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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ 1 EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ____ª VARA DE FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE TOLEDO ESTADO DO PARANÁ. O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ, por meio de seu órgão de execução, em exercício na 2ª e 6ª Promotorias de Justiça desta Comarca, com base nos documentos em anexo e com fundamento nos artigos 5º, inciso XXIII, 127, 129 e 186, inciso II, todas da Constituição da República de 1988; artigo 1.228, § 1 o , do Código Civil; artigo 7 o , §§ 1 o e 2 o , do Código Florestal; e artigo 14, § 1º, da Lei 6.938/1981, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA em defesa das relações de consumo, com requerimento urgente de liminar em face de MARTINS & AROLDI LTDA. (“Primeiro Requerido”), pessoa jurídica de direito privado, organizada sob a forma de sociedade limitada, inscrita no CNPJ sob o n. 79.756.524/0001-67, com endereço na Rua Guarani, n. 1.523, em Toledo/PR; MARCELINO CONSTRUÇÃO E ADMINISTRAÇÃO LTDA. (“Segundo Requerido”), pessoa jurídica de direito privado, organizada sob a forma de sociedade limitada, inscrita no CNPJ sob o n. 02.170.605/0001-56, com endereço na Rua Visconde Taunay, n. 1.241-A, em Toledo/PR; e MUNICÍPIO DE TOLEDO (“Terceiro Requerido”), pessoa jurídica de direito público interno, inscrito no CNPJ sob n.º 76.205.806/0001-88, com sede na Rua Raimundo Leonardi, n. 1586, em Toledo/PR, neste ato representado pelo Prefeito Municipal, com base nos fatos e fundamentos a seguir expostos.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ · transporte de féretros e demais atividades correlatas, nos termos da Lei Federal nº 8.987/95 e da Lei Municipal nº 1.623/91. MINISTÉRIO

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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ

1

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ____ª VARA DE

FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE TOLEDO – ESTADO DO PARANÁ.

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ, por meio de

seu órgão de execução, em exercício na 2ª e 6ª Promotorias de Justiça desta

Comarca, com base nos documentos em anexo e com fundamento nos artigos 5º,

inciso XXIII, 127, 129 e 186, inciso II, todas da Constituição da República de 1988;

artigo 1.228, § 1o, do Código Civil; artigo 7o, §§ 1o e 2o, do Código Florestal; e artigo 14,

§ 1º, da Lei 6.938/1981, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, propor a

presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

em defesa das relações de consumo,

com requerimento urgente de liminar

em face de MARTINS & AROLDI LTDA. (“Primeiro Requerido”), pessoa jurídica de

direito privado, organizada sob a forma de sociedade limitada, inscrita no CNPJ sob o

n. 79.756.524/0001-67, com endereço na Rua Guarani, n. 1.523, em Toledo/PR;

MARCELINO CONSTRUÇÃO E ADMINISTRAÇÃO LTDA. (“Segundo Requerido”),

pessoa jurídica de direito privado, organizada sob a forma de sociedade limitada,

inscrita no CNPJ sob o n. 02.170.605/0001-56, com endereço na Rua Visconde

Taunay, n. 1.241-A, em Toledo/PR; e MUNICÍPIO DE TOLEDO (“Terceiro Requerido”),

pessoa jurídica de direito público interno, inscrito no CNPJ sob n.º 76.205.806/0001-88,

com sede na Rua Raimundo Leonardi, n. 1586, em Toledo/PR, neste ato representado

pelo Prefeito Municipal, com base nos fatos e fundamentos a seguir expostos.

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I – DO CASO DOS AUTOS –

No ano de 2003, a Prefeitura Municipal de Toledo publicou o Edital de

Licitação n. 006, na modalidade concorrência, cujo objeto era a outorga de concessão

para exploração dos serviços funerários do Município de Toledo. Os serviços

outorgados compreendiam a venda de ataúdes, transporte de cadáveres, uso e

conservação de capela mortuária e central funerária, aluguel de altares, locação de

banqueta, castiçais, velas e paramentos, preparação de cadáveres, confecção de

coroas de flores, ornamentos e obtenção de certidão de óbito (edital em anexo).

A concessão da exploração dos serviços funerários do Município de

Toledo foi regulamentada pela Lei Municipal n. 913, de 23 de setembro de 1977 (lei em

anexo), que dispõe sobre o serviço funerário e o sepultamento de mortos; pela Lei

Municipal “R” n. 85, de 18 de dezembro de 2002, que autoriza o Município de Toledo a

efetuar a outorga da concessão de serviço público (lei em anexo); e pelo Decreto

Municipal n. 268, de 06 de maio de 2003, com as alterações introduzidas pelo Decreto

Municipal n. 203, de 12 de novembro de 2009, que aprova o regulamento dos serviços

funerários do Município de Toledo (decretos em anexo).

Com base nessa legislação e por meio do procedimento licitatório

mencionado, a exploração dos serviços funerários do Município de Toledo foi

outorgada, pelo prazo de 10 (dez) anos, com possibilidade de renovação por mais 05

(cinco) anos, para as sociedades empresárias Martins & Aroldi Ltda. e Marcelino

Construção E Administração Ltda., ora requeridos, celebrando-se os Contratos

Administrativos n. 008/2004 e 009/2004, com seus respectivos aditivos (todos em

anexo).

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No começo do ano de 2014, com a proximidade do vencimento dos

contratos de concessão, as sociedades empresárias Martins & Aroldi Ltda. e

Marcelino Construção e Administração Ltda., requereram ao Chefe do Poder

Executivo Municipal a renovação dos contratos administrativos por mais 05 (cinco)

anos (requerimentos em anexo), ao que foram atendidas pelo Município de Toledo,

representado pelo Prefeito Municipal Luís Adalberto Beto Lunitti Pagnussatt, o qual

renovou os contratos (documentos em anexo).

A situação chamou a atenção no começo deste ano, pois, havia notícia

de várias irregularidades cometidas pelas concessionárias dos serviços funerários, bem

como abusos praticados por elas, ao longo desses 10 (dez) anos. A título de exemplo,

cite-se o caso da Sra. Cleci Dutra de Barros, que procurou o Ministério Público em 07

de março de 2014 (documentos em anexo).

Nesta oportunidade, a Sra. Cleci Dutra de Barros informou que seu

filho falecera no dia 25 de fevereiro de 2014, em acidente automobilístico, e que,

depois que o corpo dele fora liberado pelo IML, foi imediatamente encaminhado para a

funerária administrada pela Marcelino Construção e Administração Ltda., sem que a

ela coubesse exercer o seu direito constitucional de livre escolha. Na funerária, a Sra.

Cleci Dutra de Barros fora induzida a assinar diversos documentos e recebeu cheque

no valor de R$ 6.816,00, referente a suposto adiantamento de DPVAT. Posteriormente,

tomou conhecimento que deveria receber R$ 13.500,00 (treze mil e quinhentos reais),

mas que a diferença fora embolsada pela funerária e por seu advogado.

Além disso, a Sra. Cleci Dutra de Barros informou que tem renda

mensal de R$ 470,00 (quatrocentos e setenta reais) e que, por isso, faria jus a funeral

gratuito, como de fato o teria, mas não ocorreu por ato praticado pela concessionária

de serviço público.

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O caso acima indicado soma-se a tantos outros de abusos praticados

pelas concessionárias de serviços funerários do Município de Toledo (documentos em

anexo comprovando algumas situações de mesma natureza, apenas a título de

exemplo), sendo certo que, seu Prefeito Municipal, no momento oportuno que teve para

não renovar os serviços e buscar adequação deles, deixou a sociedade toledense a

própria sorte.

Não obstante, um dos pontos fulcrais dos problemas enfrentados pelos

consumidores de serviços funerários do Município de Toledo – e que constituem objeto

desta demanda – é o estabelecimento de sistema de rodízio entre elas, sem qualquer

amparo legal e constitucional, o que foi feito, simplesmente, por meio de decreto.

O estabelecimento do sistema de rodízio por meio de decreto, sem

amparo legal, além de padecer de vício formal, também representou afronta à ordem

econômica e à defesa do consumidor, na medida em que limitou ilegalmente1 a livre

concorrência e, por conseguinte, o direito do consumidor de escolher os serviços de

acordo com a qualidade e o preço, sem que a ele seja imposto o serviço prestado por

determinada concessionária, como se passará a expor.

1 Sobre a questão da ilegalidade e inconstitucionalidade de decretos do Poder Executivo, na ADIN n. 2.387-0 – DF,

julgada pelo STF, o relator, Ministro Marco Aurélio, afirmou que “é firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal

no sentido de que a questão relativa ao decreto que, a pretexto de regulamentar determinada lei, extrapola o seu

âmbito de incidência, é tema que se situa no plano da legalidade, e não no da constitucionalidade”. – destacou-se.

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II – DA VIOLAÇÃO DA LIVRE CONCORRÊNCIA E DOS DIREITOS DO

CONSUMIDOR POR MEIO DE ILEGAL RODÍZIO DE SERVIÇOS FUNERÁRIOS

ESTABELECIDO POR MEIO DE DECRETO MUNICIPAL –

O Município de Toledo criou sistema de rodízio, por meio de decreto

municipal, entre as concessionárias de atividades funerárias, de modo que elas se

revezassem no atendimento dos consumidores que buscam seus serviços.

A cada morte que acontece no Município de Toledo, os parentes do de

cujus são encaminhados, de acordo com esse sistema, para uma determinada

concessionária, sem que possam escolher aquela que melhor lhes atenda ou seja de

sua preferência.

O sistema de rodízio encontra-se previsto no artigo 3º, caput e §§ 1º a

3º e 8º a 11º, do artigo 7º, inciso V, e do artigo 41, caput e §§ 1º a 6º, todos do Decreto

Municipal n. 268, de 06 de maio de 2003, com as alterações introduzidas pelo Decreto

Municipal n. 203, de 12 de novembro de 2009. Destaque-se, à guisa de exemplo, a

redação artigo 3º, caput e § 2º:

“Artigo 3º - Os serviços funerários no Município de Toledo serão prestados por duas concessionárias, após encaminhamento efetuado pela Central de Atendimento e Manutenção do Serviço Funerário do Município (CAMSF). § 1º - As instituições hospitalares e o Instituo Médico Legal instalados no Município deverão apresentar aos familiares ou representantes legais do falecido a Central de Atendimento e Manutenção do Serviço Funerário, para as informações e procedimentos regulamentares pertinentes. § 2º - A Central de Atendimento e Manutenção do Serviço Funerário a que se refere o caput deste artigo será responsável pela prestação aos interessados de todas as informações relacionadas aos cemitérios, serviços funerários, grupos de produtos e serviços e respectivas tabelas de preços, rodízio entre as concessionárias e demais informações afins.” – destacou-se.

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Malgrado a previsão do rodízio no decreto municipal, conforme acima

transcrito, a Lei Municipal n. 913, de 23 de setembro de 1977 (lei em anexo), que

dispõe sobre o serviço funerário e o sepultamento de mortos; e a Lei Municipal “R” n.

85, de 18 de dezembro de 2002, que autoriza o Município de Toledo a efetuar a

outorga da concessão de serviço público (lei em anexo), não trazem qualquer

previsão nesse sentido.

II.1 – Da ausência de previsão legal do sistema de rodízio – Criação de direitos e

obrigações sem previsão legal pelo Chefe do Poder Executivo Municipal –

Usurpação de função legislativa –

A Lei Municipal n. 913, de 23 de setembro de 1977, em seu artigo 7º,

estabelece que, o Município de Toledo deverá respeitar o direito comercial de livre

concorrência (que é justamente a situação oposta a de um sistema de rodízio), quando

prestar o serviço funerário por conta própria ou, ainda, no regime de concessão:

“Art. 7º - Quando a Prefeitura julgar conveniente, nos termos do artigo 3º desta Lei, poderá instalar serviço funerário por conta do Município, para exploração direta ou por concessão, respeitado, porém, o direito comercial de livre concorrência e obedecidas as exigências legais de exploração oficial dos serviços de utilidade pública.” – destacou-se.

Por sua vez, a Lei Municipal “R” n. 85, de 18 de dezembro de 2002,

não prevê qualquer situação de rodízio entre as concessionárias de serviços funerários.

Estabelece apenas que o serviço será concedido a duas empresas, conforme previsto

no artigo 2º da referida norma, in verbis:

“Artigo 2º – Fica o Município de Toledo autorizado a efetuar a outorga da concessão do serviço público de indústria e comércio de artigos funerários, transporte de féretros e demais atividades correlatas, nos termos da Lei Federal nº 8.987/95 e da Lei Municipal nº 1.623/91.

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Parágrafo único – O serviço público de que trata o caput deste artigo será concedido a duas empresas, por um prazo de até dez anos, podendo ser prorrogado por até cinco anos, de acordo com as condições de participação das concessionárias no cumprimento do disposto nos incisos V e VI do caput do artigo seguinte.”

Veja-se, portanto, Excelência, ao se editar o Decreto Municipal n. 268,

de 06 de maio de 2003, a Prefeitura Municipal de Toledo foi além do estabelecido na

legislação supra mencionada, criando um sistema de rodízio e, assim, extrapolando em

muito seu poder regulador. Com a criação desse sistema, a Prefeitura Municipal

também contrariou as disposições do artigo 7º da Lei Municipal n. 913, de 23 de

setembro de 19772 e artigo 15 da Lei Municipal n. 1.623, de 1º de abril de 19913, pois

violou a necessidade de se respeitar a livre concorrência e combater o abuso do poder

econômico, por meio de dominação de mercado.

Com efeito, o Decreto Municipal n. 268, de 06 de maio de 2003, trata-

se de espécie de manifestação do dever-poder regulamentar do Poder Executivo. Por

meio da edição de um ato normativo regulamentador, o Chefe do Poder Executivo

busca “produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução

de lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública”.4

2 “Artigo 7º - Quando a Prefeitura julgar conveniente, nos termos do artigo 3º desta Lei, poderá instalar serviço

funerário por conta do Município, para exploração direta ou por concessão, respeitado, porém, o direito comercial

de livre concorrência e obedecidas as exigências legais de exploração oficial dos serviços de utilidade pública.” –

destacou-se.” 3 “Artigo 15 – O Município reprimirá, na concessão ou permissão de serviços públicos, qualquer forma de

abuso do poder econômico, principalmente as que visem à dominação do mercado, à exploração monopolística e o

aumento abusivo do lucro.” – destacou-se. 4 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editores,

2010, p. 343.

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8

O ato regulamentador emanado do Poder Executivo caracteriza-se por

ser “estritamente subordinado, isto é, meramente subalterno e, ademais, dependente

de lei”.5 Além disso, o ato normativo proveniente da Administração Pública,

diferentemente da lei, não pode inovar de modo inicial na ordem jurídica. Apenas a lei

pode criar disposição regulamentar nova. O regulamento apenas se submete a ela.

“Nisto se revela que a função regulamentar [pelo Poder Executivo], no Brasil, cinge-se

exclusivamente à produção destes atos normativos que sejam requeridos para ‘fiel

execução’ da lei”.6

No presente caso, conforme acima transcrito, verifica-se que o artigo

3º, caput e § 2º, do Decreto Municipal n. 268, de 06 de maio de 2003, inovou na ordem

jurídica municipal, ao criar um sistema de rodízio no Município de Toledo entre as

concessionárias de serviços funerários. As Leis Municipais que regulamentam a

matéria no âmbito local (leis em anexo), não trazem qualquer previsão de rodízio entre

elas. Pelo contrário, estabeleceu-se tão somente a concessão do serviço a duas

empresas, ou seja, duas prestadoras de serviços independentes que podem e devem

concorrer entre si.

Portanto, o Chefe do Poder Executivo Municipal de Toledo, em

usurpação da função legislativa, ao editar decreto que inovou na ordem jurídica local,

criando sistema de rodízio não previsto em lei, violou as disposições do artigo 2º da

Constituição da República de 1988, artigo 7º da Constituição do Estado do Paraná, e

artigo 2º da Lei Orgânica do Município de Toledo, os quais estabelecem a

independência e harmonia entre as Funções Executivas e Legislativas dos entes da

federação.

5 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2010, p. 343.

6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2010, p. 345.

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9

O princípio da legalidade também foi violado pelo Poder Executivo

Municipal ao se criar o sistema de rodízio por meio de decreto, princípio este que se

encontra consagrado no artigo 37, caput, da Constituição da República de 1988, e

artigo 27, caput, da Constituição do Estado do Paraná. Nesse sentido, todo ato de todo

agente público deve ser realizado nos termos da Lei. Na medida que, para o particular,

o que não é proibido é permitido; ao administrador, e à própria Administração, somente

é permitido fazer o que a lei expressamente autoriza, ou seja, o que não é permitido

pela lei é proibido.

Ao se estabelecer o sistema de rodízio por meio de decreto, o Chefe do

Poder Executivo Municipal, a um só tempo, (i) criou um dever para os moradores desta

cidade – de se submeterem à rotatividade entre as concessionárias –; (ii) limitou o

direito do consumidor de não ser submetido a métodos comerciais coercitivos ou

desleais, conforme previsão do artigo 6º, inciso IV, da Lei 8.078/19907 (Código de

Defesa do Consumidor); (iii) e, ainda, criou um direito para as concessionárias, não

previsto em lei, de não ter o sistema de rodízio violado, ou seja, de não permitir que

alguém escolha a funerária que irá prestar os serviços fúnebres.

O ato normativo apto a criar, extinguir ou alterar direitos e deveres no

ordenamento jurídico brasileiro é apenas a lei. O regulamento do Poder Executivo não

tem essa aptidão e se o faz, pratica ato de abuso de poder, conforme lições de Pontes

de Miranda, lembradas por Celso Antônio Bandeira de Mello, in verbis:

7 “Artigo 6º - São direitos básicos do consumidor:

[...]

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“Onde se estabelecem, altera ou extinguem direitos, não há regulamentos – há abuso do poder regulamentar, invasão de competência legislativa. O regulamento não é mais do que auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, mas sem que possa, com

tal desenvoltura, justificar-se e lograr que o elevem à categoria de lei”.8 –

destacou-se. m

A respeito do controle de legalidade de decretos, de acordo com o

doutrinador Oswaldo Luiz Palu, citando decisão do STF, estes atos normativos, quando

ultrapassam o âmbito de incidência da lei (ultra legem) ou contrariam suas disposições

(contra legem), devem ser julgados ilegais (e não inconstitucionais):

“Já decidiu a Corte: ‘Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão caracterizará, sempre, típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar, em consequência, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata. Eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que materialmente deve estar adstrito poderá configurar insubordinação executiva aos comandos da lei. Mesmo que a partir desse vício jurídico se possa vislumbrar, num desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação de inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada’ (ADin 996-DF, medida cautelar,

rel. Min. Celso de Mello, RTJ 158/54).” – destacou-se. 9

IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como

contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços; [...].” 8 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op.cit., 2010, p. 345.

9 PALU, Oswaldo Luiz. Controle de constitucionalidade: conceitos, sistemas e efeitos. 2. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, p. 203 e ss.

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11

Mas além de ter extrapolado a função de apenas dar execução à Lei

Municipal, o Decreto Municipal n. 268, de 06 de maio de 2003, que criou o sistema de

rodízio também contrariou a proteção à livre concorrência e à livre iniciativa, duas

diretrizes da proteção à ordem econômica, prevista, em dentre outros diplomas

normativos, no artigo 75 da Lei Orgânica do Município de Toledo.10

II.2 – Da violação à livre iniciativa e à livre concorrência praticada pelo Município

de Toledo ao instituir o rodízio entre as concessionárias de serviços funerários –

A Lei Orgânica do Município de Toledo estabelece em seu artigo 75 a

proteção da ordem econômica no âmbito municipal, com a finalidade de assegurar a

todos os cidadãos existência digna, em conformidade com os ditames da justiça social

e com fundamento no pressuposto da valorização do trabalho humano e a livre

iniciativa. O artigo 15 da Lei Municipal n. 1.623, de 1º de abril de 1991, também prevê o

dever de o Município de Toledo combater todas as formas de abuso do poder

econômico, especialmente, aquelas que levem à dominação de mercado:

“Artigo 15 – O Município reprimirá, na concessão ou permissão de serviços públicos, qualquer forma de abuso do poder econômico, principalmente as que visem à dominação do mercado, à exploração monopolística e o aumento abusivo do lucro.” – destacou-se.

De modo mais amplo e vinculativo ao Município de Toledo, a

Constituição da República de 1988, estabelece em seu artigo 170, caput, e incisos III,

IV e V, da Constituição da República de 198811, que a ordem econômica é orientada

10

“Artigo 75 - A ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos os cidadãos existência digna, conforme os

ditames da justiça social, com fundamento nos seguintes pressupostos:

I - valorização do trabalho humano;

II - livre iniciativa.” 11

“Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

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12

pelos princípios da liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da

propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.

Essas diretrizes encontram também encontram previsão no artigo 1o da Lei Federal n.

12.529/2011.

De acordo com Eros Roberto Grau, a expressão “ordem econômica”

possui três significados.

O primeiro deles apontado pelo autor é aquele utilizado para se referir

à parcela da ordem jurídica que constitui um sistema de regras e princípios12 voltado

para a regulamentação de determinadas situações em comum. Nesse sentido, ordem

econômica é o regime jurídico do fenômeno econômico. O segundo significado da

expressão é o de relação entre fenômenos econômicos e materiais, isto é, a relação da

economia com o “mundo do ser”. Trata-se de visão empírica da economia. E, por fim, o

terceiro significado da expressão é o conjunto de normas, de qualquer natureza (moral,

jurídica, religiosa, etc.), que incidem sobre os fatores econômicos.13

A Constituição da República de 1988 ao prever no caput a expressão

“ordem econômica” – a qual é reproduzida na Lei Orgânica do Município de Toledo –

utilizou-a tanto em seu significado normativo (de parcela da ordem jurídica, mundo do

dever ser) quanto no significado de relações entre os fenômenos econômicos (sentido

material, mundo do ser).14 Logo, a Constituição dita no artigo 170 os fundamentos e os

fins do fenômeno econômico, que deverá observar determinados princípios jurídico-

[…]

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;”. 12

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

p. 60. 13

GRAU, Eros Roberto. Op. cit., 2005. p. 67. 14

GRAU, Eros Roberto. Op. cit., 2005. p. 68-69.

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normativos, os quais passam a elencar em seus incisos e parágrafos, tudo como forma

de normatizar e tutelar o adequado funcionamento do mercado.

Dentre esses princípios jurídico-normativos, destaque-se a liberdade

de iniciativa, pois relevante para o presente caso.

De acordo com os ensinamentos de Fábio Ulhoa Coelho, a previsão

constitucional de proteção à livre iniciativa significa o reconhecimento de um direito de

titularidade de todos de explorarem atividades empresariais. Em decorrência disso,

surge o dever para a coletividade de respeitar esse direito constitucionalmente

consagrado e não criar embaraços ao seu exercício pleno. Essa imposição se dirige

assim contra o próprio Estado, que somente pode intervir sobre domínio econômico

dentro dos limites estabelecidos pela Constituição, e contra os particulares, que

devem respeitar certos limites legalmente impostos no exercício da empresa.

Em relação às imposições estabelecidas aos particulares para a

proteção da livre iniciativa, o mencionado jurista afirma que é possível subdividi-las em

dois grandes grupos: as normas atinentes (i) à concorrência desleal e (ii) às de

combate ao abuso do poder econômico. No primeiro caso, a proteção envolve

interesses preponderantemente particulares e, acrescente-se, individuais, ocorrendo a

repressão apenas em nível penal e civil.

No segundo caso, porém, como prevalece o interesse de toda a

coletividade, a repressão ocorre cumulativamente ou autonomamente em âmbito

administrativo, a cargo do Poder Público,15 mas não se limitando a este. Os legitimados

15

ULHOA COELHO, Fábio. Curso de direito comercial: direito de empresa. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1.

p. 189.

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privados à propositura de ação civil pública, concorrentemente, guardam interesse e

legitimidade na defesa de tais direitos, ex vi artigo 5o, inciso V, da Lei 7.347/85.16

O segundo princípio norteador da ordem econômica que também deve

ser ressaltado é o da livre concorrência, que pode ser extraído da própria liberdade

de iniciativa. Isso porque a liberdade de iniciativa permite que todos atuem na ordem

econômica sem restrições e, a partir daí, passem a disputar livremente os interesses

dos consumidores no mercado. Via de consequência, o traço marcante desse sistema

passa a ser a desigualdade entre os agentes econômicos.

Encontrando-se em livre concorrência, alguns agentes se tornarão

mais fortes e terão posição econômica superior à dos demais e delas poderão se

utilizar para cada vez mais concentrar o mercado. Por esse motivo que se previu a

necessidade de repressão ao abuso do poder econômico, quando este tiver por fim o

aumento arbitrário dos lucros, a infringência à livre concorrência e à livre iniciativa, o

exercício abusivo da posição dominante e a dominação de mercado relevante (artigo

36, inciso II, da Lei Federal n. 12.259/2011). Isso é o que se extrai de lição de Fábio

Ulhoa Coelho:

“O poder econômico, note-se, é um dado de fato inerente ao livre mercado. Se a organização da economia se pauta no liberdade de iniciativa e de competição, então os agentes econômicos são necessariamente desiguais, uns mais fortes que os outros. [...]. É apenas a repressão a certas modalidades de exercício do poder econômico que a lei pode contemplar, em obediência ao mandamento constitucional”.17

16

Artigo 5o. Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

[…]

V - a associação […].” 17

ULHOA COELHO, Fábio. Curso de direito comercial: direito de empresa. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 1.

p. 201

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15

No presente caso, o Decreto Municipal n. 268, de 06 de maio de 2003,

ao estabelecer o sistema de rodízio entre as concessionárias de serviços funerários,

violou a proteção à ordem econômica prevista no artigo 75 da Lei Orgânica do

Município de Toledo, no artigo 15 da Lei Municipal n. 1.623, de 1º de abril de 1991, na

Constituição do Estado do Paraná e na Constituição da República de 1988.

Ao constituir o sistema de rodízio por meio do decreto, o Ente Público

Municipal, que deveria combater e punir formas de violação da livre iniciativa e da livre

concorrência – que são diretrizes da ordem econômica, conforme acima exposto –, na

verdade, estabeleceu método comercial coercitivo e desleal, obrigando o consumidor a

contratar um serviço, sem respeitar sua autonomia e preferência.

Com a instituição de limitações à livre iniciativa e à livre concorrência, o

Município de Toledo também trouxe outras consequências negativas para os

consumidores. Garantida a prestação de serviço à reserva de mercado criada pelo

sistema de rodízio, as concessionárias de serviços públicos não precisam se preocupar

com a fixação de preços justos, dentro do teto fixado pelo Município de Toledo, e com a

qualidade dos serviços, pois, de qualquer maneira, terão “direito” a 50% dos

consumidores locais.

A violação da ordem econômica, especialmente, de sua diretriz da livre

concorrência, nesses casos, é tão patente, que o Tribunal de Justiça do Estado de

Santa Catarina julgou procedente ação direta de inconstitucionalidade, para declarar a

inconstitucionalidade de artigos de Lei do Município de Florianópolis que trazia

semelhante disposição à do decreto ora impugnado. Veja-se:

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16

“MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO DEFINITIVO. INCONSTITUCIONALIDADE. LEI QUE INSTITUI SISTEMA DE PLANTÃO EM RODÍZIO PARA ATENDIMENTO DE ÓBITOS. VÍCIO DE INICIATIVA E AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DA DEFESA DO CONSUMIDOR E DA LIVRE CONCORRÊNCIA. PROCEDÊNCIA DA ACTIO.” (TJSC. ADI n. 2007.038168-8. Relator: Desembargador Irineu João da Silva. Julgado em 03/11/2010). – destacou-se.

Do voto do Desembargador Relator, pode-se destacar o seguinte

trecho, pois relevante para o deslinde do presente caso:

“3. Trata-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade, por meio da qual se buscam excluir das normas locais a Lei n. 6.923, de 23 de março de 2006, que dispôs sobre a criação da "Central de Óbitos", que, segundo os requerentes, ao determinar o revezamento das empresas concessionárias na prestação de serviços funerários, acabou por limitar e reprimir o direito de escolha dos consumidores, violando o disposto no art. 135, § 4º, da Constituição Estadual. Têm razão os requerentes no tocante à aventada inconstitucionalidade do sistema de rodízio instituído pela Lei n. 6.923/2006, camuflado como "sistema de plantão", porquanto impede a possibilidade de o consumidor optar pelos serviços fúnebres de outra empresa que não a de plantão, caso assim seja o seu desejo, afrontando o princípio constitucional da defesa do consumidor e da livre concorrência. "O princípio constitucional da livre concorrência tem mesmo um caráter instrumental, pois a concorrência não constitui um fim em si mesma. Entretanto, detectada sua presença numa dada realidade, dali se extraem consequências importantes: o preço de produtos e serviços corresponderá ao estipulado pelo livre jogo das forças do mercado no justo equilíbrio entre a procura e a oferta, com significativos benefícios, no mais das vezes, para os consumidores e para a coletividade em geral. [...] o papel reservado ao poder público, neste particular, é o de fomentar a livre concorrência. As realidades e condutas que se mostrem atentatórias ao princípio necessitam ser expungidas, pena de o poder econômico abusar de sua condição, com nefastos efeitos para os demais agentes, para os consumidores e para a sociedade em geral. [...]. Ao Estado, então, é deferida a relevante tarefa de velar pela regularidade do mercado. Ao disciplinar normativamente a defesa da concorrência, deve mesmo estabelecer um conjunto de regras que tenham por objetivo a intervenção do Estado na vida econômica, de modo a garantir que a competição das empresas no mercado não seja falseada por meio de práticas colusórias ou abusivas. Por outro lado, há de se ter em conta que o poder econômico não é apenas um elemento da realidade. É mesmo um dado constitucionalmente institucionalizado, normatizado, normalizado. Mas

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17

se a livre concorrência constitui princípio conformador da atividade econômica (CF, art. 170, IV) esclarece o §4º do art. 173 que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à eliminação da concorrência, à dominação dos mercados e ao aumento arbitrário dos lucros" (LAFAYETE JOSUÉ PETER, in Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 223).” – destacou-se.

Veja-se, portanto, que nem mesmo por lei o sistema de revezamento

ou rodízio entre as concessionárias de serviços funerários encontra amparo no sistema

jurídico brasileiro, quiçá por meio do malfadado Decreto Municipal n. 268, de 06 de

maio de 2003, que extrapolou os limites da legislação do Município de Toledo e, ainda,

violou a defesa do consumidor, a livre iniciativa e a livre concorrência, todos diretrizes

da ordem econômica, cuja proteção também encontra amparo no artigo 75 da Lei

Orgânica do Município de Toledo e artigo 15 da Lei Municipal n. 1.623, de 1º de abril de

1991.

Por fim, deixe-se bem claro que não se está discutindo nesta demanda

a retirada da exclusividade na prestação de serviços funerários pelas empresas

requeridas. Cabe ao Município de Toledo realizar procedimento licitatório e conferir às

empresas vencedoras – como ocorreu – o direito de explorar as atividades funerárias

de modo exclusivo. Não obstante a exclusividade concedida a elas, o Município de

Toledo, seja por lei ou por decreto, não pode criar reserva de mercado para essas

empresas e impedir que elas compitam entre si, pois, dessa maneira, submete os

consumidores a prática comercial coercitiva e ilegal, como de fato aconteceu e vem

acontecendo, e estimula a dominação do mercado.

A Constituição da República e o entendimento jurisprudencial

consolidado amparam a exclusividade concedida às empresas vencedoras de

procedimento licitatório, mas não as protegem da proibição de concorrência entre elas,

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18

como foi feito no Município de Toledo por meio de decreto18. Este último ponto que

constitui o objeto desta demanda, conforme acima detalhadamente narrado.

III – DA NECESSIDADE DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA –

A permanência do sistema de rodízio entre as concessionárias

municipais de serviços funerários vem prejudicando, diariamente, os consumidores de

seus serviços, na medida que não podem escolher a prestadora das atividades em

questão segundo seus critérios pessoais, como qualidade dos serviços e preços de

mercado, praticados dentro dos limites fixados pelo Município de Toledo.

Nesse contexto, a fim de minimizar os prejuízos causados às relações

de consumo provocados pelos réus, em especial, pelo Município de Toledo, deve ser

concedida tutela específica de obrigação de não fazer, na forma do artigo 461, § 3o,

do Código de Processo Civil, para que se suspenda, imediatamente, o sistema de

rodízio entre as concessionárias de serviços funerários, até o fim da presente

demanda, oportunidade em que a suspensão deverá ser julgada definitiva, com a

declaração de ilegalidade de dispositivos do decreto municipal que regulamenta a

matéria.

Observe-se que, o artigo 461, § 3o, do CPC exige para a concessão de

tutela específica, de maneira liminar, quando o fundamento da demanda for

relevante e houver justificado receito de ineficácia do provimento final.

No presente caso, a relevância do fundamento da demanda se

assenta na própria causa de pedir, consistente na tutela ampla e geral das relações de

consumo no Município de Toledo, o qual possui população estimada pelo IBGE para o

18

E ainda que tivesse previsto o sistema de rodízio em lei, esta não seria constitucional.

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19

ano de 2013, de 128.448 habitantes, que se encontra exposta e submetida às práticas

comerciais coercitivas e desleais chanceladas pelo Chefe do Poder Executivo

Municipal. De nada adianta o ajuizamento de ação para a tutela das relações de

consumo, se esta não se fizer sentir imediatamente, reduzindo a lesão ao consumidor.

A relevância da defesa e proteção às relações de consumo é tamanha,

que encontra, inclusive, previsão na Constituição da República de 1988, em seu artigo

5º, inciso XXXII, e artigo 170, inciso V. Do mesmo modo, internacionalmente, diversos

Diplomas Legais buscam sua tutela, como, por exemplo, a Resolução n. 39/248 de

10/04/1985, da Organização das Nações Unidas (ONU), e é tratada como direito

fundamental pelos países membros do MERCOSUL.

O justificado receio de ineficácia do provimento final consiste no

agravamento do dano. Isso porque, os consumidores que se virem obrigados a

contratar os serviços funerários em razão do falecimento de algum ente querido, não

terão opção de escolher o melhor serviço ou aquele de sua preferência, nessa hora

que já é tão difícil. O consumidor não será respeitado em sua escolha e em seus

desejos e, para as concessionárias de serviços funerários, será apenas mais um

número. Diante disso, a única solução é impedir que o dano aconteça ou continue

acontecendo, sob pena de conviver-se com situação irreparável.

Conforme afirmado por Luiz Guilherme Marinoni, “no Estado

constitucional, mais importante que teorizar sobre as ações de direito material é pensar

a respeito das formas de tutela devidas pelo Estado para a proteção dos direitos,

especialmente dos direitos fundamentais”.19 De nada adianta estabelecer que a defesa

das relações de consumo e do consumidor constitui direito constitucional fundamental

19

MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 304.

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20

(artigo 5º, inciso XXXII, da CR/1988), se não for possível sua tutela liminar, de modo a

impedir que os danos provocados ao consumidor se tornem irreversíveis.

A irreversibilidade da prática lesiva viola frontalmente a obrigação de

todos, de maneira difusa, de protegerem o consumidor e as relações de consumo. Por

essa razão, é fundamental que o sistema de rodízio entre as concessionárias de

serviços funerários seja imediatamente suspenso por Vossa Excelência.

IV – PEDIDOS E REQUERIMENTOS –

À vista do exposto, o Ministério Público do Estado do Paraná requer

que Vossa Excelência se digne, pela ordem, de:

a) antecipar os efeitos da tutela pretendia, inaudita altera parte, na forma do

artigo 461, § 3o, do CPC, a fim de determinar a imediata suspensão da

eficácia do artigo 3º, caput e §§ 1º a 3º e 8º a 11º, do artigo 7º, inciso V, e

do artigo 41, caput e §§ 1º a 6º, todos do Decreto Municipal n. 268, de 06

de maio de 2003, com as alterações introduzidas pelo Decreto Municipal

n. 203, de 12 de novembro de 2009, que estabelecem o rodízio entre as

empresas concessionárias de serviços funerários do Município de Toledo, de

modo que o consumidor possa escolher livremente a prestadora de serviços,

segundo seus próprios critérios e no exercício de sua autonomia;

b) em seguida, determinar a citação dos réus, por meio de mandado, a ser

cumprido no endereço indicado no preâmbulo desta petição inicial, para que,

no prazo legal, ofereçam, em querendo, contestação em relação aos fatos

aqui narrados, sob pena de revelia, processando-se a causa pelo rito

ordinário;

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21

c) julgar, ao final, no mérito, procedentes os pedidos, para o fim de:

i. declarar, com base no artigo 83 da Lei 8.078/199020, a

ilegalidade do artigo 3º, caput e §§ 1º a 3º e 8º a 11º, do

artigo 7º, inciso V, e do artigo 41, caput e §§ 1º a 6º, todos

do Decreto Municipal n. 268, de 06 de maio de 2003, com as

alterações introduzidas pelo Decreto Municipal n. 203, de

12 de novembro de 2009, que estabeleceram o sistema de

rodízio entre as funerárias e, assim, violaram o disposto no

artigo 6º, inciso IV, da Lei 8.078/1990; nos artigos 2º e 75 da Lei

Orgânica do Município de Toledo; no artigo 7º da Lei Municipal

n. 913, de 23 de setembro de 1977; e no artigo 15 da Lei

Municipal n. 1.623, de 1º de abril de 1991, reconhecendo, de

modo definitivo, a possibilidade de o consumidor do Município

de Toledo escolher livremente a prestadora de serviços

funerários que melhor lhe atendada, possibilitando, ainda, a

livre concorrência entre elas e confirmando eventual

antecipação de tutela concedida;

ii. condenar o Município de Toledo a se abster (obrigação de não

fazer) de fixar sistema de rodízio entre as concessionárias de

serviços funerários, diante da ilegalidade de tal medida, que

afronta a ordem econômica, em sua vertente da livre

concorrência e livre iniciativa, e as relações de consumo, nos

termos da legislação federal e municipal supra mencionada; e,

20

“Artigo 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de

ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.”

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22

iii. condenar os réus, solidariamente, ao pagamento das

despesas processuais.

À guisa de provas, o Ministério Público requer a juntada dos

documentos que acompanham a presente petição inicial.

Apesar de inestimável, dá-se à causa o valor de R$ 100.000,00 (cem

mil reais) para fins fiscais.

Toledo, 07 de julho de 2014.

José Roberto Moreira

Promotor de Justiça

Hugo Evo Magro Corrêa Urbano

Promotor de Justiça