Minas e as ciências sociais - Evocações e alguma polêmica

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  • 8/6/2019 Minas e as cincias sociais - Evocaes e alguma polmica

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    Minas e as cincias sociais:Evocaes e alguma polmica*

    Fbio Wanderley Reis

    um contentamento muito grande poder estar aqui e participar desta

    homenagem merecida ao Fernando Corra Dias. Fernando no apenas um

    velho colega ns somos ambos egressos do antigo curso de Sociologia e

    Poltica da Faculdade de Cincias Econmicas da UFMG , mas chegamos

    mesmo a ser vizinhos em certa poca. Fomos morar um perto do outro no

    bairro da Serra pouco depois do perodo em que ramos estudantes da FACE.Estive pensando sobre a melhor maneira de contribuir para este evento, em

    que a homenagem ao Fernando se junta com o tema que tem sido um tema

    dele do papel de Minas no quadro das cincias sociais no Brasil. Acho que

    talvez o mais adequado seja trazer uma espcie de depoimento analtico

    referido minha prpria experincia pessoal como estudante e como

    profissional das cincias sociais em Minas. Foi com a minha gerao que

    ocorreu ou pelo menos se iniciou a profissionalizao mais efetiva na rea das

    cincias sociais no Brasil, e d-se o fato de que esta gerao a mesma do

    Fernando. Eu me lembro de, ingressando na Faculdade de Cincias

    Econmicas, j encontrar l o Fernando, um par de anos minha frente

    (estvamos mesmo, ele e eu, evocando h pouco alguns outros nomes, alguns

    colegas tambm beneficirios do sistema de bolsas de estudos da FACE e que,

    como ele prprio, me impressionavam durante o curso por certa diligncia

    madura e autnoma, mas que acabaram por tomar outros rumos).

    *Transcrio, revista pelo autor, de palestra proferida na Faculdade de Filosofia e CinciasHumanas da UFMG e publicada em Teoria & Sociedade, nmero especial Imagensde Minas: Homenagem a Fernando Correia Dias, maio de 2004, pp. 14-31....

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    O que que caracterizava a Faculdade de Cincias Econmicas nessa

    poca, em fins dos anos 1950 e incio dos anos 1960? Naturalmente, alm do

    curso de Sociologia e Poltica da FACE, tnhamos tambm o curso de Cincias

    Sociais que era mantido pela antiga Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras.Mas creio que o que pretendo dizer da minha experincia relevante para

    qualificar boa parte do que acontecia tambm no programa de cincias sociais da

    Faculdade de Filosofia, at porque os dois programas tinham em comum vrios

    professores: nomes como os de Lincoln Bernardo Prates dos Santos, Jos

    Olegrio Ribeiro de Castro e Petrnio Felicssimo, que se juntavam aos nomes

    da Faculdade de Filosofia Morse Belm Teixeira, Tocary de Assis Bastos,

    Welber Braga...

    De toda maneira, h algo de peculiar a destacar com relao

    especificamente Faculdade de Cincias Econmicas: o fato de que ali havia

    Economia. O curso de Sociologia e Poltica era um de vrios cursos mantidos

    pela FACE, incluindo o curso de Economia e o de Administrao de Empresas

    e havia ainda o curso de Administrao Pblica, que funcionava acoplado ao de

    Sociologia e Poltica, com o acrscimo de disciplinas especficas de

    Administrao ao elenco de disciplinas sociolgicas. Assim, ns, socilogos e

    cientistas polticos, ramos vizinhos dos economistas. E a lembrana dessa

    vizinhana me leva a indagar, para comear, se no seria o caso, em uma

    avaliao das cincias sociais em Minas que se pretendesse adequada, de incluir

    a Economia. Afinal de contas, os economistas trazem uma contribuio muito

    importante no que se refere presena de Minas no quadro geral das cinciassociais brasileiras, com importante presena regional, nacional e mesmo

    internacional de vrios nomes de destaque Marco Tlio Felcio da Silva,

    Fernando Reis, Edmar Bacha, Paulo Haddad, lcio Costa Couto, Ronaldo Costa

    Couto, Cllio Campolina Diniz etc. Alm disso, temos tambm h bastante

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    se dedicavam ento aos temas sociolgicos e polticos no s no curso de

    Sociologia e Poltica da Faculdade de Cincias Econmicas, mas no pas em

    geral. Em contraste, a presuno em relao ao que se produzia nos Estados

    Unidos era inequivocamente negativa. Para ilustrar graficamente (alis, emsentido bem literal, no caso) essa disposico no mbito do nosso prprio curso,

    lembro-me de como chegava a ser at mesmo divertido usar por emprstimo

    exemplares de livros de Sociologia ou Cincia Poltica norte-americanas

    pertencentes ao Professor Oswaldo Gusmo, cujas margens eram sempre

    recheadas de longas diatribes contra o carter supostamente reacionrio que

    marcaria o pensamento dos autores. Com certeza as diatribes se justificavam

    com alguma frequncia, mas o nimo de clara hostilidade e de rechao liminar

    que perpassava os comentrios era expressivo de algo bastante generalizado,

    com posies poltico-ideolgicas contaminando de maneira inapelvel o

    processamento propriamente intelectual das idias.

    Seja como for, no caso do curso de Sociologia e Poltica da FACE a

    orientao francesa assumiu inicialmente, por influncia de Jlio Barbosa, uma

    forma particular que pode talvez ser considerada especialmente perversa: o

    destaque dado obra de Georges Gurvitch (que, alis, era russo de origem), na

    qual muitos de ns tivemos de queimar longamente as pestanas vejo aqui

    alguns dos nossos colegas que provavelmente ainda tiveram de padecer algo do

    clima gurvitchiano como alunos do curso, como Ronaldo de Noronha e Otvio

    Dulci... No se trata de desqualificar de vez a obra de Gurvitch. Acho mesmo

    que, do ponto de vista do mapeamento conceitual por ele realizado da rea daSociologia (a microssociologia, com as formas de sociabilidade massa,

    comunidade e comunho , e o espao macrossociolgico das estruturas grupais,

    de classe e da sociedade global, onde se observam os nveis de profundidade

    que vo da base ecolgico-morfolgica at as correntes livres do psiquismo

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    coletivo...), h pelo menos tanto mrito quanto em vrios outros esquemas

    conceituais ou taxonomias que posteriormente tiveram maior voga, como o

    esquema conceitual de Talcott Parsons. Mas a perspectiva metodolgica de

    Gurvitch sem dvida um exemplo notvel de distoro e abdicao, juntandode modo palavroso e estril uma preocupao dialtica com o empenho de

    acompanhar (no hiper-empirismo dialtico, como o rotulava ele prprio) os

    meandros da realidade ou antes, sua efervescncia, referida insistentemente

    numa srie de metforas gneas, vulcnicas etc. , em cuja perseguio a

    Sociologia acabava condenada a no ser mais que uma descrio a posteriori dos

    eventos ocorridos, talvez na especial linguagem gurvitchiana...

    Mas essa intensa influncia francesa comea, l pelas tantas, a mudar de

    feio, deslocando-se da nfase em Gurvitch para preocupaes e interesses

    filosficos (em que predominava o interesse por autores existencialistas,

    Sartre em particular) e tornando-se, ao cabo, marxista. Naturalmente, o

    deslocamento na direo do marxismo expressivo de um clima intelectual e

    mesmo poltico que veio a marcar intensamente as cincias sociais e a vida

    intelectual em geral do pas nessa poca. Esse o momento dos famosos

    estudos do Capital, em So Paulo, pelo grupo de Fernando Henrique Cardoso,

    Jos Arthur Gianotti, Paul Singer etc. Era todo mundo meio marxista, e ns

    estvamos mobilizados na mesma direo. No preciso dizer que o quadro

    poltico era fervente de maneira obviamente afim a esse clima intelectual.

    Afinal de contas, vivemos logo em seguida a experincia do governo Joo

    Goulart, que terminou como todo mundo sabe e foi uma experinciadistinguida por uma orientao claramente socializante. Outro dia me

    telefonava uma jornalista francesa pedindo minha opinio a respeito da

    discusso que estaria ocorrendo na Frana sobre se, afinal, o Lula ou no o

    primeiro presidente de esquerda do pas: para alguns seria Goulart, para outros

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    o Lula. Acho que, independentemente do que Goulart tenha tido no corao,

    ou das suas origens (do fato de que era um latifundirio gacho etc.),

    evidente que o que tivemos com ele foi uma Presidncia de esquerda e com

    uma agenda que, com as reformas de base (reforma agrria, nacionalizaodos bancos), acabava por ser propriamente revolucionria e no admira que

    se tenha tido forte reao por parte do establishment.

    De qualquer forma, voltando ao curso de Sociologia e Poltica, acabamos

    por ter a orientao francesa combinada com o marxismo. Isso pr-condiciona

    a resposta a uma pergunta que caberia fazer e que me parece muito importante

    numa tentativa de recuperar e avaliar a histria das cincias sociais em Minas

    e no Brasil. Refiro-me questo do mtodo, s respostas dadas indagao de

    como lidar com o problema da Metodologia. No caso do curso de Sociologia e

    Poltica da FACE, duas coisas podem ser ditas a respeito. A primeira que

    tnhamos o ensino ritualista de Estatstica. Ritualista e muito aborrecido, com

    a disciplina claramente tomada como coisa meio marginal e sem interesse real,

    alm de normalmente posta numa aula de 7 horas da manh, o que significa

    que boa parte dos estudantes jamais assistia a uma aula inteira de Estatstica.

    Assim, sem entrar na diferena bvia entre o mero ensino de Estatstica e um

    treinamento adequado em Metodologia das cincias sociais, no se aprendia

    sequer a Estatstica... A outra coisa a ser assinalada que falar de mtodo

    tendia a consistir em envolver-se em confusas discusses em torno da

    dialtica marxista, tomada como modelo positivo em contraposio

    Sociologia emprica ou acadmica norte-americana, da qual no se tomavaconhecimento real. Aqui possvel dizer de imediato que os problemas reais

    seguramente no tm resposta satisfatria em algo que acaba redundando

    numa espcie de retrica dialtica. Mais adiante vou tratar de elaborar um

    pouco mais isto, mas o que ns temos com a perspectiva que se apresenta

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    como dialtica uma intuio de tipo ontolgico que tem a ver com a natureza

    ltima ou essencial da realidade social, onde se destaca o seu carter

    dinmico, de fluidez, de tenso, de contradio etc., mas sem que da resulte

    necessariamente qualquer prescrio de natureza propriamente metodolgica,de natureza relativa a como vamos nos conduzir para adquirirconhecimentos a

    respeito da realidade.

    Bem, o que viria imperiosamente em seguida neste modesto depoimento

    a experincia da Flacso no Chile. Eu tinha terminado havia pouco o curso de

    Sociologia e Poltica, e de repente aparece em Belo Horizonte, em 1961, um

    socilogo francs, Lucien Brams, fazendo recrutamento para algo de que ns

    no tnhamos notcia ainda, o curso de ps-graduao em Sociologia da

    Faculdade Latino-Americana de Cincias Sociais, uma faculdade mantida pela

    ONU (UNESCO) e que tinha sede neste momento em Santiago do Chile. O

    recrutamento era para a terceira promoo, e cada promoo durava dois anos.

    A Flacso j funcionava, portanto, havia quatro anos. De toda maneira, da

    visita de Lucien Brams a Minas resultou que a seleo de brasileiros para a

    Flacso naquele ano fosse uma seleo de mineiros, de recm-graduados do

    curso de Sociologia e Poltica da FACE. De repente o Brams achou aqui uma

    espcie de canteiro de socilogos em flor (para usar uma expresso do

    Guerreiro Ramos) que lhe pareceu merecer um investimento especial, e

    carregou todo um grupo: Simon Schwartzman, Antnio Octvio Cintra, Jos

    Maria de Carvalho e eu mesmo. Fomos todos integrar a terceira promoo da

    Flacso, que transcorreu durante os anos de 1962 e 1963. Isso teve, ao que meparece, grande importncia do ponto de vista da dinmica das cincias sociais

    em Minas e mais amplamente no Brasil, sem a menor dvida. No s tivemos

    esse grupo mineiro inicial, mas tambm vrios mineiros participaram de

    promoes posteriores Vilmar Faria, Alaor Passos, Jos Armando de Souza

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    e diversas outras pessoas cujos nomes no me ocorrem no momento passaram

    tambm pela Flacso. Alm disso, houve tambm o recrutamento de estudantes

    brasileiros de outros estados, posso citar um nome que me acontece lembrar

    neste momento, o de Maria Hermnia Tavares de Almeida, que tambm foiuma flacsista, passou pela Flacso a por meados da dcada de 60,

    provavelmente junto com Vilmar Faria.

    Como disse, a Flacso certamente teve algumas conseqncias importantes.

    Em primeiro lugar, cabe lembrar o efeito de uma abertura indita para o

    restante da Amrica Latina, na qual, apesar do que tinha havido de singular no

    interesse despertado pela Revoluo Cubana, na verdade no prestvamos

    ateno (lembro-me de um teste aplicado por Peter Heintz, diretor da Flacso

    durante a terceira promoo, para avaliar o conhecimento de cada um sobre os

    diferentes pases da regio: o conhecimento recproco era em geral fraco, mas

    ns brasileiros ramos especialmente ignorantes a respeito dos demais). A

    Flacso nos permitiu a imerso na Amrica hispnica, no idioma espanhol, na

    cultura dos outros pases (recordo, a propsito, a relativa surpresa com que

    aprendemos que se podia realmente gostar de tango, em tango sessions que

    promoviam nossos colegas argentinos bem como, em meu caso pessoal,

    certa frustrao, devo confessar, por no conseguir, na volta, que parentes e

    amigos se dispusessem a ouvir com algum interesse meus discos de msica

    folclrica chilena ou argentina, por exemplo). Ela possibilitou tambm,

    naturalmente, o contato pessoal com colegas de diversos pases da regio, o

    qual, em vrios casos, se estendeu por muitos anos depois, com consequncias positivas tambm no plano profissional apesar do custo psicolgico

    relativamente alto que cabe mencionar tambm, dada a fatal patologia de uma

    instituio que reunia estudantes de diversos pases, em geral sem qualquer

    vnculo com a sociedade circundante, e os colocava em intenso contato

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    pessoal ao longo de dois anos, submetidos s idiossincrasias e neuroses de

    professores que tambm experimentavam, em vrios casos, uma espcie de

    situao de exlio.

    Mas com certeza o mais importante, do ponto de vista profissional, foi ofato de que l fomos expostos a contedos, orientaes e perspectivas

    totalmente distintas daquelas que prevaleceram na nossa experincia do curso

    de Sociologia da FACE. Em termos de influncias dos diferentes pases com

    maior tradio de pesquisa e reflexo, o predomnio (apesar de que a maioria

    dos professores era constituda de europeus e, em muitos casos, franceses) era

    claramente de uma orientao norte-americana, com grande ateno para a

    produo sociolgica dos Estados Unidos e a preocupao com a articulao

    entre o trabalho terico e a referncia emprica, acompanhado da nfase no

    treinamento em Metodologia. Em termos das influncias pessoais sofridas

    pelo grupo da terceira promoo da Flacso, o nome a destacar

    inequivocamente o do socilogo noruegus Johan Galtung, sem dvida a

    pessoa de maior estatura intelectual entre os professores mais permanentes que

    tivemos ao longo do curso, isto , sem contar os que apareciam para visitas

    breves. Alm do trabalho terico, em que se ocupava de vrios temas

    substantivos, Galtung tinha tambm importante atividade como metodlogo.

    H mesmo um livro dele sobre mtodos em cincias sociais, focalizado

    especialmente nos surveys ou levantamentos amostrais, que se tornou um

    clssico e que foi produzido justamente na Flacso em conexo com um curso

    de Metodologia que nos ministrou. Alis, a respeito desse livro h algoirnico, que coloca um problema substantivo de interesse e que tem a ver com

    o fato de que o livro foi claramente concebido em correspondncia com certo

    estdio do desenvolvimento da tecnologia ou do hardware utilizado na

    pesquisa em cincias sociais. Ns no dispnhamos para a anlise de dados,

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    naquele momento, seno das classificadoras (counter-sorters), trabalhava-se

    com cartes IBM que tinham de ser laboriosamente manipulados. Era

    necessrio pegar a pilha total de cartes, selecionar uma coluna na mquina

    classificadora, separar os cartes pelas perfuraes constantes daquela coluna,em seguida selecionar outra coluna e ver como os cartes de cada perfurao

    da coluna anterior se distribuam pelas perfuraes da coluna nova o

    trabalho de processamento e tabulao dos dados era um trabalho fsico. Mas

    d-se o fato de que na hora em que o Galtung acaba de produzir seu livro

    ocorre a exploso dos computadores e, apenas alguns anos depois, em 1967,

    quando estava nos Estados Unidos para o meu doutorado, aquela tecnologia j

    era arcaica. As classificadoras j estavam jogadas no poro. E me lembro de

    que Antnio Otvio Cintra e eu (Antnio Otvio estava ao mesmo tempo que

    eu em Cambridge, cursando o MIT enquanto eu cursava Harvard), me lembro

    de que ns, que tnhamos sido treinados naquelas coisas e no lidvamos bem

    com os computadores (que alm disso eram muito demandados, o acesso a

    eles era complicado), amos para o poro do MIT para trabalhar nossos

    dadinhos, munidos dos cartes IBM de pesquisas feitas aqui. (Por outro lado,

    naturalmente, essa era a poca em que os computadores ainda eram aquelas

    coisas que ocupavam salas inteiras, os crebros eletrnicos, como s vezes

    eram chamados com certo espanto.) E a questo de interesse a respeito de tudo

    isso que a manipulao ainda artesanal e quase fsica dos dados que era

    necessria anteriormente aos computadores exigia uma postura mais

    parcimoniosa e reflexiva, com consequncias para as relaes entre reflexoterica e processamento de material emprico que podem ser vistas como

    vantajosas em comparao com certo automatismo s vezes estpido que os

    computadores permitiram cruzar tudo com tudo, por exemplo, e ver o que

    sai... Ainda h pouco estive lendo artigo recente de um metodlogo de

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    Harvard em que o livro do Galtung recuperado e citado de maneira positiva

    justamente nessa perspectiva de crtica ao padro de trabalho teoricamente

    mope que se tem difundido com as facilidades de computao.

    Pode ser excessiva essa nfase no papel do Galtung. Eu, pessoalmente,tirei muito proveito de leituras de Jean Piaget que fui levado a fazer em cursos

    de Metodologia ministrados, antes da chegada de Galtung, por Lucien Brams

    apesar de me parecer possvel dizer que Brams no tinha a percepo correta

    das razes da importncia de Piaget, e de que eu mesmo tenha despertado para

    o interesse real daquelas leituras vrios anos depois, por conta prpria, levado

    pelos problemas com que lidava. Por outro lado, quanto ao prprio Galtung

    (sem falar de que ele ilustra muito bem a patologia da Flacso, tendo encerrado

    seu contato com o grupo da terceira promoo com uma carta circular dirigida

    aos estudantes e repleta de xingamentos...), provavelmente mais importante do

    que os tecnicismos a que nos exps no plano do processamento e da anlise de

    dados desurveys foi a familiarizao inicial que nos permitiu com os trabalhos

    de Filosofia das Cincias de Karl Popper um enriquecimento inequvoco do

    qual, em combinao com as aquisies da leitura (ou releitura) de Piaget,

    retiro at hoje recursos importantes contra certas coisas que prosperam por a

    tanto no plano da epistemologia quanto da teoria das cincias sociais e que

    com frequncia me parecem no ser mais que grandes confuses.

    Bom, como quer que seja, tivemos essa exposio a uma perspectiva

    diferente, que certamente nos marcou. Em conseqncia, recm-chegados ao

    Brasil e transformados numa espcie de jovens turcos de uma cincia socialmais consistente ou rigorosa, ns compramos a briga da Metodologia (refiro-

    me especialmente a Antnio Octvio Cintra e a mim mesmo: Simon

    Schwartzman teve logo de deixar o pas, visado pelo regime de 1964, e Jos

    Maria de Carvalho tomaria outros rumos profissionais algum tempo depois).

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    Alm de nos esforarmos por introduzir o ensino adequado de mtodos nos

    cursos de graduao (e logo de ps-graduao) em que nos envolvemos ao

    voltar do Chile, compramos tambm polmicas de alguma repercusso com o

    establishment sociolgico do pas, especialmente os paulistas (quanto repercusso, alm de discusses cara a cara e mais ou menos quentes com

    gente do outro lado, lembro, por exemplo, de receber de surpresa em minha

    casa por coincidncia num momento em que tinha Antnio Octvio como

    convidado para almoar a visita do jovem Perry Anderson, que se achava no

    pas e vinha trazido pela Maria do Carmo Campelo de Souza, interessado em

    conhecer os briguentos de Minas). H, em particular, um numero de 1966 da

    Revista Brasileira de Cincias Sociais (a antiga, editada pela Faculdade de

    Cincias Econmicas da UFMG) onde aparecemos Antnio Octvio e eu

    como paladinos de uma cincia nova, divulgando a palavra dos mestres e

    trazendo a boa nova para aquele Brasil torto e dialtico... L est, por

    exemplo, abrindo o nmero, um artigo do Antnio Octvio, Sociologia e

    Cincia, em que ele procura expor de modo sistemtico e didtico os

    princpios de uma Sociologia cientfica da Sociologia como cincia ftica,

    de acordo com a designao que lhe dava numa verso anterior do mesmo

    artigo. E l estava tambm um artigo meu, com o ttulo de A Propsito de

    Cincia e Dialtica, em que eu comprava briga com todo o estado de So

    Paulo (Jos Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso, Octvio Ianni,

    Francisco Weffort...), procurando mostrar como as inconsistncias de uma

    abordagem dialtica supostamente peculiar, tal como defendida por Giannottiem artigo de crtica a um livro de Celso Furtado que aparecera havia pouco, se

    associava com precariedades at mesmo desfrutveis no trabalho emprico e

    nas orientaes dos demais. Naturalmente, os paulistas citados eram todos

    jovens nessa ocasio (embora menos do que ns), mas sem dvida j eram

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    parte do establishment, e uma parte ascendente, que j passava frente dos

    seus mestres, como Florestan Fernandes, em termos de prestgio e

    visibilidade.

    Acho que sem dvida tivemos algum impacto relevante, ajudando a que seproduzisse certa reorientao do ensino de cincias sociais no pas, ainda que

    dificilmente se pudesse dizer que a verso domstica e modesta da querela do

    mtodo de que participamos tenha sido vencida de vez pela posio que ns

    representvamos, ou que a gente tenha conseguido estabelecer uma ortodoxia

    marcada pela preocupao com certo rigor, com o tratamento sistemtico de

    dados etc. e sobretudo com uma dimenso que me parece muito importante

    do ponto de vista do nosso tema de hoje, isto , o acoplamento entre a

    referncia a algum tipo de material emprico e a reflexo que no abdica de ser

    terica, ou teoricamente orientada. Mas volto a isso adiante.

    De todo modo, a experincia da Flacso tem uma consequncia de

    relevncia indiscutvel, seja como for que, ao cabo, se prefira avali-la. Estou

    me referindo ao fato de que, por termos aqui um grupo egresso daquelaexperincia, foi possvel contar em seguida com apoio importante da

    Fundao Ford para as cincias sociais mineiras, particularmente para a

    Cincia Poltica. Deu-se o fato de que a Fundao Ford decidiu iniciar um

    programa de apoio s cincias sociais no Brasil, certamente com motivao ao

    menos remotamente poltica, e a UFMG foi a primeira instituio a ser

    aquinhoada com uma dotao significativa. Antnio Octvio Cintra teve papel

    importante nos contatos iniciais com a Fundao Ford, atravs de Peter Bell,

    que foi o primeiro agente efetivo da Fundao nessa rea e que, sendo ento

    um jovem de seus vinte e poucos anos, viria a se tornar grande amigo nosso.

    Das conversas ento mantidas, ns acabamos negociando a possibilidade da

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    criao, com o respaldo financeiro da Fundao, de um Departamento de

    Cincia Poltica (na verdade, pensado inicialmente como um Instituto de

    Cincia Poltica, em posio meio excrescente em relao estrutura da

    Universidade), que incluiria as atividades e pessoas relacionadas com polticano s da Faculdade de Cincias Econmicas (Jlio Barbosa, Antnio Octvio

    Cintra, eu mesmo), mas tambm o que havia na Escola de Direito, em torno

    do Professor Orlando de Carvalho e da Revista Brasileira de Estudos

    Polticos, e na antiga Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras, de onde o

    Professor Tocary de Assis Bastos passou a integrar a equipe inicial do

    Departamento. A idia de um instituto autnomo durou pouco tempo, alm de

    que, como se poderia talvez esperar, a efetiva integrao dos trs setores

    envolvidos mostrou-se logo problemtica. Como quer que seja, pouco depois

    houve no s o desaparecimento do antigo curso de Sociologia e Poltica da

    FACE, que foi trazido para a nova Faculdade de Filosofia e Cincias

    Humanas, ou seja, esta casa, como tambm o setor de Cincia Poltica foi

    assimilado por ela como um Departamento de Cincia Poltica, de maneira

    sem dvida apropriada.

    Seria possvel explorar os desdobramentos disso em mais de uma direo.

    Um aspecto tem a ver com a imagem que se criou com respeito ao

    Departamento de Cincia Poltica junto maioria dos estudantes como

    conseqncia do apoio da Fundao Ford. Como a Fundao era percebida,

    naturalmente, como agente do imperialismo norte-americano, o DCP surgia

    como uma espcie de instrumento imperialista, e ns, seus professores,

    ramos execrados por muita gente. Lembro, por exemplo, certo evento

    relacionado com a idia do programa de Cincia Poltica, realizado na

    Faculdade de Cincias Econmicas, que contou com a presena do Peter Bell

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    e que foi acompanhado por nada menos que bombas dos estudantes. Isso em

    pleno 1964, com o golpe j tendo acontecido e com vigilncia supostamente

    especial sobre os cursos da rea de cincias sociais. As bombas explodiam na

    rea interna do edifcio da FACE, e a impresso que se tinha era a de que oprdio vinha abaixo. Na verdade, a resistncia Fundao Ford s se atenuou

    quando, mais tarde, tambm o Cebrap recebeu uma importante dotao dela.

    Como o Cebrap tinha uma imagem sacrossanta, seus fundadores e integrantes

    reconhecidamente de esquerda, a resistncia comeou a arrefecer. E

    necessrio dizer que (mesmo se se admite, como disse, a motivao ao menos

    remotamente poltica de sua iniciativa na rea, tratando de criar condies

    para uma aproximao com o mundo acadmico dos Estados Unidos) a

    atuao da Fundao Ford veio claramente a tornar injustificada a suspeita que

    suscitava, pois ela acabou tendo um papel muito importante, em termos

    polticos, num sentido oposto ao que a esquerda imaginaria.

    Independentemente do apoio trazido a programas de estudos e treinamento

    (pode-se discutir o mrito ltimo de tais programas nesta ou naquela

    perspectiva poltica...), o fato que a Fundao Ford se tornou um foco de

    resistncia poltica contra o autoritarismo. No caso do Brasil, ela veio a ser

    sem dvida mal vista pela ditadura, com frequncia apoiando abertamente, por

    exemplo, as pessoas que eram cassadas. Uma ilustrao: quando foram

    cassados os professores Jlio Barbosa, nosso colega daqui, e Lenidas Xausa,

    do Rio Grande do Sul, lembro de uma reunio, realizada a convite da

    Fundao Ford em sua sede no Rio de Janeiro, com a presena dos doisprofessores cassados e de vrios outros cientistas sociais de diversas partes do

    pas, para discutir no s formas de apoio aos cassados, mas tambm as

    consequncias mais amplas das aes do regime do ponto de vista das cincias

    sociais brasileiras e como agir diante delas. A postura de resistncia da

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    Fundao Ford ditadura veio mesmo a assumir forma bem mais dramtica

    no caso do Chile anos depois: no momento do golpe chileno, o mesmo Peter

    Bell com que nos tnhamos relacionado inicialmente aqui era o representante

    da Fundao naquele pas e ele acaba assumindo um pouco o papel de herida resistncia violncia dos golpistas, figurando mesmo, sem ser nomeado

    diretamente, no famoso filme Missing em que Jack Lemmon faz o cidado

    estadunidense em busca do filho desaparecido.

    Do ponto de vista especifico das cincias sociais em Minas, outro

    desdobramento da presena da Fundao Ford e do apoio por ela prestado

    Cincia Poltica o de que esse apoio resulta em certa hegemonia mais oumenos prolongada dessa disciplina no quadro geral das cincias sociais. Ns

    acabamos tendo na Cincia Poltica um plo catalisador de vocaes

    orientadas para as cincias sociais o que ocorre, alis, no s em Minas,

    mas no pas em geral. bom lembrar que logo em seguida ao apoio Cincia

    Poltica aqui em Minas, que resultou no Departamento de Cincia Poltica, ns

    tivemos tambm o Iuperj, no Rio de Janeiro, recebendo dotao importante daFundao Ford, inicialmente usada tambm na rea de Cincia Poltica. E de

    interesse ressaltar o contraste que o caso do Iuperj representa relativamente ao

    caso do Cebrap, porque com o Iuperj se tratava desde o incio de um programa

    de ensino, embora orientado exclusivamente para a ps-graduao. No

    programa do Iuperj, porm, criou-se em seguida tambm a ps-graduao em

    Sociologia, enquanto em Minas o peso da Cincia Poltica se fez sentir mais

    longamente. Felizmente, isso est agora mudado, com maior equilbrio entre

    os campos e um programa de doutorado onde se tem nfase adequada na

    Sociologia.

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    Mas a referncia ao Iuperj permite a meno a outro aspecto de interesse

    para o tema geral das cincias sociais em Minas e no Brasil, que pode tambm

    ser desdobrado em algumas questes analticas de importncia. Trata-se de

    certa dispora dos cientistas sociais mineiros, que h tempos mostram atendncia a migrar para localidades mais centrais no pas. Naturalmente,

    essa migrao ocorreu tambm rumo a So Paulo. Mas a ida, a certa altura, de

    muitos mineiros para o Rio de Janeiro, em particular o Iuperj, combinou-se

    com as oportunidades parecidas de treinamento propiciadas pelo apoio da

    Fundao Ford ao nosso Departamento de Cincia Poltica e ao Iuperj para

    criar certa homogeneidade de orientaes que, ao menos na rea de Cincia

    Poltica, permitia um contraste mais ou menos claro de ambos com

    experincias como a da USP ou Unicamp, por exemplo, em So Paulo. H

    mesmo quem pretenda, como Maria Ceclia Spina Forjaz em artigo de 1996 na

    Revista Brasileira de Cincias Sociais, que um suposto eixo Minas-Rio

    pode ser contraposto a So Paulo at no que diz respeito a problemas terico-

    metodolgicos como o da eventual autonomia da Cincia Poltica com

    respeito a outras disciplinas, particularmente a Sociologia. Segundo ela, o

    grupo do eixo Minas-Rio, que eu mesmo sou citado como integrando, seria

    um grupo preocupado com a autonomia da Cincia Poltica, por contraste com

    o grupo paulista, que seria mais sociolgico, menos cioso da autonomia da

    disciplina. Isso me parece um grande equvoco. Por relevante que possa ser a

    conexo Minas-Rio por certos aspectos, acho que h clara impropriedade em

    pretender dar-lhe maior significado em termos das relaes entre Sociologia eCincia Poltica e da autonomia da Cincia Poltica. Quando nada, eu,

    pessoalmente, definitivamente no me reconheo como cientista poltico

    preocupado com a autonomia da Cincia Poltica, e no penso que haja

    qualquer razo terica ou metodolgica para reclamar essa autonomia ainda

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    que possa haver, naturalmente, razes de poltica acadmica ou assemelhadas.

    O que eu penso, na verdade, corresponde antes ao oposto daquilo que Maria

    Ceclia Spina Forjaz sugere: acho que a Cincia Poltica no pode ser seno

    uma Sociologia da poltica, e a pretenso de autonomia da Cincia Poltica(que dependeria, naturalmente, de que a prpria poltica pudesse ser percebida

    como autnoma em relao a outras esferas) leva a dificuldades analticas

    insuperveis, que podem talvez ser postas em termos de trs aspectos. Em

    primeiro lugar, ela est com freqncia ligada tendncia a ver a poltica

    como correspondendo, concretamente, ao plano do estado, referindo-se, por

    assim dizer, quele pedao da realidade onde se encontra o estado; mas essa

    uma definio empobrecedora e inaceitvel, o de que precisamos antes de

    uma definio analtica da poltica, que permita apontar o que h de poltico

    nos focos de conflito e solidariedade a serem encontrados em qualquer esfera

    da vida social, bem como sua eventual relevncia, maior ou menor, para o que

    se passa no plano do estado. Em segundo lugar, no temos a possibilidade de

    explicaro que quer que seja (nem mesmo a eventual autonomia relativa do

    estado) sem recorrer ao substrato social e ao jogo que a se d entre os atores

    de tipos diversos. Finalmente, a questo da articulao entre estado e

    sociedade talvez a questo crucial para a idia mesma de democracia e,

    portanto, para os prprios problemas tericos e prticos centrais Cincia

    Poltica.

    De todo modo, se h bastante tempo temos a presena nacional de gente

    formada em Minas como consequncia da migrao dos mineiros, j existe halgum tempo at um efeito oposto, com Minas especialmente Belo

    Horizonte se mostrando capaz de atrair profissionais de outros estados ou do

    exterior. Mas talvez mais importante do ponto de vista da dinmica das

    cincias sociais em Minas e no Brasil seja o fato de que j temos a presena

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    nacional de gente que no saiu de Minas: ficar em Minas no mais

    indicativo, em nossa rea como em outras, daquele defeito de fabricao de

    que antes se falava... difcil separar, quanto a isso, o papel cumprido pelo

    avano ou a afirmao especificamente das cincias sociais mineiras, por umlado, e, por outro, o processo geral de adensamento das redes de comunicao

    entre os profissionais do pas inteiro, que se d em circunstncias em que

    temos tambm a emergncia e a afirmao de diversos outros centros

    regionais. Se em certo momento dependemos de uma Fundao Ford para nos

    colocar em contato e mobilizar at a propsito de assuntos de importncia

    dramtica, hoje certamente mais justificado falar de uma comunidade

    nacional efetiva na rea das cincias sociais. A Anpocs teve sem dvida

    grande importncia quanto a isso, com todas as reservas que se possa ter

    quanto a este ou aquele aspecto do seu funcionamento.

    Bem, se ponderamos um pouco, para concluir, as questes substantivas

    ou terico-metodolgicas que marcam as vicissitudes das cincias sociais em

    Minas e no pas (e que, na minha opinio, com certeza subsistem como

    questes importantes), o problema crucial me parece ser o de uma orientao

    de ambio terica e generalizante em confronto com uma orientao de tipo

    idiogrfico ou historiogrfico. Tenho me envolvido com frequncia em

    discusses a respeito disso, e provavelmente todos aqui conhecem minhas

    posies. Boa parte do que se faz entre ns nas disciplinas que melhor

    corresponderiam, em princpio, ao modelo de uma cincia social teoricamente

    ambiciosa, isto , a Sociologia e a Cincia Poltica, tende a apegar-se a padres de trabalho mais prximos da Histria como disciplina e da

    Antropologia, que se expandiu muito e ocupou espaos institucionais talvez

    excessivos , envolvendo certa nfase descritiva, a valorizao da dimenso

    temporal dos fenmenos e de suas peculiaridades, o relativismo... Para

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    colocar a coisa nos termos de um texto de Gilles Gaston Granger (Evento e

    Estrutura nas Cincias do Homem) muito lido na Faculdade de Cincias

    Econmicas na minha poca, talvez com pouco proveito, seria possvel falar

    da contraposio entre o carter problemtico do evento como tal e o carterapodtico ou necessrio das estruturas, ou seja, dos resultados do esforo de

    teorizao logicamente concatenada que d conta do evento: s temos

    explicao no nvel estrutural, ou terico e generalizante com estrutural

    tomado num sentido piagetiano e operatrio que escapa das confuses e

    mistificaes da moda estruturalista mais ou menos recente. A questo

    poderia tambm ser transposta em termos do grande cavalo de batalha das

    relaes entre a lgica formal e uma suposta lgica dialtica, que marcou

    muitas das nossas discusses metodolgicas da mesma poca. Se tomamos a

    perspectiva dialtica, com sua sensibilidade para o evento e sua intuio

    ontolgica referida realidade como movimento, contradio e fluxo

    heraclitiano (no se entra duas vezes no mesmo rio), o crucial ponderar

    que no temos como escapar da precedncia da intuio lgica sobre a

    intuio dialtica: no poderamos sequer formular a intuio heraclitiana das

    perenes mudanas de estado se no chegssemos, em termos de Piaget,

    construo do objeto permanente e como tal passvel de manipulao, se no

    tivssemos em operao o princpio da identidade, se no alcanassemos a

    idia de A que A e que no no-A, do rio que um rio, o mesmo, e no

    outro ou outra coisa... Por certo, esses velhos temas continuam fatalmente

    envolvidos nas indagaes sobre como treinar apropriadamente osprofissionais da rea, como conceber o papel a ser cumprido pela reflexo

    terica, qual a maneira epistemologicamente sadia de articul-la com o

    recurso metodolgico a tcnicas de um tipo ou de outro... Como sugeri, no

    creio que nossa situao a respeito seja atualmente significativamente melhor

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    do que em outros momentos, ou que tenhamos efetivamente progredido muito

    a respeito.

    Nessa ptica, surgem, naturalmente, questes importantes em conexo

    com a eventual pretenso de fazer de Minas, especificamente, nosso objeto deestudo. Creio que muitas das dificuldades associadas com a tendncia

    idiogrfica que acabo de apontar nas cincias sociais brasileiras tm a ver

    com certa obsesso com o Brasil, em que uma preocupao torta e imediadista

    de relevncia com respeito ao contexto brasileiro resulta no

    empobrecimento da reflexo, com o abandono de qualquer ambio terica e o

    apego ao relato ou descrio supostamente despojada e, frequentemente,

    com o entendimento de que a reflexo rica e integradora ou universalizante

    algo a ser feito pelos profissionais da Europa ou dos Estados Unidos... claro

    que os mesmos riscos existem, com mais razo, se pretendemos colocar o foco

    em Minas. O que no significa, evidentemente, que no possamos ter a

    respeito de Minas, como a respeito do Brasil, o trabalho orientado por

    perspectivas mais ricas e proveitosas.

    O trabalho corrente de Fernando Corra Dias, orientado para o

    levantamento de autores e temas das cincias sociais em Minas que se estende

    ao sculo 19, pode, sem dvida, vir a ter grande interesse desse ponto de

    vista. Tivemos reflexo original, ou mero consumo e aplicao mais ou menos

    precria de idias nascidas e formuladas em outros pases ou regies? A

    reflexo eventualmente original encontrada reflexo autntica, no sentido de

    incluir Minas como caso num conjunto estruturado de idias de maioralcance? Ser realmente recomendvel privilegiar Minas na perspectiva de

    indagaes como essas, em relao s quais a probabilidade de respostas

    positivas j se mostra precria, apesar de excees importantes, mesmo no

    plano nacional? Seja como for, creio que o desafio crucial o de que se venha

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    a ter algo mais do que uma espcie de rala histria das idias, que possa querer

    justificar-se como tal mesmo enquanto abdica, eventualmente, do empenho de

    mostrar o interesse real das prprias idias cuja histria se conta.