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Milton Santos Por uma outra globalização do pensamento único

Milton Santos - Por uma outra globalização [LIVRO]

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Mi l ton S a n t o s

Por uma outra

globalização

do pensamento único

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2 8 4 5 2

CIP-Brasil. Catalogaçao-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Santos, Milton

S236p Por uma outra globalização: do pensamento único

6' ed.à

consciência universal /Milton Santos. - 6* ed. - Rio

de Janeiro: Record, 2001.

ISBN 85-01-05878-5

1. Globalização. 2. Civilização moderna. 3.

Política econômica. 4. Ciência política. I. Título.

CDD - 303.4

00-0220 CDU - 316.42

Copyright © 2000 by Milton Santos

Capa: Campos Gerais/Washington Lessa

Direitos exclusivos desta edição reservados pela

DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.

Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000

Impresso no Brasil

ISBN 85-01-05878-5

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL

Caixa Postal 23.052

Rio de Janeiro, RJ - 20922-970EDITORA AFILIADA

Sumário

Prefácio 11

I INTROD UÇÃO GERAL 17

1 . O mundo como ábula, como perversidade e como possibilidade

O mundo tal como nos fazem crer: a globalização como fábula

O mun do como é: a globalização com o perversidade 19

O mun do como pode ser: uma outra globalização 20

I I A PROD UÇÃO DA GLOBALIZAÇÃO 2 3

Introdução 2 3

2 . A unicidade técnica 2 4

3 . A convergência dos momentos 27

4 . Omotor único 2 9

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6 M I L T O N S A N T O S

5. A cognoscibilidade do planeta 3 1

6 . Um período que é uma crise 3 3

I H U M A G L O B A L IZ A Ç Ã O P E RV E R SA 3 7

Introdução 3 7

7. A tirania da informação e do dinheiro e o atual sistema ideológico 3 8

A v io lência da in formação 38

Fábulas 40

A v io lência do d inheiro 4 3

As percepções fragmentadas e o d iscurso ún ico do "mundo " 4 4

8. Competitividade, consumo, confusão dos espíritos, globalitarismo 4 6A competit iv idade, a ausência de compaixão 4 6

O co n su m o e o s eu d esp o t i sm o 48

A in formação to ta li tária e a confusão dos esp íritos 5 0

D o i m p er i a l i sm o a o m u n d o d e h o j e 5 1

Globa litarismos e to ta l i tarismos 53

9 . A violência estrutural e a perversidade sistêmica 5 5

O dinheiro em estado puro 56

A competit iv idade em estado puro 57

A potência em estado puro 58

A perversidade sistêmica 5 8

1 0 . Da política dos Estados à política das empresas 6 1

Sistemas técn icos , s istemas f i lo só ficos 6 2

Tecnociência , g loba lização e h istória sem sentido 6 4

^~^A s empresas g loba is e a morte da po l ít ica .67

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A ÇÃ O

1 1 . Em meio século, três definições da pobreza 6 9

A pobreza " inclu ída" 70

A marg ina lidade 70

A pobreza estrutura l g loba lizada 72

O papel dos in telectua is 74

1 2 . O que azer com a soberania 7 6

I V O T E R R IT Ó RIO D O D IN H E IR O E D A F R A G M E N TA Ç Ã O 7 9

Introdução 7 9

1 3 . O espaço geográfico: compartimentação e ragmentação 8 0

A compartime ntação: passado e presente 82

Rapidez, f lu idez, fragmentação 83C o m p et i t i v i d a d e versus so l idariedade 85

1 4 . A agricultura científica globalizada e a alienação do território 8 8

A demanda ex terna de raciona lidade 89

A cidade do campo 91

1 5 . Compartimentação e ragmentação do espaço: o caso do Brasil 92

O papel das lóg icas exógenas 9 2

As d ia lét icas endógen as 9 4

1 6 . O território do dinheiro 1 1 6

D e f i n i ç õ e s 1 1 6

O d inheiro e o território : s i tuações h istóricas 9 7

Metam orfoses das duas ca tegorias ao longo do tempo 9 8

O d inheiro da g loba lização 1 00

Situações reg iona is 1 02

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8 M I L T O N S A N T O S

Efeitos do d inheiro g loba l 1 04

E p í l o g o 1 0 4

1 7. Verticalidades e horizontalidades 1 0 5

As vertica l idades 1 05

As horizonta l idades 1 08

A b u sca d e u m sen t i d o 1 1 1

1 8 . ^4 esquizofrenia do espaço 1 1 2

Ser cidadão num lugar 1 1 3

O cotid iano e o território 1 1 4

Um a pedagog ia da ex istência 1 1 6

V L IM IT E S A G L O B A LIZ A ÇÃ O P E RV E R SA 1 1 7

Introdução 1 1 7

1 9 . A variável ascendente 1 1 8

2 0 . Os limites da racionalidade dominante 1 2 0

2 1 . O imaginário da velocidade 1 2 1

Velocidade: técn ica e poder 1 22

D o relóg io despótico às tempora lidades d ivergentes 1 24

2 2 . J u s t - i n - t i m e v e r s u s o cotidiano 1 2 6

2 3 . Um emaranhado de técnicas: o reino do artifício e da escassez

D o artif ício à escassez 1 28

D a e sca s sez a o en t en d i m en t o 1 3 0

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç ÃO

2 4 . Papel do s pobres na produção do presente e do uturo 1 3 2

2 5 . A metamorfose das classes médias 1 3 4

A i d ad e d e o u ro 1 3 5

A escassez chega às classes médias 1 37U m d a d o n o v o n a p o l ít i ca 1 3 9

V I A T R A NS IÇ Ã O E M M A R C H A 1 4 1

Introdução 1 4 1

2 6 . Culturapopular, período popular 1 4 2

Cultura de massas, cu ltura popular 1 43

A s co n d i çõ es em p í r i ca s d a m u t a çã o 1 4 5

A p reced ên c i a d o h o m em e o p er í o d o p o p u la r 1 4 7

2 7. A centralidade da periferia 1 4 9

L i m i t e s à co o p era çã o 1 4 9

O desa f i o a o S u l 1 5 1

2 8 . A nação ativa, a nação passiva 1 5 4

Oca so do projeto naciona l? 1 55

Alienação da nação a tiva 1 55

Conscie ntização e riqueza da nação passiva 1 57

2 9 . A globalização atual não é irreversível 1 5 9

A disso lução das ideo log ias 1 59

A pertinência da utop ia 1 6 0

Outr os usos possíveis para as técn icas a tua is 1 6 3

Geografia e aceleração da h istória 1 6 5

U m n o v o m u n d o p o s sí v e l 1 6 7

 

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M I L T O N S A N T O S

Prefácio

Este l ivro quer se r uma re f lexão independente sobre o nosso

t e mp o , um pe ns a me n t o s ob r e o s s e us f unda m e n t os m a t e r ia i s e

po l í t i c os , uma von t a de de e xp l i c a r o s p r ob l e ma s e do r e s do

mu nd o a tua l . Ma s, apesar das di f iculdades da e ra prese nte , q ue r

t a mb é m s e r um a me ns a g e m por t a do r a de r a z õe s ob je t iva s pa r a

p r os s e gu i r v i ve ndo e l u t a ndo .

O t r aba lho inte lec tua l no qua l e le assenta é f ruto de nossa

dedicação ao entendimento do que hoje é o espaço geográf ico,

mas é também t r ibutá r io de out ras r ea l idades e disc ipl inas aca

dê mi c a s .

Dife rentemente de out ros l ivros nossos , o le i tor não encon

trará aqui listagens copiosas de citações. Tais livros enfocavam

questões da soc iedade , verdade i ras teses , i s to é , demonst rações

sustentadas e ambic iosas , di r igidas sobre tudo à seara acadêmi

ca , levando, por i sso, o autor a f azer , ao pequeno mundo dos

colegas , a concessão das bibliograf ias copiosas . Todo m un do sabe

que es ta se tornou quase uma obr igação de scholarship, j á que a

academia gosta mui to de c i tações , quantas vezes oc iosas e a té

mesmo r idículas . Sem dúvida , es te l ivro também se di r ige a es

tudiosos , mas sobre tudo dese ja a lcançar o vas to mundo, o que

3 0 . A história apenas começa 1 7 0

A humanidade como um b loco revo lucionário

A no v a co n sc i ên c i a d e s er m u n d o 1 7 2

A grande mutação contempor ânea 1 73

 

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1 2 M I L T O N S A N T O S

dispensa a obr igação cer imonia l das r e fe rênc ias . Não quer i sso

dizer que o autor imagine haver soz inho redescober to a roda ;

sua exper iênc ia em di fe rentes momentos do século e em diver

sos pa íses e cont inentes é também a exper iênc ia dos out ros a

quem leu ou escutou. Mas a or igina l idade é a inte rpre tação ou aênfase própr ia , a forma individua l de combinar o que exis te e o

que é v i s l umbr a do : a p r óp r i a de f i n i ç ã o do que c ons t i t u i uma

idéia.

Este l ivro r esul ta de um longo t r aba lho, á rduo e agradáve l .

A maior ia grand e de seus capí tulos é inédi ta em sua forma a tua l .

E é t a mbé m , de a l gum mo do , um a r e e s c ri t u r a de a u l a s , c on f e

rências , ar tigos de o rna is e revistas, entrevista s à míd ia, cada qual

ofe recen do u m níve l de discurso e a r espec t iva di f iculdade . S o

mos mui t í s s i mo g r a t os a t odos o s que c o l a bo r a r a m pa r a e s s e

diá logo e a té me sm o àque les que descon hec iam es ta r par t ic ipan do de uma t roca . Dentre os pr imeiros , quero des tacar os a tua is

c ompa n he i r os do p r o j e t o a c a dê mi c o a mbi c ios o que , de s de 1983 ,

ve nho c onduz i ndo no D e pa r t a me n t o de G e ogr a f i a da U n i ve r

s i da de de S ã o P a u l o : mi nh a i nc ans á ve l co l a bo r a dor a , d ou t o r a

Mar ia Laura Si lve ira , qu e leu o conjun to d o manu scr i to , e a pro

fessora douto ra Mar ia Angela Faggin Pere i ra Le i te , ass im co mo

a s dou t o r a nda s A dr i a na Be r na r de s , C i l e ne G ome s e Món i c a

A r r oyo e o s me s t r a ndos E l i z a A l me i da , F á b i o Con t e i , F l á v i a

G r i mm, L í d i a A n t ong i ova nn i , Ma r c os X a v i e r , P a u l a Bor i n e

Sora ia Ramos. Ao Depar tamento de Geograf ia da Faculdade deFi losof ia , Le t ras e Ciênc ias Humanas que me acolhe e es t imula

e par t icula rmente ao Labora tór io de Geograf ia Pol í t ica e P lane

j a me n t o T e r r i t o r i a l e A mbi e n t a l ( L a bop l a n ) , c oo r de na do po r

me u ve l ho a mi go A r me n Ma mi gon i a n , vã o , t a mbé m, me us a g r a

de c i me n t os . E s t e s t a m bé m i nc l ue m os c o le ga s Ma r i a A dé l i a A

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 3

de Souza , Rosa Este r Rossini e Ana Clara Tor res Ribe i ro, com

qu e m c o l a bo r o há c er c a de 20 a nos .

A os c o l a bo r a dor e s g r a t u i t o s , e nc on t r a dos e m i núme r a s v i

a ge ns pe l o pa í s ou pa r t i c i pa n t e s de c on f e r ê nc i a s , de ba t e s e

c o n g r e s s o s , s o u t a m b é m d e v e d o r p e l a s s u a s i n t e r v e n ç õ e s es uge s t õe s . S ou g r a t o à Folha de S. Paulo e a o Correio Braziliense

pe l a a u t o r i z a ç ã o pa r a r e pub l i c a ç ã o de a r t i gos me us na s ua

f o r ma o r i g i na l ou mod i f i c a da . A i nda no c a p í t u l o dos a g r a de

c i me n t os , uma pa l a v r a e spe c i a l va i à ge ógr a f a F lá v i a G r i m m ,

que t e ve a pa c i ê nc i a de a c o l he r o s c a ns a t i vos d i t a dos de ma

nuscr i to de que resul ta es te l ivro. A ass is tênc ia da geógrafa

P a u l a B o r i n o u t r a v e z m o s t r o u - s e v a l i o s a . S o u , t a m b é m ,

m u i t o s e n s í v e l a o a p o i o r e c e b i d o d o C o n s e l h o N a c i o n a l d e

D e s e n v o l v i m e n t o C i e n t í f i c o e T e c n o l ó g i c o ( C N P q ) , d a F u n

d a ç ã o d e A m p a r o à P e s q u i s a d o E s t a d o d e S ã o P a u l o( F A P E S P ) . E s s a s a gê nc i a s nã o c on t r i bu í r a m d i r e t a me n t e pa r a

e s t e t r a ba l ho , ma s a p r oduç ã o i n t e l e c t ua l é s e mpr e un i t á r i a ,

u m a o b r a o u p e s q u i s a s e n d o s e m p r e u m s u b p r o d u t o d a s d e

m a i s . T a m b é m , c o m o s e m p r e , o e s t í m u l o r e c e b i d o d e m i n h a

m u l h e r , M a r i e H é l è n e , f o i m u i t o p r e c i o s o .

Ao cont rá r io de um autor f r ancês Joê l de Rosnay, que , no

prefácio ao seu livro Le Macroscope, suger iu aos seus le i tores co

meçar a le i tura por onde quisessem, devo fazer uma out ra ad

ver tênc ia . Se a lguém le r inic ia lmente ou separadamente os pr i

meiros capí tulos , pode considera r o autor pess imis ta ; e quemprefe r i r os úl t imos, poderá imaginá- lo um ot imis ta . Na rea l ida

d e , o que bus camo s foi , de um lado, t r a ta r da r ea l idade ta l co m o

ela é , a inda que se most re pungente ; e , de out ro lado, suger i r a

rea l idade ta l como e la pod e vi r a se r , a inda que para os cé t icos

nosso va t ic ínio a tua l apareça r i sonho.

 

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1 4 M I L T O N S A N T O S

A ênfase cent ra l do l ivro vem da convicção do pape l da ide

o l og ia na p r oduç ã o , d i s s e mi na ç ã o , r e p r oduç ã o e ma n u t e nç ã o da

globa l ização a tua l. Esse pape l é , tam bém , uma novidade d o n osso

tem po . Daí a necess idade de ana l i sar seus pr inc ípios fun dam en

tais, apontando suas l inhas de f r aqueza e de força . Nossa ins istênc ia sobre o pape l da ideologia der iva da nossa convicção de

q u e , diante dos mesmos mater ia is a tua lmente exis tentes , tanto

é poss íve l cont inuar a f azer do plane ta um infe rno, conforme

no Brasi l es tamos ass is t indo, como também é viáve l r ea l iza r o

seu contrário. Daí a relevância da política, isto é, da arte de pen

sar as mu dança s e de c r ia r as condições para torná- las e fe t ivas .

Al iás , as t r ansformações que a his tór ia ul t imamente vem mos

t r a ndo pe r mi t e m e n t r e ve r a e me r gê nc i a de s i tua ç õe s ma i s p r o

mi s s o r a s . P ode m ob j e t a r - nos que a noss a c r e nça na muda n ç a do

ho me m é injus ti f icada . E se o que es t iver mu dan do for o mu nd o?E s t a mos c onve nc i dos de que a muda nç a h i s t ó r i c a e m pe r s

pe c t i va p r ov i r á de um mov i me n t o de ba i xo pa r a c i ma , t e ndo

como a tores pr inc ipa is os pa íses subdesenvolvidos e não os pa

íses r icos; os deserdado s e os pob res e não os opule ntos e out ra s

c lasses obesas ; o indivíduo l iberado par t íc ipe das novas massas

e nã o o ho me m a c o r r e n t a do ; o pe ns a m e n t o l i v r e e nã o o d i s c u r

s o ún i c o .

Como acredi tamos na força das idé ias — para o bem e para

o mal — nesta f ase da his tór ia , em f i l igrana aparecerá como

c ons t a n t e o pa pe l do i n t e l e c t ua l no mundo de ho j e , i s t o é , opa pe l do pe ns a m e n t o l i v re . P o r i s s o , nos p r i me i r o s p r o j e t o s de

redação havia o intui to de dedicar um capí tulo exc lus ivo à a t i

v i da de i n t e l e c t ua l ge nu í na . T oda v ia a c he i me l ho r d i s c u t i r e s s e

pa pe l e m d i f e r e n t e s mome n t os da r e da ç ã o , s e mpr e que a oc a

sião se levantava.

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 5

O l ivro é formado de se is par tes , das qua is a pr imeira é a

i n t r oduç ã o . A s e gunda i nc l u i c i nc o c a p í t u l os e bus c a mos t r a r

como se deu o processo de produção da globa l ização. Este tema

já havia s ido t r a tado de a lguma forma em out ras publ icações e

l ivros meus. A te rce i ra par te , formada por se is capí tulos , buscaexpl ica r po r que a globa l ização a tua l é perver sa , fundad a n a t i r a

nia da informação e do dinhe i ro, na compet i t ividade , na confu

s ã o dos e s p í r i t o s e na v i o l ê nc i a e s t r u t u r a l , a c a r r e t a ndo o

desfa lec imento d a pol ít ica fe i ta pe lo Estado e a imposição d e um a

po l í t i c a c oma nda da pe l a s e mpr e s a s . A qua r t a pa r t e mos t r a a s

r e la ç õe s ma n t i da s e n t r e a e c onom i a c on t e mpor â n e a , s ob r e t ud o

as finanças , e o te r r i tór io . Esta par te é const i tuída d e se is capí tu

los, dos qua i s o ú l t i mo pode r i a t a m bé m s e inc l u i r na pa r t e s e

guinte , pois , por meio da noção de esquizof renia do te r r i tór io ,

mos t r a m os c om o o e s pa ç o ge ográ f ic o c ons t i t u i um d os l i mi t e sa essa globalização perversa. É essa idéia de limite à história atu

a l que se impõe na quinta par te , em que são most rados ao mes

mo t e m po os de s c a mi nhos da ra c i ona li da de domi na n t e , a e me r

gê nc i a de nova s va r i á ve i s c e n t r a i s e o pa pe l dos pobr e s na

prod ução do pres ente e do futuro. A sexta par te , uma espéc ie de

conc lusão, é dedicada ao que imaginamos se r , nes ta passagem

de século, a t r ansição em m archa . Aqui , os temas ver sados r ea l

çam as manifes tações pouc o es tudadas do pa ís de ba ixo, desde a

cul tura a té a pol í t ica , r ac ioc ínio que se apl ica tamb ém à próp r ia

per i f e ria do s is tema capi ta l is ta mund ia l , cuja cent ra l idade ap re

sentamos como um novo fa tor dinâmico da his tór ia . E , exa ta

mente , porque esses a tores , e f icazes mas a inda pouco es tuda

d o s , s ã o l a r ga me n t e p r e s e n t e s , que a c r e d i t a mos nã o s e r a

globa l ização a tua l i r r ever s íve l e es tamos convenc idos de que a

his tór ia univer sa l apenas começa .

 

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I N T R O D U Ç Ã O G E R A L

1. O mun do como fábula, como perversidade e

como possibilidade

V i v e m o s n u m m u n d o c o n fu s o e c o n f u s a m e n t e p e r c e b i d o .

H a v e r i a n i s t o u m p a r a d o x o p e d i n d o u m a e x p l i c a ç ã o ? D e u m

lado , é abus ivam ente men c io nad o o ex t r aord iná r io p rogre sso das

c iências e das técnicas , das quais um dos f ru tos são os novos

 

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1 8 M I L T O N S A N T O S

o que é imposto aos espí r i tos é um mundo de fabulações , que se

aprove i ta do a la rgamento de todos os contextos (M. Santos , A

natureza do espaço, 1996) para consagrar um discurso único. Seus

f unda m e n t os s ã o a i n f o r ma ç ã o e o s e u i mpé r i o , que e nc on t r a m

al ice rce na produção de imagens e do imaginár io , e se põem aos e r v iç o do i mpé r i o do d i nhe i r o , f unda do e s t e na e c onom i z a ç ã o

e na m oneta r iza ção da vida soc ia l e da vida pessoa l .

De fa to, se dese jamos escapar à c rença de que esse mundo

a s s i m a p r e s e n t a do é ve r da de i r o , e nã o que r e mo s a dmi t i r a pe r

ma nê nc i a de s ua pe r c e pç ã o e nga nos a , de ve mos c ons i de r a r a

e x i s tê nc i a de pe l o me n os t r ê s mu ndo s nu m s ó . O p r i m e i r o s e

r ia o mundo ta l como nos f azem vê- lo: a globa l ização como fá

bula ; o segundo se r ia o mundo ta l como e le é : a globa l ização

c om o pe r ve r s i dade ; e o t e r c e ir o , o mu nd o c o mo e l e pode s e r:

uma out ra globa l ização.

O m u n d o t a l c o m o n o s fa z e m c r e r :

a g l oba l i z a ç ã o c omo f á bu l a

Este mundo globa l izado, vis to como fábula , e r ige como ver

dade um cer to número de fantas ias , cuja r epe t ição, ent re tanto,

acaba por se tornar uma base aparentemente sól ida de sua inte r

pretação (Maria da Conce ição Tavares, Destruição não criadora, 1999).

A máquina ideológica que sus tenta as ações preponderantes

da a tua l idade é f e i ta de peças que se a l imentam mutuamente e

põe m e m mov i me n t o os e l e me n t os e s se nc ia i s à c on t i nu i da de do

sis tema. Dam os aqui a lguns exemplos . Fa la -se , por exe mplo , em

aldeia global para fazer crer que a difusão instantânea de notícias

rea lmente inform a as pessoas . A par t i r desse mi t o e do encu r ta -

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z AÇ Ã O 1 9

i ncnto das dis tânc ias — para aque les que rea lm ente po de m via ja r

— tam bém se di funde a noção de temp o e espaço cont ra ídos . É

como se o mundo se houvesse tornado, para todos , ao a lcance da

mão. U m m ercado avassa lador di to globa l é apresentado com o

capaz de hom ogene izar o plane ta quando , na verdade , as di fe renças

loca is são aprofundadas . H á um a busca de uni formid ade , ao se r

viço dos a tores hegemônicos , mas o mu nd o se torna men os un ido ,

tornando mais distante o sonh o de uma c idadania verdade i ramente

un i ve rs a l . E nqu a n t o i s s o , o c u l t o a o c ons um o é e s t i mu l a do .

Fa la - se , igua lmente , com ins is tênc ia , na mor te do Estado,

mas o que es tamos vendo é seu for ta lec imento para a tender aos

rec lamos da f inança e de out ros grandes inte resses inte rnac io

nais, e m de t r i me n t o dos c u i da dos c om a s popu l a ç õe s cu j a v i da

se tor na mais dif ícil . £T' í>b o£ , C^ OA ^^t>

E s s e s pouc os e xe mpl os , r e c o l h i dos num a l i s ta i n t e r mi ná ve l ,permi tem indagar se , no lugar do f im da ideologia proc lamado

pe l os que s us t e n t a m a bon da d e dos p r e s e n t e s p r oc e s s o s de

globa l ização, não es ta r íamo s, de fa to , diante da presença d e u ma

ideologização maciça, segund o a qua l a r ea l ização do m un do a tua l

exige como condição essenc ia l o exerc íc io de f abulações .

O mundo c omo é : a g l oba l i z a ç ã o c omo pe r ve r s i da de

D e f a t o , pa r a a g r a nde ma i o r pa r t e da huma n i da de agloba lização es tá se impo ndo com o um a fábrica de perver s idades .

O de s e mpr e g o c r e s c e n te t o r na - s e c rôn i c o . A pobr e z a a um e n t a

e as c lasses médias perde m e m qua l idade de vida . O sa lá r io m édi o

tend e a ba ixar. A fome e o desabr igo se genera l iz am e m tod os o s

c on t i ne n t e s . N ova s e n f e r mi da de s c omo a S I D A s e i n s t a l a m e

 

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2 0 M I L T O N S A N T O S

ve l ha s doe nç a s , s upos t a me n t e e x t i r pa da s , f a z e m s e u r e t o r no

t r iunfa l . A mor ta l idade infant i l pe rmanece , a despe i to dos pro

gressos médicos e da informação. A educação de qua l idade é cada

vez mais inacess íve l . Alas t r am-se e aprofundam-se males espi

r ituais e mora is , com o os egoísmos, os c inism os, a cor ru pção .A perver s idade s is têmica que es tá na r a iz dessa evolução

nega t iva da humanidade tem re lação com a adesão desenf reada

a os c ompor t a me n t os c om pe t i t ivos que a t ua l me n t e c a r a c te r i za m

as ações hegem ônicas . Todas essas maze las são di re ta ou ind i re

tamente imputáve is ao presente processo de globa l ização.

O mu n d o c o m o p o d e s er : u ma o u tr a g l o b a l i z a ç ã o

T oda v ia , pod e mo s pe ns a r na c ons t r uç ã o de um ou t r o m un d o , me di a n t e um a g l oba li z a çã o ma i s huma n a . A s ba se s ma t e r i

a is do per íodo a tua l são, ent re out ras , a unic idade da técnica , a

c onve r gê nc i a dos mome n t os e o c onhe c i me n t o do p l a ne t a . É

nessas bases técnicas que o gran de capi ta l se apoia para con st rui r

a globa l ização perver sa de que fa lamos ac ima. Mas, essas mes

mas bases técnicas poderão se rvi r a out ros obje t ivos , se forem

postas ao se rviço de out ros fund ame ntos soc ia is e pol í t icos . Pa

rece que as condições his tór icas do f im do século XX aponta

vam para es ta úl t ima poss ibi l idade . Ta is novas condições tanto

s e dã o no p l a no e mp í r i c o qua n t o no p l a n o t e ó r i c o .C o n s i d e r a n d o o q u e a t u a l m e n t e s e v e r if i ca n o p l a n o

e mpí r i c o , pode mos , e m p r i me i r o l uga r , r e c onhe c e r um c e r t o

nú me r o de f a to s novos i nd ic a t ivos da eme r gê nc i a de um a no va

h i s t ó ri a . O p r i me i r o de s s e s f e nôme nos é a e no r me m i s t u r a de

povos, r aças , cul turas , gostos , em todos os cont inentes . A isso

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 2 1

se ac rescente , graças aos progressos da informação, a "mis tura"

de f ilosof ias , em de t r im ento do rac iona l i smo europe u. U m ou

t ro dado de nossa e ra , indica t ivo da poss ibi l idade de mudanças ,

6 a p r oduç ã o de um a popu l a ç ã o a g l ome r a da e m á r e as c a da ve z

m e n o r e s , o q u e p e r m i t e u m a i n d a m a i o r d i n a m i s m o à q u e l amistu ra entre pessoas e f ilosofias. As massa s, de qu e falava Or teg a

y Gasse t na pr imeira metade do século (L a rebelión de las masas,

1937 ), ga nha m um a nova qua l i da de e m v i r t ude da s ua a g l om e

ração exponencial e de sua diversif icação. Trata-se da existência

de um a ve r da de ir a s oc j od ive r s ida de , h i s t o r ic a me n t e m u i t o ma i s

s ignif icat iva que ap rop r ia biod iver s idade . Jun te - s e a esses f a tos

a e me r gê nc i a de uma c u l t u r a popu l a r que s e s e r ve dos me i os

técnicos antes exc lus ivos da cul tura de massas , permi t indo- lhe

exercer sobre es ta úl t im a uma verdade i ra r evanche o u vinganç a .

É sob re tais alicerces que se edif ica o dis curso d a escassez, af ina l descober ta pe las massas . A população aglom erada em pou cos

ponto s da super f íc ie da Ter ra const i tui um a das bases de r econ s

trução e de sobrevivência das relações locais, abrindo a possibili

dade d e utilização, ao serviço dos ho me ns, do sistem a técnico atual.

N o plan o teór ico, o qu e ver i f icamos é a poss ib i l idade de

p r oduç ã o de um novo d i s c u r s o , de uma nova me t a na r r at i va , u m

novo grande re la to . Esse novo discurso ganha re levânc ia pe lo

fa to de que , pe la pr imeira vez na his tór ia do homem, se pode

consta ta r a exis tênc ia de um a univer sa l idade empír ica . A un iver

sa l idade de ixa de se r apenas uma e laboração abst ra ta na mentedos f i lósofos para r esul ta r da exper iênc ia ordinár ia de cada

home m. D e t a l modo , e m um mundo da t a do c omo o nos s o , a

expl icação do acontecer po de se r f e i ta a par t i r de ca tegor ias d e

uma h i s t ó r i a c onc r e ta . É i s so , t a mb é m, q ue pe r mi t e c onhe c e r

as poss ibi l idades exis tentes e esc rever uma nova his tór ia .

 

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n

A P R O D U Ç Ã O D A G L O B A L IZ A Ç Ã O

I n t r o d u ç ã o

A g loba l i zação é , de ce r t a fo rma , o áp i ce do p rocesso de

internacional ização do mundo capi ta l i s ta . Para entendê- la , como,

de res to , a qu alqu er fase da h is tór ia , há dois e lem ento s fu nd am en

 

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2 4 M I L T O N S A N T O S

Só que a globa l ização não é apenas a exis tênc ia desse novo

s i s t e ma de t é c n i c a s . E l a é t a mbé m o r e s u l t a do da s a ç õe s que

a s s e gur a m a e me r gê nc i a de um me r c a do d i t o g l oba l , r e s pon

sáve l pe lo essenc ia l dos processos pol í t icos a tua lmente e f ica

zes . O s f a t o r e s que c on t r i bue m pa r a e xp l i ca r a a r qu i t e t u r a dagloba l ização a tua l são: a unic idade da técnica , a convergênc ia

dos m om e n t os , a c ognos c i b i li da de do p l a ne t a e a e x i s t ê nci a de

u m m o t o r ú n i c o n a h i s t ó r i a , r e p r e s e n t a d o p e l a m a i s - v a l i a

g l oba l i z a da . U m m e r c a d o g loba l u t i l i z a nd o e s s e s i s t e ma d e

t é c n i c a s a va nç a da s r e s u l t a ne s s a g l oba l i z a ç ã o pe r ve r s a . I s s o

poder ia se r di f e rente se seu uso pol í t ico fosse out ro. Esse é o

de ba t e c e n t r a l , o ún i c o qu e nos pe r m i t e t e r a e s pe ra nç a de u t i

l i z a r o s i s t e ma t é c n i c o c on t e mp or â ne o a pa r t i r de ou t r a s f o r

ma s de a ç ã o . P r e t e n de m os , a qu i , e n f r e n t a r e s s a d i s c us s ã o , a na

l i s a ndo r a p i da me n t e a l guns dos s e us a s pe c t os c ons t i t uc i ona i sma i s r e l e va n t e s .

2. A unicidade técnica

O desenvolvimento da his tór ia va i de par com o desenvol

vimento das técnicas . Kant diz ia que a his tór ia é um progresso

s e m f i m; a c re s c e n t e mos que é t a mb é m u m p r og r e s s o s e m f i mdas técnicas . A cada evolução técnica , uma nova e tapa his tór ica

se torna poss íve l .

A s t é c n i c a s s e dã o c omo f a mí l i a s . N unc a , na h i s t ó r i a do

homem, aparece uma técnica i solada ; o que se ins ta la são gru

pos de t é c n ic a s , ve r da de i r os s is t e ma s . U m e xe m pl o ba na l p ode

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A ÇÃ O 2 5

s e r da do c o m a f o ic e , a e nxa da , o a nc i nh o , que c ons t i t ue m, nu m

da do mo me n t o , uma f a mí li a de t éc n i c a s.

Essas f amí l ias de técnicas t r anspor tam uma his tór ia , cada

sis tema técnico representa uma época . Em nossa época , o que é

representa t ivo d o s is tema de técnicas a tua l é a chegada da técn i ca da informação, por meio da c iberné t ica , da informát ica , da

e le t rônica . E la va i permi t i r du as grandes coisas : a pr im eira é q ue

as diver sas técnicas exis tentes passam a se com unic ar en t re e las .

A técnica da informação assegura esse comérc io, que antes não

era poss íve l . Por out ro lado, e la tem u m pap e l de te rminan te so bre

o us o d o t e mpo , pe r mi t i ndo , e m t odo s o s l ugar e s , a c onve r gê n

c i a dos m om e n t o s , a s s e gu r a ndo a s i mu l t a ne i da de da s a ç ões e ,

por conseguinte , ace le rando o processo his tór ico.

Ao surgi r uma nova famí l ia de técnicas , as out ras não desa

pa r e c e m. Con t i nua m e x i s t i ndo , ma s o novo c on j un t o de i n s t r ume n t os pa s s a a s e r u s a do pe l os novos a t o r e s he ge môn i c os ,

e nqu a n t o os nã o he ge môn i c os c on t i nua m u t i l i z a ndo c o n j un t os

me n os a tua i s e me n os pode r os os . Q u a nd o um de t e r m i na do a t o r

não tem as condições para mobi l iza r as técnicas consideradas

ma i s a vanç a da s, to r na - s e , po r i s so me s m o , um a t o r de m e no r

i mpor t â nc i a no pe r í odo a t ua l.

N a his tór ia da huma nidad e é a pr imeira vez que ta l co njunto

de técnicas envolve o plane ta como um todo e f az senti r , ins tanta

neamente , sua presença . I sso, a l iás , contamina a forma de exis

tência das o utras técnicas, mais atrasadas. As técnicas característic a s do nos s o t e mpo , p r e s e n t e s que s e j a m e m um s ó pon t o do

te r r i tór io , têm uma inf luênc ia marcante sobre o r es to do pa ís , o

qu e é bem di fe rente das s i tuações ante r iores . Por exemplo , a es

trada de ferro instalada em regiões selecionadas, escolhidas estra

tegicamente , a lcançava uma par te do pa ís , mas não t inha u ma in-

 

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2 6 M I L T O N S A N T O S

f luência direta deter min ante sob re o resto do terr itório. Agora nã o.

A técnica da informação alcança a totalidade de cada país, direta

ou ind i re tamen te . Cada lugar tem acesso ao acontecer dos out ros .

O pr inc ípio de se let ividade se dá també m co mo pr inc ípio de hi

e ra rquia , porque to dos os out ros lugares são aval iados e devem sere fe ri r àque les dotados das técnicas hegem ônicas . Esse é um fe

nô me no novo n a his tór ia das técnicas e na his tór ia dos te r r i tór i

os . Antes havia técnicas hegemônicas e não hegem ônicas ; hoje , as

técnicas não hegemônicas são hegemonizadas . Na verdade , po

rém, a técnica não pode se r vis ta como um dado absoluto, mas

com o técnica já r e la tivizada , i s to é , ta l com o usada pe lo ho me m.

A s t é c n i c a s a pe na s s e r e a l i z a m, t o r na ndo- s e h i s t ó r i a , c om a

inte rmediação da pol í t ica , i s to é , da pol í t ica das empresas e da

pol í t ica dos Estados , conjunta ou separadamente .

P o r ou t r o l a do , o s i s t e ma t é c n i c o domi na n t e no mundo dehoje tem uma outra característica, isto é, a de ser invasor. Ele

não se conten ta em f ica r a li onde pr ime iro se ins ta la e busca es

pa lhar - se , na produçã o e no te r r i tór io . Pode nã o o conseguir , mas

é essa sua vocação, que é tamb ém funda men to da ação dos a tores

hegem ônicos , com o, por exemplo, as empresas globa is . Estas fu n

c ionam a par t i r de uma f ragmentação, já que um pedaço da pro

dução p ode se r f e ita na Tunís ia , out ro na M alás ia, out ro a ind a no

Paragua i, mas i s to apenas é poss íve l por que a técnica hegem ônica

de qu e fa lamos é presente ou pass ível de presença em tod a par te .

Tudo se jun ta e a r t icula depois median te a " inte l igênc ia" da f ir ma . Senão não poder ia haver empresa t ransnac iona l . Há , pois , um a

relação estreita entre esse aspecto da econo mia d a globalização e a

na tureza do fenômeno técnico cor respo nden te a es te per íod o his

tórico. Se a produção se fr agmenta tecnicamente , há , do o ut ro lado,

uma unidade pol í t ica de comando. Essa unidade pol í t ica do co-

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 2 7

mando func iona no inte r ior das f i rmas, mas não há propr iamen

t e uma un i da de de c oma nd o do m e r c a do g l oba l . Ca da e mpr e s a

c oma nda a s r e s pe c t i va s ope r a ç õe s de n t r o da s ua r e s pe c t i va

topologia , i s to é , do co njunto de lugares da sua ação, enq uan to a

ação dos Estados e das ins t i tuições supranac iona is não basta paraimpor uma ordem globa l . Levando ao ext remo esse r ac ioc ínio,

poder - se - ia dizer que o merc ado globa l não exis te com o ta l .

Há uma re lação de causa e e fe i to ent re o progresso técnico

a t ua l e a s de ma i s c ond i ç õe s de i mp l a n t a ç ã o do a t ua l pe r í odo

his tór ico. É a par t i r da unic idade das técnicas , da qua l o c om pu

tador é um a peça cent ral , que surge a poss ibi lidade de exis t ir u ma

f inança univer sa l , pr inc ipa l r esponsáve l pe la impo sição a tod o o

globo de uma mais-va l ia mundia l . Sem e la , se r ia também im

possíve l a a tua l unic idade do tempo, o acontecer loca l sendo

pe r c e b i do c omo um e l o do a c on t e c e r mund i a l . P o r ou t r o l a do ,sem a mais-va l ia globa l izada e sem essa unic idade do tempo, a

unicidade da técnica não ter ia ef icácia.

3 . A convergência dos momentos

A unicidade do tem po não é apenas o resultado de que, nos mais

diversos lugares, a hora d o relógio é a mesma . Nã o é some nte isso.Se a hora é a mesm a, convergem, também , os mome ntos vividos .

Há u ma conf luênc ia dos mom ento s com o resposta àqui lo que , do

po nto d e vista da física, chama -se de tem po real e, do po nto d e vis

ta histórico, será chamado de interdependência e solidariedade do

acontecer . Tomada com o fenôm eno f í s ico, a percepção do tem po

 

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2 8 M I L T O N S A N T O S

r ea l não só quer dizer que a hora dos r elógios é a mesma, m as q ue

pod emo s usar esses r e lógios múl t iplos de manei ra uni forme. Re

sultado d o progresso científ ico e técnico, cuja busca se acelerou co m

a Segunda Guerra, a operação planetária das grandes empresas glo

ba is va i revoluc ionar o m und o das f inanças, perm i t indo ao respect ivo mercado qu e func ione em diver sos lugares durante o dia in

te i ro . O t e mpo r e a l t a mbé m a u t o r iz a u s ar o me s mo m om e n t o a

partir de mú ltiplos lugares; e todos os lugares a partir de um só deles.

E, em amb os os casos, de forma co ncatenada e ef icaz.

C om essa grande mudan ça na his tór ia , torn am o-no s capazes ,

se ja onde for , de te r conhec imento do que é o acontecer do ou

t r o . Nu nc a ho uve antes essa poss ibil idade ofe rec ida pe la técnica à

nos s a ger a ç ão de t e r e m m ã os o c onhe c i me n t o i n s t a n t â ne o d o

acontecer do out ro . Essa é a grande novidad e , o que es tamos cha

ma n do de un i c ida de do t e mpo ou c onve rgê nc i a dos m om e n t os .A ace leração da his tór ia , que o f im do século XX tes te mun ha , vem

em grande par te dis to . Mas a informação ins tantânea e globa l izada

por e nqua n t o nã o é ge ne r a l i z a da e ve r a z po r que a t ua l me n t e

inte rmediada pe las grandes empresas da informação.

E quem são os a tores do tempo rea l? Somos todos nós? Esta

pe r gun t a é um i mpe r a t i vo pa r a que pos s a mos me l ho r c omp r e e n

der nossa época . A ideologia de um m un do só e da a lde ia globa l

c ons i der a o t e mpo r e a l c om o um pa t r i môn i o c o l e t ivo da h um a

nidade . M as a inda es tamo s longe desse idea l , todavia a lcançáve l .

A his tór ia é coman dada pe los grandes a tores desse tem po rea l ,

que são, ao mesmo tempo, os donos da ve loc idade e os autores

do discurso ideológico. Os homens não são igua lmente a tores

desse temp o rea l . F is icamente , i s to é , poten c ia lmen te , e le exis te

para todos . Mas e fe t ivamente , i s to é , soc ia lmente , e le é exc lud ente

e assegura exc lus ividades , ou, pe lo menos, pr ivi légios de uso.

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 2 9

Co mo e l e é u ti l iz a do po r u m n úm e r o r e duz i do de a t o r e s , de ve

mo s distinguir entre a noção de f luidez potencial e a no ção de f lui

dez e fet iva. Se a técnica c r ia aparentem ente para todos a poss ibi

l i da de da f l u i de z , que m, t oda v i a , é f l u i do r e a l me n t e ? Q ue

empresas são rea lmente f luidas? Que pessoas? Quem, de f a to ,ut i liza em seu favor esse tem po rea l? A quem , rea lm ente , cabe a

mais-valia cr iada a partir dessa nova possibilida de de utilização do

tempo? Quem pode e quem não pode? Essa discussão leva-nos a

um a out ra , na fase atua l do capi ta l i smo, ao tom arm os e m co nta a

emergênc ia de um no vo fa tor de te rminan te da his tór ia , r epresen

t a do pe lo que a qu i e s ta mos de nom i na ndo de motor único.

4 . O motor único

Este per íodo dispõe de um s is tema uni f icado de técnicas ,

ins ta lado sobre um plane ta informado e permi t indo ações igua l

mente globa is . Até que ponto podemos fa la r de uma mais-va l ia

à esca la mundia l , a tuando como um motor único de ta is ações?

Havia , com o imper ia l i smo, diver sos motores , cada qua l co m

sua força e a lcance próp r ios : o mo tor f r ancês , o mot or inglês , o

mo t o r a l e mã o , o mo t o r po r t uguê s , o bel ga , o e s pa nho l e t c , que

e r a m t odos mo t o r e s do c a p i t a l i s mo , ma s e mpur r a va m a s má qu i na s e o s home ns s e gundo r i t mos d i f e r e n t e s , moda l i da de s

d i f e r e n t e s , c ombi na ç õe s d i f e r e n t e s . H o j e ha ve r i a um mot o r

único que é , exa tamente , a menc ionada mais-va l ia univer sa l .

Esta tornou-se poss íve l porque a par t i r de agora a produção

se dá à esca la mundia l , por inte rmédio de empresas mundia is ,

 

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3 0 M I L T O N S A N T O S

que c om pe t e m e n t r e si s e gundo uma c onc or r ênc i a e x t r e m a me n

te f e roz , co mo jamais exis t iu . As que res is tem e sobreviv em são

a que l a s que ob t ê m a ma i s - va l i a ma i o r , pe r mi t i ndo - s e , a s s i m ,

c on t i nu a r a p r oc e de r e a c ompe t i r .

E s s e mo t o r ún i c o s e t o r nou pos s í ve l po r que nos e nc on t r a mos e m um novo pa t a ma r da i n t e r na c i ona l i z a ç ã o , c om uma

ve r da de i r a mund i a l i z a ç ã o do p r odu t o , do d i nhe i r o , do c r é d i t o ,

da d í v i da , do c ons umo , da i n f o r ma ç ã o . E s s e c on j un t o de

mund i a l i z a ç õe s , uma s us t e n t a ndo e a r r a s t ando a ou t ra , i m po n-

do- s e mu t ua me n t e , é t a mbé m um f a t o novo .

U m e l e m e n t o da i n t e r na c i ona l i z a ç ã o at r a i ou t r o , i mp õe

outr o, contém e é cont ido pe lo out ro . Esse s i s tema de forças po de

l e va r a pe ns a r que o mu nd o s e e nc a mi nha pa r a a lgo c omo um a

homog e ne i z a ç ã o , uma voc a ç ã o a um pa d r ã o ún i c o , o que s e r ia

de v i do , de um l a do , à mund i a l i z a ç ã o da t é c n i c a , de ou t r o , àmundia l ização da mais-va l ia .

Tudo isso é r ea l idade , mas também e sobre tudo tendênc ia ,

po r que e m ne nhum l uga r , e m ne nhum pa í s , houve c ompl e t a

inte rnac iona lização. O q ue há em toda par te é uma vocação às ma i s

diver sas combinações d e ve tores e formas de mund ia l ização.

P r e t e nde mos que a h i s t ó r i a , a go r a , s e j a mov i da po r e s s e

mo tor ún ico. Cabe , ass im, indagar qua l se ria a sua na tureza . Será

e le abst ra to? Qu e é essa mais-va l ia considerada ao níve l globa l?

Ela é fugidia e nos escapa, mas n ão é abstrata. Ela existe e se imp õe

como coisa r ea l , embora não se ja propr iamente mensuráve l , jáque e s t á s e mpr e e vo l u i ndo , i s t o é , muda ndo . E l a é " mund i a l "

porque ent re t ida pe las empresas globa is que se va lem dos pro

gressos c ient í f icos e técnicos disponíve is no mundo e pedem,

todos os dias , mais progresso c ient í f ico e técnico.

A a tua l compet i t ividade ent re as empresas é uma forma de

exercício dessa mais-valia universal, que se torna fugidia exata-

P O R U M A O U T R A G L O B A L I ZA Ç Ã O 3 1

me nt e po r que de i xa mos o mun do da c ompe t i ç ão e e n t r a mos no

mundo da compet i t ividade . O exerc íc io da compet i t ividade tor

na exponenc ia l a briga ent re as empresas e as con duz a a l ime nta r

uma demanda diuturna de mais c iênc ia , de mais tecnologia , de

me lhor organização, para mante r - se à f r ente da cor r ida .Qu and o, na u niver s idade , somos sol ic i tados todos os dias a t r a

balhar para melhorar a produtividade como se fosse algo abstrato e

individual, estamos impelidos a oferecer às grandes empresas pos

sibilidades ainda maiores de aumentar sua mais-valia. Novos labo

ratórios são chamados a encontrar as novas técnicas, os novos ma

teriais, as novas soluções organizacionais e políticas que perm itam

às empresas fazer crescer a sua produ tividad e e o seu lu cro. A cada

avanço de um a empresa , out ra do mes mo ramo sol ic ita inovações

que lhe permitam passar à frente da que antes era a campeã. Por

isso, tal mais-valia está sem pre corre ndo , quer dizer , fugindo para af rente . U m cor te no temp o é idea lmente possíve l , mas es tá longe

de expressar a realidade atual cruelmente instável. Por isso não se

pod e, desse mod o, medi-la, m as ela existe. Se ela pod e parecer abs

trata, a mais-valia agora universal na verdade se impõe como um

dado emp ír ico, obje t ivo, quan do ut i l izada no processo da pro du

ção e como resul tado da compet i t ividade .

5 . A cognoscibilidade do planeta

O pe r í odo h i s t ó r i c o at ua l va i pe r mi t i r o que ne nh um ou t r o

per íodo ofe receu ao homem, i s to é , a poss ibi l idade de conhecer

o plane ta extensiva e aprofundadamente . I s to nunca exis t iu an-

 

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3 2 M I L T O N S A N T O S

t es , e deve-se , exa tamente , aos progressos da c iênc ia e da técn i

ca (melh or a inda , aos progressos da técnica devidos aos pro gres

sos da c iênc ia ) .

Esse per íodo técnico-c ient í f ico da his tór ia permi te ao ho

me m nã o a pe na s u t i l i z a r o que e nc on t r a na na t u r e z a : novosmater ia is são c r iados nos labora tór ios como um produto da in

t e l igê nc i a do h om e m, e p r e c e de m a p r oduç ã o dos ob j e t o s . A t é a

nossa geração, ut i l izávamos os mate r ia is que es tavam à nossa

disposição. Mas a par t i r de agora podemos conceber os obje tos

que de s e j a mos u t i l i za r e e n t ã o p r oduz i m os a ma t é r i a - p r i ma i n

dispensá vel à sua fabricação. Sem isso não ter ia sido possível fazer

os sa té l ites que fotografam o plane ta a inte rva los r egula res , per

mi t i ndo u ma visão mais comp le ta e de ta lhada da Terra . Por m eio

dos sa té l i tes , passamo s a conh ecer tod os os lugares e a observ ar

out ros as t ros . O func ionamento do s is tema sola r torna- se maispercept íve l , enqu anto a Ter ra é vis ta em de ta lhe ; pe lo f a to de qu e

os s a t é l i t e s r e pe t e m s ua s ó r b i t a s , pode mos c a p t a r mome n t os

sucess ivos , i s to é , não mais apenas r e t r a tos momentâneos e fo

tografias i soladas do plane ta . I sso não qu er dizer que t enh am os,

ass im, os processos his tór icos que movem o mundo, mas f ica

mos ma i s pe r t o de i de n t i f i c a r mome n t os de s s a e vo l uç ã o . O s

ob j e t os r et r a t ados nos dã o ge ome t r í a s , nã o p r op r i a me n t e ge o

gra f ias , porque nos chegam como obje tos em s i , sem a soc ieda

de vivendo d ent r o de les . O sent ido qu e têm as coisas , i s to é , seu

verdade i ro va lor , é o fundamento da cor re ta inte rpre tação detud o o que exis te . Sem isso, cor remo s o r i sco de não ul t r apassar

uma inte rpre tação cois ic is ta de a lgo que é mui to mais que uma

simples coisa , como os obje tos da his tór ia . Estes es tão sempre

mudando de s igni f icado, com o movimento das soc iedades e por

i n t e r mé d i o da s a çõe s huma na s s e m pr e r e nova da s .

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 3 3

C om a globa l ização e por m eio da empir ic ização da univ er sa

l idade que e la poss ibi l i tou, es tamos mais per to d e const rui r um a

filosofia da s técnicas e das ações correlatas, que seja ta m bé m um a

f o r ma de c onhe c i me n t o c onc r e t o do mundo t oma do c omo um

todo e das par t icula r idades dos lugares , que inc luem condiçõesfísicas, naturais ou artif iciais e condições políticas. As empresas,

na busca da mais-va l ia dese jada , va lor izam di fe rentem ente as lo

calizações. N ão é qual que r lugar qu e interessa a tal ou qu al f irma.

A cognosc ibi l idade do plane ta const i tui um dado essenc ia l à ope

ração das empresas e à produ ção d o s is tema his tór ico a tua l .

6 . Um período que é uma crise

A h i s t ó r i a do c a p i t a l i s mo pode s e r d i v i d i da e m pe r í odos ,

pedaços de tempo marcados por ce r ta coerênc ia ent re as suas

var iáve is s igni f ica t ivas , que evoluem di fe rentemente , mas den

t r o de um s i s t e ma . U m p e r í odo s uc e de a ou t r o , ma s nã o pod e

mo s e s que c e r que os pe r í odos s ã o , t a mb é m, a n t e c e d i dos e s u

cedidos por c r i ses, i s to é , mom ento s em que a ordem estabe lec ida

ent re as var iáve is , mediante uma organização, é compromet ida .

Torna- se impossíve l harmonizá- las quando uma dessas var iáve is

ga nha e xp r es s ã o ma i o r e i n t r oduz u m p r i nc í p i o de de s o r de m.Essa foi a evolução co m um a tod a a his tór ia do capi ta l i smo ,

até recentem ente . O perí odo atual escapa a essa característica po r

que e le é , ao mesmo tempo, um per íodo e uma c r ise , i s to é , a

p r e s e n t e f r a ç ã o do t e mpo h i s t ó r i c o c ons t i t u i uma ve r da de i r a

superpo sição ent re per íod o e c r ise , r eve land o carac ter í s t icas de

ambas essas s i tuações .

' F A C U L D A D E S CUR / T / B A

B I B L I O T E C A

 

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3 4 M I L T O N S A N T O S

Como per íodo e como cr ise , a época a tua l most ra - se , a l iás ,

com o coisa nova . Co mo per íodo , as suas variáve is ca rac te rí s t icas

ins ta lam-se em toda par te e a tud o inf luenc iam, di re ta ou indi re

t a me n t e . D a í a de nomi na ç ã o de g l oba l i z a ç ã o . Como c r i s e , a s

mesmas var iáve is const rutoras do s is tema es tão cont inuamentechocan do-se e exigindo novas def inições e novo s a r ranjos . Tra ta -

se , porém, de uma c r ise per s is tente dent ro de um per íodo com

caracte r ís t icas duradouras , me sm o se novos conto rnos ap arecem.

Este per íod o e esta c ri se são di fe rentes daque les do passado,

porque os dados motores e os r espec t ivos supor tes , que const i

tuem fa tores de mudança , não se ins ta lam grada t ivamente como

antes , nem tampouco são o pr ivi légio de a lguns cont inentes e

pa íses , como out rora . Ta is f a tores dão-se concomitantemente e

se r ea l izam com mui ta força em toda par te .

Def rontam o-nos , agora , com um a subdivisão ext rema do te mpo empír ico , cuja docum entação torn ou-s e poss íve l por me io das

t é c n i c a s c on t e mpor â ne a s . O c ompu t a dor é o i n s t r ume n t o de

me d i da e , a o me s m o t e mpo , o c on t r o la do r do us o d o t e mp o . E s s a

mul t ipl icação do tem po é , na verdade , potenc ia l , porque , de f a to ,

cada a tor—pessoa , empresa , ins t i tuição, lugar—uti l iza di fe ren

teme nte ta is poss ibil idades e r ea l iza di fe rentem ente a ve loc idade

do m un do . Por out ro lado, e graças sobre tudo aos progressos das

técnicas da informát ica , os fa tores hegem ônicos d e muda nça con

tagiam os demais, ainda que a presteza e o alcance desse contágio

se jam di fe rentes se gund o as empresas , os grupos soc iais , a s pessoas, os lugares . Por inte rm édio do d inhe i ro , o contágio das lógi

cas redu toras , típicas do processo de globalização, leva a toda par

te um nexo contábi l , que avassa la tudo. Os fa tores de mudança

ac ima enum erado s são, pe la mão dos a tores hegem ônicos , inco n

t roláveis , cegos , egois ticamente cont radi tór ios .

P O R U M A O U T R A G L O B A L I ZA Ç Ã O 3 5

O processo da c r i se é permanente , o que temos são c r i ses

sucess ivas . Na verdade , t r a ta - se de uma c r ise globa l , cuja evi

denc ia tanto se f az por meio de f enômenos globa is como de ma

ni fes tações par t icula res , nes te ou naque le pa ís , nes te ou naque

l e mo me n t o , m a s pa ra p r oduz i r o n ovo e s t á g i o de c r i s e. N a d a éd u r a d o u r o .

Então, nes te per íodo his tór ico, a c r i se é es t rutura l . Por i sso,

quando se buscam soluções não es t rutura is , o r esul tado é a ge

ração de mais c r i se . O que é considerado solução par te do ex

c l us ivo i n t e r e ss e dos a t o r e s he ge môn i c os , t e nde ndo a pa r t i c i pa r

de sua própr ia n a tureza e de suas própr ias ca rac te r ís t icas .

T i rania do dinh e i ro e t i rania da informação são os pi la res da

produção da his tór ia a tua l do capi ta l i smo globa l izado. Sem o

controle dos espí r i tos se r ia impossíve l a r egulação pe las f inanças .

Daí o pape l avassa lador do s is tema f inance i ro e a perm iss ividad e

d o c o m p o r t a m e n t o d o s a t o r e s h e g e m ô n i c o s , q u e a g e m s e m

contrapar t ida , levando ao aprofundamento da s i tuação, i s to é ,

da crise.

A assoc iação ent re a ti r ania do din he i ro e a t i r ania da infor

ma ç ã o c ond uz , de s s e mod o , à a c el e ra ç ã o dos p r oc e s s os he ge

môn i c os , l e g i ti ma dos pe l o " pe ns a me n t o ún i c o" , e nqua n t o os d e

mais processos acabam por se r deglut idos ou se adaptam pass iva

ou a t ivamente , tornando-se hegemonizados . Em outras pa lavras ,

os processos nã o hegem ônic os tend em se ja a desaparecer f i s ica

me nte , se ja a perman ecer , mas de forma sub ordinad a , exce to em

algum as áreas da vida social e em certas frações do terr itóri o o nd epod e m ma n t e r - s e r e l a t i va me n t e a u t ônom os , i s t o é , c a pa ze s de

um a reprod ução próp r ia . Mas ta l s i tuação é sem pre precár ia , se ja

po r qu e os r e s u l ta dos l oc a l me n t e ob t i dos s ã o me nor e s , s e ja p o r

que os respec t ivos agentes são perm anen tem ente am eaçados pe la

concor rênc ia das a t ividades mais poderosas .

 

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3 6 M I L T O N S A N T O S

N o per í odo his tór ico a tua l , o es t rutura l (di to dinâm ico) é ,

tam bém , c r í t ico. I sso se deve , ent re out ras r azões , ao fa to de qu e

a era presente se caracteriza pelo uso extremado de técnicas e de

norm as. O uso ext rem ado das técnicas e a proeminê nc ia do p ensa

me nto técnico cond uzem à necess idade obsessiva de norm as. Essapletora no rmativ a é indispensável à ef icácia da ação. C o m o , p o r é m ,

as a t ividades hegemôn icas tende m a um a cent ra lização, consecu

t iva à concent ração da economia , aumenta a inf lexibi l idade dos

compor tamentos , acar re tando um mal-es ta r no corpo soc ia l .

A isso se acrescente o fato de que, graças ao casamento entre

as técnicas normativas e a normalização técnica e política da ação

cor respo nden te , a própr ia polí t ica acaba por ins ta la r -se em todos

os interstícios do corp o social, seja com o necessida de para o exer

cício das ações domi nant es, seja com o reação a essas mes mas ações.

Mas n ão é propr iamen te de pol í t ica que se tr a ta , mas de s implesacúm ulo de normat izações par t icula r i s tas, conduz idas por a tores

pr ivados que ignoram o inte resse socia l ou qu e o t r a tam de m od o

residual. E uma outra razão pela qual a situação normal é de crise,

a inda que os f amosos equi l íbr ios macroeconômicos se ins ta lem.

O me s m o s i s t e ma i de o l óg ic o que j u s t i f ic a o p r oc e s s o de

globa l ização, a judando a considerá - lo o único caminho his tór i

co, acaba , também, por impor uma cer ta visão da c r i se e a ace i

tação dos r emédios suger idos . Em vi r tude disso, todos os pa í

ses, lugares e pessoas passam a se compor ta r , i s to é , a organ izar

sua ação, como se ta l "c r i se" fosse a mesma para todos e como

se a r ece i ta para a fas tá- la devesse se r gera lm ente a me sm a. Na

verdade , porém , a única c r i se que os r esponsáve is dese jam afas

ta r é a c r i se finance i ra e não qu a lque r out ra . Aí es tá , na verd ade ,

uma causa para mais aprofundamento da c r i se r ea l — econômi

ca , soc ia l, pol í t ica , mora l — qu e carac te r iza o noss o t em po .

m

U M A G L O B A L I Z A Ç Ã O P ER V E R SA

I n t r o d u ç ã o

O s ú l t i m o s a n o s d o s éc u l o X X t e s t e m u n h a r a m g r a n d e s

mudanças em toda a f ace da Ter ra . O mundo torna- se uni f icado

— em vi r tude das novas condições técnicas , bases sól idas para

uma a ç ã o huma na mund i a l i z a da . E s t a , e n t r e t a n t o , i mpõe - s e à

ma i o r pa r t e da huma n i d a de c om o um a g l obal i za ç ã o pe r ve rs a .

Consideramos, em pr imeiro lugar , a emergênc ia de uma du

pla t i rania , a do din he i ro e a da informação, int imam ente r e lac io

nadas . Ambas, juntas , fornecem as bases do s is tema ideológico q ue

legitima as ações mais características da época e, ao mesmo tem

p o , bus c a m c onf o r ma r s e gundo um n ovo ethos as relações sociais

e inte rpessoa is , inf luenc iando o cará te r das pessoas . A

compet i t ividade , sugerida pe la produção e pe lo consum o, é a fontede novos totalitar ismos, mais facilmente aceitos graças à confu

são dos espí r i tos qu e se insta la. Tem as mesmas o r igens a pr od u

ção , na base mes ma d a vida soc ia l, de um a violência es t rutura l ,

facilmente visível nas formas de agir dos Estados, das empresas e

dos indivídu os . A perver sidade s is têmica é um dos seus corolá r ios .

 

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3 8 M I L T O N S A N T O S

Dentro desse quadro, as pessoas sentem-se desamparadas , o

que tam bém const i tui uma inc i tação a que adotem , em seus co m

por tam entos ordinár ios , prát icas que a lguns decênios a t r ás e ram

mor a l m e n t e c onde na da s . H á u m ve r da de i r o r e tr oc e ss o qua n t o à

noção de bem públ ico e de sol idar iedade , do qua l é emb lemát ic oo encolhimento das funções soc ia is e pol í t icas do Estado com a

ampl iação da pobreza e os crescentes agravos à soberania, enq uan to

se amplia o papel político das empresas n a regulação da vida social.

7 . A tirania da informação e do dinheiro e o atual

sistema ideológico

Entre os fatores constitutivos da globalização, em seu caráter

perver so a tua l , encontram-se a forma como a informação é ofe

rec ida à hum anid ade e a emergênc ia do dinh e i ro em es tado p uro

com o mo tor da vida econômica e soc ial . São duas violênc ias cen

t ra i s , a l ice rces do s is tem a ideológi co que jus t i f ica as ações

hegemônicas e leva ao império das fabulações, a percepções frag

mentadas e ao discurso único do mu nd o, base dos novos tota l i ta

r i smos — is to é , dos globa li ta r ismos — a que es tamo s ass is t indo.

A violênc ia da informação

U m dos t r aços marcantes do a tua l per íodo his tór ico é, pois , o

pape l verdade i ramente despót ico da informação. C onfo rme já vi

m o s , as novas condiçõe s técnicas deveriam p erm itir a ampliaçã o d o

conh ecime nto do planeta, dos objetos qu e o formam, das sociedades

P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O 3 9

q u e o habi tam e dos ho me ns e m sua rea l idade int r ínseca . Todavia ,

nas condições atuais, as técnicas da informação são principalmente

ut i lizadas por u m pu nha do de a tores em função d e seus obje t ivos

particulares. Essas técnicas da informaç ão (p or enqua nto) são apro

pr iadas por a lguns Estados e por a lgumas empresas , aprofunda ndo

ass im os processos de c r iação de des igua ldades . E desse mo do que

a periferia do sistema capitalista acaba se torn and o aind a mais p eri

f ér ica , se ja porque não dispõe tota lmente d os novos meios de pro

dução, seja porque lhe escapa a possibilidade de controle.

O que é t r ansmit ido à maior ia da hum anid ade é , de f a to , um a

informação manipulada que , em lugar de esc la recer , confunde .

I sso tanto é mais grave porq ue , nas condições a tua is da vida eco

nôm ica e socia l, a informação const i tui um dado essenc ia l e im

presc indíve l . Mas na me dida em que o que chega às pessoas , com o

tam bém às empresas e ins t i tuições hegemonizad as , é , já , o r esul

tado de uma m anipulação, ta l informação se apresenta como ideo logia . O fa to de que , no m un do d e hoje , o discurso antecede q ua

se obr iga tor iam ente um a par te substanc ia l das ações hum ana s —

sejam e las a técnica , a produção , o cons um o, o pod er — expl ica o

porquê da presença genera l izada do ideológico em todos esses

ponto s . Não é de es t r anhar , pois , que rea l idade e ideologia se con

f unda m na a p r e c i a ç ã o do home m c omum, s ob r e t udo po r que a

ideologia se insere nos obje tos e apresenta - se com o coisa .

E s t a mos d i a n t e de um novo " e nc a n t a me n t o do mundo" , no

qua l o discu rso e a r e tór ica são o pr inc ípio e o f im. Esse imp era

t ivo e essa onipresen ça da informaç ão são ins idioso s , já qu e ainformação a tua l tem dois ros tos , um pe lo qua l e la busca ins

t rui r , e um o ut ro , pe lo qua l e la busca conven cer . Este é o t r aba

lho da publ ic id ade . Se a informação tem, ho je , essas duas ca ras,

a ca ra do convencer se torna mui to mais presente , na medida

em que a publ ic idade se t r ansformou em a lgo que antec ipa a

 

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4 0 M I L T O N S A N T O S

pr oduç ã o . B r i ga ndo pe l a s ob r e v ivê nc i a e he ge mon i a , e m f un

ç ã o da c ompe t i t i v i da de , a s e mpr e s a s nã o pode m e x i s t i r s e m

pub l i c i da de , que s e t o r no u o ne r vo do c om é r c i o .

H á u ma r e l a çã o ca r na l e n t r e o mun do da p r oduç ã o da no t í

c i a e o mu nd o da p r odu ç ã o da s c o is a s e da s no r ma s . A pub l i c i da de t e m, ho j e , um a pe ne t r a ç ã o mui t o g r a nde e m t oda s a s a t i v i

da de s . Antes , havia uma incompat ibi l idade é t ica ent re anunc ia r

e exercer ce r tas a t ividades , como na prof issão médica , ou na

educação. Ho je , propaga-se tud o, e a própr ia pol í t ica é , em gran

de par te , subordinada às suas r egras .

As mídias nac iona is se globa l izam, não apenas pe la cha t ice e

mesmice das fotograf ias e dos t í tulos , mas pe los protagonis tas

mais presen tes . Fa lsi f icam-se os eventos , já qu e não é pro pr ia

mente o f a to o que a mídia nos dá , mas uma inte rpre tação, i s to

é , a not íc ia . P ie r re Nora , em um boni to texto, cujo t í tulo é "O

re to rno do fa to" ( in História: Novos problemas, 197 4 ) , l e mbr a que ,

na a lde ia , o tes temunho das pessoas que ve iculam o que aconte

c e u pode se r c o t e ja do c om o t e s t e m unh o do v i z i nho . N u m a s o

c i e da de c ompl e xa c omo a nos s a , s ome n t e va mos s a be r o que

houve na r ua a o l a do do is d i as de po i s , me d i a n t e um a i n t e r p r e

tação marcada pe los humores , visões , preconce i tos e inte resses

da s a gê nc ia s . O e ve n t o j á é e n t r e g ue m a qu i a do a o l e i t o r , a o

ouv i n t e , a o te l e s pec t a do r, e é t a mb é m p or i s s o que s e p r od uz e m

no mundo de ho j e , s i mu l t a ne a me n t e , f á bu l a s e mi t os .

Fábulas

U m a dessas f abulações é a tão repe t ida idé ia de a lde ia globa l

( O c t á v i o I a nn i , Teorias d a globalização, 1996) . O fa to de que a

comunicação se tornou poss íve l à esca la do plane ta , de ixando

P O R U M A O U T R A G L O B A L I ZA Ç Ã O 4 1

saber ins tantaneamente o que se passa em qua lquer lugar , per

mi t iu que fosse cunhada essa expressão, quando, na verdade , ao

contrá r io d o que se dá nas verdade i ras a lde ias , é f r eqüe ntem ente

ma i s f ác il c omun i c a r c o m qu e m e s t á l onge do qu e c om o v i z i

n h o . Quando essa comunicação se f az , na r ea l idade , e la se dácom a inte rmediação de obje tos . A informação sob re o que aco n

tece não vem da inte ração ent re as pessoas , mas do que é ve icu

lado pe la mídia , uma inte rpre tação inte ressada , senão inte res

seira, dos fatos.

U m ou t r o m i t o é o do e s pa ç o e do t e mpo c on t r a í dos , g r a

ças , outra vez , aos prodígios da ve loc idade . Só que a ve loc idade

apenas es tá ao a lcance de um n úm ero l im i tado de pessoas , de ta l

forma que , segundo as poss ibi l idades de cada um, as dis tânc ias

têm s igni f icações e e fe i tos diver sos e o uso do mesmo re lógio

nã o pe r mi t e i gua l e c onomi a do t e mpo .A l de i a g l obal t a n t o qua n t o e s pa ç o - t e mpo c on t r a í do pe r mi

t i r i a m i ma g i na r a re a l iz a ç ão do s onh o de um mu nd o só , j á que ,

pe las mãos do mercado globa l , coisas , r e lações , dinhe i ros , gos

tos la rgamente se di fundem por sobre cont inentes , r aças , l ín

guas , r e l igiões , co mo se as par t icula r idades tec idas ao longo de

séculos houvessem s ido todas esgarçadas . Tudo se r ia conduz ido

e , a o me s mo t e mpo , homoge ne i z a do pe l o me r c a do g l oba l r e

gulador . Será , todavia , esse mercad o regulado r? Será e le globa l?

O fa to é que apenas t r ês praças , Nova Iorque , Londres e Tó

q u i o , conc ent ram mais de metad e de todas as t r ansações e ações;as emp resas t r ansnac iona is são responsáve is pe la maior par te do

c omé r c i o d i t o m und i a l ; o s 4 7 pa ís e s me nos a va nç a dos r e p r e s e n

t a m un t o s a pe nas 0 , 3% do c omé r c i o mund i a l , e m l uga r dos 2 , 3%

em 1960 (Y. Ber th e lot , "Globa l isa t io n e t r égiona l i sa t io n: u ne

mi s e e n pe r s pe c t i ve " , i n L'intégration régionale dans le monde,

 

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4 2 M I L T O N S A N T O S

G E M D E V , 1 9 9 4 ) , e n q u a n t o 4 0 % d o c o m é r c i o d o s E s t a d o s

U ni dos oc o r r e m no i n t e r i o r da s e mpr e s a s ( N . Choms ky , Folha

de S. Paulo, 25 de abr i l de 1993) .

Fa la -se , tamb ém, de um a hum anidad e deste rr i toria l izada , u ma

de suas características sen do o desfalecim ento das fronteiras c om oimperativo da globalização, e a essa idéia dever-se-ia uma outra: a

da existência, já agora, de um a cidadania universal. D e fato, as fron

te i r as mudaram de s igni f icação, mas nunca es t iveram tão vivas ,

na med ida em que o p rópr io exerc íc io das a tividades globa l izadas

não presc inde de u ma ação governamenta l capaz de torná- las e fe

t ivas dent ro d e um te r r i tór io . A hum anida de deste r r i tor ia l izada é

apenas um mito. Por out ro lado, o exerc íc io da c idadania , me sm o

se avança a noção de mo ra l idade inte rnac iona l , é , a inda , um fa to

qu e depen de da presença e da ação dos Estados nac iona is .

E s s e mundo c omo f á bu l a é a l i me n t a do po r ou t r os i ng r e d i e n t e s , ent re os qua is a pol i t ização das es ta tí s t icas , a começar pe la

forma pe la qua l é f e i ta a comp aração da r iquez a ent re as nações .

N o f undo , na s c ond i ç õe s a t ua i s , o c ha ma do P r odu t o N a c i ona l

Br u t o é a pe na s um nome f a n t a s i a do que pode r í a mos c ha ma r

de p r od u t o g l oba l , j á que a s qua n t i da de s que e n t r a m ne s s a c on

tabi l idade são aque las que se r e fe rem às operações q ue cara c te

r izam a pró pria globalizaç ão.

Af i rma-se , também , que a "mor te do Estado " melhorar ia a vida

dos hom e ns e a sa úde das e mpr e s as , na me d i da e m que pe r mi t i

r ia a ampl iação da l iberdade de produz i r , de co nsu mir e de viver .

Ta l neol ibera l i smo se r ia o fundame nto da democrac ia . Obs ervan

do o func ionamento concre to da soc iedade econômica e da soc i

edade c ivi l , não é di f íc i l consta ta r que são cada vez em menor

nú me ro as empresas qu e se benef ic iam desse desmaio do Estad o,

enquanto a des igua ldade ent re os indivíduos aumenta .

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 4 3

Sem essas f ábulas e mi tos , es te per íodo his tór ico n ão exis t i r ia

com o é . Tam bém não se r ia poss íve l a violênc ia do dinh e i ro. Este

só se torna violento e t i r ânico porq ue é se rvido pe la violênc ia da

informação. Esta se prevalece do fato de que, no f im do século

XX, a l inguagem ganha autonomia , const i tuindo sua própr ia le i .I sso fac i l i ta a ent ronização de um subsis tema ideológico, sem o

qual a globalização, em sua forma atual, não se explicaria.

A v i o l ê nc i a do d i nhe i r o

A inte rnac iona l ização do capi ta l f inancei ro ampl ia - se , r ecen

tem ente , por vár ias r azões . Na fase his tórica a tua l , a s m egaf i rmas

devem, obr iga tor iamente , preocupar - se com o uso f inance i ro do

d i nhe i r o q ue ob t ê m . A s g r a nde s e mpr e s a s s ão , qua s e que c om puls or iam ente , ladeadas pôr grandes empresas f inance iras .

Essas empresas f inance i ras das mul t inac iona is ut i l izam em

gr a nde pa r t e a poupa nç a dos pa ís e s e m que s e e nc on t r a m. Q u a n

do uma f i rma de qua lquer out ro pa ís se ins ta la num pa ís C ou

D , as poup anças inte rnas passam a par t ic ipar da lógica f inance i

r a e d o t r a b a l h o f i n a n c e i r o d e s s a m u l t i n a c i o n a l . Q u a n d o

expa t r iado, esse dinhe i ro pode regressar ao pa ís de or igem na

forma de c rédi to e de dívida , quer dizer , por inte rmédio das

grandes empresas globa is . O que se r ia poupança inte rna t r ans

forma-se em p oupan ça exte rna , pe la qua l os pa íses r ec ipiendar ios

dev em pagar jur os extor s ivos . O q ue sa i do pa ís co mo royalties,

i n t e l i gê nc i a c ompr a da , pa ga me n t o de s e r v i ç os ou r e me s s a de

lucros vol ta como crédi to e dívida . Essa é a lógica a tua l da

inte rnac iona l ização do c rédi to e da dívida . A ace i tação de um

mo de l o e c on ômi c o e m que o pa ga me n t o da d í v ida é p r io r i t á r io

impl ica a ace i tação da lógica desse dinhe i ro .

 

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4 4 M I L T O N S A N T O S

As percepções fragmentadas e o d iscurso

ú n i c o d o " mu n d o "

E a partir dessa generalização e dessa coisif icação da ideolo

gia que , de um lado , se mul t ip l icam as percepç ões f r agmentada s

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A ÇÃ O 4 5

e , de ou t r o , pode e s t a be l e c e r - s e um d i s c u r s o ún i c o do " mun

d o " , c om i mpl i c a ç õe s na p r oduç ã o e c onômi c a e na s v i s õe s da

h i s t ó r i a c on t e mpor â ne a , na c u l t u r a de ma s s a e no me r c a do

globa l .

As bases materiais históricas dessa mitif icação estão na real idade da técnica a tua l . A técnica apresenta - se ao hom em co m um

como um misté r io e uma bana l idade . De fa to, a técnica é mais

a c e it a do que c ompr e e nd i da . Co mo t u do pa r e c e de l a de pe nde r ,

e la se apresenta como uma necess idade univer sa l , uma presen

ça indiscut íve l , dotada de uma força quase divina à qua l os ho

me ns a c a ba m s e r e nde ndo s e m bus c a r e n t e ndê - l a . E um f a t o

c om um no c o t i d i a no de t odos , po r c ons e gu i n t e , um a ba na l i da

d e , mas seus fundamentos e seu a lcance escapam à percepção

imedia ta , da í seu mis té r io . Ta is ca rac te r í s t icas a l imentam seu

imaginár io , a l ice rçado nas suas r e lações com a c iênc ia , na suaexigênc ia de r ac iona l idade , no absolut i smo com que , ao se rviço

do me r c a do , c on f o r ma os c ompor t a me n t os ; t udo i s s o f a z e ndo

crer na sua inevi tabi l idade .

Quando o s i s tema pol í t ico formado pe los governos e pe las

e mpr e s a s u t i l i z a o s s i s t e ma s t é c n i c os c on t e mpor â ne os e s e u

imaginár io para produz i r a a tua l globa l ização, aponta -nos para

formas de re lações econômicas implacáve is , que não ace i tam

discussão e exigem obed iênc ia imedia ta , sem a qua l os a tores são

expulsos da cena ou permanecem escravos de uma lógica indis

pe ns á ve l a o f unc i ona me n t o d o s is t e ma c om o um t o do .É um a forma de tota l i ta r i smo mu i to for te e ins idiosa, po rqu e

se base ia em noçõe s qu e parecem cen t ra is à própr ia idé ia da de

mocrac ia — l iberdade de opinião, de imprensa , tole rânc ia —,

ut i l izadas exa tamente para supr imir a poss ibi l idade de conhec i

mento do que é o mundo, e do que são os pa íses e os lugares .

Na s cond ições atuais de econ om ia interna cional , o f inanceiro

ga nha uma e s pé c i e de a u t onomi a . P o r i s s o , a r e l a ç ã o e n t r e a

f inança e a prod ução , ent re o que agora se cham a econo mia rea l

e o mundo da f inança , dá lugar àqui lo que Marx chamava de

loucura especula t iva , fundada no pape l do dinhe i ro em es tadopur o . E st e se t o r na o c e n t r o do mu nd o . É o d i nhe i r o c om o , s i m

ples men te , dinhe i ro , r ec r iando seu fe t ichismo pe la ideologia . O

sis tema f inance iro desc obre fórmulas imaginosas , inven ta sem

pr e novos i n s t r ume n t o s , mu l t i p l ic a o que c ha m a de de r i va t ivos ,

qu e são formas sem pre renovadas de ofe r ta dessa mercad or ia aos

especuladores . O resul tado é que a especulação exponenc ia l as

s im redef inida va i se tornar a lgo indispensáve l , in t r ínseco, ao s i s

tema, graças aos processos técnicos da nossa época . E o tempo

rea l que va i perm i t i r a r apidez das operações e a vola t i l idade dos

asseis. E a f inança move a economia e a deforma, levando seustentáculos a todos o s aspec tos da vida . Por i sso, é l íc i to fa la r de

t i r an i a do d i nh e i r o .

S e o d i nhe i r o e m e s t a do pu r o s e t o r n ou de s pó t i c o , i s s o t a m

bé m s e de ve a o f a t o de que t udo s e t o r na va l o r de t r oc a . A

mone t a r i z a ç ã o da v i da c o t i d ia na ga nhou , no m un do i n t e i r o , um

e nor me t e r r e no n os ú l t i mos 25 a nos . E s s a p r e s e nç a do d i nhe i r o

em toda par te acaba por const i tui r um dado ameaçador da nossa

exis tênc ia cot idiana .

 

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4 6 M I L T O N S A N T O S P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 4 7

da compet i t ividade qu e carac te r iza nosso tem po. O ra , é i sso tam

bém q ue jus t i f ica os individ ua l i smo s a r reba tadore s e posses s i

v o s : i nd i v i dua l i s mos na v i da e c onômi c a ( a ma ne i r a c omo a s

e mpr e s a s ba t a l ha m uma s c om a s ou t r a s ) ; i nd i v i dua l i s mos na

o r de m da po l í ti c a (a ma ne i r a c om o os pa rt i dos f r e qüe n t e m e n t ea ba ndo na m a idé i a de po l ít i c a pa r a se t o r na r e m s i mp l e s me n t e

e le i tore i ros) ; individua l i smos na ordem do te r r i tór io ( as c ida

des br igando umas com as out ras , as r egiões r ec lamando solu

ções par t icula r i s tas) . Também na ordem soc ia l e individua l são

i nd i v i dua l i s mos a r r e ba t a do r e s e pos s e s s i vos , que a c a ba m por

c ons t i t u i r o ou t r o c omo c o i s a. Comp or t a m e n t os que j u s t i f i c a m

tod o desrespe i to às pessoas são, af ina l, um a das bases da soc ia

bi l idade a tua l . Al iás , a mane i ra co mo as c lasses médias , no Bra

sil, s e c ons t it u í r a m e n t r on i z a a lóg i ca dos i n s t r ume n t os , e m l u

gar da lógica das f inalidades, e convoca os pragmatismos a ques e t o r n e m t r i un f a n t e s.

Para tudo i sso, também contr ibuiu a perda de inf luênc ia da

f ilosof ia na formula ção das c iênc ias soc ia is , cuja int e rd isc i

p l i na r i da de a c a ba po r bus c a r i n s p i r a ç ã o na e c onomi a . D a í o

e mp obr e c i m e n t o da s c i ê nci a s huma na s e a c ons e qü e n t e d i f i c u l

dade para inte rpre ta r o que va i pe lo m un do , já que a c iênc ia eco

nômica se torna , cada vez mais , uma disc ipl ina da adminis t r a

ção das coisas ao se rviço de um s is tema ideológico. E ass im que

se implantam novas concepções sobre o va lor a a t r ibui r a cada

obje to, a cada indivíd uo, a cada re lação, a cada lugar , legi t im ando novas modal idades e novas r egras da produção e do consu

m o . E novas formas f inanceiras e da contabilidade nacional. Esta,

a l iás , se r eduz a se r , apenas , um nome fantas ia de uma suposta

contabi l idade globa l , a lgo que inexis te de f a to , mas é tomado

co mo pa râm etro. Esta é um a das bases do subsis tem a ideológico

8 . Competitividade, consumo, confusão dos espíritos,

globalitarismo

N e s t e m un do g l oba l i z a do , a c ompe t i t i v i da de , o c ons u mo , aconfusão dos espí r i tos const i tuem ba luar tes do presente es tado

de coisas . A compet i t ivida de com anda nossas formas d e ação. O

consumo comanda nossas formas de inação. E a confusão dos

e s p í r i t o s i mpe de o nos s o e n t e nd i me n t o do mundo , do pa í s , do

lugar , da soc iedade e de cada um de nós mesmos.

A c ompe t i t i v i da de , a a us ê nc i a de c ompa i xã o

Nos úl t imos c inco séculos de desenvolvimento e expansãogeográfica do capitalismo, a concorrência se estabelece com o regra.

Agora , a compet i t ividade tom a o lugar da compet ição. A co ncor

rênc ia a tua l não é mais a ve lha concor rênc ia , sobre tudo porque

chega e l iminando toda forma de compaixão. A compet i t ividade

tem a guer ra como norma. Há , a todo custo, que vencer o out ro,

esmagando-o, para tomar seu lugar . Os úl t imos anos do século

XX foram emblem át icos , porqu e ne les se r ea l iza ram grandes con

cent rações , grandes fusões, tanto na órbi ta da prod ução com o na

das f inanças e da informação. Esse movimento marca um ápice

do s is tema capi ta l i s ta , mas é também indicador do seu paroxism o , já que a ident idade dos a tores , a té então mais o u m eno s vis í

vel, agora f inalmente aparece aos olhos de todos.

Essa guer ra com o nor ma jus t i f ica toda forma de ape lo à for

ça , a que ass is t imos em diver sos pa íses , um ape lo não diss imu

lado, utilizado para dir imir os conflitos e conseqüência dessa ética

 

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4 8 M I L T O N S A N T O S

que comanda out ros subsis temas da vida soc ia l , formando uma

conste lação que tanto or ienta e di r ige a produção da economia

com o tam bém a produção da vida . Essa nova le i do va lor — qu e

é uma le i ideológica do va lor — é uma f i lha di le ta da

compet i t ividade e acaba por se r r esponsáve l também pe lo abando no da noção e do fa to da sol idar iedade . Daí as f r agmentações

resul tantes . Daí a ampl iação do desemprego. Daí o abandono da

educação. Daí o desapreço à saúde como um bem individua l e

social inalienável. Daí todas as novas formas perversas de sociabi

l idade que á exis tem ou se estão preparando neste pa ís , pa ra f azer

de le — a inda mais — u m pa ís f r agmentado, cujas diver sas parce

las, de m od o a assegurar sua sobrevivênc ia imedia ta , se rão joga

das uma s cont ra as out ras e convidadas a uma ba ta lha sem quar te l .

O c o n s u m o e o s e u d e s p o t i s mo

T a mbé m o c ons umo muda de f i gu r a a o l ongo do t e mpo .

Fa lava- se , antes , de auton om ia da pro duç ão, para signi f ica r qu e

uma e mpr e s a , a o a s s e gur a r uma p r oduç ã o , bus c a va t a mbé m

ma nip ula r a opinião pe la via da publ ic idad e . Nes se caso, o f a to

ge r a dor do c ons u mo s e r i a a p r oduç ã o . Ma s , a t ua l me n t e , a s e m

p r e sa s h eg e m ô n i c a s p r o d u z e m o c o n s u m i d o r a n t e s m e s m o d e

p r oduz i r o s p r odu t os . U m da do e s s e nc i a l do e n t e nd i me n t o do

c on s um o é que a p r oduç ã o do c ons umi d or , ho j e , p r e c e de à p r o dução dos bens e dos se rviços . Então, na cade ia causa l , a cha

ma da a u t onom i a da p r oduç ã o c e de l ugar a o de s po t i s m o do c on

s umo . D a í , o i mpé r i o da i n f o r ma ç ã o e da pub l i c i da de . T a l

r e mé d i o t e r i a 1% de me d i c i na e 99% de pub l i c i da de , ma s t o

da s a s c o i s a s no c omé r c i o a c a ba m por t e r e s s a c ompos i ç ã o :

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 4 9

publ ic idade + mate r ia l idade ; publ ic idade + se rviços , e esse é o

caso de tantas mercador ias cuja c i r culação é fundad a n um a p ro

pa ga nda i n s i s t e n t e e f r e qüe n t e me n t e e nga nos a . H á t oda e s s a

manei ra de organizar o consumo para permi t i r , em seguida , a

o r ga n i za ç ã o da p r oduç ã o .T ai s ope r a ç õe s pode m t o r na r - s e s i mu l t â ne a s d i a n t e do t e m

po d o re lógio, mas , do pon to de vis ta da lógica , é a pro duç ão da

i n f o r ma ç ã o e da pub l i c i da de que p r e c e de . D e s s e modo , v i ve

mos cercados , por todos os lados , por esse s i s tema ideológico

tec ido ao redor do con sum o e da informação ideologizados . Esse

consumo ideologizado e essa informação ideologizada acabam

por se r o moto r de ações públ icas e pr ivadas . Esse par é , ao me s

mo tempo, for t í ss imo e f r agi l í ss imo. De um lado é mui to for te ,

pe la sua e f icác ia a tua l sobre a produção e o consumo. Mas, de

out ro lado, e le é mui to f r aco, mui to débi l , desde que encontre mos a ma ne i r a de de f i n i- l o c omo u m da do de um s i s t ema m a i s

a m p l o . O c o n s u m o é o g r a n d e e m o l i e n t e , p r o d u t o r o u

e nc or a j a do r de i mob i l i s mos . E l e é , t a mbé m, um ve í c u l o de

narc is i smos, por meio dos seus es t ímulos es té t icos , mora is , so

c ia is ; e aparece como o grande fundamenta l i smo do nosso tem

p o , porq ue a lcança e envolve toda gente . Por i sso, o e nte ndi me n

to do que é o mu nd o passa pe lo cons um o e pe la compet i t ividade ,

ambos fundados no mesmo s is tema da ideologia .

C o n s u m i s m o e co m p e t i ti v i d ad e l e v am a o e m a g r e c i m e n t o

mora l e inte lec tua l da pessoa , à r edução da per sona l idade e dav i s ã o do mundo , c onv i da ndo , t a mbé m, a e s que c e r a opos i ç ã o

f un da m e n t a l e n t r e a f igu ra do c o ns u mi do r e a f igu ra d o

c idadão. É cer to que no Bras i l ta l oposição é menos sent ida ,

po r que e m nos s o pa í s j a ma i s h ouve a f igu ra d o c i da dã o . A s

c lasses chamad as super io res , inc luind o as c lasses méd ias , jam ais

 

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5 0 M I L T O N S A N T O S

qui se ra m ser c idadãs; os pobres jam ais pude ram ser c idadãos .

As c lasses méd ias foram condic ion adas a apenas quere r pr ivi lé

gios e não di re i tos . E i sso é um d ado essenc ial do ente nd ime nto

do Bras i l : de como os par t idos se organizam e func ionam; de

como a pol í t ica se dá , de como a soc iedade se move . E a í também as camadas inte lec tua is têm responsabi l idade , porque t r as

ladaram, sem maior imaginação e or igina l idade , à condição da

c lasse média euro pé ia , lutan do pe la ampl iação dos di re i tos pol í

t icos , econômicos e soc ia is , pa ra o caso bras i le i ro e a t r ibuindo,

ass im, por equívo co, à c lasse média bras i le ir a um pape l de m o

dernização e de progresso qu e , pe la sua própr ia const i tuição, e la

não poder ia te r .

A inform ação total i tár ia e a confusão do s e sp ír i tos

Tud o isso se deve , em g rande par te , ao f ato de que o f im do

s é c u l o X X e r ig i u c omo u m da d o c e n t ra l do s eu f unc i ona m e n t o

o despot ism o da informação, r e lac ionado, em cer ta med ida , co m

o próp r io níve l alcançado pe lo desenvolv imento da técnica a tua l ,

tão necess i tada de um d iscurso. Co m o as a t ividades heg emôn icas

são , hoje , todas e las , fundadas nessa técnica , o discurs o aparece

c omo a l go c a p i t a l na p r oduç ã o da e x i s t ê nc i a de t odos . E s s a

i mpr e s c i nd i b i l i da de de um d i s c u r s o que a n t e c e de a t u d o — a

c ome ç a r pe l a p r óp r ia t é c ni c a , a p r oduç ã o , o c ons um o e o pode r— abre a por ta à ideologia.

Antes , e ra cor rente discut i r - se a r espe i to da oposição ent re

o qu e e ra r ea l e o que n ão e ra ; ent re o e r ro e o acer to ; o e r ro e a

verdad e ; a essênc ia e a aparênc ia . Hoje , essa discussão ta lvez n ão

tenha sequer cabimento, porque a ideologia se torna rea l e es tá

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 5 1

pr e s e n t e c omo r e a l i da de , s ob r e t udo po r me i o dos ob j e t o s . O s

obje tos são coisas , são rea is . E les se apresentam diante de nós

nã o a pe na s c omo um d i s c u r s o , ma s c omo um d i s c u r s o i de o l ó

g i c o , que nos c onvoc a , ma l g r a do nós , a um a f o r ma de c om por

tamento. E esse impér io dos obje tos tem um pape l r e levante nap r oduç ã o de s s e novo home m a pe que na do que e s t a mos t odos

a me a ç a dos de s er . A t é a S e gunda G u e r r a Mun d i a l , t í nha m os e m

torn o de nós a lguns obje tos , os qua is com andáv amo s. Hoje , m eio

s é c u l o de po i s , o que há e m t o r no é uma mul t i dã o de ob j e t o s ,

t odos ou qua s e t odos que r e ndo nos c oma nda r . U ma da s g r a n

de s d if e r enç a s e n t r e o mun do de há c i nqüe n t a a nos e o m un do

de agora é esse pape l de comando a t r ibuído aos obje tos . E são

ob j e t os c a r r e ga ndo uma i de o l og i a que l he s é e n t r e gue pe l os

h o m e n s d o marketing e d o design ao se rviço do mercado.

Do i mp e r i a l i s mo a o mu n d o d e h o je ^ f ^ s í ^ .| i ; ~ " — ^ SjP

O capi ta l i smo concor renc ia l buscou a uni f icação do plane

ta , mas apenas obteve um a uni f icação re la tiva , aprofund ada sob

o capi ta l i smo monopol is ta graças aos progressos técnicos a lcan

çados nos úl t imos dois séculos e poss ibi l i tando uma t r ansição

para a s ituação a tua l de neol ibera l i smo . Agora se pod e , de a lgu

ma forma, f a la r numa vontade de uni f icação absoluta a l ice rçada

na t i rania do dinhe i ro e da informação prod uz in do em to da par tes i tuações nas qua is tud o, i s to é , coisas , ho me ns, idé ias , com po r

tamentos , r e lações , lugares , é a t ingido.

E m c a da um de s s e s mome n t os , s ã o d i f e r e n t e s a s r e l a ç õe s

ent re o indivíduo e a soc iedade , ent re o mercado e a sol idar ie

da de . Até r ecentemente , havia a busca de um re la t ivo re forço

 

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5 2 M I L T O N S A N T O S

mútuo das idé ias e da r ea l idade de autonomia individua l ( com a

vontade de produção de indivíduos for tes e de c idadãos) e da

idé ia e da r ea l idade de uma soc iedade sol idár ia ( com o Estado

c r e s c e n t e m e n t e e m p e n h a d o e m e x e r c e r u m a r e g u l a ç ã o

redis t r ibut iva) . As s i tuações e ram di fe rentes segundo os cont i nente s e pa íses e , se o quad ro ac ima re fe r ido não const i tuía um a

rea l idade comple ta , essa e ra uma aspi ração genera l izada .

Ao longo da his tór ia passada do capi ta l i smo, para le lamente

à evolução das técnicas , idé ias mora is e f i losóficas se di fun dem ,

ass im com o a sua rea l ização pol í tica e jur ídica , de mo do que os

costumes, as le is , os r egulamentos , as ins t i tuições jur ídicas e

es ta ta is buscavam rea l iza r , ao mesmo tempo, mais cont role so

c ia l e , também, mais cont role sobre ações individua is , l imi tan

do a ação daque les ve tores que , de ixados soz inhos , levar iam à

ec losão de egoísmos, ao exerc íc io da força bruta e a desníve issoc ia is cada vez mais ag udos .

Na fase atual de globalização, o uso das técnicas conhece uma

impor tante mudança qua l i ta t iva e quant i ta t iva . Passamos de um

uso " imper ia l i s ta" , que e ra , também, um uso desigua l e combi

nado, segundo os cont inentes e lugares , a uma presença obr iga

t ó r i a e m t odos o s pa í s e s dos s i s t e ma s t é c n i c os he ge môn i c os ,

graças ao pape l uni f icador das técnicas de informação.

O uso imp er ia l i s ta das técnicas permi t ia , pe la via da pol í t ica ,

uma cer ta convivênc ia de níve is di fe rentes de formas técnicas

e de formas organizac iona is nos diver sos impér ios . Ta l s i tuaçãope r ma ne c e p r a t i c a me n t e po r um s é c u l o , s e m que a s d i f e r e n

ças de poder ent re os impér ios fosse causa de conf l i tos durá

ve i s e n t r e el e s e de n t r o de l e s . O p r óp r i o i mpe r i a l i s m o e r a " d i

fe renc ia l" , ta l carac ter í s tica sendo conseqü ênc ia da subo rdinaç ão

do mercado à pol í t ica , se ja a pol í t ica inte rnac iona l , se ja a pol í -

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 5 3

t i c a i n t e r i o r a c a da pa í s ou a c a da c on j un t o i mpe r i a l . Com a

globa l ização, as técnicas se tornam mais e f icazes , sua presença

s e c o n f u n d e c o m o e c ú m e n o , s e u e n c a d e a m e n t o p r a t i c a m e n t e

e s pon t â ne o s e r e f o r ç a e , a o me s mo t e mpo , o s e u us o e s c a pa ,

s ob mu i t o s a s pe c t os , a o dom í n i o da po l í t i c a e s e t o r n a s ubo r d i n a d o a o m e r c a d o .

Global i tar ismos e total i tar ismos

C om o as técnicas hegemô nicas a tua is são, todas e las , f ilhas

da c iênc ia , e como sua ut i l ização se dá ao se rviço do mercado,

e s s e a má l ga ma p r oduz um i de á r io da té c n i c a e do me r c a do que

é santif icado pela ciência, considerada , ela próp ria, infalível. Essa,

a l iá s , é uma da s f on t es do pod e r do pe ns a m e n t o ún i c o . T udo oque é f e i to pe la mão dos ve tores fundamenta is da globa l ização

par te de idé ias cient í ficas , indispensáve is à produ ção, a l iás ace- .

le rada , de novas r ea l idades , de ta l mod o qu e as ações ass im cr i

a da s s e i mp õe m c om o s o l uç õe s ún i c as .

Na s condiçõ es a tua is , a ideologia é r e forçada de uma form a

qu e se r ia impossíve l a inda há um qua r to de século, já qu e , pr i

me iro as idé ias e , sob re tud o, as ideologias se t r ansfo rmam em

si tuações , enquanto as s i tuações se tornam em s i mesmas " idé i

as" , " idé ias do qu e fazer" , " ideologias" e imp regn am, d e vol ta , a

ciência (que santif ica as ideologias e legitima as ações) , uma ciênc ia cada vez mais r edu tora e r eduz ida , mais dis tante da b usca

da " ve r da de " . D e s s e c on j un t o de va r iá ve is de c o r r e m, t a mb é m,

ou t r a s c ond i ç õe s da v i da c on t e mpor â ne a , f unda da s na ma t e -

mat ização da exis tênc ia , ca r regando consigo uma c rescente se

dução pe los números , um uso mágico das es ta t í s t icas .

 

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5 4 M I L T O N S A N T O S

É t a mbé m a pa r t i r de s s e qua d r o que s e pode i n t e r p r e t a r a

se r ia l ização de que fa lava J . -P Sar t r e em Questions de méthode,

Critique de la Raison dialectique, 1960. Em ta is condições , ins ta lam -

se a compet i t ividade , o sa lve- se -quem-puder , a vol ta ao caniba

l i s mo , a s up r e s s ã o da s o l i da r i eda de , a c umu l a ndo d i f i c u lda de spara um convív io soc ia l saudáve l e para o exerc íc io da d em ocr a

c i a. E nqua n t o e s t a é re duz i da a uma de moc r a c i a de me r c a d o e

a me s qu i nha da c om o e l e i t o r al i s mo , is t o é, c ons um o de e l e i ç õe s ,

a s " pe s qu i s a s " pe r f i l a m- s e c omo um a f e r i do r qua n t i t a t i vo da

opin ião, da qua l acaba po r se r um a das formado ras , levando t ud o

i s s o a o e mpob r e c i me n t o do de b a t e de idé i as e à p r óp r i a mo r t e

da pol í t ica . N a esfe ra da soc iabi l idade , levantam -se ut i l i ta r i smos

c omo r e g r a de v i da me d i a n t e a e xa c e r ba ç ã o do c ons umo , dos

na r c i s i s mos , do i me d i a t i s mo , do e go í s mo , do a ba ndono da s o

l idar iedade , com a implantação, ga lopante , de uma é t ica pragmát ica individua l i s ta . É dessa forma q ue a soc iedade e os in diví

duos a c e i t a m da r a de us à ge ne r os i da de , à s o l i da r i e da de e à

e moç ã o c om a e n t ron i z a ç ã o do r e i no dq c á l c u l o ( a pa r t i r do c á l

culo econômico) e da compet i t ividade . j

São, todas essas , condiçõe s para a di fusão de um pe nsa me n

to e de uma prá t ica tota l i tá r ias . Esses tota l i ta r i smos se dão na

e s f e r a do t r a ba l ho c omo , po r e xe mpl o , num mundo a g r í c o l a

mode r n i z a do onde os a t o r e s s uba l t e r n i z a dos c onv i ve m, c omo

num exérc i to , submet idos a uma disc ipl ina mi l i ta r . O tota l i ta

r i smo não é , porém, l imi tado à esfe ra do t r aba lho, escor rendopara a esfera da política e das relações interpessoais e i n v a d i n d o

o p r óp r i o mu nd o da pe s qu i s a e do e ns i no un i ve r s i t á ri o s , me d i

a n t e um c e r c o às i dé i as c a da ve z me n os d i s s i mu l a do . Ca b e - no s ,

me s mo , i nda ga r d i a n t e de s s a s nova s r e a l i da de s s ob r e a

per t inênc ia da presen te ut i l ização de concep ções já ul t r apassa -

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 5 5

da s de de moc r a c i a , op i n i ã o púb l i c a , c i da da n i a , c onc e i t o s que

ne c e s s i t a m u r ge n t e r e v i s ã o , s ob r e t udo nos l uga r e s onde e s s a s

c a t e go r i a s nunc a f o r a m c l a r a me n t e de f i n i da s ne m t o t a l me n t e

exerc i tadas .

Nossa grande ta re fa , hoje , é a e laboração de um novo discur so, capaz de desmit i f ica r a compet i t ividade e o consumo e

de a tenuar , senão desmanchar , a confusão dos espí r i tos .

9 . A violência estrutural e a perversidade sistêmica

Fala - se , hoje , mui to em violênc ia e é gera lmente admit ido

que é quase um es tado, uma s i tuação carac ter í s tica do nosso tem p o . Todavia , dent r e as violênc ias de qu e se f ala , a maio r par te é

s ob r e t u do f o r ma da de v i o lê nc i a s func i onai s de r i va da s , e nq ua n

t o a a t e nç ão é me no s vo l ta da pa r a o que p r e f e r i mos c h a ma r de

violênc ia es t rutura l , que es tá na base da produção das out ras e

const i tui a violênc ia cent ra l or igina l . Por i sso, acabamos por

apenas co nde nar as violênc ias per i f é ricas par t icula res .

Ao n osso ver , a violênc ia es t rutura l r esu l ta da presença e das

manifes tações conjuntas , nessa e ra da globa l ização, do dinhe i ro

e m e s t a do pu r o , da c ompe t i t iv i da de e m e s t a do pu r o e da po t ê n

c i a e m e s t a do pu r o , c u j a a s s oc i a ç ã o c onduz à e me r gê nc i a denovos t o t a l i ta r i s mos e pe r mi t e pe ns a r que v i ve mos nu ma é poc a

de globa l i ta r i smo mu i to m ais que de globa l ização. Para le lamente ,

evoluímos de s i tuações em que a perver s idade se manifes tava

de forma isolada para uma s i tuação na qua l se ins ta la um s is te

ma da pe r ve r s i da de , que , a o me s m o t e m po , é r e s u l ta do e c a us a

 

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5 6 M I L T O N S A N T O S

da l e g i ti ma ç ã o do d i nhe i r o e m e s t a do pu r o , da c omp e t i t iv i da de

em estado puro e da potênc ia em es tado puro, consagrando, a f i

nal, o f im da ética e o f im da política.

O d i n h e i r o e m e s ta d o p u r o

Co m a g l oba li z aç ã o i mpõe - s e um a nova noç ã o de r i que z a ,

de p r os pe r i da de e de e qu i l í b r i o ma c r oe c onômi c o , c onc e i t o s

fundados no dinhe i ro em es tado puro e aos qua is todas as eco

nomias nac iona is são chamadas a se adapta r . A noção e a r ea l i

da de da d í v ida i n t er na c i ona l t a mb é m d e r i va m de s sa me s m a i de

o l o g i a . O c o n s u m o , t o r n a d o u m d e n o m i n a d o r c o m u m p a r a

t odos o s i nd i v í duos , a t r i bu i um pa pe l c e n t r a l a o d i nhe i r o na s

suas di fe rentes manifes tações; jun tos , o dinhe i ro e o co ns um oaparecem como reguladores da vida individua l . O novo dinhe i ro

t o r na - s e on i p r e s e n t e . F unda do numa i de o l og i a , e s s e d i nhe i r o

sem medida se torna a medida gera l , r e forçando a vocação para

c ons i de r a r a a c umul a ç ã o c omo u ma me t a e m s i me s m a . N a r e

a l idade , o r esul tado dessa busca tanto pode levar à acumulação

(para a lguns) como ao endividamento (para a maior ia ) . Nessas

c ond i ç õe s , fi r ma - s e um c í r c u l o v i c i o s o de n t r o d o qua l o me do

e o de s a mpa r o s e c r ia m mu t ua m e n t e e a bus c a de s e n f r e ada do

d i nhe i r o t a n t o é um a c aus a c om o uma c ons e qüê nc i a do de s a m

pa r o e do me do .O resul tado obje t ivo é a necess idade , r ea l ou imaginada , de

buscar mais dinhe i ro, e , como es te , em seu es tado puro, é indis

pensáve l à exis tênc ia das pessoas , das emp resas e das nações , as

formas pe las qua is e le é obt ido, se jam qua is forem , já se enc on

t ram antec ipadamente jus t i f icadas .

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 57

A c o mp e t i t i v i d a d e e m e s ta d o p u r o

A necess idade de capi ta l ização conduz a adota r como regra

a ne c e s s i da de de c ompe t i r e m t odos o s p l a nos . D i z - s e que a s

nações necess i tam compet i r ent re e las — o que , todavia , é duvi

dos o — e a s e mpr e s a s c e r t a me n t e c ompe t e m por um qu i nhã o

s e mpr e m a i o r do me r c a do . Ma s a es t a b il i da de de um a e m pr e s a

pode de p e nde r de um a pe que na a ç ã o des s e me r c a do . A s o b r e

v i vê nci a es t á s e mpr e po r um f io . N u m mu nd o g l oba l iz a do , r e

giões e cidades são cham adas a comp etir e, diante das regras atuais

d a p r o d u ç ã o e d o s i m p e r a t i v o s a t u a i s d o c o n s u m o , a

compet i t ividade se torna tam bém um a regra da convivênc ia en t re

as pessoas . A necess idade de comp et i r é , a l iás , legi t imada por um a

ideologia la rgamente ace i ta e di fundida , na medida em que a

desobed iênc ia às suas r egras impl ica perde r posições e , a té m es

m o , de s a pa re c e r do c e ná r io e c onômi c o . C r i a m - s e , de ss e m odo ,

novos "va lores" em todos os planos , uma nova "é t ica" pervasiva

e operac iona l f ace aos mecanismos da globa l ização.

Con c or r e r e c om pe t i r nã o s ã o a me s m a c o is a . A c onc or r ê n

c ia po de a té se r saudáve l sempre que a ba ta lha ent re agentes , para

melhor empreender uma ta re fa e obte r melhores r esul tados f i

n a i s , exige o r espe i to a ce r tas r egras de convivênc ia prees ta

be lec idas ou não . Já a compet i t ividade se funda na inven ção d e

novas a rmas de luta , num exerc íc io em que a única r egra é a

conquis ta da melhor posição. A compet i t ividade é uma espéc iede guer ra em que tudo va le e , desse modo, sua prá t ica provoca

um af rouxamento dos va lores mora is e um convi te ao exerc íc io

da violênc ia .

 

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5 8 M I L T O N S A N T O S

A p o tê n c i a e m e s ta d o p u r o

P a r a e xe r c e r a compe t i t i v i da de e m e s t a do pu r o e ob t e r o d i

nhe i r o e m e s t a do pu r o , o pode r ( a po t ê nc i a ) de ve s e r t a mbé m

e xe r c i do e m e s t a do pu r o . O us o da f or ça a c a ba se t o r na n do um a

ne c e s s i dade . N ã o há ou t r o tetos, outra f ina lidade qu e o pró pr io

uso da força, já qu e e la é indispensáve l para com pet i r e f azer m ais

d i nhe i r o ; is s o ve m a c ompa nha do pe l a de s ne c e s si da de de r e s p on

s a b i li da de pe r a n t e o ou t r o , a c ol e t iv i da de p r óx i ma e a h um a n i

dade em gera l .

P o r e xe mpl o , a idé i a de que o de s e m pr e go é o r e s u l ta do de

um j ogo s i mp l ó r i o e n t r e f o r ma s t é c n i c a s e de c i sõe s m i c r oe -

conômicas das empresas é uma s impl i f icação, or iginada dessa

confusão, como se a nação não devesse sol idar iedade a cada um

dos s e us me mb r os . O a ba ndon o da i déi a d e s o l i da r ie da de e s t ápo r t r á s de s s e e n t e nd i me n t o da e c onomi a e c onduz a o de s a m

pa r o e m qu e v ive mos ho j e . J a ma i s houve n a h i s t ó r i a um pe r í o

do em que o medo fosse tão genera l izado e a lcançasse todas as

á r ea s da nos s a v i da : me d o do de s e mpr e go , m e d o da f ome , m e d o

da violênc ia , med o do out ro . Ta l me do se esp a lh a e se aprofunda

a par t i r de uma violênc ia di fusa , mas es t rutura l , t íp ica do nosso

t e mpo , c u j o e n t e nd i me n t o é i nd i s pe ns á ve l pa r a c ompr e e nde r ,

de man ei ra mais adequada , ques tões co mo a dívida soc ia l e a vi

olênc ia func iona l , hoje tão presentes no cot idiano de todos .

A p e rv e r s i da d e s i s t ê mi c a

Seja qua l for o ângulo pe lo qua l se examinem as s i tuações

carac te r í s ticas do per ío do a tua l , a r ea l idade p o d e se r vis ta com o

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 59

um a fábr ica de perver s ida de . A fome de ixa de se r um fa to i so la

do ou ocasiona l e passa a se r um dado genera l izado e perma

nente . E la a t inge 800 mi lhões de pessoas espa lhadas por todos

os c on t i ne n t e s , s e m e xc e ç ã o . Q u a nd o os p r og r e s s os da m e d i c i

na e da informação deviam autor iza r uma redução substanc ia l

dos p r ob l e ma s de s a úde , s a be mos que 14 mi l hõe s de pe s s oa s

mo r r e m t odos o s d ia s , a n t e s do qu i n t o a no d e v i da .

Dois bi lhões de pessoas sobrevivem sem água potáve l . N u n

ca na his tór ia houve um tão grande núm ero d e des locados e r e fu

giados . O fenômeno dos sem- te to, cur ios idade na pr imeira me

tade do século XX, hoje é um fa to bana l , presente em todas as

g r a ndes c ida de s do mu ndo . O de s e mpr e go é a lgo t oma do c om um .

Ao m esm o temp o, f icou mais di fíc il do que antes a t r ibui r ed uca

ção de qua l idade e , mesmo, acabar com o ana l fabe t i smo. A po

b r e z a t a mbé m a u me n t a . N o f i m do s é c u l o X X ha v ia ma i s 600

milhõ es de pobres do qu e em 1960; e 1 , 4 bi lhão de pessoas ganham menos de um dóla r por dia . Ta is números podem ser , na

verdad e , ampl iados porq ue , a inda aqui , os método s qu ant i ta t ivos

da es tat í s tica engana m: se r pobre não é apenas ganhar men os do

que uma soma a rbi t r a r iamente f ixada ; se r pobre é par t ic ipar de

um a s i tuação es t rutura l , com u ma posição re la tiva infe r ior d en

t ro da soc iedade como um todo. E essa condição se ampl ia para

um número cada vez maior de pessoas . O fa to, porém, é que a

pobreza tanto quanto o desemp rego agora são considerados co mo

algo "na tura l" , ine rente a seu própr io processoTJuntõ ao d esem

prego e à pobreza absoluta , r egis t r e -se o empo brec im ento re la t i vo de camadas cada vez maiores graças à de te r ioração do va lor do

t raba lho. N o M éxico, a par te de t r aba lho na renda nac iona l ca i de

3 6 % na década de 1970 para 2 3 % e m 1992 . V i ve mos nu m mu nd o

de exclusões, agravadas pela desproteção social, apanágio do mo

de lo neol ibera l , que é , tam bém , c r iador de insegurança .

 

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6 0 M I L T O N S A N T O S

Na verdade , a je rver s idade de ixa de se manifes ta r por f a tos

isolados , a t r ibuídos a dis torções da per sona l idade , para se es ta

be lecer como um s is tema. Ao nosso ver , a causa essenc ia l da

perver s ida de s is têmica é a ins t i tuição, por le i gera l da vida soc i

al , da compet i t ividade como regra absoluta , um a com pet i t ividade

qu e escor re sobre to do o edi f íc io soc ia l . O outro, se ja e le empre

s a , i n s t i t u iç ã o ou i nd i v í duo , a pa r e ce c om o u m obs t á c u l o à r e a

l ização dos f ins de cada um e deve se r r emo vido , po r i sso sendo

c ons i de r a do u ma c o i sa . D e c or r e m da í a c e l e b ra ç ã o dos e go í s

m o s , o a las t r amen to dos narc is i smos, a bana l ização da guer ra de

todo s cont ra todos , com a ut i lização de qua lq uer qu e seja o m eio

para obte r o f im col imado, i s to é , compet i r e , se poss íve l , ven

cer . Daí a di fusão, também genera l izada , de out ro subproduto

da compet i t ividade , i s to é , a cor rupção.

Esse s i s tema da perver s idade inc lui a mor te d a Pol í t ica ( c omum P ma i ús c u l o ) , j á que a c onduç ã o d o p r oc e s s o po l í ti c o pa s s a

a se r a t r ibuto das grandes em presas . Jun te - s e a isso o proce sso

de c on f o r ma ç ã o da op i n i ã o pe l a s mí d i a s , um da do i mpo r t a n t e

no mov i me n t o de a l i e na ç ã o t r a z i do c om a s ubs t i t u i ç ã o do de

ba te c ivi l iza tór io pe lo discurso único do mercado. Daí o ensi

na me n t o e o a p r e nd i z a do de c ompor t a me n t os dos qua i s e s t ã o

ausentes objetivos f inalísticos e éticos.

Assim e laborado, o s i s tema da perver s idade legi t ima a pree

mi nê nc i a de um a a ç ão he ge môn i c a ma s s e m r e s pons a b i l i da de ,

e a ins ta lação sem contrapar t ida de uma ordem ent rópica , coma p r oduç ã o " na t u r a l " da de s o r d e m.

P a r a t ud o i s so , t a mb é m c on t r i bu i o e s t a be l e c i me n t o do i m

pé r i o do c ons umo , de n t r o do qua l s e i n s t a l a m c ons umi dor e s

mais que per fe i tos (M. Santos , O espaço do cidadão, 1988) , leva

dos à negl igênc ia em re lação à c idadania e seu corolá r io , i s to é , o

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 6 1

men ospre zo quan to à l iberdade , cujo cul to é subst i tuído pe la pre

ocupação com a incolumidade . Esta r eacende egoísmos e é um

dos fermentos da quebra da solidariedade entre pessoas, classes e

regiões . Inc luam-se tam bém , nessa l is ta dos processos ca rac te r í s

ticos da instalação do sistema da perversidade, a ampliação das d e

sigualdades de todo gênero: interpessoais, de classes, regionais,

inte rnac iona is . Às ant igas des igua ldades , som am-s e novas .

Os papé is dom inan tes , legi t imados pe la ideologia e pe la prá

t ica da compet i t ividade , são a ment i r a , com o nome de segredo

da ma r c a ; o e ngodo , c om o nom e de marketing; a diss imulação e

o c inism o, com o s nom es de tá t ica e es t r atégia . E um a s i tuação

na qua l se prod uz a glor if icação da esper teza , negando a s incer i

dade , e a glori f icação da avareza , negando a genero sidade . De s

se modo, o caminho f ica aber to ao abandono das sol idar iedades

e ao f im da é t ica , mas , també m, da pol í t ica . Para o t r iunfo dasnovas vi r tudes pragmát icas , o idea l de democrac ia plena é su bs

t i tuído pe la const rução de uma democrac ia de mercado, na qua l

a dis t r ibuição do poder é t r ibutá r ia da r ea l ização dos f ins úl t i

mos do própr io s i s tema globa l i tá r io . Estas são as r azões pe las

qua is a vida norm al de to dos os dias es tá suje ita a uma violênc ia

es t rutura l que , a l iás , é a mãe de to das as out ras violênc ias .

10 . Da política dos Estados à politica das empresas

Façamos um regresso, mui to breve , ao começo da his tór ia

huma na , qua ndo o home m e m s oc i e da de , r e l a c i ona ndo- s e d i

r e tam ente co m a na tureza , const rói a his tór ia . Nesse começo dos

 

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6 2 M I L T O N S A N T O S

tempos, os laços ent re te r r i tór io , pol í t ica , economia , cul tura e

l i ngua ge m e r a m t r a ns pa r e n t e s . N a s s oc i e da de s que os a n t r opó

l ogos e u r ope us e no r t e -a me r i c a nos o r gu l ho s a me n t e c ha ma r a m

de pr imi t ivas , a r e lação ent re se tores da vida soc ia l também se

da va d i r e t a me n t e . N ã o ha v ia p r a t ic a me n t e i n t e r me d i a ç õe s .Poder - se - ia considera r que exis t ia uma te r r i tor ia l idade ge

nu í na . A e c onom i a e a c u l t u r a de pe nd i a m do t e r r i t ó r i o , a l i n

gua ge m e r a uma e m a na ç ã o do us o do t e r r i t ó ri o pe l a e c onom i a

e pe la cul tura , e a pol í t ica também estava com e le int imamente

re lac ionada .

Havia , por conseguinte , um a te r r i tor ia l idade absoluta , no sen

tido de que, em todas as manifestações essenciais de sua existên

c ia, os moradores per tenc iam àqui lo que lhes per tenc ia , i s to é , o

terr itório. Isso criava um sentido de identidade entre as pessoas e

o seu espaço geográf ico, que lhes a t ribuía , em função da p rod ução necessár ia à sobrevivência do gru po, um a noção par t icula r de

l imi tes , acar re tando, para le lamente , uma compar t imentação do

espaço, o que também produz ia um a idé ia de domín io. Para man

ter a identidade e os limites, era preciso ter clara essa idéia de

dom ínio, de poder . A polí t ica do te r r i tór io t inha as mes mas bases

que a pol ít ica da economia , da cul tura , da l inguagem, form ando

um conjunto indissoc iáve l . Cr iava- se , para le lamente , a idé ia de

comunidade , um contexto l imi tado no espaço.

Sistemas técn icos , s is temas f i losóf icos

Toda re lação do ho me m co m a na tureza é por tadora e pro dut o

ra de técnicas que se foram en r iquecen do, diver s i f icando e avolu

man do ao longo do tempo. Nos úl t imos séculos , con hece mo s um

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A ÇÃ O 6 3

a va nç o dos s i s t e ma s t é c n i c os , a t é que , no s é c u l o X V I I I , s u r

ge m a s t é c n i c a s da s má qu i na s , que ma i s t a r de vã o s e i nc o r po

r a r a o s o l o c o m o p r ó t e s e s , p r o p o r c i o n a n d o a o h o m e m u m

me no r e s fo r ç o na p r odu ç ã o , no t r a ns por t e e n a s c o m u n i c a ç õ e s ,

mudando a f ace da Ter ra , a l te rando as r e lações ent re pa íses ee n t r e s oc i e da de s e i nd i v í duos . A s té c n i c a s o f e r e c e m r e s pos t a s

à von t a d e de e vo l uç ã o dos hom e ns e , de f i n ida s pe l a s pos s i b i l i

da de s que c r i a m, s ã o a ma r c a de c a da pe r í od o da h i s t ó r i a .

Áv ida ass im rea l izada por me io dessas técnicas é , pois , cada

vez menos subordinada ao a lea tór io e cada vez mais exige dos

home ns c ompor t a me n t os p r e v i s í ve i s . E s s a p r e v i s i b i l i da de de

c ompor t a me n t o a s s e gur a , de a l guma ma ne i r a , uma v i s ã o ma i s

r a c iona l do mu nd o e t a m bé m dos l ugar e s e c onduz a uma o r ga

nização soc iotécnica do t r aba lho, do te r r i tór io e do fenômeno

do pode r . D a í o de s e nc a n t a me n t o p r og r e s s i vo do mundo .

N o s é c u lo X V I I I, a c on te c e r am do i s f e nôme nos e x t r e ma m e n

t e i mpor t a n t e s . U m é a p r oduç ã o da s t é c n ic a s das má qu i na s , qu e

reva lor izam o t r aba lho e o capi ta l , r equa l i f icam os te r r i tór ios ,

pe r m i t e m a c onqu i s t a de novos e s paç os e a b r e m ho r i z on t e s pa r a

a huma nida de . Esse século marca o r e forço do capi ta li smo e tam

bé m a e n t r a da e m c e na do home m c omo um va l o r a s e r c ons i

de r a do . O na s c i me n t o da t é c n i c a da s má qu i na s , o r e f o r ç o da

condição técnica na vida soc ia l e individua l e as novas concep-

* ções sobre o h om em se corpor i f icam com as idé ias f ilosóf icasque se i r iam tornar forças da pol í t ica . Este é um out ro dado

i m p o r t a n t e .

O século XVII I produz iu os enc ic lopedis tas e a r evolução

amer icana e a Revolução Francesa , r espostas pol í t icas às idé ias

f il os óf ic as . N u m m om e n t o e m que o c a p i t a li s mo t a m bé m s e

 

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6 4 M I L T O N S A N T O S

r e forçava , se as técnicas houvessem s ido ent regues inte i r amen

te às mãos capi ta l i s tas sem que , pe lo out ro lado, surgissem as

idé ias f i losóf icas (que também eram idé ias mora is) , o mundo

te r ia se organizado de forma di fe rente .

Se ao lado desses progressos da técnica a se rviço da p ro du ção e do capi ta l i smo não ho uvesse a progressão das idé ias , te r í

a mos t i do uma e c l os ã o mui t o ma i o r do u t i l i t a ri s mo , c om um a

prá t ica mais avassa ladora do lucro e da concor rênc ia . Ao con

t r á r io , foi es tabe lec ida a poss ibi l idade de enr iquec er m ora l me nte

o indivíduo. A mesma é t ica glor i f icava o indivíduo responsáve l

e a cole t ividade responsáve l . Ambos e ram responsáve is . Indiví

du o e c o l e t iv i da de e r a m c ha ma dos a c r ia r j un t os u m e n r i que c i

mento rec íproco que i r ia aponta r para a busca da democrac ia ,

po r i n t e r m é d i o do E s t a do N a c i ona l , do E s t a do de D i r e i t o e do

Estado Soc ia l , e para a prod ução da c idadania plena , r e ivind icação que se foi a f i rmando ao longo desses séculos . Cer tamente a

c idadania nunca chegou a se r plena , mas quase a lcançou esse

es tágio em cer tos pa íses , durante os chamados t r inta anos glor i

osos depois do f im da Segunda Guer ra Mundia l . E essa quase

pleni tude e ra para le la à quase pleni tude da democrac ia . A c ida

dania plena é um dique cont ra o capi ta l pleno.

Tecnoc iênc ia , g lobal ização e h is tór ia sem sentido

A g l oba l i z a ç ã o ma r c a um mome n t o de r up t u r a ne s s e p r o

cesso de evolução socia l e mora l que se vinha fazendo n os sécu

los preceden tes . E i rônico recordar que o progresso técnico apa

r e c i a , de s de os s é c u l os a n t e r i o r e s , c omo uma c ond i ç ã o pa r a

rea l iza r essa sonhada globa l ização com a mais comple ta huma-

P O R U M A O U T R A G L O B A LI Z A Ç Ã O 65

n i z a ç ã o da v i da no p l a ne t a . F i na l me n t e , qua n do e s s e p r og r e s s o

técnico a lcança um níve l super ior , a globa l ização se r ea liza , ma s

nã o a s er v i ço da hum a n i da de .

A g l oba l i z a ç ã o ma t a a noç ã o de s o l i da r i e da de , de vo l ve o

ho me m à c ond i ç ã o p r imi t i va do c a da um p or s i e , c om o s e vo l tássemos a se r animais da se lva , r eduz as noções de mora l idade

públ ica e par t icula r a um quase nada .

O pe r í odo a t ua l t e m c omo uma da s ba s e s e s s e c a s a me n t o

ent re c iênc ia e técnica , essa tecnoc iênc ia , cujo uso é cond ic ionad o

pe lo mercad o. Por conseg uinte , tr a ta - se de um a técnica e de um a

ciênc ia se le t ivas . Como, f r eqüentemente , a c iênc ia passa a pro

duz i r a qu i l o que i n t e re s s a a o me r c a do , e nã o à hum a n i da d e e m

gera l , o progresso técnico e c ient í fico não é semp re um progresso

mo ra l . P ior , ta lvez , do qu e i sso: a ausênc ia desse progresso m o

ra l e tudo o qu e é f e i to a par t i r dessa ausênc ia va i pesar for te me n t e s ob r e o mode l o de c ons t r uç ã o h i s t ó r i c a domi na n t e no

ú l t i m o qua r t e l do s é c u lo X X .

Essa globalização tem de ser encarada a partir de dois proces

sos parale los. De u m lado, dá- se a produ ção de u ma mater ia l idade ,

ou seja, das condições materiais que nos cercam e que são a base

da prod ução econô mica , dos tr anspor tes e das comu nicações . D e

outro há a produção de novas relações sociais entre países, classes

e pessoas. A nova situação, conf orm e á acentu amo s, vai se alicerçar

em duas colunas cent ra is . U m a tem co mo base o dinhe i ro e a out ra

se funda na informação. Den tro de cada pa ís , sobre tu do ent re osmais pobres , informação e dinhe i ro mundia l izados acabam por

se imp or com o a lgo autô nom o face à soc iedade e , me sm o, à eco

nomi a , t o r na ndo- s e um e l e me n t o f unda me n t a l da p r oduç ã o , e a o

me sm o te mp o da geopol í t ica , i s to é , das r e lações ent re pa íses e

dent ro de cada nação.

 

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6 6 M I L T O N S A N T O S

A i n f o r ma ç ã o é c e n t ra l i z ada na s mã os de um nú me r o e x t r e

mamente l imi tado de f i rmas. Hoje , o essenc ia l do que no mun

do s e l ê , t a n t o e m j o r na i s c o mo e m l i v ros , é p r oduz i d o a pa r t i r

de meia dúz ia de empresas que , na r ea l idade , não t r ansmitem

novidades , mas as r eescrevem de manei ra espec í f ica . Apesar dea s c ond i ç õe s t é c n ic a s da in f o r ma ç ã o pe r m i t i r e m q ue t oda a h u

ma n i da d e c onhe ç a t udo o que o mu nd o é , a c a ba mos na r e a l ida

de por não sabê- lo , por causa dessa inte rmediação deformante .

O mundo se torna f luido, graças à informação, mas também

a o d i nhe i r o . T odos os c on t e x t os s e i n t r ome t e m e s upe r põe m,

corpor i f icando um contexto globa l , no qua l as f ronte i ras se tor

nam porosas para o dinhe i ro e para a informação . Além disso , o

te r r i tór io de ixa de te r f ronte i ras r ígidas , o qu e leva ao enf raq ue

c i me n t o e à muda n ç a de na t u r e z a dos E s t a dos na c i ona is .

O discurso que ouv imos tod os os dias , para nos f azer c re r qu edeve haver meno s Estado, va le - se dessa men cionada porosid ade ,

mas sua base essencial é o fato de que os con duto res da g lobalização

necessitam d e um Estado f lexível a seus interesses. As privatizações

são a most ra de qu e o capita l se tom ou devorante , guloso ao ex

t r e mo , e x i g indo s e mpr e ma i s , que r e ndo t ud o . A l é m d i s s o , a i n s

talação desses capitais globalizados supõe q ue o terr itó rio se adap te

às suas necessidades de f luidez, investindo pesadamente para al

terar a geografia das regiões escolhidas. De tal forma, o Estado

acaba por te r meno s recursos para tudo o qu e é socia l , sobre tud o

no caso das pr iva t izações ca rica tas , como no mo delo bras i le i ro ,que f inanc ia as empresas es t range i ras candida tas à com pra d o ca

pi ta l soc ia l nac iona l . Não é que o Estado se ausente ou se torne

men or . E le apenas se omite quan to ao inte resse das populações e

se torna mais forte, mais ágil , mais presente, ao serviço da econo

mi a domi na n t e .

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç ÃO 6 7

As empresas g lobais e a morte da pol í t ica

A pol í tica agora é fe i ta no merc ado. Só que esse merc ado glo - \

ba l não exis te como a tor , mas com o um a ideologia, um s ímb olo.

O s a t o r e s s ã o a s e mpr e s a s g l oba i s , que nã o t ê m p r e oc u pa ç õe sé t i c a s , ne m f i na l í s t i c a s . D i r - s e - á que , no mundo da c ompe

t i t ividade , ou se é cada vez mais individua l i s ta , ou se desapare

ce . Então, a própr ia lógica de sobrevivênc ia da empresa globa l

s uge r e que f unc i one s e m ne nhum a l t r u í s mo . Ma s , s e o E s t a do

não p od e se r sol idár io e a empresa n ão pod e se r a l t ruís ta , a soc ie

da de c om o um t odo nã o t e m qu e m a val ha . A gor a s e f al a mu i t o

nu m te rce i ro se tor, em qu e as empresas pr ivadas assum ir iam um

traba lho de ass is tênc ia soc ia l antes defe r ido ao poder públ ico.

Caber - lhes- ia , desse modo, escolher qua is os benef ic iá r ios , pr i

vi legiando uma parce la da soc iedade e de ixando a maior par tede fora . Haver ia f r ações do te r r i tór io e da soc iedade a se rem

de i xa da s po r c on t a , de s de que nã o c onve nha m a o c á l c u l o da s

f irmas. Essa "pol í t ica" das emp resas equiv a le à decre ta ção d e

mor te da Pol í t ica .

A pol í t ica , por def inição, é sempre ampla e supõe uma visão

de conjunto. E la apenas se r ea l iza quando exis te a consideração

de t odos e de t udo . Q ue m n ã o t e m v is ã o de c on j un t o nã o c he ga

a se r pol í t ico. E não há pol í t ica apenas para os pobres , com o não

há apenas para os r icos . A e l iminação da pobreza é um proble

m a es t rutura l . Fora da í o que se pre ten de é enco ntra r formas deproteção a ce r tos pobres e a ce r tos r icos , escolhidos segundo os

inte resses dos doadores . Mas a pol í t ica tem de cuidar do con

junto de r ea l idades e do conjunto de r e lações .

Na s condições a tua is , e de um mo do gera l , e s tamos ass is t indo

à não-pol í t ica , i s to é , à pol í t ica f ei ta pe las empresas , s obre tud o

 

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6 8 M I L T O N S A N T O S

as maiores . Quando uma grande empresa se ins ta la , chega com

s ua s no r ma s , qua s e t oda s e x t r e ma me n t e r í g i da s . Como e s s a s

normas r ígidas são assoc iadas ao uso considerado adequado das

t é c n ic a s c o r re s ponde n t e s , o m un do da s no r ma s s e a de ns a po r

que as técnicas em s i mesmas também são normas. Pe lo f a to de

qu e as técnicas a tua is são sol idár ias , qu and o um a se impõ e c r ia -

se a necess idade de t r azer out ras , sem as qua is aque la não func io

na be m. Ca d a t éc n i c a p r opõe u ma m a ne i r a pa r t i c u l ar de c o m

p o r t a m e n t o , e n v o l v e s u a s p r ó p r i a s r e g u l a m e n t a ç õ e s e , p o r

conseg uinte , t r az para os lugares novas formas de re lac i onam en

to . O me s mo s e dá c om a s e mpr e s a s . É a s s i m que t a mbé m s e

a l te ram as r e lações soc ia is dent ro de cada comunidade . Muda a

e s t r u t u r a do e mpr e go , a s si m c om o a s ou t r a s re l a ç ões e c o nôm i

cas , soc ia is , cul tura is e mora is dent ro de cada lugar , a fe tando

i gua l me n t e o o r ç a me n t o púb l i c o , t a n t o na r ub r i c a da r e c e i t a

c om o no c a p ít u l o da de s pe s a. U m p e que no núm e r o de g r a nde s

emp resas q ue se ins ta la acar re ta para a soc iedade comoTmFíeTto

um pe s a do p r oc e s s o de de s e qu i l í b ri o .

Todavia, mediante o discurso oficial, tais empresas são apre

sentadas com o sa lvadoras dos lugares e são apontadas com o cre

do r a s de r e c onhe c i me n t o pe l os s e us a po r t e s de e mpr e go e

modernidade . Daí a c rença de sua indispensabi l idade , f a tor da

presente guer ra ent re lugares e , em mui tos casos , de sua a t i tude

de c ha n t a ge m f r e n t e a o pode r púb l i c o , a me a ç a ndo i r e mbor a

qua ndo n ão a tendidas em seus r ec lamos. Assim, o po der p úbl icopassa a se r subordinado, compel ido, a r ras tado. À medida que se

v impõe esse nexo das grandes empresas , ins ta la - se a semente da

ingovernabi l idade , já for temen te imp lantada no Bras i l , a inda que

sua dimensão não tenha s ido adequad amen te ava liada . À me dida

que os ins t i tutos encar regados de cuidar do inte resse gera l são

P O R U M A O U T R A G L O B A L I ZA Ç Ã O 69

enf raquec idos , com o ab ando no da noção e da prá t ica da sol idar ie

d a d e , e s t a m o s , p e l o m e n o s a m é d i o p r a z o , p r o d u z i n d o a s

precondições da f ragmentação e da desord em, c la ram ente vis íve is

no pa ís , por meio do compor tamento dos te r r i tór ios , i s to é , da

cr ise pra t icamente gera l dos es tados e dos mun ic ípios .

1 1 . Em meio século, três definições da pobreza

O s pa í s e s s ubde s e nvo l v i dos c onhe c e r a m pe l o me nos t r ê s

formas d e pobreza e , para le lamente , t r ês formas d e dívida soc ia l ,

no ú l t i mo m e i o s é c u l o . A p r i me i r a s er i a o que ous a d a me n t e

c h a m a r e m o s d e pobreza induída, um a pobreza ac identa l , à s vezes

res idua l ou sazona l , produz ida em cer tos momentos do ano, uma

pobreza inte r s t ic ia l e , sobre tudo, sem vasos comunicantes .

D e po i s c he ga um a ou t r a , r e c onhe c i da e e s t uda da c om o u ma

doença da c ivi l ização. Então chamada de marginalidade, t a l po

breza e ra produz ida pe lo processo econômico da divisão do t r a

ba l ho , i n t e r na c i ona l ou i n t e r na . A dmi t i a - s e que pode r i a s e r

cor r igida , o que e ra buscado pe las mãos dos governos .

E agora chegam os ao te rce i ro t ipo , apobreza estrutural, q u e d e

u m po nt o de vis ta mora l e pol í t ico equiva le a um a dívida soc ia l.

E la é es t rutura l e não mais loca l , nem mesmo nac iona l ; torna- seg l oba li z a da, p r e s e n t e e m t oda pa r te no mu ndo . H á um a d i s s e

mina ção plane tá r ia e um a produç ão globa l izada da pobreza , a ind a

qu e este ja mais presente nos pa íses á pobres . Ma s é tam bém um a

produção c ient í f ica , por tanto voluntá r ia da dívida soc ia l , pa ra a

qua l , na maior par te do plane ta , não se buscam remédios .

 

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7 0 M I L T O N S A N T O S

A pobreza " inc lu ída"

A nt e s , as s i tuações de pobreza podiam ser def inidas como

r e ve l a do r a s de uma pobr e z a a c i de n t a l , r e s i dua l , e s t a c i ona i ,

inte r s t ic ia l , v is ta como desadaptação loca l aos processos mais

g e r a i s d e m u d a n ç a , o u c o m o i n a d a p t a ç ã o e n t r e c o n d i ç õ e sna tura is e condições soc ia is . E ra uma pobreza que se produz ia

num lugar e não se comunicava a out ro lugar .

E n t ã o , ne m a c i da de , ne m o t e r r i tó r i o , ne m a p r óp r i a s oc i e

da de e r a m e xc l us i va ou ma j o r i t a r i a me n t e mov i dos po r driving

forces c ompr e e n d i da s pe l o p r oc e s s o de r a c i ona li z a çã o . A p r e s e n

ça das técnicas , coladas ao te r r i tór io o u ine rentes à vida soc ia l ,

e ra r e la t ivamente po uco express iva , r eduz in do, ass im, a e f icác ia

dos processos r ac iona l izadores porventura vigentes na vida eco

nômica , cul tura l , soc ia l e pol í t ica . Desse modo, a r ac iona l idade

da exis tênc ia não const i tuía um dado essenc ia l do processo histór ico, l imi tand o-se a a lguns aspec tos i solados da soc iabi l idade .

A prod ução da pobreza i r ia buscar suas causas em out r os f a tores .

N a s i t ua ç ã o que e s t a mos de s c r e ve ndo , a s s o l uç õe s a o p r o

blema e ram pr ivadas , ass is tenc ia l i s tas , loca is , e a pobreza e ra

f r e qüe n t e me n t e a p r e s e n t a da c omo um a c i de n t e na t u r a l ou s o

c i a l . E m um mundo onde o c ons umo a i nda nã o e s t a va l a r ga

me n t e d i f und i do , e o d i nhe i r o a i nda nã o c ons t i t u í a um ne xo

s oc i a l ob r i ga t ó r i o , a pob r e z a e r a me nos d i s c r i mi na t ó r i a . D a í

poder - se f a la r de pobres inc luídos .

A marginal idade

N u m s e gundo mom e n t o , a pob r e z a é i de nt i fi c ada c om o u ma

doe nç a da c i v i l i z a ç ã o , c u j a p r oduç ã o a c ompa nha o p r óp r i o

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 7 1

pr oc e s s o e c onômi c o . A gor a , o c ons um o s e i mpõe c o mo u m da do

impo r tante , pois const i tui o cent ro da expl icação das di fe renças e

da percepção das s i tuações . Doi s f atores jog am u m pape l funda

men ta l . Am pl iam-s e , de um lado, as poss ibi l idades de c i r culação,

e de ou t ro, graças às formas mod ernas d e di fusão das inovações , a

informação co nst i tui um dad o revoluc ionár io nas r e lações soc iais .

O radiot ransis tor e ra o grande s ímbolo. A ampl iação do consu

m o ganh a , ass im, as condições m ate r iais e ps icológicas n ecessá

r ias , dan do à pobreza novos conte údos e novas def inições . Além

da pobreza absoluta , c ria - se e r ec ria - se incessantem ente u ma po

breza relativa, que leva a classif icar os indivíduos pela sua capaci

dade de consumir , e pe la forma com o o fazem. O es tabe lec ime n

to de " índices" de pobreza e misér ia uti l iza esses comp one ntes .

A i nda ne s s e s e gundo mome n t o , que c o i nc i de c om a ge ne

ra l ização e o sucesso da idé ia de subdesenvolvimento e das teor i as de s t ina da s a c omba t ê - l o , o s pob r e s e r a m c ha m a dos de ma r

g i na i s . P a r a s upe r a r t a l s i t ua ç ã o , c ons i de r a da i nde s e j á ve l ,

t o r na - s e , t a mb é m, ge ne r a l i za da a p r e oc upa ç ã o dos gove r nos e

das soc iedades nac iona is , por meio de suas e l i tes inte lec tua is e

po l í t ic a s , c om o f e nôm e no da pobr e z a , o que l e va a uma bus c a

de soluções de Estado para esse problema, consid erado grave ma s

não insolúve l . O êxi to do es tado do bem-esta r em tantos pa íses

da Europa oc identa l e a not íc ia das preocupações dos pa íses so

c ia l is tas para com a popu lação em gera l func ionavam com o in s

p i r a ç ão a os paí s es pob r e s , todos c o mpr om e t i dos , a o me n os i de o logicamente , com a luta cont ra a pobreza e suas manifes tações ,

a inda q ue n ão lhes fosse poss íve l a lcançar a rea l ização do es tado

de be m- e s t a r . Me s m o e m pa í s es c om o o nos s o , o pode r pú b l i c o

é forçado a encontra r fórmulas , sa ídas , a r remedos de solução.

Havia uma cer ta vergonha de não enf renta r a questão.

 

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7 2M I L T O N S A N T O S

A pobreza e s trutural g lobal izada

O ú l t i mo pe r í odo , no qua l nos e nc on t r a mos , r e ve l a uma

pobr e z a de novo t i po , um a pobr e z a e s t r u t u r a l g l obal i za da , r e

sul tante de um s is tema de ação de l iberada . Examinado o pro

c e s s o pe l o qua l o de s e mpr e go é ge r a do e a r e mune r a ç ã o doe mpr e go s e t o r na c a da ve z p i o r , a o me s m o t e mp o e m qu e o po

der p úbl ic o se r e t i r a das ta re fas de prote ção soc ia l , é l íc i to co n

s idera r que a a tua l divisão "adminis t r a t iva" do t r aba lho e a au

sênc ia de l iberada do Estado de sua missão soc ia l de r egulação

este jam contr ibuindo para uma produção c ient í f ica , globa l izada

e voluntá r ia da pobreza . Agora , ao cont rá r io das du as f ases ante

r iores , t r a ta - se de um a pobreza pervasiva , genera l izada , pe rm a

nente , globa l . Pode-se , de a lgum modo, admit i r a exis tênc ia de

a l go c om o um p l a ne j a me n t o c e n t r a l i z a do da pobr e z a a t ua l : a i n

da que seus a tores se jam mu i tos , o seu mo tor essenc ia l é o me smo dos out ros processos def inidores de nossa época .

A pobre za a tua l r esul ta da convergên c ia de causas que se dã o

e m d i ve r sos n í ve is , e x i s t indo c om o va s os c omu n i c a n t e s e c om o

algo rac iona l , um resul tado necessár io do presen te processo, um

f e nôm e no i ne v it á vel , c ons i de r a do a t é me s mo um f a t o na t u r a l .

Alcançamos, ass im, uma espéc ie de na tura l ização da pobre

za , que se r ia pol i t icamente produz ida pe los a tores globa is com

a colaboração consc iente dos governos nac iona is e , cont ra r ia

me nte às s i tuações precedentes , com a conivênc ia de inte lec tua is

cont ra tados — ou apenas conta tados — para legi t imar essa na

tura l ização.

Nessa úl t ima fase , os pobres não são inc luídos nem margi

nais , e les são exc luídos . A divisão do t r aba lho e ra , a té r ecente

me n t e , a l go ma i s ou me nos e s pon t â ne o . A gor a nã o . H o j e , e l a

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç ÃO 73

obed ece a cânones c ient íf icos — por i sso a consideramos u m a

divisão do t r aba lho adminis t r ada — e é movida por um meca

nism o qu e t r az consigo a produ ção das dívidas sociais e a diss e

minação da pobreza numa esca la globa l . Sa ímos de uma pobre

za para ent ra r em o ut ra . Deixa- se de se r po bre em um lugar p ara

ser pobre em out ro. Nas condições a tua is , é uma pobreza quase

sem remédio, t r az ida não apenas pe la expansão do desemprego,

com o, tamb ém , pe la r edução do va lor do t r aba lho. É o caso, po r

e xe mpl o , dos E s t a dos U n i d os , a p r e s e n t a do c omo o país q u e t e m

r e s o l v i do um pouc o m e nos ma l a que s tã o do de s e mpr ego , ma s

onde o va lor médio do sa lá r io ca iu. E essa queda do desempre

go nã o a t i nge i gua l me n t e t oda a popu l a ç ã o , po r que os ne g r o s

c on t i nu a m s e m e mpr e go , e m p r opor ç ã o t a l vez p io r do que a n

t es , e as populações de or igem la t ina se encontram na base da

escala salarial.

Essa produção maciça da pobreza aparece como um fenôm eno

bana l . Um a das grandes di fe renças do po nto d e vis ta é t ico é que a

pobreza de agora surge , impõe-se e expl ica - se como a lgo na tura l

e inevi táve l . Mas é uma pobreza produz ida pol i t icamente pe las

emp resas e instituições globais. Estas, de u m lado, pagam para criar

soluções localizadas, parcializadas, segmentadas, como é o caso

do Banco Mu ndia l , que , em di fe rentes par tes do mu ndo , f inan

c ia programas de a tenção aos pobres , que rend o passar a impres

são de se inte ressar pe los desva l idos , quand o, es t rutura lmen te , é

o grande prod utor da pobreza . Atacam-se , func iona lmente , m anifestações da pobreza , enqua nto estrutu ralm ente se cr ia a pobreza

ao nível do m un do . E isso se dá com a colaboração passiva ou ati

va dos governos nac iona is .

Vejam, então, a di fe rença ent re o uso da pa lavra pobreza e

da expressão dívida soc ia l nesses c inqü enta anos . O s po bres , i s to

 

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7 4 M I L T O N S A N T O S

é , aque les qu e são o obje to da dívida soc ia l , foram já incluídos e,

de po i s , marginalizados, e acabam por se r o que hoje são, i s to é ,

excluídos. Esta exc lusão a tua l , com a produçã o de dívidas soc ia is ,

obedece a um processo rac iona l , uma rac iona l idade sem razão,

ma s que c oma nda as ações hegemônicas e arrasta as demais ações.

Os exc luídos são o f ruto dessa r ac iona l idade . Po r a í se vê qu e a

que s t ã o c a p i t a l é o e n t e nd i me n t o do nos s o t e mpo , s e m o qua l

se rá impossíve l const rui r o discurso da l iberação. Este , desde qu e

seja simples e veraz, poderá ser a base intelectual da política. E

i s s o é c e n t r a l no mundo de ho j e , um mundo no qua l na da de

impor tante se f az sem discurso.

O pape l dos in te lec tuais

O t e r rí ve l é que , ne s s e mu nd o de ho j e , a um e n t a o n úm e r o

de le t r ados e diminui o de inte lec tua is . Não é es te um dos dra

mas a tua is da soc iedade bras ile i ra? Ta is le t r ados , equi voca dam en

te ass imi lados aos inte lec tua is , ou não pensam para encontra r a

ve r da de , ou , e nc on t r a ndo a ve r da de , nã o a d i z e m. N e s s e c a s o ,

nã o s e pod e m e nc o n t r a r c om o f u t u r o , r e ne ga ndo a f unç ã o p r i n

c ipa l da inte lec tua l idade , i s to é , o casamento pe rma nen te com o

porvi r , por meio da busca incansada da verdade .

A s s i m c omo o t e r r i t ó r i o é ho j e um t e r r i t ó r i o na c i ona l da

e c onom i a i n t e r na ci ona l ( M. S a n t os , A natureza do espaço, 1996) ,a pobreza , hoje , é a pobreza nac iona l da ordem inte rnac iona l .

Essa r ea l idade obr iga a discut i r a lgumas das soluções propostas

pa r a o p r ob l e ma , c omo , po r e xe mpl o , qua ndo s e i ma g i na pod e r

c ompe ns a r uma po l í t i c a ne o l i be r a l no p l a no na c i ona l c om a

possibi l idade de uma pol í t ica soc ia l no plano subnac iona l . N o

P O R U M A O U T R A G L O B A L I ZA Ç Ã O 7 5

caso bras i le i ro , é lamentáve l que pol í t icos e par t idos di tos de

esqu erda se ent re gue m a um a pol í tica de di re i ta , jog and o para

um lado a busca de soluções es t rutura is e l imi tando-se a propor

pa l i a t i vos , que nã o s ã o ve r da de i r a me n t e t r a ns f o r ma dor e s da

s oc i e da de , po r que s e r ã o i nóc uos , no mé d i o e no l ongo p r a z os .

As chamadas pol í t icas públ icas , quando exis tentes , não podem

subst i tu i r a pol í t ica soc ia l, considerad a um e lenco coe rente co m

as demais pol í t icas ( econômica , te r r i tor ia l e tc ) .

Nã o se t r a ta, pois , de de ixar aos níve is infe r iores de gov erno

— munic ípios , es tados — a busca de pol í t icas compensa tór ias

para a l ivia r as conseqüênc ias da pobreza , enquanto, ao níve l f e

deral, as ações mais dinâmicas estão orientadas cada vez mais para

a produção de pobreza . O dese jáve l se r ia que , a par t i r de uma

v i s ã o de c on j un t o , houve s s e r e d i s t r ibu i ç ã o dos pode r e s e de r e

cur sos ent re diver sas esfe ras pol í t ico-adminis t r a t ivas do poder ,

ass im com o um a redis t r ibuição das pre r roga t ivas e ta re fas en t re

as diver sas esca las te r r i tor ia is , a té mesmo com a re formulação

da federação. Mas, para i sso, é necessár io haver um proje to na

c i ona l , e e st e nã o pode s e r uma f o r mul a ç ã o a u t oma t i c a m e n t e

de r i va da do p r o j e t o he ge môn i c o e l i mi t a t i vo da g l oba l i z a ç ã o

a tua l . Ao cont rá r io , par t indo das r ea l idades e das necess idades

de c a da na çã o , deve nã o s ó e n t e ndê - l a s , c om o t a mb é m c ons t i

t u i r uma p r ome s s a de r e f o rmul a ç ã o da p r óp r i a o r de m mun d i a l .

N a s c ond i ç õe s a t uai s , um g r a nde c ompl i c a dor ve m d o f a to

de que a globa l ização é f r eqüentemente considerada uma fa ta l i dade , baseada num exagerado encantamento pe las técnicas de

ponta e com negl igênc ia quanto ao fa tor nac iona l , de ixando-se

de lado o pape l do te r r i tór io ut i l izado pe la soc iedade como um

seu re t r a to dinâmico. Ta l visão do mundo, uma espéc ie de vol ta

à ve lha noção de technological ftx (uma única tecnologia e f icaz) ,

 

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7 6 M I L T O N S A N T O S

acaba por consagrar a adoção de um ponto de par t ida f echado e

por ace i ta r como indiscut íve l e ine lutáve l o r e ino da necess ida

d e , com a mor te da esperança e da generosidade . Exc lusão e dí

v i da s oc i a l a pa r e c e m c omo s e f o s s e m a l go f i xo , i mu t á ve l ,

i nde c l i ná ve l , qua ndo , c omo qua l que r ou t r a o r de m, pode s e r

s ubs t i t u í da po r uma o r de m ma i s huma na .

1 2 . O quefazer com a soberania

De qu e man ei ra a globa l ização a fe ta a soberania das nações ,

as f ronte i ras dos pa íses e a governab i l idade plena é um a q uestão

q u e , vol ta e meia , ocupa os espí r i tos , se ja teor ica men te , se ja e m

f unç ã o de f a to s c onc r e tos . N e s s e t e r r e no , c omo e m mu i t os ou

t r o s , a pro duç ão de meias-verd ades é inf ini ta e som os f reqüe n

t e me n t e c onvoc a dos a r e pe t i- l a s s e m ma i o r a ná l i s e do p r ob l e

ma. Há , mesmo, quem se a r r i sque a f a la r de des te r r i tor ia l idade ,

f im das f ronte i ras , mor te do Estado. Há os ot imis tas e pess imis

t as , os defensores e os acusadores .

Tomemos o caso par t icula r do Bras i l pa ra discut i r mais de

per to essa questão, a inda que nossa r ea l idade se aparente à de

mui tos out ros pa íses do plane ta . Com a globa l ização, o que te

mos é um te r r i tór io nac iona l da economia inte rnac iona l , i s to é ,o te r r i tór io cont inua exis t indo, as normas públ icas que o r egem

são da a lçada nac iona l , a inda que as forças mais a t ivas do seu

d i na m i s mo a t ua l t e nha m o r i ge m e x t e r na . E m ou t r a s pa l av r a s , a

cont radição ent re o exte rno e o inte rno aumentou. Todavia , é o

Estado nac iona l , em úl t ima aná l i se , que de tém o monopól io das

P O R U M A O U T R A G L O B A LI Z A Ç ÃO 7 7

nor ma s, sem as qua is os pode rosos f a tores exte rnos pe rde m ef i

cácia. Sem dúvida, a noção de soberania teve de ser revista, face

aos s i s temas t r ansgressores de âm bi to plane tá r io , cujo exerc íc io

violento acentua a porosidade das f ronte i ras . Estes , são, sobre

tudo, a informação e a f inança, cuja f luidez se multiplica graças

às maravi lhas da técnica contemporânea . Mas é um equívoco

pensar que a informação e a f inança exercem sempre sua força

s e m e nc on t r a r c on t r apa r t i da i n t e rna . Es ta de pe nde de um a v on

tade política interior , capaz de evitar que a influência dos ditos

fatores seja absoluta.

A o c on t r á r i o do que s e r e pe t e i mpune me n t e , o E s t ado c on

t inua for te e a prova disso é que n em as empresas t r ansnac ion a is ,

nem as ins t i tuições supranac iona is dispõem de força normat iva

pa r a i mpor , s oz i nha s , de n t r o de c a da t e r r i t ó r i o , s ua von t a de

pol í t ica ou econômica . Por inte rmédio de suas normas de produção, de t r aba lho, de f inanc iamento e de cooperação com ou

t ras f i rmas, as empresas t r ansnac iona is a r ras tam out ras empre

sas e ins t i tuições dos lugares onde se ins ta lam, impondo- lhes

compor tamentos compat íve is com seus inte resses . Mas a vida

de um a e mpr e s a va i a l é m do me r o p r oc es s o t éc n i c o de p r o du

ção e a lcança tod o o entor no , a começa r pe lo próp r io me rcado e

inc lu indo ta mb ém as inf ra -es t ruturas geográf icas de apoio, sem

o que e la não pode te r êxi to . É o Estado nac iona l que , a f ina l ,

r e gu l a o mundo f i na nc e i r o e c ons t r ó i i n f r a - e s t r u t u r a s , a t r i

bu ind o, ass im, a grandes empresas escolhidas a condição de suaviabi l idade . O mesmo pode se r di to das ins t i tuições suprana

c i ona i s ( F MI , Ba nc o Mund i a l , N a ç õe s U n i da s , O r ga n i z a ç ã o

Mu nd i a l do Com é r c i o ) . t u j o s e d i t o s ou r e c ome nda ç õe s ne c e s

s i tam d e dec isões inte rnas a cada pa ís para que t enh am ef icác ia .

O Banco C entra l é , f r eqüe ntem ente , essa cor re ia de t r ansmissão

 

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78 M I L T O N S A N T O S

( s i tuada ac ima do Par lamento) ent re uma vontade pol í t ica ex

te rna e uma ausênc ia de vontade inte r ior . Por i sso, tornou-se

cor r ique i ro ent regar a di reção desses bancos cent ra is a per sona

ge ns ma i s c ompr ome t i da s c om os pos t u l a dos i de o l óg i c os da

f inança inte rnac io na l do que com os inte resses concre tos das

soc iedades nac iona is .

Mas a cessão de soberania não é a lgo na tura l , ine lutáve l ,

automát ico, pois depende da forma como o governo de cada pa ís

dec ide fazer sua inserção no mundo da chamada globa l ização.

O Estado a l te ra suas r egras e f e ições num jogo combinado

de inf luênc ias exte rnas e rea l idades inte rnas . Mas nã o há ap enas

um cam inho e es te não é obr iga tor iame nte o da pass ividade . P or

conseguinte , não é verdade que a globa l ização impeça a const i

tuição de um proje to nac iona l . Sem isso, os governos f icam à

mercê de exigênc ias exte rnas , por mais descabidas que se jam.

Este parece se r o caso do Bras i l atua l . Cre mo s, todavia , que sem

pr e é t e mp o de c o rr i g ir o s r umo s e qu i voc a dos e, me s m o nu m

mundo globa l izado, f azer t r iunfa r os inte resses da nação.

I V

O T E R R I T Ó R I O D O D I N H E I R O E

D A F R A G M E N T A Ç Ã O

I n t r o d u ç ã o

N o m un do da globa l ização, o espaço geográf ico ganha n o

vos contornos , novas ca rac te r í s t icas , novas def inições . E , tam

bém, uma nova impor tânc ia , porque a e f icác ia das ações es tá

es t r e i tam ente r e lac ionada co m a sua loca l ização. Os a tores ma is

poderosos se r ese rvam os melhores pedaços do te r r i tór io e de i

xam o res to para os out ros .

N uma s i t ua ç ã o de e x t r e ma c ompe t i t i v i da de c omo e s t a e m

que v i ve m os , o s luga r es r e pe r c u t e m os e mba t e s e n t r e o s d i ve r

s os a to r e s e o t e r r it ó r i o c omo um t odo r e ve l a o s mov i m e n t os de

f undo da s oc i e da de . A g l oba l i z a ç ã o , c om a p r oe mi nê nc i a doss i s t e ma s t é c n i c os e da i n f o r ma ç ã o , s ubve r t e o a n t i go j og o da

evolução te r r i tor ia l e impõe novas lógicas .

Os te r r i tór ios tend em a uma compar t im entação g enera l izada ,

onde se assoc iam e se chocam o movimento gera l da soc iedade

plane tá r ia e o movi me nto par t icula r de cada f r ação, r egiona l ou

 

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80 M I L T O N S A N T O S

loca l , da soc iedade nac iona l . Esses movimentos são para le los a

um processo de f r agmentação que rouba às cole t ividades o co

ma ndo do s e u de s t i no , e nqua n t o os novos a t o r e s t a mbé m nã o

d i s põe m de i n s t r ume n t os de r e gu l aç ã o que i n t e r e s s e m à s oc i e

dade em seu conjunto. A agr icul tura moderna , c ient i f izada e

mundia l izada , ta l como a ass is t imos se desenvolver em pa íses

com o o Bras i l , const i tui um e xem plo dessa tendên c ia e um dad o

e s s e nc i a l a o e n t e nd i me n t o do que no pa í s c ons t i t ue m a c om

par t imentação e a f r agmentação a tua is do te r r i tór io .

Outro f enômeno a levar em conta é o pape l das f inanças na

rees t ruturação do espaço geográf ico. O dinhe i ro usurpa em seu

favor as per spec t ivas de f luidez do te r r i tór io , busca ndo confor

mar sob seu comando as out ras a t ividades .

Ma s o t e r r it ó r i o nã o é um da do ne u t r o n e m u m a t o r pa s s i

v o . Produz-se uma verdade i ra esquizof renia , já que os lugares

escolhidos acolhem e benef ic iam os ve tores da r ac iona l idade

dom i na n t e ma s t a mbé m pe r mi t e m a e me r gê nc i a de ou t r a s f o r

mas de vida . Essa esquizof renia d o te r r i tór io e do lugar tem um

papel a t ivo na formação da consc iênc ia . O espaço geográf ico n ão

apenas r eve la o tr anscurso d a his tór ia com o indica a seus a tores

o modo de ne la inte rvi r de mane i ra consc iente .

13 . O espaço geográfico: compartimentação efragmentação

A o l ongo da h i s t ó r i a huma na , o l ha do o p l a ne t a c omo um

todo ou observado a t ravés dos cont inentes e pa íses , o espaço

ge ogr áf i co s e mpr e f o i ob j e t o de um a c ompa r t i m e n t a ç ã o . N o

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O

começo havia i lhas de ocupação devidas à presença de grupos ,

t r ibos , nações , cujos espaços de vida formar iam verdade i ros a r

qu i pé l a gos . A o l ongo do t e mpo e à me d i da d o a ume n t o da s po

pulações e do inte rcâmbio, essa t r ama foi se tornando cada vez

mais densa . Hoje , com a globa l ização, pode-se dizer que a tota

l idade da superf íc ie da Terra é com par t im entada , n ão apenas p e la

a ç ã o d i r e t a do hom e m , ma s t a m bé m pe l a s ua p r e s e nç a po l í t ic a .

N e nhuma f r a ç ã o do p l a ne t a e s c a pa a e s s a i n f l uê nc i a . D e s s e

mo do , a ve l ha noç ã o de e c úme no pe r de a a n ti ga de fi n i ç ão e ga

nha u ma nova d i me n s ã o ; t a n t o se pode d i z e r que t oda a s upe r

f íc ie da Ter ra se tornou ecúmeno quanto se pode a f i rmar que

essa pa lavra já nã o se apl ica apenas ao plane ta e fe t ivam ente ha

bi tado. Com a globa l ização, todo e qua lquer pedaço da super f í

c ie da Ter ra se torna func iona l às necess idades , usos e ape t i tes

de Estados e em presas nes ta f ase da his tór ia .

Desse modo, a super f íc ie da Ter ra é inte i r amente compar t i

mentada e o r espec t ivo ca le idoscópio se apresenta sem solução

de cont inuidade . Redef inida em função dos ca rac te r í s t icos de

uma época , a compar t imentação a tua l dis t ingue-se daque la do

pa s s a do e f r e qüe n t e me n t e s e dá c omo f r a gme n t a ç ã o . S e u c o n

teúdo e def inição var iam a t ravés dos tempos, mas sempre reve

l a m um c o t i d i a no c ompa r t i do e c ompl e me n t a r a i nda que t a m

bé m conf l i t ivo e hie rá rquico, um acontecer sol idár io ident i f icado

com o meio, a inda que sem exc lui r r e lações dis tantes . Ta l sol i

dar iedade e ta l ident i f icação const i tuem a garant ia de uma poss íve l r egulação inte rna . Já a f ragmentação reve la um cot idian o

e m que há pa r â me t r os e xóge nos , s e m r e f e r ê nc i a a o me i o . A

ass imetr ia na evolução das diver sas par tes e a di f iculdade ou

me s mo a i mpos s i b i l i da de de r e gu l a ç ã o , t a n t o i n t e r na qua n t o

exte rna , const i tuem uma carac te r í s t ica marcante .

 

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8 2 M I L T O N S A N T O S

A c o mp a r t i me n ta ç ã o : p a s s a d o e p r e s e n te

A t é r e c e n t e me n t e , a hum a n i da d e v iv i a o mu nd o da l e n t i dã o ,

no q ua l a prá t ica de ve loc idades di fe rentes não separava os r es

pec t ivos agentes . Eram r i tmos diver sos , mas não incompat íve is .

D e n t r o de c a da á re a , o s c ompa r t i me n t os e r a m s o l da dos po r r e

gras , a i nda que nã o houve s s e c on t i gu i da de e n t r e e l e s. O me s

m o po de se r di to em re lação ao que se passava na esca la inte rna

c iona l . O me lhor ex emplo , desde o úl t imo quar te l do século XLX,

é o da const i tuição dos impér ios , fundado cada qua l numa base

técnica di fe rente , o que não impedia a sua coexis tênc ia , nem a

possibi l idade de cooperação na di fe rença . Durante um século

c onv i ve r a m i mpé r i os c omo o b r i t â n i c o , po r t a do r da s t é c n i c a s

mais avançadas da produção mater ia l , dos t r anspor tes , das co

mun i c a ç õe s e do d i nhe i r o , c om i mpé r i os de s s e pon t o de v i s t a

me nos a va nç a dos , po r e xe mpl o o i mpé r i o po r t uguê s ou o i m

pér io espanhol . Pode-se dizer que a pol í t ica compensava a di

ver s idade e a di fe renc iação do poder técnico ou do poder eco

nôm i c o , a s s e gu r a ndo , a o me s mo t e mp o , a o r de m i n t e r na a c a da

um de s s es i mpé r i o s e a o r de m i n t e r nac i ona l . P o r in t e r mé d i o da

pol í t ica , cada pa ís imper ia l r egulava a produção própr ia e a das

suas colônias , o com érc io ent re es tas e os out ro s pa íses , o f luxo

de p r odu t os , me r c a dor i a s e pe s s oa s , o va l o r do d i nhe i r o e a s

formas de governo. O famoso pac to colonia l acabava por com

pree nde r todas as manifes tações da vida histór ica e os e qui l íbr ios

no inte r ior de cada impér io se davam para le lamente ao equi l í

b r i o e n t r e a s na ç õe s impe r i a i s . D e a l gum mo do , a o r de m i n t e r

nac iona l e ra produ z ida por mei o da pol í t ica dos Estados . D en tro

de cada pa ís , a compar t imentação e a sol idar iedade presumiam

a presença de cer tas condições , todas pra t icam ente r e lac ionadas

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z AÇ Ã O 8 3

c om o t e r r i t ó r i o : uma e c onomi a t e r r i t o r i a l , uma c u l t u r a t e r

r i tor ia l , r egidas por r egras , igua lmente te r r i tor ia l izadas , na for

ma de l e i s e de t ra t a dos , ma s t a m bé m de c o s t ume s .

P o r m e i o da r e gu l a ç ão , a c ompa r t i me n t a ç ã o dos t e r r i t ó r i o s ,

na esca la nac iona l e inte rnac iona l , pe rm i te qu e se jam n eut ra l iza -

k das di fe renças e me sm o as oposições se jam paci f icadas , media nte

i um processo pol í t ico que se r enova , adaptando-se às r ea l idades

e me r ge n t e s pa r a t a mb é m r e nova r, de s s e mod o , a s o l ida r i e dade .

N o p l a no i n t e r na c i ona l , es s e p r oc e s s o c um ul a t i vo de a da p

tações leva às modif icações do es ta tuto colo nia l , ace le radas co m

o f im da S e gunda G ue r r a M und i a l . N o p l a n o i n t e r no , a bus c a

de sol idar iedade conduz ao enr iquec imento dos di re i tos soc ia is

com a ins ta lação de di fe rentes mo dal idad es de democ rac ia soc ial .

Ra p i d e z , f l u i d e z , f r a g me n ta ç ã o

Hoje , vivemos um mundo da rapidez e da f luidez . Tra ta - se

de uma f luidez vi r tua l , poss íve l pe la presença dos novos s i s te

mas técnicos , sobre tudo os s i s temas da informação, e de uma

f luidez e fe t iva , r ea l izada quan do essa f luidez p otenc ia l é ut i l iza

da no e xe r c í c i o da a ç ã o , pe l a s e mpr e s a s e i n s t i t u i ç õe s he ge

mô nicas . A fluidez potenc ia l aparece no ima ginár io e na ideolo

g i a c omo s e f o s s e um be m c omum, uma f l u i de z pa r a t odos ,

quando, na verdade , apenas a lguns agentes têm a poss ibi l idadede ut i l izá -la , torn ando -se , desse m od o, os de tentores e fe t ivos da

ve loc idade . O exerc íc io des ta é , pois , o r esul tado das disponibi

lidades ma teriais e técnicas existentes e das possibilidad es de ação.

A s s i m, o mu nd o da r a p i dez e da f l u i de z s ome n t e s e e n t e nde a

pa r t i r de um p r oc e s s o c on j un t o n o qua l pa r ti c i pa m de um l a do

 

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8 4 M I L T O N S A N T O S

Y* IsfJJAjdtfò ——

as técnicas atuais e, de o u t r o , a pol í t ica a tua l , sendo qu e esta é

empreendida tanto pe las ins t i tuições públ icas , nac iona is , int r a -

nac iona is e in te rnac iona is , como pe las empresas pr ivadas .

As a tua is compar t imentações d os te r ri tór ios ganham esse no vo

ingrediente . Cr iam-se , para le lamente , incompat ibi l idades ent re

ve loc idades diver sas ; e os por t a do r e s das ve loc idades ext remas

bus c a m i nduz i r os demais a tores a a c ompa nhá - l o s , p r oc u r a ndo

d i s s e mi na r as infra-estruturas necessárias à desejada f luidez no s

lugares que consideram necessários para a sua a t ividade . Há, to

davia , sempre , um a seletividade nessa difusão, separando os es

paços da pressa daqueles outros propícios à lent idão, e dessa forma

acrescentando ao processo de compar t imentação nexos ver t ica is

q u e se s upe r põe m à comp ar t imentação hor izonta l , ca rac te r ís t ica

da his tór ia humana até da ta r ecente . O f e n ô m e n o é gera l , já que ,

conforme vim os antes , tudo hoje es tá compar t imentado ; inc luind ot oda a superfície do planeta.

É po r meio dessas l inhas de menor r es is tênc ia e, por c o n s e

gu i n t e , de maior f luidez, que o mercado globa l izado procura ins

talar a sua vocação de e xpa ns ã o , me d i a n t e p r oc e s s os qu e levam

à busca da unificação e não p r o p r i a m e n t e à bus c a da u n i ã o . O

c ha ma do me r c a do g l obal se impõe como razão pr inc ipa l da c o n s

t i tuição desses espaços da fluidez e, logo, da sua ut i l ização, im

p o n d o , po r m e i o de tais lugares, um f unc i ona me n t o qu e r e p r o

d u z as suas própr ias bases ( John Gray, Falso amanhecer, os equívocos

do capitalismo, 1999) , a c ome ç a r pe l a c ompe t i t i v i da de . A l i t e ra tura apologé t ica da globalização fala de c ompe t i t i v i da de e n t r e

Estados , m as , na verdade , t r a ta - se de c ompe t i t i v i da de e n t r e em

pr e s a s , que , às vezes , a r ras tam o E s t a do e sua f o r ç a no r ma t i va

n a p r o d u ç ã o de condições f avoráve is àque las dotadas de ma i s

pode r . E dessa forma que se potenc ia l iza a voc a ç ã o de r a p i de z

P O R UM A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 8 5

e de urgênc ia de a l guma s e mpr e s a s em d e t r i m e n t o de ou t r a s ,

uma c ompe t i t iv i da de que agrava as diferenças de força e as dispa

r i da de s , e nqua n t o o te r r i tór io , pe la sua or ga n i z a ç ã o , c ons t i t u i -

se n u m i n s t r u m e n t o do exerc íc io dessas di fe renças de pode r .

Cada empresa , porém, ut i l iza o te r r i tór io em função dos seus

f ins própr ios e e xc l us i va me n t e em função desses f ins. As em

presas apenas tê m o l hos pa r a os seus própr ios obje t ivos e são

cegas para tud o o mais . Desse m od o, quanto mais r ac iona is forem

as regras de sua ação individua l tanto menos ta is r egras se rão

r e s pe i t o s a s do e n t o r no e c onômi c o , s oc i a l , po l í t i c o , c u l t u r a l ,

m o r a l ou geográf ico, func ionando, as ma i s da s ve z e s , c om o um

e l e m e n t o de pe r t u r ba ç ã o e m e s m o de d e s o r d e m . N e s s e m o v i

m e n t o , t u d o qu e exis t ia ante r iormente à ins ta lação dessas em

pr e s a s he ge môn i c a s é c onv i da do a adapta r - se às suas formas de

s e r e de a g ir , me s m o qu e p r o v o q u e , no e n t o r no p r e e x i s t e n t e ,

grandes dis torções , inc lus ive a que br a da sol idar iedade soc ia l .

Co mp e t i t i v i d a d e versus sol idar iedade

P ode - s e d i z e r e n t ã o que, em úl t ima aná l i se , a c o m p e t i t i

vidade acaba po r de s t r oç a r as ant igas sol idar iedades , f r eqüente

me n t e ho r i z on t a i s , e por i m p o r um a sol idar iedade ver t ica l , cujo

e p i c e n t r o é a e mpr e s a he ge môn i c a , l oc a l me n t e obe d i e n t e a i n t e

resses globa is mais poderoso s e, de s s e mod o , i nd i f e r e n te ao en

t o r n o . As sol idar iedades hor izonta is preexis tentes r e faz iam-se

h i s t o r i c a me n t e a par t i r de um de ba t e i n t e r no , l e va ndo a ajustes

inspi rados na vontade de r econst rui r , em novos te rmo s, a própr ia

sol idar iedade hor izonta l . Já agora , a sol idar iedade ver t ica l qu e

se imp õe exc lui qu a lque r deba te local e f icaz , já que as e mpr e s a s

 

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8 6 M I L T O N S A N T O S

he ge môn i c a s t ê m a pe na s do i s c a mi nhos : pe r ma ne c e r pa r a e xe r

cer plenamente seus obje t ivos individua l i s tas ou re t i r a r - se .

Como c a da e mpr e s a he ge môn i c a no ob j e t i vo de s e ma n t e r

com o ta l deve rea lçar ta is inte resses individua is , sua ação é r a ra

me n t e c oo r de na da c om a de ou t r a s , ou c om o pode r púb l i c o , e

ta l descoorden ação agrava a desorganização, i s to é , r edu z as poss ibi l idades do exerc íc io de um a busca de sen t ido para a vida loca l

Ca da e mp r e s a he ge môn i c a a ge sob r e uma pa r c el a do t e r r i

t ó r i o . O t e r r i t ó r i o c omo um t odo é ob j e t o da a ç ã o de vá r i a s

e mpr e s a s , c a da qua l, c on f o r me j á v i mos , p r e oc upa da c o m s ua s

própr ias metas e a r ras tando, a par t i r dessas metas , o compor ta

mento do res to das empresas e ins t i tuições . Que res ta então da

nação diante dessa nova rea l idade? Co m o a nação se exerce diante

da verdade i ra f r agmentação do te r r i tór io , função das formas c on

temporâneas de ação das empresas hegemônicas?

A pa lavra fr agmentação im põe-se co m toda força por qu e , nas

condições ac ima descr i tas , não há regulação poss íve l ou es ta

a pe na s c onsa g r a a lguns a t o re s e es t e s , e nqua n t o p r o duz e m um a

or de m e m c a us a p r óp r ia , c r ia m, pa r a l el a me n t e , de s o r de m pa r a

t udo o ma i s . Como e s s a ordem desordeira é globa l , ine rente ao

própr io processo produt ivo da globa l ização a tua l , e la não tem

l i mi t e s ; ma s nã o t e m l i mi t e s po r q ue t a mb é m nã o t e m f i na li da

de s e , de s s e modo , ne nh um a r e gu l a ç ão é poss í ve l, po r que nã o

de s e j a da . E s s e novo pode r da s g r a nde s e mpr e s a s , c e ga me n t e

exerc ido, é , por na tureza , desagregador , exc ludente , f r agmen-

tador , seqüest rando autonomia ao res to dos a tores .

Os f ragmentos r esul tantes desse processo a r t iculam-se ex

t e r na me n t e s e gundo l ógi c as dup l a me n t e e s t r a nha s : po r s ua s e de

dis tante , longínqua quanto ao espaço da ação, e pe la sua incon

formid ade co m o sent ido preexis tente da vida na á rea em qu e se

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O S7

i n s t a l a . D e s s e modo , p r oduz - s e uma ve r da de i r a a l i e na ç ã o t e r

r itorial à qua l cor res pon dem o utras formas de a l ienação.

Dentro de um mesmo pa ís se c r iam formas e r i tmos di fe

rentes de evolução, governados pe las metas e des t inos espec í f i -x cos de cada emp resa hegemôn ica , que a r ras tam com sua presenç a

\ out ros a tores soc ia is , mediante a ace i tação ou mesmo a e laboração de discursos "nac iona is- regiona is" a l ienígenas ou a l ienados .

O u t r a r e a ç ã o c on du z à e l a bo r a ç ã o pa r a l e l a de d i s c u r s o s

rea t ivos dotados de conteúdo espec í f ico e des t inados a most ra r

i nc onf o r mi da d e c o m a s f o r ma s v i ge n t e s de i n s e r çã o no " m un

d o " . Cr i a m- s e , e m c e r t o s c a s os , nova s s obe r a n i a s , c omo , po r

e x e m p l o , n a a n t i g a I u g o s l á v i a , o u a u t o n o m i a s a m p l i a d a s ,

e n t r on i z a ndo o qu e s e pode r i a m c ha m a r regiões-patses, c u j o e xe m

p l o e mbl e má t i c o nos ve m da E s pa nha . Como r e s o l ve r a que s

t ã o de de n t r o de um m e s m o pa í s , qua ndo o pa s s a do nã o o f e r e

ceu como herança conjunta a exis tênc ia de cul turas par t icula res

s o l i da me n t e e s t abe l e c ida s , j un t o a um a von t a de po l í t ic a r e g i o

na l j á e xe r c i da c omo pode r ?

E s s e p r ob l e ma s e t o r na ma i s a gudo na me d i da e m que a s

com par t im entaçõe s a tua is do te r r i tór io não são enxergadas co mo

f ragmentação. I sso se dá , gera lmente , qua ndo a inte rpre tação d o

fa to nac iona l é ent reg ue a visões aparentem ente tota l izantes , mas

na rea l idade par t icula r i s tas , como cer tos enfoques da economia

e , mesmo, da c iênc ia pol í t ica , que não se apropr iam da noção

do te r r i tór io considerado como território usado e vis to , desse mo do ,

c om o e s t r u t u r a do t a da de um m ov i m e n t o p r óp r i o . E me l ho r f a

z e r a na ç ã o po r i n t e r mé d i o do s e u t e r r i t ó r io , po r que ne l e t ud o

o que é vida es tá r epresentado.

 

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88 M I L T O N S A N T O S

1 4 . A agricultura científica globalizada e a alienação

do território

Des de o pr inc ípio dos tempos , a agr icul tura com parece c om o

uma a t ividade reve ladora das r e lações profundas ent re as soc ie

da de s hum a na s e o s e u e n t o r no . N o c o me ç o da h i s t ó r i a t a is r e

l a ç õe s e r a m, a be m d i z e r, e n t r e o s g r upos hum a no s e a na t u r e

z a . O a va nç o da c i v i l i z a ç ã o a t r i bu i a o home m, po r me i o do

aprofundamento das técnicas e de sua di fusão, uma capac idade

cada vez mais c rescente de a l te ra r os dados na tu ra is qua nd o po s

s íve l , r eduz i r a impo r tânc ia do seu impac to e , tam bém , po r m eio

da organização soc ia l , de modif ica r a impor tânc ia dos seus r e

sul tados . Os úl t imos séculos marcam, para a a t ividade agr ícola ,

com a humanização e a mecanização do espaço geográf ico, uma

consideráve l mudança de qua l idade , chegando-se , r ecentemente ,

à c ons t i t u i ç ã o de um me i o ge ogr á f i c o a que pode mos c ha ma r

de m eio técnico-c ient í f ico- informaciona l , ca rac ter í s t ico não a pe

na s da v i da u r ba na ma s t a mb é m d o mu nd o r u r a l , t a n t o nos pa í

ses avançados como nas r egiões mais desenvolvidas dos pa íses

pobr e s . E de s s e modo que s e i n s t a l a uma a g r i c u l t u r a p r op r i a

me n t e c ie n t íf i ca , r e spons á ve l po r mud a nç a s p r o f unda s qua n t o

à produ ção agr ícola e qua nto à vida de r e lações .

Podemos agora f a la r de uma agr icul tura c ient í f ica globa

l izada . Quando a produção agr ícola tem uma re fe rênc ia planetá r ia , e la r ecebe inf luênc ia daque las mesmas le is que regem os

o u t r o s a s p e c t o s d a p r o d u ç ã o e c o n ô m i c a . A s s i m , a c o m p e t i

t ividade , ca rac ter í s t ica das a t ividades de cará te r plane tá r io , leva

a um a p r o f unda m e n t o da t e ndê nc i a à i n s ta l aç ã o de uma a g r i c u l

tura c ient í f ica . Esta , como v imo s, é exigente de c iênc ia , técnica

e informação, levando ao aumento exponenc ia l das quant idades

produz idas em re lação às super fíc ies plantadas . Por sua na turez a

globa l , cond uz a um a demand a ext rema de comérc io. O di nhe i ro

passa a se r um a " informação " indispensáve l .

A demanda externa de rac ional idade

Na s á reas onde essa agr icul tura c ientí f ica globa l izada se in s

ta la , ve r i f ica -se um a impor tant e dem and a de bens c ient í f icos

( sementes , inse t ic idas , f e r t i l izantes , cor re t ivos) e , também, de

a s s i s t ê nc i a t é c n i c a . O s p r odu t os s ã o e s c o l h i dos s e gundo uma

base mercant i l , o que também impl ica uma es t r i ta obediênc ia

aos mand am ento s c ient í ficos e técnicos . São essas condições qu e

r e ge m os p r oc e s s os de p l a n t a ç ã o , c o l he i t a , a r ma z e na me n t o ,

e mpa c o t a me n t o , t r a ns po r t e s e c ome rc i a li z a çã o , l e va ndo à i n t r o dução, aprofundamento e di fusão de processos de r ac iona l iza

ç ã o que s e c on t a g i a m mut ua me n t e , p r opondo a i n s t a l a ç ã o de

sis temismos, que a t r avessam o te r r i tór io e a soc iedade , levando,

co m a rac iona l ização das prá t icas , a um a cer ta hom ogen e ização .

Dá-s e , na r ea l idade , tam bém , um a cer ta mi l i ta r ização do t r a

ba l h o , j á qu e o c r i t é r i o do s uc e s s o é a obe d i ê nc i a à s r e g r a s

suger idas pe las a t ividades hegemônicas , sem cuja ut i l ização os

agentes r eca lc i t r antes acabam por se r des locados . Se entender

mo s o t e r r i t ó ri o c omo u m c on j un t o de e qu i pa me n t os , de i n s t i

t u i ç õe s , p r á t i c a s e no r ma s , que c on j un t a me n t e move m e s ã o

mov i da s pe l a s oc i e da de , a a g r i c u l t u r a c i e n t í f i c a , mode r na e

globa l izada acaba por a t r ibui r aos agr icul tores modernos a ve

lha condiçã o de se rvos da gleba . É a tend er a ta is impera t iv os ou

c a i r

 

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9 0 M I L T O N S A N T O S

Nas á reas onde ta l f enômeno se ver i f ica , r egis t r a - se uma

t e ndê nc i a a um d up l o de s e m pr e go : o dos a g ri c u l t o re s e ou t r os

e mpr e ga d os e o dos p r op r i e t á r io s ; po r i ss o , f o r ma - s e no mu nd o

r u r a l e m p r oc e s s o de mode r n i z a ç ã o uma nova ma s s a de e mi

grantes , que tanto se podem di r igi r às c idades quanto par t ic ipar

da produção de novas f r entes pione i ras , dent ro do própr io pa ís

ou no es t r ange i ro, como é o caso dos bras igua ios .

As s i tuações ass im cr iadas são var iadas e múl t iplas , produ

z i ndo u ma t i po l og i a de a t i v ida de s c u j os s ub t i pos de pe nd e m da s

c ond i ç õe s f und i á r i a s , t é c n i c a s e ope r a c i ona i s p r e e x i s t e n t e s .

N uma me s ma á r e a , a i nda que a s p r oduç õe s p r e domi na n t e s s e

a s s e me l he m, a he t e r oge ne i da de é de r e g r a . H á , na ve r da de ,

he t e r oge ne i da de e c ompl e me n t a r i da de . D e s s e modo , pode - s e

fa la r na exis tênc ia s imul tânea de cont inuidades e descont inui

dades . E dessa manei ra que se enr iquece o pape l da viz inhança

e , a despe i to das di fe renças exis tentes ent re os diver sos agentes ,

e l e s v i ve m e m c om um c e r ta s e xpe r i ênc i a s , c om o , po r e xe m pl o ,

a s ubor d i na ç ã o a o me r c a do d i s t a n t e .

Ta l exper iênc ia é tanto mais sensíve l po rqu e decor re de u m a

demanda "exte rna" de " rac iona l idade" e das r espec t ivas di f icul

dades de ofe recer uma resposta . Resta , como conseqüênc ia , a

tom ada de consc iênc ia da impo r tânc ia de fa tores "exte rn os" : u m

me r c a d o l ong í nquo , a té c e r to pon t o a bs t r a t o ; um a c onc or r ê nc i a

de cer to m od o " invis ível" ; preços inte rnac iona is e nac iona is so bre

os qua is não há cont role loca l , improv áve l , també m, para o ut ro scomponentes do cot idiano, igua lmente e laborados de fora , como

o va l o r e x t e rno da moe da ( c â mb i o ) , de que de pe n de o va l o r i n

t e r no da p r oduç ã o , o c us t o do d i nhe i r o e o pe s o s ob r e o p r od u

tor dos lucros aufe r idos por todos os t ipos de inte rmediação.

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç ÃO 91

A c i d a d e d o c a mp o

A agr icul tura mode rna se r eal iza por m eio do s seus belts, spots,

áreas, mas a sua re lação com o m un do e com as á reas dinâmicas

do pa ís se dá por meio de po ntos . E o que expl ica , por ex emp lo, o

impo r tante r e lac ionam ento exis tente ent re c idades regiona is e SãoPaulo. Nessas loca l idades dá- se uma ofe r ta de informação, ime

dia ta e próxim a, l igada à a t ividade agr ícola e pro duz ind o u ma a t i

vidade urban a de fabr icação e de se rviços que , f ruto d a pro duç ão

regiona l , é la rgamente "espec ia lizada" e, para le lamente , um ou

t ro t ipo de a t ividade urbana l igada ao consu mo das f amí lias e da

a dmi n i s t r a ç ã o . A c i da de é um pó l o i nd i s pe ns á vel a o c om a ndo

técnico da produ ção, a cuja na tureza se adapta , e é u m lugar de

res idênc ia de func ionár ios da adminis t r ação públ ica e das emp re

sas, ma s t a mb é m de pe s s oa s que t r a ba l ha m no c a mpo e que , s e n

do agr ícolas , são também urbanas , i s to é , urbano- res identes . As

a t ividades e prof issões t r adic iona is jun tam -se no vas ocupações e

às burguesias e c lasses médias t r adic iona is jun tam -se as mo der

nas , form ando um a mesc la de formas de vida , a ti tudes e va lores .

Ta l c idade , cujo pape l de coma ndo técnico da prod ução é ba s tan

t e a mpl o , t e m t a mbé m um pa pe l po l í t i c o f r e n t e a e s s a me s ma

pr oduç ã o . Ma s , na me d i da e m qu e a p r oduç ã o a g r íc o la t e m um a

vocação globa l , e sse pape l pol í t ico é limi tado, inco mple to e in di

r e t o . O mundo, confusamente enxergado a par t i r desses lugares ,

é vis to como um parce i ro inconstante . Sem dúvida , os diver sos

atores têm interesses diferentes, às vezes convergentes , ce r tame nte

complementares . Tra ta - se de uma produção loca l mis ta , mat iza

da , cont radi tór ia de idé ias . São visões do mu nd o, do pa ís e do lugar

e laboradas na cooperação e n o conf l i to . Tal processo é c r iador d e

ambigüidades e de perplexidades , mas também de uma cer teza

 

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 9 3

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9 2 M I L T O N S A N T O S

/

dada pe la emergênc ia da c idade com o um lugar pol í t ico, cujo pape l

é dup lo: e la é um regulador do t r aba lho agr ícola , sequioso de um a

inte rpre tação do movimento do mundo, e é a sede de uma soc ie

dade loca l comp ósi ta e complexa , cuja diver s idade const i tui u m

permanente convi te ao deba te .

15 . Compartimentação efragmentação do espaço:

ocaso do Brasil

O exame do caso bras i le i ro quanto à modernização agr ícola

reve la a grande vulnerabi l idade das r egiões agr ícolas modernas

face à "modernização globa l izadora" . Examinando o que s igni

f ica na maior par te dos es tados do Sul e do Sudes te e nos es ta

dos de Ma t o G r os s o e de Ma t o G r os s o do S u l , be m c omo e m

manchas i soladas de out ros es tados , ver i f ica - se que o campo

mode r n i z a do s e t o r nou p r a t i c a me n t e ma i s a be rt o à e xpa ns ã o da s

formas a tua is do capi ta l i smo que as c idades . Desse modo, en

qua n t o o u r ba no s u r ge , s ob mui t o s a s pe c t os e c om d i f e r en t e s

mat izes , co mo o lugar da r es is tênc ia , as áreas agr ícolas se t r an s

formam agora no lugar da vulnerabi l idade .

O pape l das lógicas exóg enas

De ta is á reas pode-se dizer que a tua lmente func ionam sob

u m regim e obediente a preocupaç ões subordin adas a lógicas dis

tantes, externas em relação à área da ação; mas essas lógicas são

inte rnas aos se tores e às empres as globa is qu e as mo bi l izam . D aí

se c r ia rem s i tuações de a l ienação que escapam a regulações lo

c a i s ou na c i ona i s , e mbor a a r r a s t a ndo c ompor t a me n t os l oc a i s ,

r egiona is , nac iona is em todos os domínios da vida , inf luenc ian

do o c omp or t a me n t o da moe da , do c r é d i t o , do ga s t o púb l i c o e

do e mpr e go , i nc i d i ndo s ob r e o f unc i ona me n t o da e c onomi aregiona l e urbana , por inte rm édio de suas r e lações de te rmin antes

sobre o co mérc io, a indúst r ia , os t r anspo r tes e os se rviços . Para

l e l a me n t e , a lt e r a m- s e o s c ompor t a m e n t os po l í t i c os e a dmi n i s

t r a t ivos e o conteúdo da informação.

Esse processo de adaptação das r egiões agr ícolas modernas

s e dá c om g r a nde r a p i de z , i mpo ndo- l he s , num pe qu e no e s pa ç o

de tempo, s i s temas de vida cuja r e lação com o meio é r e f lexa ,

e nqu a n t o a s de t er mi na ç õe s f unda me n t a i s vê m de f o ra .

N u m mu ndo g l oba l iz a do, i dê n ti c o mov i me n t o pode s e r t a m

bé m r a p i da me n t e i mp l a n t a do e m ou t r as á re a s, nu m m e s mo pa ís

ou em o ut ro cont inen te . Assim, a noção de compet i t ividade mo s

t r a - se aqui com toda força , pol i t icamente a judada pe las m ani pu

lações do comércio exterior ou das barreiras alfandegárias. Cabe

pergunta r , nessas c i rcunstânc ias , o que pode acontecer a um a á rea

agrícola que, mediante um desses processos, seja esvaziada do seu

conteú do econ ômico. Q ue acontecerá , por exem plo, às novas á reas

de agr icul tura globa l izada do es tado de São Paulo no caso da

mu danç a inte rnac iona l da conjuntu ra da econom ia da la ranja , do

açúcar ou do álcool? E com o, diante de tal mudan ça, pode rão reagir

a região, o estado de São Paulo e a nação?

A apreciação das perspectivas abertas a essas áreas moderni

zadas, com tendência a particularizações extremas, deve levar em

conta o f a to de que o sent ido que é impress o à vida , em to das as

suas dimensõe s , base ia - se, em maior ou m eno r grau, em fa tores

 

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exógenos . De u m p ont o de vis ta nac iona l , r edef ine- se um a diver

s idade regiona l que agora não é cont rolada ne m con troláve l , se ja

pela sociedade local, seja pela sociedade nacional. É uma diversi

dade regiona l de novo t ipo, em que se agravam as dispar idades

te r r i tor ia is ( em equipam ento, r ecursos , informação, força eco nô

mica e política, características da população, níveis de vida etc) .

A o me nos e m um p r i me i r o mome n t o e s ob o i mpu l s o da

compet i t ividade globa l izadora , produzem-se egoísmos loca is ou

regionais exacerb ados, justif icado s pela necessidade de defesa das

condições de sobrevivênc ia r egiona l , mesmo que i sso tenha de

se dar à custa da idé ia de integr idade nac iona l . Esse ca ldo de

cul tura pode levar à quebra da sol idar iedade nac iona l e condu

z i r a uma f ragmentação do te r r i tór io e da soc iedade .

As d ialé t icas endógenas

Há, todavia , uma dia lé t ica inte rna a cada um dos f r agmen

t os r es u l t a n t e s . O p r odu t o ( ou p r odu t os ) c o m a r e s pons a b i l i da

de de c oma ndo da e c onomi a r e g i ona l i nc l u i a t o r e s c om d i f e

rentes per f i s e inte resses , cujo índice de sa t i s fação também é

di fe rente . D en tro de cada região, as a l ianças e acordos e os con

t r a tos soc iais impl íc i tos ou expl íc i tos es tão semp re se r e fazend o

e a hegemonia deve se r sempre revis ta .

O p r oc e s s o p r odu t i vo r e úne a s pe c t os t é c n i c os e a s pe c t ospo l í t ic os . O s p r i me i r os t ê m m a i s a ve r c om a p r oduç ã o p r op r i a

me nte di ta e sua á rea de inc idênc ia se ver i fica mo rm en te den t ro

da p r óp r i a r e g i ã o . A pa r c el a po l í ti c a do p r oc e s s o p r odu t i vo , a o

c on t r á r i o , r e l a ci ona da c om o c om é r c i o , o s p r eç os , o s s ubs í d i os ,

o custo do dinhe i ro e tc , tem sua sede fora da r egião e seus pro-

c e s s os f r e qüe n t e me n t e e s c a pa m a o c on t r o l e ( e a t é me s mo a o

e n t e nd i me n t o ) dos p r i nc i pa i s i n t e r e s s a dos . E i s s o que l e va à

t oma da g r a da t i va de c ons c i ê nc i a pe l a s oc i e da de l oc a l de que

lhe escapa a pa lavra f ina l quanto à produção loca l do va lor .

N e s s a s c i r c uns tâ nc i a s , a ci da de ga nha um a nova d i me n s ã o e

um novo pa pe l , me d i a n t e uma v i da de r e l a ç õe s t a mbé m r e no

vada , cuja densidade inc lui as ta re fas l igadas à produção glo

ba l izada . Por i sso, a c idade se torna o lugar onde melhor se es

c la recem as r e lações das pessoas , das empresas , das a t ividades

e dos " f r agme n t os " do t e r r i t ó r i o c om o pa ís e c om o " m und o" .

Esse pape l de encruz i lhada agora a t r ibuído aos cent ros r egio

na is da produção agr ícola modernizada faz de les o lugar da pro

dução a t iva de um discurso (com pre tensões a se r uni tá r io) e de

um a po l ít i c a c om p r e t e ns ã o a s e r ma i s que um c on j un t o de r e

gras par t icula res . Todavia , ta i s pol ít icas acabam, no long o p razo

e mesmo no médio prazo, por r eve la r sua debi l idade , sua r e la t i

vidade , sua inef icác ia , sua não-operac iona l idade . O que rec la

mar do poder loca l vis tos os l imi tes da sua competênc ia ; que

re ivindicar aos es tados f ederados; que sol ic i ta r e f icazmente aos

a ge n t e s e c onômi c os g l oba i s , qua ndo s e s a be que e s t e s pode m

encontra r sa t i s fação aos seus ape t i tes de ganho s implesmente

mu da n do o l uga r de s ua ope r a ç ão? P a ra e nc on t r a r um c om e ç o

de resposta , o pr imeiro passo é r egressar às noções de nação,

sol idar iedade nac iona l , Estado nac iona l . De um ponto de vis ta

prá t ico, vol ta r íamos à idé ia , já expressa por nós em out r a oca

s ião , da const i tuição de um a federação de lugares , com a recons

t rução da federação bras i le i r a a par t i r da cé lula loca l , f e i ta de

f o r ma a que o t e r r i t ó r i o na ci ona l ve nha a c onhe c e r um a c om

pa r t i me n t a ç ã o que nã o s e ja t a mbé m um a f r agme n t a ç ã o . D e s s e

mo do , a f ederação se r ia r e fe i ta de ba ixo para c ima , ao cont rá r io

 

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da tendê nc ia a que agora es tá send o a r rastada pe la subord inação

aos processos de globa l ização.

16 . O território do dinheiro

A queda-de-braço ent re governos munic ipa is e es tadua is e o

governo federa l é mais que um a discussão técnica para saber q ue m

deve arcar co m o ônu s das dif iculdades f inanceiras dos 27 estad os

e dos mais de 5.500 munic ípios . A questão é a f ederação e sua

inadequação aos tempos da nova his tór ia com a emergênc ia da

globa l ização. O que es tá em jogo é o próp r io s i s tema de re lações

c ons t i t u í do , de um l a do , pe los novos c on t e údos de mogr á f i c o ,

e c onôm i c o , s oci a l de e s t a dos e mun i c í p i os e a ma n u t e nç ã o doconteúdo normat ivo do te r r i tór io , agora que face à globa l ização

se produz um embate ent re um dinhe i ro globa l izado e as ins tân

cias político-administrativas do Estado brasileiro.

D e f i n i ç õe s

O t e r r i t ó r i o nã o é a pe na s o r e s u l t a do da s upe r pos i ç ã o de

um c on j un t o de s i s t e ma s na t u r a i s e um c on j un t o de s i s t e ma s

de c o i s a s c r i a da s pe l o home m. O t e r r i t ó r i o é o c hã o e ma i s apopulação, i s to é , uma ident idade , o f a to e o sent imento de per

tencer àqui lo que nos per tence . O te r r i tór io é a base do t r aba

l h o , da res idênc ia , das t rocas mate r ia is e espi r i tua is e da vida ,

sobre os qua is e le inf lui . Quando se f a la em te r r i tór io deve-se ,

p o i s , de logo, entender que se es tá f a lando em te r r i tór io usado,

u t i l iz a do po r uma da da popu l a ç ã o . U m f az o ou t r o , à ma ne i r a

da cé lebre fr ase de Ch urchi l l : pr imei ro f azemos no ssas casas , de

pois e las nos f azem. . . A idé ia de t r ibo, povo , nação e , depois , d e

Estado nac iona l decor re dessa r e lação tornada profunda .

O d i nhe i r o é um a i nve nç ã o da v i da de r e l a çõe s e a pa r e c ec om o de c o r r ê nc i a de uma a t i v i dade e c onômi c a pa r a c u j o i n t e r

c â mbi o o s i mp l e s e s c a mbo j á nã o ba s ta . Q ua n do a c ompl e x i da

de é um f ruto de espec ia l izações produt ivas e a vida econômica

se torna complexa , o dinhe i ro acaba sendo indispensáve l e te r

mi na s e i mpond o c om o um e qu i va l e n te ge r al de t oda s a s c o is a s

que s ã o ob j e t o de c omé r c i o . N a ve r da de , o d i nhe i r o c ons t i t u i ,

t a mb é m, u m da do do p r oc e s s o , f a ci l it a ndo s e u a p r o f unda me n t o ,

já que e le se torna representa t ivo do va lor a t r ibuído à produção

e ao t r aba lho e aos r espec t ivos r esul tados .

O dinh e iro e o terr i tór io: s i tuações h is tór icas

N u m p r i me i r o mom e n t o t r at a - se do d i nhe i r o l oca l , e xp r e s

s i vo de u m h or i z on t e c ome r c i a l e le me n t a r , a b r a nge n t e de c on

textos geográficos l imi tados o u para a tender às necess idades de

um c omé r c i o e de um a c i rc u l a çã o l ong í nquos , na s mã os de c o

merc iantes i t ine rantes , ava l i s tas do va lor das mercador ias . Ta l

mundo é c a r a c t e r i z a do po r c ompa r t i me n t a ç õe s mu i t o nume r o

sas , m a s u m m u n d o s e m m o v i m e n t o , l e n t o , e s t á v e l e c u j o s

f r a gme n t os qua s e s e ri a m a u t oc on t i dos . T a is môna da s , nu me r o

sas, exis t i r iam para le lamente , mas sem o pr inc ípio gera l suger i

do po r L e i bn i z .

 

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N e s s e p r i me i r o mome n t o , o f unc i ona me n t o do t e r r i t ó r i o

deve m ui t o às suas f eições na tura is , à s qua is os hom ens se adap

t a m, c om pe que na i n t e r me d i a ç ã o t é c n i c a . A s r e l a ç õe s s oc i a i s

p r e s e n t e s s ão pouc o num e r os a s , s i mp l e s e pouc o de ns a s . O e n

t o r no d os hom e ns a c a ba po r l he s e r c onhe c i do e o s s e us mi s t é

r ios são apenas devidos às forças na tura is desconhec idas . Ta is

condiçõ es mate r ia is te rm inam por se imp or sobre o r es to da vida

soc ia l , nu ma s i tuação na qua l o va lor de cada pedaço de chão lhe

é a t r ibuído pe lo seu uso. Assim, a exis tênc ia pode se r inte rpre

tada a par t i r de r e lações observadas di re tamente en t re os h om ens

e ent re os homens e o meio. O te r r i tór io usado pe la soc iedade

loca l r ege as manifes tações da vida soc ia l , inc lus ive o dinh e i ro.

Metamorfoses das duas categor ias ao longo do tempo

C o m a a m p l i a ç ã o d o c o m é r c i o p r o d u z - s e u m a i n t e r d e

pendên c ia c rescente ent re soc iedades a té então re la t ivamen te i so

ladas , c resce o n úm ero de obje tos e va lores a t rocar , as própr ias

t rocas es t imulam a diver s if icação e o aum ento de volu me de um a

pr oduç ã o de s t i na da a um c ons umo l ong í nquo . O d i nhe i r o s e

i n s ta l a c om o c ond i ç ã o , t a n t o de s s e e s c a mbo qua n t o da p r o du

ção de cada grup o, tornand o-se ins t rume nta l à r egulação da vida

econômica e assegurando, ass im, o a la rgamento do seu âmbi to

e a f r eqüênc ia do seu uso.N a rea l idade , o que c resce , se expan de e se torn a mais c om

p l e xo e de ns o nã o é a pe na s o c omé r c i o i n t e r na c i ona l , ma s ,

também, o inte rno. Assim, cada vez mais coisas tendem a tor

nar - se obje to de inte rcâmb io, va lor izado cada vez mais pe la t r o-

c a do que pe l o u s o e, de s s e mo do , r e cl a ma ndo u ma m e d i da ho

mogê ne a e pe r ma ne n t e . A s s i m, o d i nhe i r o a ume n t a s ua i nd i s

pe ns a b i l i da de e i nva de ma i s nume r o s os a s pe c t os da v i da e c o nô

mica e social.

Para le lamente , o te r r i tór io se apresenta como uma a rena de

mov i me n t os c a da ve z ma i s num e r os os , f unda dos s ob r e uma l e ido va lor que tanto deve ao cará te r da prod ução p resent e em cada

lugar com o às poss ibi l idades e rea l idades da c i r culação. O din he i

ro é , cada vez mais , um dado essenc ia l para o uso do te r r i tór io .

Ma s a l e i do va l o r t a mb é m s e e s t e nde aos p r óp r i o s l uga r e s ,

c a da qua l r e p r e s e n t a ndo , e m da da c i r c uns t â nc i a e e m f unç ã o

do c omé r c i o de que pa r t i c i pa m, um c e r t o í nd i c e de va l o r que

é , t a mbé m, a ba s e dos mov i me n t os que de l e s pa r t e m ou que a

e l e s c he ga m.

Q ua n t o m a i s mov i me n t o , ma i o r s e t o r na a c ompl e x i da de da s

re lações inte rnas e exte rnas e aprofunda-se a necess idade de u ma

r e gu l a ç ão , da qua l o d i nhe i r o c ons t i t u i um dos e l e me n t os , a i n

da que o seu pape l não se ja o pape l cent ra l . Este é a t r ibuído à

ca tegor ia es tado, cuja necess idade se levanta como um impera

t ivo , a t r ibuin do-se l imi tes exte rno s ( as f ronte i ras es tabe lec idas) ,

l imi tes inte rnos ( as subdivisões pol í t ico-adminis t r a t ivas em di

ver sos níve is) e conteúdos normat ivos ( as le is e costumes) , em

matér ia de competênc ias e r ecursos . É ass im que se ins ta lam na

his tór ia , ca tegor ias inte rdepe nden tes : o Estado te r r i tor ia l , o te r

r i tór io nac iona l , o Estado nac iona l . São e les que , em conjunto,

r e ge m o d i nhe i r o .

H á , po r c ons e gu i n t e , um d i nhe i r o na c i ona l que , a pe s a r de

um comérc io exte rno c rescente , tem a ca ra do pa ís e é r egulado

pe lo pa ís . Dir - se - ia que esse dinhe i ro é r e la t ivamente coman

da do de de n t r o .

 

1 00 M I L T O N S A N T O S P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 01

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O d i n h e i r o d a g l o b a l i z a ç ã o

Com a globa l ização, o uso das técnicas disponíve is permi te

a ins ta lação de um dinh e i ro f luido, r e la t ivam ente invis íve l , pra

t i c a me n t e a bs t r a t o .

Co m o e qu i va l e n t e ger a l , o d i nhe i r o s e t o r na um e qu i va l e n t e r e a l me n t e un i ve r s a l , a o me s mo t e mpo e m que ga nha uma

exis tênc ia pra t icamente autônoma em re lação ao res to da eco

nom i a . A s s im a u t ono mi z a do , pode - s e a t é d i z e r que e s se d i n he i

r o , em estado puro, é um equiva lente gera l de le própr io. Ta lvez

por i sso sua exis tênc ia concre ta e sua e f icác ia se jam resul tado

da s no r ma s c om a s qua i s s e i mpõe a os ou t r os d i nhe i r os e a t o

dos o s pa í s es , pe r mi t i ndo - s e , de s s e modo , a e l a bo r a çã o de um

discurso, sem o qua l sua e f icác ia se r ia inf ini tamente menor e a

sua força men os ev idente . É , a l iás , a par t i r des te ca rá te r id eoló

gico, equiva lente a uma verdade i ra f a ls i f icação do c r i té r io , que• d i nhe i r o g l oba l é t a mbé m de s pó t i c o .

N a s c ond i ç õe s a t ua i s , a s l óg i c a s do d i nhe i r o i mpõe m- s e

àque las da vida soc ioeconómica e pol ít ica , forçando mim et ism os,

adaptações , r endições . Ta is lógicas se dão segundo duas ver ten

t es : um a é a do dinh e i ro das empresa s que , responsáve is po r u m

se tor da prod ução , são, tam bém , agentes f inance i ros , mob i l iza

dos em função da sobrevivênc ia e da expansão de cada f irma e m

par t icula r ; mas , há , tam bém , a lógica dos govern os f inance iros

g l obai s , F un do Mon e t á r i o I n t e r na c iona l , Ba nc o Mu nd i a l , ba n

cos tr avest idos em regiona is com o o BID. É por inte rmé dio de les

que as f inanças se dão como inteligência geral.

Essa inte l igênc ia globa l é exerc ida pe lo que se chamar ia de

contabi l idade globa l , cuja base é um conjunto de parâmetros

segundo os qua is aque les governos globa is medem, ava l iam e

c l a s s i f i c a m a s e c onomi a s na c i ona i s , po r me i o de uma e s c o l ha

arbi t r á r ia de var iáve is que apenas contempla ce r ta parce la da

p r oduç ã o , de i xa ndo p r a t i c a me n t e de l a do o r e s t o da e c on omi a .

Por i sso, pod e-se dizer que , adotado esse c r i té r io de ava l iação, o

Produto Nac iona l Bruto apenas const i tui um nome- fantas ia para

essa f amosa contabi l idade globa l .É po r me i o de s s e me c a n i s mo que o d i nhe i r o g l oba l a u t o

nomizado, e não mais o capi ta l como um todo, se torna , hoje , o

pr inc ipa l r egedor do te r r i tór io , tanto o te r r i tór io nac iona l como

suas frações.

* A n t e s , o t e r r i t ó r i o c o n t i n h a o d i n h e i r o , e m u m a d u p l a

a c e pç ã o : o d i nhe i r o s e ndo r e p r e s e n t a t i vo do t e r r i t ó r i o que o

a b r i ga va e s e ndo , e m pa r t e , r e gu l a do pe l o t e r r i t ó r i o , c ons i

de r a do c omo t e r r i t ó r i o u s a do . H o j e , s ob i n f l uê nc i a do d i nhe i

r o g l oba l , o c on t e údo do t e r r i t ó r i o e s c a pa a t oda r e gu l a ç ã o

i n t e r na , ob j e t o que e l e é de uma pe r ma ne n t e i n s t a b i l i da de ,da qua l o s d i ve r s os a ge n t e s a pe na s c ons t i t ue m t e s t e munha s

pa s s i va s .

A ação te r r i tor ia l do dinhe i ro globa l em es tado puro acaba

por se r uma ação cega , gerando ingovernabi l idades , em vi r tude

dos seus e fe i tos sobre a vida econômica , mas também, sobre a

vida adminis t r a t iva .

N o te r r i tór io , a f inança globa l ins ta la - se com o a r egra das

r e g r a s , um c on j un t o de no r ma s que e s c o r r e , i mpe r i o s o , s ob r e

a tota l idade do edi f íc io soc ia l , ignorando as es t ruturas vigen

t es , pa r a me l ho r pode r c on t r a r i á - l a s , i mpondo ou t r a s e s t r u t u

r a s . N o lugar , a f inança glob a l se exerce pe la exis tênc ia das

pe s s oa s , da s e mpr e s a s , da s i n s t i tu i ç õe s , c r i a ndo pe r p l e x i da de s

e s uge r i ndo i n t e r p r e t a ç õe s que pode m c onduz i r à a mpl i a ç ã o

da c ons c i ê nc i a .

 

1 02 M I L T O N S A N T O S P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 03

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Situações regionais

A von t a de de homog e ne i z a ç ã o do d i nhe i r o g l oba l é c on t r a

r iada pe las r es is tênc ias loca is à sua expansão. Desse modo, seu

p r oc e s s o t e nde a s e r d i f e r e n t e , s e gundo os e s pa ç os s oc i oe c o

nóm i c os e po l í t ic os .H á , t a mb é m, u ma von t a de de a da p t a çã o à s nova s c ond i ç õe s

do din he i ro , já qu e a f luidez f inancei ra é consid erada um a n e

c e s s ida de pa r a s er c ompe t i t i vo e , c ons e q üe n t e m e n t e , e x i t o s o no

mundo g l oba l i z a do .

A c o n s t i t u i ç ã o d o M e r c a d o C o m u m E u r o p e u , i s t o é , d a

Com uni da d e E c onôm i c a E ur opé i a , a i n s t i tu i ç ã o da A S E A N e o

p r e t e nd i d o e s t a be l ec i me n t o da A L C A obe de c e m a es s e me s m o

pr i nc í p i o , de modo a pe r mi t i r à s r e s pe c t i va s e c onomi a s , ma s

sobre tudo aos Estados l íderes e às empresas ne les s i tuadas , que

pos s a m pa r t i ci pa r de modo ma i s a g re s si vo do c omé r c i o mun d i a l ,bus c a ndo — o que l he s pa r e c e ne c e s s á r i o — a c ob i ç a da

h e g e m o n i a .

A E ur opa é o s ubc on t i ne n t e ma i s a va nç a do no que t oc a a

essa questão. E verdade que o processo de uni f icação europé ia

s e i n ic i a a pós a S e gunda G u e r r a Mu nd i a l e ve m r e a l i z a ndo e t a

pas sucess ivas , sendo a úl t ima , em da ta , a const i tuição do mer

cado com um f inance i ro, do qua l a mo eda única , o eur o, cons t i

t u i o s í mbo l o . A s e t apa s p r e c e de n t e s c ons t i t u í ra m um a e s pé c i e

de preparação para a uni f icação f inance i ra e inc luí ram medidas

obje t ivando a f luidez das mercador ias , dos homens, da mão-de-

obra e do própr io te r r i tór io , inc lus ive nos pa íses menos desen

vo l v i dos , de modo a que a E ur opa c omo um t odo s e pude s s e

tornar um cont inente igua lmente f luido. Sem isso e sem o re

forço da idé ia de c idadania—uma c idadania agora mul t inac iona l

para os s igna tá r ios do Tra tado de Schengen —, se r ia impossíve l

p e n s a r n u m a m o e d a ú n i c a s e m a u m e n t a r a s d i f e r e n ç a s e

desequi l íbr ios já exis tentes .

Com pl e t a n do e s s e pa no de f undo , a un i fi c a çã o mon e t á r i a é

considerada um fa tor indispensáve l ao es tabe lec imento de uma

e c onom i a e u r opé i a c ompe t i t iva a o n í vel g loba l , me d i a n t e um adivisão do t r aba lho renovada , segu ndo a qua l a lguns pa íses vê em

reforçadas a lgumas de suas a t ividades e devem renunc ia r a ou

t ras , após uma concer tação, às vezes longa e penosa , em Bruxe

las. Na verdade , porém, essa uni f icação e equa l ização int ra -eu-

ropé ia acaba por se r mais um episódio de uma guer ra , porque

dest inadas a for ta lecer a Europa para compet i r com os out ros

me mb ro s da Tr íade e t i r a r prove i to de suas r e lações ass imétr icas

c o m o r es t o d o m u n d o .

O caso la t ino-amer icano e bras i le i ro é di fe rente . O própr io

Me r c os u l ma n t é m, po r e nqua n t o , uma p r á t i c a l i mi t a da a o c o mé r c i o , e s e u p r óp r i o p r o j e t o é me nos a b r a nge n t e qua n t o à s

re lações soc iais , cul tura is e pol í t icas . Não há um a c la ra p reo cu

pa ç ã o de bus c a r um de s e n vo l v i me n t o ho mo gê ne o e as i n i c ia t i

va s de i nve s t i me n t o t ê m m ui t o ma i s a ve r c om o c r e s c i me n t o

do prod uto , i s to é , co m o f loresc imento de cer to nú m er o de

emp resas vol tadas para o com érc io r egiona l , das qua is , a l iás , a l

gum a s s ã o i gua l me n t e i n s e r ida s no c omé r c i o mund i a l . P o r ou

t r o l a do , d i f e re n t e me n t e do c a s o e u r ope u , a s moe da s na c i ona i s

nã o s ã o p r op r i a me n t e c onve r s íve i s , ne m c omun i c á ve i s d i r e t a

me n t e e n t r e e l as . S ua re l aç ã o c om o mu nd o é pob r e , t a n t o q ua n t i ta t i va c om o qua l i t a t i va me n t e , j á que s ã o moe da s de pe nd e n t e s ,

cujo desva l im ento aum enta f ace à globa l ização, const i tu indo um

e l e me n t o a ma i s de a g r a va me n t o de s ua p r óp r i a de p e ndê nc i a .

 

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Efe i tos do d inhe iro g lobal

Esta é um a das razões pelas quais a decisão de participar passi

vamen te da globa lização acaba por se r danosa . Quan to m elhor é o

exercício do mo del o, pior é para o país. Essa situação é ainda m ais

grave nos países complexo s e grandes, na medid a em q ue a vocaçãohom ogen eizado ra do capital global vai ser exercida sobre um a base

formada por parcelas muito diferentes umas das outras e cujas di

ferenças e desigu aldades são ampliadas so b tal ação unitár ia.

O d i nhe i r o r e gu l a do r e homoge ne i z a dor a g r a va he t e r oge

ne idades e aprofunda as dependênc ias . É ass im qu e e le cont r ibui

para quebrar a sol idar iedade nac iona l , c r iando ou au men tand o as

fraturas sociais e terr itoriais e ameaçando a unidade nacional.

O conteúdo do te r r i tór io como um todo e de cada um dos

seus compar t imentos muda de forma brusca e , também, rapida

me nte perde um a parce la maior ou me no r de sua ident idade , emfavor de formas de regulação estranhas ao sentido local da vida.

E po r esse pr ism a que dever ia se r vis ta a ques tão da federa

ção e da governabi l idade da nação: na medida em que o gover

no da nação se sol idar iza com os des ígnios das forças ex te rnas ,

levantam-se problemas c ruc ia is para es tados e munic ípios .

A questão é es t rutura l e , desse mod o, o problem a de es tados

e munic ípios é , no fundo, um só ; esse problema é const i tuído pe las

formas a tua is de compar t imentação do te r r i tór io e o seu novo

conteú do, qu e inc lui as formas de ação do dinh e i ro inte rnac iona l .

E p í l o g o

A que s t ã o que se põe c om o um a e s pa da de D â mo c l e s s o b r e

as nossas cabeças é a seguinte : vamos rec onst rui r a f ederação para

s e r v ir me l ho r a o d i nhe i r o ou pa r a a t e nde r à popu l a ç ã o? A gor a ,

tud o es tá sendo fe i to para r e fazer a f ederação de m od o a que se ja

ins t rumenta l às forças f inance i ras . São o Banco Centra l e o Mi

nis té r io da Fazenda , em comb inação co m as ins t i tuições f inan

ce i ras inte rnac iona is , que or ientam as grandes r e formas ora em

curso. De vem os, então , nos prepara r para a nova e tapa que , a l iás ,j á s e a n u n c i a — a d a r e c o n s t r u ç ã o d o a r c a b o u ç o p o l í t i c o -

te r r i tor ia l do pa ís ao se rviço da soc iedade , i s to é , da pop ulação .

1 7 . Verticalidades e horizontalidades

O tema das ver t ica lidades e das hor izonta l idades já havia s ido

t r a ta do po r mi m no l i v r ou natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão

e emoção (1996) , sob re tud o no capí tulo 12. Vamos agora abo rdá-

l o s e gundo novos â ngu l os e a mbi c i ona nd o um a v is ã o p r os pe c

t iva , a par t i r desses dois r ecor tes superpostos e com plem entare s

do espaço geográf ico a tua l .

As ver t ical idades

As ver t ica l idades podem ser def inidas , num te r r i tór io , como

um conjunto de pontos formando um espaço de f luxos . A idé ia ,de c e r t o modo , r e mon t a a os e s c r i t o s de F r a nç o i s P e r r oux

(L'économie du XX e siècle, 1961), quando e le descreveu o espaço

e c onôm i c o . T al noç ã o f o i r e c e n t e me n t e r e a p r op r i a da po r M a

nue l Caste l l s (A sociedade em rede, 1999). Esse espaço de f luxos

 

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se r ia , na r ea l idade , um subsis tema dent ro da tota l idade-espaço,

já que para os e fe i tos dos r espec t ivos a tores o que conta é , so

b r e t udo , e s se c on j un t o de pon t o s a de qua dos à s t a re f as p r odu t i

vas hegemônicas , ca rac te r í s t icas das a t ividades econômicas que

c oma nda m e s t e pe r í odo h i s t ó r i c o .

O sistema de produção que se serve desse espaço de f luxos éconstituído por redes — um sistema reticular —, exigente de f lui

dez e sequioso de ve loc idade . São os a tores do tem po rápido, que

plenamente par t ic ipam do processo, enquan to os demais r a ramen te

tiram todo proveito da f luidez. Tais espaços de f luxos vivem uma

solidariedade do tipo organizacional, isto é, as relações que man

têm a agregação e a cooperação ent re agentes r esultam em um pro

cesso de organização, no qual predo min am fatores externos às áreas

de inc idênc ia dos mencionados agentes . Chamemos macroa tores

àque les que de fora da á rea de te rminam as modal idades inte rnas

de ação. E a esses macroatores que, em última análise, cabe diretaou indiretamente a tarefa de organizar o trabalho de todos os ou

t ros , os qua is de um a forma ou d e out ra depend em da sua regulação.

O fa to de que cada um deva adapta r compor tam entos loca is aos

inte resses globa is , que es tão sempre mudando, leva o processo

organizac ional a se dar com descont inuidades , cujo r i tm o depen de

do número e do poder cor respondente a cada macroagente .

P o r i n t e r mé d i o dos me nc i ona dos pon t os do e s pa ç o de f l u

xos , as macroem presas acabam por ganhar um pap e l de r egulação

do con junto do espaço. Jun te - se a esse cont ro le a ação expl íc i ta

ou diss imulada do Estado, em todos os seus níve is te r r i tor ia is .T r a ta - s e de uma r e gu l a çã o f r e qüe n t e me n t e s u bor d i na da p o r qu e ,

e m g r a nde núme r o de c a s os , de s t i na da a f a vo r e c e r o s a t o r e s

he ge môn i c os . T oma da e m c ons i de r a çã o de t e r mi na da á r e a , o e s

paço de fluxos tem o pape l de integração com níve is e con ôm icos

e espaciais mais abrangentes. Tal integração, todavia, é vertical,

dep end ente e a l ienadora , já que as dec isões essenc ia is c on cer

nentes aos processos loca is são es t r anhas ao lugar e obedecem a

mot ivações dis tantes .

Nessas condições , a tendênc ia é a preva lênc ia dos inte resses

c o r po r a t ivos s ob r e o s i n t e re s s e s púb l i c os , qua n t o à e vo l uç ã o do

t e r r i t ó r i o , da e c onomi a e da s s oc i e da de s l oc a i s . D e n t r o de s s equadro, a pol í t ica das empresas — is to é , sua policy — aspi ra e

c ons e gue , me d i a n t e uma governance, tornar - se pol í t ica ; na ver

dade , uma pol í t ica cega , pois de ixa a const rução do dest ino de

uma á rea ent regue aos inte resses pr iva t í s t icos de uma empresa

que nã o t e m c om pr omi s s o s c om a s oc i e da de loc a l.

Na s i tuação ac ima descr i ta , ins ta lam-se forças cent r í fugas

c e r t a me n t e de t e r mi na n t e s , c om ma i o r ou me no r fo r ç a , do c on

j un t o dos c ompor t a me n t os . E , e m c e r t o s c a s os , qua ndo c ons e

gue m c on t a g i a r o t odo ou a ma i o r i a do c o r po p r odu t i vo , t a i s

f o r ç a s c e n t r í f uga s s ã o , a o me s mo t e mpo , de t e r mi na n t e s e do

mi na n t e s . Ta l domi nâ n c i a é t a mb é m por t a do r a da r a c i ona l i da de

hegemônica e cujo poder de contágio f ac i l i ta a busca de uma

un i f ic a ç ã o e de uma homog e ne i z a ç ã o .

As f rações do te r r i tór io que const i tuem esse espaço de f lu

xos c ons t i t ue m o r e i no do t e mpo r e a l , s ubor d i na ndo- s e a um

re lógio univer sa l , a fe r ido pe la tempora l idade globa l izada das

e mpr e s a s he ge môn i c a s p r e s e n t e s . D e s s e modo o r de na do , o e s

paço de f luxos tem vocação a se r ordenador do espaço tota l , ta

refa que lhe é facilitada pelo fato de a ele ser superposto.

O modelo econômico ass im es tabe lec ido tende a r eproduz i r -

se , a inda qu e mo st rand o topologias espec íf icas , l igadas à na tureza

dos p rodu tos , à força das empresas impl icadas e à r es is tênc ia do

espaço preexis tente . O mo delo heg emô nico é plane jado para se r,

em sua ação individua l , indi fe rente a seu entorno. Mas es te de

a lgum modo se opõe à pleni tude dessa hegemonia . Esta , porém,

 

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é exerc ida em sua form a l imi te , pois a empresa se esforça por es

gotar as vir tualidades e perspectivas de sua ação "racional". O ní

ve l desse l imi te def ine a operação respect iva do po nto de vis ta de

sua rentabi l idade , comparada à de out ras empresas e de out ros

lugares. Se considerada insatisfatória, leva à sua migração.

As ver t ical idades são, pois , por tadoras de um a ord em implacáve l, cuja convocação incessante a segui -la r epresenta u m conv i

t e a o e s tr a nha me n t o . A s s i m, qua n t o m a i s " mode r n i z a dos " e pe

netrados por essa lógica, mais os espaços respectivos se tornam

alienado s. O el enco das condiçõ es de realização das verticalidades

mo st ra que , para sua e fet ivação, te r um sent ido é desnecessár io ,

enq uan to a grande força moto ra se r ia aque le ins t into animal das

e mpr e s a s me nc i ona do , há de c ê n i os, po r S t e pha n H ym e r e a go r a

mul t ipl icado e potenc ia l izado a par t i r da globa l ização.

As ver tica l idades r ea l izam de m od o indiscut íve l aque la idé ia

de J e a n G o t t ma nn ( " T he e vo l u t i on o f t he conc e p t o f t e r r i t o r y" ,Information sur les Sciences Sociales, 1975) segundo a qua l o te r r i tó

r i o pode s e r v i s t o c omo u m r e c u r s o , j u s t a m e n t e a pa r t i r do u s o

p r a gmá t i c o que o e qu i pa me n t o mode r n i z a do de pon t os e s c o

lhidos assegura .

As h o r i z o n ta l i d a d e s

A s ho r i z on t a li da de s s ã o z ona s da c on t i gu i da de que f o r ma m

e x t e ns õe s c on t í nua s . V a l e mo- nos , ou t r a ve z , do voc a bu l á r i o d eFrançois Per roux quando se r e fe r iu à exis tênc ia de um "espaço

bana l" em oposição ao espaço econômico. O espaço bana l se r ia

o espaço de todos : empresas , ins t i tuições , pessoas; o espaço das

vivênc ias .

Esse espaço bana l , essa extensão cont inuada , em que os a to

res são considerados na sua cont iguidade , são espaços que sus

t e n t a m e e x p l i c a m u m c o n j u n t o d e p r o d u ç õ e s l o c a l i z a d a s ,

inte rdependentes , dent ro de uma á rea cujas ca rac te r í s t icas cons

t i t ue m, t a mbé m, um f a t o r de p r oduç ã o . T odos os a ge n t e s s ã o ,

de uma forma ou de out ra , impl icados , e os r espec t ivos tempos,mais r ápidos ou m ais vagarosos , são imbr icados . E m ta is c i r cun s

tânc ias pode-se dizer que a par t i r do espaço geográf ico c r ia - se

uma s o l i da r i e da de o r gâ n i c a , o c on j un t o s e ndo f o r ma do pe l a

e x i s tê nc i a c om um dos a ge n te s e xe r c endo- s e s ob r e um t e r r i t ó

r io com um . Tais a t ividades , não impo r ta o níve l , dev em sua c r ia

ção e a l imentação às ofe rtas do meio geográf ico loca l . Tal c on

j un t o i nd i s s oci á vel e vo l u i e mud a , ma s ta l mov i m e n t o p ode s e r

v i s t o c om o uma c on t i nu i da de , e xa t a me n t e e m v i r t ude do pa pe l

cent ra l que é j oga do pe l o me n c i ona do me i o ge ogr á fi c o l oc a l .

Nesse espaço bana l , a ação a tua l do Estado, a lém de suasfunções igua lmente bana is , é l imi tada . Na verdade , mudadas as

condições pol í t icas , é nesse espaço bana l que o poder públ ico

encon tra r ia as melh ores condiçõ es para sua inte rvenção . O fa to

de que o E s t a do se p r e oc upe s ob r e t udo c om o de s e m pe n ho da s

macroempresas , às qua is ofe rece regras de na tureza gera l que

desconhecem par t icula r idades c r iadas a par t i r do meio geográ

f ico, leva à ampl iação das ver t ica l idades e , para le lamente , per

mi t e o a p r o f unda me n t o da pe r s ona l ida de da s ho r i z on t a l i da de s .

Nestas , a inda que es te jam presentes empresas com di fe rentes

níve is de técnicas , de capi ta l e de organização, o pr inc ípio queperm i te a sobrevivênc ia de cada um a é o da busca de cer ta in te

gração no processo da ação.

Tra ta -se , aqui , da produ ção loca l de uma integração sol idár ia ,

obt ida med iante sol idar iedades hor izonta is inte rnas , cuja na tureza

 

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é tanto econômica , soc ia l e cul tura l como propr iamente geográ

f ica . A sobrevivênc ia do conjunto, não impor ta que os diver sos

agentes tenha m inte resses di fe rentes , depend e desse exerc íc io da

solidariedade, indispensável ao trabalho e que gera a visibilidade

do inte resse comum. Ta l ação comum não é obr iga tor iamente o

r e s u l t a do de pa c t os e xp l í c i t o s ne m de po l í t i c a s c l a r a me n t eestabelecidas. A própria existência, adaptando-se a situações cujo

com and o f reqüen temente escapa aos r espec tivos a tores , acaba por

exigi r de cada qua l um permanente es tado de a le r ta , no sent ido

de apreen der as mudanças e descob r i r as soluções indispensáve is .

Pode-se dizer que ta l s i tuação assegura a permanênc ia de

forças cent r ípe tas . Estas , a inda que não se jam de te rm inan tes ( já

qu e as hor izonta l idad es r ecebem inf luxos das ver t ica l idades) são

dominantes . Ta is forças cent r ípe tas garantem sua sobrevivênc ia

pe lo f a to de que o âmbi to de r ea l ização dos a tores é l imi tado,

confundindo-se todos num espaço geográf ico res t r i to , que é , aome s m o t e m po , a ba se de s ua a t uaç ã o .

As hor izonta l idad es , pois , a lém das r ac iona l idades t ípicas das

ver t ica l idades que as a t r avessam, admitem a presença de out ras

rac iona l idades ( chamadas de i r r ac iona l idades pe los que dese ja

r i a m ve r c omo ún i c a a r a ci ona l ida de he ge môn i c a ) . N a ve r da de ,

são cont ra - rac iona l idades , i s to é , formas de convivênc ia e de

regulação c r iadas a par t i r do própr io te r r i tór io e que se m an têm

ne s s e t e r r i t ó r i o a de s pe i t o da von t a de de un i f i c a ç ã o e homo

geneização, características da racionalidade hegemônica típica das

ver t ica l idades . A presença dessas ver t ica l idades produz tendênc ias à f r agmentação, co m a const i tuição de a lvéolos r epre senta

t ivos de formas espec í ficas d e se r hor izonta l a par t i r das r espe c

t ivas par t icula r idades .

A busca de um sentido

Ao contrá r io das ver t ica l idades , r egidas por um re lógio úni

co, implacáve l , nas hor izonta l idades ass im par t icula r izadas fun

c i ona m, a o me s m o t e m po , vá r i os r e l óg i os , r e a l i z ando- s e , pa r a

le lamente , diver sas tempora l idades .Tra ta - se de um espaço à vocação sol idár ia , sus tento de um a

organização em segu ndo níve l , enq uan to sobre e le se exerce um a

von t a de pe r ma ne n t e de de s o r ga n i z a ç ã o , a o s e r v i ç o dos a t o r e s

h e g e m ô n i c o s . E s s e p r o c e s s o d i a l é t i c o i m p e d e q u e o p o d e r ,

sempre c rescente e cada vez mais invasor , dos a tores hegemô

nicos , fundados nos espaços de f luxos , se ja capaz de e l iminar o

e s pa ç o ba na l , que é pe r ma ne n t e me n t e r e c ons t i t u í do s e gundo

uma nova def inição.

P ode - s e d i z e r que , a o c on t rá r i o da o r de m i mpos t a , nos e s

paços de f luxos , pe los a tores hegemô nicos e da obediênc ia a l ie na da dos a t o r e s s uba l t e r n i z a dos , he ge mon i z a dos , nos e s pa ç os

banais se recria a idéia e o fato da Política, cujo exercício se tor

na indispensáve l , pa ra providen c ia r os a jus tame ntos necessár ios

ao func ionamento do conjunto, dent ro de uma á rea espec í f ica .

Por meio de encontros e desencontros e do exerc íc io do deba te

e dos acordos , busca- se expl íc i ta ou tac i tamente a r eadaptação

às novas formas de exis tênc ia .

O processo ac ima descr i to é também aque le pe lo qua l uma

soc iedade e um te r r i tór io es tão sempre à busca de um sent ido e

exercem, por i sso, uma vida re f lexiva . Neste caso, o te r r i tór ionão é apenas o lugar de uma ação pragmát ica e seu exerc íc io

c omp or t a , t a mbé m , um a por t e da v ida , uma pa rc e l a de e mo ç ã o ,

que permi te aos va lores r epresenta r um pape l . O te r r i tór io se

metamor fose ia em a lgo mais do que um s imples r ecurso e , para

 

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u t i l iz a r uma e xp r e s s ã o , que é t a mbé m de J e a n G o t t ma nn , c ons

t i t u i um a b r i go .

N a rea l idade , a mesm a f ração do te r r i tór io pod e se r r ecurso e

abr igo, pod e condic ionar as ações mais pragmát icas e , ao m esm o

t e mpo , pe r mi t i r voc a ç õe s ge ne r os a s . O s do i s mov i me n t os s ã o

concomitantes . Nas condições a tua is , o movim ento de te rmin ante ,com tendência a uma difusão avassaladora, é o da criação da or

dem da rac iona l idade pragmát ica , enquanto a produção do espa

ço bana l é r es idua l . Pode-se , todavia , imaginar ou t ro cen ár io , n o

qua l o com por ta men to do espaço de f luxos seja subo rdinad o nã o

como agora à r ea l ização do dinhe i ro e encontre um f re io a essa

forma de manifes tação, tomand o-se subord inado à r eal ização ple

na da vida , de mo do q ue os espaços bana is aume ntem sua capac i

dade de se rvi r à pleni tude do homem.

18 . A esquizofrenia do espaço

Como s a be mos , o mundo , c omo um c on j un t o de e s s ê nc i a s

e de poss ibi l idades , não exis te para e le própr io, e apenas o f az

para os out ro s . É o espaço, i s to é , os lugares , que rea l izam e r e

ve l a m o m und o , t o r na nd o- o h i s t o r i c i za do e ge ogra f i za do , i s t o

é , empir ic izado.

O s l uga r e s s ã o , po i s , o mundo , que e l e s r e p r oduz e m demo do s espec í ficos , individua is , diver sos . E les são s ingula res , mas

são tam bém globa is , manifes tações da tota l idade-m und o, da qua l

são forma s particulare s.] ^

Ser c idadão num lugar ^ ^ M Ü ) /

Nas condições a tua is , o c idadão do lugar pre tende ins ta la r -

s e t a mbé m c omo c i da dã o do mundo . A ve r da de , po r é m, é que

o " mundo" nã o t e m c omo r e gu l a r o s l uga r e s . E m c ons e qüê n

c ia , a e xp r e ss ã o c ida dã o do mun do t o r na - s e u m vo t o , um a p r o messa , um a poss ibi l idade dis tante . Co m o os a tores globa is e f ica

z e s s ã o , e m ú l t i ma a ná l i s e , a n t i - home m e a n t i c i da dã o , a

poss ibi l idade de exis tênc ia de um c idadão do mundo é condic io

nada pe las r ea l idades nac iona is . Na verdade , o c idadão só o é

(ou não o é ) como c idadão de um pa ís .

Ser "c idadão de um pa ís" , sobre tudo qu and o o te r r i tór io é ex

tenso e a soc iedade mu i to des igua l , pode con st i tui r, apenas , um a

perspectiva de cidadania integral, a ser alcançada nas escalas sub-

naciona is, a com eçar pel o nível local. Esse é o caso brasileiro , e m

que a realização da cidadania reclama, nas condições atuais, uma

revalorização dos lugares e um a adequação de seu estatuto político .

A mul t ipl ic idade d e s i tuações r egiona is e mun ic ipa is , t r az ida

com a globa l ização, ins ta la uma enorme var iedade de quadros

de vida , cuja r ea l idade pres ide o cot idiano das pessoas e deve se r

a base para uma vida c ivi l izada em comum. Assim, a poss ibi l i

dade de c idadania plena das pessoas depende de soluções a se

rem bu scadas loca lmen te , desde que , den t ro da nação, se ja ins t i

t u í da uma f e de r a ç ã o de l uga r e s , uma nova e s t r u t u r a ç ã o

pol í t ico- te r r i tor ia l , com a indispensáve l r edis t r ibuição de recu r

sos , prer roga t ivas e obr igações . A par t i r do pa ís com o federação

de l uga re s s er á pos s í vel , nu m s e gun do mo me n t o , c ons t r u i r um

mundo c omo f e de r a ç ã o de pa í s e s .

Tra ta - se , em ambas as e tapas , de uma const rução de ba ixo

para c ima cujo ponto cent ra l é a exis tênc ia de individua l idades

 

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for tes e das garant ias jur ídicas co r respo nden tes . A base geográ

f ica dessa const rução se rá o lugar , considerado como espaço de

exerc íc io da exis tênc ia plena . Estamos, porém, mui to longe da

rea l ização desse idea l . Como, então, poderemos a lcançá- lo?

O cotid iano e o terr i tór io

O te r r i tór io tanto quan to o lugar são esquizof rênicos , po rqu e

de u m lado acolhem os ve tores da globa l ização, que n e les se ins ta

lam para impor sua nova ordem , e , de out ro lado, ne les se prod uz

uma cont ra -ordem, porque há uma produção ace le rada de pobres ,

exc luídos , margina l izados . Crescentemente r eunidas em c idades

cada vez mais numero sas e maiores , e exper im entand o a s i tuação

de viz inhança (que , segund o Sar t r e , é reve ladora) , essas pessoas

nã o s e s ubor d i na m de f o r ma pe r ma ne n t e à r a c i ona l i da dehe ge môn i c a e , po r i s s o , c om f r e qüê nc i a pode m s e e n t r e ga r a

manifes tações que são a cont ra face do pragm at ismo. Assim, jun to

à busca da sobrevivênc ia , vemo s produz i r - se , na base da soc iedade ,

um pragmat ismo mesc lado com a emoção, a par t i r dos lugares e

das pessoas jun tos . Esse é , tamb ém, u m m od o de insur re ição e m

relação à globalização, co m a descobe rta de que, a desp eito de ser

mos o que somos, podemos também dese ja r se r out ra coisa .

Nis so, o pape l do lugar é de te rmin ante . E le não é apenas u m

quadro de vida , mas um espaço vivido, i s to é , de exper iênc ia

sempre renovada , o que permi te , ao mesmo tempo, a r eava l iação

das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A exis

tênc ia naquele e s pa ç o e xe r ce um pa pe l r e ve l a do r s ob r e o m un do .

G l oba i s , o s l uga re s ga nha m u m qu i nhã o ( m a i o r ou m e no r )

da " r a c iona l i da de " do " m und o" . Ma s e s t a s e p r opa ga de mo do

hete rogêneo, i s to é , de ixando coexis t i r em out ras r ac iona l idades ,

i s t o é , con t r a - ra c i ona l i da de s , a que , e qu i voc a da me n t e e do po n

t o de v i s t a da r a c i ona l i da de domi na n t e , s e c ha ma m " i r r a c i o

na l i da de s " . Ma s a c on f o r mi da de c om a Ra z ã o H e ge môn i c a é

l imi tada , enquanto a produção plura l de " i r r ac iona l idades" é i l i

mi tada . É somente a par t i r de ta is i r r ac iona l idades que é poss í ve l a ampl iação da consc iênc ia .

Se es te é um dado gera l , e le se dá com var iações s egu ndo as

cole t ividades e os subespaços . Vejam-se , por exemplo, as di fe

renças , hoje , ent re cam po e c idade . N o cam po, as r ac iona l idades

da globa l ização se di fundem mais extensivamente e mais r api

da me n t e . N a c i da de , a s i r ra c i ona li da de s s e c r i a m ma i s nu me r o

s a e i nc e s s a n t e me n t e que a s r a ci ona l ida de s , s ob r e t udo qua n do

há , pa ra l e l a me n t e , p r oduç ã o de pobr e z a .

É es te o fundam ento da esquizof renia do lugar . Ta l esq uizo

frenia se resolve a partir do fato de que cada pessoa, grupo, f irma , ins t i tuição rea l iza o mun do à sua manei ra . A pessoa , o g ru

p o , a f i rma , a ins t i tuição const i tuem o de dentro do lugar, c o m o

qua l s e c omun i c a m s ob r e t udo pe l a me d i a ç ã o da t é c n i c a e da

p r oduç ã o p r op r i a me n t e d i t a , e nqua n t o o mundo s e dá pa r a a

pessoa , grupo, f i rma , ins t i tuição como o defora do lugar e po r i n

te rmédio de uma mediação pol í t ica . A mediação técnica e a pro

d u ç ã o c o r r e s p o n d e n t e , l o c a l e d i r e t a m e n t e e x p e r i m e n t a d a s ,

pode m nã o s e r i n t e i r a me n t e c ompr e e nd i da s , ma s s ã o v i v i da s

c om o um d a do i me d i a t o , e nqua n t o a me d i a ç ã o po l í ti c a , f r e

qüe n t e me n t e e xe r c i da de l onge e c u j os ob j e t i vos ne m s e mpr e

são evid ente s, exige um a interpret ação mais f ilosófica.

U m a f ilosof ia bana l começa po r se ins ta la r no espí r i to das

pessoas com a descober ta , autor izada pe lo cot idiano, da não-

a u t onomi a da s a ç õe s e dos s e us r e s u l t a dos . E s t e é um da do

 

1 1 6 M I L T O N S A N T O S

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V

L I M I T E S À G L O B A L I Z A Ç Ã O P E R V E R S A

I n t r o d u ç ã o

A aná l ise do fen ôm eno da globa l ização f ica ria incom ple ta se ,

após r econhecer os f a tores que poss ibi l i ta ram sua emergênc ia ,apenas nos de t ivéssemos na aprec iação dos seus aspec tos a tua l

me n t e domi na n t e s , de que r e s u l t a m t a n t os i nc onve n i e n t e s pa r a

a ma i o r pa r t e da huma n i da de .

Cabe , agora , ver i f ica r os l imi tes dessa evolução e r econhe

cer a emergênc ia de ce r to número de s ina is indica t ivos de que

ou t r os p r oc e s s os pa r a l el a me n t e s e le va n t a m, a u t o r i z a ndo pe n

sar qu e vivemos um a verdade i ra f ase de t r ansição para um nov o

p e r í o d o .

Em pr imeiro lugar , o denso s is tema ideológico que envolve

e sus tenta as ações de te rm inan tes parece não res is t i r à evidênc iados f a tos . A ve loc idade não é um bem que permi ta uma dis t r i

buição genera l izada , e as dispar idades no seu uso garantem a

exacerbação das des igua ldades . Ávida cot idiana também reve la

a impossibi l idade de f ruição das vantagens do chamado tempo

co m um a todas as pessoas , não impor t a a di fe rença de suas s i tua

çõ es . Mas out ra coisa é ul t r apassar a descober ta da di fe rença e

chegar à sua consc iênc ia .

Um a p e d a g o g i a d a e x i s t ê n c ia

Isso , todavia , não é tudo. A consc iênc ia da di fe rença pode

conduz i r s implesmente à defesa individua l i s ta do própr io inte

resse, sem alcançar a defesa de um sistema alternativo de idéias e

de vida . De u m pon to de vis ta das idé ias, a questão cent ra l r es ide

no encontro do caminho que va i do imedia t i smo às visões f ina-

l í st icas ; e de u m pon to de vis ta da ação, o prob lema é u l t r apassar

as soluções imedia t i s tas (por exemp lo, e le i tora l i smos inte resse i

ros e apenas provisoriamente eficazes) e alcançar a busca pol í t ica

genuína e const i tuc iona l de r emédios es t rutura is e d u r a d o u r o s .Nesse processo, a f i rma-se , também, segundo novos moldes ,

a ant iga oposição ent re o mundo e o lugar . A informação mun-

dia l izada permi te a visão, mesmo em lashes, de ocor rênc ias dis

tantes . O conhec imento de out ros lugares , mesmo super f ic ia l e

incom ple to, aguça a cur ios idade . E le é ce r tamente u m sub prod uto

de um a informação gera l enviesada , mas , se for a judado po r um

conhec imento s i s têmico do acontecer globa l , autor iza a visão da

his tór ia como uma s i tuação e um processo, ambos c r í t icos . De

p o i s , o problem a c ruc ial é : com o passar de um a s i tuação c r í tica a

um a v i s ão c r í t i c a — e , em seguida , a lcançar um a tomad a de con s

c iênc ia . Para i sso, é fundamen ta l viver a própr ia exis tênc ia c om o

algo de uni tá r io e ve r da de i r o , ma s t a mbé m c omo um pa r a doxo :

obedecer para subsis t i r e r es is t i r pa ra poder pen sar o futuro . En

tão a exis tênc ia é produto ra de sua próp r ia pedagogia .

 

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r e a l pa r a a ma i o r i a da hum a n i da de . A p r om e s s a de qu e a s t é c n i

c a s c on t e mpor â ne a s pude s s e m me l ho r a r a e x i s t ê nc i a de t odos

caem p or te r ra e o que se observa é a expansão ace le rada do r e i

no da escassez , a t ingindo as c lasses médias e c r iando ma is pob res .

A s popu l a ç õe s e nvo l v i da s no p r oc e s s o de e xc l us ã o a s s i m

for ta lec ido acabam por r e lac ionar suas ca rênc ias e vic iss i tudesa o c on j un t o de nov i da de s que as a t i nge m. U m a t oma da de c o ns

c i ê nci a t o r na - s e poss í ve l a l i me s mo onde o f e nôm e no da e s c a s

sez é mais sensíve l . Por i sso, a compre ensã o do q ue se es tá pas

sand o chega com c la reza c rescente aos pobres e aos pa íses pobres ,

cada vez mais num eros os e ca rentes . Daí o r epú dio às idé ias e às

p r á t ic a s po l í ti c a s que f unda m e n t a m o p r oc e s s o s oc i oe c on ómi c o

a tua l e a dem and a , cada vez mais pressurosa , de novas soluções .

Estas não mais se r iam cent radas no din he i ro , co mo na a tua l f ase

da g l oba li z a çã o , pa ra e nc on t r a r no p r óp r i o ho me m a ba s e e o

m o t o r d a c o n s t ru ç ã o d e u m n o v o m u n d o .

1 9 . A variável ascendente

O s f e nôm e nos a que mu i t o s c ha ma m de g l oba l i z a çã o e ou

t r o s d e p ó s - m o d e r n i d a d e ( R e n a t o O r t i z , Mundialização e cultu

ra, 1994 ) na ve r da de c ons t i t ue m, j un t os , um m om e n t o be m de

ma r c a do do p r oc e s s o h i s t ó r i c o . P r e f e r i mos c ons i de r á - l o ump e r í o d o . C o m o e m q u a l q u e r o u t r o p e r í o d o h i s t ó r ic o , f u n c i o

na m de forma concer tad a diver sas var iáve is cuja visão s is tê mica

é i nd i s pe ns á ve l pa r a e n t e nde r o que s e e s t á r e a l i z a ndo . T a m

b é m c o m o e m t o d o p e r í o d o , a p a r t i r d e c e rt o m o m e n t o h á

va r iá ve i s que pe r de m v i go r , ve r da de i r a s va ri á ve is de s c e nd e n t e s ,

e out ras que passam a se impor . São as var iáve is ascendentes

que r e ve l a m a p r odu ç ã o de um no vo pe r í odo , i s t o é , a pon t a m

pa r a o f u t u r o .

O mome n t o a t ua l da h i s t ó r i a do mundo pa r e c e i nd i c a r a

emergênc ia de numerosas var iáve is ascendentes cuja exis tênc iaé s i s têmica . I sso, exa tamente , permi te pensar que se es tão pro

duz indo as condições de r ea l ização de uma nova his tór ia .

Por enqu anto , r enun c iam os, aqui , a fornecer um a l is ta exaus

t i va dos f e nôme nos , ma s nã o a a pon t a r a l guns f a t o s que nos

pa r e c e m be m c a r a c te r ís t i cos da s muda nç a s e m c u r s o . U m de l e s

é o c rescente desencanto com as técnicas , acom panh ado por um a

grada t iva r ecuperação do bom senso, em oposição ao senso co

m um , i s to é , em op osição à pre tensa r ac iona l idade suger ida tanto

pe las técnicas em s i mesm as com o pe la pol í t ica do seu uso. O ut ro

dad o s igni fica tivo se levanta com a impossibi l idade re la t ivamentecrescente de acesso a essas técnicas , em vi r tude do aumento da

pobr e z a e m t odos o s c on t i ne n t e s . J un t e - s e a e s se da do o f a t o de

q u e , apesar da capac idade invasora das técnicas hegemô nicas , so

b r e v i ve m e c r i a m- s e nova s té c n i ca s nã o he ge môn i c a s . P od e - s e

ar r i scar um va t ic ínio e r econhecer , no conjunto do processo, o

a núnc i o de um novo pe r í odo h i s t ó r i c o , s ubs t i t u t o do a t ua l pe

r í odo . E s t a r ía mos na a u r o r a de uma nova e r a , e m q ue a popu l a

ção , i s to é , as pessoas const i tui r iam sua pr inc ipa l preocupação,

um ve r da de i r o pe r í odo popu l a r da h i s t ó r ia , j á e n t r e m os t r a do

pe las f r agmentações e par t icula rizações sensíve is em to da p ar tedevidas à cul tura e ao te r r i tór io .

 

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2 0 . Os limites da racionalidade dominante

O Proje to Rac iona l começa a most ra r suas l imi tações ta lvez

p o r q u e e s t e j a m o s a t i n g i n d o a q u e l e p a r o x i s m o p r e v i s t o p o r

W e b e r (Economía y sociedad, 1922) para r ea l iza r - se quando o pro

cesso de expansão da rac iona l idade capi ta li s ta se tornasse i l imi

tado. Tudo indica que es tamos a t ingindo essa f ronte i ra , agora

q u e , nos diver sos níve is da vida econômica , soc ia l , individua l ,

vivemos uma rac iona l idade tota l i tá r ia que vem acompanhada de

uma perda da r azão. O deboche de carênc ias e de escassez que

a t inge uma parce la cada vez maior da soc iedade humana permi

te r econhecer a r ea l idade dessa perdição.

Uma boa parce la da humanidade , por des inte resse ou inca

pacidade, não é mais capaz de obed ecer a leis, norm as, regras , ma n

damentos , cos tumes der ivados dessa r ac iona l idade hegemônica .Daí a proliferação de "ilegais", "irregulares", "informais".

Essa incapac idade mis tura , no processo de vida , prá t icas e

teor ias herdadas e inovadas , r e l igiões t r adic iona is e novas con

vicções . E nesse ca ldo de cul tura que numerosas f r ações da so

c iedade passam da s i tuação ante r ior de conformidade assoc iada

a o c on f o r mi s mo a uma e t apa s upe r i o r da p r oduç ã o da c o ns c i ê n

c i a, is t o é , a c on f o r mi da de s e m o c on f o r mi s m o . P r o duz - s e de s

sa mane i ra a r edescober ta pe los homens da verdade i ra r azão e

nã o é e s pa n t os o que t a l de s c obr i me n t o s e dê e xa t a me n t e nos

espaços soc ia is , econô mico s e geográf icos tamb ém "n ão c onfor m e s " à r ac i ona li da de dom i na n t e .

Na esfe ra da r ac iona l idade hegemônica , pequena margem é

de ixada para a var iedade , a c r ia t ividade , a espontane idade . En

qua nto i sso, surgem , nas out ras esfe ras , cont ra - rac io na l idad es e

r a c i o n a l i d a d e s p a r a l e l a s c o r r i q u e i r a m e n t e c h a m a d a s d e

i r rac iona l idades , mas que na rea l idade const i tue m out ras formas

de rac iona l idade . Estas são produz idas e mant idas pe los que es

t ã o " e mba i xo" , s ob r e t udo os pob r e s , que de s s e mod o c ons e gue m

escapar ao tota l i ta r i smo da rac iona l idade dominante . Recorde

mos o ensinamento de Sar t r e , pa ra quem a escassez é que torna

a his tór ia poss íve l, graças à "unid ade nega t iva da mul t ip l ic idade

c onc r e t a dos home ns " ^ /

Ta l s i tuação é obje t ivamente esperançosa porque agora as

s is t imos ao f im das expec ta t ivas nut r idas no após-guer ra e , ao

c on t r á r i o , t e s t e munha mos a a mpl i a ç ã o do núme r o de pobr e s ,

ass im com o o es t r e i tamen to das poss ibi l idades e das ce rtezas qu e

as classes médias aca lentavam a té a década de 1980. Ou tro dad o

obje t ivo é o f a to de que a r ea l ização cada vez mais den sa do pr o

cesso de globa l ização ense ja o ca ldeamento, a inda que e lemen

ta r , das f i losof ias produz idas nos diver sos cont inentes , em det r imento do rac iona l i smo europeu, que é o bisavô das idé ias de

r a c i ona l i smo t e c noc r á t i c o ho je domi na n t e s .

2 1 . O imaginário da velocidade

Na famíl ia dos imaginár ios da globa l ização e das técnicas ,

enco ntra - se a idé ia , di fundida com exuberânc ia , de que a ve loc i da de c ons t i t u i um da do i r r e ve r s í ve l na p r oduç ã o da h i s t ó r i a ,

sob re tud o ao a lcançar os paroxismos dos temp os a tua is . N a ver

d a d e , po rém , some nte a lgum as pessoas , fi rmas e ins t ituições são

a l tamen te ve lozes , e são a inda em me no r núm ero as que ut i l izam

 

1 2 2 M I L T O N S A N T O S

todas as vi r tua l idades técnicas das máq uinas . N a verdade , o r es

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do sécu lo XLX ao te rce i ro do século XX. Os i mp ér ios , em sua

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to da humanidade produz , c i r cula e vive de out ra mane i ra . Gra

ças à impostu ra ideológica , o f a to da minor i a acaba send o re pre

senta t ivo da tota l idade , graças exa tamente à força do imagin ár io .

Essa t r ansformação de uma f luidez potenc ia l num a f luidez

efe t iva , por meio da ve loc idade exacerbada , todavia não tem e

nem busca um sent ido. Sem dúvida , e la se rve ao exerc íc io deuma compet i t ividade desabr ida , mas es ta é uma coisa que nin

guém sabe para o que rea lmente se rve .

V e l oc i dade : t é c n i c a e pod e r

Pode -se dizer que a ve loc idade ass im ut i l izada é dup lam en

te um dado da pol í t ica e não da técnica . De um lado, t r a ta - se de

uma escolha re lac ionada com o poder dos agentes e , de out ro,

da legi t imação dessa escolha , po r meio da jus t i f icação d e ummodelo de c ivi l ização. É nesse sent ido que es tamos a f i rmando

tra ta r - se mais de um dado da pol í t ica que , propr iamente , da téc

nica , já que es ta poder ia se r usada di fe rentem ente em fun ção do

conjunto de escolhas soc ia is . De fa to , o uso ext remo da ve loc i

dade acaba por se r o impera t ivo das empresas hegem ônicas e não

das demais , para as qua is o sent ido de urgênc ia nã o é uma con s

t a n t e . Ma s é a pa r t i r de s s e e de ou t r os c omp or t a me n t os q ue a

pol í t ica das empresas a r ras ta a pol ít ica dos Estados e d as in s t i

tuições supranac iona is .

N o pa s s a do , a o r de m mund i a l s e c ons t r u í a me d i a n t e umac ombi na ç ã o po l í t i c a que c onduz i a à nã o - obe d i ê nc i a a os d i t a

me s da t é c n i c a ma i s mode r na . P e ns e mos , po r e xe mpl o , no s é

c u l o do i mpe r i a l i s mo , nos c e m a nos que vã o do qua r t o qua r t e l

qua l idade de grandes conjuntos pol í t icos e te r r i tor ia is , v iviam e

evoluíam segun do idades técnicas diver sas , ut i l izando , cada qua l ,

de n t r o dos s e us domí n i os , c on j un t os de a va nç os t é c n i c os d i s

para tados e que most ravam níve is di fe rentes . O impér io br i tâ

nico es tava à f r ente dos demais quanto à posse de r ecursos téc

n i c os a va nç a dos . Ma s i s s o nã o i mpe d i a s ua c onv i vê nc i a c omou t r os i mpé r i o s . D e n t r o de c a da um, o u s o do c on j un t o dos

r e c u r s os t é c n i c os e r a c oma nda do po r um c on j un t o de no r ma s

r e l a ci ona da s a o c omé r c i o , à p r oduç ã o e a o c on s um o , o que pe r

mi t ia a cada bloco uma evolução própr ia , não per turbada pe la

exis tênc ia em out ros impér ios de avanços técnicos mais s igni f i

ca t ivos . N o fun do, a pol í tica comerc ia l apl icada dent r o de cada

i mpé r i o a s s e gur ava a po l í ti c a do c on j un t o d o mu nd o oc i de n t a l

( M . S a n t o s , / ! natureza do espaço, 1996, pp. 36-37 e pp. 1 52-153) .

O exemplo most ra não se r ce r to que ha ja um impera t ivo técni

c o . O i mpe r a t i vo é po l í t i c o . D e s s e modo , nã o há uma i ne l u -t a b i l i da de f a c e a os s i s t e ma s t é c n i c os , ne m mui t o me nos um

de t e r m i n i s m o . A li á s , a t é c n ic a s ome n t e é um a bs o l u t o e nqu a n

to i r r ea l izada . Assim , exis t indo apenas na vi t r ine , mas h is tor ica

me n t e i ne x i s t e n t e , e qu i va l e r i a a uma a bs t r a ç ã o . Q ua ndo nos

re fe r imos à his tor ic ização e à geografização das técnicas , es tam os

c u i da n do de e n t e nde r o s e u us o pe l o hom e m , s ua qua l i da de de

inte rm ediá r i o da ação, i s to é , sua r e la t ivização.

N o pe r í odo da g l oba l i z a ç ã o , o me r c a do e x t e r no , c om s ua s

e x i gê nc i a s de c ompe t i t i v i da de , ob r i ga a a ume n t a r a ve l oc i da

d e . Ma s a popu l a ç ã o e m s e us d i f e r e n t e s n í ve i s , o s pob r e s e o s

que v i ve m l onge dos g r a nde s me r c a dos ob r i ga m a c ombi na

ç õe s de f o r ma s e n í ve i s de c a p i t a l i s mo . É o me r c a do i n t e r no

qu e f re ia a vo nta de de ve loc ida de de qu e já f a lava M . S or re

 

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(Annales degéographie, 194 8) , po r que t o dos o s a t o r e s de l e pa r t i

c i p a m . T o d a v i a , o s d o i s m e r c a d o s s ã o i n t e r c o r r e n t e s ,

i n t e r d e p e n d e n t e s . I n v a d i n d o a e c o n o m i a e o t e r r i t ó r i o c o m

gr a nde ve l oc i da de , o c i r c u i t o s upe r i o r bus c a de s t r u i r a s f o r

ma s p r e e x i s t e n t e s . Ma s o t e r r i t ó r i o r e s is t e , s ob r e t udo n a g r a n

de c idade , graças , ent re out ras coisas , à menor f r icção da dist â nc i a . A s pe que na s e mé d i a s e m pr e s a s l oc a i s t ê m ma i s a c e s s o

po t e nc i a l que , po r e xe mpl o , uma g r a nde e mpr e s a de Ma na us ,

po i s pode m a l c a nç a r uma pa r t e s i gn i f i c a t i va da c i da de ( po r

e x e m p l o , o s s u p e r m e r c a d o s m e n o r e s ) . C o n t r i b u i r á t a m b é m

pa r a e s se ma i o r a c e s s o po t e nc i a l o fa t o de e s t a r e m n um me i o

que é um t e c i do e um e ma r a nha do de no r ma s c onc e r ne n t e s , o

que t o r na e s s a s e mpr e s a s me nos de pe nde n t e s de uma ún i c a

nor ma pa r a s ubs i s t i r. Ma s , c om a g loba l i z aç ã o e s e u i m a g i ná

r i o c omum a o da t é c n i c a he ge môn i c a , uma e ou t r a s ã o da da s

como indispensáve is à par t ic ipação plena no processo his tór ico.

D o r e l ó g i o d e s p ó t i c o à s t e mp o r a l i d a d e s d i v e r g e n te s

E fa to, tam bém , que , com a inte rdependênc ia globa l izada dos

lugares e a plane ta r ização dos s i s temas técnicos do min antes , es tes

pa r e c e m s e i mpor c omo i nva s o re s , s e r v i ndo c omo pa r â m e t r o n a

ava l iação da e ficác ia de out ro s lugares e de ou t ros s i s tem as téc

nicos . É ne s s e s e n t i do que o s i s te ma t é c n i c o he ge môn i c o a p a r e

ce como a lgo absolutamente indispensáve l e a ve loc idade resul tante com o um da do dese jável a todos qu e pre ten dem par t ic ipar ,

de pleno di re i to , da modernidade a tua l . Todavia , a ve loc idade

a tua l e tud o que vem com e la , e que de la decor re , não é ine lu tá

ve l ne m i mpr e s c i nd í ve l . N a ve r da de , e l a nã o be ne f i c i a ne m

inte ressa à maior ia da hum anid ade . Para quê , de f a to , se rve esse

re lógio despót ico do mundo a tua l? As c r i ses a tua is são, em úl t i

ma a ná l i s e, uma r e s u l t a n t e da ac e l er a ç ão c on t e m por â ne a , m e

d i a n t e o u s o p r i v i l e g i a do , po r a l guns a t o r e s e c onômi c os , da s

poss ibi l idades a tua is de f luidez . Como ta l exerc íc io não respon

de a um obje t ivo mora l e , desse modo, é desprovido de sent ido,o r e s u l t a do é a i n s t a l a ç ã o de s i t ua ç õe s e m que o mov i me n t o

enco ntra jus t i f ica t iva em s i me sm o — com o é o caso do me rca

do de capi ta is especula t ivos —, ta l autonomia sendo uma das

razões da desordem carac te r í s t ica do per íodo a tua l .

Q u a nd o a c e i ta mos pe ns a r a t é c n ic a e m c on j un t o c o m a po

l í t ica e admit imos a t r ibui r - lhe out ro uso, f icamos convenc idos

de que é poss íve l ac redi ta r em u ma ou t ra globa l ização e em um

ou t r o mundo . O p r ob l e ma c e n t r a l é o de r e t oma r o c u r s o da

his tór ia , i s to é , r ecolocar o homem no seu lugar cent ra l .

Ta l preocupação de mudança inc lui uma revisão do s igni f i cado das pa lavras-chave do nosso per íodo, todas contaminadas

pe lo r espec t ivo s is tema ideológico. F iquemos com a questão da

velocidade, que pode se r vis ta como um paradigma da época , mas

também como o que e la r epresenta de emblemát ico. Na verdade ,

se ja qua l for o corpo soc ia l , a ve loc idade h egem ônica const i tu i

uma das suas características, mas a definição da realidade somente

pod e se r obt ida consid erando -se as diver sas ve loc idades em pre

sença . E , se ja como for, a e ticácia da ve loc idade não pro vém da

técnica subjacente . A e f icác ia da ve loc idade hegemônica é de

na tureza pol í t ica e depende do s is tema soc ioeconómico pol í t icoem ação. Pode-s e dizer que , em um a dada s i tuação, ta l ve loc ida

de he ge mô n i c a é um a ve l oci da de i mpos t a i de o l og i c a me n t e .

Como e m t udo ma i s , a i n t e r p r e t a ç ã o da h i s t ó r i a nã o pode

s e r de i xa da a o e n t e nd i me n t o i me d i a t o do f e nôme no t é c n i c o

 

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(Annales degéographie, 1 9 4 8 ) , por q ue t odos o s a t o r e s de le pa r t i

c i p a m . T o d a v i a , o s d o i s m e r c a d o s s ã o i n t e r c o r r e n t e s ,

i n t e r d e p e n d e n t e s . I n v a d i n d o a e c o n o m i a e o t e r r i t ó r i o c o m

gr a nde ve l oc i da de , o c i r c u i t o s upe r i o r bus c a de s t r u i r a s f o r

ma s p r e e x i s t e n t e s . Ma s o t e r r i t ó r i o r e s is t e , s ob r e t udo na g r a n

de c idade , graças , ent re out ras coisas , à me nor f r i c ç ã o da d i s t â nc i a . A s pe que n a s e mé d i a s e m pr e s a s l oc a i s t ê m ma i s a c e s s o

po t e nc i a l que , po r e xe mpl o , uma g r a nde e mpr e s a de Ma na us ,

po i s pode m a l c a nç a r uma pa r t e s i gn i f i c a t i va da c i da de ( po r

e x e m p l o , o s s u p e r m e r c a d o s m e n o r e s ) . C o n t r i b u i r á t a m b é m

pa r a e ss e ma i o r a c e s so po t e nc i a l o f a to de e s t a r e m nu m me i o

que é um t e c i do e um e ma r a nha do de no r ma s c onc e r ne n t e s , o

que t o r na e s s a s e mpr e s a s me nos de pe nde n t e s de uma ún i c a

no r ma p a r a s ubs i st i r. Ma s , c om a g loba l i za ç ã o e s e u i m a g i ná

r i o c omum a o da t é c n i c a he ge môn i c a , uma e ou t r a s ã o da da s

como indispensáve is à par t ic ipação plena no processo his tór ico.

D o r e l ó g i o d e s p ó t i c o à s t e mp o r a l i d a d e s d i v e r g e n te s

É fa to, tam bém , que , com a inte rdependên c ia globa l izada dos

lugares e a plane ta r ização dos s i s temas técnicos dom inan tes , es tes

pa r e c e m s e impo r c omo i nva s o r e s , s e r v i ndo c omo pa r â m e t r o na

ava l iação da ef icác ia de o ut ros lugares e de out ro s s i s temas téc

nicos . É nesse sent ido que o s i s tema técnico hegemônico apare

ce como a lgo absolutamente indispensáve l e a ve loc idade resul tante com o um dad o dese jável a todo s que pre ten dem par t ic ipar ,

de pleno di re i to , da modernidade a tua l . Todavia , a ve loc idade

a tua l e tud o que vem com e la , e que de la decor re , não é ine lu tá

ve l ne m i mpr e s c i nd í ve l . N a ve r da de , e l a nã o be ne f i c i a ne m

inte ressa à maior ia da humanidade . Para quê , de f a to , se rve esse

re lógio despót ico do m un do a tua l? As c r ises a tua is são, em úl t i

ma a ná l i s e , um a r e s u l t a n t e da ac e l er a ç ão c on t e m por â ne a , m e

d i a n t e o u s o p r i v i l e g i a do , po r a l guns a t o r e s e c onômi c os , da s

poss ibi l idades a tua is de f luidez . Co m o ta l exerc íc io não res pon

de a um obje t ivo mora l e , desse modo, é desprovido de sent ido,o r e s u l t a do é a i n s t a l a ç ã o de s i t ua ç õe s e m que o mov i me n t o

enco ntra jus t i f ica t iva em s i me sm o — com o é o caso do me rca

do de capi ta is especula t ivos —, ta l autonomia sendo uma das

razões da desordem carac te r í s t ica do per íodo a tua l .

Q u a nd o a c e i t a mos pe ns a r a t é c n ic a e m c on j un t o c om a p o

l í t ica e admit imos a t r ibui r - lhe out ro uso, f icamos convenc idos

de que é poss íve l ac redi ta r em um a out ra globa l ização e em um

ou t r o mundo . O p r ob l e ma c e n t r a l é o de r e t oma r o c u r s o da

his tór ia , i s to é , r ecolocar o homem no seu lugar cent ra l .

Ta l preocupação de mudança inc lui uma revisão do s igni f i cado das pa lavras-chave do nosso per íodo, todas contaminadas

pe lo r espec t ivo s is tema ideológico. F iquemos com a questão da

velocidade, que pode se r vis ta como um paradigma da época , mas

também como o que e la r epresenta de emblemát ico. Na verdade ,

se ja qua l for o corpo soc ia l , a ve loc idade he gem ônica const i tui

um a das suas características, mas a definição da realidade so me nte

po de se r obt ida consid erando -se as diver sas ve loc idades em pre

sença . E , se ja com o for , a e t icác ia da ve loc idade n ão pro vém da

técnica subjacente . A e f icác ia da ve loc idade hegemônica é de

na tureza pol í t ica e depende do s is tema soc ioeconómico pol í t icoem ação. Pode-se dizer que , em u ma dada s i tuação, ta l ve loc ida

de he ge mô n i c a é uma ve l oc i da de i mpos t a i de o l og i c a me n t e .

Como e m t udo ma i s , a i n t e r p r e t a ç ã o da h i s t ó r i a nã o pode

s e r de i xa da a o e n t e nd i me n t o i me d i a t o do f e nôme no t é c n i c o

 

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e x i g i ndo e n t e nde i c om o , ne s s a me s ma s i t ua ç ã o , s e r e l a c i ona m

a técnica e a pol í t ica , a t r ibuindo a esta o pape l cent ra l no ent en

d i me n t o da s a ç õe s que c on f o r ma m o p r e s e n t e a t ua l e que po

de m t o r na r pos s í ve l um ou t r o f u t u r o .

2 2 . J u s t - i n - t i m e v e r s u s o cotidiano

O tema das ver t ica l idades e das hor izonta l idades pode com

por ta r numerosas r e inte rpre tações . Uma de las , r e f le t indo o jogo

contrad i tór io ent re essas ca tegorias , é a verdade i ra oposição exis

tente e nt re a na tureza das a t ividadesjust-in-time, que t r a ba l ha m

com um re lógio univer sa l movido pe la mais-va l ia univer sa l , e a

realidade das atividades q u e , juntas , const i tuem a vida cot idiana .N o pr im eiro caso tr a ta - se da vocação para uma rac iona l idade

única , r e i tora de todas as out ras , dese josa de homog ene iz ação e

de uni f icação, pre tendendo sempre tomar o lugar das demais ,

um a rac iona l idade única , mas rac iona l idade sem razão, que t r ans

forma a exis tênc ia daque les a quem subordina numa per spec t i

va de alienação. Já no cotidiano, a razão, isto é, a razão de viver ,

é buscada por m eio do q ue , f ace a essa r ac iona lidade hegem ônica ,

é considerado com o " i r r aciona l idade" , quan do na rea l idade o que

se dá são outras formas de ser racional.

O m und o do t e mpo r e a l, do just- in-time, é a que l e s ubs i s t e mada r e a l i da de t o t a l que bus c a s ua l óg i c a ne s s a me nc i ona da

«rac ion a l idade única , cuja c r iação é, todavia , l imi tada , a t r ibuto de

um pe que no núme r o de a ge n t e s . O mundo do c o t i d i a no é t a m

bém o da produção i l imi tada de out ras r ac iona l idades , que são,

a l iás , tão diver sas quan to as á reas conside radas , já qu e abr iga m

todas as modal idades de exis tênc ia .

O f unc i ona me n t o dos e s pa ç os he ge môn i c os s upõe uma de

ma nd a de s e s pe r ada de r e g ra s ; qua n do a s c ir c uns t â nc ia s m ud a m

e, por i sso, as normas reguladoras têm de mudar , nem por i sso

sua demanda de ixa de se r desesperada . Ta l r egulação obedece àconsideração de inte resses pr ivat í s t icos . Já o cot idiano supõ e um a

de ma nda de s e s pe r a da de P o l í t i c a , r e s u l t a do da c ons i de r a ç ã o

conjunta de múl t iplos inte resses .

N o caso das a t ividades just-in-time, uma s ó t e mpor a l i da de é

c o n s i d e r a d a : é a f ó r m u l a d e s o b r e v i v ê n c i a n o m u n d o d a

c ompe t i t i v i da de à es c al a p l a ne tá r i a. Co mo da do m ot o r , um a s ó

e x i s tê nc i a, a dos a gen t e s he ge môn i c os , é , a o me s m o t e m po , o r i

gem e f ina l idade das ações . A vida cot idiana abrange vár ias

t e mpor a l i da de s s i mu l t a ne a m e n t e p r e s e n t e s , o que pe r mi t e c on

s idera r , pa ra le la e sol idar iamente , a exis tênc ia de cada um e d etodo s , com o, ao me sm o temp o, sua or igem e f ina lidade .

O c on j un t o da s c ond i ç õe s a ci ma e nunc i a da s pe r mi t e d i z e r

q u e o m u n d o d o t e m p o r e a l b u s c a u m a h o m o g e n e i z a ç ã o

e mpob r e c e dor a e l i mi t ada , e nqua n t o o un i ve r s o do c o t i d i a no é

o mundo da he t e r oge ne i da de c r i a do r a .

2 3 . Um emaranh ado de técnicas: o reino do artifício

e da escassez

Sabemos já que as técnicas presentes em uma dada s i tuação

nã o s ã o homogê n e a s . E nqua n t o a s t é c n ic a s he ge môn i c a s s e dã o

 

1 2 8 M I L T O N S A N T O S P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A ÇÃ O 1 2 9

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em redes , a lém de las out ras técnicas se impõem. Mas, em uma

da da s i t ua ç ã o , t oda s a s t é c n i c a s p r e s e n t e s a c a ba m por s e r

inext r icáve is . Ta l sol idar iedade não é , propr iamente , ent re as

técnicas , mas o f ruto da vida sol idária da soc iedade .

Do ar ti f íc io à e scassez

Hoje , tanto os obje tos quanto as ações der ivam da técnica .

As técnicas es tão, pois , em toda par te : na produção, na c i r cu

lação, no te r r i tór io , na pol í t ica , na cul tura . E las es tão também

— e p e r m a n e n t e m e n t e — n o c o r p o e n o e s p ír i to d o h o m e m .

V i ve mos t odos num e ma r a nha do de t é c n i c a s , o que e m ou t r a s

pa lavras s igni f ica que es tamos todos mergulhados no re ino do

a r ti f íc i o . N a me d i da e m q ue a s t é c n i ca s he ge môn i c a s , f unda

das na c iênc ia e obedientes aos impera t ivos do mercado, sãoho j e e x t r e ma m e n t e do t a da s de i n t e nc iona l i da de , há i gua l me n t e

t e ndê nc i a à he ge mon i a de uma p r oduç ã o " r a c i ona l " de c o i s a s

e de nec e s s i da de s ; e de s s e mo do um a p r oduç ã o e xc l ude n t e de

ou t r a s p r oduç õe s , c om a mu l t i p l i c a ç ã o de ob je t o s t é c n i c os e s

t r i t a me n t e p r og r a ma dos que a b r e m e s pa ç o pa r a e s s a o r g i a de

c o i s a s e ne c e s s i da de s que i mpõe m r e l a ç õe s e nos gove r na m.

Cr i a - s e um ve r da de i r o t o t a l i t a r i s mo t e nde nc i a l da r a c i ona

l i da de — i s t o é , de s s a r a c i ona l i da de he ge môn i c a , domi na n t e

— , p r oduz i ndo - s e a pa r t i r do r e s pe c ti vo s i s t e ma c e r t as c o i s a s ,

se rviços , r e lações e idé ias . Esta , a l iás , é a base pr im eira da p ro duç ão de carênc ias e de escassez , já qu e um a parce la co nsi de

ráve l da soc iedade não p ode te r acesso às coisas , se rviços , r e la

ç õ e s , i dé i a s que s e mu l t i p l i c a m na ba s e da r a c i ona l i da de

h e g e m ô n i c a .

A s i tuação contemporânea reve la , ent re out ras coisas , t r ês

tendênc ias : 1 . uma produção ace le rada e a r t i f ic ia l de necess ida

d es ; 2. uma incorporação l imi tada de modos de vida di tos r ac io

nais ; 3. uma produção i l imi tada de carênc ia e escassez .

Nessa s i tuação, as técnicas , a ve loc idade , a potênc ia c r iam

de s i gua l da de s e , pa r a l e l a me n t e , ne c e s s i da de s , po r que nã o hása t is fação para todos . N ão é q ue a produ ção necessár ia se ja glo

ba l me n t e i mpos s í vel . Ma s o que é p r od uz i do — ne c e ss á r ia ou

de s ne c e s s a r ia me n t e — é de s i gua l me n t e d i s t r i bu í do / D a í a s e n

sação e, depois, a consciência da escassez: aquilo que falta a mim,

mas que o out ro mais bem s i tuado na soc iedade possui . A idé ia

vem de Sar t r e , qu and o regis t ra que "não há bas tante para todo o

mundo" . P o r i s s o o ou t r o c ons ome e nã o e u . O home m, c a da

homem, é a f ina l def inido pe la soma dos poss íve is que lhe ca

be m , ma s t a mbé m pe l a soma dos s e us i mpos s í ve is .

O re ino da necess idade exis te para todos , mas segun do for mas di fe rentes , as qua is s impl i f icamos me diant e duas s i tuações-

t i p o : para os "possuidores" , para os "não possuidores" .

Qu ant o aos "possuidores" , torna- se viável , med iante poss ibi

lidades reais ou artif ícios renovados, a fuga à escassez e a supera

ção a inda que provisór ia da escassez . Co m o o processo d e c r iação

de necess idades é inf ini to , impõe-se uma readaptação perma

nente . Cr ia - se um c í rculo vic ioso com a rot ina da f a l ta e da sa

tisfação. N a realida de, para essa parcela da socieda de a falta já é

c r iada com o a expec ta t iva e a per spec t iva d e sa t is fação. As neg o

ciações para regressar ao status de c ons um i dor s a t is f ei t o c ond uzem à repe t ição de exper iênc ias exi tosas . Desse m od o, a parce la

de c ons um i dor e s c on t um a z e s ob t é m uma c onv i vê nc i a r el a ti va

me nte pac í f ica com a escassez . Ma s a busca perm anen te de bens

f ini tos e por i sso cond enado s ao esgotam ento (e à subst i tuição

 

1 30 M I L T O N S A N T O S P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 31

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por out ros bens f ini tos) condena os aparentemente vi tor iosos à

ace i tação da cont ra f ina l idade cont ida nas coisas e em con seqü ên

c ia ao enf raquec imento da individua l idade .

Q u a n t o a os " nã o - pos s u i do r e s " s ua c onv ivê nc i a c om a e s c a s

sez é conf l i tuosa e a té pode se r guer re i r a . Para e les , viver na e s

f e r a do c ons umo é c omo que r e r s ub i r uma e s c a da r o l a n t e nosent ido da desc ida . Cada dia acaba ofe recendo uma nova expe

riência da escassez. Por isso não há lugar para o repo us o e a pró

pr ia vida acaba por se r um verda de i ro cam po de ba ta lha . Na br iga

cotidiana pela sobrevivência, não há negociação possível para eles,

e , individua lmente , não há força de negoc iação. A sobrevivên

c ia só é assegurada porque as exper iênc ias impera t ivamente se

renovam. E como a surpresa se dá como rot ina , a r iqueza dos

"não-possuidores" é a pront idão dos sent idos . É com essa força

que e les se eximem da cont ra f ina l idade e ao lado da busca de

ben s mate r ia is f ini tos cul t ivam a procura de bens inf ini tos c om oa sol idar iedade e a l iberdade : es tes , quanto mais se dis t r ibuem,

m a i s a u m e n t a m .

Da e s c a s s e z a o e n te n d i me n to

A exper iênc ia da escassez é a pon te ent re o cot id iano v ivido

e o mundo . P o r i s s o , c ons t i t u i um i ns t r ume n t o p r i mor d i a l na

percepção da s i tuação de cada um e uma poss ibi l idade de co

nhe c i m e n t o e de t oma da de c ons c i ê nc ia .O nosso tempo consagra a mul t ipl icação das fontes de es

cassez , se ja pe lo número avassa lador dos obje tos presentes no

mercado, se ja pe lo chamado incessante ao consumo. Cada dia ,

nessa época de globa l ização, apresenta - se um obje to novo, que

nos é most rado para provocar o ape t i te . A noção de escassez se

mater ia l iza , se aguça e se r eaprende cot idian amen te , ass im co mo ,

já agora , a ce rteza de qu e cada dia é dia de u m a nov a escassez . A

soc iedade a tua l va i dessa mane i ra , mediante o mercado e a pu

bl ic idade , c r iando dese jos insa t i s fe i tos , mas também rec laman

do e xp l i c aç õe s . D i r - s e - i a que t a l mo v i m e n t o s e r e pe t e , e n r i qu e c e ndo o mov i me n t o i n t e l e c t ua l .

A escassez de um pode se parecer à escassez do out ro e a

escassez de hoje à escassez de ont em , mas qu and o não é sa t i s fe i

ta e la acaba por se impor como di fe rente da de ontem e da do

outro. Al te r idade e individua l idade se r e forçam com a renova

ção da novidade . Quanto mais di fe rentes são os que convivem

num espaço l imi tado, mais idé ias do mundo a í es ta rão para se r

levantadas , cote jadas e , desse modo, tanto mais r ico se rá o de

ba te s i lenc ioso ou ruidoso que ent re as pessoas se es tabe lece .

Nes se sent ido, pode -se dizer que a c idade é um lugar pr ivi legiadopara essa revelação e que, nessa fase da globalização, a acelera

ç ã o c on t e mpor â ne a é t a mbé m a c e le r a çã o na p r oduç ã o da e s c a s

sez e na descob er ta da sua rea l idade , já que , mul t ip l ican do e

apressando os conta tos , exibe a mul t ipl ic idade de formas de es

c a s se z c on t e mpor â ne a , a s qua i s vã o mud a nd o ma i s r a p i da me n

t e pa r a s e t o r na r e m ma i s nume r os a s e ma i s d i ve r s a s . P a r a o s

pobr e s , a e s c a s s e z é um da do pe r ma ne n t e da e x i s t ê nc i a , ma s

co mo su a presença na vida de todos os dias é o r esul tado d e u m a

metamor fose também permanente , o t r aba lho acaba por se r , pa ra

eles , o lugar de uma descober ta cot idiana e de um combate cot i d i a no , ma s t a mbé m um a pon t e e n t r e a ne c e s s ida de e o e n t e n

d i me n t o ( M. S a n t os . J o r a a / do Brasil, 06.04 .1997) .

 

1 3 2 M I L T O N S A N T O SPO R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 33

a par t i r das suas visões do mu nd o e dos lugares . Tra ta - se de um a

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po l í t i c a de novo t i po , que na da t e m a ve r c om a po l í t i c a

ins t i tuc iona l . Esta úl t ima se funda na ideologia do c resc imento,

da globa l ização e tc . e é conduz ida pe lo cá lculo dos par t idos e

das empresas . A pol í t ica dos pobres é baseada no cot idiano v ivi

do por todos , pobres e não pobres , e é a l imentada pe la s imples

ne c e s s i da de de c on t i nua r e x i s t i ndo . N os l uga r e s , uma e ou t r a

s e e nc on t r a m e c on f unde m , da í a p r e s e nç a s i mu l t â ne a de c om

por t a m e n t os c on t r a d i t ó r i o s , a li me n t a dos pe l a ide o l og i a do c on

s u m o . Este , ao se rviço das forças soc ioeconó micas hegem ônicas ,

t a mb é m s e e n t r a nha na v i da dos pobr e s , s u s c i t a ndo ne l e s e xpe c

ta t ivas e dese jos que não podem contenta r .

N u m m un do t ã o c ompl e xo , pode e s c a par a os pobr e s o e n

t e nd i me n t o s i s t ê mi c o do s i s t e ma do mundo . E s t e l he s a pa r e c e

ne bu l os o , c ons t i tu í do po r c a usa s p róx i ma s e r e mot a s , po r m o

t ivações concre tas e abst ra tas , pe la confusão en t re os discursos eas s i tuações , ent re a expl icação das coisas e a sua propa ganda .

Mas há também a des i lusão das demandas não sa t i s fe i tas , o

e xe mpl o do v i z i nho que p r os pe r a , o c o t i d i a no c on t r a d i t ó r i o .

T a l ve z po r aí c he gue o de s pe rt a r. N u m p r i me i r o m om e n t o , e s t e

é , a pe na s , o e nc on t r o de uns pouc os f r a gme n t os , de a l guma s

peças do puzzle, mas também a di f iculdade para ent ra r no labi

r into: f a l ta -lhes o própr io s i s tema do m un do , do pa ís e do lugar .

Ma s a s e me n t e do e n t e nd i m e n t o j á e st á p la n t a da e o pa s s o s e

guin te é o seu f loresc imento em a t i tudes de incon formid ade e ,

talvez, rebeldia.Sem d úvida , os brotes individua is de insa t is fação pod em não

f o r ma r um a c o r r e n t e . Ma s os mov i me n t o s de ma s s a ne m s e m

pre r esul tam de discursos c laros e bem ar t iculados , nem sem pre

se dão por meio de organizações conseqüentes e es t ruturadas .

' • F A C U L D A D E S CURITIBA

BIBLIOTECA

24 . Papel dos pobres na produção do presente e do futuro

O e xa me do pa pe l a tua l dos pobr e s na p r oduç ã o do p r e s e n

te e do futuro exige , em pr imeiro lugar , dis t ingui r ent re pobre

za e misér ia . A misér ia acaba por se r a pr ivação tota l , co m o ani qui lamento, ou quase , da pessoa . A pobreza é uma s i tuação de

carênc ia , mas tam bém de luta , um es tado vivo, de vida a tiva , em

que a tomada de consc iênc ia é poss íve l .

Miseráve is são os que se confessam der rotados . Mas os po

bres não se ent regam. E les descobrem cada dia formas inédi tas

de t r aba lho e de luta . Assim, e les enf rentam e buscam remédio

para suas di f iculdades . Nessa cond ição de a le r ta perm ane nte , não

têm repou so inte lec tua l . A mem ór ia se r ia sua inimiga . A he rança

do passado é temperada pe lo sent imento de urgênc ia , essa cons

c i ê nc i a do novo que é , t a mbé m, um mot o r do c onhe c i me n t o .A soc ia l idade urbana pode escapar aos seus inté rpre tes , nas

faculdades; ou aos seus vigias , nas de legac ias de pol íc ia . Mas não

aos a tores a t ivos do drama, sobre tudo quando, para prossegui r

vivendo, são obr igados a luta r todos os dias . Haverá quem des

c reva o quadro mate r ia l dessa ba ta lha como se fosse um tea t ro,

qu and o, por exem plo, se fa la em es t ra tégia de sobrevivênc ia , m as

na rea l idade esse pa lco, ju nt o com seus a tores , cons t i tui a pró

pr ia vida concre ta da maior ia das populaç ões . A c idade , pro nta a

enf renta r seu tempo a par t i r do seu espaço, c r ia e r ec r ia uma

cul tura co m a cara do seu tem po e do seu espaço e de acord o o ue m opos i ç ã o a os " donos do t e mpo " , que sã o t a m bé m os do nos

do espaço.

É dessa forma qu e , na convivênc ia com a necess idad e e com

o ou tro , se elabora uma política, a política dos de baixo, c ons t i t u í da

 

1 3 4 M I L T O N S A N T O S

O e n t e n d i m e n t o s i s t e má t i c o das s it ua ç ões e a c o r r e s ponde n t e

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 35

A i d a d e d e o u r o

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s i s t e ma t i c i da de da s ma n i f e s t a ç õe s de i nc onf o r mi da de c ons t i

tue m, via de r egra , um p rocesso lento. Mas i sso não imped e que ,

no âm ago da soc iedad e , já se es tejam, aqui e a l i , levantan do v ul

cõ es , me s mo que a i nda pa r e ç a m s i l e nc i os os e do r me n t e s .

Na rea l idade , uma coisa são as organizações e os movimen

tos es t ruturados e out ra coisa é o própr io cot idiano como um

tec ido f lexíve l de r e lações , adaptáve l às novas c i r cunstânc ias ,

s e mpr e e m mov i me n t o . A o r ga n i z a ç ã o é i mpor t a n t e , c omo o

ins t rumento de agregação e mul t ipl icação de forças a f ins , mas

separadas . E la também pode const i tui r o meio de negoc iação

necessár io a vencer e tapas e encon tra r um novo pa tamar de r e

s i s t ê nc i a e de l u t a . Ma s a ob t e nç ã o de r e s u l t a dos , po r ma i s

compensadores que pareçam, não deve es t imular a c r i s ta l ização

do movimento, nem encora ja r a r epe t ição de es t r a tégias e tá t i

cas. O s mo v i me n t os o r ga n i z a dos de ve m i mi t a r o c o t i d i a no da s

pessoas , cuja f lexibi l idade e adaptabi l idade lhe asseguram um

autênt ico pragmat ismo exis tenc ia l e const i tuem a sua r iqueza e

fonte pr inc ipa l de verac idade .

2 5 . A metamorfose da s classes médias

Cada época c r ia novos a tores e a t r ibui papé is novos aos jáexis tentes . Este é tam bém o caso das c lasses médias bras i le i r as ,

desaf iadas agora para o desempenho de uma impor tante ta re fa

his tór ica , na r econst i tuição do quadro pol í t ico nac iona l .

O c ha m a do mi l a g r e e c onômi c o b r a s i l e ir o pe r mi t e a d i f u s ã o ,

à esca la do pa ís , do fa to da classe méd ia . N a rea l idad e , ent re as

mui tas "explosões" ca rac te r í s t icas do per íodo, es tá esse c resc i

me n t o c on t í nu o da s cl a ss e s mé d i a s , p r i me i r o na s g r a nde s c i da

de s e depo i s na s ci da de s me nor e s e no c a mp o mod e r n i z a do . E s s a

e xp l os ã o da s c l a s s e s mé d i a s a c ompa nha , ne s t e me i o s é c u l o , a

explosão demog ráf ica , a explosão urba na e a explosão do con su

mo e do c r éd i t o . T a l c on j un t o de f e nôme no s t e m r e l a ç ã o e s t r u

t u r a l c om o a ume n t o da p r oduç ã o i ndus t r i a l e a g r í c o l a , c omo

t a mbé m do c omé r c i o , dos t r a ns po r t e s , da s t r oc a s de t odos o s

t ipos , das obras públ icas , da adminis t r ação e da necess idade de

informação. Há , para le lamente , uma expansão e diver s i f icação

do emprego, com a di fusão dos novos te rc iá r ios e a consol ida

ção , e m mui t a s á r e as do pa ís , de um a pe que n a bu r gue s i a op e r á r ia . Como a modernização capi ta l i s ta tende ao esvaz iamento do

campo e é sempre se le t iva , uma parce la impor tante dos que se

di r igi ram às c idades não pôde par t ic ipar do c i r cui to super ior da

economia , de ixando de inc lui r - se ent re os assa la r iados formais

e s ó e nc on t r a ndo t r a ba l ho no c i r c u i t o i n f e r i o r da e c onomi a ,

i mpr opr i a me n t e c ha ma do de s e t o r " i n f o r ma l " .

Vale r ea lçar que n o Bras i l do mi lagre , e a té durante b oa p ar

te da década de 1980, a classe méd ia se expande e se des envolv e

s e m qu e houve s s e ve r da de ir a c ompe t i ç ã o de n t r o de l a qua n t o a o

uso dos r ecursos que o mercado ou o Estado lhe ofe rec iam paraa melhor ia do seu poder aquis i t ivo e do seu bem-esta r mate r ia l .

T odos i a m s ub i ndo j un t os , e mb or a pa r a a nda re s d i f e re n t e s . M a s

todo s das c lasses médias es tavam cônsc ios de sua ascensão soc ia l

e esperançoso s de conse guir a inda mais . Daí sua rela t iva coesã o

 

1 3 6 M I L T O N S A N T O S

e o s e n t i me n t o de s e ha ve r t o r na do um pode r os o e s t a me n t o . A

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç ÃO 1 3 7

p l i c i da de , c om o r e g i me a u t o r it á r i o . O m ode l o e c onôm i c o i m

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comp et ição foi , na r ea l idade , com os pobres , cujo acesso aos ben s

e se rviços se torna cada vez mais di f íc i l , à medida que es tes se

mu l t ipl icam . Vale a pena lem brar as f ac i l idades para a aquis ição

da c as a p r óp r i a , me d i a n t e p r og r a ma s gove r na me n t a i s c o m que

foram pr ivi legiados , enquanto os bras i le i ros mais pobres ape

na s f o r a m i nc ompl e t a me n t e a t e nd i dos nos ú l t i mos a nos do r e

gim e autor i tá r io . A c lasse mé dia é a grande benef ic iá ria d o c re s

c i m e n t o e c o n ô m i c o , d o m o d e l o p o l í t i c o e d o s p r o j e t o s

u r ba n í s t i c os a do t a dos .

T a l c l a s s e mé d i a , a o me s mo t e mpo e m que s e d i ve r s i f i c a

p r o f i s s i o n a l m e n t e , a u m e n t a s e u p o d e r a q u i s i t i v o e m e l h o r a

qua l i t a t iva me n t e , po r me i o da s opo r t un i da de s de e duc a ç ã o que

lhe são aber tas , tudo i sso levando à ampl iação do seu bem-esta r

( o que ho j e s e c ha ma de qua l i da de de v i da ) , c onduz i ndo- a a

acredi ta r que a preservação das suas vantagens e per spec t ivase s t i ve s s e a s s e gur a da . Conf o r me mos t r a r a m A mé l i a Ros a S .

Bar re to e Ana Clara T . Ribe i ro ( "A dúvida da dívida e a c lasse

mé d i a " , Lastro, IPPUR, ano 3, n° 6 , abr i l de 1999) "o acesso ao

crédi to t r ansforma-se em ins t rumento para a lcançar a es tabi l i

dade soc ia l" . Tudo o que a l imenta a c lasse média dá- lhe , tam

bé m , um s e n t i me n t o de i nc l us ão no s i st e ma po lí t i c o e e c on ôm i

co, e um s e n t i me n t o de s e gu r anç a , e s ti mu l a do pe l a s c ons t a n t e s

medidas do poder públ ico em seu favor . Tra tava- se , na r ea l ida

d e , de um a moed a de t roca , já que a classe média cons t i tuía u ma

base de apoio às ações do governo.Form a-se , dessa mane i ra , uma c lasse méd ia sequiosa de ben s

mater ia is , a começar pe la propr iedade , e mais apegada ao con

sumo que à c idadania , sóc ia despreocupada do c resc imento e do

poder , co m os qua is se confundia . Daí a tole rânc ia , senão a c um -

por tava mais que o modelo c ívico. Eram essas , a l iás , condições

ob j e ti va s nec e s s ár i as a um c r e s c i me n t o e c onô mi c o s e m de mo

crac ia . Quando o regime mi l i ta r esgota o seu c ic lo , a democra

c ia se ins ta la incomple tamente na década de 1980, guardando

t odos e s s e s v í c i o s de o r i ge m e s us t e n t a ndo um r e g i me r e p r e

senta t ivo fa ls i f icado pe la ausênc ia de par t idos pol í t icos conse

qüe ntes . Seg uind o essa lógica , as própr ias esq uerdas são levadas

a dar mais espaço às preocupações e le i tora is e menos à pedago

gia prop r iam ente pol í t ica . A gênese e as formas d e expansão das

c lasses médias bras i le i r as têm re lação di re ta com a manei ra com o

ho j e s e de s e m pe nh a m os pa r t i dos .

A escassez chega às c lasses médias

Tal s i tuação tende a mudar , q uan do a c lasse méd ia come ça a

conhecer a exper iênc ia da escassez , o que poderá levá- la a uma

re inte rpre tação de sua s i tuação. Nos anos r ecentes , pr imeiro de

forma lenta ou esporádica e já agora de mo do m ais s i s temát ico e

cont inuado, a c lasse média conhece di f iculdades que lhe apon

tam para uma s i tuação exis tenc ia l bem di fe rente daque la que

conh ecera há pouc os anos . Ta is di f iculdades chegam em u m t ro

pe l : a educação dos f i lhos , o cuidado com a saúde , a aquis ição

ou o a lugue l da moradia , a poss ibi l idade de pagar pe lo lazer , a

fa lta de garant ia no em preg o, a de te r ioração dos sa lá r ios , a po upança nega t iva e o c rescente endividamento es tão levando ao

desconfor to quanto ao presente e à insegurança quanto ao futu

r o , tanto o futuro r em oto qu anto o imedia to . Ta is incer tezas são

agravadas pe las novas per spec t ivas da previdênc ia soc ia l e do

 

1 38 M I L T O N S A N T O S

r egime de aposentador ias , da prom et ida r e forma dos seguros pr i

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 3 9

profunda , podem a lcançar um níve l qua l i ta t ivo super ior , a par

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vados e da legis lação do t r aba lho. A tudo i sso se ac rescentam, de n

t ro do própr io la r , a apreensão dos f i lhos em re lação ao futuro

profissional e as manifestações cotidianas desse desassossego.

J á que nã o ma i s e nc on t r a m os r e mé d i os que l he e r a m o f e

r e c i dos pe l o me r c a do ou pe l o E s t a do c omo s o l uç ã o a os s e us

problemas individua is emergentes , as c lasses médias ganham a

pe r c e pç ã o de que j á nã o ma nda m, ou de que j á nã o ma i s pa r t i c i

pam da par t i lha do poder . Acostuma das a a t r ibui r aos pol í t icos a

s o l uç ã o dos s e us p r ob l e ma s , p r oc l a ma m , a go ra , s e u de s c on t e n

tam ento , dis tanc ian do-se de les . E las já não se vêe m espe lhadas

nos pa r t i dos e po r i s s o s e i n s t a l a m num de s e nc a n t o ma i s

abrangente quanto à pol í t ica propr iamente di ta . I sso é jus t i f ica

d o , e m pa r t e , pe l a v i s ã o de c ons um i dor de s a bus a do qu e a l i me n

tou durante décadas , agravada com a f r agmentação pe la mídia ,

sobre tudo te levis iva , da informação e da inte rpre tação do proc e s s o s oc i a l . A c e r t e z a de nã o ma i s i n f l u i r po l i t i c a me n t e é

for ta lec ida nas c lasses médias , levand o-as , não ra ro, a r eagi r n e

ga t ivam ente , i s to é , a dese ja r meno s pol í t ica e men os par t ic ipa

ção , quando a r eação cor re ta poder ia e dever ia se r exa tamente a

opos t a .

A a tua l exper iênc ia de escassez pode não conduz i r imedia

tamente à dese jáve l expansão da consc iênc ia . E quando es ta se

impõe , não o f az igua lmente , segundo as pessoas . Vis to esque

ma t i c a me n t e , t a l p r oc e s s o pode t e r , c omo p r i me i r o de g r a u , a

preocupação de defender s i tuações individua is ameaçadas e ques e de s ej a r ec ons t i tu i r , r e t oma ndo o c ons u mo e o c on f o r t o ma

t e r i a l c omo o p r i nc i pa l mo t o r de uma l u t a , que , de s s e modo ,

pod e se l imi ta r a novas manifes tações de individu a l i smo . É n um

segun do m om ent o que ta is r e ivindicações , f ruto de r e flexão ma is

t i r de um e n t e nd i m e n t o m a i s a mpl o do p r oc e s s o s oci a l e de um a

v i s ã o s i s t ê mi c a de s i t ua ç õe s a pa r e n t e me n t e i s o l a da s . O pa s s o

seguinte pode levar à dec isão de par t ic ipar de uma luta pe la sua

t r a ns f o r ma ç ã o , qua ndo o c ons umi dor a s s ume o pa pe l de c i da

d ão . N ã o i mpor t a que e s s e mov i me n t o de t oma da de c ons c i ê n

c ia não se ja gera l , ne m igua l para todas as pessoas . O imp or ta nte

é que se ins ta le .

U m d a d o n o v o n a p o l í t ic a

Seja co mo for, as c lasses médias bras i le i r as , já n ão mais ad u

ladas , e f e r idas de mor te nos seus inte resses mate r ia is e espi r i

t ua i s , c ons t i t ue m , e m s ua c ond i ç ã o a t ual , um da do no vo da v i da

soc ia l e pol í t ica . Mas seu pape l não es ta rá comple to enquanto

nã o s e i de n t i f i c a r c om os c l a mor e s dos pobr e s , c on t r i bu i ndo ,

juntos , para o r ea r ranjo e a r egeneração dos par t idos , inc lus ive

os pa r t i dos do p r og r e s so . D e n t r o de s t e s , s ã o mu i t o s o s que a i n

da ace i tam as tentações do t r iunfa l i smo oposic ionis ta — sem

pr e que a s oca s i ões s e a p r e s e n t a m — e s e r e nde m a o op or t un i s

mo e l e i t o r e i r o , l i m i t a ndo- s e à s r e s pe c t i va s mob i l i z a ç õe s

ocasiona is , desgar rando-se , ass im, do seu pape l de formadores

não ap enas da opinião ma s da consc iênc ia cívica sem a qua l nã o

pode haver nes te pa ís pol í t ica verdade i ra .

As c lasses médias bras i le i r as , agora mais i lus t r adas e , também, mais despojadas mate r ia lmente , têm, agora , a ta re ia his tó

r ica de forçar os par t idos a comple ta r , n o Bras i l , o t r aba lho, a pe

nas começado, de implantação de uma democrac ia que não se ja

apenas e le i tora l , mas , também, econômica , pol í t ica e soc ia l . A

 

1 4 0 M I L T O N S A N T O S

exper iênc ia da escassez , um reve lador cot idiano da verdade i ra s i

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tuação de cada pessoa é , desse modo, um dado fundamenta l na

ace le ração da tomada de consc iênc ia . Nas condições bras i le i r as

a tua is , as novas c i r cunstânc ias podem levar as c lasses médias a

forçar uma m uda nça substanc ia l do ideár io e das prá t icas pol í t i

cas, que inc luam uma maior r esponsabi l idade ideológica e a cor

respondente r epresenta t ividade pol í t ico-e le i tora l dos par t idos . V I

A T R A N S I Ç Ã O E M M A R C H A

I n t r o d u ç ã o

A gestação do novo, na his tór ia , dá - se , f r eqüentemente , de

mo do qua s e i mpe r c e p t í ve l pa ra o s c on t e mpor â ne os , j á que s ua s

s e m e n t e s c o m e ç a m a s e i m p o r q u a n d o a i n d a o v e l h o é

quant i ta t ivamente dominante . É exa tamente por i sso que a "qua

l idade" do novo pode passar despercebida . Mas a his tór ia se ca

rac te r iza como uma sucessão ininte r rupta de épocas . Essa idé ia

de mov i me n t o e mud a nç a é ine r e n t e à e vo l uç ã o da hum a n i da d e .

E de s s a f o r ma que os pe r í odos na s c e m, a ma dur e c e m e mo r r e m .

N o c a s o do mu nd o a t ua l , t e mos a c ons c iê nc i a de v i ver um

novo pe r í od o , ma s o novo que ma i s f a ci l me n te a p r e e nd e mos é

a ut i l ização de formidáve is r ecursos da técnica e da c iênc ia pe las

novas formas d o grande capi ta l, apoiado por formas ins t i tuc iona isigua lmen te novas . Nã o se pode dizer que a globa l ização seja se

me l h a n t e à s onda s a n t e r io r e s , ne m m e s m o uma c on t i nua ç ã o do

que havia antes , exa tamente porque as condições de sua rea l i

z a ç ã o muda r a m r a d i c a l me n t e . É s ome n t e a go r a que a huma -

 

1 4 2 M I L T O N S A N T O S

nidade es tá podendo conta r com essa nova qua l idade da técnica ,

P O R U M A O U T R A G L O B A L I ZA Ç Ã O 1 4 3

dade , e o pró pr io f a to de que se ja c r iador de escassez é u m do s

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providenc iada pe lo que se es tá chamando de técnica informa-

c i ona l. Che ga m os a um ou t r o s é c u l o e o hom e m , po r me i o do s

avanços da c iênc ia , prod uz u m s is tema de técnicas pres idido pe las

técnicas da informação. Estas passam a exercer um pape l de e lo

ent re as demais , unindo-as e assegurando a presença plane tá r ia

desse novo s is tema técnico.

T oda v i a , pa r a e n t e nde r o p r oc e s s o que c onduz i u à g l o

ba l ização a tua l , é necessár io levar em co nta dois e lemen tos fun

dam enta is : o es tado das técnicas e o es tado da pol í tica . Há , f r e

q ü e n t e m e n t e , t e n d ê n c i a a s e p a r a r u m a c o i s a d a o u t r a . D a í

nascem as mui tas in te rpre tações da his tór ia a par t i r das técnicas

ou da po l í t i c a , e xc l us i va me n t e . N a ve r da de , nunc a houve , na

his tór ia hum ana , separação ent re as duas coisas . A his tór ia for

nece o quadro mate r ia l e a pol í t ica molda as condições que per

mi tem a ação. Na prá t ica soc ia l, s i s temas técnicos e s i s temas d e

a ç ã o se c on f unde m e é po r m e i o da s c ombi na ç õe s e n t ã o pos s í

ve is e da escolha dos momentos e lugares de seu uso que a his

tór ia e a geografia se f azem e se r e fazem con t inu ada men te .

2 6 . Cultura popular, período popular

Para a maior par te da hum anidad e , o processo de globa l ização

acaba tendo, di r e ta ou indi re tamente , inf luênc ia sobre todos os

aspec tos da exis tênc ia : a vida econô mica , a vida cul tura l , a s r e la

ções inte rpessoa is e a própr ia subje t ividade . E le n ão se ver i f ica

de modo homogê ne o , t a n t o e m e x t e ns ã o qua n t o e m p r o f und i -

mot i vos da i mpos s i b i l i da de da homoge ne i z a ç ã o . O s j nd i v í duos

não são igua lmente a t ingidos por esse f enômeno, cuja di fusão

encontra obstáculos na diver s idade das pessoas e na diver s idade

dos l uga r e s . N a r e a l i da de , a g l oba l i z a ç ã o a g r a va a he t e r oge

ne i da de , da ndo- l he me s mo um c a r á t e r a i nda ma i s e s t r u t u r a l .

Uma das conseqüênc ias de ta l evolução é a nova s igni f ica

ção da cul tura popula r , tornada capaz de r iva l iza r com a cul tura

de ma s s a s . O u t r a é a p r oduç ã o da s c ond i ç õe s ne c e s s á r i a s à

r e e me r gê nc i a da s p r óp r i a s ma s s as , a pon t a nd o pa r a o s u r g i me n t o

d e u m n o v o p e r í o d o h i s t ó r ic o , a q u e c h a m a m o s d e p e r í o d o

de mogr á f i c o ou popu l a r ( M . S a n t os, Espaço e sociedade, 197 9) .

Cu l tu r a d e massas , cu ltura pop ular

U m e xe mpl o é a c u l t u r a . U m e s que m a g r os s e ir o , a pa r t i r

de uma c lass i f icação a rbi t r á r ia , most ra r ia , em toda par te , a pre

s e nç a e a i n f l uê nc i a de uma c u l t u r a de ma s s a s bus c a ndo

homo ge ne i z a r e i mpor - s e s ob r e a c u l t u r a popu l a r ; ma s t a m bé m ,

e para le lam ente , as r eações des ta cul tura popu la r . U m pr im eiro

mo v i m e n t o é r e s u l t a do do e mp e nh o ve r t ic a l un i f ic a do r , ho m o-

ge ne i z a dor , c onduz i do po r um me r c a do c e go , i nd i f e r e n t e à s

heranças e às r ea l idades a tua is dos lugares e das soc iedades . S em

dúv i da , o me r c a do va i i mpondo , c om ma i o r ou me nor f o r ç a ,

a qu i e a l i, e l e me n t os m a i s ou me n os ma c i ç os da c u l t u r a de m a s sa , indispensáv e l , com o e la é, ao r e ino do m ercad o, e a expans ão

paralela das formas de globalização econômica, f inanceira, téc

nica e cul tura l . Essa conquis ta , mais ou menos e f icaz segundo

os lugares e as soc iedades , jam ais é comple ta , pois enc ontr a a

 

1 4 4 M I L T O N S A N T O S

r es is tênc ia da cul tura preexis tente . )Const i tuem-se , ass im, for

P O R U M A O U T R A G L O B A L I ZA Ç Ã O 1 4 5

me nto da pol í tica dos pobres , que se dá indep ende ntem ente e ac i

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c u l o , uma c u l t u r a popu l a r dome s t i c a da a s s oc i a ndo um f undo

genuíno a formas exót icas que inc luem novas técnicas .

Ma s há tamb ém — e fe l izmente — a poss ibi l idade , cada vez

ma i s f r e qüe n t e , de uma r e va nc he da c u l t u r a popu l a r s ob r e a

c u l t u r a de ma s s a, qua ndo , po r e xe mpl o , e l a s e d i f unde me d i a n t e o u s o dos i n s t r ume n t os que na o r i ge m s ã o p r óp r i o s da c u l

tura de massas . Nesse caso, a cul tura popula r exerce sua qua

l idade de discurso dos "de ba ixo" , pondo em re levo o cot idiano

dos pobres , das minor ias , dos exc luídos , por meio da exa l tação

da vida de todos os dias . Se aqui os ins t rumentos da cul tura de

massa são reut i l izados , o con teúd o não é , todavia , "globa l" , ne m

a inc i tação pr ime ira é o cham ado m ercado globa l , já qu e sua base

s e e nc on t r a no t e r r i t ó r i o e na c u l t u r a l oc a l e he r da da . T a i s

expressões da cul tura pop ula r são tanto mais for tes e capazes d e

d i f usã o qu a n t o r e ve la do r a s da qu i l o que pode r í a mos c ha ma r deregiona l i smos univer sa l i s tas , forma de expressão que assoc ia a

e s pon t a ne i da de p r óp r i a à i nge nu i da de popu l a r à bus c a de um

discurso univer sa l , que acaba por se r um a l imento da pol í t ica .

N o fund o, a questão da escassez aparece out ra vez com o c en

t r a l . Os "de ba ixo" não dispõem de m eios (mate r ia is e out ros) para

par t ic ipar plenamente da cul tura modern a de massas . Ma s sua cul

tura , por se r baseada no te r r i tór io , no t r aba lho e no cot idian o, ga

nh a a força necessária para deforma r, ali me sm o, o impac to da cul

tura de massas . Gente unta c r ia cul tura e , pa ra le lamente , c r ia u ma

economia terr itorializada, uma cultura terr itorializada, um discurso terr itorializado, uma política terr itorializada. Essa cultura da

viz inhança va lor iza , ao mesm o tem po, a exper iênc ia da escassez e

a exper iência da convivênc ia e da sol idar iedade . E desse m od o que ,

gerada de dent ro, essa cul tura endógena impõe-se como um a l i -

ma dos par t idos e das organizações . Ta l cul tura r ea l iza - se seg un

do níveis mais baixos de técnica, de capital e de organização, daí

suas formas típicas de criação. Isto seria, aparentemente, uma fra

queza , mas na realidade é uma força, já qu e se realiza, desse m od o,

um a integração orgânica com o te r r i tór io dos pobres e o seu con

teúdo humano^Daí a express ividade dos seus s ímbolos , manifes

tados na fala, na música e na r iqueza das formas de intercurso e

s o l i da r i e da de e n t r e a s pe ss oa s: ; E t ud o i s s o e vo l u i de m od o

inseparáve l , o que assegura a permanênc ia do movimento.

A cul tura de massas produz cer tamente s ím bolos . Mas es tes ,

di re ta ou indi re tamente ao se rviço do pod er ou d o m ercado, são, a

cada vez, f ixos. Frente ao movimento social e no objetivo de não

pa r e c e r e m e nve l he c i dos , s ã o s ubs t i t u í dos , ma s po r uma ou t r a

s imbologia tamb ém f ixa : o que vem de c ima es tá sempre mo r ren

do e po de, por antecipação, já ser visto com o cadáver desde o seu

nascimento. E essa a simbologia ideológica da cultura de massas.Já os s ímbolos "de ba ixo" , produtos da cul tura popula r , são

por t a do r e s da ve r da de da e x i st ê nc ia e r e ve la do r e s do p r óp r i o

mov i me n t o da s oc i e da de .

As c o n d i ç õ e s e mp í r i c a s d a mu ta ç ã o

É a par t i r de premissas como essas que se pode pensar uma

reemergênc ia das massas . Para i sso devem contr ibui r , a par t i r

das migrações pol í t icas ou econômicas , a ampl iação da vocaçãoa tua l para a mis tura inte rcont inenta l e int r anac iona l de povos ,

raças , r e l igiões , gostos , ass im com o a tendênc ia c resc ente à aglo

meraç ão da popu lação em a lguns lugares , essa urbanização con

cent rada já r eve lada nos úl t imos vinte anos .

 

1 4 6 M I L T O N S A N T O S

Da combinação dessas duas tendênc ias pode-se supor que o

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A ÇÃ O 1 4 7

ma i o r c ompl e x i da de , ma i s r ique z a ( a r i que z a e o mov i me n t o dos

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processo iniciado há m eio século levará a um a verdadeira colorização

do Norte, à "informalização" de parte de sua economia e de suas

relações sociais e à generalização de certo esquema dual presente

nos países subdesenvolvidos do Sul e agora ainda mais evidente.

Ta l soc iedade e ta l econom ia urba na dua l (mas não dua l i s ta )

conduz i rão a duas formas imbr icadas de acumulação, duas for

mas de divisão do t r aba lh o e duas lógicas urbanas dis t intas e as

soc iadas , tendo como base de operação um mesmo lugar . O fe

nômeno já ent revis to de uma divisão do t r aba lho por c ima e de

um a out ra por ba ixo tenderá a se r e forçar . A pr imeira pren de-s e

ao uso obediente das técnicas da r ac iona l idade hegemônica , en

quanto a segunda é fundada na redescober ta cot idiana das com

binações que per mi te m a vida e, segun do os lugares, operam em

dife rentes graus de qua l idade e de quant idade .

Da divisão do trabalho por cima cria-se uma solidariedade gerada de fora e dependente de vetores verticais e de relações prag

máticas freqüentemente longínquas. A racionalidade é mantida à

custa de no rmas férreas, exclusivas, implacáveis, radicais. Sem ob e

diência cega não há eficácia. Na divisão do trabalho por baixo, o

que se produz é um a sol idar iedade c r iada de dent ro e depend ente

de vetores horizontais cimentados no terr itório e na cultura locais.

Aqu i são as relações de proxim idade qu e avultam, este é o do mí nio

da f lexibilidade tropical com a adaptabilidade extrema dos atores,

um a adaptabilidade endógena. A cada mo vim ento nov o, há um nov o

reequilíbrio em favor da sociedade local e regulado po r ela.A divisão do t r aba lho por c ima é um campo de maior ve lo

c idade . Nela , a r igidez das normas econômicas (pr ivadas e pú

bl icas) imped e a pol í t ica . Por ba ixo há maior dina mi sm o int r ín

s e c o , ma i o r mov i m e n t o e s pon t â ne o , ma i s e nc on t r os g r a t u i t o s ,

h o m e n s l e n t o s ) , m a i s c o m b i n a ç õ e s . P r o d u z - s e u m a n o v a

cent ra l idade do soc ia l, segu ndo a fórmula suger ida por Ana Clara

Tor res Ribe i ro, o que const i tui , também, uma nova base para a

a f i rmação do re ino da pol í t ica .

A p r e ce d ê n c i a d o h o m e m e o p e r í o d o p o p u l a r

U ma ou t r a g l oba l i z a ç ã o s upõe uma muda nç a r a d i c a l da s

condições a tua is , de modo que a cent ra l idade de todas as ações

se ja loca l izada no homem. Sem dúvida , essa dese jada mudança

apenas ocor re rá no fim do processo, duran te o qua l r ea jus tam en

tos sucess ivos se imporão.

N a s p r e s e n t e s c i r c unst â nc i a s , c on f o r me j á v i mos , a c e n t r a

l idade é ocupa da pe lo dinh e i ro, em suas formas m ais agress ivas ,

um d i nhe i r o e m e s t a do pu r o s us t e n t a do po r uma i n f o r ma ç ã o

ideológica , com a qua l se encontra em s imbiose . Daí a bruta l

dis torção do sent ido da vida em todas as suas dime nsões , inc luin

do o t r aba lho e o lazer, e a lcançando a va loração ínt ima d e cada

pe s s oa e a p r óp r i a c ons t i t u i ç ã o do e s pa ç o ge ogr á fi c o _C or n a

p r e va l ê nc i a do d i nhe i r o e m e s t a do pu r o c omo mot o r p r i me i r o

e ú l t i mo da s a ç õe s, o hom e m a c aba po r s e r c ons i de r a do u m e l e

mento res idua l . Dessa forma, o te r r i tór io , o Estado-nação e a

sol idar iedade soc ia l também se tornam res idua is .

A p r i ma z i a do hom e m s upõe que e l e es t a rá c o l oca do no c e n t r o da s p r e oc upa ç õe s do mundo , c omo um da do f i l o s ó f i c o e

co mo um a inspi ração para as ações . (Dessa forma, es ta rão asie

gurados o impér io da compaixão nas r e lações inte rpess iur . <• 11

est ím ulo à solidarie dad e social,'! a ser exercida entre iudivídui

 

1 4 8 M I L T O N S A N T O S

ent re o indivíduo e a soc iedade e vice-ver sa e ent re a soc iedade

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 4 9

-baL I s s o , t oda v i a, t e m t r a z i do c omo c o ns e qüê nc i a pa r a t odos o s

pa íses uma ba ixa de qua l idade de vida para a maio r ia da pop ula

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e o E s t a do , r e duz i ndo a s f r a t u r a s s oc i a i s , i mpondo uma nova

é t ica , e , des ta r te , assentan do bases sól idas para um a nova soc ie

d a d e , um a nova e c onomi a , um novo e s pa ç o ge ogr áf i co . O p on

to de par t ida para pensar a l te rna t ivas se r ia , então, a prá t ica da

vida e a exis tênc ia de todos .

A nova pa isagem soc ia l r esul ta r ia do abandono e da supera

ção do modelo a tua l e sua subst i tuição por um out ro, capaz de

garant i r para o maior número a sa t i s fação das necess idades es

s e nc ia i s a um a v i da huma na d i gna , r e l e ga ndo a um a pos i ç ã o s e

cundár ia necess idades f abr icadas , impostas por meio da publ i

c i da de e do c ons umo c ons p í c uo . A s s i m o i n t e r e s s e s oc i a l

suplanta r ia a a tua l precedênc ia do inte resse econômico e tanto

levar ia a uma nova agenda de invest imentos como a uma nova

hie ra rquia nos gas tos públ icos , empresar ia is e pr ivados . Ta l es

que ma c onduz i r i a , pa ra l e l a me n t e , ao e s t a be l e c i me n t o de nova sre lações inte rnas a cada pa ís e a novas r e lações inte rnac iona is .

N u m mu nd o e m qu e fo s se a bo l ida a r e g ra da c ompe t i t i v i da de

com o padrão essenc ial de r e lac ion amen to, a von tade de se r po

t ê nc i a nã o s e r ia ma i s um nor t e pa r a o c om por t a m e n t o dos e s t a

d o s , e a idé ia de mercad o inte rn o se rá um a preocup ação cen t ra l .

Agora , o que es tá sendo pr ivi legiado são as r e lações po ntua is

ent re grandes a tores , mas fa l ta sent ido ao que e les f azem. As

s im, a busca de um futuro di fe rente tem de passar pe lo abando

no das lógicas infe rna is que , den t ro dessa r ac iona l idade vic iada ,

fundamentam e pres idem as a tua is prá t icas econômicas e pol í t i c a s he ge môn i c a s .

A a t ua l s ubor d i na ç ã o a o modo e c onômi c o ún i c o t e m c on

duz ido a que se dê pr ior idade às expor tações e impo r tações , um a

das formas com as qua is se mate r ia l iza o cham ado m erca do g lo-

ç ã o e a a mpl i a ç ã o do nú me r o de pobr e s e m t od os o s c o n t i ne n

t es , pois , com a globa l ização a tua l , de ixaram -se de lado pol í t icas

soc ia is que amparavam, em passado recente , os menos favore

c idos , sob o a rgumento de que os r ecursos soc ia is e os dinhe i

ros públ icos devem pr imeiramente se r ut i l izados para f ac i l i ta r a

incorporação dos pa íses na onda globa l i tá r ia . Mas, se a preocu

pação cent ra l é o hom em , ta l mo delo n ão te rá mais r azão de se r .

2 7 . A centralidade da periferia

A idéia da irreversibilidade da globalização atual é aparente

mente r e forçada cada vez que consta tamos a inte r - re lação a tua l

e n t r e c a da pa í s e o que c ha ma mos de " mundo" , a s s i m c omo a

inte rdepend ênc ia , ho je indiscut íve l , ent re a his tór ia gera l e as his

tór ias part icula res . Na v erdade , i sso tam bém tem a ver com a idé ia ,

também estabelecida, de que a história seria sempre feita a partir

dos pa íses cent ra is , i s to é , da Europa e dos Estados U nid os , aos

qua is , de m od o gera l , o presente es tado d e coisas inte ressa .

L i mi te s à c o o p e r a ç ã o

Q u a nd o , po r é m , obs e r va mos de pe r t o a s pe c tos ma i s e s t r u

turais da situação atual, verif icamos q ue o centro d o sistema bus ca

impor uma globa l ização de c ima para ba ixo aos demais pa íses ,

 

1 5 0 M I L T O N S A N T O S P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç ÃO 1 5 1

da de de i n t é rp r e t e s dos in t e r e ss e s c omu ns a os E s ta dos U n i d os ,

à Eu rop a e ao Japão . Tais rea l idades levam a duvid ar da v ont ade

e nqu a n t o n o s e u â ma go r e ina uma d i s pu t a e n t r e E ur opa , J a pã o

e Estados Unidos , que lutam para guardar e ampl ia r sua par te

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de c a da um e do c on j un t o de s s e s a to r e s he ge môn i c os d e c on s

t r u i r um ve r da de i r o un i ve r s a l i s mo e pe r mi t e pe ns a r que , na s

condições a tua is , essa dupla compet ição perdurará .

O desafio ao Sul

O s pa í s e s s ubde s e nvo l v i dos , pa r c e i r o s c a da ve z ma i s

f ragi l izados nesse jog o tão des igua l , mais cedo o u mais ta rde co m

preenderão que nessa s i tuação a cooperação lhes aumenta a de

pendênc ia . Daí a inut i l idade dos esforços de assoc iação depen

den te face aos países centrais, no qu adro d a globalização atual. Esse

mundo globa l izado produz uma rac iona l idade de te rminante , mas

que va i , pouc o a pouc o , de i xa ndo de s e r domi na n t e . É uma

rac iona l idade que comanda os grandes negóc ios cada vez mais

abrangentes e mais concent rados em pou cas mãos. Esses grandes

negóc ios são de inte resse di re to de um número cada vez menor

de pessoas e empresas . Como a maior par te da humanidade é di

r e ta ou indi re tam ente do inte resse de les , pou co a pou co essa r ea

l idade é desvendada p e las pessoas e pe los pa íses mais p obres .

H á , e m t udo i s s o , uma g r a nde c on t r a d i ç ã o . A ba ndona mos

a s t e o r i a s do s ubde s e nvo l v i me n t o , o t e r c e i r o - mund i s mo , que

eram nossa bande i ra nas décadas de 1950-60. Todavia , graças à

globa l ização, es tá r essurgindo a lgo mui to for te : a his tór ia dama i o r i a da huma n i da de c ond uz à c ons c iê nc i a da s ob r e v i vê nc ia

de s s a tercermundização ( que , de a l guma f o r ma i nc l u i , t a mbé m,

uma pa r t e da popu l a ç ã o dos pa í s e s r i c os ) ( S a mue l P i nhe i r o

G u i m a r ã e s , Quinhentos anos de periferia, 1999) .

do mercado globa l e a f i rmar a hegemonia econômica , pol í t ica e

mi l i ta r sobre as nações que lhes são mais di re tamente t r ibutá r i

as sem, todavia , abandonar a idé ia de ampl ia r sua própr ia á rea

de inf luênc ia . Então, qua lquer f r ação de mercado, não impor ta

onde es te ja , se torna fundamenta l à compet i t ividade exi tosa dasempresas . Estas põem em ação suas forças e inc i tam os gover

nos r espec t ivos a apoiá - las . O l imi te da cooperação dent ro da

T r í ade ( E s t a dos U n i dos , E u r opa , J a pã o ) é e ss a me s ma c om pe t i

ção , de mo do q ue c a da um nã o pe r c a t e r r e no f r e n te a o o u t r o .

Entre tanto , já qu e nesses pa íses a idé ia de c idadania a inda é

f o r t e , é i mpos s í ve l de s c u i da r do i n t e r e s s e da s popu l a ç õe s ou

s upr i mi r i n t e i r a me n t e d i r e it o s a dqu i r i dos me d i a n t e l u t a s s e c u

la res. O qu e perm anece com o lembrança do Estado de bem -esta r

basta para cont ra r ia r as pre tensões de comple ta autonomia das

e mpr e s a s t r a ns na c iona i s e c on t r i bu i pa r a a e me r gê nc i a , d e n t r o

de c a da na ç ã o , de nova s c on t ra d i ç õe s . Com o a s e mpr e s a s t e n

dem a exercer sua vontade de poder no plano globa l , a luta en

t r e e las se agrava , a r ras tando os pa íses nessa compe t ição. Tra ta -

se , na verdad e , de uma guer ra , protagonizada tant o pe los Estados

c omo pe l a s r e s pe c t i va s e mpr e s a s g l oba i s , da qua l pa r t i c i pa m

como parce i ros mais f r áge is os pa íses subdesenvolvidos .

Agora mesmo, a exper iênc ia dos mercados comuns regiona is

já most ra aos pa íses chamados "emergentes" que a cooperação

da t r íade , em conjunto ou separadamente , é mais r epresenta t ivado inte resse própr io das grandes potênc ias que de uma vontade

de e fe t iva colaboração. Nessa guer ra , os organismos inte rnac io

na i s c a p i t ane a dos pe l o F undo M one t á r i o , pe l o Ba nc o M und i a l ,

pe l o BI D e t c , e xe r c e m um pa pe l de t e r mi na n t e , e m s ua qua l i -

 

1 5 2 M I L T O N S A N T O S

É certo que a tomada de consciência dessa situação estrutural

de infe r ioridade não chegará ao mesm o tem po para todos os pa íses

P O R U M A OUTRA GLOBALIZAÇÃO 1 53

mundi s t a t a l c omo o p r e s i de n t e N ye r e r e , da T a nz â n i a , ha v i a

suger ido em seu l ivro O desafio ao Sul.

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subdesenvolvidos e , mu i to m enos, se rá , neles , sincrónica a v onta

de de mudança frente a esse tipo de relações. Pode-se, no entanto,

admitir que, mais cedo ou mais tarde, as condições internas a cada

país, provocadas em boa parte pelas suas relações externas, levarão

a uma revisão dos pactos que atualmente con forma m a globalização.Haverá , então, uma vontade de dis tanc iamento e poste r iormente

de desenga jamento, conforme suger ido por Samir Am in, ro mp en-

do-se , desse modo, a unidade de obediênc ia hoje predominante .

Jungid os sob o peso de um a dívida exte rna que nã o pod em pagar,

os países subdesen volvidos assistem à criação incessante de ca rên

c ias e de pobres e começam a reconhecer sua a tua l s i tuação de

ingovernab ilidade, forçados qu e estão a transferir para o setor ec o

nômico recursos que deveriam ser destinados à área social.

N a ve r da de , j á s ã o mu i t o nu me r os a s a s ma n i f e s t aç õe s de

de s c onf o r t o c om a s c ons e qüê nc i a s da nova de pe ndê nc i a e donovo i mpe r i a l i s mo ' ( Re ina l do G onç a l ve s , Globalização e desna

cionalização, 1999) . Tornam-se evidentes os l imi tes da ace i tação

de ta l s ituação. Por di fe rentes r azões e meios d iver sos , as man i

fes tações de i r r edent ism o já são c la ramente evidentes e m pa íses

co mo o I r ã , o I r aque , o Afeganis tão, mas , tam bém , a Malás ia , o

Paquis tão, sem conta r com as formas par t icula res de inc lusão

da índia e da Chi na na globa l ização a tua l , qu e nada têm de s im

p l e s obe d i ê nc i a ou c on f o r mi da de , c omo a p r opa ga nda o c i de n

ta l que r f azer c re r. Países co mo a Chi na e a índia , co m u m te rço

da popu l a ç ã o mund i a l e uma p r e s e nç a i n t e r na c i ona l c a da ve zmais a t iva , di f ic i lmente ace i ta rão, uma ou out ra , ass im como a

Rússia , joga r o pape l pass ivo de nação -merca do para os b locos

e c onomi c a me n t e he ge môn i c os . U ma r e a ç ã o e m c a de i a pode r á

e ns e j a r o r e na s c i me n t o de a l go c omo o a n t i go élan t e r c e i r o -

A l é m de s s a t e ndê nc i a ve r os s í mi l , c ons i de r e m- s e a s f o r ma s

de de s o r de m da v i da s oci a l que j á s e mu l t i p l i c a m e m nu me r o

s os pa í s e s e que t e nde m a a ume n t a r . O Br a s i l é e mbl e má t i c o

c om o e xe mpl o , nã o s e s a be ndo , po r é m, a t é qua n do s e r á pos s í

ve l ma n t e r o mo de l o e c onô mi c o g l oba l it á r io e a o me s m o t e m po aca lmar as populações c rescentemente insa t i s fe i tas .

As potênc ias cent ra is (Estados Unido s , Europa , Japão) , apesar

das divergênc ias pe la compet ição q uan to ao mercado globa l , têm

inte resses comuns que as inc i ta rão a buscar adapta r suas r egras

de c onv i vê nci a à p r e t e ns ã o de ma n t e r a he ge mo n i a . Co mo , t o

davia , a globa l ização a tua l é um per íodo de c r i se permanente , a

renovação do pape l hegemônico da Tr íade levará a maiores sa

c r i f íc ios para o r es to da comunidade das nações , incent ivando,

ass im, nes tas , a busca de ou t ras soluções .

A combinação hegem ônica de que resul tam as formas eco nômi c a s mode r na s a t i nge d i f e r e n t e me n t e o s d i ve r s os pa í s e s , a s

diver sas cul turas , as di fe rentes á reas dent ro de um mesmo pa ís .

A diver s idade soc iogeográf ica a tua l o exempl i fica . Sua rea l idade

reve la um movimento globa l izador se le t ivo, com a maior par te

da popu l a ç ã o do p l a ne t a s e ndo me nos d i r e t a me n t e a t i ng ida —

e em cer tos casos pouco a t ingida—pela globa l ização econômica

vigente . Na Ásia , na Áf r ica e mesmo na Amér ica La t ina , a vida

l oc al s e ma n i f es t a a o me s m o t e mp o c om o um a r e s pos ta e um a

reação a essa globa l ização. Não p od end o essas populaç ões maj o

r i tá r ias consumir o Ocidente globa l izado em suas formas puras( f inance ira , econ ôm ica e cul tura l ) , a s r espec tivas á reas acabam

po r se r os lugares ond e a globa l ização é r e la t ivizada ou recusada .

Uma coisa parece cer ta : as mudanças a se rem int roduz idas ,

no se nt ido de a lcançarmos u ma ou t ra globa l ização, não vi rão do

 

1 5 4 M I L T O N S A N T O S

c e n t r o do s i s t e ma , c omo e m ou t r a s fa se s de r up t u r a na m a r c ha

do capi ta l i smo. As mud anças sa i r ão dos pa íses subdesenvo lvidos .

P O R U M A O U T R A G L O B A L I ZA Ç Ã O 1 5 5

O c a s o d o p r o je to n a c i o n a l ?

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E p r e v i s í ve l que o s i s t e mi s mo s ob r e o qua l t r a ba l ha a

globa l ização a tua l e rga- se como um obstáculo e torne di f íc i l a

ma n i f e s ta ç ã o da von t a de de de s e nga j a me n t o . Ma s nã o i mpe d i r á

que cada pa ís e labore , a par t i r de ca rac ter í s ticas própr ias , m odel os

a l te rna t ivos , nem tampouco proibi rá que assoc iações de t ipo hor i z on t a l s e dê e m e n t r e pa í s e s v i z i nhos i gua l me n t e he ge mo

nizados , a t r ibuindo uma nova fe ição aos blocos r egiona is e ul

t r a pa s s a ndo a e t a pa da s r e l a ç õe s me r a me n t e c ome r c i a i s pa r a

a lcançar um es tágio mais e levado de cooperação. Então, uma

globa l ização const i tuída de ba ixo para c ima , em que a busca de

c lass i f icação ent re potênc ias de ixe de se r um a meta , pod erá per

mi t i r que preocupações de ordem soc ia l , cul tura l e mora l pos

sam preva lecer .

2 8 . A nação ativa, a nação passiva

A globa l ização a tua l e as formas bru ta is que ado tou para im

por mudanças levam à urgente necess idade de rever o que fazer

com as coisas , as idé ias e tam bém com as pa lavras. Qual qu er que

se ja o deba te , hoje , r ec lama a explic i tação c la ra e coer ente dos

seus te rmos, sem o que se pode fac i lmente ca i r no vaz io ou na

ambigüidade . E o caso do própr io deba te nac iona l , exigente de

novas def inições e vocabulá r io r enovado. Como sempre , o pa ís

de ve s e r v i s t o c om o um a s i t uaç ã o e st r u t u r a l e m mo v i m e n t o , na

qua l cada e lemen to es tá int imamen te r e lac ionado com os demais .

A gor a , po r é m , no mu nd o da g l oba li z a çã o , o r e c onh e c i m e n

to dessa es t rutura é di f íc i l , do mesmo modo que a visua l ização

de um proje to nac iona l pode tornar - se obscura . Ta lvez por i sso,

os proje tos das grandes empresas , impostos pe la t i r ania das f i

na nç a s e t r ombe t e a d os pe l a mí d i a , a c a ba m, de um j e i t o ou deou t r o , gu i a ndo a e vo l uç ã o dos pa ís e s , e m a c o r do ou n ã o c om a s

i ns t ânc i a s púb l ic a s f r e qüe n t e me n t e dóc e i s e s ubs e r v i e n t e s , de i

xando de lado o desenho de uma geopol í t ica própr ia a cada na

ção e que leve em conta suas ca rac te r ís t icas e inte resses .

Assim, as noções de des t ino nac iona l e de proje to nac iona l

c e de m f r e qü e n t e me n t e a f r e n te da c e na a p r e oc upa ç õe s m e n o

r e s , pragmát icas , imedia t i s tas , inc lus ive porque , pe las r azões já

expostas , os par t idos pol í t icos nac iona is r a ramente apresentam

pla ta formas c ondu z idas po r obje t ivos pol í t icos e soc ia is c la ros e

que e xp r i m a m v i s õe s de c on j un t o ( Ce s a r Be n j a mi n e ou t r os , Aopção brasileira, 1998) . A idé ia de histór ia , sent ido, des t ino é am es-

qu i nh a da e m nom e da ob t e nç ã o de me t a s e s t at í st i ca s , c u j a ún i

c a p r e oc upa ç ã o é o c on f o r mi s mo f r e n t e à s de t e r mi na ç õe s do

processo a tua l de globa lização. Daí a prod ução se m contrapar t id a

de desequi l íb r ios e dis torções es t rutura is , acar re tando mais f r ag

me n t a ç ã o e de s igua l da de , ta n t o ma i s g r a ves qua n t o m a i s a be r

tos e obedientes se most rem os pa íses .

Alienação da nação at iva

T om e mo s o c a s o do Br a s il . E ma i s que uma s i mp l e s m e t á

fora pensar que uma das formas de abordagem da questão se r ia

considera r , dent ro da nação, a exis tênc ia , na r ea l idade , de duas

 

1 5 6 M I L T O N S A N T O S

nações . Um a nação pass iva e uma n ação a t iva . D o fa to de se rem

as contabi l idades nac iona is globa l izadas — e globa l izantes! —L a

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 5 7

Cons c i e n t i z a ç ã o e r i que z a da na ç ã o pa s s i va

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grand e i ronia é que se passa a considera r co mo nação a t iva aque la

que obe de c e c e ga me n t e a o de s í gn i o g l oba l i t á r i o , e nqua n t o o

res to acaba po r cons t i tui r , desse po nto de vis ta , a nação passiva^

A fazer va le r ta i s postulado s , a nação a t iva se r ia a daque les qu e

a c e i t a m, p r e ga m e c onduz e m uma mode r n i z a ç ã o que dá p r e e mi nê nc i a a os a j u s t e s que i n t e r e s s a m a o d i nhe i r o , e nqua n t o a

nação pass iva se r ia formada por tudo o mais .

Serão mesmo adequadas essas expressões? Ou aqui lo a que ,

desse modo, se es tá chamando de nação a t iva se r ia , na r ea l ida

d e , a nação pass iva , enquan to a nação cham ada pass iva se r ia , de

fa to , a nação ativa?

A cham ada nação a t iva , i s to é , aque la que com parece e f icaz

mente na contabi l idade nac iona l e na contabi l idade inte rnac io

na l , t e m s e u mod e l o c ondu z i do pe l a s bu r gue s i a s i n t e r na c i ona i s

e pe las burguesias nac iona is assoc iadas . É verdade , tam bém , q ue

o seu discurso globalizado, para ter ef icácia local, necessita de

um s o t a que domé s t ic o e po r i s s o e s t imu l a um pe ns a m e n t o n a c i o

na l assoc iado produz ido por mentes ca t ivas , subvenc ionadas ou

n ã o . A nação chamad a a t iva a l imenta sua ação com a preva lênc ia

de um s is tema ideológico que def ine as idé ias de prospe r idade e

de r i que z a e , pa r a l e l a me n t e , a p r oduç ã o da c on f o r mi da de . A

"nação a t iva" aparece com o f luida , ve loz , exte rn amen te a r t icula

da , inte rnamente desar t iculadora , ent rópica . Será e la dinâmica?

Co m o essa idé ia é mu i to di fundida , cabe lembrar que ve loc idad e

nã o é d i na mi s mo . E s s e mov i me n t o nã o é p r óp r i o , ma s a t r i bu í do ,

t om a do e mp r e s t a do a um mo t o r e x t e r no ; e l e nã o é ge nu í no , n ã o

tem f ina l idade , é despro vido de te leologia . Tra ta - se de um a agi

t a ç ã o c e ga , um p r o j e t o e qu i voc a do , um d i na m i s mo d o d i a bo .

A nação cham ada pass iva é const i tuída pe la grossa maior par te

da população e da economia , aque les que apenas par t ic ipam de

mo do res idua l do mercado globa l ou cujas a t ividades co nseg uem

sobreviver à sua margem, sem, todavia , ent ra r caba lmente na

contabi l idade pú bl ica ou nas es ta t ís t icas ofic iais . O pen sam ent oque def ine e compreende os seus a tores é o do inte lec tua l pú

bl ico enga jado na defesa dos inte resses da maior ia .

A s a t i v i da de s de s s a na ç ã o pa s s i va s ã o f r e qüe n t e me n t e

marcadas pe la cont radição ent re a exigênc ia prá t ica da confor

mida de , i s to é, a necess idade de par t ic ipar di re ta ou indi r e tam en

te da r ac iona l idade dom inan te , e a insa ti s fação e in con form ism o

dos a tores diante de r esul tados sempre l imi tados . Daí o encon

t ro cot idiano de uma s i tuação de infe r ior ização, tornada perma

nen te , o que re força em seus par t ic ipantes a noção de escassez e

convoca a uma re inte rpre tação da própr ia s i tuação individua l

diante do lugar , do pa ís e do mundo.

A "nação pass iva" é es ta t i s t icamente lenta , colada às rugo

sidades do seu meio geográfico, localmente enraizada e orgânica.

E também a nação que mantém re lações de s imbiose com o en

torn o imedia to, r e lações cot idianas que c r iam, espon taneam ente

e à cont racor rente , uma cul tura própr ia , endógena , r es is tente , que

também const i tui um a l ice rce , uma base sól ida para a produção

de uma política. Essa nação passiva mora, a l i ond e vive e evolui ,

enq uan to a out ra apenas c ir cula , ut i l izando os lugares como mais

um recurso a seu se rviço, mas sem out ro compromisso.

N u m p r i me i r o m om e n t o , de s a rt i cu l a da pel a " naç ã o a t iva " ,

a "nação pass iva" não pode a lcançar um proje to co njunto . Al iás ,

o impér io dos inte resses imedia tos que se manifes tam no exer -

 

1 5 8 M I L T O N S A N T O S

c ic io pragm át ico da vida cont r ibui , sem dúvida , para ta l desar t i

c u l a ç ã o . Ma s , num s e gundo mome n t o , a t oma da de c ons c i ê n

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 5 9

2 9 . A globalização atual não é irreversível

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c ia t r az ida pe lo seu enra iza men to no me io e , sobr e tud o, pe la sua

exper iênc ia da escassez , torna poss íve l a prod ução d e um proj e

to , cuja viabi l idade prové m do fa to de que a nação chama da pa s

s iva é formada p e la maior par te da populaç ão, a lém de se r do ta

da de um dinamismo própr io, autênt ico, fundado em sua própr iaexis tênc ia . Daí , sua verac idade e r ique za .

Podem os desse mo do admit i r que aqui lo que , mediante o jogo

de espelhos da globalização, ainda se chama de nação ativa é, na

verdade , a nação pass iva , enquanto o que , pe los mesmos parâ

metro s , é considerado a nação pass iva, const i tui , já no presente ,

mas sobre tudo na ót ica do futuro, a verdade i ra nação a t iva . Sua

emergência será tanto mais viável, rápida e ef icaz se se reconhe

cem e reve lam a conf luênc ia dos mo dos d e exis tênc ia e de t r aba

lho dos r espec t ivos a tores e a profunda unidad e do seu d est ino.

Aqu i , o pape l dos inte lec tua is se rá , ta lvez , mu i to mais do que

promover um s imples combate às formas de se r da "nação a t i

va" — ta re fa imp or tan te mas insuf ic iente , nas a tua is c i r cu nstân

c ias —, devendo empenhar - se por most ra r , ana l i t icamente , den

t ro do todo nac iona l , a vida s i s têmica da nação pass iva e suas

manifes tações de r es is tênc ia a uma conquis ta indisc r iminada e

totalitár ia do espaço social pela chamada nação ativa. Tal visão

renovada da rea l idade cont radi tór ia de cada fr ação d o te r r i tór io

deve ser oferecida à ref lexão da sociedade em geral, tanto à socie

dade organizada nas assoc iações , s indica tos , igre jas , par t idos

c omo à s oc i e da de de s o r ga n i z a da , que e nc on t r a r ã o ne s s a nova

i n t e r p r e t a ç ã o os e l e me n t os ne c e s s á r i o s pa r a a pos t u l a ç ã o e o

exerc íc io de uma out ra pol í t ica , mais condizente com a busca

do inte resse soc ia l.

A globa l ização a tua l é mui to menos um produto das idé ias

a tua lmen te poss íve is e , mu i to mais , o resul tado de um a ideologia

restr itiva adrede estabelecida. Já vimos que todas as realizações

atuais, or iundas de ações hegemônicas , têm como base const ruções intelectuais fabricadas antes mesmo da fabricação das coisas

e das decisões de agir . A intelectualização da vida social, recente

mente a lcançada , vem acompanhada de uma for te ideologização.

A d i s s o l uç ã o da s i de o l og i a s

Todavia , o que agora es tamo s ass is t indo em toda par te é um a

tendênc ia à dissolução dessas ideologias , no conf ronto com a

exper iênc ia vivida dos povos e dos indivíduos . O própr io c redo

f inance iro, vis to pe las lentes do s is tema econ ôm ico a que deu

or i ge m, ou e xa mi na do i s o l a da me n t e , e m c a da pa í s , a pa r e c e

me no s ace i táve l e , a par t i r de sua contes tação, out ros e lem ento s

da i deo l og i a do pe ns a m e n t o ún i c o pe r d e m f o rç a .

A l é m da s mú l t i p l a s f o r ma s c om que , no pe r í odo h i s t ó r i c o

a tua l , o discurso da globa l ização se rve de a l ice rce às ações h ege

mô nica s dos Estados, das empresas e das instituições internacionais,

o papel da ideologia na produção das coisas e o papel ideológico

dos obje tos qu e nos rode iam contr ibuem , junto s , para agravar essa

sensação de que agora não há outro uturo senão aquele que nos virá

c o m o u m presente ampliado e não com o outra coisa. Daí a pesada o nda

de conform ismo e inação que carac ter iza nosso tempo, conta mi

nan do o s jovens e , a té mes mo , um a densa camada de intelec tua is^

 

1 6 0 M I L T O N S A N T O S

É mu i to di fund ida a idé ia segu ndo a qua l o proces so e a for

ma a tua is da globa l ização se r iam i r r evers íve is . I sso tamb ém tem

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 6 1

conjun ção d e dois tipos de va lores . D e um lado , es tão os va lores

f unda me n t a i s , e s s e nc i a i s , f unda dor e s do home m, vá l i dos c m

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a ver com a força com a qua l o f enômeno se r eve la e ins ta la em

tod os os lugares e em tod as as esfe ras da vida , levand o a pensar

que não há a l te rna t ivas para o presente es tado de coisas .

N o e n t a n t o , es s a v i s ã o r e pe ti t i va do m un do c on f unde o q ue

já foi r ea l izado co m as per spec t ivas de r ea l ização. Para exorc izare s s e r i s c o , de ve mos c ons i de r a r que o mundo é f o r ma do nã o

apenas pe lo q ue já exis te ( aqui , al i , em to da par te ) , ma s pe lo qu e

pod e e fe t ivamen te exis t i r ( aqui , a l i , em toda par te ) . O m un do

datado de hoje deve se r enxergado como o que na verdade e le

nos t r az , i s to é , um conjunto presente de poss ibi l idades r ea is ,

concre tas , todas f ac t íve is sob de te rminadas condições .

O mundo de f i n i do pe l a l i t e r a t u r a o f i c i a l do pe ns a me n t o

único é , somente , o conjunto de formas par t icula res de r ea l i

zação de apenas ce r to núm ero dessas poss ibi l idades . No enta n

t o , um mundo verdade i ro se def ini rá a par t i r da l i s ta comple ta

de poss ibi l idades presentes em cer ta da ta e que inc luem não só

o qu e já exis te sobre a face da Ter ra , com o tam bém o qu e a ind a

não exis te , mas é empir icamente f ac t íve l . Ta is poss ibi l idades ,

a inda não rea l izadas , já es tão presentes co mo ten dênc ia o u com o

promessa de r ea l ização. Por i sso, s i tuações como a que agora

def rontamos parecem def ini t ivas , mas não são verdades e te rnas .

A pertinênc ia da utopia

É somente a par t i r dessa consta tação, fundada na his tór ia

r e a l do nos s o t e m po , que s e t o r na pos s íve l r e t oma r , de ma ne i r a

concre ta , a idé ia de utopia e de proje to. Este se rá o r esul tado da

qua lquer tempo e lugar , como a l iberdade , a dignidade , a f e l ic i

da de ; de ou t r o l a do , s u r ge m os va lo r e s c on t i nge n t e s , de v i dos à

his tór ia do presente , i s to é , à his tór ia a tua l . A densidade e a

fac t ibi l idade his tór ica do proje to, hoje , dependem da manei rac o m o e m p r e e n d a m o s s u a c o m b i n a ç ã o .

Por i sso, é l íc i to dizer que o futuro são mui to s ; e r esul ta rão

de a r ranjos di fe rentes , segundo nosso grau de consc iênc ia , ent re

o re ino das poss ibi l idades e o r e ino da vontade . E ass im que

inic ia t ivas se rão a r t iculadas e obstáculos se rão superados , per

mi t indo cont ra r ia r a força das es t ruturas dominantes , se jam e las

presentes o u herda das . A ident i ficação das e tapas e os a jus tam en

t os a e mp r e e nde r du r a n t e o c a mi nh o de pe nd e r ã o da ne c e s s ár i a

c la reza do proje to.

Conf o r me j á me nc i ona mos , a l guns da dos do p r e s e n t e nosa b r e m , de s de j á , a pe r s pe c t i va de um f u t u r o d i f e r e n t e , e n t r e

out ros : a tendênc ia à mis tura genera l izada ent re povos; a voca

ção para uma urbanização concent rada ; o peso da ideologia nas

const ruções his tór icas a tua is ; o empobrec imento re la t ivo e ab

soluto das pop ulações e a perda de qua l idade de vida das c lasses

médias ; o grau de re la t iva "doc i l idade" das técnicas contempo

râneas; a "pol i t ização genera l izada" permi t ida pe lo excesso de

nor ma s (Ma r ia Laura Si lve ira , Um país, uma região. Fim de século e

modernidades na Argentina, 1999) ; e a r eal ização poss íve l do ho

me m c om a g r a nde mut a ç ã o que de s pon t a .L e m b r a m o s , t a m b é m , q u e u m d o s e l e m e n t o s , a o m e s m o

tempo ideológico e empir icamente exis tenc ia l , da presente for

ma de globa l ização é a cent ra l idade do consumo, com a qua l

mu i t o t ê m a ve r a vida de todos os dias e suas r epercussões sobre

 

1 6 2 M I L T O N S A N T O S

a produção, as formas presentes de exis tênc ia e as per spec t ivas

das pessoas . Mas as a tua is r e lações ins táve is de t r aba lho, a ex

P O R U M A O U T R A G L O B A L IZ A Ç Ã O 1 6 3

s ubde s e nvo l v i dos ( M . S a n t os , O espaço dividido, 197 8) , ma s que

a gor a t a mb é m s e ve ri f ic a no mu nd o c ha m a do d e s e nvo l v i do .

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pa ns ã o de de s e mpr e go e a ba i xa do s a l á r i o mé d i o c ons t i t ue m

um contras te em re lação à mul t ipl icação dos obje tos e se rviços ,

cuja acess ibi l idade se torna , desse modo, improváve l , ao mes

m o t e m po qu e a t é o s c ons umo s t r ad i c i ona is a c a ba m s e ndo d i f í

ce is ou impossíve is para uma parce la impor tante da população.

E c om o se o f e i t iço vi rasse cont ra o f e i t ice i ro.

E s s a r e c ri a ç ã o da ne c e s s i dade , de n t r o de um mu nd o de c o i

sas e se rviços abund antes , a t inge cada vez mais as c lasses m édias ,

cuja def inição, agora , se r enova , à med ida que , co mo ta mb ém já

vimos, passam a conhecer a exper iênc ia da escassez . Esse é um

da do r e l e va n t e par a c ompr e e n de r a mud a nç a na v i s i b il i da de da

his tór ia que se es tá process ando . De ta l mo do , às visões o fe rec i

da s pe l a p r opa ga nda os t e ns i va ou pe l a i de o l og i a c on t i da nos

obje tos e nos discursos opõ em- se as visões propic iadas pe la exis

t ê nc ia . E po r me i o de s s e c on j un t o de m ov i m e n t os , qu e s e r e c o

nhe c e u ma s a t u r a ç ã o dos s í mbo l os p r é - c ons t r u í dos e que os l i

mi tes da tole rânc ia às ideologias são ul t r apassados , o que p erm i te

a ampl iação do campo da consc iênc ia .

Nas condições a tua is , essa evolução pode parecer impossí

ve l , em vis ta de que as soluções a té agora propostas a inda são

p r i s i onei r a s da que l a v i s ã o s e gundo a qua l o ún i c o d i na mi s m o

possíve l é o da grande economia , com base nos r ec lamos do s is

tema f inance i ro. Por exemplo, os esforços para r es tabe lecer o

e mpr e go d i r i ge m- s e , s ob r e t udo , qua nd o nã o e xc l us i va me n t e , a oc i r c u i to s upe r i o r da e c onomi a . Ma s e s s e nã o é o ún i c o c a m i nho

e ou t r os r e mé d i os pode m s e r bus c a dos , s e gundo a o r i e n t a ç ã o

po l í t i c o - i de o l óg i c a dos r e s pons á ve i s , l e va ndo e m c on t a uma

divisão do tr aba lho vinda "de ba ixo" , f enô men o t ípico dos pa íses

Por out ro lado, na medida em que as técnicas cada vez mais

s e dã o c omo no r ma s e a v i da s e de s e n r o l a no i n t e r i o r de um

oceano de técnicas , acabamos por viver uma pol i t ização genera

l izada . A rapidez dos processos conduz a uma rapidez nas mu

da nç a s e, po r c ons e gu i n t e , a p r o f unda a ne c e s s i da de de p r o du ção de novos entes organizadores . I sso se dá nos diver sos níve is

da vida soc ia l . Na da de re levante é f e i to sem norm as. Nes te f im

do século XX, tud o é pol í t ica . E , graças às técnicas ut i l izadas n o

pe r í odo c on t e mpor â ne o e a o pa pe l c e n t r a l i z a do r dos a ge n t e s

he ge môn i c os , que s ã o p l a ne t á r i o s , t o r na - s e ub í qua a p r e s e nç a

de processos dis torc idos e exigentes de r eordenamento. Por i sso

a pol í t ica aparece como um dado indispensáve l e onipresente ,

abrangendo pra t icamente a tota l idade das ações .

A s s i s t imos , a s s im , a o i mpé r i o da s no r ma s , ma s t a mbé m a o

conf l i to ent re e las , inc luindo o pape l cada vez mais dominantedas normas pr ivadas na produção da esfe ra públ ica . Não é r a ro

que as r egras es tabe lec idas pe las empresas a fe tem mais que as

regras c r iadas pe lo Estado. Tudo isso a t inge e desnor te ia os in

d i v í duos , p r oduz i n do u ma a t mos f e r a de i n s egur a nç a e a t é me s

mo de me do , ma s l e va ndo os que nã o s uc umbe m i n t e i r a me n t e

ao seu impér io à busca da consc iênc ia qu anto ao des t ino d o Pla

ne t a e , l ogo , do H ome m.

Outros usos poss íve is para as técn icas atuais

Os s is temas técnicos de que se va lem os a tua is a tores hege

mônicos es tão sendo ut i l izados para r eduz i r o escopo da vida

 

1 6 4 M I L T O N S A N T O S

hum a na s ob r e o p l a ne t a . N o e n t a n t o , j a ma i s houv e na h i s t ó r i a

s is temas tão p ropíc ios a f ac i l ita r a vida e a propo rc ion ar a f e l ic i

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O los

contemporâneas são mais f áce is de inventa r , imi ta r ou reprodu

z i r que os modos de fazer que as precederam.

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da de dos hom e ns . A ma t e r ia l i da de que o mun do da g l oba li z a çã o

está r ec r iando permi te um uso radica lmente di fe rente daque le

qu e e ra o da base mate r ia l da indust r ia lização e do im per ia l i sm o.

A técnica das máqu inas exigia invest imentos mac iços , segu in

do-se a massividade e a concent ração dos capi ta is e do própr io

sistema técn ico. Da í a inflexibilidade f ísica e mo ral das op eraçõe s,

levando a um uso l imi tado , di r ec ionado, da inte l igênc ia e da c r ia

t ividade . Já o com putad or , s ímb olo das técnicas da informaçã o,

rec lama capita is f ixos re la t ivamente peq uen os , enqu anto se u uso

é mais exigente de inte l igênc ia . O invest imento necessár io pode

ser f r agmentado e torna- se poss íve l sua adaptação aos mais di

ver sos meio s . Pode-se a té f a la r da emergê nc ia de u m ar tesana to

de novo t i po , s e r v ido po r ve l oz e s i n s t r um e n t os d e p r oduç ã o e

de dis t r ibuição.D i r - s e- á , e n t ã o , que o c ompu t a dor r e duz — t e nde n c i a l me n t e

— o e fe i to da pre tensa le i segundo a qua l a inovação técnica

c ond uz pa r a l el a me n t e a um a c onc e n t r a çã o e c onômi c a . O s no

vos ins t rumentos , pe la sua própr ia na tureza , abrem poss ibi l ida

des para sua disseminação no corpo soc ia l , supera ndo as c l ivagens

soc ieconômicas preexis tentes .

Sob cond ições pol í t icas f avoráve is , a mate r ia l ida de s i mb ol i

zada pe lo comp utad or é capaz não só de assegurar a l iberação da

invent ividade como torná- la e fe t iva . A desnecess idade , nas so

c i e da des c ompl e xa s e s oc i oe c onom i c a me n t e de s i gua i s, de a d o t a r un i ve r s a l me n t e c ompu t a dor e s de ú l t i ma ge r a ç ã o a f a s t a r á ,

também, o r i sco de que dis torções e desequi l íbr ios se jam agra

vados . E a idé ia de dis tânc ia cul tura l , subjacente à teor ia e à pr á

t ica do imper ia l i smo, a t inge , também, seu l imi te . As técnicas

As famí lias de técnicas emerg entes c om o f im d o século XX

— c om bi n a nd o i n f o rmá t i c a e e l e t rôn i c a , s ob r e t ud o— of e r e c e m

a pos s i b i l i da de de s upe r a ç ã o do i mpe r a t i vo da t e c no l og i a

he ge môn i c a e pa r a l el a me n t e a dm i t e m a p r o l if e r aç ã o de novos

ar ranjos , co m a re toma da da c r ia t ividade . I sso, a l iás, já es tá sedando nas á reas da soc iedade em que a divisão do t r aba lho se

p r od uz de ba i xo pa r a c i ma . A qu i , a p r oduç ã o do n ovo e o u s o e

a d if u s ã o do novo de i xa m de s e r monopo l i z a dos po r u m c a p it a l

c a da ve z ma i s c onc e n t r a do pa r a pe r t e nc e r a o dom í n i o d o ma i o r

núm e r o , pos s i b i l i t ando a f ina l a e me r gê nc i a de u m ve r da de i r o

mundo da inte l igênc ia . Desse modo, a técnica pode vol ta r a se r

o r e s u l t a do do e nc on t r o do e nge nho huma no c om um pe da ç o

de te rminado da na tureza — cada vez mais modif icada —, per

mi t indo que essa r e lação se ja fundada nas vi r tua l idades do en

tor no geográf ico e soc ia l, de m od o a assegurar a r es tauração do

home m e m s ua e s s ê nc i a .

Geografia e ace leraçã o da h is tór ia

A própr ia geograf ia parece cont r ibui r para que a his tór ia se

ace le re . Na c idade — sobre tudo na grande c idade —, os e fe i tos

de v i z inha nç a pa r e c e m i mp or um a pos s i b il i da de ma i o r de i de n

t i ficação das s i tuações , graças , tam bém , à melh or ia da inform a

ção disponíve l e ao aprofundamento das poss ibi l idades de co

mu nicaçã o. Dessa manei ra , torna- s e poss íve l a ident i f icação, na

vida mate r ia l como na ordem inte lec tua l , do desamparo a que

as popu lações são re legadas , levando, para le lamente , a um maio r

 

1 6 6 M I L T O N S A N T O S

r econhec imento da condição de escassez e a novas poss ibi l ida

des de ampl iação da consc iênc ia .

P O R U M A O U T R A G L O B A L I ZA Ç Ã O 1 6 7

em todo s os pa íses , a mis tura d e povos , r aças , cul tura s , r e l igiões ,

gostos etc . A aglomeração das pessoas em espaços r eduz idos , com

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A par t i r desses e fe i tos de viz inhança , o indivíduo re for t i f i -

c a do pode , num s e gundo mome n t o , u l t r a pa s s a r s ua bus c a pe l o

c ons um o e e n t r e ga r - s e à bus c a da c i dada n i a. A p r i me i r a s upõe

um a v i s ão l i mi t a da e un i d i r e c i ona da , e nqua n t o a s e gunda i nc l u i

a e laboração de visões abrangentes e s is têmicas . No pr im eirocaso, o que é per segu ido é a r econst ruçã o das condições mate r ia is

e jur ídicas que permi tem for ta lecer o bem-esta r individua l (ou

familiar) sem, todavia, mo strar preocupaçã o co m o fortalecimento

da individua l idade , enquanto a busca da c idadania aponta rá para

a r e forma das prá t icas e das ins t i tuições pol í t icas .

Frente a essa nova rea l idade , as aglomerações po pulac iona is

se rão va lor izadas com o o lugar da densidade h um ana e , po r i sso,

o lugar de uma coabi tação dinâmica . Será também a í , v is to pe la

me sm a ót ica , que se observarão a r enascença e o peso da cu l tura

popula r . Po r out ro lado, a precar iedade e a pobreza , i s to é , a im

possibi l idade , pela ca rênc ia de r ecursos , de par tic ipar p lena me n

te das ofe r tas mate r ia is da modernidade , poderão, igua lmente ,

i n s p i r a r s o l uç õe s que c onduz a m a o de s e j a do e ho j e pos s í ve l

renasc imento da técnica , i s to é , o uso consc iente e imagina t ivo,

em cada lugar, de todo t ipo de ofe rta tecnológica e de toda mo da

l idade de t r aba lho. Para i sso cont r ibui rá o f a to his tór ico conc re to

que é , a o c on t r á r i o do pe r í odo h i s t ó r i c o a n t e r i o r , o g r a u de

"doc i l idade" das técnicas contemporân eas , que se apresentam mais

propícias à liberação do esforço, ao exercício da inventividade e à

f loração e mul t ipl icação das deman das soc ia is e ind ividua is .

Se a r ea lização da his tór ia , a par t i r dos ve to res "d e c ima" , é

a inda dom inan te , a r ea l ização de uma ou t ra his tór ia a par t i r d os

ve tores "de ba ixo" é tornada poss íve l . E para i sso cont r ibui rão,

o f e nôm e no d e u r ba n iz a ç ã o c onc e n t r a da , t í p i c o do ú l t i m o qu a r

te l do século XX, e as própr ias m utaçõe s nas r e lações de t r aba lh o,

j u n t o a o de s e mpr e go c r e s c e n t e e à de p r e ss ã o dos s a l á ri o s , mos

t r a m a s pe c t os que pod e r ã o s e mos t r a r pos i t ivos e m f u t u r o p r ó

x i m o , qua nd o a s me t a mor f os e s do t r a ba l ho i n f o rma l s e r ã o v i v i das tam bém com o expansão do t r aba lho l ivre , asseguran do a seus

por t a do r e s nova s pos s ib i l i dade s de i n t er p r e t a çã o do m un do , d o

lugar e da r espec t iva posição de cada um, no mundo e no lugar .

A s c o n d i ç õ e s a t u a i s p e r m i t e m i g u a l m e n t e a n t e v e r u m a

reconve rsão da mídia sob a pressão das s i tuações loca is (pro du

ção , c ons um o, c u l t u r a ) . A mí d i a t r a ba lha c om o qu e e l a p r óp r i a

t r a ns f o r ma e m ob j e t o de me r c a do , i s t o é, a s pe s s oa s . Co m o e m

ne nh um l uga r a s c omu n i da de s s ã o f o r ma da s po r pe s soa s ho mo

gêneas , a mídia deve levar i sso em conta . Nes se caso, de ixará de

r e p r e s e n t a r o s e ns o c omum i mpos t o pe l o pe ns a me n t o ún i c o .D e s d e que os p r oc e s s os e c onôm i c os , s oci a is e po l í t ic os p r o du

z idos de ba ixo para c ima possam desenvolver - se e f icazmente ,

um a i n f o r ma ç ã o ve r a z pode r á da r - s e de n t r o da ma i o r i a da po

pu l a ç ã o e a o s er v i ç o de um a c omun i c a ç ã o i ma g i nos a e e mo c i o

na da , a t r i bu i ndo- s e , a s si m , um pa pe l d i a me t r a l me n t e op os t o a o

que lhe é hoje confer ido no s is tema da mídia .

U m n o v o mu n d o p o s s ív e l

A par t i r dessas metamor foses , pode-se pensar na produção

l oc a l de um e n t e nd i me n t o p r og r e s s i vo do mundo e do l uga r ,

co m a produç ão indígena de imag ens , discur sos , fi losofias , ju nt o

 

1 6 8 M I L T O N S A N T O S

à e l a bo r a ç ã o de um novo ethos e de novas ideologias e novas

crenças pol í t icas , amparadas na r essu r re ição da idé ia e da prá t ica

da sol idar iedade .

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A Ç Ã O 1 6 9

dessa apropr iação. A descober ta in dividua l é , já , u m consideráve l

passo à f r ente , a inda que possa parecer ao seu por tador um ca

mi nho pe nos o , à me d i da da s r e s i s t ê nc i a s c i r c unda n t e s a e s s e

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O m un do de ho j e t a mb é m a u t o r i z a um a ou t r a pe r c e pç ã o da

his tór ia por m e i o da contemplação da univer sa l idade empír ica

const i tuída com a emergênc ia das novas técnicas plane ta r izadas

e as possibilidades a bertas a seu us o. A dialética entre essa univer salidade empírica e as particularidades encorajará a superação das

práxis inver t idas , a té agora coma ndadas pe la ideologia dom ina n

te , e a possibi l idade de ul t r apassar o r e ino da necess idade , abr ind o

lugar para a utopia e para a esperança . Nas c ondiçõ es his tór icas

do presente , essa nova manei ra de enxergar a globa l ização per

mi t i r á dis t ingui r , na tota l idade , aqui lo que á é dado e exis te co mo

um fa to consumado, e aqui lo que é poss íve l , mas a inda não rea

l i z a do , v i s t o s um e ou t r o de f o r ma un i t á r i a . L e m br e m o- no s da

l ição de A. Schmid t (The concept of nature in Marx, 1 9 7 1 ) q u a n d o

diz ia que "a r ea l idade é , a lém disso, tudo aqui lo em que a inda

nã o nos t o r na mo s , ou s ej a, t udo a qu i l o que a nós me s mo s n os

p r o j e t a mos c om o s e re s huma no s , po r i n t e r mé d i o dos mi t os , da s

escolhas , das dec isões e das lutas" . \

A c r ise po r que passa hoje o s i s tema, em d i fe rentes pa íses e

c on t i ne n t e s , põe à mos t r a nã o a pe na s a pe rve r s i da de , ma s t a m

bém a f r aqueza da respec t iva const rução. I sso, conforme vimos,

j á e s t á l e va ndo a o de s c r é d i t o dos d i s c u r sos dom i na n t e s , me s m o

que out ro discurso, de c r í t ica e de proposição, a inda não ha ja

s i do e la bo r a do de mo do s i s t ê mi co .

O processo de tomada de consc iênc ia —já o vimos — não é

homogê ne o , ne m s e gundo os l uga r e s , ne m s e gundo a s c l a s s e s

soc ia is ou s i tuações prof iss iona is , nem quanto aos indivíduos .

A ve loc idade com q ue cada pessoa se apropr ia da verdade cont id a

na his tór ia é di fe rente , tanto quanto a profundidade e coerênc ia

novo modo de pe ns a r . O pa s s o s e gu i n t e é a ob t e nç ã o de uma

visão s is têmica , i s to é , a poss ibi l idade de en xergar as s i tuações e

as causas a tuantes como conjuntos e de loca l izá - los como um

t od o , m os t r a ndo s ua i n t e r de pe ndê nc i a . A pa rt i r da í , a d i s c us s ã osi lenc iosa consigo mes mo e o deba te mais ou me nos púb l ico co m

os de ma i s ga nha m uma nova c l a r e z a e de ns i da de , pe r mi t i ndo

enxergar as r e lações de causa e efe i to como u m a cor rente con t í

nua , e m que c a da s i t ua ç ã o s e i nc l u i numa r e de d i nâ mi c a ,

es t ruturada , à esca la do mundo e à esca la dos lugares .

E a par t i r dessa visão s is têmica que se encontram, inte rpe

ne t r a m e c omp l e t a m a s noç õe s de mun do e de l uga r , pe r mi t i n

do entender como cada lugar , mas também cada coisa , cada pes

s oa , c a da r e la ç ã o de pe nde m do mu nd o .

Ta is r ac ioc ínios autor izam uma visão c r í t ica da his tór ia na

qua l vivemos, o que inc lui uma aprec iação f i losóf ica da nossa

própr ia s i tuação f rente à comunidade , à nação, ao plane ta , jun

t a me n t e c om u ma nova a p r e c ia ç ã o de nos s o p r óp r i o pa pe l c om o

pe s s oa . É de s s e modo que , a t é me s mo a par t i r da noç ã o do que

é s e r um c ons umi dor , pode r e mos a l c a nç a r a i dé i a de home m

integra l e de c idadão. Essa r eva lor ização radica l do indivíduo

contr ib ui rá para a r enovação qua l i ta t iva da espéc ie hum ana , se r

vin do de a l ice rce a um a nova c ivi lização.

A reconst rução ver t ica l do mundo, ta l como a a tua l globa

l ização perver sa está r ea l izando, pre ten de im por a todos os pa íses

normas comuns de exis tênc ia e , se poss íve l , ao mesmo tempo e

rapidame nte . Mas i s to não é def ini t ivo. A evolução que es tamos

ent revendo te rá sua ace le ração em momentos di fe rentes e em

países di fe rentes , e se rá permi t ida pe lo a madu rec imen to d a c r ise .

 

1 70 M I L T O N S A N T O S

Esse m un do no vo anunc iado não se rá uma const rução de c ima

para ba ixo, com o a que es tamos hoje ass is t indo e deplo rando, mas

uma edif icação cuja trajetória vai se dar de baixo para cima.

P O R U M A O U T R A G L O B A L I Z A ÇÃ O 1 71

f az s ua e n t ra da na c e na h i s t ó r ic a c om o um b l oc o . É um a e n t r a

da revoluc ionár ia , graças à inte rdependênc ia das economias , dos

gove r nos , dos l uga r e s . O mov i me n t o do mundo r e ve l a uma s ó

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A s c ond i ç õe s a c ima e nume r a da s de ve r ã o pe r mi t i r a i mp l a n

t a ç ã o de um novo mode l o e c onômi c o , s oc i a l e po l í t i c o que , a

par t i r de uma nova dis t r ibuição dos bens e se rviços , conduza à

rea l ização de uma vida cole t iva sol idár ia e , passando da esca lado lugar à esca la do plane ta , assegure uma re forma do mundo,

por inte rmédio de out ra mane i ra de r ea l iza r a globa l ização.

3 0 . A história apenas começa

Ao con trá r io do qu e tanto se disse , a his tór ia não acabou ; e la

apenas começa . Antes o que havia e ra uma his tór ia de lugares ,r egiões , pa íses . As his tór ias podiam ser , no máximo, cont inen

tais, em função dos impér ios que se es tabe leceram a uma esca la

mais ampla . O que a té então se chamava de his tór ia univer sa l

e ra a visão pre tensiosa de um pa ís ou cont inente sobre os ou

t r o s , considerados bárbaros ou i r r e levantes . Chegava-se a dizer

de tal ou tal povo que ele era sem história. . .

A h u ma n i d a d e c o m o u m b l o c o r e v o l u c i o n á r i o

O ecúm eno e ra formado d e fr ações separadas ou escassamen

t e r e la c i onada s do p l a net a . S ome n t e a go r a a hum a n i da de pode

i de n ti f ic a r -s e c om o um t od o e r e c onhe c e r s ua un i da d e , qu a nd o

pulsação, a inda que as condições se jam diver sas segundo cont i

nentes , pa íses , lugares , va lor izados pe la sua forma de par t ic ipa

ção na produção dessa nova his tór ia .

V i ve mos e m um m un do c ompl e xo , ma r c a do na o r de m m a t e r i a l pe l a mu l t i p l i c a ç ã o i nc e s s a n t e do núme r o de ob j e t o s e na

ordem imate r ia l pe la inf inidade de re lações que aos obje tos nos

une m. N os ú l t i mos c i nqüe n t a a nos c r i a r a m- s e ma i s c o i s a s do

que nos c i nqüe n t a mi l p r e c e de n t e s . N os s o mundo é c ompl e xo

e confuso ao mesmo tempo, graças à força com a qua l a ideolo

gia pene t ra obje tos e ações . Por i sso mes mo , a e ra da globa l ização,

mais do que qua lquer out ra antes de la , é exigente de uma inte r

pre tação s is têmica cuidadosa , de modo a permi t i r que cada coi

sa , na tura l ou a r t i f ic ia l , se ja r edef inida em re lação com o todo

plane tá r io . Essa tota l idade-mundo se manifes ta pe la unidade dastécnicas e das ações .

A grande sor te dos que dese jam pensar a nossa época é a

exis tênc ia de uma técnica globa l izada , di r e ta ou indi re tamente

presente em todos os lugares , e de uma pol í t ica plane ta r iamente

exerc ida , que un e e nor te ia os obje tos técnicos . Jun tas , e las au

tor iza m um a le i tura , ao mesm o tem po gera l e espec í fica , f ilosó

fica e prática, de cada ponto da Terra.

Nes se emaranh ado de técnicas dent ro do qua l es tamos vive n

d o , o ho m em p ouc o a pou co descobre suas novas forças . Já qu e o

me i o a m bi e n t e é ca da ve z me nos na t u r a l , o u s o do e n t o r n o i me

dia to pod e se r men os a lea tór io . As coisas va lem pe la sua const i tui

ção , i s to é , pe lo qu e pod em oferecer. O s ges tos va lem pe la adequa

ção às coisas a que se dir igem. Ampliam-se e diversif icam-se as

 

1 72 M I L T O N S A N T O S

escolhas , desde que se possam combinar adequadamente técnica

e política. Aumentam a previsibilidade e a ef icácia das ações.

U m da do i mp or t a n t e de nos s a é poc a é a c o i nc i dê nc i a e n t r e

P O R U M A O U T R A G L O B A L I ZA Ç Ã O

crítica da existência. Assim, o cotidiano de cada um se enriquece,

pela experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas realizações

atuais com o pelas perspectivas de futuro. As dialéticas da vida no s

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a produ ção d essa his tór ia univer sa l e a re la t iva l iberação do h o

me m e m r e l a ç ã o à na t u r e z a . A de nomi na ç ã o de e r a da i n t e l i

gênc ia poder ia te r fundamento nes te f a to concre to: os mate r ia is

hoje r esponsáve is pe las r ea lizações prep ond erante s são cada vezmais obje tos mate r ia is manufa turados e não mais maté r ias-pr i

ma s na t u r a i s . P e ns a mos ous a da me n t e a s s o l uç õe s ma i s f a n

t a s i o s a s e e m s e gu i da bus c a mos os i n s t r ume n t os a de qua dos à

sua real ização. Na e ra da ecologia t r iunfante , é o hom em qu em

fabr ica a na tureza , ou lhe a t r ibui va lor e sent ido, por meio de

suas ações já r ea l izadas , em cu rso ou m eram ente im aginadas . Po r

i s so , tudo o que exis te const i tui uma per spec t iva de va lor . To

dos os lugares f azem par te da his tór ia . As pre ten sões e a cobiça

povoam e va lor izam te r r i tór ios deser tos .

A n o v a c o n s c i ê n c ia d e s e r mu n d o

Graças aos progressos fulminantes da informação, o mundo

f ica mais per to de cada um, não impor ta onde es te ja . O out ro,

i s to é , o r es to da humanidade , parece es ta r próximo. Cr iam-se ,

para todos , a ce rteza e , logo depois , a consc iênc ia de se r m un do e

de es ta r no m un do, me sm o se a inda não o a lcançamos em pleni tu

de mate r ia l ou inte lec tua l. O própr io m un do se ins ta la nos lugares ,

sobre tudo as grandes c idades , pe la presença maciça de um a hu m a

nidade mis turada , vinda de todos os quadrantes e t r azendo consigo

inte rpre tações var iadas e múl t iplas , que ao mes mo t em po se ch o

c a m e c o l a bo r a m na p r oduç ã o r e nova da do e n t e nd i me n t o e da

lugares, agora mais enriquecidas, são paralelam ente o caldo de cu l

tura necessário à proposição e ao exercício de uma nova política.

F unda - s e , de f a to , u m no vo mu nd o . P a r a s e r mos a i nda ma i s

preci sos, o qu e, af inal, se cr ia é o mundo como rea l idade his tór icauni tá r ia , a inda que e le se ja ext remamente diver s i f icado. E le é

da tado com uma da ta substant ivamente única , graças aos t r aços

comuns de sua const i tuição técnica e à exis tênc ia de um único

mo tor para as ações hegem ônicas , r epresentado pe lo lucro à esca

la globa l . É i sso, a l iás , qu e , ju nt o à inform ação genera l izada , as

segurará a cada lugar a com unh ão univer sa l com to dos os out ros .

O us a m os , de s se modo , pe ns a r que a h i s tó r i a do ho me m s obr e

a Terra dispõe afinal das condições objetivas, materiais e intelec

tua is , pa ra superar o ende usam ento d o dinhe i ro e dos obje tos téc

nicos e enf rentar o co meço de um a nova t r a je tór ia . Aqui , não set ra ta de es tabe lecer da tas , nem de f ixar momentos da folhinha ,

marcos n um ca lendár io. Co m o o re lógjo, a folhinha e o ca lendár io

são convencionais, repetitivos e historicam ente vazios. O qu e conta

me sm o é o temp o das poss ibi l idades e fe t ivamente c r iadas , o qu e ,

à sua época , cada geração encontra disponíve l , i sso a que cham a

m o s tempo empírico, cujas mu danças são marcadas pe la i r rupção de

novos objetos, de novas ações e relações e de novas idéias.

A g r a n d e mu ta ç ã o c o n te mp o r â n e a

D i a n t e do que é o mundo a t ua l , c omo d i s pon i b i l i da de e

como poss ibi l idade , ac redi tamos que as condições mate r ia is já

 

1 7 4 M I L T O N S A N T O S

estão dadas para que se imp onh a a dese jada grand e mutaçã o, mas

seu dest ino va i depender de como disponibi l idades e poss ibi l i

dades se rão aprove i tadas pe la pol í t ica . Na sua forma mater ia l ,

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un i c a me n t e c o r pó r e a , a s t é c n i c a s t a l ve z s e j a m i r r e ve r s í ve i s ,

por que ad erem ao te r r i tór io e ao cot idiano. De u m p ont o de vis ta

exis tenc ia l , e las podem obte r um out ro uso e uma out ra s igni f i

cação. A globa l ização a tua l nã o é i r r ever s íve l .A gor a que e s t a mos de s c obr i ndo o s e n t i do de nos s a p r e s e n

ça no plane ta , pode-se dizer que uma his tór ia univer sa l verda

d e i r a m e n t e h u m a n a e s t á , f i n a l m e n t e , c o m e ç a n d o . A m e s m a

ma t e r i a l i da de , a t ua l me n t e u t i l i z a da pa r a c ons t r u i r um mundo

confuso e perver so, pode vi r a se r uma condição da const rução

de um mundo ma i s huma no . Ba s t a que s e c ompl e t e m a s dua s

grandes mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a

mutação f i losóf ica da espéc ie humana .

A grande mutação tecnológica é dada com a emergênc ia das

técnicas da informação, as qua is — ao cont rá r io das técnicas dasmáquinas — são const i tuc iona lmente divis íve is , f lexíve is e dó

cei s , adaptáve is a todos os meios e cul turas , a inda que seu uso

perver so a tua l se ja subordinado aos inte resses dos grandes capi

tais. Mas, quando sua ut i l ização for democra t izada , essas técni

cas doces es ta rão ao se rviço do homem.

Mui to f a lamos hoje nos progressos e nas promessas da en

ge nha r i a ge né t ic a , que c onduz i r i a m a um a mut a ç ã o do ho me m

biológico, a lgo que a inda é do domínio da his tór ia da c iênc ia e

da técnica . Pouco, no entanto , se f ala das condições , tamb ém hoje

presentes , que podem assegurar uma mutação f i losóf ica do homem, capaz de a t r ibui r um novo sent ido à exis tênc ia de cada

pessoa e , também, do plane ta .

C namofe

E s t e l iv r o f o i c o m p o s t o n a t i p o l o g i a A l d i n e e mc o r p o 1 1 / 1 5 e i m p r e s s o e m p a p e l C h a m o i s F i n e

8 0 g / m 2 n o S i s t e m a C a m e r o n d a D i v i s ã o G r áf i c a d aD i s t r i b u i d o r a R e c o r d .