68
christina machado MINHA CABECA, NOSSA NATUREZA

Minha Cabeça, Nossa Natureza – Christina Machado

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Catálogo de Christina Machado, Minha Cabeça, Nossa Natureza. Exposição realizada em 2012, na Galeria Janete Costa | Parque Dona Lindu. Recife, Pernambuco.

Citation preview

christina machadoMINHA CABECA, NOSSA NATUREZA

christina machadoMINHA CABECA, NOSSA NATUREZA

4

5

Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei

em escrever sobre a realidade, já que esta me ultrapassa. Qualquer que seja o que quer

dizer realidade. clarice lispector, a hora da estrela, p. 17

iniciar esta breve apresentação da exposição Minha Cabeça, Nossa Natureza,

com esta epígrafe, visa estabelecer pontes entre a atitude transgressora da

escritora e da artista christina Machado. Não qualquer transgressão, como

aponta clarice lispector, mas a que a fascinou de repente e a fez transgredir

seus próprios limites. É isso que faz christina Machado todo tempo em sua

vida-obra. ambas, escritora e artista plástica, trazem em suas obras a relação

com a matéria do humano, com as fragilidades e ressonâncias das coisas de

dentro e de fora. talvez o real que nos escapa aos sentidos pertença ao mundo

da criação, ficcional, portanto da arte.

christina Machado tem como foco de sua produção a “natureza humana”.

ao longo de sua trajetória de trabalho, a artista parte de sua intimidade — pele,

corpo, vivências e experiências — para o outro. Nesse contexto é que chega ao

hospital Ulysses pernambucano (tamarineira), através de um convite da Semana

de Artes Plásticas do Recife – SPA das Artes, em 2005; desde então, começa um

enamoramento por meio de inúmeras vivências com pessoas com sofrimento

psíquico dessa unidade institucional. Nesse processo tem como aliada a argila,

a qual pesquisa há anos.

Ao topar o desafio de trabalhar com a sucata hospitalar na Tamarineira,

a artista pesquisa, mexe, remexe e encontra objetos íntimos — restos de camas

hospitalares. constrói, então, um objeto intitulado Cama Sem Pé Nem Cabeça

e disponibiliza o trabalho em uma intervenção com os usuários do centro

de atenção psicossocial – caps. essa ação consistiu no convite aos pacientes

da tamarineira para que eles inserissem um “coração” (da série Artérias) nos

transeuntes da cidade, uma inversão de papéis, em que o “paciente” mobiliza

um cidadão comum para nele introduzir um “coração”, com todo o significado

que ele carrega. esse gesto poético — simples — de inscrever, marcar, tatuar

MINHA CABECA, NOSSA NATUREZAjoana darc lima

Cama Sem Pé Nem Cabeçaobjeto, 2005

pp. 2 e 3Meus Eustécnica mista sobre papel, 2012

6

nos remete ao ato primeiro da cultura em que o homem

se percebe como ser cultural. a história do interesse

humano de reproduzir e representar sua própria imagem

e aquelas que, de alguma forma, lhe são significativas

remonta à pré-história. ao decalcar sua própria mão

na pedra, o homem estava também marcando ali a sua

presença, embora já não mais presente, como num ato

indiciário, o mesmo ato que caracteriza a fotografia,

da qual a artista lança mão como materialidade

das ações e performances realizadas no ateliê residência,

na tamarineira.

em 2007, inicia dois projetos importantes no processo

de envolvimento do outro em seus trabalhos. o Pé, Mão,

Sensação, quando propõe uma escuta do outro ao solicitar

ao público participante que produza partes do corpo com

o barro; e o Artérias, ação performática, que, com o toque,

um gesto, introduz simbolicamente a imagem de um

“coração” no corpo das pessoas (participantes da ação) e

no tecido nada liso da cidade. Esses dois trabalhos a fizeram

chegar perto do público, interagindo e convidando-o a

participar da construção do seu trabalho. inicia-se uma

experimentação sensorial e participativa, quando o público

deixa de ser espectador e passa a participante da obra.

em 2009, retorna à tamarineira com a proposta de manter

semanalmente um ateliê residência. inicia um novo diálogo

com os pacientes dessa instituição. Um espaço aberto a

experiências estéticas, sensoriais e afetivas.

Usei a natureza da minha poética mais a intimidade e o conhecimento que tenho com

a argila para interagir com esse público tão especial e ser um instrumento de realização

desses mundos materializados através da cerâmica. christiNa Machado, 2011

Artérias Sem Pé Nem CabeçaVídeo do registro poético da ação, 2010imagens de Francisco Baccaro e edição de christina Machado

7

de lá para cá, a artista construiu, para além das relações

afetivas e de amizade, um trabalho singular com os usuários

dessa instituição. sem regras nem obrigatoriedades de

frequência, os participantes chegam para vivenciar uma

experiência estética usando o barro como suporte, matéria

e materialização de suas expressões. a artista se coloca como

uma mediadora, uma propositora das ações, uns permanecem

mais tempo, outros menos, há entregas e resistências;

por fim, sobram os objetos, os gestos, as marcas deixadas,

como vestígios da passagem humana por aquele lugar.

de 2009 até 2012, a artista guardou, armazenou, mais

de 1.500 objetos feitos em argila pelos frequentadores

do ateliê aberto. ao tomar a matéria e sua materialização,

as experiências, os gestos, as histórias e as memórias como

repertório para a exposição Minha Cabeça, Nossa Natureza,

a artista christina Machado construiu uma obra aberta, um

recorte ficcional dessas suas experiências e dos inúmeros

rastros e vestígios do outro, um manto tecido à mão,

composto por experiências e entregas, junções e diálogos

que produziram narrativas escritas de maneiras muito

diferenciadas, costuradas e cerzidas pelas mãos de christina

Machado. Nessa exposição, acolhida na Galeria Janete

costa, o público pôde ter contato com as seguintes séries:

Da Matéria à Materialização i e ii

Da Matéria à Materialização I resultou dos muitos encontros

com os usuários realizados no ateliê residência na

tamarineira: seu luiz, rilda, paulinho, cristina,Milena,

luzia, Givaldo, helena, tacila, Genilda, pacheco, angélica,

chico, ana, Francisco, eliane, Gil, anselmo, denise, ronaldo,

entre tantos presentes nessa instalação. a vivência foi

tecida por um fio de liberdade, do entrar e sair da sala sem a

obrigatoriedade e o compromisso dos usuários com horário,

frequência, continuidade. para participar dos encontros,

bastava chegar para ser acolhido com afetividade e aceitar

o convite para fazer algo com o barro. o desejo de estar

no espaço e usar a argila bastavam e se configuravam

como detonador da ação. a oferta era a argila, depois o

diálogo. tudo acontecia com base na disposição de cada

um. “experiência de vida para todos nós que estávamos ali,

enriquecimento no meu trabalho e um momento de alívio

para eles, esse é o meu sentimento” (christina Machado).

as várias formas de expressões, sentimentos, o toque na

matéria e uma realidade sem fronteiras levaram a artista

a fazer uma instalação rica em expressões e sentimentos,

histórias de vida e intencionalidades. a instalação Da

Matéria à Materialização I foi construída pela artista a partir

dos procedimentos de guarda, armazenamento dos objetos

feitos pelos integrantes da vivência, em seguida, a escolha,

a seleção e o ordenamento desses pelo viés biográfico.

depois, os objetos foram organizados na parede da Galeria,

compondo uma cartografia afetiva de homens e mulheres

que, juntos ou isoladamente, partilharam dessa experiência

coletiva. Um diálogo desencadeado entre as experiências

dos pacientes materializadas em objetos feitos em argila

e a intervenção cuidadosa, respeitosa e poética da artista

christina Machado. Uma montagem que cria narrativas

e texturas visuais, como um livro aberto, um manto de

imagens simbólicas que significam muitas histórias e

dramas de pessoas como todos nós.

Da Matéria à Materialização II se valeu igualmente dos

objetos realizados pelos usuários nos encontros semanais no

ateliê residência. contudo, nesse caso, christina Machado,

com rigor estético e afetivo, selecionou pequenos objetos,

independentemente de autoria, e os incrustou em uma placa

de barro, reparando-os em alguns casos quando necessário,

sinalizando ausências e inserindo pigmentação vitrificada.

Artérias na Cidade2012Jardim do hospital psiquiátrico Ulysses pernambucano –tamarineiraFotografia de Francisco Baccaro

9

todas as peças foram queimadas, e os resultados, por vezes inesperados,

compõem um grande painel visual, uma espécie de monumento vivo.

Minha Cabeça, nossa natureza

Um convite a fazer minha cabeça é o mote deste trabalho. christiNa Machado, 2009

o corpo da artista havia sido moldado em fôrma de gesso no ano de 2004 para a

realização do videoarte Tempo de Carne e Osso. de maneira emblemática, a artista

também desconstrói, nessa mesma ação, o molde de seu corpo nas águas do mar,

numa ação sensível e generosa, devolvendo para as águas sua imagem. anos

depois, em 2009, pelo spa das artes, no hospital da tamarineira, disponibiliza

para intervenção e diálogo com o público a reprodução de 60 cabeças de argila,

da mesma fôrma anteriormente moldada em 2004. trabalharam nelas pacientes

do hospital Ulysses pernambucano, do caps, alunos e amigos artistas, a exemplo

de dantas suassuna, Gil Vicente, Fernando peres, Frederico Fonseca, José paulo,

lula Wanderley, Márcio almeida, renato Vale, rinaldo todos no mesmo espaço,

atuando, por vezes simultaneamente, no período de uma semana. a artista, que

vivenciava a ação — ao mesmo tempo em que recolhia em memória, em imagem

fotográfica e em vídeo as muitas maneiras de intervenções, gestualidades

e apropriações que fizeram de sua imagem —, atualizava muitas questões sobre

a relação entre arte e participação que podem ser vistas nessa instalação.

a série de pinturas Meus Eus — pintura sobre papel, técnica mista —, de 2012,

foi realizada nos últimos meses de produção que antecederam à mostra Minha

Cabeça, Nossa Natureza. sozinha em seu ateliê Águas Belas (recife), a artista

retoma sua imagem não mais representada em barro, mas uma imagem

fotográfica impressa sobre papel, e agora, diferentemente da oferta de sua cabeça

ao público, a artista, em seu isolamento, intervém, por meio do procedimento

de apagar e simultaneamente sublinhar traços que a definem no tempo de sua

existência. a proximidade com sua imagem e o exercício de reconhecimento e

estranhamento de si e do outro a fizeram potencializar o feminino e o masculino

presentes em sua natureza e reféns dos pressupostos sociais, históricos, éticos

e estéticos que acompanham essa temática.

a série Estância, Sua Casa — 40 máscaras em argila —, de 2011, foi realizada

na praça cara Nova, em paracambi (rJ), durante o Projeto Cinema na Praça.

10

A matéria-prima da arte de Chris Machado é seu próprio rosto e a maleabilidade do barro.

Chris entrega ao participante de sua proposta um modelo de barro de seu próprio rosto

para ser transformado. Quando colocados entre ela e o outro, o rosto e a maleabilidade

passam a trazer em si a metáfora de uma questão central da vida contemporânea:

a identidade. GiNa Ferreira e lUla WaNderley

Nesse caso, a artista disponibiliza apenas sua face, moldada em argila, para

que os participantes da ação possam intervir. disponibiliza também espelhos

na tentativa de que seja estabelecida uma tensão entre sua própria imagem

e a de quem é sujeito de sua modificação.

Artérias sem Pé nem Cabeça são dois trabalhos, Cama Sem Pé nem Cabeça

e Artérias, criados em épocas diferentes e que se unem para uma mesma

ação no spa das artes, de 2010. Um objeto construído a partir de quatro

camas cortadas ao meio e depois unidas, criado para dar a impressão de algo

sem começo nem fim. E com a impressão do Artérias no lençol do hospital.

“instalando-as sobre carpete vermelho no centro do pátio de são pedro,

simbolizo o hospital psiquiátrico, e se iniciam os trabalhos. a imagem dos

lambe-lambes do Artérias aos arredores do bairro da tamarineira e no hospital

leva a cidade para esses locais” (christina Machado). como resdultado da ação

foram construídos dois novos trabalhos: vídeo do registro poético da ação,

Artérias sem Pé nem Cabeça"e o Artérias Viva que ocupa agora um espaço vivo,

constituindo uma ponte, estreitando a relação entre razão e não razão. Fixa e

põe em movimento essas imagens criadas, disponibilizando para os visitantes

territórios simbólicos a serem praticados e decifrados: lidos. esse trabalho, feito

de muitas costuras e ajuntamentos, de pedaços de processos artísticos, poéticas,

linguagens e autorias compartilhadas entre artistas, nos impõe silêncios, ruídos,

estranhamentos, belezas, solidariedades e afetividades.

a estética relacional é uma teoria elaborada na década de 1990 pelo crítico

e curador francês Nicolas Bourriaud. Pode ser definida como plataforma estética

e método crítico com base na detecção de certa sensibilidade compartilhada

por alguns artistas contemporâneos. o foco desse movimento está

predominantemente na preocupação com as relações humanas na arte,

do artista com seu entorno e com seu público. Na arte relacional, as experiências

e os repertórios individuais estão a serviço da construção de significados coletivos,

Artérias na Cidade2012entorno da tamarineiraFotografia de Francisco Baccaro

11

12

13

o que faz com que a participação do público seja um

fator-chave na ativação ou efetivação de tais propostas.

Valorizam-se as relações que os trabalhos estabelecem em

seu processo de realização e de exibição, com o envolvimento

de artistas e do público.

insiro, nessa perspectiva analítica, os fazeres e as atitudes

artísticos de christina Machado. sua interação e seu

trabalho desenvolvido no hospital psiquiátrico Ulysses

pernambucano, recife/pe, vêm adquirindo reverberações

poéticas e desdobramentos físicos para além dos muros

da instituição. Sem Pé Nem Cabeça — instalação e ação

com intervenção de usuários dos caps. hospital Ulysses

pernambucano (tamarineira), semana de arte no recife

— me parece que é traço marcante na trajetória da artista.

representa o limiar entre razão e loucura. como localizar

e pontuar tal região ou fronteira? a artista entende que a

loucura é o lugar que permeia pulsões e tensões, espaço

de abertura para “receber sempre as múltiplas e inusitadas

sensações”. região que descortina mistérios, imagens,

gestos, ruídos, traços e afetividades.

o potencial da arte para transformar o espaço social e

as relações humanas é também uma questão central na

obra de christina. ela reúne, por meio de suas propostas,

pacientes do hospital, artistas plásticos, músicos,

estudantes, transeuntes da cidade, qualquer pessoa que

queira ser tocada por sua poética. Qualquer um que tenha

coragem, se lance numa experiência estética e atravesse

fronteiras do estabelecido. salve todos aqueles que em

nome da arte propõem partilhas e fissuras, emendas

e permanências, que insistem nos diálogos e fortalecem

as mais diferentes e polissêmicas vozes. eis a importância

dessa artista para a arte internacional e brasileira.

Artérias Sem Pé Nem Cabeçasilkscreen e acrílica sobre lençol de algodão, 2005pintura coletiva após ação performática (detalhe)

Joana D'arC liMa doutora em história

pela Universidade Federal de pernambuco,

docente convidada no curso de especialização

em arte-educação na Universidade católica de

pernambuco e de história do Brasil no centro

educacional helena lubienska. desenvolve pesquisa

sobre as artes visuais no Brasil com foco na história das

artes de pernambuco. coordena o grupo de pesquisa

Coletivo Arte em Diálogo, do Museu de arte Moderna

aloisio Magalhães. É uma das articuladoras do coletivo

parangolé, arte, cultura, educação. atualmente

é diretora da Galeria de arte Janete costa no recife.

17

O AZUl qUE NUNCA fOI AZUl

as histórias que falam do paraíso são desencontradas. Não faltam, porém,

mitologias plenas de astúcias e de criações. a rebeldia possui lugar especial.

há sempre desejos de transformação, inconformismos com a ordem.

as identidades se movem anunciando que o mundo não se realiza com a

consagração da mesmice. Nem todos observam a importância da inquietude

na construção da cultura. ela não cessa, apesar das dominações violentas e das

censuras permanentes. somos animais sociais, convivemos com limites, pois

somos passageiros da incompletude. a rebeldia ganha espaço, porém as regras não

se afastam do cotidiano: cercam o nosso tapete mágico e impedem nossos voos.

contar a história é, portanto, mergulhar nas ambiguidades. os registros mais

primordiais são imprecisos, porém vagamos por entre dúvidas, apesar das

utopias e dos sonhos fabulosos. o artista é fundador de mundos. Move sua

sensibilidade captando ruídos e silêncios. sua gramática rompe círculos fechados,

inventa linguagens, penetra no mistério. Busca uma leitura do mundo que fuja do

lugar-comum. Contempla o que passa com o tempo de quem desconfia e abraça.

o óbvio estica-se para dialogar com o inusitado.

o trabalho de christina Machado não recusa as turbulências nem nega a

complexidade. olha com agudeza e ternura os malabarismos da vida social. desliza,

desloca-se, insere-se. a tragédia comunica-se com a incompletude, ela sabe

disso. A finitude não é um acaso anêmico, mas uma acrobacia. A arte de Christina

quebra tradições, porque não despreza o passado, não fica alheia aos preconceitos.

equilibra-se no tempo, sem a arrogância dos que o julgam linear e sempre

progressivo. sua matéria-prima é o descuido. ela o traduz, o interpreta, o multiplica.

somos animais sociais, contudo somos, muitas vezes, indiferentes aos outros.

tememos problemas, cultivamos egolatrias, nadamos no narcisismo. christina

escuta os conselhos anônimos da solidão, não se deixa consumir pelas aparências

das coisas e das pessoas. Configura a comunhão e seus desacertos. Faz da argila

um ponto de encontro que pode refazer formas e representar as idas e vindas do

mundo. O inacabado é infinito, companheiro do desejo e adversário do juízo final.

antonio paulo rezende

pp. 14–16 e 19Da Matéria à Materialização Iinstalação de cerâmica, 2009–2012produção coletiva

18

sempre há o que inventar, como sair do labirinto e riscar

os antigos espelhos.

O estar no mundo balança-se, não requer fixidez, exige

conversas contínuas, dissonâncias longas, preguiças

inesperadas. se a arte só visualizar o instante, perde o

mistério do primordial. Não é necessário explicá-lo. o oceano

da interpretação joga com o sonho e alarga a possibilidade.

o trabalho de christina não possui vírgulas, mas

interrogações constantes e afirmações que se entrelaçam

com o mundo, com a força do inesperado. cada peça narra

sua história. os narradores multiplicam-se, porque os

olhares mudam e os sentimentos são gramáticas sinuosas.

entre a permanência e a mudança, as histórias circulam.

as coisas nunca são as mesmas; circulam ansiosas

buscando ressignificações. Não cabe ao artista encarcerar

as concepções de mundo. As cores redefinem seus nomes,

as loucuras, os seus delírios. o importante é que haja

lembranças do que foi primordial. apesar da velocidade

que nos rouba o sossego, as leituras de cada ato merecem

atenção e rascunham ousadias. tudo tem o gosto do efêmero,

porém ficam toques e imagens, muitas vezes involuntários.

christina arriscou, compreendeu que a cultura não se

arquiteta sem os significados. A argila anuncia que a forma

é inquieta e a verdade é curva. É preciso que a incompletude

não se acanhe, mas se desloque. os limites não decretam

o fim. Eles atiçam, desenham as diferenças, entretecem as

fragilidades. a arte, quando não silencia a vida, mistura-se

com o que não tem nome. o azul nunca foi azul, porque a

sensibilidade transcende o visível. há um esconderijo em

cada forma de inventar e retomar o humano. christina não

se intimidou. as chaves das portas são ornamentos, e não

instrumentos indispensáveis para configurar o mundo.

antonio Paulo rezenDe é professor do

departamento de história da UFpe. É canceriano,

tem quatro filhos, três netos e torce pelo Santa Cruz.

Fez mestrado em história na Unicamp e doutorado

e pós-doutorado em história na Usp. trabalha com

temas relacionados à contemporaneidade, cultura,

Memória. escreve no blog www.astuciadeulisses.

com.br quatro vezes na semana, e seu último livro

intitula-se Ruídos do Efêmero: Histórias de Dentro e de

Fora, publicado pela editora da UFpe.

Da Matéria à Materialização IIinstalação de cerâmica, 2009–2012produção coletiva

19

23

com a série Minha Cabeça, Nossa Natureza, christina Machado se permite

uma experiência de troca no seu sentido mais forte, e assim nos leva junto até

essa possibilidade de abertura. Não se trata apenas de uma visita ao universo

da loucura, ao seu cenário, aos caminhos e descaminhos das formas de cuidado

e tratamento. o encontro e a troca, aqui, criam novas possibilidades, fazem

surgir um novo acontecimento.

as relações entre arte e loucura têm uma longa história, e seus atravessamentos

vão ganhando contornos diferentes a partir das mudanças em cada tempo.

pode-se dizer até que essa relação foi emblemática na modernidade. e uma

das linhas fortes no contato entre práticas artísticas e processos terapêuticos

era o ideal da arte como expressão de si e de seu sofrimento. a arte revelaria a

“verdade da loucura”, e a loucura, por sua vez, “deteria a verdade da arte”. se com a

contemporaneidade transformam-se o pensar e o fazer no campo da arte, também

no campo da clínica e da atenção à loucura se engendram uma série de práticas

em que as atividades artísticas vão ter espaço no processo de transformação das

instituições psiquiátricas e no questionamento do lugar da loucura.

No processo trabalhado por christina, as articulações entre arte, loucura

e cuidado parecem se dar no plano da potencialização de cada eixo. a arte se

expande e ganha potência no encontro com esse outro, sendo, cada vez menos,

uma atividade individual e autônoma. a loucura pode encontrar vetores

e espaços de saída, extrapolando o campo de uma patologia da interioridade.

e o cuidado maximiza-se, transforma-se, saindo do domínio do puramente

patológico e da instituição fechada.

a força do encontro se dá pela mistura e porosidade que a artista se permite.

aqui não são um sujeito e um objeto como dois entes separados, em que um vai

conceber ou esquadrinhar o outro. longe de uma certa postura antropológica de

encontro com o estranho “lá fora”. também não se resume a um encontro com

julia coutinho costa lima

pp. 20 e 25Minha Cabeça, Nossa Naturezaintervenções de convidados em objetos de cerâmica, 2009

pp. 22 e 24Minha Cabeça, Nossa Naturezaintervenções de convidados em modelagem de argila, 2009

O ENCONTRO pOSSIvEl qUANdO SOMOS UNS E SOMOS MUITOS

o estranho “aqui dentro de nós”, como se nos servíssemos

da loucura da mesma forma que alguém se serve de

um reflexo parado num espelho. A dinâmica e a beleza

do processo estão no novo acontecimento, em suas

reverberações e no que se gesta como cria disso tudo.

as obras apresentadas em Minha Cabeça, Nossa Natureza

são fruto desse processo, que se iniciou há mais de três

anos, em que christina disponibiliza sua presença, seu

tempo, seu espaço, seu corpo, sua matéria para viver,

junto com os pacientes que estão sendo acompanhados

no hospital Ulysses pernambucano (ou hospital da

tamarineira), uma experiência. em um dos trabalhos,

a artista leva o molde de sua cabeça em barro para que

os pacientes intervenham. ela permite o gesto do outro

e aguarda, recebe. ao mesmo tempo, oferece ao outro algo

que é do plano da cultura, da experiência estética e criativa.

a sua cabeça, que volta marcada e alterada pela ação dos

pacientes, reverbera em christina, que passa a experimentar

em si a natureza que é deles e, agora, nossa. a proximidade

e a porosidade nos limites entre eu-outro são vividas pela

artista como uma espécie de simbiose. acredito tratar-se

mais de uma experiência de certa plasticidade do eu-outro

que amplia as possibilidades para ambos. essa ampliação

dos limites se dá porque a experiência é vivida no plano de

uma criação que termina sendo conjunta. o que se engendra

nesse encontro não é mais só o resultado de christina

nem somente deles, é uma terceira coisa, uma produção

intermediária-transicional, para a qual não se encontra

resposta exata para as perguntas: isso é meu ou seu?

Quem começou? De quem é o olhar de águia desconfiada

daquela cabeça? a quem pertence o espírito de guerreiro

lutador daquela outra? Quem é esse homem? Quem é essa

mulher? de que sofrem? como gozam? o que querem?

25

assim vão surgindo personagens e algumas histórias que

esperam para ainda serem contadas.

christina se deixa afetar, recebendo o impacto de marcas,

símbolos, inscrições, criações dos outros em si mesma, na sua

cabeça, transformando-se e fazendo o trabalho “de volta” de

assimilação ou reflexão das ressonâncias desse encontro.

Nessa “volta” — momento fértil de abertura criativa —, a artista

está só, mas está com a presença de todos esses outros que

estiveram com ela. Nesse contexto, elabora a série de pinturas

Meus Eus, em que sua cabeça aparece novamente como

imagem-eixo para novas amarrações, para continuar tecendo o

fio das histórias, dos personagens encontrados/criados. O que

ela constrói agora é marcado por aspectos que não se davam a

ver tão claramente antes, por isso que se deu a perceber através

do outro: a natureza instintiva, animal, a força, o medo...

e também reencontrando o que é comum a todos, o que é

partilhado, os anseios de liberdade, os conflitos e as amarras

que impedem a liberdade. tão íntimo e tão do mundo.

Nesses personagens aparecem as figuras da mulher e do

homem. O exercício de abertura para o outro se intensifica

nesse jogo em que encontra o masculino em si mesma.

Já o feminino é mais próximo, mais próprio, mais trabalhado

em outras produções suas, como Mulher de Ferro e Impressões

sobre Minha Vagina, por exemplo. Uma vez que é possível

tomar o masculino como nosso outro, fica o movimento de

dar cara, cabeça, forma a esse outro que sou eu, mas também

que não sou eu, no jogo entre semelhança e diferença.

assim ela cresce, expande seu eu a partir dessa abertura

para o mundo, para o outro, a diferença.

e eles, os pacientes internos do hospital? podemos imaginar

que eles ganham a possibilidade de viver essa experiência,

sustentada pela presença constante da artista, mediada

26

27

pela matéria, pelo barro. o barro, que é também elemento

da nossa natureza e possibilita contato táctil primitivo,

poro a poro, é matéria amorfa que resiste às nossas ações,

que se deixa marcar por seus gestos, inscrições. eles, no

convite à criação com essa matéria que resiste, produzem

algo que permanece e que vai se tornar outra coisa, que se

materializa, ganha realidade, contorno, limite. podemos

imaginar que aí também se promove uma expansão do eu,

um crescimento, partilha, ida ao mundo.

Nessa perspectiva, a prática artística vivida de modo

articulado a essa modalidade de cuidado segue bem no

caminho do que afirmam Elizabeth Lima e Peter Pelbart:

Julia Coutinho Costa liMa é psicóloga,

atualmente é sócia do círculo psicanalítico de

pernambuco e realiza pesquisa como doutoranda em

psicologia na Universidade Federal de pernambuco.

Cada sujeito, ao construir um objeto, pintar uma tela, cantar uma música, faz algo mais que

expor a si mesmo e o próprio sofrimento. Ele realiza um fato de cultura. Quanto aos sujeitos

criadores — que produzem suas invenções em maior ou menor proximidade com os abismos da

loucura —, eles continuam agarrados por um conjunto de impossibilidades, escavando saídas,

criando possibilidades, buscando construir linhas de fuga que, por fim, servem para todos nós1.

essa questão da abertura para o mundo, da relação com a

alteridade, que já vem sendo trazida por christina em outros

trabalhos, mas que esta exposição tão fortemente coloca, é

vital para pensarmos nosso lugar e nossa posição em tempos

difíceis de individualidade contemporânea, de intensificação

de narcisismos e consumismo a expensas do tempo e da

experiência propriamente humanos, visto que, enquanto

humanos, nos constituímos a partir dessa relação com outros,

num mundo que nos acolhe. imersos no meio de outros,

cuidadores, parceiros, pares, é que aprendemos a viver e a

ser como somos. com os outros é que nos reconhecemos e

construímos. assim, quando saímos um pouco fora de nós

mesmos é que sentimos que vale a pena. então vale muito a

pena, porque christina é uma e muitas; é ela e é o mundo nela,

porque nós somos uns e somos muitos em nós.

1. lima, e. & pelbart, p.

arte, clínica e loucura:

um território em Mutação.

História, Ciências, Saúde –

Manguinhos. rio de Janeiro,

vol. 14, n. 3, jul.–set. 2007,

p. 732.

Meus Eustécnica mista sobre papel, 2012

31

a matéria-prima da arte de christina Machado é seu próprio rosto e a

maleabilidade do barro. chris entrega ao participante de sua proposta um

modelo de barro de seu próprio rosto para ser transformado. Quando colocados

entre ela e o outro, o rosto e a maleabilidade passam a trazer em si a metáfora de

uma questão central da vida contemporânea: a identidade.

Na última cena de Luzes da Cidade, chaplin utiliza o close-up (técnica criada

por D. W. Griffith) do rosto da atriz Virgínia Cherril para revelar uma sutil trama

de emoções contraditórias: gratidão e decepção, amor e repulsa. e é através

da imagem desse rosto maleável que chaplin traz a modernidade para

o cinema. como um quadro pintado por Matisse, o rosto de Virgínia cherril

não é definido, não está pronto, organizado. As múltiplas emoções que se

justapõem e que contrastam como cores não se organizam na espacialidade

formada por olhos, boca, nariz, sobrancelhas. o rosto não é uma construção

orgânica: é pura sensação.

depoimento 1 — observei chris na praça cara Nova, em paracambi (rJ), durante

o Projeto Cinema na Praça, oferecer ao participante a possibilidade de viver a

experiência de sua proposta artística em sua total radicalidade: a da máscara

moldada no corpo físico, transformada em objeto vazio, sem poder, distante

da percepção sensível que figura o rosto, passa para o toque das mãos sobre a

superficialidade do objeto e lentamente o completa, reconhece como parte de

sua experiência, de seu corpo, de sua verdade — processo que constrói como

um olhar lânguido que busca no real o senso estético da vida. a proposta da

artista me recorda uma frase que ouvi de um paciente com experiência psicótica.

durante o carnaval, ele foi convidado para sair em um bloco de rua em ipanema,

olhava curioso para os rostos enfeitados, para os mascarados, para os casais

se beijando e dizia que eram alegorias. No retorno para casa, ao entrarmos no

ônibus urbano, deparou-se com uma adolescente belíssima, fez gesto de quem

iria tocar o rosto dela, mas recuou e disse-me: “a beleza, quando é verdadeira,

podemos tocar, porque ela não desmancha”.

UM ROSTO qUAlqUERgina ferreira e lula wanderley

pp. 28–30 e 35Estância, Sua Casa

intervenções de convidados em objetos

de cerâmica, 2011

32

Quando olhamos pela primeira vez a multiplicação

incessante do rosto de christina na mesma máscara

de barro maleável, sentimos um instante de estranhamento:

a certeza, momentânea, de ter encontrado alguém que

sabe que a coisa com a qual vive e expressa o tempo todo

sua alma não está ali em sua arte. christina exercita a mais

extraordinária sensação de libertação: a realização do desejo

de todo homem de se sentir liberado, momentaneamente,

de sua da própria subjetividade.

a imagem especular vazia e seriada torna-se um objeto

aparentemente insignificante. Todavia, sua imobilidade

não se confunde, como numa máscara mortuária, com

solidez. tem o frescor e a fertilidade da argila. o barro

é o mais antigo material de trabalho do homem. dócil, não

oferecendo resistência ao toque das mãos, o barro é capaz

de se oferecer, de maneira instantânea, à expressão da

subjetividade humana. da extração do barro ao preparo

da argila, da construção do objeto ao cozimento que o

solidifica, o toque do barro tem uma sensorialidade e

expressão corporal que compõem sua poética. com a

maleabilidade do barro, o vazio da imagem especular

seriada de chris ganha uma dimensão de tempo e é

entregue para ser trabalhada pela subjetividade do outro.

o tema de um vazio primordial na relação dialética

entre a ausência absoluta e a potencialidade total está

subjacente à proposta de chris, como também esteve

sempre presente na arte brasileira a partir da metade

do século passado, notadamente em Mira shendel e

lygia clark. a atitude de esvaziar/apagar/negar traz, em

si mesma, a potencialidade de preencher/afirmar/criar.

chris, ao escolher um público para sua proposta, direciona

esse tema do vazio a múltiplas questões: filosóficas,

psicológicas e políticas.

33

depoimento 2 — Quando chris, numa sala do hospital

da tamarineira, me ofereceu seu rosto em barro e insistiu

para que eu me apropriasse daquele objeto e construísse

algo, logo lembrei-me de Marcos. alto e magro, tinha cerca

de 70 anos quando o conheci. estava sentado no batente

de uma porta que nos levava ao Museu de imagens do

inconsciente. perguntei-lhe quem era, como se chamava.

indignado, respondeu: “como não conhecer o homem que

atravessou a cordilheira dos andes; que primeiro chegou ao

polo Norte; que percorreu toda a extensão do amazonas?”.

perguntei-lhe, para provocá-lo, por que, sendo assim tão

importante, estava internado em um hospício. Marcos,

pausadamente, respondeu: “Vim oferecer meu rosto aos

médicos para que o transformem com seus remédios e seus

neurotransmissores. Não é isso que eles fazem?”.

o rosto maleável, pronto para a ação do outro,

é a imagem que nos sugere a vivência da loucura quando

aprisionada/ressignificada pela psiquiatria. A doença

mental impele os seres a mergulharem nessas regiões onde

o princípio de individuação deixa de existir. eles não se

confundem com o mundo porque com ele se assemelham,

mas porque perderam a individuação. experiência

radical de alteridade que, como nos lembra tânia rivera,

materializa a dolorosa afirmação de Arthur Rimbaud de que

“eu é um outro”. perigoso estado do ser, experimentado

com estranheza ou angústia, em que o sonho, a poética

liberdade, transforma-se em pesadelo e prisão. cabe a

nós esperar que os médicos, com seus rótulos, disciplinas,

indústria farmacêutica, electrochoques, crença em genes

— ou com qualquer coisa — imprimam um rosto nessa

coisa inominável que é simultaneamente a face e seu

apagar, aplacando assim a nossa angústia ao estabelecer

definitivamente claras diferenças entre a sanidade/nós e

a loucura/eles. chris entrega aos loucos dos hospícios seu

Estância, Sua Casaintervenções do público em modelagem na argila, 2011

34

Gina Ferreira é psicóloga especialista em

psiquiatria social – escola Nacional de saúde pública,

mestre em psicologia social pela UerJ, doutoranda

em psicologia social na Universidade de Barcelona.

Na década de 1980 coordenou a equipe técnica da casa

das palmeiras a convite de Nise da siveira no rio de

Janeiro. trabalhou com lygia clark , especializando-se

no método da estruturação do self. participou

do projeto para a organização do acervo de lygia

clark (MaM/rJ), criando o glossário de casos clínicos

dessa artista. atuou com r. laing na comunidade

para psicóticos/ londres. em 1996 coordenou a saúde

Mental – angra e paraty/rJ, quando obteve o prêmio

internacional de maior originalidade em programa em

saúde Mental. trabalhou convidada pela Fundação

antonio tápies na exposição sobre lygia clark –

Barcelona, 2004. participou como convida do evento

cultural Berlin intransit, monitorando laboratório de

sensibilização com os artistas integrantes do evento.

lula WanDerley no recife, colaborou como

artista gráfico em jornais e revistas, fez experiência

com poesia visual e participou da cena musical do

recife da década de 1970, colaborando com os

grupos Nuvem 33 e ave sangria. No rio, desde 1976,

participou, a convite de Nise da silveira e Mário

pedrosa, do projeto de reformulação do Museu de

imagens do inconsciente. colaborou com lygia clark

na pesquisa sobre arte/corpo/psiquismo. participou,

a convite da Fundação tápies de Barcelona, da

retrospectiva europeia da obra de lygia clark, como

curador de sua fase sensorial. participou de várias

mostras coletivas e individuais. entre suas publicações,

destaca-se Retratos: Todo Artista é Impostor, em 2011.

rosto maleável para expressarem a busca inadiável de suas

semelhanças com o mundo.

se, diante de um espelho mágico, o homem pudesse apagar

da face aquilo que não fosse característica genuína de sua

raça, ficaria com o rosto vazio. As muitas etnias que hoje

compõem nosso rosto não nos fragmentam: trazem uma

multiplicidade de interações com a diferença. descobrimos

também, diante desse espelho, que, se de perto ninguém

é normal, como nos lembra caetano, de perto também

ninguém é totalmente louco ou louco em todos os

instantes. em nosso rosto, a sanidade e a loucura não são

opostos simétricos, quando muito formam polígonos de

traços diversos.

chris, com o trabalho Minha Cabeça, Nossa Natureza, revela

que esse espelho que apaga as diferenças e cria território

livre para acolher corpos, afetos e linguagens é a arte.

35

36

38

contar esta história é como abrir uma caixinha onde tudo

pode ter... sentido? pois é, estou no meu ateliê residência,

no hospital da tamarineira, e surge a oportunidade de fazer

um trabalho com os pacientes no espaço público, com outros

passantes da urbe recifense. era só uma semana, e como

fazer para criar um elo entre mundos tão distantes? Neste

momento, não sei por que, pensei em usar minha cabeça

como elemento condutor do trabalho, e se tornava claro

que todos sabiam que se tratava de uma cabeça de argila,

resgatada do trabalho Tempo de Carne e Osso, aquele em que

desmancho todo o corpo no mar e fico só com a essência.

produzi sessenta cabeças e convidei pacientes, amigos

artistas, alunos, usuários dos centros de atenção psicossocial

(caps) e o público em geral para fazerem minha cabeça,

e assim foi.

durante a ação (em processo), começaram a surgir novos

personagens, entendam, a partir da minha própria imagem.

Fui me identificando com um olhar, com um semblante,

e às vezes até me vendo neles (nas cabeças) ou me sentindo

literalmente viva na própria ação do momento

na modelagem, e as coisas foram ficando inesperadas.

passaram-se os anos, e chegou a oportunidade de expor

tais objetos. percebi que alguns personagens passaram

a fazer parte da minha vida e foi nesse momento de

continuidade da obra que criei a série dos autorretratos...

Fácil seria só desenhar ou pintar, escolhendo algumas das

sessenta cabeças. contudo, ainda sentia falta de alguma

coisa... era como se essas máscaras não tivessem alma,

não era suficiente para mim trabalhar só a releitura do

christina machadoRElATO dE UMA ExpERIENCIA UNICA

39

objeto. Nesse instante de angústia, encontro na fotografia

a solução, emprestando minha imagem para ocupar esse

universo interior. Ótimo. tratei as imagens e as transferi

para o papel e vi que quatro cabeças eram realmente as

escolhidas — duas tratavam de extintos animais, e as outras

permeavam a intuição. sei lá. Uma relação mais humana.

daí resolvi começar por elas, pois estavam mais próximas

da minha realidade... escolho uma cabeça masculina e outra

feminina e, nesse jogo de identificações, lembrando de

cenas vividas, percebo que eu não entrei nelas, mas foram

elas que entraram em mim!

Meus Eustécnica mista sobre papel, 2012

pp. 36–37Minha Cabeça, Nossa Naturezaintervenções de convidados em objetos de cerâmica, 2009

46

52

Minha Cabeça, Nossa NaturezaVídeo do registro poético da ação, 2009imagens e edição de Fernando peres

61

62

nota biográfica

christina Machado, nascida em 1957 em Belém (pará) e radicada

no recife (1961), é artista plástica desde de 1976, quando iniciou sua

formação em ateliês de desenho e pintura. Formou-se em educação

artística na Universidade Federal de pernambuco — licenciatura

em artes plásticas (1979). conhecendo a cerâmica na década de

1980 passa a dedicar-se exclusivamente ao desenvolvimento de

técnicas de modelagem, desenho e pintura próprias dessa matéria,

sendo marcado pela criação de objetos, esculturas e painéis para

interiores e exteriores onde a cerâmica integra-se também a projetos

arquitetônicos. paralelamente à produção artística, conhecimentos

adquiridos na licenciatura, junto à pesquisa com a cerâmica, fizeram

com que a artista desenvolvesse, durante esses anos, formas

alternativas de trabalhar com o público em oficinas e cursos. Desde

1998 realiza pesquisas experimentais com a argila e suas diversas

possibilidades enquanto matéria estrutural da arte, enquanto

possibilidades do pigmento, como sua própria natureza (origens,

texturas e tonalidades diversas), fazendo com que a argila participe

como elemento essencial de todos os estágios de composição

da obra, resultando em novas técnicas de uso, assim como novas

experiências de trabalho no terreno da arte contemporânea.

em 2003, participa da Bolsa de pesquisa do 45º Salão de Artes Plásticas

de Pernambuco (grupo corgo) viajando pelo interior de pernambuco e

conhecendo cidades, indústrias, olarias e pessoas que se relacionam

com a produção de cerâmica em geral. a argila torna-se uma aliada na

relação simbólica com acontecimentos da vida, abrindo fissuras para

que outros materiais surjam como forma de expressão, passando a ser,

a natureza humana, o foco principal de sua produção. lança mão de

novos suportes e propostas variadas para trabalhar temáticas ligadas

ao corpo e ao universo feminino, problematiza a relação com sua

própria intimidade e, num desdobramento de experiências, faz com

que o público venha posteriormente participar também da obra.

principais exposições individuais e coletivas

2012 Tradição Tradução, coletiva; Matriz, painel cerâmico, Galeria de artes Visuais do centro de artesanato de pernambuco, recife-pe; Minha Cabeça, Nossa Natureza, individual, Galeria Janete costa, parque d. lindu, recife-pe.

2011 cinema na praça/intervenção na cultura – Estância, Sua Casa, vivência com a intervenção do público em praça pública, instalação, petrobras/secretaria de saúde da cidade do recife, paracambi-rJ.

2010 Artérias Vivas, video-instalação, sala hélio oiticica, Mamam, recife-pe; carlos pena Filho – 50 anos de Memória, coletiva; E Eu Fui Ficando Assim, um Arrecife, fotografia e instalação, Espaço Cultural santander, recife-pe; Artérias Sem Pé Nem Cabeça, intervenção urbana, instalação e ação com intervenção de usuários do hospital psiquiátrico Ulysses pernambucano (tamarineira), pátio de são pedro, recife-pe.

2009 Loucos pela Diversidade, premiação do projeto Salões de Beleza, em parceria com o artista luiz santos, Minc, hospital psiquiátrico Ulysses pernambucano (tamarineira), recife-pe; Minha Cabeça, Nossa Natureza, vivência com a intervenção de pacientes internos, dos caps, artistas e público em geral, instalação, hospital psiquiátrico Ulysses pernambucano (tamarineira) – Semana de Arte no Recife (spa-pe).

2008 Luciano Pinheiro, Christina Machado e Rinaldo Silva, coletiva, Galeria dumaresq recife-pe.

2007 Artérias, individual, objetos, fotografia, instalação, Museu Murilo la Greca, Semana de Arte no Recife (spa-pe); 8º Bienal Naifs do

63

Brasil – Resistência, Inexistência, instalação, piracicaba-sp.

2006 Artérias II, intervenção urbana e ação performática, Semana de Arte no Recife (spa-pe); Artérias I, intervenção urbana e ação performática, Festival de Inverno de Garanhuns-pe.

2005–2006 Do Barro ao Barro, coletiva, ensaio fotográfico/instalação Mulheres são Sensuais Dentro e Fora de Casa, pinacoteca do Museu do estado, recife/pe; Territórios Transitórios, coletiva, vídeo arte Tempo de Carne e Osso, palais de la porte dorée, paris, França.

2005 projeto Engenho do Imaginário, coletiva, land art, Invocação, eco Festival/ serra Negra, Bezerros-pe (Fundarpe); Sem Pé Nem Cabeça, instalação e ação com intervenção de usuários dos caps, hospital psquiátrico Ulysses pernambucano (tamarineira), Semana de Arte no Recife (spa-pe); A Pele É o Que Separa o Corpo do Mundo, individual, Galeria amparo 60, recife-pe; Resistência, Inexistência | Oficina do Ferro, coletiva, objetos, lei de incentivo municipal, atelier Balneário de Água Fria, recife-pe; 45º Salão de Artes Plásticas, coletiva, instalação e ensaio fotográfico, Mulheres são Sensuais Dentro e Fora de Casa, Museu de arte contemporânea (Mac),olinda-pe.

2004 Tempo de Carne e Osso, individual, vídeo arte/instalação, observatório cultural Torre Malakoff, Recife-PE (Funcultura).

2002 Em Sete Tempos, coletiva, Seis Momentos de um Coração, pintura, Galeria amparo 60, recife-pe; Corgo – cerâmica contemporânea de pernambuco, coletiva, Impressões Sobre Minha Vagina, instalação, Observatório Cultural Torre Malakoff, recife-pe (Funcultura).

2001 Salão de Arte do Pará – Impressões Sobre Minha Vagina, instalação, Fundação rômulo Maiorane, Belém-pa.

2000 Salão de Arte do Pará – pintura, Fundação rômulo Maiorane, Belém-pa; Cerâmica Brasileira: A Construção de uma Linguagem – objeto, centro Brasileiro Britânico (cBB), são paulo-sp; Gambiarra – Sistema Móvel de Sensações Rústicas, coletiva, instalação, Galeria amparo 60, recife-pe; Gambiarra – Sistema Móvel de Sensações Rústicas, coletiva, instalação, Galeria debret, paris, França.

principais cursos ministrados, bolsas de pesquisa e publicações

2010 lançamento do catálogo Fio do Tempo, 15 Anos de Trajetória, Mamam, recife-pe.

2009 expressão através da argila (curso de longa duração contínuo), ateliê christina Machado, recife-pe; curso de artes plásticas – cadeira: cerâmica i e ii (contratação),Faculdade integrada Barros de Melo (aeso), olinda-pe (2011); ateliê residência de cerâmica (duração contínua) hospital psiquiátrico Ulysses pernambucano (tamarineira), recife-pe.

2003 Bolsa de pesquisa para o 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco – projeto corgo, coletivo, Fundarpe, recife-pe.

contatos [email protected] christinamachado.blogspot.com http://issuu.com/zoludesign/docs/christina_machado

cUradoria

Joana d'arc de souza lima

criação christina Machado

prodUção christina Machado diogo todë

orGaNização do catÁloGo

Joana d'arc de souza lima

tex tos

antonio paulo rezende, Gina Ferreira, Julia coutinho e lula Wanderley

FotoGraFia dominique Berthé (exceto: pp. 22 e 24, Milena de andrade; pp. 32 e 33, christina Machado)

trataMeNto de iMaGeM

aurélio Velho

desiGN GrÁFico

zoludesign

reVisão de tex to

consultexto

proJeto expoGrÁFico, lUz e ceNoGraFia

diogo todë

coordeNação de MoNtaGeM ¨trema! | todë

eQUipe de MoNtaGeM

estevão Mendes e ivan amorim

assisteNte de MoNtaGeM

Fábio soares, Mozart Gomes e artur rocha

elaBoração de proJeto

aurora 21

aGradeciMeNtos

hospital psiquiátrico Ulysses pernambucano – tamarineira, centro de arte e terapia da tamarineira, zoludesign, Funcultura, secretaria de cultura da cidade do recife, diogo todë, luiz santos, Joana d'arc, Julia coutinho, lilia dobbin, antonio paulo rezende, Gina Ferreira, lula Wanderley, cristina Mendonça e as estagiárias: laura, rebeca, thais e rafaela. Vicente Machado (Meu eu), Marcelo Machado, Júlia Meira e Malu Machado. aos amigos artistas que participaram desta aventura. "se eu não te amasse, não estaria vivo" (pacheco) – é esse meu sentimento, que pulsa, quando penso no processo que vivi junto a todos que fizeram parte desta experiência.

��������������