíveis e lubrificantes, com suas enormes cadeias de hidrocarbonetos derivados do petróleo. Nas aulas, essas cadeias logo tomavam conta do grande quadro negro, e o professor, ao chegar ao fim do quadro, começava a apagá-lo para abrir espaço para mais equações. Até que recla-mamos, por não podermos fazer os nossos apontamentos, e o mestre não se fez de rogado: continuou a escrever as equações por sobre as já escritas. A solução foi, no intervalo de duas aulas consecutivas, cer-car o professor, distraí-lo, enquanto um de nós surrupiava de sua velha bolsa de couro as anotações em que se baseava para mi-nistrar a matéria. E nunca mais reclamamos do professor, que, zen e precursor dos nerds, não se alterava com nada, mas tam-bém, a par de ensinar bem, não refrescava nas provas. 50

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CHIBATINHA earense de Caririaçu, a cinco léguas de Juazeiro do “Padim Pade Ciço”, Manoel FERREIRA Bezerra (in memoriam), o “Chibatinha”, amargou 14 anos como tenente e acabou na reserva e posteriormente reformado como capitão de Infantaria. Nos anos 1950, de convocação compulsória para os conscritos, ele ingressou como recruta, na BAFZ, miudi-nho, xoxinho e com apenas 1,56 m de altura, na condição de “soldado voluntário”, aproveitando legislação especial da época, que baixou a altura mínima de 1,60m para 1,55m dos convoca-dos, para poder completar o efetivo, devido à baixa estatura co-mum no cearense e no nordestino daquele tempo. Esqueceram que Ferreirinha era “voluntário”, ele fez o curso de cabo e foi promovido. Prestou concurso para a EEAR (Escola de Sargentos), passou, mas ficou em altura no exame de saúde. Depois de um semestre assistindo às aulas como ouvinte, teve ganho de causa. Se podia ser cabo, podia ser sargento. Na Esco-la, Chibatinha fazia dupla com o aluno Júnior, o “Pinguelão”, grandalhão de dois metros de altura. O tempo passou e aconteceu que Ferreirinha foi aprovado no concurso da EOEIG (Escola de Oficiais Especialistas e Infan-tes) e a altura novamente o reprovou, agora para o oficialato. Meses depois, e de novo assistindo às aulas como ouvinte, foi pela décima vez chamado ao CEMAL (Centro de Medicina Aeroes-pacial), hoje IMAE (Instituto de Medicina Aeroespacial), e enca-minhado para a sala de um coronel médico, para o diagnóstico final. Quando entrou na sala, Ferreirinha contou que viu, quase escondido por trás do birô, aquele coisinha pequenininho levantar os olhos para ele e perguntar: “Qual é o teu caso”? E Ferreirinha: “Altura”... “O quê? Altura? Está aprovado!”, disse o coronel, de Chiba-tinha para Chibatinha. 51

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SARGENTO FEDERAL AGL – Abril de 1964. No calor do movimento militar, triunfo da ditadura de direita sobre a ditadura de es-querda (as únicas opções para o Brasil, naquela épo-ca), aproveitei a folga do almoço para ler A Arte de Amar, do respeitado psicólogo americano Erich Fromm, verdadeiro hino à liberdade, segundo intelectuais do Movimento Comunista Inter-nacional – MCI. Fui abordado pelo “Sargento Federal”, colega graduado, bem mais antigo, a serviço da inquisição nos quartéis, que tomou o livro das minhas mãos e conferindo apenas o título, sem se preocupar com o conteúdo, sorriu magnânimo, devolveu-me o livro e ainda me chamou de “novinho sonhador”. A partir daí, tendo escapado graças ao despreparo do a-prendiz de Torquemada (Tomás de, 1420-1498, inquisidor geral para a península Ibérica), nunca mais li nada em público e che-guei até a queimar alguns livros. Entre eles, um exemplar da revista Fatos e Fotos, onde eu e mais quatro colegas aparecía-mos, numa reportagem sobre “sargentos estudantes”, novidade na época. Era a agitação política da esquerda nos quartéis alici-ando os graduados. Ditadura é isso: queima livros. E o cidadão, com medo de ser queimado junto, além de ficar calado, também queima livros. 52

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CUPIM ARF, ESM, 1965. “Cupim” ou “Bicho de Pau”, apelido do 1S Júlio, carpinteiro (Q AT CP), um dos últimos da especialidade na ativa, do tempo dos aviões de ma-deira e lona. Era um doce de pessoa, alegre e divertido, forte como um touro, mas tinha um fraco pela “branquinha”, apaixo-nava todas. Certa vez, ao atravessar o pátio do ESM que separa as ofi-cinas especializadas do hangar de nariz (pequeno hangar onde só cabe o nariz do avião), Júlio, como sempre, calibrado, parou no meio do caminho, tentando se equilibrar para prosseguir. Observávamos a cena de longe e aconteceu o que temía-mos: o tenente av, na sua indefectível bicicleta, para ao lado de Júlio e, de dedo em riste, passa-lhe uma descompostura. Sem que ninguém esperasse, Júlio “Cupim Bicho de Pau” levantou a bicicleta, com o tenente nela escanchado, susteve-a no ar por um tempo e a soltou em queda livre de uma altura de mais ou menos um metro do chão. Foi um desmantelo. O tenente rapidamente se recompôs da queda, montou na bicicleta, viu que tínhamos visto tudo e sumiu. Cuidamos de esconder Júlio. O tenente, competente, bom caráter e boa índole, chegou a “quatro-estrelas”. Júlio, graças à magnanimidade do tenente, do contrário, em plena ditadura, teria sido expulso, só foi punido pela cachaça que tomou. 53

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MADAME MUM OMAR-2, anos 1980. Ela, “irmã em Cristo” (protestan-te), “assumiu o comando” junto com o marido. Pelo conjunto da obra, logo passou a ser chamada “Mada-me Mum”. O apelido foi copiado da mulher do reverendo Mum, casal fundador de seita religiosa e muito conhecido, na época. Pois bem. “Madame Mum” estava empenhada na prepara-ção do velho e acanhado clube dos oficiais, para o baile do avia-dor. A construção, precária, ainda era do tempo do americano, de economia de guerra. O sistema elétrico teria que ser trocado, recalculado e balanceado, para poder sustentar a feérica ilumina-ção programada para a festa. Coube ao comandante da Base, de saudosa memória, um perfeito cavalheiro, a responsabilidade de resolver o problema. Quando ele assumiu o comando, por dias seguidos a tropa cantou velha toada nordestina, cujo refrão diz assim: – “Mais cuma é o nome dele? – É Mané Fuloriano”. O capitão de Comunicações ALUÍSIO Crespo, hoje major na inatividade, o popular “Gatão” ou “Munganga”, já havia ilumina-do, para uma festa, o estádio da Base, também construído pelo americano, e que vivia às escuras, e foi convocado para fazer o mesmo no clube dos oficiais. Com seu jeitão desengonçado, transparente e simples de matuto de Catende, Zona da Mata Sul de Pernambuco, imortalizada em poema de Ascenso Ferreira (“Vou-me embora pra Catende / Vou-me embora pra Catende”) em versos que imitam o trem a vapor de antigamente levando o povo para a cidadezinha, a cana de açúcar para as usinas e o estado de Pernambuco para o atraso da monocultura canavieira, Aluísio parte para o clube. Mal começa a trabalhar no planeja-mento da obra, a “Madame” se põe a atanazá-lo, forçando-o a se segurar como pôde. De volta à Base para o almoço, ele procura o comandante e pede dispensa da missão, porque não aceitava ordem de uma que nem militar era, e que, se não fosse dispen-sado, acabaria dando “um empurrão na velha”. E dava, mesmo, afianço. O fato é que, pelo tempo que durou o serviço, o coronel passou a dar expediente no clube segurando a nada fácil vene-randa senhora longe de Aluísio, fazendo a ponte entre eles. Gra-ças a essa corajosa atitude, viabilizou-se a parceria inusitada entre o poder arbitrário, o poder moderador e o subordinado in-defeso, e uma cascata de luzes alumiou, numa noite de gala reci-fense, o baile do aviador. 54

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COMPORTAMENTO AO, Cumbica, 1983, última turma do “Casarão”, como era conhecido o prédio da Escola. O professor, psicó-logo da USP, ministrava aula sobre comportamento (toda resposta de um organismo vivo a estímulos, segundo o Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano, Editora Martins Fon-tes, São Paulo, 2007) e explicava que, na psicologia, como nas ciências, era preciso também fazer observações, e acrescentou: “Por exemplo, num galinheiro”... Não conseguiu concluir a frase. O auditório em peso, de 104 capitães (menos os quatro estrangeiros, que não entende-ram nada) estrondou em um cocoricó ensurdecedor. Impossibilitado de falar com tanto barulho o professor, do alto do palco onde ficava a sua cátedra, fazia gestos indicando também não estar compreendendo nada. Começaram então a apontar para determinado capitão, e berrando para o mestre: “É ele, professor, o ‘Zé Galinha’!”, apeli-do que o inditoso carregava desde os tempos de cadete. O cocoricó, engrossado pelo coro de “Zé Galinha”, virou ga-lhofa geral, que era o que a turma queria, para acabar com a aula “sacal”. 55

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COMUNISTA ortaleza, anos 1950. Ferreirinha (in mermoriam) nas-ceu e se criou em Caririaçu, sertão seco e brabo do Ceará. Adolescente, mudou-se para a casa de um tio em Fortaleza, para estudar no colégio estadual. O tio era comunista e saía à noite levando o sobrinho para pichar muros com palavras de ordem do partidão. Preso incontáveis vezes pela polícia, Ferreirinha, meninote miúdo e baixinho, era logo posto em liberdade, escapando de ser “fichado” como comunista, coisa que ele nunca foi. Aos 18 anos, sentou praça na Base Aérea de Fortaleza, a-pesar da pouca altura (1,56 m), favorecido por legislação especi-al da época (Ver a história Chibatinha). Graças às circunstâncias, por não ter prevalecido a insen-satez – nem dos que pichavam, nem dos que prendiam – Ferrei-rinha conseguiu ser oficial infante da Força Aérea. Por ironia, hoje prevalece a insensatez dos que pichavam, estribados no politicamente correto e no revanchismo. E como eles sabem que a história só se repete como farsa, mudaram o foco da revolução: de pobres assaltantes de banco, passaram a ricos aliados dos banqueiros. E como sempre, em nome do povo e da “democracia”.

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JAGUÁ... O QUÊ? aspirante de reconhecimento foto Edmar Alquindar de AZEVEDO (EOEIG, turma 1973), hoje major re-formado, engraçado e singularíssimo, vai servir em Anápoles, no Grupo de Defesa Aérea (GDA), 1ª Ala de Defesa Aérea (ALADA). Logo descobre que só os caçadores pilotos de Mirage são “JAGUAR”, e que ele, Asp AZEVEDO, mesmo fazendo o reconhe-cimento e a interpretação foto de alvos para os caçadores, não pode, como devido, ser JAGUAR. Depois de fazer de tudo para ser JAGUAR (a mesma luta do técnico e do médico para serem POTI no 2º/8º Gav, em vez de ridículo CURUMIM), ao contrário de outros esquadrões, como o 1º/6º Gav, de Reconhecimento Foto, onde todos os oficiais são CARCARÁ), o aspirante, para gozar os caçadores, resolve que a partir dali os oficiais técnicos, nos códigos de guerra aérea da 1ª ALADA, passam a ser “JAGUÁ...TIRICA”. E brinca com todos, até com o temível coronel comandan-te, hoje “quatro-estrelas” inativo, batendo continência e dizendo: “O JAGUÁ...TIRICA saúda o JAGUÁ!”. Os caçadores não gostam, mas o Azevedo, figura cativante e difícil de definir, porque não cabe exatamente no perfil militar, acaba envolvendo-os com seu jeito simples e espontâneo, rindo de tudo e de todos com uma aparente ingenuidade que, no fundo, é pura sabedoria. Por causa dessa história, que nos contou ao chegar para servir no 1º/6º Gav – BARF, feliz por ser CARCARÁ, ganhou o apelido de “DEFESA AÉREA”, o popular “DEFESA”, como ficou conhecido.

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“JANUÁRIO BRAVO” ARF – Anos 1970 – 2º EMRA. Naqueles bons tempos, acampava-se muito, e dessa vez estávamos mano-brando em Bom Jesus da Lapa, às margens do Rio São Francisco. Dizia-se, à boca miúda, que era treinamento para nos juntarmos ao EMRA-1, no Araguaia. Na montagem do acampamento, um bando de tenentes (criados em apartamentos de cidade grande) fica extasiado dian-te de um ninho de “corujinhas” entre as barracas. No meio dos tenentes, o 1º ten av João Batista, o popular “JB” ou Juliett Bravo, no alfabeto fonético (24) natural de Goia-na, Goiás, que deixou a FAB como capitão para ser juiz de direi-to. Foi aí que o 1º ten esp av Waldemiro (essa eu vi, ninguém me contou), nascido e criado em Bodocó, Alto Sertão de Pernambu-co, gritou para o tenente “JB”: “Ou ‘Januário Bravo’ e demais abestados! Não são ‘corujinhas’, propriamente, são caborés”! O tempo fechou. O tenente Juliett Bravo, agora “Januário Bravo”, não gostou. O tenente Waldemiro, no ato, deu explicação surpreendente, logo aceita pelo ofendido: é que, devido às suas origens sertanejas, o nome Januário (pai de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião) estava tão enraizado no seu subconsciente, que saiu sem querer. Mas o apelido, – “Januário Bravo” – colou, e deixava o te-nente transtornado. Depois, o Waldemiro me contou que tinha sido mesmo ar-mação. 58

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YOU RAMP KULA? os anos 1960, ainda havia americanos na Base Aérea do Recife. Conheci, armados de enormes cassetetes, três funcionários da Base remanescentes da antiga Guarda Civil de Segurança Interna, herança do americano: Zé Monteiro, ainda vivo, com 93 anos (2014), Mané da Pista e Zé Guarda. Zé Guarda, grosso, grosso, chega-se a um grupo do ESM e comenta: – Lá no hangar dos gringos, teve um que me olhou e disse: “You ramp kula”? O que gota serena isso quer dizer? O funcionário civil Leite, brincalhão, mas falando sério, fita a figura e solta a bomba: – Ele quer de papar... Zé Guarda arretou-se: – Vou matar esse gringo! E saiu na direção do hangar dos americanos. Horas depois, decepcionado, volta e comenta: – Esses americano é tudo galegão, grandão, artão, fortão, feiozão. É tudo igual. Não podia matar todos eles... 59

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CAÇA & PESCA & CIA ARF, 1966. Primeiro-tenente de Avião, Ibiapina, o “Pantera Cor de Rosa”, de serviço de Oficial de Ope-rações, recebeu avião de caça em trânsito. O piloto, segundo tenente aviador, desceu do caça, prestou continência à prussiana, e disse, quase aos berros: “Tenente ‘Kojak’, da caça”! Ouviu de volta, surpreso, resposta com a mesma encenação e mesmo tom: “Tenente Ibiapina, da pesca”! “Kojak” não gostou, mas como era mais moderno, botou a viola no saco e saiu de fininho. Muito depois, nos anos 1980, essa história foi debatida nas “Malvinas”, fórum informal de oficiais técnicos, que, mesmo priorizando a brincadeira, encarava as coisas com seriedade. O tenente de Comunicações “Avestruz”, a quem chamávamos “Ze-ro-Um” (não confundir com primeiro de turma, mas por ser este o número do avestruz no jogo do bicho) fez interessante resumo dos debates daquele dia: “Quem não é da ‘Caça’ é da ‘Pesca’, regra válida só para aviadores. O resto é o resto, compondo o ‘& Cia’, bem à moda da casa”. A síntese do “Zero-Um” foi aceita, mas na condição de in-conclusiva. Análises ratificadas por pesquisa empírica revelaram que mais ou menos 90% dos aviadores que entram no jogo duro do poder, também acabam como meros figurantes, compondo o “& Cia” da maioria dos mortais, fazendo número, e até carregan-do piano. 60

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CLUBE DA AROEIRA mazônia, anos 1970. Em apoio à engenharia do Exér-cito (Operação RADAM), o 2º EMRA opera dois heli-cópteros UH-1H, com tripulações e equipe de terra trocadas a cada 15 dias. Em Parintins, juntam-se quatro amigos de fé: eu (ten esp av), bebedor modesto, e três excepcionais levantadores de copo: cap av Osvaldo (in memoriam), ten méd Cristóvão e ten esp com Aluisio, reformados respectivamente como major-brigadeiro, coro-nel e major. No campus do Projeto Rondon, onde estávamos hos-pedados, não se podia “apaixonar” uma caninha antes do tamba-qui (peixe) do almoço e do jantar de todos os dias. Solução: andar mais de 1 km até o cais do porto, no rio Amazonas, a outra mar-gem longe, no horizonte, entrar no bar, em frente aos navios e suas redes de dormir, pedir um litro de “Velho Barreiro” e enquan-to eu tomava um cálice, eles entornavam o resto, abrindo o apeti-te para o peixe. Cristóvão, para evitar as caminhadas, propõe comprarmos, cada um, dois litros da cachaça, tirar os rótulos, esconder na mala do médico (uma bolsa de paraquedas, a “mãezona”), colar nas garrafas esparadrapo com a legenda “mertiolate branco” e provi-denciar lugar próximo para a confraternização. No dia seguinte, antes do almoço, vamos para a sombra de imensa castanheira em frente ao campus, que não sabíamos o nome e chamei aroeira, árvore de porte e comum no Nordeste. Estava fundado o Clube da Aroeira. A bolsa do médico é um bar completo: “mertiolate branco”, copos para as bicadas e bananas e cajus de tira-gosto, além, naturalmente, de remédios. A onda pega e todos aderem, militares, estudantes e mora-dores da cidade, com violões, seresteiros, muita cachaça e tira-gosto, a ponto de a sombra da “Aroeira” não chegar para todos e todas. O clima de festa fica mais animado quando alguém inova e recita uma loa, antes de bicar: “Do Crato para Barbalha, / periqui-to mordeu jandaia. / O bicho que mata o homem / mora debaixo da saia. // Tem asa que nem morcego, / tem ferrão que nem la-craia, / tem um bidolo no meio / onde a moçada ‘trabalha’”. Ou: “Moça nova quando mija / faz um buraco no chão. / É a força que vem de dentro, / da mola do ‘camarão’.” Virou moda. Até que acontece o impensável. O general chega para visita de inspeção. Simula-se (mas que ideia!) acidente de militar na descida de rapel no voo pairado para abertura de clareira. Cristó- 61

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vão, com a sua mala-bar, corre para prestar socorro e na confu- são, a dois passos do general, ajoelha-se diante da “vítima” e abre de supetão a “mãezona”, derruba no chão copos, cajus, bananas e, no sufoco, destampa o “mertiolate branco” por engano e dá banho de cachaça no soldado. Em plena tarde amazonense, no calor e na umidade da mata, sobe o cheiro inconfundível da “marvada”, e o que se vê é uma enorme cara de espanto do general. Nessa noite, a festa foi de arromba no Clube da Aroeira. 62

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GALEGO D’ÁGUA DOCE ARF – 2º EMRA – Anos 1970. O tenente piloto da re-serva convocada, típico loiro alemão catarina, conta que, onde chega, aqui no Recife, atrai o olhar de to-dos, principalmente das mulheres, pelo seu tipo ariano “bonitão” diferente do nordestino. Para contrariá-lo digo que realmente ele atrai os olhares, não pela “beleza rara”, mas porque, quando avistado, todos se divertem recitando baixinho: “Galego d’água doce, / deu um pei-do, se cagou-se”! O galego não acredita, diz que sou sacana e que estou brin-cando com ele. Chamo o suboficial Emerson, o popular “Chumbi-nho” (já no andar de cima), nascido e criado em Lagoa dos Ga-tos, Agreste de Pernambuco, e proponho: “Chumbinho, vou reci-tar para o tenente a primeira parte de um “verso” e você comple-ta com a segunda. Lá vai: ‘Galego d’água doce’...” Chumbinho percebe a enrascada, gagueja, entorta-se todo e pondera: “Não posso, pois, se eu completo, o tenente me pren-de”. O alemão então viu, pela reação de Chumbinho, que não passava mesmo de um galego d’água doce. 63

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TROFÉU CAMBURÃO ARF – 2º EMRA – Anos 1970. Contada no site Reser-vaer pelo SO Ref Brito, “Clareza 5” é uma história de controlador de voo que chega atrasado para render o colega e justifica dizendo que “faturou”, a bordo do seu fusquinha e debaixo da ponte do Galeão, uma dama “clareza 5/5” (25), daí ter perdido a hora. Questionado pelos colegas quanto à “beleza” da dona, e não contra o fato em si, foi forçado a baixar a cotação da perua para 2/2, considerada “aceitável”, pois “avião” não pousa debaixo de ponte. Com relação a esse tipo de “clareza”, acontecia o mesmo nas missões de UH-1H do 2º EMRA na Amazônia (Opera-ções DINCART e RADAM), com dois helicópteros o ano inteiro na área, e suas equipes de voo e de terra trocadas a cada 15 dias. No primeiro dia “no mato”, ninguém achava uma “cabocla” bonita. No segundo dia, começava a achar bonitinha. No tercei-ro... É o que a turma chamava de ajuste de altímetro. Isso para os “sofisticados”. Para a patota conhecida como “JOTA CASCALHO”, que já chegava de altímetro ajustado, essas filigranas não existiam. E era dessa tropa de choque que o Esquadrão, todo fim de ano, escolhia o vencedor do troféu CAMBURÃO (miniatura de lata de lixo), dado a quem “faturasse” o bagulho do bagulho. 64

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REQUERIMENTO ARF, 31 Ago 1988. Nessa data, fui promovido a te-nente-coronel, então o último posto para o técnico. E justamente por ter atingido o último posto do Quadro de Avião, passaram carinhosamente a me chamar de brigadeiro da graxa. 22 anos depois, e transcorridos 70 anos de fundação da FAB, foi criado o posto de coronel para o técnico e abertas, para ele, as portas da ACEMAR e do Curso de Comando e Estado-Maior, obrigatório na promoção a coronel e pré-requisito para o generalato. Daí, lembrei-me, quando da minha promoção a tenente-coronel, da brincadeira de requerer matrícula na ECEMAR, como ouvinte, no Curso de Comando e Estado-Maior. Não esperava ser levado a sério, mas fui, pois a preocupação com o precedente que a minha matrícula causaria fez a historia prosperar, divertin-do-me bastante. 65

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AMIGO É BOM ARF – 1º/6º Gav – 1973. Figura engraçadíssima, o cabo Afonso, mecânico auxiliar, é conhecido como “Amigo é Bom”, porque é assim que a todos trata, até quando bate continência. Só para tirar onda, usa maceteada calça de brim azul do uniforme da manutenção com o cós quase na altura do peito, e está sempre de bom humor. Depois de 20 anos como cabo, é promovido a 3º sargento QC (Quadro Complementar). No dia seguinte à promoção, faz o que nunca pôde fazer (naquele tempo, e por ser cabo) e agora pode: chega para o expediente em trajes civis, mas em grande estilo: jaquetão de pervinc 70 (tecido em moda para ternos), gravata borboleta, chapéu marca Ramenzoni, sapato Vulcabras 752, lenço no bolso por trás da lapela. Dirige-se para as suas novas instalações, o alojamento dos sargentos, farda-se e vai para o hangar. Uma turma de seus no-vos colegas improvisa boneco, veste-o com o jaquetão completo, chapéu e tudo mais, surrupiado do “Amigo é Bom”, e lambuzado de graxa e óleo, tornando o terno, e acessórios, imprestável. Na folga para o almoço, sem curiosos por perto, o boneco é solenemente “hasteado” na parte mais alta do interior do han-gar, tendo, no peito, como tarjeta, placa em letras garrafais onde se lê: 3S Amigo é Bom. Na formatura de reinício do expediente, depois do “fora-de-forma”, acontece estrondosa recepção ao bo-neco. Presente, o comandante do Esquadrão, Ten Cel Wander-ley, conhecido, pelo seu rigor e retidão, como “O Homem do Ri-fle” (personagem de filme seriado da época), tolera a brincadeira a seu modo, sem se envolver. Com a força dada pelo comandan-te, o boneco faz sucesso por muito tempo, encarnando o bom humor e a criatividade do nosso povo. Palmas para o comandan-te, palmas para a nossa gente. 66

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PROMOÇÃO POR MILAGRE

ARF, entorno de 1975. A Guarnição da Força Aérea (que teimam em chamar “da Aeronáutica”) do Reci-fe tinha um capitão-capelão na Base Aérea e outro

no COMAR-2. Um dia, fora de época de promoções, e mesmo sendo uns 15 anos mais moderno que o colega da Base, o capelão do CO-MAR, por ser comando superior (pelo menos foi o que me disse-ram), foi promovido a major. O capelão, antes, incorporava na FAB no posto de capitão e passava para a reserva no mesmo posto. Com a reestruturação do Quadro, passou a ser admitido tenente, com carreira até co-ronel. O capelão da Base, inconformado com a “injustiça”, pas-sava o tempo se lamentando. Almoçando com ele no refeitório dos oficiais, dei-lhe a explicação para o fenômeno: há promoção por antiguidade, merecimento, escolha, bravura, pós-morte e até por decisão judicial, mas o capelão, fugindo à regra, é promovido “por milagre”. O tempo fechou. O santo homem queria me enquadrar no Código Canônico (como herege) e no Código Militar (como indis-ciplinado). Mas acabei perdoado. Amém.

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CANECO AMASSADO ARF – 1º/6º Gav – ANOS 70. A Zona Franca de Ma- naus estava no auge da febre de compras. O C-130 do 1º/6º Gav decolou de Manaus para Recife, depois de uma semana de missão foto. Os tripulantes, além de “bagu-lharem” para si, atendiam aos pedidos de compras de não aero-navegantes, parentes, amigos e aderentes. Nessa viagem de volta, os sargentos esconderam em uma bolsa de paraquedas (conhecida no 2º EMRA como “mãezona”, porque cabe muita coisa e fica no tamanho exato do seu “con-teúdo”) um monte de relógios, e amoitaram a muamba na altu-ra de uma das macas de descanso dos tripulantes em reveza-mento de funções a bordo. “No meio do caminho” (Dante, Divina Comédia, Inferno, I, 1), o comandante do avião, major “Caneco Amassado”, resolveu tirar uma madorna, subiu para a maca e fez travesseiro da “mãezona” recheada de relógios. “Caneco Amassado” dormiu até o Recife, deixando o pes-soal apreensivo pelo temor de que achasse o travesseiro “muito duro” e descobrisse a mutreta, o que não aconteceu, pois acor-dou disposto, pulou da maca e ainda guardou no mesmo lugar o “travesseiro”, para alívio geral dos muambeiros. 68

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O MILAGRE DE “FAZER CHOVER” ARF – ESM – anos 80. Eu era chefe do Planeja-mento e Controle e por força da função estava “em todas”. Assim passei a ser responsável direto pela manutenção de três Bandeirantes do CTA, que vinham se somar aos aviões do 1º/6º Gav, 2º ETA, aviões e helicópteros do 2º/8º Gav e aviões em trânsito, pois a manutenção era integrada. Os três aviões eram parte de convênio do CTA (hoje DC-TA) com a SUDENE e o governo do estado, para operar o milagre de “fazer chover” no Sertão nordestino. O sal utilizado para o bombardeio das nuvens preocupava, pois causava corrosões sé-rias na estrutura e nos conjuntos mecânicos, como os servos hi-dráulicos, principalmente na área da cauda dos aviões. Os cientistas eram velhos capitães inativos, especialistas em meteorologia, contratados pelo CTA para a pesquisa do clima. O chefe deles era orgulhoso, arrogante e mandão, com quem eu trombava todo dia. Era um inferno. Todo mundo mandava nos aviões: A SUDENE, o governo do estado (Casa Militar), o CTA (os cientistas), o COMAR (A-3) e o ETA (operador dos aviões), e en-tão eu resolvi não mais ouvir ninguém. Como a barra começou a pesar, porque tinha muita gente querendo aparecer, fiz relatório propondo fluxograma de ordens e atividades para o caso, protocolei e enviei aos comandantes do ESM e da Base, autoridades da minha cadeia de comando ignora-das pelos “donos” do projeto “chuva”. O relatório foi mandado a todos os interessados, via ofício, pelo Cel Fontenelle, então Comandante da Base, e o fluxograma passou a ser rigorosamente cumprido. A partir daí, posto cada qual no seu quadrado, voltei a trabalhar com autonomia para decidir o que a mim competia decidir. 69

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CAVALO INTELIGENTE ARF, anos 70. Desta vez, o desfile de 7 de setembro contou com uma novidade: a abertura feita por co-missão de frente composta por quatro oficiais mon-tados em enormes cavalos de raça representando o Exército, a Marinha, a Força Aérea e a Polícia Militar. Apesar de o nosso representante, tenente intendente do efetivo da Base, ter treinado um mês inteiro montaria no Regi-mento de Cavalaria da Polícia, no dia do desfile, bem em frente ao palanque das autoridades, a marcha batida da banda de músi-ca militar, somada à inexperiência do cavaleiro, assustou o cava-lo do intrépido intendente. O animal empinou-se nas patas trasei-ras, derrubou seu condutor e disparou avenida afora. O tenente, com quepe, espada, luva, rebenque, bota de montaria, pôs-se de pé rapidamente e saiu correndo atrás do cavalo, com a intenção de contê-lo, provocando o riso da assistência. Na volta ao quartel, inventaram que o tenente caiu na ga-lhofa do povo porque, ao se levantar da queda, saiu correndo e gritando: “Semovente, você pode ser mais inteligente, mas duvi-do que corra mais do que eu”. Pacato, o tenente acabou perden-do o sossego com a brincadeira.

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O BÊBADO comandante da Base era exigente e muitos tinham medo dele. Eu, capitão, designado para uma sindi-cância, fui chamado à sua presença. Ouvi que a sin-dicância serviria de base para a expulsão de 1º Sgt Qav. No per-noite de uma viagem, o sargento embriagou-se e não conseguiu, na manhã seguinte, aprontar a aeronave para decolagem. Pensei em recusar a missão, por se tratar de jogo de cartas

marcadas. Mas como, desde muito tempo, conhecia a luta do companheiro para se livrar do alcoolismo, sabia se tratar de do-ença, e não de indisciplina, mas não consegui convencer o co-mandante disso. Vi por aí a saída ao mesmo tempo justa para o “réu” e honrosa para mim. E sem titubear tomei esse caminho. Bastava o doente não ter sido promovido a suboficial por conta da doença.

Requeri ao hospital, via ofício, cópia do prontuário médico do sargento, onde, há anos, vinha sendo registrado o diagnóstico de alcoolismo crônico. Argumentei, diante de provas irrefutáveis, subsidiadas por oficiais médicos, que o mesmo precisava de tra-tamento para controle da doença, desde então negligenciado pela administração.

O comandante não gostou, mas concordou. Tinha poderes para não concordar, mas o que apurei e concluí ficaria registrado. E isso, com certeza, teria implicação jurídica futura, como leal-mente o alertei. E sem contar o fato de que faltava pouco menos de um ano para a reserva do referido militar.

O sargento foi afastado do voo, transferido do ETA para o ESM e eu ouvi que ficaria responsável por ele. Trabalhou comigo, na burocracia da manutenção, até se aposentar. Foi colaborador exemplar. Para surpresa minha, o comandante, provando o seu caráter, ao passar o comando me elogiou individualmente, talvez por conta dessa sindicância.

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O EQUILIBRISTA Bêbado” e “O Equilibrista” são histórias muito parecidas. É provável que, por isso, eu tenha sido novamente chamado, pelo mesmo exigente comandante, para ser ouvido sobre os reiterados conceitos bai-xos, principalmente na “capacidade de trabalho”, de outro 1º Sgt, do 1º/6º GAv, que pretendia punir com 30 dias de cadeia e ex-pulsão. Perguntou-me se conhecia bem o sargento e se concorda-va com as notas insuficientes, eu disse que sim e sim, mas que era uma temeridade expulsá-lo ou puni-lo, pois desde a formatu-ra na EEAR, apesar de inteligente e de se relacionar bem com todos, não gostava de trabalhar, tendo, por isso, perdido a pro-moção a suboficial. E mais, não foi dispensado ao completar os cinco anos obrigatórios como graduado e findou se efetivando, aos 10 anos de serviço. E não seria agora, no final do seu tempo na ativa, que se conseguiria compensar esse erro da administração com tenta-tiva tardia de correção do militar, cujo histórico não apresentava falta grave ou mau comportamento contumaz. O coronel não disse nada e me dispensou. No dia seguin-te, o sargento apresentou-se para “trabalhar” comigo. Ossos, ossos, mesmo, do ofício.

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HISTÓRIA DE UMA CANÇÃO MRA-2, 1978. Tenente mais antigo, chefe da Manu-tenção e oficial de Mobilidade, nas manobras e acam-pamentos eu seguia antes e voltava depois dos avi-ões e helicópteros (três a cinco dias, nos dois casos), com o efe-tivo de apoio ao combate e as tralhas da guerra. Montado o a-campamento, procedia às formaturas, hasteava e arriava a ban-deira ao toque da corneta, mas faltava uma canção guerreira. Era preciso que contivesse introdução vibrante e própria para corne-ta, único instrumento nos acampamentos, e que fosse simples e atingisse a todos. Por bom tempo, com essa finalidade, procurei compositores, mas sem sucesso. Então escrevi a letra, com estri-bilho inspirado no grito da torcida nos jogos do Esquadrão, e três estrofes falando dos hangares, da pista, do avião, e a apresentei a músicos para musicá-la, sem também nada conseguir. Na volta da Manobra Real de 1978, em minha casa, como não sou músico, nem sei escrever música, muni-me de pequeno gravador e ten-tei, o dia todo, descobrir uma linha melódica para a letra, até que consegui cantar por inteiro a Canção do 2º EMRA. O 1º Sargento Wilson, músico e arranjador criativo, escre-veu a partitura básica, ajustando as sílabas dos versos (que, às vezes, precisavam ser modificados) a cada nota da Canção. De-pois partiu para a orquestração, onde os instrumentos se casam e se afinam, em harmonia, permitindo, em termos técnicos, os ensaios da Banda. Restava agora apresentar o trabalho ao Es-quadrão. O Comandante, ten cel av João Celso D’Ávila CARVA-LHO (in memoriam), que aprovou a iniciativa desde quando ouviu a fita precariamente gravada por mim, reuniu oficiais, graduados e praças no hangar, todos com cópia da letra e acompanhados em surdina pela Banda de Música, e logo se familiarizaram com a Canção. Foi uma identificação rápida e surpreendente, aprovando o trabalho que, agora, não mais me pertencia. Um dia, a denominação 2º EMRA foi mudada para 2º/8º GAv pelos caçadores. Não podíamos reconhecer e atacar. Mas continuamos o mesmo POTI, atacando e reconhecendo. E a Can-ção? Foi modificada a letra de 2º EMRA para 2º/8º GAv, com vol-ta à Banda e ao Sargento Wilson, para novo ajuste entre letra e música. A Canção nasceu assim, singelamente, e continua, desde 1978, embalando a marcha e o apronto para o combate do Es-quadrão POTI. Nota: 73

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O Esquadrão foi transferido do Nordeste (Recife), para o Norte (Porto Velho), e agora só voa helicóptero. Como metáfora, porém, a letra continua falando de Nordeste (5º verso da 1ª es-trofe), berço do guerreiro POTI, e de avião (6º verso da 2ª estro-fe), símbolo da atividade aérea. Poxy Poyi! CANÇÃO DO 2º/8º GAv: Letra e música: 1º Ten Esp Av José NOGUEIRA Sobrinho Orquestração : 1S Mus WILSON Bezerra de Souza (in memoriam) 1ª estrofe – Segundo do Oitavo / Grupo de Aviação / no azul do firma-mento / sublimas a Nação. / Brilhando ao Sol-Nordeste / o pássaro tro-vão / é o sentimento vivo / da mais pura tradição. Estribilho – Azul, branco e encarnado, / tudo gravado / no Pavilhão, / salve, salve, / salve o Segundo / do Oitavo Grupo de Aviação. (Bis). 2ª estrofe – Refulge em cada peito / dos teus filhos guerreiros / o amor pelo Brasil, / pela paz, pelo Cruzeiro. / A lida nos hangares, / na pista, no avião, / nos faz cantar mais forte, / bem mais forte, esta Canção. 3ª estrofe – Mas se for necessário / nos campos de batalha / unidos lutaremos / ao troar da metralha, / pois que da Pátria o brado / de Inde-pendência ou Morte / será POTI do bravo filho do Leão do Norte. 74

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O PESO DA TORRE ase Aérea de Campo Grande – anos 1970. O SO Qav Ref Geraldo “Risadinha” estava a bordo, como 2º mecânico, em viagem de instrução. Ele conta que o brigadeiro comandante do C-115 (Búfalo), com uma parenta sen-tada na cadeira do mecânico (a famosa cadeira do meio), fala com o mecânico, pelo intercomunicador, no táxi para a decola-gem, quando, na verdade, fala com a torre de controle do aeró-dromo, e pergunta, referindo-se ao peso de decolagem (26): “Qual é o peso”? O controlador, assustado, pede para confirmar a mensa-gem. Mensagem confirmada, o controlador, mais assustado ain-da, retorna: “Brigadeiro, o senhor quer saber o peso da torre?” O brigadeiro não gosta, vira-se para o mecânico, em pé atrás da sua cadeira ocupada, e de viva voz o interpela: “Pergun-to pelo peso de decolagem e você pergunta de volta se quero saber o peso da torre?” O mecânico defende-se dizendo não ter sido chamado nem muito menos falado alguma coisa. Foi então que piloto e mecânico se deram conta do ocorri-do. O incidente, logo na primeira decolagem da missão, concorre para o perfeito entrosamento dos tripulantes, numa época em que nem se falava, na FAB, em gerenciamento de cabina (27). 75

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BASEBALL ARF, anos 1950/60. Os americanos ocupavam um hangar, mas sem vínculo operacional ou administra-tivo com a Base ou a FAB. Eram funcionários de uma empresa civil, terceirizada pelo governo americano, para manter a estação de rastreamento de foguetes e teleguiados da NASA, em Fernando de Noronha. “Tanto a estação, como a firma, rece-biam o apoio logístico do MATS (espécie de CAN da USAF), razão porque pousavam em Noronha e Recife os C-124 Globemaster, enormes cargueiros quadrimotores convencionais” (Cap Esp Av Benonil). A frequência dos aviões era grande e, por isso, o trânsi-to de militares americanos, também. Nas manhãs dos fins de semana, americanos e familiares reuniam-se no estádio da Base para jogar beisebol, “jogo disputado entre dois times de nove jogadores, em que vence o do jogador que rebate a bola arre-messada e dá o maior número de voltas completas em torno do campo” (Dic Veja-Larousse, vol 3). Nós, soldados, íamos ver o jogo atraídos pelas americanas de short e suéter, as pernas de fora e os fartos seios cobertos, mas tentadores (nenhuma mulher ousaria tanto, no Recife da-quela época), e, também, para disputarmos, aos tapas, as boli-nhas espirradas nas rebatidas, que os gringos, com caixas delas, não se davam ao trabalho de catar. Numa dessas festas, porém, o nosso maior segredo foi re-velado pelo cabo “Amiguinho”, figura engraçadíssima, que trata-va a todos, desde o comandante, por “Amiguinho”. Folgado, ele sempre aprontava e era recolhido ao xadrez. Mas antes de se apresentar preso, “Amiguinho” corria para a Coreia, vila dos ofi-ciais, e caía escandalosamente chorando aos pés da mulher do oficial que o havia prendido. Sensibilizada, a mulher telefonava para o marido mandando, isso mesmo, soltar o cabo-velho. Pois bem: “Amiguinho” subiu num cajueiro próximo para xeretar as americanas e na hora da agonia (pobre não goza), caiu do cajuei-ro e teve que ser levado para o hospital exibindo todas as evi-dências do “crime”.

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SAUDOSA MALOCA AGL, Rio, 1961/64. Recém formado na EEAR, apre-sentei-me no antigo 1º/1º GT (C-47) poucos dias antes de Jânio Quadros renunciar (25 Ago 1961) e abrir caminho para a radicalização na política. Até se decidir so-bre a posse do vice, João Goulart, foram 60 dias de prontidão rigorosa. Só os casados passavam uma tarde, por semana, com a família. O alojamento onde eu morava só valia pela arquitetura do prédio da Escola de Aviação Naval, depois Escola de Sargentos Especialistas da Aeronáutica e, por fim, Base Aérea do Galeão, com fachada própria da época e enorme pé direito, onde, no tér-reo, funcionava o cassino dos graduados. A escada de acesso ao alojamento era de madeira bastante gasta pelo uso, assim como o assoalho. Os beliches, pesadões, também de madeira, tinham velhos e malcheirosos colchões com recheio de capim, além de pulgas e percevejos. Havia uma casa de madeira abandonada, próxima ao esta-cionamento de aviões em trânsito, recuperada por “laranjeiras” fazendo “gatos” e até os beliches, descarregados da Cia de Guar-da, foram aproveitados. Tinha geladeira, fogão e outros confor-tos, comprados em lojas de usados pelos moradores, e anos a fio sempre tolerada pelos comandantes. O critério para se mudar para lá era a antiguidade, quando abria vaga por casamento, transferência ou simples mudança. Mas antes de chegar a minha vez de me mudar, o primeiro ato de um novo comandante foi mandar derrubar a casa. Ajudei na retirada das poucas coisas e ficamos do lado de fora cantando Adoniran: “Saudosa maloca, maloca querida”... A essa altura, com o país e os quartéis contaminados pela agitação política (só sabe quem viveu), não se confiava mais em ninguém. Fiquei com medo de ser fuzilado dormindo, pelos pró-prios colegas, como aconteceu em 35, na Intentona Comunista, e me mudei para a Pensão de Dona Rute, Praia da Freguesia, final da Ilha do Governador, vizinha do Colégio Prefeito Mendes de Morais, onde estudava o “científico” à noite, entre um serão e outro na Manutenção. 77

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EXERCÍCIOS DE GUERRA

ARF – EMRA-2 – Anos 70. Voava-se muito. O Esqua-drão se deslocava, no mínimo, uma vez por mês. Para mim, nas grandes manobras, além do durante, tinha

o imediatamente antes e o imediatamente depois, onde o pau cantava por igual.

Era assim: tenente mais antigo, chefe da Manutenção e ofi-cial de Mobilidade, eu seguia antes e voltava depois dos aviões e helicópteros (três a cinco dias, nos dois casos), de C-130, C-118 ou Búfalo, com uma foto aérea do lugar (para escolher o melhor sítio do acampamento). Éramos oficiais técnicos (Suprimento, Avião, Comunicações, Armamento), médico, intendente, subofici-ais, sargentos, praças e traquitanas da guerra comandadas por nós, os tenentes, chefes das Unidades Celulares (28) de nossas respectivas especialidades, porque quem faz a guerra é capitão, tenente, sargento e soldado.

No início da montagem do acampamento em Formosa, Ba-hia, fomos surpreendidos por um temporal que encharcou tudo, e o tenente médico, que era chegado e “apaixonava”, recomendou “Mertiolate Branco” (cachaça), para continuarmos trabalhando na chuva sem riscos de resfriado. Deu certo. Ninguém adoeceu, e mesmo o rancho atrasando, não houve excessos.

Depois da “guerra”, na desmontagem do acampamento (o mastro da bandeira era o último a ser encaixotado), o doutor veio com aquela história de happy hour. Liberei, mas tive que prendê-lo, e ao 2S “Guaiamum”, até o dia da volta, porque “enxugaram” todas e faltaram à formatura de arriamento da Bandeira.

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HERÓI DE COMBOGÓ

ARF, 6º Grupo de Aviação (avião B-17), 1958/59. Combogó ou cobogó (das iniciais dos engenheiros Coimbra, Boeckmann e Góis), é uma peça vezada de

cerâmica ou cimento, empregada na construção de paredes per-furadas, para proporcionar a entrada de luz natural e de ventila-ção (Dicionário Aurrélio). Naquele tempo, na Base, sem ar condicionado, não falta-vam paredes de combogó. A expressão “Herói de Combogó” sur-giu do fato de nós, soldados, nos escondermos por trás dos com-bogós para olhar autoridades em trânsito. No 6º Grupo, usando essa tática, o primeiro brigadeiro que vi na minha vida foi o Co-mandante da 2ª Zona Aérea (COMAR), Maj Brig Ignácio de Loyola Daher, em visita aos Esquadrões Foto e Busca. Lembro, também, seguro por trás dos combogós, ter visto, bem de perto, o Briga-deiro Eduardo Gomes descer de um C-47 do CAN, de “bico de pato” armadíssimo, onde brilhavam as suas estrelas de general da Força Aérea. Como quem tinha juízo não dava as caras nessas horas, o jeito era bancar o “Herói de Combogó”. Essa Força Aérea não existe mais...

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ECOS DA GUERRA ARF, 1965. Fim de Manobra da FAB, na região Nor-deste. A Base sedia a reunião para a “crítica” final do exercício. Velhos aviões da II Grande Guerra chegam de todas as partes e vão se ajuntando nos céus do Recife para o desfile aéreo antes do pouso. Apoiando os aviões, e empolgado com tanta beleza, não me dei conta do anacronismo do espetácu-lo. No ar, o troar de bielas, pistões e hélices e o cheiro de óleo, graxa e gasolina 100 da mecânica simples e bela de antigamente. De repente, gritos e correrias vindos do “hangar dos ame-ricanos” e dos seus enormes aviões cargueiros Globe Master, num ritmo crescente e alucinado. São os “gringos” filmando, com modernas máquinas 8 mm de cinema, não a festa brasileira, mas o inacreditável diante dos seus olhos. Questionei-me: “Como po-dem os americanos, homens de aviação, comportarem-se como se nunca tivessem visto avião”? A resposta, simples, só veio com o tempo: o que vi foram os americanos, surpreendidos, entrarem numa espécie de túnel do tempo, voltando ao passado com a revoada de aviões que, no seu país, só existem em museus e em feiras aeronáuticas, mas não tantos e voando ao mesmo tempo, como nos idos da guerra na Europa. E a impossibilidade de en-tender isso vinha do fado de ontem, como hoje, na FAB, não se ensinar o que é uma força aérea aqui e lá fora. A partir daí, lendo, pesquisando, comparando, comecei a ligar fatos e a fazer descobertas. A primeira delas foi ter sido a FAB “equipada” pelo grande irmão do Norte com obsoletos avi-ões, restos da guerra, praticamente doados, menos o suprimen-to, também sucata, vendido muito caro. Compreendi, então, que o “hangar dos americanos”, na Base, seus aviões e o armazém de suprimento sediado no Parque da Aeronáutica do Recife eram a face visível (hoje invisível?) do novo colonialismo. E acabei despertando para os nossos problemas, profundamente arraiga-dos na nossa cultura, marcas do atraso cuidadosamente cultivado por nós mesmos. 80

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A BÊNÇÃO, MEU PADIM! erreirinha (in memoriam), o “Chibatinha”, ficou 14 anos como tenente infante e quando cansou de ser capitão sem ser chamado para fazer o curso de aper-feiçoamento (EAO), pediu reserva. O Quadro de Infantaria, na época, só tinha, como oficiais superiores, um tenente-coronel e três majores. De repente, com a transferência do curso para a AFA, esses números passaram inicialmente para 10 coronéis, 30 tenentes-coronéis e 60 majo-res. Ferreirinha nunca tinha visto um tenente-coronel do seu Quadro, e só tinha visto um major depois que a Infantaria foi reformulada. Um dia, na apresentação anual no COMAR II, ficou frente a frente com um Coronel (full) de Infantaria, com quem tinha tra-balhado por vários anos. Sem saber o que dizer e o que fazer, como cearense devoto do Padim Pade Ciço do Juazeiro simplesmente ajoelhou-se e pe-diu a bênção. 81

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CASAMENTO ABENÇOADO ARF, final dos anos 50. Há mais de 10 anos, o cabo velho vivia maritalmente com dona Maria, feliz e em perfeita comunhão, e ainda não tinha voltado à cida-dezinha do interior, próxima a Recife, onde nasceu. A volta, em um fim de semana, coincidiu com as “santas missões” do Frei Damião, religioso à moda antiga, famoso nos grotões do Nordes-te, e que gostava de casar matuto. O povo recebeu o missionário em romaria, com banda de música, fervor piedoso e foguetório, e encheu a igreja para ouvir, temeroso, a pregação do Frei: “No inferno, só há dor, sofrimento e ranger de dentes e é para lá que vão os pecadores, principal-mente os amancebados, que vivem o casamento do gato com a gata”. Era essa a estratégia do pregador para “tirar do pecado” os que viviam juntos, sem as bênçãos da Igreja, costume, à épo-ca, comum no interior. E funcionava. O cabo, com medo do inferno, e considerando que dona Maria, nesses anos todos de vida a dois, revelara-se exemplar dona de casa, resolveu livrar-se da condenação eterna e, ao mesmo tempo, premiar a companheira. E entraram na fila para casar no religioso, com efeito civil, mesmo contrariando o regu-lamento. Cabo, naquele tempo, não podia casar. Chegaram de viagem no domingo, noite alta, à casinha simples do Bairro do Ibura, onde moravam, e dormiram sossega-dos, como antes. Dia claro, o cabo vai para o trabalho. No re-gresso, depois de puxado expediente na manutenção dos aviões, encontrou a casa suja, roupa e louça por lavar, camas desfeitas e dona Maria sentada no sofá da sala, banho tomado, arrumada, maquiada, perfumada, ouvindo novela pelo rádio. TV (preto e branco), que estava começando, era coisa de rico. Desconfiado, resolveu interpelar dona Maria. Ela não se intimidou. Autoritária e falando alto, bem diferente da boazinha de antes, levantou-se, botou as mãos nas cadeiras, bateu o pé e respondeu: “Meu filho, agora eu sou sua esposa”! 82

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HISTORINHA arque da Aeronáutica do Recife, anos 1960. “Biu Corninho”, como era conhecido, cabo velho, vivia feliz, até ser surpreendido com pedido de sua mulher de separação judicial e pensão, em uma época em que não havia divórcio. Biu Corninho, nas suas idas à vara da família, descobriu que o juiz do caso, tal como ele, além de gostar de canário, era companheiro de desventuras conjugais. Não deu outra. Biu Corninho comprou o juiz coleguinha com belo canário-da-terra cantador, e conseguiu sentença a ele favorável: nada de separação, nada de pensão. E “Biu Corninho” voltou a ser feliz. 83

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JULIETA

OEIG-1968/69. A mascote Julieta era uma cadela vira-lata de pelo predominantemente preto e branco e muito bonita, que escolheu o Corpo de Alunos co-

mo sua casa e os alunos, seus donos, mais particularmente eu e Ari, solteiros e laranjeiras, que cuidávamos dela. Ninguém estra-nho ao Corpo de Alunos podia entrar lá impunemente. Conhecia a nossa rotina e dela participava, como aluna aplicada, compare-cendo a todas as formaturas do dia, desfilando ao nosso lado e até assistindo às aulas, quietinha em um canto da sala. Julieta arranjou um namorado, engravidou e sofreu muito, no parto de quatro filhotes, logo adotados, assistido por mim e Ari, numa noite fria curitibana. Fraca, definhou amamentado e foi levada ao hospital veterinário, longe da Escola, no Juvevê, pago por nós, alunos, onde fez “ligadura das trompas”. Com a barriga cheia de esparadrapos, fugiu do hospital de volta para casa e eu (Avião) e Ari (Reconhecimento Foto) fomos tirados da sala de aula para ajudar os funcionários do hospital a levá-la de volta. No dia do aspirantado, 08 de agosto de 1969, abrilhantado pelo voo de esquadrilha de caças Gloster Meteor, de Santa Cruz, lá estava Julieta em forma conosco, com uma bela farda azul ba-rateia e duas estrelas de aspirante, uma de cada lado. Declarada Aspirante do Quadro de Oficiais Técnicos, foi a primeira “mulher” formada em uma escola de oficiais da ativa da Força Aérea. Sua carta de aspirante foi assinada pelo brigadeiro Délio, comandante da Escola.

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VELAME!

OEIG, 1968/69. De repente, o vazio, o silêncio, o sibilo do vento, a imensidão: rodopia o paraquedas, a solidão rodopia o gesto do paraquedista entre os

cordéis, o velame, o altímetro, a navegação no melhor rumo, o vento favorável, o melhor prumo, e ainda tempo para o descorti-no da paisagem. O arrojo no salto, a queda livre, a abertura com a força do vento, a sustentação na descida controlada com a for-ça da mão, da mente, da vontade, da fé do combatente. O pouso, a rolagem, o paraquedas desfeito de vento e de geometria: o mar, a selva, a montanha, a noite, o dia, agora nada impede o guerreiro de travar o bom combate.

Esse foi o sonho (saltar de paraquedas) frustrado para a minha turma (EOEIG-69) pelos moinhos de vento da ciranda hu-mana ditada pela crise no Para-Sar. O jornalista Elio Gaspari es-creveu quatro livros sobre o movimento militar de 64. No primei-ro deles, “A Ditadura Envergonhada” (Cia das Letras, 1ª edição, 2002, p. 292), comete um engano, que deve ter carregado algum propósito: diz que o Brigadeiro Délio, em 1968, durante a crise, “comandava uma mesa. Cuidava de papéis na Diretoria de Docu-mentação Histórica da Aeronáutica”.

Na verdade, o Brigadeiro comandava a Escola de Oficiais Especialistas e de Infantaria de Guarda, onde, na época, eu fazia o Curso de Avião (mecânica aeronáutica), o que me faz ter certe-za do que estou afirmando.

E a certeza ganha corpo no fato de a minha turma, por conta desse contencioso, não ter feito a instrução de terra, em preparação para o salto de paraquedas, nem o salto, atividades ministradas pelo Para-Sar. Moinhos de vento! Moinhos de vento!

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MOACIR ARF – 1966. Era no tempo da ditadura. Em outubro, já escolhido presidente do Brasil (e eleito em novem-bro), o Marechal Costa e Silva, que se gabava de nunca ter lido um livro, teve que afastar vários nomes, inclusive de civis, como Carlos Lacerda, que queriam o seu lugar. Ele não contava com a simpatia do Marechal Castelo Branco (apelidado “Tamanco”, por ser feio, baixinho e mal-acabado), mas se impôs, como candidato, por ser mais antigo que Castelo e contar com o apoio do Exército. À época, eu era 3S. Nesse clima, um suboficial informante resolveu, na folga do almoço, nos sondar sobre o delicado mo-mento político. Cada um de nós, ao ser inquirido, “votava” no Marechal Costa e Silva, que ninguém era besta. Quando chegou a vez do 3S Q AT PA Luís Almeida ARRAIS, hoje tenente-coronel de infantaria reformado, ele simplesmente disse que não apoiava o marechal, e que o seu candidato era Moacir. Além de surpresos, ficamos preocupados com o boa pra-ça Arrais, que corria o risco de ser acusado de subversão. O dedo-duro, embora por motivo diferente, igualmente es-pantado perguntou: “Quem é Moacir”? E Arrais: “É meu irmão”! Todos, aliviados, caímos na gargalhada, e aproveitamos para tumultuar a “eleição”, que não prosperou, com todo mundo mu-dando o voto para Moacir.

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SOLDADOS E OFICIAIS FPM – Natal – 1970. Faz tempo, li a história de fun-cionário de multinacional homenageado pela dedica-ção ao trabalho. Na ocasião, perguntado se estava satisfeito, ele respondeu que não de todo. Como só tinha visto uma vez, e de longe, o presidente da empresa, gostaria de co-nhecê-lo e, quem sabe, conversar com ele. Pouco tempo depois foi convidado a passar um dia com o presidente. Guardadas as proporções, aconteceu caso parecido comi-go e um soldado. Eu, recém promovido a segundo-tenente, che-fiava a Manutenção do CFPM com 89 aviões e pensava que não tinha tempo para mais nada. Na verdade, esquecia-me de algo muito mais importante: o tenente médico Arnaud contou-me que, na visita médica, soldado da Manutenção pediu para ser transferido alegando se sentir desconfortável pelo fato de eu tra-tá-lo como se não existisse. Esse tipo de queixa é comum e con-sequente do distanciamento da tropa imposto pela maioria dos oficiais. A aproximação requer do oficial preparo para estabelecer com o subordinado clima de cumplicidade, lealdade e confiança. Nesse estágio, é possível identificar tensões e aliviá-las antes que o homem sufoque, como foi o caso do soldado. Para tanto, é pre-ciso conhecer cada um de per si, dar nome e rosto às pessoas. Compreendendo que lidava com gente, como eu, passei a me espelhar em exemplos, como o do velho Capitão de Infantaria da FAB Ney Noronha, que, a seu modo, sabia de todos e de cada um dos seus comandados; do já provecto coronel de cavalaria do Exército brasileiro, saudoso da cavalaria a cavalo, quando, no dizer dele, “batia estribo com estribo” com os soldados à sua vol-ta; do Marechal de Campo alemão Walter Von Reicheneau, que “sempre manteve o seu amor à tropa, mesmo depois de mare-chal”; do aviador Saint-Exupéry, desaparecido em combate na 2ª Grande Guerra, para quem o que contava na vida eram as rela-ções humanas. Mas sem perder o foco na missão do técnico de voar e fazer voar, no apoio ao combate. 87

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“OSSOS” DO OFÍCIO AMA AF, anos 1970. Tenente chefe da Manutenção do 2º EMRA (UH-1H), fazia frequentes visitas técnicas ao Parque dos Afonsos, verdadeiras corridas contra o tempo, com idas e vindas entre as oficinas e o Suprimento, até que se tornaram inviáveis. Depois que o Brig Carneiro de Campos assumiu a direção, o visitante, na apresentação, preenchia roteiro só de ida e hora marcada para cada setor. Flagrado “fora de rota”, era preso. Nesse clima, conversando com colegas, fiquei sabendo que se obrigavam a malabarismos, em virtude do “rigor” do chefe, e, sob segredo, me contaram um deles: para evitar injustiça, foram obrigados a dar sumiço a um componente de helicóptero (UH-1H), controlado em log-book, o livro logístico da aeronave. O sargento, antigo e experiente, na desmontagem, danifi-cou peça caríssima, pela alta tecnologia dos materiais em sua fabricação. Como o regime estava ainda mais duro, por causa do terror e da guerrilha, o sargento corria o risco de ser expulso da FAB, obrigando os oficiais de Avião e Suprimento a deletar a do-cumentação do item controlado e sumir com ele, de vez que o diálogo com o comando era impossível. Na calada da noite, no Campo dos Afonsos, em lugar que não quiseram me dizer, a peça foi enterrada com honras milita-res. No final, os presentes, perfilados, e sob o comando de “em continência ao terreno, apresentar armas!”, despediram-se de algo muito próximo, que um dia deu forma ao avião, ao helicóp-tero, para que nós, homens da aviação, pudéssemos dar-lhe vi-da. Fica claro que cada caso é um caso, mas a lógica desse fu-neral, que não é a lógica do sistema, é simples e verdadeira: as-sim como piloto quebra avião, mecânico quebra peça. “Ossos” do ofício. 88

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CORREDOR LIVRE! ANT – 1969. Em uma sexta-feira, logo depois do ex-pediente, aconteceu de se encontrarem no cassino dos oficiais da Base Aérea de Natal os aspirantes es-tagiários da caça (Fortaleza) e os estagiários não caçadores (Na-tal). A festa foi na entrada do longo corredor que ladeia os quar-tos do alojamento (ala verde) e, num momento de empolgação juvenil, todos os extintores de incêndio foram descarregados, “para fazer entrar em instrumentos” o corredor, condição para o “voo cego”. Realmente, ninguém via mais nada. E bastou um mais exal-tado sacar o revolver, parte do uniforme de voo daquela época, gritar “corredor livre!”, contar até cinco e descarregar a sua ar-ma, para ser imitado pelos demais. Felizmente não houve uma tragédia, mas depois de dissipa-do o “CB” (29) e restaurado o “céu de brigadeiro” no corredor, apareceu o 1º tenente instrutor de voo, morador e chefe do cas-sino, anotando os estragos. O chefe mandou recarregar os extintores, retocar o reboco e a pintura das paredes e dar baixa do inventário (carga, segun-do o RADA – Regulamento de Administração da Aeronáutica) de uma geladeira que ficava no final do corredor. E o prejuízo debi-tou na nossa conta multiplicado por três, “na forma da lei”. 89

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PANE DE IMPEDÂNCIA ARF, 1º/5º Gav (avião B-26), 1972. O B-26 pousou com pane de impedância. Debaixo da asa do avião, em meio a outros tenentes, um piloto, tenente mais antigo, dirigiu-se a mim, Oficial de Manutenção do Esquadrão, e perguntou: “O que é impedância?” Sem vacilar, porque o tenente era um chato, respondi, de-rivando de propósito, mas sem sair do tema da pane (efeito combinado da resistência ôhmica e da reatância indutiva em um circuito elétrico de corrente alternada): “Assim como intendente é o homem que ‘intende’, impedância é aquilo que impede”. O tenente reagiu, ameaçou enquadrar-me, bodejou (é o que faz bode embarcado), disse que intendente não entendia nada, insisti que “intendia”, mas acabou desistindo, pois os de-mais tenentes também entraram na brincadeira. 90

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CHUPETA

ARF, 2º EMRA, anos 1970. O tenente-coronel assu-miu o comando do esquadrão em formatura festiva. No dia seguinte, eu, 1º ten esp av, chefe da manu-

tenção (o maior efetivo de uma unidade aérea), notei que os me-cânicos estavam mais descontraídos do que o costume. Como o psicossocial é um dos fundamentos da segurança de voo, que tem como esteio a manutenção, chamei o SO “Jumentão” (tron-cho, malfeito de corpo, esguleipado, feio pra mais da conta e ca-ra, mas também coração e mansidão de jumento), sertanejo da região do Araripe, Sertão de Pernambuco, excelente profissional, leal, engraçadíssimo e querido por todos, e perguntei o que esta-va acontecendo.

“Mas tenente”, disse, “está todo mundo comentando duas coisas: primeiro, que, agora, eu sou o ‘Jumentão-2’, só não pos-so dizer por quê; e que o novo comandante é o cão do terceiro livro. O homem tem uma chupeta”! E antes que eu perguntasse o que era chupeta, explicou: “É aquela lapa de condecoração pen-durada no pescoço com uma fita. E não é qualquer um que tem uma chupeta”! Tenho que concordar. Não é qualquer um que tem uma chupeta.

O tenente-coronel gostava de jogar futebol de salão no meio dos tenentes. Um dia, depois da pelada, contei a ele a his-tória da chupeta (omitindo a parte do “Jumentão-1”, cargo que assumiu sem saber, delegado pela tropa), que o fez rir muito, e aproveitei para perguntar o que tinha feito para “ganhar” a tal chupeta. Com simplicidade, como era do seu feitio, respondeu que não tinha feito nada. Apenas aconteceu um terremoto no Peru e o governo brasileiro enviou um helicóptero UH-1H como ajuda. No fim de 15 dias transportando de tudo, a tripulação foi condecorada pelo governo peruano, cabendo a ele, comandante, a chupeta Comendador Cruz Al Mérito Aeronáutico Del Peru.

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ARAPUCA ARF – 2º EMRA – Anos 1970. O Esquadrão, acampado em Bom Jesus da Lapa, às margens do rio São Fran-cisco, guardava, no chão, entre as barracas, ninho de caborés (ver a história “Januário Bravo”), denominação comum às corujas da família dos estrigídeos, gênero Glaucidium, encon-tradas em todo o Brasil (Dic Veja-Larousse, volume V). Eu, tenente mais antigo do Esquadrão, surpreendi soldado armando arapuca para pegar os caborés. Mandei que quebrasse a arapuca. O soldado, quase chorando, disse que cumpria ordem de tenente av da reserva convocada, alto, forte, brabo, o terror de praças e graduados. Diante disso, quebrei a arapuca pulando sobre ela com os coturnos juntos. Logo fui abordado pelo brabo, e reagi colocando-o à prova, coisa que não percebeu. Irritado, disse que me dava porrada, e eu, mais provocativo, respondi que corria, para não apanhar. Ele retrucou que era bom de tiro (e era, mesmo) e me acertava, com a pistola do uniforme de voo. Ainda mais provocativo afirmei que, já que ele não me dava chance de escapar, que se preparasse para não dormir nessa noite, senão eu iria sangrá-lo dormindo na barraca, com a faca do uniforme de voo. O valente foi se queixar ao TCel Av Lyra, Cmt do Esqua-drão, alagoano de Quebrangulo. Na frente dos dois, expliquei ao chefe que agi para evitar que o tenente capturasse os caborés, e que, por isso, ele tentou me intimidar. Resolvi, então, levar na brincadeira, e não deu outra: temeroso, ele veio aqui se queixar. O comandante, aliviado, despachou-o com humor. O tenente re-conheceu ter caído na esparrela e, no acampamento, ficou co-nhecido como “Caboré”. No regresso da manobra, devido às vol-tas que as histórias oralmente contadas dão, o apelido “Caboré” findou sobrando para mim. Mas, com uma peculiaridade: nin-guém ousava me apelidar porque, para rir na cara dos abestados, bolei rima galhofeira como resposta para o “Caboré”: “Papei o teu em pé, prossiga!”. 92

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BABACÔMETRO ARF, ESM, 1983. Capitão especialista em avião, ma-triculado na EAO, recebe do Foro das Malvinas (foro informal do baixo clero da graxa) a notícia de que vai cursar a “É – Á – Ó!”, com ênfase de voz no “Ó!” acompanhada de gesto chulo característico. Isso porque, com o curso de aper-feiçoamento, em vez da promoção, viria para ele a compulsória, por falta de vaga, jogando-o na “vala” comum da reserva antes do tempo, com soldo aviltado, mulher e filhos. Pois foi isso o que aconteceu com capitães especialistas da turma anterior, cujos miniquadros extintos o sistema pretendia apressar o fim. Como quem faz isso jamais será atingido pelo que faz, a-conteceu de também serem compulsoriados jovens majores in-tendentes, Quadro, à época, com as mesmas dificuldades de promoção, embora temporárias, mas históricas e consideradas “normais” para os técnicos, e foi por isso que repercutiu mal. No ano seguinte, para que o fato não se repetisse, e graças ao Bri-gadeiro Délio, Ministro da Aeronáutica, as vagas aparecem, o capitão pula a “vala” e é promovido a major. O comandante da Base reúne os oficiais para presenteá-lo com quepe de oficial superior, ocasião em que lhe pergunta como se sentia no novo círculo de oficiais. Firme na recusa a “o que se faz”, no lugar de “o que se devia fazer” (Maquiavel), o major “a-bre a caixa de ferramenta” e começa discurso louvando a promo-ção como maravilhosa, inusitada, sensacional, sesquipedal, fe-nomenal, apoteótica, admirável, surpreendente, espantosa, pri-morosa, bela, magnífica, encantadora, inumerável, extraordiná-ria, indizível, rara, inefável, “grandíloqua, altíssona, insigne, magnífica e verdadeira” (Dom Quixote), algo “nunca antes visto ‘nesse’ país” etc etc embora ninguém se dê conta. Surpreso (o sistema nada sabe de “É-Á-Ó!”), o comandante quer saber do homenageado a razão de tanta empolgação “por tão pouco”, e vem a explicação: “É que, acima do posto de ma-jor, o número de babacas diminui assustadoramente”. A primeira reação dos presentes foi o silêncio. Mas quando se deram conta do sentido da brincadeira, a descontração mudou tudo, pontuan-do dali para frente o singelo ritual de aceitação em volta de um quepe de major. 93

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“J S” ARF, 2º EMRA, Anos 1970. Com frequência, no final da tarde, pousa UH-1H (helicóptero) com a inspeção de 25 horas vencida. Voava-se bastante, e o técnico fazia muito o que sempre faz: voar e fazer voar. Oficial de Manutenção, escalo o pessoal para o serviço, que fica para o outro dia, a fim de evitar serão desnecessário, já que a inspeção ocupa um expediente inteiro. Com o Esquadrão em forma para a leitura do boletim, o helicóptero é rebocado pa-ra um canto do hangar, e só. Até que sou surpreendido pela de-terminação de começar o trabalho no mesmo dia. Reúno os Inspetores, transmito-lhes a ordem, e estes, in-satisfeitos, argumentam contra, como eu já havia argumentado. Reitero a ordem, e isso me constrange, porque estão cobertos de razão. O que fazer? Como o significado de “Manutenção” vem do latim “manus tenere”, “ter na mão, dominar”, aciono o seguinte “JS” (jogo de cena), procedimento comum na Manutenção que, se bem administrado, alivia tensões e evita a exaustão física por excesso de trabalho, sérias ameaças à segurança de voo: Sem pressa, senão acabaria em dez minutos, e bem à vis-ta de todos, rebocar o helicóptero para o hangar, encostar as bancadas, retirar as duas enormes portas laterais do helicóptero e abrir as carenagens do motor (o que deixa a aeronave com a aparência de uma ave com as asas abertas ao Sol depois de uma chuva), com a equipe de inspeção em volta fazendo “jogo de ce-na”, e nada mais. Quando todos somem, a equipe também some. A inspeção, “adiantada”, fica para o outro dia, com o de-safio e risco, para mim, da lealdade simultânea a superiores e subordinados, um dos maiores dilemas de quem comanda. 94

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POMBA, TCHÊ! nos 1980. No Esquadrão de Suprimento e Manutenção da Base Aérea do Recife, éramos todos nordestinos e graxeiros, menos o comandante. Gaúcho, a cada meia dúzia de palavras que dizia, duas eram “pomba, tchê!” (sic), ge-ralmente arredondadas por uma terceira: “negão!”. Por isso era chamado “Papa”, “Papa Tango” ou “Papa Tango November” por nós, do baixo clero da Confraria das Malvinas. Certa vez, em uma reunião, combinamos que um de nós, encar-regado da ata e sentado ao lado do major, fizesse no papel tra-ços correspondentes a cada “pomba, tchê” dito por ele, cujo nú-mero, de uma forma ou de outra, a partir dali, teria que constar de todas as atas. A reunião começou com o indefectível “pomba, tchê!, ne-gão!”, e o primeiro traço feito. Em pouco tempo, depois de assi-nalados uns 30 traços, o major percebeu a manobra, gritou “pomba!”, parou de falar e espichou-se todo para conferir o que ia ser anotado. O encarregado da ata disfarçou, a caneta suspensa no ar, e ficamos na maior expectativa. O silêncio foi quebrando pelo ma-jor com um sonoro “pomba, tchê! negão!”, e quase não conse-guimos mais parar de rir. 95

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SABOTAGEM ARF – 2º EMRA – Anos 1970. 2º ten av, da reserva convocada, peixe de brigadeiros e coronéis, mandão, é o terror de praças e graduados. Escalado para voo local em T-25, ao fazer a inspeção externa antes da decolagem constata que o óleo do cárter está contaminado com água e es-puma. Reportando-se diretamente ao comandante do Esquadrão, diz ser vítima de sabotagem, e que querem matá-lo em desastre aéreo provocado. Oficial de Manutenção, recebo ordem para apurar o caso. O avião acabara de chegar do setor de lavagem do ESM da Base e logo desconfio do ocorrido. Reúno os soldados que lavaram o avião, aponto o dreno de óleo do cárter e pergunto o que fizeram para limpá-lo. Um deles diz que introduziu a mangueira com á-gua e produtos de limpeza no dreno e abriu a torneira de pres-são, pois, justificou, o “canudinho” estava sujo de óleo. Também constato que o cabo chefe do setor não supervisiona e muito me-nos entende o básico de segurança de voo. Pois bem: dias depois, escalado para voo de experiência em T-25 que trocara a hélice, o tenente apronta de novo, com a mesma história de sabotagem. O sargento “de terra” que fez a troca da hélice, conhecido por ter medo de voar (assunto delica-do, esse, na FAB), diz-me, apavorado, que recebeu ordem do tenente para voar com ele e “morrermos juntos, caso tenha sa-botado a hélice”. Determino ao sargento que se esconda e deixe o caso co-migo. Cansado de esperar pelo “CDPA” (tripulante extra: come, dorme, peida e atrapalha), o tenente decola sozinho. Na volta do voo, são e salvo, vamos os dois, a meu convite, convite de mais antigo, conversar com o comandante do Esquadrão sobre sabo-tagem. 96

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PUXA! ARF, 2º EMRA, anos 1970. Cinco dias antes dos avi-ões e helicópteros chegarem para o início da mano-bra, o C-130 deixou o pessoal do apoio em Lins, São Paulo, local do desdobramento. Éramos tenentes técnicos (avião, suprimento, comunicações e armamento), médico e intendente, suboficiais, sargentos e praças, e mais a parafernália da guerra. Na montagem do acampamento, primeiro o mastro da ban-deira, hasteada sob a batuta do cabo corneteiro. Nesse dia, após o “banho a comando” (30) e o arriamento da bandeira, o tenente intendente Abitibol serve o jantar, e vamos dormir. Acordamos no meio da noite com tudo sendo destruído por tempestade de areia e ventos fortíssimos. O mundo fica cinza e não se pode im-punemente andar ou abrir os olhos, a boca, o nariz. Eu, o mais antigo, ao ver metade das barracas no chão, or-deno o desmonte das demais. Parecia que estávamos sendo ata-cados por uma arma nova, que destruía, mas não matava. Quan-do passou, ficamos à beira do esgotamento físico e sem aloja-mento. Vou à casa do dono da Garavelo, que nos cede o hangar para passarmos o resto da noite e abrigarmos as traquitanas. Na manhã seguinte, mando o tenente intendente Abitibol abrir o cofre, contrato soldadores para os estais das barracas e reinicia-mos a montagem das mesmas. No meio da tarde, o acampamento ainda em obras, aparece “na final para o pouso” bandeirante da FAB. Na barraca das Co-municações fico sabendo que a maior autoridade a bordo é bri-gadeiro. Pergunto de quantas estrelas e ninguém sabe me dizer. Havia, amoitados, dois tenentes-coronéis, árbitros da manobra. Passo-lhes a informação, e me dizem o que eu queria ouvir, que o problema é meu. Sem tempo para formar a tropa, reúno os oficiais, o avião estaciona e aparece na porta o brigadeiro em uniforme de campanha, dificultando a identificação pessoal e o número de “estrelas”. Seguindo a máxima de que é melhor errar por excesso do que por falta, mando o corneteiro dar o toque de “quatro estrelas”. Terminada a “solenidade”, o brigadeiro estende-me a mão e diz: “Obrigado, tenente. Eu só tenho duas estrelas”. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, surge do nada um dos tenen- tes-coronéis, e, rápido no gatilho, dispara: “Mas não é por falta de nossas orações, excelência”!, deixando o brigadeiro (Rodopi-ano) visivelmente constrangido. 97

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DE BRONZE FPM, Natal, Anos 1970. A grande maioria dos instru-tores de voo era das regiões Sul e Sudeste e gostava de dizer que tinha vindo servir no “aratacal” para civi-lizar esta terra de índios. Um deles, louro, ar superior, sotaque carregado e jeito cai-pira, chegava às raias da inconveniência, de tão bairrista. Não sabia que, para americanos, europeus e até para argentinos, bra-sileiro é a mesma porcaria e, por isso, acabou recebendo surpre-endente lição de civilidade e cultura. Certa feita, tenente da turma da graxa reagiu às suas bra-vatas exclamando: “Sai pra lá, Cu de Bronze!”. Caímos na pele do “civilizado”, que não gostou do apelido e engrossou. Como viu que as coisas, por aí, só pioravam, resolveu ser diplomático: “Mas é algo sem lógica, sem nada a ver comigo, sem sentido, sem...” Foi interrompido com a explicação, corrente no Nordeste, da lógica e do sentido do apelido: “Branco tem o ‘quinca’ preto; preto tem o ‘quinca’ roxo; e galego d’água doce, como você, tem o ‘quinca’ cor de bronze”. (*) A explicação funcionou com um balde de água fria na arro-gância do tenente, dado pela força de um bom apelido, uma das mais ricas vertentes nordestinas da cultura brasileira. (*) A cona também tem seu código de cores: Na branca, a flor rosa; Na loira, a flor bronze; Na preta, a flor roxa – mucosas... 98

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ESQUADRÃO HIENA m 1980, ação exitosa que durou até 1988, o ESM-BARF foi escolhido pela DIRMA como experimento de Manutenção Integrada, praticada nas grandes forças aéreas, para posterior adoção em toda a FAB. Assim, os gradua-dos de terra foram transferidos do ETA-2, 1º/6º Gav e 2º/8º Gav para o ESM, e a grande aventura começou: apoiar as três unida-des aéreas, livres agora, e com mobilidade, para o emprego do avião. Mas os comandantes não aceitavam ficar sem a Manuten-ção e o Suprimento e, apesar do sucesso, a experiência foi es-quecida. Enquanto durou, por bom tempo o comandante da Base só autorizava churrasco mensal, e em forma de rodízio, para as uni-dades aéreas. Os graduados do ESM, Esquadrão que passou a fazer tudo das unidades aéreas, menos o voo, o pré e o pós-voo, reclamavam, e não havia diplomacia que convencesse o coman-dante a atendê-los. Um dia, depois de um despacho e mais uma negativa de churrasco, capitão especialista em avião e número dois na hierarquia do ESM, disse ao comandante que este sabia, naturalmente, o significado de ESM – Esquadrão de Suprimento e Manutenção. Mas, com certeza, não sabia que, para os sargen-tos, o significado era outro: Esquadrão de Sofrimento e Má In-tenção, ou Esquadrão Hiena, por motivos óbvios. O comandante quase caiu da cadeira, não queria acreditar, fez muita pergunta e acabou rendendo-se aos fatos. A “graxa” entrou para o circuito dos churrascos (*), mas só depois do choque de realidade provo-cado pela diplomacia do porrete – aquela que não doura a pílula para enganar o comandante. Esvaziado desde 1988, o glorioso “Esquadrão Hiena” limita-se praticamente a lavar avião. Um passo à frente, dois atrás... Eh, Pindorama! (*) Os churrascos passaram a ser feitos longe do hangar, em um bosque nos sopés dos Montes Guararapes, para evitar que o coronel chegasse cobrando “meu avião”; o tenente-coronel, “meu avião”; o ma-jor, “meu avião”; o capitão... 99

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TANGO DELTA

ARF, anos 1970. Nós éramos tenentes e aguardá-vamos, em forma, a hora do desfile de 7 de Setem-bro, na Avenida Conde da Boa Vista, centro do Reci-

fe. Ficamos parados, “à vontade em forma”, em frente a três be-los casarões antigos, construídos em 1915, onde funcionava o Instituto de Psiquiatria Luiz Inácio. Por trás das grades do Instituto, bem perto de nós, várias internas nos observavam. Como o mate servido (com pão e ba-nana) começou a fazer efeito, fomos autorizados a usar os ba-nheiros do Instituto, aos poucos e sem atropelos, até que chegou a vez de Toinho (sup téc), Leiras (av) e mais dois ou três. Uma das internas, ainda jovem, com enormes cabelos desgrenhados, atracou-se com Toinho gritando: “Lindo, lindo, meu príncipe en-cantado, grande amor de minha vida, você finalmente chegou para me resgatar da prisão”. Os enfermeiros não conseguiram arrancá-la dos braços do seu “amado” e o jeito foi sedá-la com uma injeção e arrastá-la para a enfermaria.

Da rua, vimos e ouvimos a confusão, que tomou conta das conversas, inclusive durante o desfile, quando um gaiato apron-tou: “Acerta o passo, ‘Toinho da Doida!’”. A partir daí, Toinho, excelente companheiro, trocou de nome: “Toinho da Doida” ou, para os íntimos, “Tango Delta”.

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MÃO NO ESCOVÃO ARF, 2º EMRA, anos 1970. Peladeiro bola murcha (como reclamavam!), acabei trocando o futebol de campo (sangue e areia) pelo futebol de salão. As co-branças, no entanto, continuaram. Mas como se tratava de ins-trução militar (educação física: ginástica calistênica, corrida de 3 km e prática de esportes), tinham que me aturar. Resolvi, então, dar um basta bem-humorado nas cobranças e, no jogo seguinte, reagi: “Peraí, gente, dormi com a mão no ‘escovão’!” Caíram na minha pele, mas a partir daí ganhei o direi-to de jogar mal e correr pouco. Terminada a educação física, no reinício do expediente o tenente av Romanato, peladeiro de primeira e atacante titular do Ibis, o pior time do mundo (o técnico e goleiro era o sargento QAv Odair), chegou para mim e disse, em tom de chacota, no meio do hangar, e para que todos ouvissem: “Cansado por ter apenas passado a mão no escovão? E se tivesse ‘coisado’? Agora estaria morto”! Não deixei a bola cair e emendei: – Você é aviador? – Sou. – Tem certeza? – Tenho. – Tem mesmo? Pois nem parece. Na partida do motor do

avião, o que primeiro você faz? – Levo a mão ao starter... – Pois é, aviador, a mão no escovão é como a mão no star-

ter: é só o começo, o abc da coisa, da vadiação. E graxeiro e boa vida, e arredondando para o pouso: – Vivo / com a mão / na graxa e no escovão! Epitáfio, quando o tempo do verbo trocar de “vivo” para

“vivi”. 101

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“DONO” DO ESQUADRÃO ANT,1969. Aspirante, solteiro e residente no quartel, apresentei-me e fui designado para três unidades: Esquadrão de Suprimento e Manutenção (ESM), Es-quadrilha de Reconhecimento e Ataque (ERA-21) e Esquadrilha de Adestramento, perfazendo, ao todo, seis funções. Acharam pouco e ainda me nomearam chefe do cassino dos suboficiais e sargen-tos. Não reclamei, porque sempre tive em mente que o oficial exis-te para resolver problemas e não para criá-los. A apresentação no ESM foi um pouco diferente. Através do SO escrevente NATANAEL Martins Delgado, soube que o Esquadrão só tinha um oficial, o major comandante, antigo piloto da reserva (asa branca), que viajava bastante e era muito solicitado pelo co-ronel Ciro, comandante da Base e seu amigo pessoal, e que eu poderia encontrá-lo no comando da Base. Apresentei-me ao major em um dos corredores do Coman-do, e ele disse, para surpresa minha, entregando-me a chave de um jipe sem capota e para-brisa arriado no capô, herança do ame-ricano: “Toma, que agora o ESM é teu”. Passei a ser o único aspi-rante com viatura funcional 24 horas à minha disposição. E espa-lhei que aquele jipe fora utilizado por Getúlio Vargas e Hoosevelt, quando da visita deste a Natal, durante a 2ª Grande Guerra. Na verdade, esse jipe histórico acabou se misturando aos demais e se perdeu da memória da guerra. De volta ao hangar, já dirigindo o jipe, pois não tinha carro, empenhei-me no levantamento da situação. A intrincada burocra-cia dos despachos aprendi com o mestre Natanael, que conhecia tudo de legislação. O esquema era simples: Natanael despachava a papelada comigo, eu despachava com o major no prédio do co-mando e o major despachava com o comandante da Base. Dessa forma inusitada, exerci, como aspirante, o comando do ESM da Base Aérea de Natal, mundo da graxa, meu mundo, até ser criado, no ano seguinte, o CFPM. 102

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“DONO” DA MANUTENÇÃO FPM, 1970. Até a extinção da Base e criação do Cen-tro de Formação de Pilotos Militares, exerci informal-mente o comando do ESM. No organograma do CFPM, tudo do antigo ESM, menos o Suprimento, ressurgiu como Seção de Manutenção Nível Base e continuou sob o meu comando, agora de direito, subordinada à Divisão de Apoio Militar – DAM. Mas com uma diferença: tomaram-me o jipe. Os encargos eram pesados: panes, inspeções, reparos e se-rões nos sete dias da semana, para garantir a disponibilidade dos 79 aviões de instrução dos cadetes (54 T-23 e 25 jatos T-37) e 4 administrativos (2 T-6 D e 2 C-45 “Mata-Sete”). Isso, sem contar os aviões em trânsito, que apoiávamos. Esse agitado inicio de vida, como oficial de Manutenção, me fez ver que precisava ser na vida o que os mestres me diziam e eu nunca imaginei que precisasse ser: eterno aprendiz. A esse respei-to, na EOEIG, o professor De Luca lembrava que o profissional competente não era aquele que sabia tudo, mas o que sabia onde encontrar a informação que precisava, verdade que constatei ba-tendo de frente com a realidade. Todos os dias, (“a lida nos hangares, na pista, no avião”– Canção do 2º/8º GAv), o avião nos encara desafiadoramente, co-mo a Esfinge: “Decifra-me, ou eu te devoro”. Quem é do ofício, dominando o ofício, e não apenas os truques do ofício, de engano-so conhecimento (fenômenos simples, comuns, imediatos, repetiti-vos e fáceis de observar), sabe disso. Natal, meu batismo de fogo. 103

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FLAP! ANT – 1969. Quem vinha de Natal para a Base en-frentava uma reta final de 1 km até chegar ao portão secundário utilizado pelos aspirantes estagiários mo-radores do cassino dos oficiais. A guarda deste posto estava sempre atenta, principalmente nos fins de semana, porque os aspirantes, em carros tripulados por dois deles, “1P e 2P”, costumavam acelerar ao máximo, e quando estavam a uns trezentos metros do portão, com o motor em “ponto morto” comandavam “flap!” (31), como se os carros fossem aviões nos procedimentos finais para o pouso, e aí cada um abria a porta do seu lado. Era o “freio aerodinâmico”, que ajudaria a parar o “avião” (veículo) na altura do portão das armas, para a devida identifica-ção. Com o tempo, os aspirantes notaram que os soldados passa-ram a livrar rapidamente a cancela e, desde então, quando viam a cancela aberta, recolhiam os “flaps”, reaceleravam e passavam “voando baixo” pela guarda. “Tradição” vinda de muito tempo, quando aspirante era “o cão chupando manga”. 104

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COLT .45 ANT, 1969. O aspirante infante Vale Alcântara, de minha turma (EOEIG – 1969), servia na Companhia de Infantaria e, no ano seguinte, passou a ministrar instrução militar aos cadetes do CFPM, inclusive o tiro com armas curtas e longas. Vale, cearense, sertanejo, valente e brabo, só andava com uma “Colt .45” na cintura e gostava de “apaixonar” uma caninha. No fim de semana prolongado, resolve passear no Recife com a mulher, Dona Nira, miudinha e baixinha. Já “calibrado”, Vale deita-se no banco traseiro do fusca, en-quanto a sua mulher assume o volante. Na estrada, ele acorda com o carro sacudido por manobras bruscas. Eram dois homens em outro carro fazendo gracinhas com a baixinha miudinha, que pensavam estar sozinha. Vale percebe, saca a pistola e atira de dentro do fusca, dei-xando ele e a mulher surdos por uns dias. Não sabe se acertou o carro ou os engraçadinhos, mas viu que comandaram “cavalo-de-pau” de volta para Natal a toda velocidade. Vale voltou a dormir. 105

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O CARONA ARF, anos 1980. Com 14 anos de tenente, o infante Ferreirinha (in memoriam) era chefe da segurança da Base. Em pleno período eleitoral, o comandante deu ordem para não entrar no quartel viaturas com propaganda polí-tica. Na sua sala, Ferreirinha recebeu telefonema do oficial de dia comunicando que acabara de proibir a entrada na Base de automóvel com adesivos de campanha transportando o senador Marco Maciel. Imediatamente Ferreirinha pegou o seu carro, uma Brasília amarela caindo os pedaços, e se dirigiu para o Portão das Armas. Cruzou com o senador indo a pé para a sala de autorida-des, a mais de dois quilômetros de distância, para receber minis-tro em visita a Pernambuco. Ferreirinha deu a volta, parou do lado do senador e ofere-ceu carona, se desculpando pelo transtorno. Sob o sol das duas da tarde, a carona foi aceita e aí aconteceu que a porta da Brasí-lia não queria abrir. Quando abriu e o senador entrou, não queria fechar. O episódio, junto com o fato de ter sido deixado a pé, mais o inusitado da carona e a teimosia da porta, fez o senador dar boas risadas e conversar animadamente com o tenente, nu-ma prova de bom caráter e simplicidade (dos dois). 106

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“PARAÍBA” ANT, ESM, 1969. Aspirante “comandante” do ESM (ver a história “Dono” do Esquadrão), encontrei práti-ca irregular e perigosa: automóveis, inclusive de ofi-ciais, misturados aos aviões fazendo reparos juntos, dentro do hangar. Pensava jeito de acabar com isso quando aconteceu o que temia. No hangar, o B-26 do antigo 1º/5º Gav, em manutenção, com duas enormes bandejas no chão cheias de óleo drenado dos motores. Embaixo da asa, um militar instalando a bateria de seu carro. Na operação, ele erradamente conectou primeiro o polo negativo da bateria, ocasião em que o chicote do outro polo en-costou nas ferragens do carro provocando faíscas e tocando fogo no óleo de uma das bandejas. Foi assustador. Todos correram. Comecei a gritar e nin-guém reagiu. Foi quando o funcionário civil “Paraíba”, atarracado e forte, atracou-se com enorme extintor e começou a combater o fogo. Graças a esse gesto de coragem, apareceram extintores de todos os lados e o incêndio foi dominado antes que atingisse o avião e se tornasse incontrolável. Só o carro ficou um pouco chamuscado. De imediato, acabei com a tal prática, esperando a reação de alguma “autoridade”, que não veio, e elogiei individualmente o funcionário, na frente de todos, antes da publicação em bole-tim. Ele, sem dúvida, evitou uma grande tragédia. E aí aconteceu o que eu não esperava. A seu modo agrade-cido, o “Paraíba”, sertanejo tosco que não sabia agradar, e por isso mesmo era mal visto, me procurou dizendo ser capaz até de matar por mim. Era só apontar o sujeito. Mandei parar, ele insis-tiu, então confirmei o elogio, por ser merecedor, e ameacei puni-lo no mesmo boletim, pela mesma razão. E nunca mais nos fala-mos, mas compreendi, nesse episódio, o ensinamento segundo o qual pode haver uma pessoa generosa por baixo da casca grossa, mas que não sabe se manifestar. 107

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ESQUADRÃO POTI ARF, 1º/5º Gav (avião B-26), 1973. A última Opera-ção Gorilão, em Brasília, utilizando o estande de tiro da caça (Anápolis), decretou o fim do B-26, na FAB, há muito tempo obsoleto. Um dos aviões, na recuperação do mergulho de bombardeio picado, seccionou uma das quatro lon-garinas da asa, que só não largou em voo por milagre. Sem avi-ão, o Esquadrão (de bombardeio) foi extinto, sendo ativado em seu lugar o 2º EMRA (de reconhecimento e ataque) Essa decisão levou três meses, até que o comando recebeu ordem para, em oito dias, apresentar plano de desativação do 1º/5º e ativação do 2º EMRA. Nos dois primeiros dias de reunião dos oficiais, ninguém se entendeu. No final do segundo dia, ba-seado em ideias-chave até ali surgidas, propus fosse feito um planejamento PERT (Program Evaluation and Review Technique), mas a proposta não prosperou. Decidido a continuar sozinho no meu propósito, pois, como oficial de manutenção, estaria envolvidíssimo com as mudanças, no final desse segundo dia fui procurado pelo tenente av Pontes (in memoriam), autor da “bolacha” do 2º EMRA e estudante de administração, e ficamos no quartel até montarmos um gráfico PERT (só tempo, ficando os custos com o Estado-Maior) bastante incompleto, mas já com o caminho esboçado. No terceiro dia, quando se falava em algo aleatoriamente, eu e o Pontes podía-mos dizer com segurança se esse algo, caso fosse procedente, antecedia, sucedia ou era paralelo a determinado evento, pois é isso que o diagrama PERT faz, sequencia eventos, podendo vários deles acontecer simultaneamente, nos chamados “caminhos” que levam ao “caminho crítico”, espinha dorsal do diagrama. Recebemos, então, ordem, eu e o Pontes, de fazer o plane-jamento, momento em que a sala de reuniões se esvaziou. Tra-balhamos os dias restantes esticando o expediente até altas ho-ras da noite, e conseguimos montar a diagramação a tempo de o primeiro comandante do futuro Esquadrão decolar para Brasília com o planejamento PERT completo e o seu Gráfico de Gant cor-respondente. O plano feito por dois tenentes foi aceito sem nenhum repa-ro pelo Alto-Comando e cumprido à risca, inclusive com a confir-mação da data de ativação do 2º EMRA – berço do 2º/8º GAv – sugerida no planejamento. 108

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PANÁ...VINTE! ARF, Anos 1970. Areowaldo PANADÉZ Neto, eternen-te (eterno tenente) de infantaria, foi desligado do voo na AFA no final do 4º ano. Não desistiu do voo e hoje é comandante, instrutor e checador aposentado da VASP, com 18.000 horas de vôo. Muito magro, embora de perfil atlético, olhando-se para ele ficava difícil acreditar que comia como uma draga. O refeitório dos oficiais abria, para almoço, às 11h30 e fechava às 13h, início do segundo expediente, mas não para Panadéz, que continuava almoçando até o meio da tarde. Não tinha pressa. Ia devagar e devorava tudo. Quando mudou o comando da Base, Panadéz continuou autorizado a comer a quantidade que quisesse, desde que dentro do horário de funcionamento do rancho. Em um domingo, depois da praia, Panadés foi almoçar em tradicional restaurante de Boa Viagem e escolheu um prato, que, segundo o garçom, dava de sobra para dois comilões: enorme travessa, com um peixe inteiro de ponta a ponta, e em volta, porções generosas de frutos do mar, salada, batata e frutas tro-picais. Quando o prato chegou à mesa, Paná reclamou que o ta-manho não era o que o garçom tinha dito. O gerente foi chamado e desafiou: “Se comer tudo, não paga”. Panadés, sem pressa, comeu tudo e ainda pediu outra travessa, desta vez, por sua con-ta. E novamente comeu tudo. Sem pressa.

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IMPEDÍMETRO ABE, 1º ETA (aviões Catalina e C-47), 1970. O aspi-rante de Comunicações Joscelino, de minha turma (EOEIG-1969), atualmente major reformado, logo que passa a tripulante operacional assume a função de instrutor do curso de pilotos. Em uma das aulas, fala em impedância, o efeito combina-do da resistência ôhmica e da reatância indutiva em um circuito elétrico de corrente alternada (ver Pane de Impedância). Ao tér-mino da instrução, é procurado por tenente (hoje, coronel na inatividade), que quer aula particular sobre o assunto. O aspirante, engraçadíssimo e brincalhão, mas falando sé-rio (e o tenente acredita, porque não conhece a figura), diz que não pode atender o pedido porque não dispõe de um “impedíme-tro”, instrumento de medição que não existe, e o convence a ar-ranjar um para o Esquadrão, já que trabalha no Material. Todos ficam sabendo da pegadinha, menos o inexperiente tenente, que passa mensagem-rádio para o Parque de Material de Eletrônica, no Rio, descobre a brincadeira, torna-se alvo de chacotas e acaba, numa boa, ganhando o que queria: aula-reforço de impedância. 110

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O PRAÇA E O MARQUÊS ecife, sala de espera de imobiliária, setembro de 2008. A moça diz que vou ser atendido “depois da-quele senhor”, e aponta para o soldado de polícia. Vejo-o, até então o único cliente, tipo curioso, quarentão, desa-jeitado e à vontade dentro da farda surrada, sentado, de pernas abertas, ocupando quase todo o sofá. Cumprimento-o e, na in-tenção de puxar conversa, me encolho no canto que sobrou da poltrona. E ele, sem responder ao cumprimento: “Tô frito. Não resolvem meu problema. Vou para as pequenas causas. Essa gente é esperta. Coloca uma linda mulher na recepção para nos vencer só de olhar para ela”. E baixando o tom de voz: “No en-tanto, como eu e você, ela solta pum, faz xixi e cocô”. Resolvo provocar o soldado: “A moça é simpática, riu pra você, riu pra mim”... “Mas fica só nisso”, diz. “Quem sabe?”, pondero. E mais provocativo: “Nós homens sabemos que pum de mulher bonita é perfume de grife, xixi é champanhe francês e cocô é doce de leite”... “De jeito nenhum”, interrompe. “Calma”, digo, e continuo: “Suponhamos que é assim e que ela vai ficar na sua frente como você sonha, caso a deixe perfumar, regar e con-feitar essa cara braba de miliciano”. O soldado se espanta, mas topa só o pum na cara, e pronto. Afirmo que é tudo ou nada. Ele se levanta, esbraveja, olha para a moça e diz que topa, além do pum, o xixi, e pronto. Insisto no pacote completo, e o praça, a-cuado, confessa que está doido pela galega. Nisso, a moça chama docemente o soldado pelo nome, a fim de ser atendido. Desolado, fita-me, os olhos brilhando, e de-sabafa: “Vê como tenho razão? O que não faz uma mulher boni-ta! Rendo-me e aceito o pacote completo, e pronto”. E o que não faz um homem por uma linda mulher! Apesar de fantasiosas, quem duvida das chances do soldado com a moça? Freud, o Mar-quês de Sade e outros doidos estão aí para explicar... 111

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DOM TRONCHO ARF, Cia IG, 1957. Eu, recruta 430, “Capitão”, e Mou-ra, 429, “O Homem Mais Feio do Mundo”, ou “Dom Troncho”, fomos à visita médica simulando doença, para fugir da instrução. O médico, conhecedor do golpe, nos bai-xou à enfermaria da Base, para “observação”, mas, na verdade, de castigo. Baixados, de pijamas do Posto Médico de tecido grosso, como quimono de judô, e de coturnos, pois não tínhamos chine-los, o castigo surtia efeito, pois se tratava de prisão disfarçada. Sentados frente a frente, cada um na sua cama, entediados e já pensando em nos declararmos curados ao sargento enfermeiro, comecei a mangar da feiura do colega. De botina, o Moura me deu um chute na canela, e rolamos no chão trocando murros. Apesar de “doentes”, nos deram alta, por indisciplina. Dias depois, fomos chamados à presença do Ten IG Agenor, para justificar a falta. O tenente, em matéria de feiura, era páreo duro com “Dom Troncho”. E que, além de alegre, brincalhão, de grande presença de espírito e de gostar de ajudar as pessoas, tinha fama de “alterado” (desafiador dos regulamentos militares). Certa vez, da escada em que pintávamos uma das laterais da Cia, vimos, pela janela, uma moça nua, que nem se incomodou conosco, deitada na cama de um quarto que funcionava como hotel de trânsito. Era uma das “namoradas” do Agenor. Quando entramos na sala do tenente, este, espantado, en-carou o Moura e me esqueceu. Parecia feliz de ver outro feio co-mo ele. Divertindo-se, ficou uns dez longos minutos perguntando ao recruta tudo o que era de indiscrição, e o coitado se “entron-chando” todo para fazer, por exemplo, como beijava a namorada, e eu me segurando, para não rir. De repente, explode: “Sumam da minha frente. Ou vocês preferem oito dias de cadeia”? Já no pátio da Cia, eu disse para Moura que o encontro de dois “tron-chos” havia nos salvado. E quase levei outro chute na canela. 112

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O SARGENTO ZÉ PRETINHO EAer, Galeão, 1947-48. Cap Esp Av reformado, 85 lúcidos anos completados em 2015, Benonil fez o curso de mecânico de voo na EEAer nesse período. É dele esta história. Todo o acervo de aviação do Exército, da Marinha e do Mi-nistério da Viação e Obras Públicas passou para o recém criado (20 Jan 1941) Ministério da Aeronáutica. Na época, no Galeão, funcionavam a Escola de Aviação Naval e os cursos para graduados, formando pilotos e técnicos para a aviação da Marinha; e nos Afonsos, a Escola de Aviação Militar e os cursos para graduados, também formando pilotos e técnicos para o Exército. A Escola de Aviação Naval passou para os Afonsos, onde funcionava a Escola de Aviação Militar, e, juntas, originaram a EAer – Escola de Aeronáutica, da FAB, atual AFA. O mesmo acon-teceu com as escolas de formação de graduados: a dos Afonsos passou para o Galeão, fundiram-se, nascendo assim a EEAer, hoje EEAR, Guaratinguetá, São Paulo. Praticamente, todo o efetivo da escola de graduados da Marinha ficou no Galeão e se incorporou à FAB, enquanto a do Exército perdeu apenas a parte do pessoal do ensino. Com o pes-soal da Marinha veio o sargento Zé Pretinho. Não era apelido, era esse o seu nome de registro. Comentava-se que ele, quando ga-roto, encostou-se no quartel e foi ficando, até ser aceito, aos 16 anos, como grumete, atual aprendiz marinheiro, e chegou a sar-gento, embora fosse completamente analfabeto. Quando de ser-viço no quartel, nada deixava escapar, inclusive os retardatários para o rancho, que tinham que escrever os próprios nomes e números em uma prancheta que ele apresentava. Quase sempre, o que constava na prancheta era impublicável. Foi assim que a FAB nasceu e continua se reconstruindo, num processo que parece que ainda vai muito longe. 113

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ABACATE VOADOR ARF, anos 50. No CTQ – Centro de Treinamento de Quadrimotores, atual 1º/6º GAv, diz Benonil, seu fundador, o voo de B-17, a Fortaleza Voadora da 2ª Grande Guerra, “era algo espetacular, principalmente para os tripulantes em revezamento para descanso. Dois pontos do avião eram os mais procurados: o nariz e a cauda, pela visão privilegi-ada da natureza, como luar, aurora, entardecer, colchões de nu-vens, principalmente nos belos dias e noites tropicais nos céus nordestinos”. Num desses voos, 3º sargento de foto-inteligência (hoje tenente-coronel inativo), recém formado, foi para o cone da cau-da, compartimento do artilheiro de cauda, local apertado onde se ficava deitado de bruços, e a entrada e a saída eram feitas raste-jando. Maravilhado com a paisagem, não se deu conta dos pro-cedimentos para o pouso, até ser surpreendido por pequeno ob-jeto de formato ovalado e verde aproximando-se do avião, como um projetil. Abandonando rapidamente o seu posto, procurou o RT-VO, a quem informou ter sido o avião atingido por um “abaca-te voador”. Ganhou o apelido. O “abacate”, com o seu peso, mantinha tensionada a an-tena de lastro das comunicações, lançada depois da decolagem e recolhida antes do pouso.

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(IN)CERTEZA NO GALEÃO AGL, Rio, 31 de Março de 1964. Até chegar esse dia, dia de certeza (ditadura), mas também de incerteza (de direita ou de esquerda?), as coisas começaram a se precipitar em 25 Ago 1961, com a renúncia de Jânio e a che-gada de Jango à presidência, em 7 de Setembro do mesmo ano. Eu estava lá, no antigo 1º/1º GT (avião C-47), vi e vivi tudo. Jango, um fraco manipulado pelo MCI – Movimento Comunista Internacional, chega “com as bandeiras nacionalistas de Getúlio [...], que por sua vez, eram as bandeiras da Aliança Nacional Libertadora de 35 [revolução comunista], que por sua vez, conti-nuavam sendo as bandeiras do PCB” (LUIZ MIR. A Revolução Impossível. Ed Best Seller, São Paulo, 1994, p. 56). Essas bandeiras, que nunca morrem, reaparecem em 1967, na chamada “luta armada” – eufemismo para guerrilha e terror – inicialmente na guerrilha urbana da Ação Libertadora Nacional, de Marighela, e evoluem rapidamente para o terror, guerra declara-da unilateralmente pela esquerda e pela esquerda perdida. Com a redemocratização (algo impossível numa ditadura comunista), a esquerda no poder deixa a guerrilha e o terror para serem usa-dos no caso de os seus métodos “democráticos” (“Não combata os tanques nem os soldados, corrompa as mentes” – Gramsci) fracassarem, e de sacada em sacada chegou (2012) à maior de-las, a “comissão da verdade”, tão verdadeira, que foi feita sob medida para só “investigar” os crimes da direita, e a inversões históricas, como a inscrição de Brizola, de biografia duvidosa, no Panteão dos Heróis Nacionais! Parte importante da estratégia revolucionária, o clima de insegurança causado pela agitação política do governo Jango (te-leguiado por Brizola) invadiu os quartéis, sob a leniência de ofici-ais criptocomunistas, cooptando os graduados, quebrando a hie-rarquia e a disciplina e espalhando a desconfiança entre irmãos de arma. Ninguém confiava mais em ninguém, e os líderes da esquerda já consideravam atingidas as condições objetivas (lide-rança nacional, organização operária, um partido comunista forte e inserção social e política) para, como preconizava Stálin, defla-grar a revolução no Brasil, de modelo cubano-castrista, quando, antecipando-se, veio o contragolpe da direita. Era esse o destino do Brasil naquela época: ditadura de di-reita ou de esquerda. Confirmando essa evidência, poucos dias 115

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antes do movimento militar, na segunda semana de março de 1964, Miguel Arraes, governador de Pernambuco, “depois de uma rodada de negociações no Rio”, com a nata da esquerda, repetiu o que Brizola, governador do Rio Grande do Sul, vinha dizendo: “Se não dermos o golpe, eles o darão contra nós” (ELIO GAS-PARI. A Ditadura Envergonhada. Cia das Letras, São Paulo, 2002, p. 51). Uma pálida ideia desse clima de insegurança: a manhã ia alta naquele 31 de março de 1964. Embora as coisas ainda esti-vessem indefinidas (só se definiriam às dez da noite), o contra-golpe deflagrado pelo Gal Mourão descia as serras das Minas Ge-rais com a tropa em direção ao Rio de Janeiro, transformado em praça de guerra pró e contra Mourão. Tanto é que dava para ver, na praia de Ramos, canhões do Exército apontando para a Base do Galeão, que era contra. Com o aumento da pressão (tortura psicológica) pela “revolução socialista”, voltam a circular entre os sargentos encartes de jornal com artigos incendiários de esquer-da. A “ordem”, como sempre, era ler e passar adiante. E assim fiz. Só que, ao entregar o panfleto para um companheiro, este, não sei com que intenção, ao ver que o major Bittencourt nos observava de perto, perguntou-me qual o artigo “de primeira” que eu recomendava. Não me fiz de rogado: abri o encarte em anúncio de página inteira, com bela mulher em trajes de banho, e apontei: “É este o artigo de primeira!”. Mas o pior ainda estava por acontecer. 116

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UMA NOITE NO GALEÃO AGL, 1º/1º GT, 31 Março de 1964. O dia todo foi de indefinição, quando o general Mourão madrugou com a tropa descendo as serras das Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro. Eu era 3S e recebi ordem, pouco depois das 21 horas, de me dirigir ao cinema da Base, para reu-nião com oficiais e graduados das três unidades aéreas. Lá, ou-vimos a explanação completa do plano de reação armada ao “golpe da direita” que, em resumo, consistia na fuga para Ca-chimbo, Xingu e Aragarças com o maior número de aviões (C-47 e C-54) transportando pessoal, armamento, munição, para apoi-armos Jango, a “cadeia da legalidade” e os “grupos dos onze” de Brizola, governador do Rio Grande do Sul. Por volta das 22 horas um oficial sobe ao palco, conferencia com os demais e aos pou-cos a mesa começa a se esvaziar, deixando-nos na plateia sem comando. Essa situação durou uma eternidade, até que os subo-ficiais tomaram a iniciativa de nos mandar de volta para os han-gares. A essa altura, a Base não tinha mais nenhum oficial e to-dos tratamos de também ir embora, esvaziando a caserna, fato que se repetiu em vários quartéis. Fui para casa, a Pensão de Dona Rute, na Freguesia, final da Ilha do Governador. Na manhã seguinte, no caminho para o expediente, notei muito soldado armado na Estrada do Galeão e quando cheguei ao Portão das Armas fui recebido pelo novo Comandante, coronel Alfredo Gonçalves CORREIA, que já conhecia, há pouco tempo defenestrado da função pelo esquema militar do Gal Assis Brasil, de apoio a Jango. Fortemente armado, o coronel comunicava pessoalmente a todos que chegavam a sua volta ao comando e a vitória da Revolução a partir das 22 horas do dia 31 de março de 1964. Foi nesse dia e hora que o General Amaury Kruel, Coman-dante do 2º Exército, São Paulo, “o grande mudo do dia” (A Dita-dura Envergonhada, Hélio Gaspari, São Paulo, Cia das Letras, 1ª Ed. p. 80) telefonou para Jango pedindo a ele para se afastar de Brizola, dos oportunistas da política e dos pelegos dos sindicatos, sérias ameaças à democracia. Como não foi atendido, retirou o seu apoio ao governo, e com o peso do seu exército desequili-brou a balança para o lado do contragolpe militar, como constatei muito depois, lendo a história e compreendendo a deserção dos oficiais da Base do Galeão, que certamente devem ter recebido ultimado de rendição. Foi assim que escapei de ser “herói” da “democracia” brasileira. Mas as coisas não pararam por aí. 117

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NOITES DE ABRIL NO GALEÃO AGL, 1º/1º GT, abril de 1964. Para quem entrava na Grande Unidade pelo Portão das Armas, o Comando da Base ficava do lado esquerdo, e o hangar do Es-quadrão, do outro lado, mas voltado para uma rua logo à direita, que terminava no muro dos fundos do Hospital do Galeão. Contí-guos ao 1º/1º GT, vinham o hangar do ESM e a casa do Ministro, esta de frente para a Baía da Guanabara. Do outro lado da rua, o cinema, a piscina e enorme mangueira entre a piscina e o cassino dos oficiais. Foi debaixo dessa mangueira, de olho nas janelas dos quartos da frente do andar de cima do cassino, que vivi, dia sim, dia não, noites de muita apreensão. Lá, oficiais presos pelo mo-vimento militar eram vigiados, no corredor dos quartos, por pes-soal estranho à Base fortemente armado. Eu e mais cinco tercei-ros-sargentos, companheiros de Esquadrão, três de cada vez e um no quarto de hora, fomos escalados para compor, durante a noite, a vigilância externa. Não nos deram ordem de atirar em quem tentasse fugir ou resgatar os presos, mas nos armaram com metralhadoras INA, que engasgavam mais do que atiravam. E quando perguntei se era para atirar, e o que fazer se a arma falhasse, ouvi do capi-tão que o problema era meu. Entre a cruz e a espada, resolvi que atiraria, e a tensão da espera dessa hora chegar só passou quan-do os presos, sãos e salvos, foram removidos para navio-prisão fundeado na Baía da Guanabara. Só quem viveu situações, como essa, sabe como foram aqueles tempos. Novamente escapei de ser “herói”, desta feita da direita, e com certeza estaria hoje comendo o pão que o diabo amassou.

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LINHA 328 CASTELO-BANANAL

AGL, 1º/1º GT, Rio, Dez 1964. Um mês depois do contragolpe militar, tornei-me, com soldo de 3S, arrimo de família (mãe e sete irmãos menores), e

não conseguia transferência para o Recife. Meu chefe imediato, Capitão Othon Chouin, sensibilizado, escalava-me uma vez por mês como tripulante extra na linha do Correio Aéreo Belém-Litoral (terça e quarta-feira de ida e quinta e sexta-feira de vol-ta), que me permitia ficar dois dias inteiros no Recife, tempo para checar as coisas e pagar as contas. Na última dessas viagens (dezembro de 1964), antes da decolagem, o 1S Silva disse-me que o coronel comandante do avião servia na DP (Diretoria do Pessoal), hoje DIRAP (Diretoria de Administração do Pessoal), era arataca (paraibano), como eu (pernambucano), e que aproveitasse para expor o meu caso e pedir transferência. Fiquei apreensivo. Se abordasse o coronel atentaria contra a hierarquia e a disciplina, dois dos mais sérios pontos restaurados pelo movimento militar. As dificuldades, no entanto, me levaram a arriscar. Em forma, debaixo da asa do avião, fui o último a me apresentar e expliquei porque estava ali, de tripulante extra, e fiz o pedido. Depois de passada a surpresa e nada comentar, o coronel ordenou o embarque. Na volta da viagem, novamente em forma, e temendo o pior, o coronel dirigiu-se a mim dizendo que o procurasse na se-gunda-feira. Cheguei na DP ao meio-dia (expediente das 12h às 18h), fardado. Na sala de espera, fui atendido por uma senhora, que não queria acreditar na minha história com o coronel, como, também, o Capitão Othon não acreditou. Devido à minha insis-tência, ela foi chamar o major assistente, que também não acre-ditou, mas levou meu caso ao coronel.

A sede do Ministério da Aeronáutica, transferida para Bra-sília, situava-se, naquele tempo, em um prédio na Esplanada do Castelo, Centro do Rio (Rua Marechal Câmara, 233) e era lá que funcionava, e funciona até hoje, a DP (DIRAP), e por trás do pré-dio, a Igreja de Santa Luzia, na rua de mesmo nome. Exatamente quando os sinos da igrejinha de Santa Luzia começaram a tocar a

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Ave Maria, eu, sem ter conseguido me apresentar ao coronel, recebi a notícia de que tinha sido transferido. Abalado, era como se flutuasse. Da janela da sala onde me encontrava, dava para ver o navio com presos políticos fundeado na Baía da Guanabara. Durante toda a tarde de espera, imaginei-me sendo levado para lá. Faz anos, procuro lembrar o nome do coronel, e não consigo, apesar de ter a sua fisionomia na memória, a quem sou eterna-mente grato, como a minha mãe, que morreu velhinha rezando por ele, paraibano, como ela.

De volta para casa, no ponto do ônibus Castelo-Bananal encontrei o SO Oliveira e Rainer Horn, jovem turista alemão, com quem conversava em inglês, e a ele me apresentou como militar e estudante (curso noturno, científico, Colégio Mendes de Morais, Praia do Bananal, Ilha do Governador). Ele, professor universitá-rio na Alemanha, mostrou-se interessado em conhecer o meu colégio, pois na Europa ninguém estudava à noite, e que confiava em mim por eu ser militar (ele falando espanhol e eu, portunhol). Entramos no ônibus lotado, viajamos uma hora, em pé, chega-mos ao colégio no intervalo maior entre as aulas, o pátio cheio de rapazes e moças, comecei a apresentá-lo, a notícia correu e não houve mais aula naquela noite. Falou inglês, alemão e espanhol, conheceu descendentes de alemães, e a convite de um deles, ficou hospedado na casa da família.

Pouco tempo depois, já no Recife, recebi dele um cartão postal (*) de sua cidade natal, Düsseldorf, agradecendo pela o-portunidade que lhe dei de conhecer mais de perto o Brasil atra-vés de uma escola pública noturna, seus estudantes, e uma famí-lia brasileira de alemães.

Encontros e acasos inexplicáveis, como esses, mostram como, ao sabor das circunstâncias, a vida simplesmente aconte-ce. “Deixa a vida me levar / Vida leva eu” – Zeca Pagodinho.

(*) Dear José: Well I really have to thank you very much for all you did for me. You had made it possible that I could spend a wonderful time in Rio.Remember very well us going to your college and having yours friends around us.Thank you very much and all good. Rainer. (*) Caro José: Bem, eu realmente preciso agradecer-lhe muito por tudo o que você fez por mim. Você me proporcionou uma estada maravilhosa no Rio. Lembro muito bem quando fomos ao seu colégio e lá, estivemos cercados por seus amigos. Muito grato e tudo de bom para você. Rainer. 120

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LAVAGEM CEREBRAL História eu conto, como a História foi, para que “não se repita como farsa” (Karl Marx). Início do ano leti-vo de 1964. Aluno do curso “científico” (direcionado para o vestibular da área de exatas, em oposição ao “clássico”, dirigido às outras áreas do ensino superior) do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes, à Rua Pio Dutra, Freguesia, Ilha do Governador, Rio, tinha como companheiro de sala outro 3º sar-gento, amigo e irmão até hoje. Eu servia na BAGL (antigo 1º/1º GT) e ele na antiga Fábrica, atualmente Parque do Galeão. Configurando quadro que mal começava nas escolas, sen-tíamos a presença da União dos Estudantes Secundários do Esta-do da Guanabara, e seus “estudantes profissionais”, figuras até hoje sustentadas nas universidades pela União Nacional dos Estu-dantes, na cooptação de professores e alunos, principalmente sargentos, para o socialismo. Subliminarmente dissertavam sobre conceitos marxistas, como a mais-valia (mecanismo de “exploração” do proletariado) e a luta de classes (o motor da história), porque nos viam como “futuros quadros” do Partido, processo pelo qual também passá-vamos nos quartéis, onde nos tratavam como “divisas” (nos dois sentidos: pecuniário e de símbolo dos graduados) da revolução, mas, no fundo, efetivamente nos usavam como massa de mano-bra. Não posso dizer que tenha resultado só disso, mas o fato é que o meu amigo, pouco depois do contragolpe militar de 31 de Março de 1964, desertou e entrou para a luta armada, logo assim que ela eclodiu, com a finalidade de implantar o comunismo de modelo cubano-castrista no Brasil. Atualmente a esquerda continua mentindo (“A verdade é preconceito pequeno-burguês e a mentira é justificada pelo fim”– Lênin) dizendo que lutou para redemocratizar o país. Por causa disso, a “democracia” brasileira tem mais “heróis” que os heróis somados de todas as democracias do mundo, em todos os tem-pos. Era comum cartazes com fotos de vários revolucionários, entre eles o meu amigo, com a legenda: “perigosos terroristas procurados” e ficava silenciosamente na torcida para que ele não fosse preso. Soube depois, contado por ele mesmo, que o Movimento Comunista Internacional (MCI) o havia levado para a França, on- 121

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de completou o curso superior iniciado no Brasil. Reencontramo-nos de forma simples. Ao ser promulgada a Lei da Anistia, vi, pela TV, a volta dos revoltosos que partiram (a maioria porque quis) e que se juntavam livres aos que ficaram. Disquei para a Cia Telefônica do Rio de Janeiro, dei o no-me completo do meu amigo, pedi o seu telefone e liguei para ele, que reagiu espantado perguntando-me como conseguira localizá-lo. Disse-lhe que a anistia, ampla, geral e irrestrita, havia pacifi-cado o país, nos devolvido a liberdade, tirado dele a condição de fugitivo, e expliquei como o achei. A ideologia não conseguiu nos transformar em estranhos. Tive, inclusive, o prazer de recebê-lo em minha casa, aqui no Recife, para celebrarmos nossa velha amizade e o significado sin-gelo da palavra AMIGO. 122

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TRIBUNAL REVOLUCIONÁRIO

“Toda época histórica precisa, a posteriori, pelo menos, de um bode expiatório que lhe possa purgar as culpas e os crimes.”

– José Paulo Paes, tradutor e crítico literário.

Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) necessitava roubar um carro para a ação de se-questro do cônsul americano, no Recife. Para tanto,

em 26/6/1970, grupo de quatro terroristas decidiu tomar de as-salto um fusca nas proximidades da Vila Residencial dos Oficiais da Aeronáutica. Ao renderem o motorista, descobriram tratar-se do tenente da FAB Mateus LEVINO dos Santos, casado, pai de duas filhas pequenas, morador da Vila e meteorologista.

Imediatamente os quatro assaltantes constituíram-se em “tribunal revolucionário”, e em poucos minutos, acusado de agen-te do imperialismo americano (sic), o tenente foi “julgado”, con-denado à morte e executado, com dois tiros, um na cabeça e ou-tro no pescoço, por Carlos Alberto, este, sim, agente do imperia-lismo totalitário russo.

Os agressores fugiram sem levar o carro, deixando a víti-ma ao volante, dado como morto. Mas o tenente teve tempo de contar a história, pois só morreu em 24 Mar 1971, depois de nove meses de intenso sofrimento. O imprevisto, devido a não espera-rem que o motorista fosse militar, levou o PCBR a desistir do se-questro.

Como os oficiais moradores da Vila eram casados, e em sua maioria, pais de filhos pequenos e donos de fuscas, além de “agentes do imperialismo americano” e facilmente identificáveis, todos sofremos a tortura psicológica de também sermos sumari-amente executados.

E era consenso que, ao sermos abordados em nossos fus-cas, o carro, naquela época, da preferência nacional, reagíssemos atirando primeiro – pois foi o terror que lançou a moda dos assal-tos a carros e bancos no Brasil –, antes de sermos assassinados por quem covardemente surgia do nada falando, em nome do povo, como fala até hoje, em democracia e liberdade.

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IDEOLOGIA, MÁQUINAS & MOTORES ARF, ESM, 1965. Recém transferido do Rio, enquanto esperava completar o tempo mínimo de cinco anos (hoje, oito!, quando não se precisa de nenhum), co-mo graduado, exigência do concurso à escola de oficiais especia-listas (à época, EOEIG), matriculei-me no Curso de Máquinas e Motores da Escola Técnica Federal, naquele tempo situada nas proximidades da Praça do Derby. Toda noite, ia de ônibus do meu bairro, Vila do IPSEP, até a Av Guararapes, centro do Recife, e de lá, percorrendo toda a Av Conde da Boa Vista, a pé, chegava à Escola, depois de quarenta minutos de caminhada. No fim das aulas, fazia o mesmo percurso de volta, a pé, economizando duas passagens de ônibus. A Faculdade de Filosofia do Recife (FAFIRE), da Igreja, fi-cava na Av Conde da Boa Vista. De certa feita, na volta das au-las, 22h30, Dom Helder, padres, freiras e leigos encontravam-se na calçada em frente à Faculdade. Quando o Dom me viu, típico estudante pobre de curso noturno, veio na minha direção e me abraçou, “comovido com a minha luta”, como me disse. Não es-bocei nenhuma reação e fui em frente. A certeza que eu (e muita gente) tinha do padre, como gostava de ser chamado, de que cultivava a falsa virtude da hu-mildade, teve o seu momento de verdade naquele abraço. Com forte presença na mídia, ele era o maior divulgador da sua pró-pria modéstia e despojamento. A mesma falsa virtude que Sócra-tes viu em um de seus discípulos, fundador da escola cínica, que pregava a humildade e a pobreza: “Antístenes, eu vejo o teu or-gulho através dos buracos de tua capa”. No caso, a batina surra-da do Dom. 124

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PROVA DE HISTÓRIA s coisas aconteceram fora da BARF (para onde fui transferido em dezembro de 1964), depois do expedi-ente, entre a noite do dia 8 e o amanhecer do dia 9 de março de 1965. No dia 18 de março de 1964, cinco dias depois do comício da Central do Brasil (que assisti pela televisão no interior da BA-GL, onde servia), doze dias antes do discurso do Presidente Jan-go aos sargentos no Automóvel Clube do Rio de Janeiro e a ape-nas treze do contragolpe militar que sustou o golpe em marcha dos socialistas, Jango assinou o Decreto 53736, que equiparava o diploma do sargento formado na EEAR ao 2º grau, nível depois exigido dos candidatos ao concurso desta Escola. Para surpresa geral, pois esse decreto fazia parte da coop-tação dos graduados pela esquerda, o Ministério da Educação do novo governo (militar), através da Portaria nº 765, de 16 de de-zembro de 1964, reconheceu e regulamentou o decreto de Jango, determinando que a validade do diploma só se daria mediante prova de História, para complementar e humanizar o currículo, ministrada pelas Escolas Técnicas Federais. A referida prova aconteceu em todo o país na noite de 8 de março de 1965, uma segunda-feira, após requerimento e anexa-ção do diploma da EEAR, para prova de título e devida averba-ção. Eu e Maia, depois da prova, resolvemos comemorar o su-cesso na prova e o acerto da medida tomada pelos dois lados (esquerda e direita), numa boate da Rua do Rangel, centro boê-mio do Recife. E amanhecemos na praia do Pina tomando banho nus com as meninas, bem a contragosto dos dois lados.

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CARTA “C”

ARF, 2º EMRA, anos 1970. Como havia muita mano-bra, com desdobramentos fora de sede, as Unidades Celulares de apoio ao combate, seus efetivos – ofici-

ais técnicos de avião, comunicações, armamento, suprimento; oficial médico; oficial intendente; graduados e praças – e traqui-tanas da guerra, embarcávamos dias antes, sem aviso prévio do avião que nos transportaria. A volta obedecia ao mesmo esque-ma.

Para enfrentar esse problema, desenhamos no chão do hangar os compartimentos de carga (carta “C”) do C-115, C-118 e C-130, cargueiros, para treinar e otimizar o tempo de carrega-mento (e descarregamento) do avião, dentro do peso e balance-amento.

E isso era feito imitando as formigas: cada militar sabia o que carregar (ou descarregar), na sequência e colocação certa no avião. E logo todos estávamos a bordo, trepados em cima da car-ga, para mais uma missão de preparo e apronto para o combate.

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CASA-GRANDE & SENZALA

ASV, 1965. O C-47 da 2ª Zona Aérea (atual 2º CO-MAR) deu troca de motor em Salvador. Mais moder-no (3S), fui escalado para ficar tomando conta do

avião, até chegar a equipe de troca, da qual faria parte. No século passado, década de 30 (1933), o lançamento do

livro Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, espantou o mundo, menos o Brasil. Aqui, por décadas, foi boicotado por inte-lectuais do pensamento único dominante, que emanava da Uni-versidade de São Paulo (USP). Só viam no engenho a representa-ção do latifúndio escravocrata, esquecendo a sua importância como sistema social que unia senhores (casa-grande) e escravos (senzala), magistralmente descrito por Gilberto Freyre. Sistema resultante da interação do branco europeu, do negro africano e do índio brasileiro, que modificou a fala, a arquitetura das mora-dias, as relações de amor, a religião, a culinária, as festas e até as cantigas de ninar.

Ainda muito jovem, ao ler essa obra fundamental, onde o autor diferencia raça de cultura e também hereditariedade de raça de hereditariedade de família, não percebi a real importância do que tinha lido, para a formação da sociedade brasileira. Mas esse dia chegou

Na primeira saída da Base, para conhecer a capital da Ba-hia, ao tomar o ônibus cheio, na Praia de Itapuã, o choque cultu-ral foi grande, mesmo eu sendo pernambucano, leitor de Casa-grande e de família onde não sabíamos o que era preconceito de cor (o caso brasileiro, diferente do americano preconceito de ra-ça): o único branco era eu.

Trocado o motor, de volta para casa, a primeira coisa que fiz foi reler o livro, agora com muita atenção. Compreendi, por exemplo, porque minha avó paterna, galega do olho verde, tinha casado com o meu avô, mulato mais puxado para “negão”, e na família tinha morenos e brancos, numa mistura bem brasileira.

Pesquisa recente sobre a genética do brasileiro provou o milagre da miscigenação em nosso país. Caso exemplar, o exame do sangue do sambista carioca Neguinho da Beija-flor, para es-panto dele próprio, acusou porcentagem alta de ancestralidade

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europeia. E não se trata de exceção. Do negão ao branquelo bra-sileiro, ninguém tem sangue “puro”.

A mistura branco-negro-índio definiu o homem e a mulher do Brasil, beleza que a estupidez do politicamente correto está destruindo: o saboroso bolo “nega maluca”, entre outras coisas, mudou de nome: agora é “bolo afro”. Ora, o bolo é brasileiro, como o seu nome, invenção das negras “nas enormes cozinhas das brasileiras casas-grandes, vastas salas de jantar, numerosos quartos para filhos e hóspedes, capela, puxadas para filhos casa-dos, camarinhas para filhas solteiras, gineceu, copiar, senzala”.

Viva o povo brasileiro!

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ESTRELAS OU DIVISAS?

o início dos anos 1960, jovem civil morador de Na-tal passou nos concursos da EEAer (hoje EEAR) e da EAer (atual AFA). Sem saber por qual escola optar,

foi até a Base, onde foi recebido por sargento do Esquadrão de Pessoal, que o orientou para a EAer (Escola de Aeronáutica). No dia do embarque para o Rio, pelo CAN, ele foi cedinho para o ponto do ônibus, que demorava. Outro sargento passou de lambreta e lhe deu carona até o aeroporto. Declarado aspirante-aviador, voltou a Natal, procurou seus benfeitores, mas só encontrou o que lhe deu carona, o então sar-gento Francisco Fousek, depois aspirante de avião (EOEIG, 12 Dez 1968), morto como major, ainda na ativa. Do outro, até hoje não teve mais notícia.

O aspirante chegou a tenente-brigadeiro, o topo da carrei-ra, e nunca esqueceu esses dois graduados, seus primeiros con-tados reais com a FAB e a (verdadeira) camaradagem militar.

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OU, DA GRAVATA!

elho coronel de infantaria, já no andar de cima, me contou como entrou no Exército. Morava numa pe-quena fazenda, com os pais, no interior do Ceará.

Prestou concurso para a antiga Escola de Cadetes de Fortaleza. Aprovado, desembarcou na rodoviária e, com a sua enorme mala de arataca, daquelas de madeira e protegida por uma capa de tecido, tomou um táxi para a Escola, em uma tarde de domingo. No Portão das Armas, foi recebido por uma comissão de alunos. A primeira providência que tomaram foi proibir o “bicho” de entrar com o táxi até o alojamento. A segunda, ordenaram que colocasse a mala na cabeça, para andar com ela por mais de 1 km, acompanhado da comissão. Como estava de paletó e gravata, traje recomendado para filho de fazendeiro, no meio do caminho apareceu um gaiato com uma tesoura na mão e lhe cortou a gravata pelo meio. Cearense brabo do interior, já a ponto de estourar, reagiu jogando a mala em cima do gaiato.

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METÁFORA ui o único militar convidado por Roberto Didier, eco-nomista e radialista da rádio universitária da Univer-sidade Federal de Pernambuco, para debater os 40 anos do Movimento Militar de 31 de março de 1964. Na saída do debate, nos corredores da rádio, fui grosseiramente abordado por uma moça, que me disse ser estudante de jornalismo, assegu-rando-me ter nojo de militares, a quem chamava assassinos, e de se sentir enjoada de falar comigo. A moça, muito nova e bonita, trajava calças jeans e cami-seta com a foto clássica de Che Guevara e sua frase mais conhe-cida – há que endurecer sem perder a ternura jamais –, (*) como se isso fosse possível. Então lhe perguntei porque o comandante e, portanto, militar, Che Guevara era fruto de sua adoração, e assegurei tratar-se de lavagem cerebral. E mais, se sabia que a palavra “endurecer” fora empregada pelo Che como metáfora de “matar”, pois era assassino compulsivo e pensava, agindo assim, estar construindo “o novo homem” e mudando o mundo. Quanta pretensão! E citei outra frase do Che, em reforço ao que eu dizia, e que tenho decorada até hoje: “Uivando como um possesso [...] banharei minha arma em sangue e, louco de fúria, cortarei a garganta de qualquer inimigo que cair nas minhas mãos. [...] Sinto minhas narinas dilatadas pelo cheiro acre da pólvora e do sangue do inimigo morto”. Notei a moça surpresa e confusa. Perguntei, então, se sa-bia o que era metáfora, relação entre o sentido próprio e o figu-rado de uma palavra ou expressão. Pelo olhar bovino com que me olhou, vi que não sabia, e a reação dela, tremendo de ódio, e do mesmo jeito que me abordou, foi sumir intempestivamente da minha presença.

(*) “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás!” 131

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OFICIAL DE FANDANGO ANT, ESM, 1969. Chego aspirante em Natal e reencon-tro velho amigo dos tempos do B-17 e do ESM da BARF, o 3S QC Salustiano (Salu), que me contou a seguinte história, que disse ser verdadeira: O cabo velho foi convidado pelo prefeito de sua cidade, Can-guaretama, no litoral ao sul de Natal e próxima desta, para dançar a Nau Catarineta (Ver Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo, Ed. Itatiaia, RJ/BH, 7ª Ed. 1993). Trata-se de encenação marítima de origem medieval, um Auto de Fandango, bailado popular dançado e cantado (*) por “oficiais” e “marujos” do folguedo, marujada ou chegança, em uma barca (nau) estilizada, ao som de instrumentos de corda. O prefeito perguntou ao cabo se queria ser “oficial” ou “ma-rujo” da nau, e o cabo, fiel às origens, respondeu que, como era cabo “da Base”, preferia ser marujo. E assim foi. Depois das comemorações religiosas, a “Marujada” foi o pon-to alto da festa, divertindo o povo. Terminado o Auto, o prefeito convidou só os “oficiais” para recepção no clube social da cidade, esquecendo os “marujos”. O cabo velho, inconformado e confor-mado ao mesmo tempo, reclamou: “Rapaz, ser oficial até de Fan-dango é bom!” A história me fez lembrar colega de turma, para quem a segunda melhor coisa do mundo é ser oficial da FAB, de vez que nada se iguala a ser Sultão, dono de harém. Lembra, também, que, para reclamar, e assinando embaixo, é preciso uma postura crítica inteligente. (*) O Capitão da Nau: “Sobe, sobe meu gajeiro, / Meu gajeiro real, / Vê se avistas terras de Espanha, / Colinas e areias de Portugal”. Do alto, na gávea, o gajeiro responde: “Alvíssaras, meu capitão, / Meu capitão-general, / Eis que avisto terras de Espanha, / Colinas e areias de Portugal”. (Benonil Melo). 132

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QUANDO EU FOR MINISTRO! ANT, 1969. Aspirante e solteiro, morava no cassino de oficiais da Base, com um “bando” de aspirantes estagiários. Diante de qualquer coisa que os incomo-dasse, estes logo reagiam quase gritando: “Quando eu for briga-deiro!” Um dia, fingindo contrariedade, improvisei: “Quando eu for ministro!” Diante do espanto geral, expliquei como poderia chegar a

ser ministro dirigindo-me a um dos aspirantes: “Digamos que, por descuido das autoridades, você chegue a ‘quatro-estrelas’”. E não é que chegou! “E que, por cochilo ainda maior, seja escolhido pelo movimento militar presidente do Brasil. Como presidente, você pode me nomear ministro de qualquer pasta, inclusive da Aeronáutica”.

O aspirante não foi escolhido presidente, nem eu, ministro. Mas cheguei a “brigadeiro da graxa”, mas essa é outra história.

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ADMIRÁVEL MUNDO NOVO EAR, 1960. Aprovados no concurso, chegamos à Es-cola no começo de fevereiro. Do Recife, saímos eu e Rocha, S1 mecânicos, e Valdemiro, S1 bombeiro. O C-47 do CAN pousou no Galeão depois de um dia inteiro de via-gem. Nunca tínhamos saído de Pernambuco e de repente está-vamos na rodoviária antiga da Praça Mauá, no centro do Rio, on-de gentilmente nos deixou o motorista do ônibus “328 – Castelo-Bananal”, mas só pudemos comprar passagens para o dia se-guinte, pela “Viação Sampaio”, linha direta Rio-Guará. Alugamos quarto em pensão barata da zona portuária, sa-ímos andando em linha reta pela rua, para não nos perdermos, e chegamos no cruzamento de larga avenida. Paramos na esquina e então vi uma Igreja, que conhecia de foto na revista O Cruzei-ro, e falei para os companheiros: “Esta é a Avenida Getúlio Var-gas e aquela, a Igreja da Candelária”. Eles riram de mim afir-mando que eu tinha lido, e apontaram acima da minha cabeça a placa com o nome da igreja, da Avenida Getúlio Vargas e da Rio Branco, com quem cruzava. Voltamos para a pensão com a janta nas mãos: maçãs e uvas. O quarto só tinha uma pia. Nela, esco-vamos os dentes e fizemos xixi. Por segurança, arrastamos o antigo e pesado guarda-roupa para a porta do quarto, que não tinha janela, e fomos dormir. Chegamos ainda dia claro a Guaratinguetá (Guará), no Vale do Paraíba, e perguntamos onde ficava a Escola. Depois co-mentei que o informante devia ser italiano, pois sabia haver mui-tos deles em São Paulo. Estranhara o sotaque do “guaraíno” (de Guará) ou “muvuco” (por extensão, masculino de “MUVUCA”, mulher vulgar do corpo de alunos), e para azar meu e goza-ção dos amigos, a minha primeira namorada, como aluno, foi a Leonôôôôôrrrrr. Era um mundo novo, que a FAB abria e abre para todos, e para mim escancarou, e fui entrando até onde deu: de recruta a brigadeiro da graxa. 134

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BRIGADEIRO DA GRAXA a FAB, com muita honra, fui soldado (S2 e S1), sar-gento (3S) e oficial (de aspirante a tenente-coronel). A Força Aérea tinha apenas 16 anos, eu, 18, e o uni-forme era cáqui, quando, em 1957, na BARF, terminei o estágio de recruta e fui designado para fazer o curso de cabo na Polícia da Aeronáutica. Pedi audiência com o comandante da Companhia, Cap IG Aluísio Medeiros, e este me deu a primeira grande lição de como deve agir o chefe: recebeu-me, um simples recruta, e como viu que era justo, atendeu o meu pedido: queria fazer o curso de cabo mecânico no então 6º Grupo de Aviação (dois esquadrões, Foto e Busca, equipados respectivamente com 6 e 5 aviões B-17). Gostei da graxa e fiquei. O técnico faz voar, porque lhe cabe manter e disponibilizar a frota para o combate; e, na guerra aé-rea, trabalha, voa, combate e eventualmente morre com o piloto, no apoio ao fogo de guerra. Guerreiro na terra e no ar. O termo “graxa”, na FAB, refere-se à logística de manutenção de aerona-ves. Fiz o primeiro grau em mecânica aeronáutica no antigo 6º Grupo de Aviação; o segundo, na EEAR (escola de graduados); e o terceiro, na EOEIG (Escola de Oficiais Especialistas e de Infan-taria de Guarda). E porque troquei a infantaria pela aviação, não cheguei a coronel, ou brigadeiro, como acontecia antes com o infante. A infantaria, depois que passou a ser formada na AFA, já tem seus coronéis e brigadeiros. Mas acredito que fiz a escolha certa. Com certeza, não teria sido tão feliz (não confundir com alienado) na infantaria, como fui na aviação. O erro não foi meu, foi e ainda continua sendo do sistema. No fim da carreira, aconteceu o inesperado. Quando fui promovido a tenente-coronel (31 de agosto de 1988), os oficiais da Base Aérea do Recife passaram carinhosamente a me chamar de “Brigadeiro da Graxa”, por ter atingido o até então (hoje é coronel) último posto do Quadro de Avião. Um belo e inesquecível reconhecimento. 135

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ROMARIA

EAR, 1960/61. Era um Brasil rural, atrasado, arcaico. Menino, fui coroinha e seminarista (Seminário São José, de Pesqueira), e ainda menino, aluno da Aca-

demia de Guaratinguetá, de onde saí homem feito e técnico da Força Aérea Brasileira. No primeiro licenciamento, fui à vizinha Aparecida do Norte conhecer a santa e namorar as romeiras. Na Basílica antiga, fardado (por força do regulamento) entrei na e-norme fila de um lado do altar, que nos permitia escalar muitos degraus até ficarmos cara a cara com a santa, pretinha, pretinha, lá no alto, e descíamos pelo outro lado. Na hora em que olhei a santa nos olhos, a oração que reci-tei foram trechos que me tocam da música Romaria, de Renato Teixeira, cantados baixinho: “Sou caipira, Pirapora Nossa / Se-nhora de Aparecida / Ilumina a mina escura e funda, / o trem da minha vida. // O meu pai foi peão, minha mãe solidão, / Meus irmãos perderam-se na vida a custa de aventuras, // Como eu não sei rezar, só queria mostrar / Meu olhar, meu olhar, meu olhar”... E como só se acha quem se perde, enchi os olhos d’água lembrando o menino nordestino pobre, que ainda guardo dentro de mim, nascido no Recife, mas criado numa cidadezinha do A-greste pernambucano, Brejo da Madre de Deus, onde faltava tu-do: médico, hospital, maternidade, água encanada, saneamento, eletricidade de Paulo Afonso, ruas calçadas, estrada asfaltada, banco, campanhas de vacinação, biblioteca e, principalmente, educação para o povo, pois só havia uma única escola primária, dirigida por Dona Glorinha. Como era impossível meu pai susten-tar oito filhos estudando no Recife ou em Caruaru, só consegui terminar o ginásio já soldado mecânico da FAB. E fui para Guará, “a custa de aventuras”. Até hoje mexe comigo lembrar desses fragmentos da música, do meu encontro com a santa e de minha passagem pela EEAR, ventura da aventura de poder viver “a lida nos hangares, na pista, no avião” (Canção do 2º/8º GAv). E por 32 anos, ungido na graxa, pela Força Aérea e pelo Brasil, a quem jurei servir, e a mais ninguém.

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HISTÓRIAS CURTAS

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1 – “Elogio” individual, em boletim, de capitão IG, coman-dante de Companhia, a tenente IG: “Apesar do pouco tirocínio”... 2 – Ele chamava todo mundo de “Major”. Depois descobri tratar-se de gíria nordestina para homem impotente, conforme o Dicionário do Palavrão, de Mário Souto Maior, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco – Recife, PE. 3 – EEAR. Corpo de Alunos em forma para o rancho. A corneta toca “Sentido”!, “Meia Volta, Volver”! e a tropa vê à sua frente o TCel Esp Com JANSEN. Um coro de 1200 vozes, acom-panhado pela Banda, canta a Canção do Especialista, em home-nagem ao TCel Jansen, que se despedia da ativa. 4 – Avião Catalina, anos 1970, em pane no interior da Amazônia. O mecânico pede ao radiotelegrafista para enviar mensagem solicitando 10 “cu de burro” (espécie de anel de bor-racha). O RT, sargento novinho e “irmão em Cristo”, pede 10 “anus de asno”! 5 – CFPM-Natal, 1970. Em um domingo à tarde, tenente no uniforme completo, fui ao belo Teatro Alberto Maranhão, estilo neoclássico, representando o comando. Era um concerto de piano a quatro mãos, mãe e filho adolescente, dividido em quatro atos. No fim do primeiro, no intervalo, saí de fininho. 6 – No antigo 1º/5º Gav (B-26), servia um cara tão enro-lado, que seu nome virou sinônimo de confusão. Quando algo não dava certo, diziam: “Deu Alonso”. 7 – EOEIG-Curitiba, 1968/69. Os alunos podiam sair da Escola, todos os dias, depois da última aula. Nas sextas-feiras, Jocelino, de Comunicações, laranjeira, como eu, ao chegar no alojamento, gritava: “Tá pirigando uma taquaretada”! 8 – EMRA-2. “Boca Travada” mal abria a boca pra falar; “Boca de Hangar” escancarava; “Boca de Bagre” fazia beiço; “Bo-ca D’Água” falava cuspindo; “Boca de Chocalho” falava muito e engolindo as palavras; “Boca Nervosa” gaguejava; e “Boca Mole”, mole, mesmo, só dizia bobagem. E ainda tinha o “Bico Doce”. 9 – EOEIG-1968/69. O prof Paulo Wendler, de cálculo, en-trava na sala de aula e nos saudava, com sua voz fina e irônica: “Bom dia!” Só que soava (era o que ouvíamos) “bundinha”... 138

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10 – BAGL- 1º/1º GT, 1960/64. Pane de “cilindro morto” era comum no C-47 e se devia, quase sempre, aos polos da vela impregnados de óleo do próprio motor. O SO Petronilo, numa síntese surreal, definiu a pane como “centelha úmida”. 11 – BARF, anos 60. O Globe Master pousa, taxia e esta-ciona. E enquanto é abastecido, ouço, ao vivo, magistral solo de gaita de fole escocesa tocada por um cabo americano. 12 – BARF. Chamavam o tenente Echterhoff de “Eletro-volt”. 13 – BARF. O comandante era “nervoso”. Falou para o or-denança: “Me traz um envelope”. Este entendeu que era para chamar Zé Lopes, funcionário chefe do pessoal civil. Zé Lopes se apresenta, é dispensado, e o ordenança fica preso. 14 – EEAR, anos 60. O aluno Ferreirinha chama o caxias Cap IG Ney Noronha de Nora Ney, conhecida cantora da época. Virou “peixe” do capitão. 15 – BARF, ESM, 1965. O capitão, diziam, tinha neurose

de guerra. No hangar, para um grupo, mostrou letra de samba composto por ele, e começou a cantar: “Morena, mê dá”... Entu-siasmado, passou a mão na cintura do cabo Bitinho (também meio doido) e os dois, sob aplausos, saíram dançando. 16 – EMRA-2. Apelido de 1º sargento mecânico solteirão: “Rapaz Velho”. 17 – PAMA-LS. Tenente foi buscar T-6 saído de revisão e chamou o temível diretor coronel Carneiro de Campos de Cordei-ro de Campos. Voltou preso para a sua unidade. 18 – EOEIG, 1968/69. Babí, moça velha, e bota velha nis-so, dava festas em sua casa e convidava belas moças, como chamariz, e o mesmo número de alunos, mais um. Preço do con-vite: quem sobrasse, “ficava” com ela. 19 – INTEGRAÇÃO NACIONAL – Recém casados, o tenente nordestino e a sua mulher sulista, em fase de arrumação da ca-sa, entram em uma loja de Natal e ela pede um foco (lâmpada elétrica) e um vaso (jarro para plantas). Solícito o balconista traz uma lanterna de mão e um penico! 139

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20 – LENDA – Esquadrão Poti, Equipagem de UH-1H reco-nhecida, na História na Aviação de Helicópteros, como a melhor tripulação de Reconhecimento e Ataque de todos os tempos: Zé Bode, Boca Travada, Biela, Caburé e Munganga. 21 – EMRA-2. No Bar da Tia, um companheiro, chateado com as brincadeiras de outro, fala mal dele pelas costas. De re-pente, o malfalado entra no bar e o boquirroto, mudando rápido de assunto: “Aí... o avião decolou”! Virou bordão. 22 – Quatro Xavantes em voo de acrobacia, um major ins-trutor e três tenentes alunos. O major, no intercomunicador, para um deles, que não estava acompanhando as manobras: “Fulano, vamos repetir, mas antes, para descontrair, grita bem alto um palavrão”. E o tenente, sussurrando: “Cocô”! 23 – BANT, Anos 60. A força do colonialismo do Sul-Sudeste era, à época, esmagadora, a ponto de 3S cearense pa-gar a 3S carioca para aprender “malandragem e sotaque cario-ca”. E os aspirantes estagiários diziam que tinham vindo para “civilizar esta terra de índios”. 24 – EMRA-2. Pelas folgadíssimas calças que usava, “Calça Frouxa” era o médico do Esquadrão. 25 – BAGL, Dez 64. Eu servia na Base. De Gaulle desceu lá, em visita ao Brasil. Recusei vê-lo por ter dito uma verdade que eu não sabia ser verdade: “O Brasil não é um país sério”. 26 – Acusado, dedo em riste, de “acochambrador”, justifi-cou-se: “O sistema me deu uma corda com um laço no pescoço do subordinado. Quando vejo que ele vai sufocar, ‘acochambro’.” Continuou “acochambrando” sem mais ser incomodado. 27 – Parintins-AM, anos 70. Já conhecia o velho seringuei-ro. Convidei-o a entrar no UH-1H. Sentado na cadeira do 1P, de-pois de um longo silêncio, exclamou: “É muita sabedoria!” 28 – Praça Tiradentes, centro de Curitiba, “Bar dos Bandi-dos”, assim chamado pelos alunos da EOEIG, porque virava a noite aberto. Em Natal, aspirante, encontrei um igual: “O Pouso do Tetéu”, aquela avezinha noturna muito comum no Nordeste. 140

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29 – Desde a ativa, brinco com uma pergunta: “Quebec Mike Echo”? (Que M... é Essa?). Agora vejo, na revista Época (20 Fev 12, p. 38) que, no Rio, foi criado o Bloco Carnavalesco “Que M... é Essa”?. Nada se cria, tudo se copia. 30 – EMRA-2. O TCel Carvalho, líder de 4 T-25, no bar do Esquadrão, depois do briefing, pede café para os pilotos. Servido primeiro, sorve o café de um gole e corre para os aviões gritan-do: “Quem chegar por último é a mulher do padre”! 31 – EEAR, 1960-61. Aluno “rico” (soldo de S1), comprei maquina fotográfica “Caixão Kodak Big Box”. O único e enorme botão fazia “poloc” de ida, “poloc” de volta, e a foto estava feita. 32 – BANT, 1969. O engraxate “Tuiste” (por problema neurológico, andava se sacudindo), e o despachante “Lima Alfa” (Luiz Augusto), escalados de mentirinha pelo oficial de operações como “astronautas”, ao serem colocados no transporte para a Barreira do Inferno, borraram-se dentro da viatura. 33 – BANT, 1969. Residente no cassino, o boa praça ten Celion quando queria tomar porre, escalava aspirante como vale-te, espécie de serviçal, para, na varanda, conversar, servir whisky, providenciar gelo, preparar tira-gosto. Fugíamos dele. 34 – Pernoite em Homestead Air Force Base, Miami. O capitão foi dormir na cidade, não conseguiu, com as “moças” ba-tendo na porta do quarto do hotel, e acabou “coisando” com uma delas. Perguntei: “Teve coragem?” E ele: “Mas nem encostei”!... E eu: “Sai pra lá, ‘Homem Borracha’!” Ganhou o apelido. 35 – BAGL, anos 70. Tenente, negaram-me carona para o Recife no C-130, que decolou e logo voltou. A bordo, enorme fila de coronel transferido endoidou com os ruídos da decolagem e só sossegou quando o dono chegou. Embarquei no lugar do cachor-ro porque ficaram com medo de eu rogar “outra praga”, como me disseram. 36 – EEAR, 1960-61. Cine Central, elite; Urano, plebe. Os bailes, frequentados pelos alunos, no Santos Dumont, embalados pelos Cuban Boys. Depois do cinema, no sábado pela manhã, cafezinho no Café Cocaio, bom pra caraio... 141

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37 – CFPM, Natal, anos 70. Lima Alfa, despachante, avisa ao oficial de operações que chegaria em avião da FAB o corpo do fuzileiro naval. O tenente mobilizou meio mundo, coroa, funerá-ria, guarda fúnebre, o brigadeiro, o almirante, até o avião pousar e descobrir tratar-se de tropa do Corpo de Fuzileiros... 38 – magérrimo, o “Zero-um” era chamado “Zero-osso”. 39 – DOCE VIDA MANSA – Característica marcante e co-mum ao aluno das escolas de formação militar, jovem, ganhando pouco e submetido a uma rotina massacrante: sobreviver com sono, com fome, cansado, liso e seco por mulher. 40 – EEAR, 1960-61. Éramos todos uns meninões. Na fila do rancho, empurro gaúcho, que entrou na minha frente. Fui xin-gado de arataca salvo da fome graças à Escola. Reajo dizendo-lhe que 70% dos alunos são do Sul-Sudeste, e que, pela sua teo-ria, passam muito mais fome. 41 – 2º/8º GAv, UH-1H, 1983. Pane lançada em Parte II do Relatório de Voo: Vazamento pelo selo da roda livre. Solução: trocado o main imput quill assy por “frouxidão labial” das bordas do selo interno. Ora, quem tem “flacidez labial” é... Advinha! 42 – CORONEL GENTILEZA – BARF, anos 80. O subco-mandante da Base não permitia ao Cmt do 1º/6º GAv abastecer a viatura do Esquadrão além da quota prevista. Depois do expe-diente, na ausência do subcomandante, ele telefonava para o oficial de dia querendo gasolina: “Sr tenente, por gentileza”... 43 – ARCA DE NOÉ – BARF, anos 60. Seu Marinho, funcio-nário civil e “crente”, começou a duvidar de sua fé quando soube que a Arca de Noé, como lia na Bíblia, não continha todos os a-nimais, pois os peixes ficaram de fora, nadando numa boa. 44 – EMRA-2, avião L-42. O tenente lançou a seguinte pa-ne no Relatório de Voo (Parte II): manete “da mistura rica” des-regulada. Quantas manetes de mistura teria esse avião? A mistu-ra foi simplesmente regulada pela manutenção. 45 – EOEIG, 1968-69. Interrompendo a instrução, tenente

diz a aluno, que conversava em forma: “Quando um burro fala, o outro murcha a orelha”...

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46 – BARF, ESM, anos 1960 – “Cavalo” era “Cavalo” por-que chamava todo mundo de “Cavalo”. 47 – DIFERENÇA – EOEIG, 1968. Com o trote proibido, os calouros montavam show para os veteranos. O aluno que fez o discurso de abertura do espetáculo ateve-se à vida escolar. Foi aplaudido comedidamente. O que fez o encerramento recebeu abraços e apertos de mão do governador e outras autoridades. 48 – COMAR-2, Jan 2011. Na apresentação anual, encon-tro Zé Monteiro, contemporâneo de Zé Guarda e Mané da Pista, mulato, 90 anos, da (do tempo do americano) Guarda Civil do QG. Disse-me que certa autoridade não gostava de militar “nê-go” e mandou vir do Sul soldados de “olho de carneiro”... 49 – EMRA-2, Itaituba, AM. O ten Romanato pergunta ao ten médico se pode tomar “force trim” pra diarreia. O médico aprova e ainda louva o remédio. Bem, o sistema force trim, no UH-1H, equilibra forças de centragem dos comandos de voo... 50 – MENOR DO BRASIL – Rodovia Brigadeiro Murilo, BANT-Parnamirim, menos de 2 km, do Portão das Armas à BR 101. De um lado, os terminais velho e novo do Aeroporto, IN-FRAERO, até o Posto (Petrobrás) e Bar Dudu; do outro, o novo Hospital (ES-BANT) e o Clube dos SO/Sgt (Albatroz). 51 – EEAR, 1960-61. Valdemiro, S1 bombeiro, na primeira aula do Curso de Motores, depois do monitor falar umas dez ve-zes a palavra biela (32), levanta o braço e pergunta: “Professor, o que é biela”? Ganhou o apelido. 52 – EMRA-2. O SO “Chumbinho”, matuto de Lagoa dos Gatos, Agreste de Pernambuco, aconselhado a fazer regime e exercícios para diminuir a gordura localizada na barriga, saiu-se com esta: “Isso não é gordura não, esse menino. É gala”... 53 – BARF, ESM, 1980-88. “Papangu” não aceita o apodo e reage: abre o dicionário e lê: “Papangu, significados: feio, mas-carado, moleirão, atoleimado, bobo. Não combinam comigo”. E todos, a uma só voz: “Combinam”!

54 – SBRF, anos 1970. O major “Flecha Ligeira” tinha três velocidades: devagar, devagarinho, quase parado.

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55 – EMRA-2. Para os oficiais, o tenente da reserva “Sky-Lab” (um dia cai, só não se sabe quando, nem onde), ou, para a tropa, “Surubim” (por ser cheio de pintas), não acompanhou as evoluções da esquadrilha de T-25. Em terra, repreendido pelo comandante, reagiu desmaiando no meio do hangar.

56 – EMRA-2. Os aviões T-6 foram trocados por aviões T-25. O motor do T-6 era da Pratt & Whitney Aviation, o PN (part number) das ferramentas especiais começava por PWA. E aí o capitão exigiu o rol de ferramentas PWA do motor Lycomming do T-25...

57 – EMRA-2 – O tenente andava com um canário-da-terra

num dos bolsos de cima do macacão de voo.

58 – CFPM, Natal. O tenente cortou pela metade as pernas e as mangas do macacão de voo, e com um macaco-prego no ombro, desfilava de moto pelas ruas de Natal. 59 – HARF, anos 1970. Sogra é aderente, não é parente nem dependente. O Ten Med Cristóvão tratou a sogra do taifeiro (33) e ganhou um bode de presente. Saiu arrastando o bicho empacado pelos corredores cheios do Hospital até o gabinete do diretor, a quem foi mostrar o mimo.

60 – BAST, anos 70. “Choquito” (EMRA-2), na primeira de-colagem de H-13 (curso de helicóptero em Santos) esqueceu dos pedais, puxou o coletivo (comando de voo) pra valer e decolou velozmente na vertical e girando. Quase morreram de susto, ele e o instrutor.

61 – EEAR, 1960-61. Quem praticamente escolhia a espe-cialidade dos alunos, de quem traçava o perfil vocacional, era o civil Jason, psicólogo, conhecido como “Sapo”. Estragou muita vocação.

62 – BARF, ESM, 1965. A válvula do cilindro de oxigênio

da máquina de soldar quebrou e o cilindro ameaçou sair como um foguete. O SO Tibieri, gauchão, agarrou-se com o cilindro e dan-çaram juntos por mais de dez minutos, até o gás acabar.

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63 – BARF, Jan 1969. Aluno da EOEIG, de volta das férias, peguei carona de L-42 do Recife para o Rio. Até a primeira deco-lagem, quando desfiz o engano, recebi instrução de voo do tenen-te Petengil, que me confundiu com cadete da AFA.

64 – BODE CHEIROSO – Anos 1980. Traço comum, nada

comum entre militares: o coronel se borrifava de “bom ar”; o te-nente cheirava a odores florais; e o major, de longe dava dor de cabeça com o seu perfume barato misturado com suor.

65 – EEAR, 1960-61. Depois das 22h, a Polícia da Aero-

náutica prendia os alunos que encontrasse na rua. A “Mulher Va-ca” era a salvação. Ela enfrentava a patrulha com uma vassoura, enquanto a sua casa enchia de alunos.

66 – PAMA-AF, anos 70. Algumas vezes almocei com o te-

nente av Bandeira, do caso Sacopã, crime de morte do qual foi acusado. Anos depois, absolvido, voltou à ativa. Só nos cumpri-mentávamos. Ele não conversava, mergulhado no seu silêncio de dor e sofrimento, que respeitávamos.

67 – Ícaro, monumento nos Afonsos, ou “Pícaro”, para os

cadetes. 68 – 1º/6º GAv, anos 1980. Era o capitão “Nó”, ou “No-

pró”, porque dava nó em tudo, mas voava bem. Depois que des-cobriu o significado de nopró (nó da pimba do cachorro, quando entra, não sai mais), partia pra briga.

69 – DITAMOLE – BANT, 1969. Meu quarto de aspirante e

solteiro, na Base, era decorado com charge do Super Homem sentado no vaso sanitário fazendo força. Tirei-a do Pasquim, ta-blóide de escracho à ditadura em pleno AI-5.

70 – DITA DURA – O regime militar proibiu a Playboy de

publicar fotos frontais de mulheres depiladas, como as de hoje. Tinha que ser cabeleira cheia, bicho da cara preta, ninho de tuiu-iu, para encobrir detalhes da anatomia da “bacurinha”, a coisinha mais “perseguida” (como é conhecida no Nordeste) do mundo.

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71 – ROMÂNTICO – BARF, anos 60. O cabo velho explican-do como se enamorou de sua mulher: “Tinha as bochechas tão lindas, que a cara dela parecia uma bunda”...

72 – EPCAR, anos 1970. Espalharam para os alunos que

Ceres “dava”. Era só chegar e subir nela. Ceres (Deusa da Agri-cultura) era a marca da balança da farmácia da esquina. 73 – BANT, 1969. O cabo Cacho me cumprimentava ba-tendo continência: “Bom dia, aspirante”. Passou no concurso de oficial farmacêutico, foi dormir cabo e acordou 1º tenente. Aí foi a minha vez de tomar a iniciativa: “Bom dia, senhor tenente”.

74 – BARF. Ainda não se falava em assédio ou Lei Maria da Penha. O intendente, grosso, como porta de cofre e apito de na-vio, para no sinal de trânsito, com o seu carro. Mal o sinal abre, a moça do carro de trás buzina. Ele desce do carro, aborda a moto-rista, e imitando uma buzinada, amolega o peito da moça.

75 – BARF, anos 1960. Por determinação do comandante, todos os dias a Banda desfilava tocando pela Base das 15h às 16h. Muito gordo, o 1º Sgt “Reizinho”, tocador de tuba, invaria-velmente ficava para trás. Não aguentava o tranco.

76 – BARF, final dos anos 1950. O Depósito de Intendência

era um posto de serviço de sentinela aterrorizante: um capitão infante sem cabeça costumava fazer a ronda durante a noite. Muito soldado dizia ter visto o capitão. Por via das dúvidas, eu tirava serviço lá trepado nos cajueiros.

77 – BARF, ESM, anos 1980. Eu, major, respondi ao capi-

tão em trânsito, que queria reparo rápido no seu Bandeirante: “Quer moleza, pega em pau de coronel”. O coronel comandante do avião protestou: “Coronel, não. Brigadeiro”. Aí pensei: “Tá querendo moleza demais”...

78 – HARF, anos 1970-80. O ortopedista era conhecido

como “Uri Geller”, ilusionista israelense que entortava talheres. O osso que o médico encostava a mão entortava. Só não entortou mais porque, de jaleco branco, se escondia dos seus pacientes (sic) no alojamento dos soldados.

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79 – SER MOVENTE – EOEIG, 1968-69. Na aula de Direito (curso básico, Prof Sá Barreto), o aluno confundiu o termo jurídi-co “semovente” com “ser movente”. Ganhou o codinome.

80 – CFPM. Instrutor de T-23, o tenente voava incentivan-

do-se a si mesmo: “Vamos lá, cara, você é bom nisso!” 81 – BARF, 1965. Nos céus do Recife, revoada de final de

manobra na região Nordeste. Um T-6 abandona a formatura, pousa curto, taxia velozmente, estaciona, o piloto pula do avião correndo e ficamos sem nada entender, até que notamos que procurava o banheiro, mas não deu tempo.

82 – BARF, anos 1980. Recém chegado ao ETA-2, capitão mais moderno entra na minha sala (Planejamento e Controle, ESM, manutenção integrada) e sem nem um bom dia pergunta o que faço. Simplesmente respondo que nada.

83 – BARF, anos 1980. O SO Melo, mestre da Banda, nas formaturas, quando o ETA-2 fazia a conversão para o desfile final, atacava, a pedido, a marcha Cel Bogey, de A Ponte do Rio Kwai, e morria de rir de ver o capitão baixinho e gordinho se empertigar todo e ensaiar desengonçado “passo de ganso”.

84 – BARF, ESM, anos 80. “Magnata” aponta o também engraçadíssimo “Guaiamum”, miúdo, baixinho, troncho, esgulei-pado, zambeta, cheio de dedo, cabeça grande (não confundir com grande cabeça) e exclama: “É um ser ‘arótico’!” Pergunto o que quer dizer “arótico”, e o “Magnata”: “Erotismo zero!”

85 – BARF, ESM, 1980. Todo duro, o capitão recebeu o apelido de “Mamulengo”, brinquedo composto de boneco articula-do e molenga. Protestou. Então explicaram: quando estocado no traseiro, o mamulengo fica todo duro, igual a você.

86 – EMRA-2. Num serão, o SO Evandro bate o ponto: “Estou pensando em me dirigir à Academia Brasileira de Letras solicitando a retirada dos dicionários e do uso corrente da língua de duas palavras: oficialmente e submete, pois nem oficial men-te, nem sub mete”. Era no tempo da fé de ofício!

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87 – ESM, BARF, 1988. O boletim traz a relação dos atle-tas dos jogos de aniversário da Base. Quando é lido o nome do “atleta” capitão Campelo, o “Zeca Diabo”, a tropa cai na garga-lhada.

88 – SEMOVENTE – 1969. Natal não era a metrópole de

hoje. Na precária estrada até a Base, em Parnamirim, o aspirante dirigia quando viu uma vaca. Resolveu assustá-la. Devagarzinho encostou o para-choque dianteiro nas patas traseiras do bicho, que desabou sobre o capô do fusca, destruindo tudo.

89 – EEAR, 1960-61. O aluno “Cabaço”, grandalhão, era o

último a tomar banho, e voltado para a parede. Tinha o pinto pe-queno, de menino, daí o apelido. Ninguém mexia com ele, não por ser fortão, mas porque, à noite, se vingava colocando formi-gas agressivas na cama de quem o desafiasse. 90 – “CCM” – O Capitão-Capelão Padre Pedro, do CFPM, tinha o cabelo fogoió (cor de colorau) e tocava trombone. Exibin-do-se numa tocata, foi reprovado por “Chico Sabonete”, ten esp com: “Cabelo de Cu de Mocó engana mais do que toca”... 91 – CFPM, 1970. As moças começaram a confundir tenen-tes com cadetes. Os tenentes decidiram cultivar bigodes, proibi-dos aos cadetes, e espalharam a notícia. Deu certo. Na Natal pro-vinciana da época, todos sabiam quem era “da Base”. 92 – CFPM, 1970. Formatura geral. Leitura do boletim. O locutor anuncia o nome do Asp Rolla, recém chegado à unidade, como oficial de operações. Passada a surpresa, o grande contin-gente de civis dispara enorme gargalhada, contaminando a tropa. 93 – EMRA-2. Segundo o biótipo, o SO “Chumbinho” clas-sificava o homem em seis categorias: homem, hominho, tibiri, forragaita, cibito e guenzo. Categorias que também seviam para medir conceitos profissionais e morais: homem, 5; hominho, 4; tibiri, 3; forragaita, 2; cibito, 1; guenzo, 0.

94 – BAGL, 1º GT, anos 1960. O Cap Carlos de Almeida Baptista, “um menino”, foi para o Congo com o Contingente da ONU. Eu, 3S, não fui porque o Cap Adozindo não deixou. Disse-me que eu era “um menino”... E adeus “capacete azul”!

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95 – MACHISMO – Dizia-se que a moça entrou na FAB u-sando penico aro 20 e em pouco tempo o aro pulou pra 40... 96 – BARF, fins dos anos 1950. Conheci, na ativa, o tenen-te Bechara, “de guerra” (Grupo de Caça na Itália), capitão na inatividade. Morreu em 2012, com 94 anos, namorando moça nova e jeitosa. Aconselhado a procurar uma senhora, respondeu; “Mulher velha é como carro velho, só da problema”.

97 – EEAR, 1960-61. Fim de Semana: ônibus velho da São Jorge da Escola para a cidade; cinema grátis na Praça RPM; leite e pão de mel na Leiteria Molico; e à noite, conforme a grana, o Clube Literário, a gafieira chamada pelos alunos “Cabaré dos Bandidos” ou o namoro no muro do cemitério. 98 – EEAR, 1960-61. Grana curtíssima, namoro e transa aconteciam no muro do cemitério, onde se lia, no portão princi-pal, o apavorante “Revertere ad Locum Tuum”. 99 – NPV SBMN, 1963-64. A cadelinha “Madame” morava na sala do previsor meteorológico e o acompanhava em todas as atividades. Como boa cadela de guerra, ladrava para os civis.

100 – EEAR, 1966. A cadelinha “Dôzima” morava no alo-jamento da 12ª Cia. Latindo com a chegada da ronda, salvou de punição certa muito aluno plantonista dorminhoco. 101 – EEAR – 1960-61. A cadelinha “Tua Mãe” adorava a-luno e detestava oficial. Como não engravidava, vivia no cio, daí o “Tua Mãe”. 102 – EEAR, 1960-61. O oficial de dia era o tenente IG “Cabo Velho”. Depois do toque de silêncio, entrou em uma Cia de alunos para fiscalizar. Deram o alarme: “É o ‘Cabo Velho’!” E o tenente: “Cabo velho uma porra. É o oficial de dia”...

103 – BARF, anos 1980. O coronel reclamava do corpo-a-corpo, no futebol com os tenentes. Franzino, os cambitos finos e secos, recebeu o codinome de “Canela de Cachorro”. 104 – BARF, ESM, anos 1960. Djalma tinha, no armário do alojamento, um saco cheio de meias pretas do uniforme, que nunca mandava lavar, pois, dizia, todos os dias sempre achava um par mais limpo do que os demais, para usar. 149

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105 – AVOA, AVOA, BRABULETA – BARF, 1º/6º GAv, anos 1970/80. Aeronavegante, “Borboleta” decolava de casa e borbo-leteava até a Base. Contava hora de voo na ida e na volta, dizi-am. Incrédulo, o gaúcho perguntou quem era. Quando lhe disse-ram, reagiu: “Pomba, Tche!, tão me sacaneando!”

106 – BANT, 1969. Aspirante e solteiro, cheguei em Natal com um saco de livros e outro de roupas. Quando saí de lá, casa-do, foi preciso um caminhão de mudança: como mulher junta caco... 107 – EMRA-2. O polaco do Paraná José Kalinovski, tenen-te da reserva convocada, chega pra mim, oficial de manutenção, e diz: “Os caras da ativa não nos consideram aviadores, embora façamos tudo o que eles fazem”. 108 – Barbacena, Minas Gerais, sede da EPCAR, é conhe-cida como CAMOFA – Centro de Abastecimento de Mulheres para Oficiais da Força Aérea. E, por extensão, todo mineiro é “Camo-fo”. Na EEAR, Guaratinguetá, MUVUCA é mulher vulgar do Corpo de Alunos, e igualmente todo “guaraíno” é “Muvuco”. 109 – CFPM. O tenente instrutor fazia curvas em todas as direções, entregava o avião ao cadete e perguntava: “Onde fica a Base?” 110 – BARF, anos 1980. “Fôrma de Carranca” (de tão feio) dizia só haver duas categorias de militar: o durão (ou afirmativo) e o babaca (ou bundão). 111 – BANT, 1969. Ralando castanhas de caju, escreve-ram “Asp Zé do Norte”, em letras garrafais, nas pastilhas do ba-nheiro coletivo dos estagiários. “Zé do Norte” levou uma semana apagando letra por letra.

112 – BARF, anos 1980. O capitão era casado com uma “baleia”. Descasou e... casou com outra “baleia”!

113 – EMRA-2. Para o nordestino do interior, mulher boni-ta é “Jumenta” (sem falar na “Super Jumenta”). E as demais? Pela ordem: “Raimunda”, “Tribufu”, “Trojão da Base” e “Dragão”. Já para o homem, a conversa muda: “Além de feio, fede”.

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114 – EOEIG, 1968/69. O Prof Hungria, irmão do professor Hungria “Bejeto” (termodinâmica), “ensinava” inglês: conversa-ção no básico e técnico no especializado. Mal começava a “aula”, alguém sugeria ao mestre que contasse mais uma de suas histó-rias mirabolantes pelo mundo, e adeus, aula. 115 – BARF, 6º GAv, avião B-17, final dos anos 1950. A-tarracado, parrudo e falando grosso, o tenente “Sopa Grossa” assustava os soldados, mas não passava disso. 116 – 1º/6º GAv, anos 1980. Quando o capitão “Pé de Le-que” entrava no hangar, nem precisava chamar pelo apelido. To-dos ficávamos com os calcanhares juntos e os pés marcando “dez pras duas”, como ponteiros de relógio. 117 – EOEIG, 1969. Curso de Avião, aula de aerodinâmica. O Prof De Luca é provocado por aluno: “Hoje é o 154º aniversário de Waterloo, e o senhor, com suas primitivas e derivadas, que-rendo que entendamos como voam os aviões”. O mestre, sem se abalar, passou a contar a história da Batalha. 118 – BARF, anos 70. A mulher do brigadeiro organizou igreja e nomeou major intendente pastor, que nem farda mais usava: andava todo de preto clerical, e assim foi batizado de “Urubulino”. Oficial de dia, fui chamado às pressas ao Portão das Armas para receber ministro... de Deus, convidado da igreja de Urubulino.

119 – CFPM, Natal, 1970. Instrutor de vôo, nissei, mirrado e moita, o tenente não era de conversa. Instrutor de aerotécnica, restava-me monologar: “Abra o olho, Japa!”. Em 2010, na BANT, ele, comandante da Força, confraternizou com ex-instrutores e ex-alunos, no aniversário de quarenta anos de fundação do CFPM. 120 – BARF, ESM, 1965. Para “Jura Imbola” (imbola, de embola-bosta), a “gororoba” do rancho da Base não fazia mal porque era “revisada” pelo médico. 121 – BARF, anos 60. Em um sábado, o ten Rodas, oficial de dia, viu almoçando com o cmt da Base o Imperador (1930-74) Hailé Sélassié, da Etiópia, e pensou tratar-se, tal a semelhança, de Jackson do Pandeiro, mulatinho, ícone da música popular nor-destina: coco, forró, baião, chamego, xote, xaxado, toada...

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122 – EOEIG, 1968-69. O aluno Raimundo não entendia o Processo de Cremona, do Prof Wendler; as cadeias orgânicas do Prof Balin; entropias, entalpias, politropias do Prof “Bejeto” (Hun-gria), etc etc. Ganhou o maior apelido da Escola, que começava assim: “Raimundo Cremona Balin Politrópico”... 123 – CFPM, 1970. Pouso em São José dos Campos. O Brig Mota Paes é recebido por outros brigadeiros, coronéis e o oficial de operações, tenente Raimundo. Quando vejo o Raimundo grito: “Politrópico”! (resumo do seu enorme apelido), e ruidosa-mente nos abraçamos, sob o olhar espantado dos brigadeiros e coronéis. 124 – O HOMEM MAIS FEIO DO MUNDO. O suboficial era feio de doer. Numa exposição da Semana da Asa no aeroporto, duas mulheres comentam em inglês sobre a feiura dele. Ele res-ponde, também em inglês, que homem pode ser feio, mulher, não. E que elas, além de feias, tinham mau hálito. 125 – BAGL, 1º/1º GT, Rio, 1961-64. O SO Vasconcelos, cearense de Caucaia, chamava todo mundo de “Estado do Rio”. Para ele, carioca só o nascido e criado na Zona Sul. 126 – BARF, ESM, 1965. Foram dizer pra “Zé Trindade”, cearense do Juazeiro do “Pade Ciço”, que café fazia mal pros ner-vos. Ele disse que sabia, e que tomava café pra isso mesmo, pra ficar bem nervoso. Ele também costumava dizer que achava tudo bom. 127 – CATENÁRIA – EOEIG, 1968-69. Maia, assíduo fre-quentador de puteiro, calculava a idade das “meninas” (para bar-ganhar no preço) pela curva catenária formada pelo “músculo do tchau”, no gesto de acenar dando adeus. Quanto mais acentuada a curva, maior a idade.

128 – EEAR, 1960-61. Devido à farda impecável, o Sgt IG Aguiar recebeu dos alunos o apelido de “Jacaré Engomado”. 129 – BARF, 1º/5º GAv, avião B-26. Em viagem, o tenente aviador teve que ajudar o mecânico com as sujas (de óleo), grandes e pesadas carenagens semianulares do motor. Na volta, disse-me nunca ter imaginado que manutenção de avião fosse tanta dureza. 152

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130 – EEAR, 1960-61. Na Via Dutra, com apenas duas pis-tas, os alunos pegavam carona fardados, o que ajudava, para explorar as cidades da Via e o Sul de Minas. Mas a farda também nos denunciava à Patrulha da Aeronáutica, e aí, quem bobeasse voltava preso para a Escola. 131 – BARF, anos 1980. Compus (1978) letra e música da Canção do 2º/8º GAv. Certo comandante quis mudar a letra. Não concordei. Então surgiu o vergonhoso boato de que a letra tinha que ser modificada, como de fato foi (depois consegui reverter), porque continha erros primários de português. 132 – BARF, Cia IG, 1957. Enquanto usávamos só água e sabão (lisos, gastávamos tudo com as “meninas”), Barreto, recru-ta 388, o “Vaidade”, daí o apodo, só andava cheiroso: Glostora no cabelo, sabonete Eucalol, desodorante Lever, Aqua Velva pós barba e perfume “peba”, como o das “meninas”. 133 – DIFERENÇA – Cel av foi fazer curso de intendência (sic) nos EUA. Lá, recebido por dois 3S, quando esperava ser pelo comandante, teve a identidade, que portaria no peito, feita e as-sinada por eles, e por eles encaminhado diretamente ao Technical Training Center (TTC) da Base. 134 – EEAR, 1960. Na instrução, o Cap IG Ney Noronha grita: “Japonês, diabo!” Anabuki pede licença, sai de forma, apre-senta-se e diz, de cara amarrada: “Eu não sou japonês! Sou bra-sileiro!” E o capitão, que trazia consigo o sentimento da tropa: “Então aprende, diabo brasileiro!” 135 – BARF, anos 1960. Fui apresentado a “Jack Palance”, sósia do feião do cinema americano. Sem nem me encarar, quis saber do apresentador: “Ele tem automóvel”? Mandei “Jack Pa-lance” procurar a turma dele. 136 – O PUXA-SACO – Cínico, o puxa justificava-se dizen-do preferir puxar saco a puxar carroça 137 – EEAR, 1960-61. Aluno recém chegado, ouvi essa do próprio, que gostava de falar “difícil”: “Eu sou o 3S Q IG FI Adu-gar QUIRINO do Nascimento Souza. No entanto, para os energú-menos, néscios e capciosos, eu sou o ‘TIMBÓ’”. 153

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138 – BANT, 1969. Nos aviões antigos, os mecânicos exci-tavam o campo do gerador. Comentário do SO Austré: “felizmen-te, quem faz isso no homem é a mulher”. 139 – A VIDA IMITA A ARTE – Quando o avião Bandeiran-te foi adquirido pela FAB, logo ganhou o apelido de “Gabriela”: Só coronel pilotava. 140 – SBRF, 1972. Sou saudado efusivamente na rua por desconhecido, que me disse ser empresário bem-sucedido no ramo da mecânica (hidráulica de máquinas pesadas) graças ao que aprendeu comigo no curso de cabo. 141 – GALO VELHO – Com mais de setenta anos, coronel inativo costuma dizer que ainda “dá uma” por semana e arrema-ta: “Mas tem semana que esqueço”. 142 – EOEIG, 1968-69. Cadeira de português. O chefe do Ensino propôs o desligamento do aluno que apresentou monogra-fia sobre a obra do escritor comunista Jorge Amado. O Coman-dante da Escola, Brigadeiro Délio, leu o trabalho e o validou, co-mo resenha literária. 143 – EOEIG, 1968-69. Na aula de conversação em inglês, (curso básico) Paulão leu o numeral 5 como “Namber Cinco”. Ga-nhou o apelido. 144 – EOEIG, 1968-69. Exemplo de silogismos do Prof Ra-ul Bernardo REINER, de Filosofia, o popular “Dragão Risonho”: “O homem tem dente / O cão tem dente / Logo o homem é um cão”. E ria, solto. E como parecia com um dragão...

145 – CALADO! – BASV, anos 1970. O comandante do GSB era tão fechado que, num voo noturno de P-16, respondeu a pergunta do mecânico de voo fazendo o gesto de ok. E como es-tava escuro, iluminou o polegar com uma lanterna de mão.

146 – BARF, anos 70. Oficial de dia, Ferreirinha, cearense

de Caririaçu, num domingo foi rendido com muito atraso e recla-mou do mulato carioca com carinhosa expressão nordestina: “Mas, nêgo véi”. O colega não gostou. E Ferreirinha: “Desculpa, nêgo véi”. Hoje, seria acusado de racismo.

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147 – EEAR, 1960-61. O ten IG Stromayer costumava di-zer aos alunos: “Ou vocês entram no eixo, ou o eixo entra em vocês”.

148 – BAFZ, 1º/4º GAv, anos 1980. Contam que o capitão fedia tanto, que ficou conhecido pelo pessoal da casa de pista como “Gamburubode”, mistura de gambá, urubu e bode.

149 – BARF, ESM, anos 1980. O então cabo Petrúcio Amo-rim, hoje civil, compositor e cantor de sucesso, é autor de um dos mais bonitos lamentos do cancioneiro nordestino: “Ela nem olhou pra mim”...

150 – BARF, ESM, anos 1980. Nas “Malvinas”, fórum do baixo clero da graxa, havia um hanking da turma do “arame liso” (não farpado), que cerca o “bicho”, mas não fura o “couro”.

151 – Postei no Reservaer aeromancada onde quase fiquei preso. Zé Garcia TCel Esp Av de minha turma, comentou: “Sei que você, como eu, é muito folgado, e que já levou muita ‘mija-da’. Agora conta quantas cadeias você tem”.

152– BARF, ESM, anos 60. Maia, o “Zé Trindade”, ensina-va como se livrar de um chato: “Chaga pra ele e diz: Desculpe ‘ter lhe’ visto”!

153 – EEAR, 1960-61. A Pinguela, sobre o ribeirão Pedrei-ra, com guarita e sentinela, era caminho do bairro Pedreira e dos taifeiros, para a sua vila residencial. Eles sempre deixavam lan-che reforçado para o aluno de serviço, daí a fama e a lembrança para sempre daquele posto. 154 – BARF, anos 1980. O nome do major, em português, juntada do inglês horse com o francês cheval, segundo o baixo clero da graxa, fez com que ele passasse a ser chamado “Horse”, “Cheval” ou “Cavalo ao Quadrado”. 155 – EEAR, 1960-61. Depois do Pedregulho, a Escola, nos sopés da Mantiqueira. Quem não lembra da SABAP, Sociedade dos Amigos do Bairro do Pedregulho, de festas memoráveis, rival do Clube Santos Dumont na preferência dos alunos? E as fotos tiradas no Foto Ymoto? 155

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156 – Afonsos, AFA, Dez 68. Aluno de férias da EOEIG, peguei carona em C-45, que me deixou no pátio da AFA, na hora do almoço. Apresentei-me ao cadete “zero-um”, e brindado com um PF especial, almocei com os cadetes, curiosos de saber tudo sobre “a outra escola”. A FAB é azul da cor do céu. 157 – EAO, 1983. O subcomandante, tcel av e psicólogo,

gostava de conversar comigo “para entender a cabeça do oficial técnico”. Então contei-lhe, deixando-o espantado, que eu e mais dois do Quadro de Avião estávamos nos aperfeiçoando não para a promoção, mas para a compulsória, o que não aconteceu graças ao Ministro Délio, que arranjou as três vagas de major.

158 – CHAVE DE GALÃO – “Sabe com quem está falando?”

159 – BARF, anos 1970. O tenente ADM Félix ensinava como se livrar de um chato: primeiro, tirava do bolso um cartão amarelo, de advertência. Se o chato não se mancasse (o que é quase impossível), levava cartão vermelho. 160 – CONTUNDÊNCIA – 5 Jan 2007. Localizado no site Reservaer, recebi a seguinte mensagem: “Só convivemos na EO-EIG, como alunos. Você, Avião; e eu, Comunicações. Você era um futuro oficial muito orgulhoso. Achava que era o intelectual da turma, além de uma dádiva pernambucana”... 161 – Na FAB, o ostracismo de coronéis ainda na ativa, segundo um deles, “se deve a serem como pianos de cauda: não cabem em qualquer lugar”. Na verdade, é porque são muitos disputando o poder. 162 – Líder do tipo simpático e sedutor, ao contrário do impositivo unilateral, o Brigadeiro Délio, desde novo, era convi-dado para padrinho de batismo de filhos de taifeiros e cabos ve-lhos, principalmente no Nordeste. Quando corria a notícia de sua passagem, a Base ficava cheia de comadres, compadres e afilha-dos. 163 – 1º ETA, 1970. Jocelino, tenente esp com, queria li-cença especial, mas o comandante não dava. Quando este saiu de férias, travou o seguinte diálogo com o major de operações: – O outro fariseu não autoriza, mas o senhor, sim. – Tá me cha-mando de fariseu? – Só se não autorizar. Autorizou! 156

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164 – BARF, anos 1980. O comandante me mostrou o rá-dio me concedendo a Medalha Mérito Santos Dumont. Não acre-ditei. Pensei que fosse trote. Pedi desculpas. Oficial dedicado à tropa, graxa até o pescoço, eu tinha mesmo que desconfiar. 165 – ORGANOGRAMA MILITAR – Destino de grande parte da papelada, a seção mais prestigiada é a 6ª ... do lixo. 166 – BRIGADEIRITE – fase aguda de desequilíbrio, que vem dos tempos de tenente. Ataca certos coronéis, geralmente inseguros e desprovidos de autocrítica, na incerteza da promoção a brigadeiro. 167 – FEZINHA – Flagrado na fila da casa lotérica, o cape-lão militar se justifica: “Não malde de mim. Não vim aqui apos-tar, mas pagar as minhas contas. 168 – FILOSOFIA DE QUARTEL – Para a tropa, “hierarquia é uma pilha de penicos sem fundo”. 169 – FILOSOFIA DE QUARTEL – “O mais antigo nunca er-ra, dificilmente se engana, e quando isso acontece é por culpa única e exclusiva do mais moderno”. Ou: “antiguidade é posto e posto é galão”, completada pelos mais modernos com humor: “e galão é tinta”. Ou: “quem você pensa que é?” 170 – FILOSOFIA DE QUARTEL – “Manda quem pode, o-bedece quem tem juízo”, e o seu corolário: “Superior é como arma carregada, de repente, explode”. 171 – FILOSOFIA DE QUARTEL– Qualquer missão, em qualquer lugar, qualquer dia e de qualquer maneira: Brasil acima de tudo! Ou: Qualquer mulher, em qualquer lugar, qualquer dia e de qualquer maneira: Xota acima de tudo! 172 – Para alunos de escolas de formação militar, há três toques de corneta inesquecíveis: dois prazerosos, silêncio e fora de forma; e um detestável, alvorada. 173 – GOROROBA DE QUARTEL – Picadinho de japona (pimentão recheado); incrível Hulk (bife de fígado, duro e verde); granada (bolinho de restos de carne); kaol (café com leite); boi ralado (carne moída); sururu na zona (cosido com todas as so-bras do rancho)... mas tudo “revisado” pelo médico. 157

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174 – EOEIG, 1971-72. Ex-cadete, o aluno infante havia se tornado um chato. Passava o dia todo “pagando mistério” do seu voo solo na AFA, até que ouviu de outro ex-cadete: “Fulano, nossa preocupação, agora, é solar o mosquetão”. 175 – COMPULSÃO – BARF, ESM, anos 1960. O 1S Lira não podia ver ninguém de gravata, que se aproxima, pegava e ficava puxando de leve. Meteu-se em várias enrascadas quando fazia isso com oficiais. 176 – BARF, ESM, anos 60. Figuraça, o SO “Tibério Cras-so” andava com dois pedaços de palito, um em cada narina, alar-gando-as, “para poder respirar”. 177 – VOZ DE COMANDO – EEAR, anos 60. Aluno, xerife de turma em deslocamento, ao avistar oficial comanda “olhar à direita”, mas o oficial estava à esquerda. Então o aluno inova: “Atenção, só para as cabeças, meia-volta, volver!”. Teve outro que simplesmente comandou: “Olhar o tenente Duda!” 178 – BARF, ESM, anos 1980. Um dia, trocaram a tarjeta do uniforme interno, com o nome de guerra do capitão, por outra com o seu apelido (devido à semelhança física com o persona-gem de Lima Duarte): CAP ZECA DIABO. Ele desfilou o dia inteiro carregando no peito o epíteto, que detestava. 179 – 1ª ALADA, anos 70. O sargento deu parte de si mesmo, por chegar atrasado. Foi elogiado. Tempos depois, atra-sou-se e novamente deu parte de si mesmo. Foi punido, por ser “reincidente em falta dessa natureza”. 180 – BARF, anos 1970. Oficial de dia, depois do expedi-ente, na cozinha do rancho, flagra o comandante da Base “bican-do” cana com os taifeiros, em torno de mesa de tira-gostos. Rea-ção dele: “Estamos fritos, chegou o comandante da Base!”. 181 – EOEIG, 1968. Curso Básico, sala de estudos, noite alta, véspera da primeira prova de Cálculo logo mais, nos dois primeiros tempos de aula. Saio da minha banca para pedir ajuda a colega brilhante. Este fecha o seu caderno, me olha e diz: “Pe-reba, dica só amanhã, que agora vou dormir”. Aprendi. 182 – Alcunha de soldado: “Pen”, de “pentelho”. 158

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183 – EEAR, 1960-61. Cardápio servido no rancho, conhe-cido como “picadinho”: Boi ralado, macarrão fedido e mingau de fubá, também fedido, seguido de “sabonete”, a sobremesa. 184 – Nos anos 70, corria a história de um militar que perguntado pela esposa sobre o apelido dele, saiu-se com esta: “Na Base, sou o único que não tem apelido”. Ele era o “Buceta”... 185 – EMRA 2, anos 1970, Operação DINCART, região amazônica. A famosa “Mudinha”, estação tática do Esquadrão, antigo rádio SSB, entre chiados, zumbidos, estáticas e clare-za/intensidade máximas 3/2, vivia colando o relé. 186 – EOEIG, 1972. Salto de paraquedas. O aluno salta com as pernas abertas. Lá embaixo, instrutores fazem sinais com os braços para que as feche. Não fechou e quebrou uma delas, no pouso. Perguntado porque não obedeceu, disse ter pensado que o aplaudiam, pelo seu salto espetacular. 187 – BAFZ, 1º/4º GAv, anos 1980. Alto, magro e curvado para a frente, o SO foi rebatizado como “Compensado Molhado”. 188 – AI, DA BASE! – SBNT, anos 60. Voo noturno da bo-emia natalense: Pouso do Tetéu, para esquentar as “turbinas”. Depois, Merigud (Maria Boa), Arpeje, Rita Loura... ou o Farol da Mãe Luíza. 189 – BARF, 6º GAv, 1958-59. Na safra, todos os dias o temível major escalava soldados para encher para ele enorme cesta com cajus dos bosques da Base, sob ameaça de punição. Com seringa e agulha, injetávamos xixi nos frutos, vingando-nos. 190 – Até 1957, o uniforme era cáqui, com sapato preto para praças e graduados, e marrom para oficiais. Por causa dis-so, o apelido dos oficiais era “Pé-de-Pombo”. 191 – MULHERES NO QUARTEL – Ainda não havia Quadros femininos. No quartel, e com um posto acima (esposa), “a mais antiga” mandava mais que o marido. 192– MULHERES NO QUARTEL – No Hospital, capitão re-formado foi dispensado pela médica que o atendia sem terminar a consulta. Alguém bateu à porta do consultório. Era um militar jovem, alto e forte, que desconcentrou a médica... 159

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193 – MULHERES NO QUARTEL – A fisioterapeuta: “Gene-ral, mostre-me a perninha”... E o general: “Minha senhora, que história é essa de general com perninha?” Reagiu da mesma for-ma quando a dentista lhe pediu para ver o dentinho. 194 – Anos 1960. O sargento “Quais É” ficou famoso pelo bordão “Quais é o caso?”, ocasião em que tomava para si o pro-blema de outros, metendo-se em enormes confusões. 195 – PAMA RF, anos 1970. O sargento “Clarinete” ganhou o apelido por ser crioulo e cheio de furos. 196 – FILOSOFIA DE QUARTEL – BARF, ESM, anos 1960. Do 3S “Zé Trindade”, morto como tenente-coronel de Avião: “Trabalha com ele, viaja com ele, come com ele e olho nele”. 197 – Na guerra, as bases brasileiras, construídas pelos americanos e compartilhas com a FAB, tinham muitos funcioná-rios civis contratados por eles. O primeiro “pay day” (pei dei), por motivos óbvios, foi tumultuado, levando os gringos a mudar a expressão para “dia de pagamento”. 198 – O Cel Méd reformado confirma: nos anos 1970, co-mo capitão urologista, tratou de blenorragia paciente baixado ao hospital militar. Era o Frei acompanhante de outro Frei famosís-simo. 199 – BARF, anos 70. O aspirante “Cabeça”, ou “Cabe-ção”, também era conhecido como “Cabeça-de-nós-todos”. 200 – Faz tempo, surgiu comentário, que ouvi de fonte confiável ser verdadeiro, segundo o qual a letra do Hino do Avia-dor, de fato, é de autoria da poetisa cearense Silvia Serafim. 201 – BARF, anos 1970. Boêmio, competente e boa praça, o tenente de Armamento se autointitulava “Coração Sem Juízo”.

202 – EOEIG, 1968-69. Aluno “laranjeira”, nos domingos eu ia à missa na capela da Escola, também freqüentada pelo bri-gadeiro Délio, nosso comandante, e sua mulher, Dona Rute. Vez ou outra, depois da missa, o brigadeiro vinha conversar comigo. A conversa durava o tempo que levávamos para fumar, juntos, um cigarro. Era esse o seu estilo.

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203 – METADE DE ZERO – EOEIG, Curso Básico, 1968. A nota baixa em cálculo levou o aluno a interpelar o mestre, que lhe perguntou como tinha conseguido passar no concurso da Es-cola. Então inventaram que a nota tinha sido menor do que zero: 0,5 (que é, como diziam, metade de zero)...

204 – BARF, ESM, anos 1980. O gauchão, taxativo: “Pom-ba, tchê! Mulher raciocina pela ‘carantonha’!”

205 – MAJOR “TABATINGA” – EOEIG, 1968. O Maj Cmt do Corpo de Alunos deu o seguinte aviso: “Será punido quem faltar formatura alegando ida urgente ao banheiro. A primeira coisa que deve fazer o militar, logo depois do toque de alvorada, é jogar a ‘tabatinga’ na louça”...

206 – De pernas curtas e miúdo, o tenente era conhecido

como “Mentirinha”. 207 – Ano após ano andando de fusca, a mulher de oficial

pão-duro decretou: “Fusca, jamais!” 208 – EOEIG, turma 1969. 116 técnicos e infantes. Nas

formaturas, os baixinhos cerra-fila revezavam-se entre Mendes “Candiru”, Corrêa “Patrono”, Medina “Cocada” (vermelhusco), Jocelino “Maracujá de Gaveta”, Nery “Freguês Bom”, Maia “Zé Trindade”, Batista “Moranguinho” e Olavo “Cavalo Seco”.

209 – CFPM, Natal, 1970. Aula de Aerotécnica: um aileron faz assim, o outro faz assim, aí o avião faz assim... ou, manete pra frente, decola; manete no meio, voa; manete pra trás, pousa.

210 – EMRA-2. O Brig Becker, Cmt do COMAR, pousa ao lado, de UH-1H. Eu, concentrado, avalio rachadura no tail boom de outro helicóptero, quando ouço: “É grave?” E eu: “Grave ‘coi-sa’ nenhuma!” Desconfiado, viro-me e vejo o brigadeiro, com o capacete na mão, indo tranquilamente para o hangar.

211 – INSTITUIÇÃO MILITAR – O serviço tirado para ou-tro, entre praças, conhecido como “BG”, a bem da gaita, ou “BD”, a bem dela. Não há registro da ocorrência entre oficiais.

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212 – JUSTIÇA NO QUARTEL – “Explica, mas não justifica”.

213 – CFPM, Natal, 1970. Fã dos Beatles, aspirante e sol-teiro, pilotava meu Yellow Karmann-Ghia pelas ruas de Natal. 214 – BARF, 31 Ago 1988. Promovido a tenente-coronel, recebi cartão de felicitações do amigo major Ubiratan DIAS José (hoje coronel inativo), Cmt do ETA-7, até então mais antigo, e que terminava com o seguinte PS: “Assim você vai a brigadeiro antes de mim”. E fui. A “brigadeiro da graxa”. 215 – CENIPA, anos 80. Eu e Eli Neves, curso de seguran-ça de voo. Manhã de domingo, em um parque de Brasília, socor-remos casal de namorados, ele baleado em assalto. Ela chorava com o verde-esmeralda dos seus olhos de muitos verdes esme-raldas. Linda! Linda! 216 – O militar mais famoso da FAB é o Coronel “Full”. 217 – BAAN, anos 1970. Os graduados que foram à Fran-ça fazer o curso de Mirage voltaram com tanta pose, que os que não foram começaram a chamá-los “Sargentos-Brigadeiros”. 218 – EEAR, dezembro de 1957. A Escola forma a primeira turma com a nova cor do uniforme: azul barateia. 219 – EEAR. Até dezembro de 1971, eram os seguintes os distintivos dos alunos: 1ª série, uma estrela branca; 2ª, uma amarela; 3ª, uma branca e uma amarela; e 4ª, duas amarelas. 220 – BANT, anos 1980. O major prendia até a sua som-bra. Candidato a vereador, teve apenas dois votos. 221 – BABR, anos 1970. Tenente IG, para a tropa, puxan-do o “paga-dez”: “Jovens, vamos empurrar o planeta”! 222 – BARF, anos 1970. Tiros na mata, domingo à tarde. Oficial de Dia, subo o morro com soldados e o 3S QC Vanderley, o “Mala Véia”, Cmt da Guarda e monitor do meu estágio de re-cruta. Nada encontramos. Na volta, surpreso, ouço dele misto de elogio e desabafo: “Outros não nos acompanhariam. Oficial de fibra e posições definidas casa e batiza, prende e arrebenta, mas também perdoa, sem virar as costas para a tropa”. 162

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223 – EPCAR, Barbacena. “Gepesista” era o aluno que gostava de desfilar fardado, principalmente na sua cidade natal, dando “GP” (Golpe de Publicidade). 224 – BARF, ESM, 1965. Recitou poema de sua lavra so-bre a saga da ema ao por o ovo colossal, que começava assim, e seguia longo e escatológico: “Ema, que pena! / Não tema o teo-rema / Da desintegração!”... “Ou seja”, resumiu um gozador: “Ema, que pena! / Não tema, / Bote um ovo!” 225 – BARF, anos 1980. O TCel assumiu o comando do 1º/6º GAv e no outro dia já estava carimbado com o kafkiano apodo de “Cara de Rato”. 226 – BANT, ESM, 1969. Aspirante, fui testemunha de ca-samento de mecânico da manutenção. Pouco depois, ele foi acu-sado de bigamia pela primeira mulher. O segundo casamento dele, só no religioso, foi considerado nulo, o que me livrou de ser indiciado por falso testemunho. Aprendi a lição. 227 – EOEIG, Curitiba, 1968-69. Os infantes cursavam, fardados, a cadeira de medicina legal na Universidade Federal. Inventaram que uma estudante perguntou a Dudu que farda era aquela e Dudu respondeu: “O 6º com japona, garota!” 228 – BAGL, 1º/1º GT, Fev 1964. Fui, com mais quatro colegas estudantes, em pleno expediente, escalado para ser en-trevistado e fotografado pela revista Fatos e Fotos, na Universi-dade Federal do Rio de Janeiro (Ilha do Fundão). Fardado! Era a agitação política nos quartéis. 229 – SUPERVISÃO NÃO ESPECIALIZADA – 2º/8º GAv, anos 80. Feriado. O tenente autoriza o soldador, de serviço no quartel, a fazer solda elétrica em rachadura de 2 cm no difusor da turbina do UH-1H. Resultado: buraco de 4 cm de diâmetro. Consegui livrar o soldador de uma cadeia. 230 – SINCERIDADE – BARF, anos 80. O major A-2 do COMAR, palestrando sobre comunismo, pediu para não fazermos perguntas, pois não estava preparado para respondê-las. 231 – FILOSOFIA DE QUARTEL – Só há dois tipos de cea-rense: o de cabeça grande e o de cabeça muito grande. 163

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232 – BARF, Cia IG, 1957. O Sgt Laudelino, do meu pelo-tão de recrutas, nos reunia, sentados, na sombra de um dos vá-rios cajueiros, para a instrução teórica. Fazíamos a maior bagun-ça, até que, ao se aproximar um oficial, o Laudelino nos chamava à ordem: “Atenção, pelotão, filho da puta à vista!”. 233 – BARF, anos 1980. O TCel Eli, irmão do Ten Brig Dé-lio, assume o comando do 1º/6º GAv e passa a ser tratado pelo coronel comandante da Base de “Mister Elai”. Chique, não? 234 – EOEIG, Curitiba, 1968. No Curso Básico, o Professor Ronald, o “Jacaré”, de Geometria Descritiva, nos ensinou a racio-cinar com a “linha de terra”, como referência. Ao jogá-la fora, pirou metade da turma, a fina flor do “perebal”. 235 – EOEIG, 1968. 1ª aula de Descritiva. “Jacaré” traça uma reta no quadro-negro (linha de terra) e diz: “Seja o ponto A, A’ (‘a’, ‘a linha’)”, marcando A acima da reta e A’ abaixo desta. O “pereba” protesta: “Professor, como um ponto pode ser dois pon-tos?”, fazendo a pergunta que muitos queriam fazer. 236 – EOEIG, 1968. Os exemplos do Professor “Jacaré” sempre continham um plano qualquer alfa, indefinido no espaço. Fisicamente descompensado (“voando” torto, igual ao C-47 2020, do antigo 1º/1º GT), o “pereba” virou “Plano Qualquer”. 237 – PRIMEIRA CONQUISTA – Anos 1950. Fardado de sargento com quepe de oficial, o aluno do curso de formação de oficiais técnicos recebeu, por motivos óbvios, o apelido de “Cen-tauro”, mostro mitológico híbrido (metade cavalo, metade ho-mem) reinventado na FAB. 238 – FILOSOFIA DE COMANDO – O comandante era da-queles que só falava com oficiais superiores, a quem fazia per-guntas respondidas por ele mesmo. 239 – BARF, 6º GAv, 1957. O oficial que mais me impres-sionou foi o Cap Com Expedito, navegador do B-17. Ele espalhou bosques e jardins por toda a Base, com a nossa ajuda. 240 – EPCAR, anos 1970. No prospecto de propaganda, entre outras coisas grandes, constava ser da Escola o maior giná-sio de esportes coberto de todas as escolas do Brasil. 164

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241 – EOEIG, anos 1970. Desmilitarizado aluno de dia, meteorologista oriundo de destacamento na Amazônia, apresenta a tropa do Corpo de Alunos voltada de costas para o Brigadeiro Délio, comandante da Escola, cuja reação foi aceitar naturalmen-te a apresentação. 242 – Recife, Vila dos Oficiais, anos 2000. Quando o den-tista completou 10 anos no posto de capitão, a mulher dele pro-testou, numa faixa na entrada das residências: “No mundo, o único capitão mais antigo que ‘fulano’ é o Capitão Caverna”. 243 – EAO, Cumbica, 1983, última turma do Casarão. O capitão peruano, caçador, 1º de turma e QI altíssimo, segundo fui informado, me disse que o Brasil tinha política expansionista e hegemônica, na América Latina. Durante o curso, essa foi a tôni-ca das nossas interessantíssimas conversas. 244 – EAO 3/83, última turma do Casarão. O jornal da TV mostra a seca e o nordestino comendo calango. O carioca Xico me xinga: “Comedor de calango”! E eu: “Não espalha, ‘Calango’, pega mal pra você”! O apelido pegou. 245 – Sobre calangos, conta Benonil, na sua turma de re-crutas (BARF, Ago 1946), tinha um que, nos exercícios de mane-abilidade nas matas (restos da Mata Atlântica) dos Montes Gua-rarapes, além de caçar calangos, tirava-lhes o couro e os comia crus e ainda vivos. 246 – BARF, 2º/8º GAv. O negão, bom camarada, ganhou o apelido de “Fuscão Preto” quando esse brega sertanejo estou-rou nas paradas de sucesso. Já o aspirante intendente, magro, empertigado e popular, era o “Fiat Uno”. 247 – EEAR, 21 Jul 1961, formatura da 135ª turma: Na entrega dos brevês por madrinhas e padrinhos, tirei o meu do bolso e comecei a pregá-lo no peito. Fui interrompido pelo Assis “Sorocaba”, com a sua irmã e madrinha, de quem também gen-tilmente recebi o brevê. O que não faltava era nordestino sem madrinha... 248 – Dalas-Recife, 1975. Traslado de sete UH-1H. Devido aos ventos fortes, ficamos quatro dias numa base americana (I-lhas Gran Turk, Caribe). Sem surpresa, conhecemos duas cea-renses casadas com sargentos americanos. 165

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249 – O ÔNIBUS DO BRIZOLA – BAGL, 1961-64. Toda quarta-feira, depois do almoço, saía ônibus com graduados para o escritório de Brizola, na Cinelândia. Iam discutir política com o caudilho. Nunca fui, mas era cobrado: “Novinho, nunca vi você no ônibus do Brizola”... 250 – COOPTAÇÃO POLÍTICA – BAGL, 1963. O coronel as-sume o comando e libera o traje civil, para suboficiais e sargen-tos, na entrada e saída da Base, nas ruas e no acesso ao cinema do quartel, além do uso da piscina dos oficiais. Deu no que deu o que hoje é normal até para soldados. 251 – BARF, 6º GAv, 1958. O motor do B-17 tinha ventoi-nha sob a asa para aumentar a pressão de admissão. Nós, solda-dos, removíamos, com a mão sem luvas, bucha e removedor “mussurepe”, a grossa camada de carbono formada debaixo da asa, e ficávamos com mãos e braços vermelhos e ardendo. 252 – BARF, 22 Dez 1988. Nesse dia, distribuíram cestas de Natal e passei para a reserva. Fui ao EI receber o brinde. Meu nome, eu vi, tinha sido riscado da lista. As coisas mudam muito, na reserva. É só aguardar a sua vez, companheiro. 253 – SBRF, anos 1950-60. Dr João Suassuna, irmão do escritor, mantinha, à noite, consultório na Rua Nova para atender baratinho a rapaziada, que se divertia no Bairro Boêmio do Reci-fe. Livrava soldados de DSTs com remédios e profilaxia, como o uso da camisinha e proibição de beijo na(s) boca(s). 254 – BARF, 1957. Herança do americano, no Portão da Guarda funcionava ambulatório aberto até a madrugada, para fornecimento gratuito e facultativo de kit de assepsia contra DSTs. Quem se contaminasse era punido. Viva o Dr Suassuna! 255 – BARF, Cia IG, 1957. Por falar em DSTs, “chato” se pegava até no ar. Neocid era a solução. Depilar-se, também. Mas aí, na hora do banho, vítima de bullying, o “fazendeiro de chato” perdia o sossego. 256 – Outra coisa boa eram as Escolas de Base, onde es-tudei (BARF), que funcionavam nas bases aéreas preparando cabos e soldados para a EEAR. 166

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257 – Nos anos 1960, quem comandava a 1ª Zona Aérea, hoje 1º COMAR, era o brigadeiro “Boi Cansado”. 258 – EOEIG, 1968-69. Certo pereba “CDF” ficou conheci-do como “Aço-cromo-níquel-molibidenio”, ou simplesmente “Mo-libidenio”, a liga mais dura e resistente ao calor da aviação nem moderna, nem arco-e-flecha, de aviões que ainda usavam almo-tolia e chave “cem” (gasolina 100 octanas, para lavar o óleo que vazava dos motores). 259 – Vendedor de coco no calçadão de Boa viagem, ex-soldado do EB, disse que o seu pelotão tinha um sargento “platô-nico”: tanto falava manso, como gritava com a tropa. Passei a tomar cuidado com “platônicos”, uns temperamentais. 260 – EPCAR, anos 1960. O tenente casou com a filha do governador de Minas, Bias Forte, político de Barbacena. Em tro-ca, deixou a FAB, a pedido da família da noiva. 261 – BARF, ESM. Funcionário civil e compositor predileto de Jackson do Pandeiro, Luiz de França, no lançamento do Sput-nik, cantou: “Eu vou pra Lua / Eu vou morar lá / Vou soltar meu foguete / Do Campo do Jiguiá”. Ainda tem, lá, a torre de atraca-ção do Zepelim, esquecida, como Luiz de França. 262 – BURROCRACIA – Na 1ª folha das alterações do mili-tar, o dia de nascimento, em vez de 11, constava 12. Depois de mais de dois anos sem solução de requerimento documentado, e reiterado várias vezes, feito à DIRAP (COMGEP), 3S do EP apa-gou o 2 e datilografou o 1, resolvendo o caso. 263 – BAGL, 1º/1º GT, 1961-64. Nos sábados pela ma-nhã, quando não estava de serão, trocava a praia pelo Teatro Municipal do Rio, na Cinelândia, para ouvir a Orquestra Sinfônica Brasileira, nos Concertos para a Juventude, grátis para estudan-tes. Isso, sim, era cultura, e não o saco de gatos de hoje. 264 – CATRE, Natal. O capitão chefe do material do 2º/5º GAv (avião Xavante) vivia dizendo: “Sou o chefe, o máximo, o líder, o inteligente e estou sempre certo”. Com assinatura falsa dele, colaram esses dizeres no quadro de aviso, com um acrés-cimo: “E sou baitola”. O autor não foi descoberto, apesar das muitas “repones”. 167

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265 – TERMINOLOGIA DE QUARTEL – “Aspone”, assessor de porra nenhuma; “Asponean”, assessor de porra nenhuma de alto nível; “Repone”, reunião para porra nenhuma. 266 – EEAR, 21 Jul 1961, conclusão de curso, esquadrilha de T-6, Valsa do Adeus; EOEIG, 08 Ago 1969, aspirantado, es-quadrilha de Gloster Meteor, Valsa do Adeus. 267 – BARF, início dos anos 1950. O pagamento, envelo-pado, era feito na boca do caixa da tesouraria. O SO Sobreira, espírita devoto, saía recolhendo as moedinhas, do recruta ao co-mandante da Base, para obras de caridade. 268 – BAGL, 1º/1º GT, 1961. Recém formado na EEAR, cheguei à Base, e confirmando o folclore em volta, com a “bola-da” comprei máquina fotográfica Easternflex, relógio Mido, óculos Ray-Ban, rádio de pilha e revolver. Só deu pra isso. 269 – CATRE, década de 70. Estagiário de pilotagem do avião Xavante (2º/5º GAv), o aspirante namora moça da alta sociedade local. Intimado pelo pai da moça, deixa a FAB para casar e assumir os negócios da família. 270 – BANT, anos 1940. No tempo da Guerra, Natal era uma pequena vila, que começava na Ribeira e acabava no Tirol. A bela Ponta Negra não passava de uma praia distante e selvagem. A guerra revolucionou a cidade, hoje, uma metrópole. 271 – EEAR, anos 60. GUARATINGUETÁ: Café Cocaio, Lei-teria Molico, cabaré dos bandidos, namoro no muro do cemitério. Na Praça RPM, as moças desfilavam de braços dados. E nós, alu-nos, parados, de olho nos decotes. 272 – BARF, anos 1960. O comandante não queria nin-guém sem autorização fora de sua área de trabalho. Flagrado, o militar era punido. De binóculos, o próprio comandante passava horas na torre de controle fiscalizando. Surtia efeito. 273 – A VERSÃO E O FATO – Quando o Brig Camarão co-mandava o COMAR 1, ao chegar à residência oficial (Rua Braz de Aguiar, centro, Belém) prendeu vendedor ambulante que aprego-ava: “Camarão fresco!”. Na verdade, foi a sua guarda quem prendeu, e o brigadeiro mandou soltar. 168

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274 – A CASA DO MINISTRO – BAGL, 1961-64. A casa, voltada para a Guanabara, era separada da Base por um muro, com portão aberto para receber graduados. 275 – BARF, 6º GAv, avião B-17, fim dos anos 50. Simples e educado, o tenente Cláudio Paixão de AZAMBUJA era um pai-zão. Nós, os soldados, o chamávamos “Mamãe Azambuja”. Em 1982, foi merecidamente promovido a brigadeiro do ar. 276 – BUROCRATÊS – Em todo documento que se preze (relatório, parte, ofício, memorando) consta o termo “outrossim”, e, para a sua tramitação, o imbatível “encaminho-vos”, o popular “encaminho ovos”. 277 – BARF, 2º EMRA – Do capitão “Catatau” para o te-nente-coronel comandante: “Coronel, quero levar ‘um prá’ com o senhor”. 278 – Desde abril de 1970, o aluno da EPCAR não é mais “pré-cadete”. Voltou a ser aluno, como antes. 279 – FAZ DE CONTA – PAMA-GL, 1973. Major da Direto-ria do Material, depois baloeiro na inatividade, montou “curso” único de Suprimento e Manutenção, de apenas cinco dias. Esses cursos exigem dos profissionais dessas áreas (apoio ao combate) quatro anos de estudos, vivência e atualização constante. 280 – BARF, 1º/6º GAv, anos 1970. Meteorologista, o ma-jor “Passarinho”, nas missões de reconhecimento, principalmente na Amazônia, levava, no C-130, gaiolas cheias de canários da terra para soltá-los por todo o Brasil. 281 – Formatura no CATRE, 1995. Anunciada a chegada do Governador Garibaldi Alves, antes de a Banda Militar fazer a saudação de praxe, um jumento o saúda com belo, longo, sonoro e aparatoso zurro. Símbolo do Nordeste, o jumento, substituído por motos, entrou em extinção, até virar carne de exportação. 282 – BARF, Cia IG, 1957. O instrutor pegava o fuzil de um recruta, para demonstrar os movimentos corretos, e o devol-via sacudido na cara do conscrito, que, se bobeasse, levava a arma na cara. Hoje, a patrulha de “os direitos dos manos” está transformando os soldados em meninas de colégio de freira. 169

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283 – Anos 1960. Piloto cearense lança a seguinte pane, na Parte II do Relatório de Voo: “VHF chiando mais que carioca”. 284 – A pane de “VHF chiando mais que carioca” teve i-gual resposta da Manutenção: “Trocado ‘fio entupido’”. Na gíria da graxa, fio entupido é aquele sem condutibilidade. 285 – BARF. Aloprado, o major recebeu o codinome de “Galeão-Cumbica”, aviador doidão personagem da Escolinha do Prof Raimundo, programa humorístico de Chico Anísio, na TV. 286 – CATRE. O brigadeiro flagra três sargentos tirando coco, o que era proibido, e os interpela: “Quem é o mais antigo?” Resposta: “O senhor”. Repete a pergunta e ouve: “Continua sen-do o senhor”. Retira-se da cena balançando a cabeça. 287 – A “Lei da Sucata”, mesmo sem vaga, promovia o técnico a capitão, ao completar 10 anos como tenente, mas foi extinta, e eu passei dos 12 anos. Encontrei, no Galeão, o Briga-deiro Moraes, meu antigo comandante, e este me disse ter sido essa a maior sacanagem por ele já vista na Força Aérea. Para nós, especialistas, era apenas mais uma. 288 – PROTESTO GLABRO – A extinção da “Lei da Suca-ta”, por “desuso” (segundo alegação mentirosa feita ao Congres-so Nacional), fez centenas de oficiais técnicos perderem a promo-ção a capitão, depois de vexatórios 10 (sic) anos como tenentes. Vários protestaram raspando a zero o cabelo da cabeça. 289 – Recentemente (2012), encontrei “CTU” (no primeiro dia de trabalho, apareceu com camisa da Cia de Trens Urbanos), funcionário da Prefeitura de Aeronáutica, que me disse, saudoso, não haver mais, nos quartéis, as festas de antigamente. 290 – O chefe era tão antiquado (inclusive no linguajar) e rabugento, que tudo para ele “andava à matroca”. 291 – BARF, anos 1980. O capitão tinha carro, mas vivia de carona. Correu então a notícia que ele declarava o veículo, no imposto de renda, como imóvel. 292 – No Desfile da Vitória, no Rio, os Pracinhas lancha-ram o de costume: pão, banana e broxante, um mate ralo. 170

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293 – CAMARADAGEM MILITAR – A verdadeira camarada-gem militar existe, mas não é nada daquilo dito pela retórica ins-titucional. 294 – BANT, anos 1960. O casamento de tenente com moça da sociedade local foi oficiado pelo arcebispo de Natal. Na hora do sim, ouviu-se estrondosa gargalhada de um “saco de risada”, brinquedo vendido na Zona Franca de Manaus. O prelado parou o ofício e enquadrou a tenentada. 295 – BARF, ESM, anos 1980. “Papa Tango” (Pomba, T-chê!), ou simplesmente “Papa”, comandante do ESM, interpela o capitão “Zeca Diabo”: “Todo mundo tem apelido. Quero saber o meu”. Resposta: “O senhor, como comandante, é o ‘Papa’, e ‘Pa-pa’ não tem apelido”. Ele acreditou! 296 – CFPM. Missão em São José dos Campos. O tenente e o major vão à cidade jantar. Na entrada do restaurante, o hare krishna tocando sininhos: – “Chefe” (esse tratamento salvou o tenente), “chute um número, de um a cinco.” – “Três”. – “Ga-nhou”! – “O quê”? – “O krishna” ! 297 – BAGL, 1º GT, 1961-64. Na cantina, antes de pedir um cafezinho (pago), era preciso cuidado, pois o IS Moreira da Silva, o “Miserinha”, vinha sorrateiramente por trás, sorvia o café quente de um só gole e fugia se abanando e respirando de boca aberta. 298 – LÁ... – CFPM, Natal, 1670. Oficial de Manutenção, consegui dispensa para curso de corrosão (extensão universitá-ria), na Faculdade de Química da UFRJ, na Avenida Venezuela, Rio. Duração: quatro módulos semanais, aulas o dia todo e pro-vas eliminatórias aos sábados, no final de cada módulo.

299 – E CÁ – BARF, 2º EMRA, anos 1970. Para completar o curso de corrosão, não consegui, com o comandante, dispensa para curso de metalurgia (extensão universitária), no Instituto de Tecnologia do Estado de Pernambuco. Ouvi dele que o meu caso era ficar um mês sem trabalhar...

300 – BOMBRIL – SBRF, anos 1970. O capitão ia à praia

com um pacote de bombril na parte frontal da sunga, para au-mentar o volume...

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301 – BANHO A COMANDO – Nos acampamentos militares era assim: um minuto de água, para molhar tudo, inclusive as “partes quentes”; um minuto sem água, para ensaboar tudo; e novamente um minuto com água, para enxaguar tudo.

302 – Porque não era capitão, o tenente Astor só pôde fa-zer o curso “de terra” (ground) do C-130. Mas como ele cravou dez em todas as provas, o Estado-Maior da FAB foi forçado a aca-bar com a proibição de tenente não poder pilotar C-130.

303 – Aviador chefiando Manutenção de avião não é boico-tado pelo “Sub do Hangar”, nem pelos mecânicos, com coisas como o clássico “chefe, entupiu!”. A gíria quer dizer que “já foi feito tudo”, e a pane continua, cabendo ao chefe “desentupir”.

304 – MÚNUS MILITAR – “Na paz, preparar-se para a

guerra. Na guerra, preparar-se para a paz.” – Sun Tzu. 305 – PAMA-RF, 1969. Anabuki, aspirante infante, dá gol-

pe de caratê no plexo solar de soldado reiteradamente indiscipli-nado, que desaba no chão desmaiado, volta a si e resolve criar juízo. Hoje, com os “direitos dos manos”, somos todos soldadi-nhos de chumbo.

306 – EMRA-2, anos 1970. O tenente-coronel comandante

manda armar elemento de T-25 (dois aviões). O tenente de ar-mamento, QI alto, físico pela universidade Mackenzie e professor da PUC-Recife (matemática) provoca: “O que é elemento?, é de pilha?”. Aprontou tanto, que um Conselho de Justificação o con-denou à reserva remunerada, exatamente o que ele queria.

307 – Do livro “Senta a Pua”, entrevista com mecânico do

1º Grupo de Caça, que atuou na 2ª Grande Guerra: “Como te sentias apenas preparando os aviões?” Pano rápido!

308 – PUXA-SAQUISMO OFICIAL – Numa viagem presi-

dencial, Dona Yolanda Costa e Silva recebeu “um caminhão” de flores. O taifeiro de bordo, sem saber onde guardar tanta flor, pergunta ao então Coronel Eli Jardim de Matos o que fazer. “Joga fora”, respondeu.

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309 – BARF, final dos anos 1950. “Português eu agaranto” (sic), disse o soldado, explicando porque tinha esperança de pas-sar no vestibular da EEAR, “e só tenho um pouquinho de dificul-dade em elipse, hipérbole, parábola e parâmetro”.

310 – BAGL, anos 1960. Cabo enfermeiro, o negão, e bota

negão nisso, tinha nome de guerra alternativo: “Elza Soares”. 311 – BANT-CFPM, 1969-70. O refeitório dos oficiais fun-

cionava no cassino, que tinha duas alas (amarela e verde) de quartos para solteiros, quartos para o pessoal em trânsito, suíte para oficiais generais e um anexo, chamado Sing-Sing, para ca-sais aguardando próprio nacional residencial (PNR).

312 – CFPM, 1971. Tenente chefe da Manutenção, fui para

a Aerotec SBSJ receber os T-23, à medida que ficavam prontos. Voava experiência com pilotos da fábrica, e depois da conferência com o engenheiro Naked, cada quatro aviões eram levados para Natal pelos nossos pilotos e mecânicos.

313 – VETERANOS – Uns e outros “nos calços” e “hanga-

rados”, aviadores aposentados são “Velhas Águias” e os demais aeronavegantes, “Urubus Baleados”.

314 – HISTÓRIA – A guerra deixou de ser apenas arte, pa-

ra ser, também, ciência e tecnologia, forçando o aparecimento das demais armas (comunicações, material bélico e engenharia de combate) e serviços (engenharia não combatente e medicina), além do serviço de intendência, que já existia.

315 – PRÉ-HISTÓRIA – A intendência veio dos ermos da

história das guerras acompanhando a infantaria nas campanhas e acabou incorporada aos exércitos.

316 – HISTÓRIA – Com o sucesso do avião na 2ª Guerra,

a infantaria dos exércitos migrou para as forças aéreas agregando a artilharia antiaérea. Por sua vez, as armas de comunicações, engenharia de combate e material bélico fundiram-se, nas forças aéreas, no Quadro Técnico (Especialistas).

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317 – HISTÓRIA – Os exércitos organizam-se em volta de três armas: no começo, era só a infantaria. Depois, a cavalaria, dos senhores da guerra. Por último, a artilharia, que nasceu, com suas fundas bíblicas, atirando pedras no inimigo.

318 – FILOSOFIA DE QUARTEL – “Baixa Canalha”, o baixo

clero (capitães e tenentes). 319 – BAGL, anos 1970. Por ser muito magro, ficou co-

nhecido como Sargento “Papel”. 320 – O PUXA-SACO – Nas falas do comandante, ele fica

em posição visível no auditório balançando a cabeça, como lagar-tixa, “aprovando” tudo o que é dito.

321 – ESTAGIÁRIOS – BANT, 1969. Refeitório lotado de

aspirantes jantando batata doce, como sempre. O aspirante in-tendente Ildeo, do rancho, entra e é recebido por bombardeio de batatas, que o obriga a recuar. Bombardeio executado, vamos para a varanda do cassino aguardar a hora do cinema.

322 – BANT, 1969. Aspirante, moro no cassino com os

demais aspirantes (estagiários). Perguntam-me o que eu estudei para ser oficial. Digo que fiz duas academias técnicas militares – EEAR E EOEIG –, e eles devolvem dizendo que, também, fizeram duas – EPCAR e AFA.

323 – BANT, 1969. Os aspirantes estagiários mostraram-

se surpresos quando souberam que eu, asp esp av, ganhava a mesma gratificação de voo deles. Nada sabiam do oficial técnico. Será que o aspirante de hoje (2016) ainda não sabe?

324 – BANT, 1969. Aspirante de avião, fui declarado

membro honorário da turma de pilotos estagiários. Na ocasião, ouvi muita coisa ao mesmo tempo bonita, ingênua e generosa. Éramos, todos, muito jovens...

325 – PERGUNTAS DE QUARTEL – As mais ouvidas: Quem é o mais antigo? Onde está a chave? Quem deu essa ordem? On-de está escrito? Qual é o “bizu”?

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326 – Bizu, onomatopeia (bzzzzzzz) do zumbido das abe-lhas. Quer dizer dica, macete, zum-zum-zum, bochicho, diz que diz. Ex: “A imobilidade militar pode causar tontura, por falta de circulação do sangue. O ‘bizu’ (dica) é mexer só os dedos dos pés” – Rafael Gomide, Folha de São Paulo, 18 Mai 2008.

327 – BARF, ESM, anos 1960. Todo chato adora aprova-

ção. Para se livrar dele, o 3S Maia recomendava: ligue o automá-tico no “sim”. Quando chegar a hora de você dizer “não”, vai sair mais um “sim”, desconcertando o carrapato.

328 – EOEIG, 1968. No curso básico, Estatística era o ter-

ror. O Prof “Boiadeiro” disse que ia pedir a definição de Estatística na 1ª prova. Era blefe, mas ainda lembro: “Instrumento lógico, indutivo, para a descoberta, em forma e valor, das leis que regem fenômenos coletivos e de multidão” (J. Kafuri).

329 – EOEIG, 08 Ago 1969. Manhã: aspirantado. Martinho

da Vila acabara de lançar compacto de vinil. No lado “A”, a músi-ca “Meu Canudo de Papel” (o diploma de oficial da Força Aérea). Tarde: Restaurante Madalosso, porre ouvindo à exaustão essa música. Noite: baile, ressaca...

330 – BIOGRAFIA – Pensando como cadete, desde tenente

ele dizia que tinha vindo para chegar ao topo, como comandante da Força. Ficou no meio do caminho, posando de vítima, apesar do “enterro de luxo” – pé-de-meia em dólar feito no exterior.

331 – CFPM, Jan 1970. Extinta a Base, os estagiários ago-ra são instrutores de voo dos cadetes na nova unidade. Na Manu-tenção, a pedido, quando não tinha voo de experiência (22), eu inventava. Foi assim que “solei” o T-23. Longhi, por exemplo, vibrou quando consegui completar uma chandelle. (23)

332 – BANT-1969, CFPM-1970. “Átila, Rei dos Hunos e

Flagelo de Deus”, era assim que eu chamava o Asp Av Átila (tur-ma 28 fev 1969), um cara muito legal, que revi quarenta anos depois, no 40º aniversário do Centro de Formação de Pilotos Mili-tares – CFPM.

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333 – EMRA-2, anos 1970. Eu, 1° tenente antiquíssimo, todo ano recebia tenentes novíssimos me chamando de senhor. Para descontrair eu dizia a cada um: “Senhor é o apelido do meu ovo esquerdo quando não está inchado. Entendeu?” E todos res-pondiam, ainda com reflexo de cadete: “Sim, senhor”.

334 – RANÇO – Caçador chama o resto de carroceiro. 335 – VINGANÇA DE NÃO CAÇADORES – Anápolis, anos

1970. Quando os franceses, depois de ensinar defesa aérea, en-tregaram os aviões Mirage, correu o boato que haviam dito terem montado aeroclube de luxo para os caçadores.

336 – RESPOSTA DA PERIFERIA – Somos pequenos de-

mais para Força e grandes demais para aeroclube.

337 – TARA – BARF, anos 1970. O major médico psiquia-tra, chefe do posto médico da Base, entrava em sua sala, tirava o sapato, pegava a meia e ficava “cheirando”...

338 – BARF, anos 1980. Na pausa do cafezinho, o Cel Ma-

chado fez a pergunta: “Qual a melhor pizza do Brasil? ”Um disse que era a do Bexiga, São Paulo. Outro esnobou apontando a que saboreou em Milão. Quando chegou a minha vez, disse que a me-lhor do mundo era a que eu estivesse comendo.

339 – EEAR, anos 1960. Na instrução de marcha (ordem

unida) aos alunos, o 3S IG “Timbó” resolveu inovar e passou a dar comandos de voz em inglês...

340 – EEAR, anos 1960. Atrasado, aluno tenta despistar o 3S IG “Timbó”. Anda pra lá, pra cá, esconde-se entre paredes, pilastras, árvores, até entrar em forma. “Timbó” o aborda: – Alu-no, qual é a menor distância entre dois pontos? – A reta. – E co-mo você explica tanta sinuosidade para entrar em forma?

341 – BARF, anos 1980. Brabo, o coronel soltava fogo pela

venta. Mas Ferreirinha, na infantaria; Humberto, na intendência; Ramos, no armamento; e eu, na aviação, o enfrentávamos leal-mente. Para surpresa nossa, quando passou o comando, fomos os únicos elogiados.

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342 – MOTIVANDO A PLATEIA – EAO, anos 1980. Para-quedista, o capitão fez desse tema a sua palestra. Subiu em um banco, botou os braços para cima e pulou perguntando: “Perce-beram o tema de minha fala? ”Ninguém percebeu, mas como to-do mundo caiu na gargalhada, conseguiu chamar a atenção.

343 – EEAR – A formatura de dezembro de 1968 foi muito

triste: um mês antes, em voo de instrução da turma de forman-dos de Armamento, o B-25 da Escola bateu em uma serra, no Recreio dos Bandeirantes, Rio, morrendo todos a bordo.

344 – BIOGRAFIA – EMRA-2, anos 1970. Orgulhoso, o mi-

litar dizia descender do clã dos Lira, da aristocracia açucareira. Quando o TCel Lyra assumiu o comando, eu disse ao esnobe que “nobre” era Lyra, com “ípsilon”, e que lira, com i, era “embola-bosta”. A brincadeira fez o orgulho do moço murchar.

345 – BANT – O exame pré-nupcial do tenente acusou bai-

xa contagem de espermatozóides, e começaram a zoá-lo como o “Porra Rala”. No Nordeste, é o homem de gala rala, de pouca “sustança”, capaz apenas de fazer filhas. Filho homem, nem pen-sar.

346 – BARF, 1º/6º GAv, 1958. Eu era soldado. Gripado, fui ao médico do Esquadrão pedir receita de vitamina C, para receber grátis o remédio, no Posto Médico da Base. Ele me expulsou de sua sala, aos berros, dizendo que, ali, o médico era ele.

347 – BANT, Set 2010. Moda entre petistas deslumbrados com o poder, em uma comemoração no quartel vi dois “quatro-estrelas” da ativa fumando enormes charutos cubanos...

348 – EEAR, 1960-61. Garota de programa ficou conhecida

entre os alunos, comumente lisos, como “B-25” (avião que equi-pou a FAB por muitos anos), porque cobrava a fortuna de vinte e cinco cruzeiros por um rolo.

349 – EEAR, anos 1960. O cabo velho ensinava aos alunos

prática de desmontar e montar armas, mas quando não tinha superior por perto, tirava pequena Bíblia do bolso e começava a pregar o evangelho.

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350 – Anos depois, encontrei o major “Galeão-Cumbica (ver curta nº 285) aposentado como coronel e o cumprimentei entusiasmado, deixando-o muito feliz: “Salve! oficial piloto coro-nel comandante aviador!”.

351 – FAB, VIAGENS – Mulheres, dizia o poeta, muitas; ci-

dades, digo eu, duas: Recife e Rio. Pouso no Galeão. Samba do Avião: “Rio, eu gosto de você”... E no regresso, frevo: “Voltei, Recife, foi a saudade que me trouxe pelo braço”...

352 – BIOGRAFIA 1 – Pela nomenclatura oficial desde a

criação da FAB (20 Jan 1941), sou Oficial Especialista em AVIÃO. Não existe a figura do oficial especialista em aviões...

353 – BIOGRAFIA 2 – No ano de 1939, dia 15 de janeiro,

Rua Souza Bandeira, 98, Cordeiro, Recife de Pernambuco, nasci ungido na graxa de super sub sônicos super aviões tratores êm-bolos e outros truques mecânicos. Sou assim desde soldado, sou assim desde menino. (Colagem de poemas de Mário Quintana e Manuel Bandeira).

354 – BIOGRAFIA 3 – Meu pai era empresário do ramo de

laticínios: tinha banca na feira do Cordeiro, Recife, onde vendia queijo. Era ou não era empresário do ramo de laticínios? Fugindo do destino, vim para a FAB e virei filósofo popular, prosador, poe-ta, seresteiro e cantor. E “graxeiro”, nas horas vagas...

FORÇA AÉREA, BRASIL!

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GLOSSÁRIO

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SIGLAS: AFA – Academia da Força Aérea. AI-5 – Ato Institucional nº 5. ALADA – 1ª Ala de Defesa Aérea. BAAF – Base Aérea dos Afonsos, Rio. BAFZ – Base Aérea de Fortaleza. BAGL – Base Aérea do Galeão, Rio. BANT – Base Aérea de Natal. BARF – Base Aérea do Recife. BAST – Base Aérea de Santos. CAN – Correio Aéreo Nacional. CENIPA – Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aero-náuticos. COMAR – Comando Aéreo Regional. São sete, numerados de 1 a 7: COMAR-1 ou 1º COMAR, etc. CFC – Curso de Formação de Cabo. CFPM – Centro de Formação de Pilotos Militares. Cia IG – Companhia de Infantaria de Guarda. CTA – Centro Técnico Aeroespacial, atual DCTA, Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial. CTQ – Centro de Treinamento de Quadrimotores. DAM – Divisão de Apoio Militar. DCTA – Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial, anti-go CTA, Centro Técnico Aeroespacial. DINCART – Dinamização Cartográfica, Projeto Federal. DIRMA – Diretoria de Material Aeronáutico, atual DIRMAB, Direto-ria de Material Aeronáutico e de Material Bélico. EAO – Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. ECEMAR – Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica. EEAR – Escola de Sargentos Especialistas da Aeronáutica. EIA – Esquadrão de Instrução Aérea. EMRA-2 ou 2º EMRA – 2º Esquadrão Misto de Reconhecimento e Ataque. ERA-21 – Esquadrilha de Reconhecimento e Ataque nº 21. EP – Esquadrão de Pessoal. ETA-2 ou 2º ETA – 2º Esquadrão de Transporte Aéreo. EOEIG – Escola de Oficiais Especialistas e de Infantaria de Guar-da. EPCAR – Escola Preparatória de Cadetes do Ar.

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ES-BANT – Esquadrão de Saúde da BANT. ESM – Esquadrão de Suprimento e Manutenção. Esp Av – Oficial especialista em avião. FAB – Força Aérea Brasileira. GDA – Grupo de Defesa Aérea. GSB – Grupo de Serviço de Base. HARF – Hospital da Aeronáutica do Recife. IG – Infantaria de Guarda. IPM – Inquérito Policial Militar. MC – Mecânico. NPV SBMN – Núcleo de Proteção ao Voo de Manaus. OS – Ordem de Serviço. PA – Polícia da Aeronáutica. PAMA AF – Parque de Material da Aeronáutica dos Afonsos. PAMA GL – Parque de Material da Aeronáutica do Galeão. QAv – Sargento mecânico de voo. QG-3 – Quartel General da 3ª Zona Aérea, atual COMAR-3. RADAM – Radar da Amazônia, projeto federal. Ref – Reformado (militar). RPM – Rotações por minuto. RT-VO – Rádiotelegrafista de voo. SBNY – Código internacional de aviação para a cidade de Nova Iguaçu. SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. SUP/MNT – Suprimento e Manutenção. USP – Universidade de São Paulo. 1º/1º GT – 1º Esquadrão do 1º Grupo de Transporte. 1º/4º GAv – 1º Esquadrão do 4º Grupo de Aviação. 1º/5º GAv – 1º Esquadrão do 5º Grupo de Aviação. 1º/6º GAv – 1º Esquadrão do 6º Grupo de Aviação. 1P – 1º piloto. 2P – 2º piloto.

POSTOS E GRADUAÇÕES NA FAB: 1 – Oficiais generais: tenente-brigadeiro (ten-brig); major-brigadeiro (maj-brig); e brigadeiro (brig).

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2 – Oficiais superiores: coronel (cel); tenente-coronel (ten-cel); e major (maj). 3 – Oficial intermediário: capitão (cap). 4 – Oficiais subalternos: primeiro tenente (1º ten); e segundo-tenente (2º ten). 5 – Praça especial: aspirante (asp). 6 – Graduados: suboficial (SO); 1º sargento (1S); 2º sargento (2S); e 3º sargento (3S). 7 – Praças: cabo (Cb); soldado de 1ª classe (S1); e soldado de 2ª classe (S2). TERMINOLOGIA TÉCNICA E OUTRAS: 1– Piloto de caça, o piloto de combate. Os demais pilotos, especi-alistas na pilotagem de transporte, helicóptero, reconhecimento e patrulha, são do apoio. 2 – Campo dos Afonsos, Rio, antiga Escola de Aeronáutica. 3 – Ataque número 1 e número 2, formas padrão de ataque da aviação de caça. 4 – Perna base: no pouso visual, trajetória de interceptação do prolongamento da cabeceira da pista, para se alinhar com o eixo desta, na corrida final para o pouso. 5 – Aileron: no ar, o avião se move em torno de três eixos: o longitudinal, ou de rolagem, do nariz à cauda; o vertical, ou de guinada, perpendicular ao terreno sobre o qual o avião voa; e o lateral, ou de tangagem, de uma a outra ponta das asas. O movi- mento em torno do eixo longitudinal (inclinação do avião para os lados) é dado pelos ailerons, um em cada bordo de fuga (parte de traz das asas.

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6 – Embandeirar: colocar a(s) hélice(s) do(s) motor(es) em posi-ção tal que ofereça(m) a menor resistência possível ao desloca-mento do avião. 7 – Planar: voar sem motor. Quando se desliga(m) o(s) mo-tor(es), a única força que garante o deslocamento do avião é o seu próprio peso. Por isso, o voo planado é descendente e exige o reacendimento do(s) motor(es), para a continuidade do voo. 8 – Pista 32 (do Galeão) – Esta numeração indica a direção ou o rumo magnético da pista. Na verdade, uma pista são duas pistas: a cabeceira 32 tem o rumo magnético (é só acrescentar um zero) 320º; e a cabeceira 14 oposta, o rumo oposto de 140º. Marcação na bússola (sentido dos ponteiros do relógio): N (Norte) 360º; L (Leste) 90º; S (Sul) 180º; e O (Oeste) 270º. A numeração da pista é de 10 em 10 graus, arredondada para o número cheio mais próximo. 9 – Mata-sete – Apelido do avião C-45. Levava sete ocupantes. O apelido veio depois de uma série de acidentes fatais. 10 – Taxi, taxiar – É o deslocamento do avião do pátio de esta-cionamento para a cabeceira da pista (decolagem) e do final da pista (pouso) de volta para o pátio, pela taxiway. 11 – Bequilha – No trem de pouso convencional, é a roda situada na cauda do avião. No trem de pouso triciclo, esta mesma roda fica no nariz do avião. 12 – Sistema – Espécie de superestrutura que engessa a estrutu-ra (instituição). 13 – Baixo clero – Entre oficiais, capitães e tenentes. 14 – Código alfanumérico – Sequência de números e letras que identificam peças e componentes do avião. 15 – Cassino – Antiga denominação dos alojamentos militares. 16 – Pré-voo e pós-voo – Inspeções antes e depois do voo. 17 – Check list – Série de verificações que um tripulante lê e o outro executa. A primeira delas é antes do primeiro voo do dia, até a partida dos motores; a segunda, antes e depois da decola-gem; a terceira, nos procedimentos de descida e aproximação para o pouso; e a quarta, até a parada dos motores. 18 – Descarenar o motor – Retirar as carenagens metálicas de proteção do motor. Carenar é o processo inverso. 19 – Cruz vermelha – Sinal convencional colocado no relatório de voo indisponibilizando a aeronave para o voo.

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20 – Pilonar –No avião com trem de pouso convencional (11), se, durante o taxi (10), o piloto acelerar bruscamente, poderá ocasi-onar o desastre conhecido como pilonagem: o avião fica com o motor cravado no solo e a cauda suspensa no ar. 21 – Laranjeira, ratão ou rato de quartel – morador da caserna. 22 – Voo de experiência – voo feito para avaliação de performan-ce após certos procedimentos de manutenção. 23 – Chandelle – manobra que consiste em picar (descer) ligei-ramente o avião e iniciar uma curva ascencional, pondo-se a 180º da direção original do voo e nivelando em uma altitude superior. 24 – Alfabético fonético aeronáutico internacional: A – Alfa; B – Bravo; C – Charlie; D – Delta; E – Echo (Eco); F – Foxtrot (Fox); G – Golf; H – Hotel; I – Índia; J – Juliett; K – Kilo; L – Lima; M – Mike; N – November; O – Oscar; P – Papa; Q – Quebec; R – Ro-meo; S – Sierra; T – Tango; U – Uniform; V – Victor; W – Whisky; X – X-Rey (ex-rei); Y – Yankee; Z – Zulu. 25 – Clareza 5/5 – Nas comunicações via fonia, significa clareza 5 e intensidade 5. A clareza e a intensidade, para quem recebe, variam de 1 (a mais baixa), a 5 (a mais alta). 26 – Peso de decolagem – É o peso real com o qual o avião vai decolar, e não pode exceder certos limites: peso do avião + peso do combustível + peso da carga + peso dos passageiros. 27 – Gerenciamento de cabina – Depois de incontáveis acidentes e incidentes, por erros dos comandantes, quando nenhum tripu-lante tinha coragem de chamá-los à atenção, o gerenciamento de cabina foi implantado para, de fato, fazer a tripulação agir como equipe, em prol da segurança de voo. 28 – Unidades celulares – Unidades de apoio, que dão suporte para o combate por oito dias, como a Unidade Celular de Supri-mento e Manutenção (UCM), a Unidade Celular de Material Bélico (UCB) e a Unidade Celular de Intendência (UCI). 29 – CB – Nuvem carregada (cúmulo-nimbo). 30 – Banho a comando. Nos acampamentos, a escassez de água determina o banho coletivo (um militar para cada chuveiro), e feito em três tempos: um minuto de água, para lavar tudo; um minuto sem água, para ensaboar tudo; e finalmente um minuto de água para enxaguar tudo. 31 – Flap – Dispositivo na parte traseira das asas do avião, co-mandado da cabina, que, atuando como freio aerodinâmico, au-

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menta a superfície da asa, dando mais sustentação em baixas velocidades, como nos procedimentos para o pouso. 32 – Biela – Em um motor a explosão, é a peça que faz a ligação entre o pistão e o virabrequim, transformando o movimento de vai e vem do pistão, dentro do cilindro, em circular do virabre-quim, que é o eixo do motor. 33 – Taifeiro – militar de especialidades, como: cozinheiro, copei-ro, arrumador, barbeiro, despenseiro e garçon. 185