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1 Mimesis, Diegesis, Pathos: a escrita da história entre Antigos e Modernos Jorge Steimback Barbosa Junior 1 Resumo: O presente trabalho propõe um reexame do conceito aristotélico de mimese, diferenciando-o do platônico, bem como um reexame das relações entre a mimese e o trágico. Visa-se à tessitura de uma reflexão que aproxime tais noções de uma filosofia nietzschiana da história em sua relação específica com a apropriação da historiografia antiga. Palavras-chave: Mimese. História. Nietzsche Abstract: This article intends to reexamine the Aristotelian concept of mimesis by differentiating it from the Platonic one; it also intends to analyze some of the relations between mimesis and tragedy. We aim to approximate such notions to Nietzsche’s philosophy of history in its distinctive appropriation of ancient historiography. Keywords: Mimesis. History. Nietzsche As distinções aristotélicas entre poesia e história, celebrizadas pelos comentadores pósteros da Poética, tiveram longa sobrevida e papel determinante na estruturação da história enquanto campo acadêmico no século XIX. De fato seus ecos são ainda hoje audíveis, embora em sentido oposto, pela postulação de uma aproximação entre ambas, que se erige como projeto intelectual dos teóricos do linguisticturn. Ao longo do presente trabalho, retomaremos a Poética, buscando dotá-la de uma interpretação diferente da que lhe foi dada pelos compiladores tardo-antigos e renascentistas; buscaremos aproximar as noções de pathos e mimesisda escrita histórica aos escritos de Heródoto e Tucídides e, por fim, lançaremos algumas proposições sobre o pathos na escrita da história no século XIX. Aristóteles define o objeto de sua Poética como o estudo “da arte poética em si, de suas espécies; do efeito que cada uma destas espécies tem; de como se devem estruturar os enredos [mýthoi] (...) e o número de suas partes” 2 . Ainda na mesma passagem afirma que a epopéia e a tragédia, a dança e a comédia, a poesia e a música são imitações. Parece-nos ser esta uma passagem crucial porquanto a tradição de exegese filosófica nos parece fazer convergirem duas noções de imitação, ou mímesis, não de todo compatíveis entre si. 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Bolsista do CNPq. E-mail:jorge- [email protected]. 2 Poética, 1447a.

Mimesis, Diegesis, Pathos...diferenciando-o do platônico, bem como um reexame das relações entre a mimese e o trágico. Visa-se à tessitura de uma reflexão que aproxime tais noções

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Mimesis, Diegesis, Pathos:

a escrita da história entre Antigos e Modernos

Jorge Steimback Barbosa Junior1

Resumo: O presente trabalho propõe um reexame do conceito aristotélico de mimese,

diferenciando-o do platônico, bem como um reexame das relações entre a mimese e o trágico.

Visa-se à tessitura de uma reflexão que aproxime tais noções de uma filosofia nietzschiana da

história em sua relação específica com a apropriação da historiografia antiga.

Palavras-chave: Mimese. História. Nietzsche

Abstract: This article intends to reexamine the Aristotelian concept of mimesis by

differentiating it from the Platonic one; it also intends to analyze some of the relations

between mimesis and tragedy. We aim to approximate such notions to Nietzsche’s

philosophy of history in its distinctive appropriation of ancient historiography.

Keywords: Mimesis. History. Nietzsche

As distinções aristotélicas entre poesia e história, celebrizadas pelos comentadores

pósteros da Poética, tiveram longa sobrevida e papel determinante na estruturação da história

enquanto campo acadêmico no século XIX. De fato seus ecos são ainda hoje audíveis, embora

em sentido oposto, pela postulação de uma aproximação entre ambas, que se erige como

projeto intelectual dos teóricos do linguisticturn. Ao longo do presente trabalho, retomaremos

a Poética, buscando dotá-la de uma interpretação diferente da que lhe foi dada pelos

compiladores tardo-antigos e renascentistas; buscaremos aproximar as noções de pathos e

mimesisda escrita histórica aos escritos de Heródoto e Tucídides e, por fim, lançaremos

algumas proposições sobre o pathos na escrita da história no século XIX.

Aristóteles define o objeto de sua Poética como o estudo “da arte poética em si, de

suas espécies; do efeito que cada uma destas espécies tem; de como se devem estruturar os

enredos [mýthoi] (...) e o número de suas partes”2. Ainda na mesma passagem afirma que a

epopéia e a tragédia, a dança e a comédia, a poesia e a música são imitações. Parece-nos ser

esta uma passagem crucial porquanto a tradição de exegese filosófica nos parece fazer

convergirem duas noções de imitação, ou mímesis, não de todo compatíveis entre si.

1Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Bolsista do CNPq. E-mail:[email protected]. 2Poética, 1447a.

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A concepção aristotélica de mímesis, comoapontado alhures por Luiz Costa Lima

pressupõe uma concepção de physis, latamente traduzível como “realidade”,

que continha duas faces, a natura naturata e a natura naturans, ergon e energeia, o atual e o potencial. A mimesisnão dizia respeito senão ao possível, ao capaz de ser criado, à energeia; seus limites não eram outros senão os do possível de ser concebido3.

A uma concepção aristotélica que comporta em si a possibilidade do devir e o ser-em-

potência, opõe-se a teoria platônico-idealista do simulacro. Gilles Deleuze argumentou que

em diálogos platônicos tais quais O Sofista, a teoria platônica da mímesis consiste não tanto

na seleção do justo postulante, mas no ímpeto de encurralar o falso pretendente.

Basicamente, ao modelo, metafísico e situado no Mundo das Ideias, Platão opõe duas

possibilidades: a primeira como cópia-ícone, dotada de semelhança, “possuidora em segundo

lugar”, enquanto a segunda é o simulacro-fantasma, degeneração da cópia; cópia de cópia,

dissimilitude que implica perversão, desvio essencial4. No entender de Deleuze, o esforço

contido no domínio platônico consiste em fazer triunfar o ícone sobre o simulacro, de recalcar

o último e mantê-lo sempre atado à profundeza. Nas palavras do autor:

A grande dualidade manifesta, a Idéia e a imagem, não está aí senão com este objetivo: assegurar a distinção latente entre as duas espécies de imagens, dar um critério concreto. Pois, se as cópias ou ícones são boas imagens e bem fundadas, é porque são dotadas de semelhança. Mas a semelhança não deve ser entendida como uma relação exterior: ela vai menos de uma coisa a outra do que de uma coisa a uma Idéia, uma vez que é a Idéia que compreende as relações e proporções constitutivas da essência interna. Interior e espiritual, a semelhança é a medida de uma pretensão: a copia não parece verdadeiramente a alguma coisa senão na medida em que parece à Idéia da coisa. O pretendente não é conforme ao objeto senão na medida em que se modela (interiormente e espiritualmente) sobre a Idéia. Ele não merece a qualidade (por exemplo, a qualidade de justo) senão na medida em que se funda sobre a essência (a justiça). Em suma, é a identidade superior da Idéia que funda a boa pretensão das cópias e funda-a sobre uma semelhança interna ou derivada. Consideremos agora a outra espécie de imagens, os simulacros: aquilo a que pretendem, o objeto, a qualidade etc., pretendem-no por baixo do pano, graças a uma agressão, de uma insinuação, de uma subversão,“contra o pai” e sem passar pela Idéia. Pretensão não fundada, que recobre uma dessemelhança assim como um desequilíbrio interno5.

O ponto de viragem considerado por Costa Lima no primeiro volume da Trilogia do

Controle, O Controle do Imaginário, consiste, a nosso ver, não apenas na submissão da teoria

aristotélica da mímesis aos crivos da retórica da Renascença (embora tenham sido formulado à

3 LIMA, Luiz Costa: O controle do imaginário: Razão e imaginação nos tempos modernos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 32. 4 DELEUZE, Gilles: Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000, pp. 259-271. 5 Idem, Ibidem, pp. 262-263.

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época imperial e à da Segunda Sofística), especialmente a noção de decorum, apontadas por

dito autor, mas também (e diríamos até antes e essencialmente) na leitura de Aristóteles sob

lentes platônicas, ou, antes, platonizantes – o que, de certa forma, faz sentido se pensarmos o

desenvolvimento da tradição ocidental na Antiguidade Tardia e na primeira Idade Média,

onde as especulações do platonismo tardio se amalgamaram com as narrativas neo-

testamentárias, salvando-se do limbo em que Aristóteles esteve, para o pensamento ocidental,

até S. Tomás.

Voltando à Poética, um pouco mais adiante, também em 1447a, diz-se que a

mímesisnão se refere apenas aos caracteres, mas também às emoções e ações. Neste ponto, o

texto grego consta πάθη καὶ πράξεις (páthekaìpráxeis). Na tradução inglesa comentada, W. H.

Fyfe, o tradutor anota que a expressão supradita “cobre todo o campo da vida, o que os

homens fazem e o que experimentam. Como πάθη também pode significar “emoções”, este

sentido pode estar presente aqui; mas como termo técnico neste tratado, páthos refere-se a

uma calamidade ou incidente, algo que ocorre com o herói”6. Deve-se notar, portanto, a

polissemia da palavra páthos.

Em 1448b, Aristóteles afirma que o homem é o mais capaz de imitar entre os animais,

tanto porque a imitação lhe seja congênita quanto porque lhe ensine e compraza. Afirma ainda

as coisas que observamos ao natural e nos fazem pena, agradam-nos quando as vemos representadas em imagens muito perfeitas, como por exemplo, as reproduções dos mais repugnantes animais e cadáveres. A razão disto é que aprender é não só agradável para os filósofos mas é-o também igualmente para os outros homens, embora estes participem dessa aprendizagem em menor escala (Poética, 1448b).

Na relação traçada entre páthos e mathesis, “sofrimento” ou “experiência” e

“aprendizagem” parece haver uma reminiscência de Ésquilo(Agamemnon, 176), quando o

autor trágico afirma πάθει μάθος, “o páthos ensina”.

Acima citamos o texto de Aristóteles para definir o objeto da Poética como a

mímesispáthekaìpráxeis, retomemos este ponto e definamos, agora, o objetivo da mímesis ou,

antes, de um tipo de mímesis, a trágica. Segundo o Estagirita, a catarse7 dos sentimentos de

terror e piedade “é o próprio fim desta imitação” (Poética, 1452b). Caso nos decidamos por

entender a catarse como um movimento que se faz em direção ao páthos,a uma transformação

propriamente poiética, no sentido de criação, transformação, de transposição de energeiaem

6 “πάθη καὶ πράξεις cover the whole field of life, what men do (πράξεις) and what men experience (πάθη). Since πάθη means also "emotions" and that sense may be present here, but as a technical term in this treatise πάθος is a calamity or tragic incident, something that happens to the hero”. 7 O termo tem origens médicas e supõe-se referir ao expurgo dos humores (aqui, como fluidos corpóreos) maléficos.

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érgon,do páthos, poderemos considerar, pelo que viemos argumentando até aqui, que o

Filósofo não a diferenciaria da máthesis.

Deter-me-ei, por fim, na passagem a que aludi de início e que suscitou o presente

trabalho. Em 1451b, Aristóteles afirma ser a Poesia mais universal e mais elevada que a

História, porquanto a primeira expressa o universal e a segunda limita-se a expressar

particulares. A primeira conta não o que aconteceu, mas o que poderia acontecer, segundo a

verossimilhança e a necessidade e não diferem pelo fato de que um (o poeta) escreve em

versos, enquanto outro escreve em prosa. No dizer do autor, fossem transpostos os escritos de

Heródoto em verso, estes não perderiam seu caráter de história. E aqui estamos já preparados

a entender amplamente a crítica de Aristóteles, a história despe-se do caráter de poiésis

enquanto se nega a abraçar o páthos, comprometendo, com isto, a extensão da máthesis que

gera. Aristóteles cita textualmente o nome de Heródoto. Parece-nos adequado conduzir uma

reflexão sobre a historiografia grega a partir deste momento.

Arnaldo Momigliano, no justamente conhecido Raízes Clássicas da Historiografia

Moderna, esforça-se no sentido de demonstrar como a historiografia grega, por meio da

crítica racional advinda do “iluminismo milésio”, expurga a escrita da história de seu

elemento mítico. Segundo este erudito, desde Hecateu, ao qual se atribui a famosa frase “as

histórias dos gregos são muitas e ridículas”8, a escrita da história é marcada pela atitude

crítica em relação à tradição e, neste sentido, apesar dos deslocamentos semânticos sofridos

pelo termo “história” ao longo dos vinte e cinco séculos que nos separam da Atenas clássica,

desde o ponto de vista da submissão dos relatos, “fontes”, a um aparato crítico, a tradição

historiográfica ocidental seria herdeira da Hélade.

A crítica racional é citada por Carlo Ginzburg em um dos capítulos de seu Relações de

Força, referente justamente a Tucídides e Aristóteles, onde o autor aduz o lócus em certo

sentido diferenciado da história em relação às demais constitutivas da retórica. Assim,

Ginzburg faz recuar no tempo um estatuto especial, diferenciado, segundo o qual a história

seria, sim, retórica, mas não qualquer retórica. Retomando o tratado Da Retórica, Ginzburg

defende a proximidade entre o relato histórico e a oratória judicial no sentido de que ambos

são dependentes das tekmeria, espécies de provas silogísticas. De fato, o núcleo do tekmerion

é o entimema, silogismo abreviado, porquanto um dos termos é suprimido por fazer parte do

senso-comum da comunidade de significação nos horizontes da qual a oração-prova é

8apud MOMIGLIANO, Arnaldo: As raízes clássicas da historiografia moderna. Santa Catarina: EDUSC 2004, p. 57.

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proferida9. Cita-se como exemplo a passagem 1357a, da Retórica, segundo a qual, dizer que

Dorieu ganhou a coroa de louros é suficiente para que se possa inferir [desde que se seja

grego ou se tenha prévio conhecimento do êthos grego] que ele foi vencedor nos jogos

olímpicos.

Mais adiante no texto, Ginzburg sugere a hipótese ou possibilidade de que Aristóteles

tenha introduzido em seu sistema de pensamento a distinção entre tekmerion (usada aqui no

sentido de efeitos e causas que se sucedem natural e necessariamente) e semeion (inídicio,

sinal, sintoma) a propósito de dar precisão ao que, na obra de Tucídides, é usado como

sinônimo10. Suas conclusões da lógica das tekmeria em história são:

a) A história humana pode ser reconstruída com base em sinais, rastros, indícios, semeia; b) Tais reconstruções implicam uma série de conexões naturais e necessárias (tekmeria), que têm caráter de certeza, até que se prove o contrário [...]; c) Fora dessas conexões naturais, os historiadores se movem no âmbito do verossímil (eikos) [rever a discussão sobre ícone acima], às vezes do extremamente verossímil, nunca do certo –mesmo que, nos seus textos, a diferença entre “extremamente verossímil” e “certo” tenda a se desvanecer11.

Ginzburg crê, com isto, salvar em certa medida a pretensão de geração de

conhecimento racional e “tão objetivo quanto possível” da história contra o ataque de céticos,

relativistas, desconstrucionistas e tantos outros, personificados na figura de Nietzsche e em

seu ataque à possibilidade de aquisição da verdade, constante da introdução da obra. Sem nos

alinharmos com o segundo grupo, ao menos de início,diríamos que a defesa é inconclusivapor

duas razões principais: a primeira consiste no “çavasansdire” culturalmente condicionado que

é pressuposto pelo núcleo das tekmeria, à guisa de exemplo, no século XIX a superioridade

técnico científica da Europa Ocidental seria facilmente relacionável à culminância de um

processo evolutivo de cariz darwinista, “tekmericamente” aduzido e nisto não escaparia ao

“mito” (aqui não no sentido grego) que White interpreta como cerne da escrita

histórica12.Além do mais, parece-nos continuar válida a crítica de White, segundo a qual a

mirada retrospectiva do historiador permite-lhe rearranjar “os fatos”, dotando a explicação de

caráter operativamente (retoricamente) explicativo segundo escolha privilegiar e realçar certas

conexões possíveis em detrimento de outras.

9 GINZBURG, Carlo: Relações de Força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras 2002, p. 50. 10Idem, Ibidem, p. 56. 11 Idem, Ibidem, p. 57. 12 WHITE, Hayden: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp 1994, pp. 71-76.

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A segunda ordem de crítica que nos parece possível diz respeito ao semeion tal qual é

entendido por Ginzburg. A lógica da história como dedução de fatos a partir de indícios é

tradicional à escrita do próprio Ginzburg e parece estar aqui transposta, projetada. Em artigo

recentemente traduzido ao português, DominickLaCapraafirma, a propósito de outro livro do

autor (O Queijo e os Vermes), no qual se verifica o emplotment(formação de enredo) ao estilo

história policial que “[pela confiança em uma forma literária particular: a história de

detetives] Sua narrativa é estranhamente anedótica e geométrica, projetivamente empática e

redutivamente analítica, extremamente fragmentada [...] e demasiado unificada em tema e

tese”13.

Adicionalmente, Ginzburg traça uma convergência não de todo apropriada entre os

campos a que os antigos denominavam “história” e “arqueologia” (distinção, devemos

admitir, de ordem formal, mas não necessariamente levada a cabo na ordem da prática da

escrita). A última referir-se-ia ao estudo do passado longínquo e, neste sentido, apoiar-se-ia

em semeia, sobretudo as leis epigrafadas, como os muros de Górtina, as listas de sacerdotes e

magistrados, as listas de vencedores das olimpíadas, dada a ausência de testemunhas vivas. Já

a história, cuja etimologia conecta-se ao testemunho, especialmente ao testemunho ocular, em

certo sentido é menos afim a uma pesquisa “indicial” do passado. Lembremos que, no

entanto, as tekmerianão poderiam dizer respeito a uma enunciação da constelação de “fontes”

analisadas e dos passos do método dedutivo adotados por um autor antigo, como a disposição

da escrita de Ginzburg parece indicar. Trata-se de uma razão simples: apenas o iluminismo

possibilita uma noção tal que o conhecimento possa ser validado por uma crítica

metodológica intersubjetiva e tal não era, obviamente, o caso grego. Lembremos que no afã

de expurgação do mito que caracteriza os movimentos intelectuais do V século AEC,

Momigliano nos lembra que os historiadores querem-se fazer dignos de serem cridos e,

justamente por isto, omitem suas fontes. A credulidade do leitor no relato que narra lhe é

depositada não por causa de um caminho metodológico, mas apesar dele, pela autoridade

pessoal do autor (talvez valha a pena lembrar a já bem conhecida etimologia que associa

auctor e auctoritas). Igualmente os pensadores da Antiguidade tenderam a considerar a

história como parte da retórica.

Caber-nos-ia perguntar: será que apenas o aspecto dedutivo-racional, da ordem de uma

“prova jurídica” qualificaria Tucídides a afirmar que não escreveu “[sua obra] para ganhar os

13 LACAPRA, Dominick. O queijo e os vermes: o cosmo de um historiador do século XX. In: Topoi, Rio de Janeiro, v. 16, n. 30, p. 293-312, jan./jun. 2015.

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aplausos do momento, mas como κτῆμά τεἐς αἰεὶ [um monumento para a eternidade]”14?

Cremos que não. Quando Aristóteles declara que a Poesia é mais filosófica [e, portanto, tem

mais a ensinar] que a história, exatamente a que tipo de história se refere o Estagirita?

Cumpre-nos lembrar que a época clássica nunca conheceu um modelo unificado de

história. É razoável supor que o “racionalismo milésio” não tenha atingido a todas as camadas

populacionais e geográficas ao mesmo tempo e, de certo, Heródoto e Tucídides foram a

exceção (o que, em parte, se comprova por sua sobrevivência em relação a outros, que ao

menos indica que eram preferidos pelos copistas alexandrinos).

De fato, o paradigma da história nos séculos V e VI AEC consiste nos logógrafos, que

recolhiam, a partir dos relatos escutados dos nativos das terras por onde passavam, sobre a

genealogia das famílias principais, as narrativas sobre os costumes locais e a fundação de

cidades.Via de regra, os logógrafos conservavam a forma métrica de escrita (reminiscente da

poesia). Heródoto se refere a seus predecessores como logógrafos e o mesmo o faz Tucídides

(incluindo o próprio Heródoto entre estes).

Tucídides parece-nos um caso emblemático, um daqueles caracteres flexíveis (e, a

acreditar em White, todos são) que a tradição molda à sua própria imagem, de forma a olhar

para o passado encontrando apenas um Si Mesmo no tempo (como ícone? Como simulacro?)

e que também obedece a um emplotment, “cômico”, já que a peripécia do ter-perder-

reencontrar é um dos temas mais caros à comédia.

Assim, o fundador da história política, para quem, na verdade, toda história é história

política, o mesmo da escrita clara, do silogismo judicial, da prova, é aquele que forja os

discursos que diz retratar e o que dota o relato não político, mas patético (no sentido grego) de

tão obstinada relevância. Simultaneamente sua herança poderia ser reclamada por Croce ao

dizer o passado só importa na medida em que o fazemos (poieticamente, aliás) a chave para o

entendimento do presente e por Luciano de Samósata (queo preferia grandemente a

Heródoto), cujo De Historia Conscribenda conformou grande parte da tratadística

renascentista sobre a forma de escrita da história e cuja exortação a narrar o passado “como

realmente foi” encontrou seu paroxismo não em Ranke, mas em Langlois e Seignobos.

Aristóteles assim diferencia a tragédia e a comédia: “também a tragédia se distingue

da comédia neste aspecto: esta quer representar os homens inferiores, aquela superiores aos da

realidade”15. De fato, ao narrar, por exemplo, o discurso fúnebre de Péricles, não como

realmente aconteceu, mas adequando-o ao que poderia (ou deveria?) ter sido, seu domínio é

14 Tucídides, I.22.4. 15 Poética, 1448a.

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retirado da ordem da ordem do particular e estendido ao Geral.Péricles não mais é Péricles, e

sim a figura (o caracter, no dizer de Aristóteles) da tragédia16. Torna-se o Estadista

Intemporal versando sobre virtudes de uma Cidade, ela mesma, intemporal; seu apelo é não

apenas aos atenienses, mas aos homens de todos os tempos17.

Plutarco comenta o seguinte a respeito de uma passagem em Tucídides:

o melhor historiador é aquele que através de emoções e das personagens compõe a sua história como uma pintura. Tucídides esforça-se sempre na sua escrita por alcançar esta vividez [ἐνάργειαν], ávido por fazer do leitor um espectador e por gerar nos leitores as mesmas sensações de espanto e de consternação sentidas pelos que assistiram aos acontecimentos. […] há uma marca de pictórica vividez [γραφικῆς ἐναργείας] na composição e na modelação dos acontecimentos. (Plutarco, Glor. Athen. 347 a-c, grifos nossos)18.

Tucídides, valendo-se da técnica retórica da ekphrasis, ou “descrição vívida”,

mimetiza o passado, que, neste sentido assemelha-se em certo grau à opsis(visualidade)que é

obtida pelo espectador no teatro e intercala episódios nos entrechos do enredo de modo a

compor em um modelo de tragédia, que na concepção aristotélica trata da queda dos grandes

homens e que, se organizada no modo complexo de enredo, deve conter peripécias e reveses

porque

Uma vez que a mímesis representa não só uma ação completa, mas também fatos que inspiram temor e compaixão, estes sentimentos são muito mais facilmente suscitados quando os fatos se processam contra nossa expectativa, por uma relação de causalidade entre si. Desta forma, a imitação será mais surpreendente do que se surgissem do acaso e da sorte pois os fatos acidentais causam mais admiração quando parece que acontecem de propósito19.

Pois trata-se exatamente da queda dos grandes, de um revés ocasionado por regras

internas de causalidade o extrato que virá a seguir. Trata-se da narração do início formal da

guerra do Peloponeso, quando do sítio de Plateias (aliada de Atenas) por Tebas (alinhada à

16Com isto não queremos negar que, em determinados pontos de sua obra, Heródoto não tenha narrado entrechos carregados de páthos, mas apenas sublinhar que a este tipo de narração é pontual e incidental a seu relato, neste sentido mais próximo ao dos logógrafos que o precederam. A escrita de Heródoto é mais concernidaa um inventário de semelhanças e diferenças quase etnográfico, como observou, em certo ponto Momigliano. (MOMIGLIANO, 2004, pp. 78-83). 17Tucídides, II.35.1-3. 18 Para a tradução de Plutarco e, doravante, para os extratos do texto de Tucídides, usaremos, salvo quando indicado o contrário, as traduções contidas no artigo de Martinho Tomé Martins Soares sobre o uso da técnica ecfrástica em Tucídides, disponível em http://dehesa.unex.es:8080/xmlui/handle/10662/1051?locale-attribute=pt, acessado em 18/08/2015, às 15h. Concordamos, em linhas gerais, com o argumento do artigo, embora o ponto de descolamento entre o presente trabalho e o supracitado artigo consista em que o segundo não aponta, para além da ecfrase, a organização trágica do enredo. 19Poética 1452a.

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Esparta). Os tebanos, ao tomarem a cidade, não procederam à chacina da população, mas

ofereceram uma rendição diplomática. Os habitantes de Plateias aproveitaram a trégua para

sondar o número de soldados inimigos e a disposição de suas fileiras, atacando-os, à noite,

quando era menos esperado. O relato consiste na perseguição e morte dos tebanos por

plateienses.

Na perseguição pela cidade, alguns subiram as muralhas e precipitaram-se daí abaixo, a maioria desses morreu; outros encontraram uma porta que não estavaguardada e, tendo-lhes uma mulher dado um machado, eles puderam, sem serem vistos, cortar a tranca e sair, não muitos porque foram logo descobertos;entretanto, outros eram mortos aqui e ali ao longo da cidade. No entanto, ogrupo mais numeroso e que se mantinha mais unido desembocou numa grandecasa que estava junto da muralha e cujas portas se encontravam abertas,julgando que essas portas eram as da cidade e que davam acesso direto aoexterior. Vendo-os lá trancados, os Plateiensesinterrogaram-se se deviam lançar fogo a casa ou recorrer a outro meio20.

O episódio traz-nos à mente o relato da punição dos mélios pelos atenienses, dotado de

grande relevo na narrativa do historiador ateniense. O episódio da execução dos homens da

ilha de Milos, aliás, é citado por Ginzburg a propósito da formulação de uma crítica à leitura

nietzschiana do entrecho, que, sob a óptica do italiano tende a confundir o direito e o êxito de

fato21. A narração é precedida por um longo debate entre mélios e atenienses, que ocupa nada

menos que 28 capítulos da obra (Tucídides, V, 85-113).

Não nos deteremos, como Ginzburg, na Realpolitikateniense, que surge em Tucídides

V, 89.1 e que consiste nos preâmbulos da discussão dos termos de rendição de Milos, onde os

enviados atenienses exortam os mélios a cortarem de seus discursos toda a argumentação

retórica (!) e a terem em mente “os reais sentimentos de ambos [mélios e atenienses]; porque

sabeis tão bem quanto nós, que enquanto o mundo aí estiver, a questão existe apenas entre os

iguais em poder, enquanto os mais fortes fazem o que podem e os mais fracos fazem o que

devem” (Tucídides V, 89, 1). Lançados os termos da Realpolitik, os mélios tentam demonstrar

sua utilidade para Atenas enquanto possibilidade de defesa e seus embaixadores encerram o

discurso argumentando “e vós estais tão interessados nisso quanto todos, pois vossa queda

seria o sinal da mais pesada vingança e um exemplo para a meditação do mundo inteiro”

(Tucídides, V, 90, 1)22. Eis os termos e o objetivo da “prova”, tekmeria, que pretende obter a

obra de Tucídides: a derrota de Atenas pelos Lacedemônios como pesada vingança e exemplo

20 Tucídides, II, 4.4. 21 GINZBURG, Op. Cit., pp. 15-22. 22 As traduções para as passagens neste parágrafo são nossa tradução do original inglês de Dent e Dutton (1910), disponível em http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0200%3Abook%3D5%3Achapter%3D90%3Asection%3D1.

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para a reflexão das gerações futuras, faz-nos, mais uma vez, lembrar o πάθει μάθος de

Ésquilo.

As possibilidades de escolha são inúmeras, mas, a modo de síntese, transcreveremos

uma passagem de Tucídides sobre a stasis, a guerra civil, em Corcira, que contém

praticamente todos os elementos que viemos elencando até aqui:

A maior parte dos suplicantes, todos os que não se tinham deixado convencer, ao ver o sucedido, mataram-se uns aos outros, ali, no templo; alguns enforcaram-se em arvores e outros suicidaram-se como puderam. Durante os sete dias que permaneceu Eurimedonte, desde a sua chegada com os sessenta navios, os Corcireus assassinaram quem lhes parecia ser seus inimigos, sob a acusação de quererem derrubar a democracia, mas alguns morreram vitimas de ódios pessoais e outros, que tinham contraído empréstimos de dinheiro, morreram as mãos daqueles a quem deviam; houve todo o gênero de mortes e, tal como costuma acontecer em tais circunstancias, não se recuou diante de nada, pior ainda. O pai matava o seu filho e os suplicantes eram arrancados dos santuários ou eram mortos ai mesmo, alguns, inclusivamente, morreram emparedados no santuário de Dioniso. Tal foi, com efeito, o grau de crueldade que atingiu a guerra civil, e ainda o pareceu mais porque esta foi a primeira […]. Abateram-se muitos males sobre as cidades durante a guerra civil, males que acontecem e sempre acontecerão enquanto a natureza dos homens for esta, piores ou mais brandos e cambiando de forma consoante as mudanças que ocorram em cada circunstancia. Na verdade, em tempos de paz e de prosperidade as cidades e os indivíduos têm melhores pensamentos por não terem de enfrentar necessidades forçadas; a guerra, que suprime o bem-estar quotidiano, torna-se um professor violento e acomoda as circunstancias os sentimentos da maioria. (Tucídides III.81.3- 82.2, grifos nossos.)23

Trata-se de fato conhecido a admiração de Nietzsche por Tucídides, o alemão

considera-o, inclusive, por conta de seu realismo, o antídoto ao platonismo, como se pode

constatar na passagem abaixo transcrita. Entretanto, argumentaremos que o a roupagem

trágica da narrativa tucidideana é consonante com a concepção nietzschiana da tragédia, por

sua vez, diferente da concepção clássica expressa no tratado de Aristóteles. Em O Crepúsculo

dos Ídolos, Nietzsche afirma a respeito de Tucídides:

Minha recração, minha predileção, minha cura, contra toda espécie de platonismo sempre foi Tucídides. Tucídides e, talvez, o Príncipe, de Maquiavel são os que mais proximamente se relacionam ao meu débito à absoluta determinação que eles demonstram em não se deixarem enganar e verem a razão na realidade–não na “racionalidade” e menos ainda na “moralidade”. Não existe cura mais radical que Tucídides às lamentáveis idealizações cor-de-rosa dos gregos... seus escritos devem ser estudados cuidadosamente linha por linha e seus pensamentos implícitos devem ser lidos tão distintivamente quanto o que ele realmente diz. Existem poucos pensadores tão ricos em pensamentos não-ditos...

Tucídides é a grande síntese, a manifestação final daquele positivismo severo e forte que jaz nos instintos dos antigos helenos. Ao fim e ao cabo, a coragem diante da verdade distingue naturezas tais quais as de Tucídides e Platão: Platão é um covarde face à verdade –consequentemente ele se refugia no ideal: Tucídides é mestre de si mesmo –

23Voltamos aqui à tradução de Soares.

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consequentemente é apto a se tornar mestre da vida. (NIETZSCHE, 1990, 118, itálicos dos autor, negritos nossos)24.

Ora, mas se Tucídides é o antídoto contra a idealização cor-de-rosa, Nietzsche tem

uma chave explicativa para o caráter grego dos períodos arcaico e clássico e esta, consiste no

elemento “trágico”, aqui entendido enquanto sobrevivência de elementos heterogêneos no

interior da cultura, que para o filósofo tomam os nomes de apolíneo e dionisíaco. O fundo

trágico da cultura remonta aos estudos de Jacob Burkhardt, em especial seu

GriechischeKulturgeschichte (1898-1902), a intuiçãoBurckhardtiana de um processo trágico

de dilaceração interna e da irrupção de um “tempo impuro”, enquanto sintoma, como motor

da história foram apropriadas, a propósito, não somente por Nietzsche, mas também por

AbyWarburg, como bem demonstrou Didi-Huberman.

A propósito de sua apropriação da concepção burckhardtiana da cultura enquanto

processo trágico, Warburg assevera:

Quando as maneiras contraditórias de conceber a vida [Lebensanschauung] lançam os membros isolados da sociedade em enfrentamentos mortais e inspiram neles uma paixão unilateral, elas causam, irresistivelmente, o declínio [Verfall] da sociedade; no entanto, ao mesmo tempo, são forças [Kräfte] que favorecem o desabrochar da mais elevada civilização (...)25.

Por um lado, a noção vitalista, que tem como suporte a comparação implícita entre os

processos históricos e os organismos biológicos, sujeitos, eles também, ao ápice e à

decadência, a Verfall de que fala Warburg, e o pressuposto de um tempo cíclico que a sustenta

encontram-se também na apropriação que Nietzsche faz de Burckhardt ao considerar a “era

trágica” como momento de culminância do espírito grego e filosofia socrático-platônico-cristã

como sua decadência. Especificamente quanto à “cultura como tragédia” (enquanto produto

de suas dilacerações internas) e das idealizações românticas do caráter grego, Nietzsche

comenta:

24"My recreation, my predilection, my cure, after all Platonism, has always been Thucydides. Thucydides and perhaps Machiavelli's Principe are most closely related to me owing to the absolute determination which they show of refusing to deceive themselves and of seeing reason in reality – not in "rationality," and still less in "morality." There is no more radical cure than Thucydides for the lamentably rose-colouredidealisation of the Greeks... His writings must be carefully studied line by line, and his unuttered thoughts must be read as distinctly as what he actually says. There are few thinkers so rich in unuttered thoughts... Thucydides is the great summing up, the final manifestation of that strong, severe positivism which lay in the instincts of the ancient Hellene. After all, it is courage in the face of reality that distinguishes such natures as Thucydides from Plato: Plato is a coward in the face of reality – consequently he takes refuge in the ideal: Thucydides is a master of himself – consequently he is able to master life". Tradução de R.J. Hollingdale. 25apud DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo AbyWarburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 66.

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Farejar entre os gregos “belas almas” apaixonadas pelo “meio-termo” e outras perfeições, ou, por exemplo, admirar neles a serenidade na grandeza, a alma voltada para o ideal, a nobre simplicidade –eis aí uma “simplicidade” (que, afinal, não passa de uma niaiserieallemande [“parvoíce alemã, em francês no texto de Nietzsche”]) da qual fui poupado pelo psicólogo que havia em mim. Vi o mais forte instinto deles, a vontade de poder, vi-os tremer diante da violência desenfreada desse impulso. Vi todas as suas instituições nascerem das medidas de salvaguarda que eles adotaram para se proteger mutuamente de seus explosivos internos (...) Fui o primeiro que, para melhor compreender o instinto helênico arcaico, ainda rico e até transbordante, levou a sério esse fenômeno extraordinário que traz o nome de Dioniso: ele só se explica por um excesso de forças26.

O elemento dionisíaco que Nietzsche enxerga no cerne do “espírito grego” é o mesmo

que, em seu estado de equilíbrio dinâmico (cuja metáfora mais apropriada não poderíamos

crer ser outra senão a dança) mantido em relação ao outro elemento, o apolíneo, o filósofo

considera ter gerado, nesta fusão instável, dançante e internamente dilacerada, a tragédia

ática.

Antes, porém, cabe-nos um esclarecimento sobre os termos: Nietzsche define o

elemento apolíneo comparando-o metaforicamente ao sonho na medida em que supõe uma

potência de configuração (assim como o sonho configura as imagens esteticamente, sem que

haja nenhuma imagem que lhe seja indiferente ou inútil). Retomando o exemplo de

Schopenhauer contido em O Mundo Como Vontade e Representação a respeito do homem

que, em meio ao mar bravio, poderia continuar tranquilamente sentado em seu barco,

confiante no principiumindividuationis [princípio de individuação], Nietzsche assemelha

Apolo à imagem divina deste principium “a partir de cujos gestos e olhares nos falam todo o

prazer e toda a sabedoria da ‘aparência’, juntamente com a sua beleza”27.

O dionisíaco, em contrapartida, é definido em analogia à embriaguez e à ruptura do

principiumindividuationis, ao “terror” e ao “delicioso êxtase” (pois a dualidade é

propriamente constitutiva do dionisíaco) atingido pelo homem quando “transviado pelas

formas cognitivas da aparência fenomenal, na medida em que o princípio da razão, em

algumas de suas configurações, parece sofrer uma exceção28. Pelo que viemos discutindo

acima, parece-nos aceitável uma leitura que aproxima (embora não reduza) o apolíneo ao

lógos e o dionisíaco, ao páthos.

A tragédia clássica é definida em termos de

A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa

26 (apud DIDI-HUBERMAN, Op. Cit., p. 130). 27 NIETZSCHE, Friedrich O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 30. 28Idem, Ibidem, p. 30.

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cognição de que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens e objetivos, entre a arte do figurador plástico [Bildner], a apolínea, e a arte não-figurada [unbildlichen] da música, a de Dionísio: ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum "arte" lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da "vontade"17 helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática29.

Por fim, algumas palavras sobre o sentido dionisíaco da história como “exuberância

trágica da vida”. Na segunda das Considerações Intempestivas, Nietzsche lança encarniçado

ataque contra a modelo romântico-positivista de história, do estudo do “fato pelo fato” e o

“passado em si”. De acordo com o filósofo, a história “mumifica” e destrói o sopro de vida de

um homem, grupo ou povo, quando perde sua utilidade para o presente:

(...) quando o sentido histórico já não conserva, porém mumifica a vida: então a árvore definha progressivamente, ao contrário do processo natural, da copa para as raízes –e estas, por sua vez, em geral acabam morrendo. A história tradicionalista degenera no instante em que deixa de ser animada e atiçada pelo sopro vivo do presente [das frischeLeben der Gegenwart] (...). Com efeito, só entende de conservara história [sie verstehtebenallein, Lebenzubewahren], não de gerá-la; é por isso que sempre subestima o que está em gestação, pois para isso não possui nenhum instinto divinatório30.

Ora, mas se a pura memória, se a hipertrofia da função de memória, causa a morte e a

degenerescência, seria a história de todo inútil? Nietzsche nunca chegou a esta conclusão

radical e, de fato, mais bem pode inferir-se o contrário de seus escritos. A história e seu par

antitético, a antimemória, são ambas necessárias em algum grau para o desenvolvimento da

dança que são vida e cultura. Novamente reencontramos o motivo da tragédia como

dilaceração intestina e jogo de opostos no centro da concepção nietzschiana de cultura

histórica. De fato, o sentido de perda da unidade do Eu parece ter exercido grande fascínio

entre os intelectuais de finais do XIX, pois concepção aproximável de cultura encontra-se no

Mal-Estar na Cultura, de Freud, onde os motores da ação humana, do drama humano (drama

vem da raiz grega dórica drân, que significa ação, segundo a Poética 1448a-1448b), vêm a ser

a luta entre Eros e Thanatos, as potências, respectivamente, de amor e morte, responsáveis,

também respectivamente pela agregação e desagregação das comunidades humanas. A

dialética entre desejo e norma social; entre o princípio da busca do prazer e o super-Eu, é

necessariamente traumática e, por sua vez, responsável pela dinâmica interna do inconsciente

29 NIETZSCHE, Op. Cit, p. 27 30apud DIDI-HUBERMAN, Op. Cit., p. 145, itálicos de Nietzsche.

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humano. Observemos como a noção de fratura, ferida, bem como a de força plástica são

importantes à teoria nietzschiana da história:

Para determinar (...) o limite a partir do qual o passado deve ser esquecido, se não quisermos que se torne o coveiro do presente, seria preciso saber com exatidão qual é a força plástica [Plastische Kraft] do indivíduo, do povo, da civilização em questão; refiro-me à força que permite a alguém desenvolver de maneira original e independente, transformar e assimilar as coisas passadas ou estrangeiras, curar suas feridas, resgatar suas perdas, reconstituir sobre seu próprio fundo as formas quebradas [Wundenausheilen, Verlorenesersetzen, zerbrochene Forme naus sichnachformen]31.

A crítica de Nietzsche diz respeito, portanto, a uma história que, em nome da

conservação do passado “em si mesmo”, acaba por cristalizá-lo em uma forma de passado,

ignorando-lhe enquanto diagrama de forças, por vezes opostas; enquanto vontade de potência

(ou, para fins de nossa argumentação, as possibilidades de páthos que lhe são inerentes) e

contra ela sugere uma “filologia” (ou uma história) ativa, capaz de pensar a vida e a

plasticidade do devir.

Huberman, interessado nas implicações da passagem aludida da segunda das

Considerações Intempestivas, nota que a concepção de “plasticidade” evocada por Nietzsche,

como na metáfora orgânica de um corpo que vê-se em necessidade de absorver uma ferida

para que possa se desenvolver em outras formas (e, portanto, possa devir) não é contraditória

com uma interpretação estética pois “ela reúne o corpo e o estilo numa mesma questão de

tempo: sobrevivência e metamorfose acabam por caracterizar o próprio eterno retorno, no

qual a repetição nunca se dá sem seu próprio excesso, e a forma, sem sua vocação para o

informe” 32.

Se, como argumenta Harold Bloom em A Angústia da Influência, o processo criativo,

poiético, dá-se em vias tanto de uma “antropofagia” (para retomar o termo de Tarsila do

Amaral) estilística entre predecessor e postulante quanto de um ágon entre o já “clássico” e

aquilo que pretende um dia sê-lo, fato aliás notado também por P. Bourdieu em As Regras da

Arte; esperamos que, ao final deste breve excurso pelos diferentes entendimentos do páthos e

suas relações com a escrita da história na Antiguidade Clássica e no século XIX, tema nunca

muito bem “digerido” pelos maiores defensores do caráter científico da história, possa-se

gerar uma discussão e uma dessas “crises profícuas” que a força plástica do devir da escrita

histórica certamente absorverá, nunca perdendo totalmente seu caráter e seu estatuto

diferenciado da puraficção (nem que seja por conta de um protocolo de leitura executado,

31Idem, Ibidem, p. 140. 32Idem, Ibidem, p. 140, itálicos do autor, negritos nossos.

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semi-inconscientemente, pelo receptor da obra), mas com isto abrindo-se e incorporando, em

no Mesmo, algo que pertence ao Outro.

Fontes

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