130
E o povo reinventou as ruas: Olhares Diversos Sobre as Manifestações de 2013

Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Citation preview

Page 1: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o povo reinventou as ruas: Olhares Diversos Sobre as

Manifestações de 2013

Page 2: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013
Page 3: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

EDITORA MULTIFOCO

Rio de Janeiro, 2013

E o povo reinventou as ruas: Olhares Diversos Sobre as

Manifestações de 2013

M a r c e l o B i a r ( O r g )

Page 4: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

EDITORA MULTIFOCO

Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.Av. Mem de Sá, 126, LapaRio de Janeiro - RJ

CEP 20230-152

REVISÃO Érica Machado

CAPA Natalia Caruso

DIAGRAMAÇÃO Mauricio Pinho

E o povo reinventou as ruas: Olhares diversos sobre as manifestações

de 2013

BIAR, Marcelo

1ª Edição

Dezembro de 2013

ISBN: 978-85-8273-483-4

Todos os direitos reservados.

É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem

prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.

Page 5: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

5

Sumário

A Fratura da Socidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7

Marcelo Biar

Uma cidade muda, não muda! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

Cristovão Duarte

Estados da consciência social: urbanização, . . . . . . . . . . . . . . . . . 30internet e redes sociais

Leonardo Mezentier

Manifestações: o velho e o novo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41

Lincoln de Abreu Penna

A Democracia Frankenstein . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

Flávia Vinhaes

Sete provocações (ligeiras) sobre uma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63conjuntura cheia de enigmas

Marcelo Barbosa e Kadu Machado

Mídia de Massa x Massas de Mídias: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70conjuntura cheia de enigmas

Flora Daemon

O Tempo Passa . . . Passa? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .91

Eliana Vinhaes Barçante

Page 6: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

6

A Paz armada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .107

Karla Vargas

As Manifestaçoes de Junho, os Intelectuais e . . . . . . . . . . . . . . . . 110o Vandalismo de Estado

José Antonio Sepulveda

Page 7: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

7

A fratura da sociedade

Marcelo Biar

Junho de 2013 chegou como uma estação desconheci-da. Inesperado e com temperatura surpreendente, foi um grande colecionador de indagações. Entre crenças em revoluções, questionamentos sobre a ausência de pauta, denúncias de violência policial, estranheza pela violência de manifestantes, máscaras, gorros, cartazes díspares e até contraditórios e modelitos ufanistas, a única unanimidade era a perplexidade. As análises se cruzavam como balas em um tiroteio no escuro. Acerta-vam ou erravam com a mesma facilidade. A certeza era a dúvida. A imprecisão. Por isso mesmo, não me aterei à explicação do ainda inexplicável. Pelo menos no seu todo. Tudo que não precisamos neste momento é encer-rar questões. Atentarei neste ensaio, ao que nos pareceu unânime: a perplexidade.

Tudo começou, acredita-se, com a indignação quan-to ao aumento das passagens de ônibus. Logo, mediante uma forte repressão das polícias estaduais, uma grande reação se deu e várias pautas engrossaram a presença popular nas ruas. Uma enxurrada de demandas, de di-

Page 8: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

8

reitos não atendidos, vieram à tona. Demandas novas? Injustas? Não. Demandas acumuladas por décadas. En-tão... Podemos concluir que a perplexidade veio ante a capacidade de reação popular. Mas onde e como se cons-truiu esta crença na passividade eterna? De onde surgiu a certeza equivocada de que pessoas oprimidas por muito tempo se calariam eternamente? Quais seriam as bases deste contrato social fraudulento?

A história é a história da humanidade. Feita por ela e escrita, registrada, por ela. Tudo o que temos e pro-duzimos são os registros de nossa vida em sociedade. O homem, desde os tempos mais remotos, se aglutina para a sobrevivência. Desta prática surgiu tudo que temos e desenvolvemos enquanto cultura, em seu mais amplo conceito. O homem, para além de “sapiens”, é social. Mesmo nas sociedades mais harmônicas as vivências e convivências foram as geradoras da história. Nas socie-dades mais primitivas, ou menos complexas, este dado pode ser percebido mais claramente. O homem, indiví-duo, aparece mais diretamente como artífice de sua histó-ria quando despido de instituições e subjetividades.

O desenvolvimento destas sociedades levou a uma maior complexidade das organizações e relações. Com o advento da propriedade privada e da divisão social por classes (proprietárias e não proprietárias), estas relações tornaram-se mais complexas. Iniciava-se ali o enorme desafio de se manter uma convivência harmônica ba-seada na relação desarmônica. Ou seja, uma sociedade alicerçada na brutal diferença social, onde uma minoria vive e enriquece do trabalho da maioria, deveria desen-

Page 9: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

M a r c e l o B i a r

9

volver uma cultura que lhes permitisse o equilíbrio ante o desequilíbrio. Que permitisse a convivência entre os antagônicos, regulada pelo sentimento de unidade. Nes-te contexto, surgiu o Estado (impossível não lembrar o velho e bom Engels nesta hora). Com ele, diversos tentáculos como legislação, órgãos de repressão, escola e outros, voltados a determinar o que é certo, o compor-tamento adequado, o tipo ideal de cidadão. Este sutil e perverso trabalho tem por objetivo a construção de uma mentalidade. Por isso, pouco a pouco se foi cons-truindo a ideia do “homo resignadus”, naturalizando as diferenças, estimulando o individualismo e, princi-palmente, desviando o homem de sua identidade. Ou seja, não deveríamos nos pensar, enquanto grupo social. Claro. Caso contrário, sr. José perceberia que o que o afeta não se dá por ser ele quem é, mas por ser trabalha-dor de uma fábrica. Logo, seu problema seria o mesmo que o de seus iguais e se desenvolveria uma relação so-cial, e não pessoal. O Amarildo, morador da Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, não “sumiu” por um azar pessoal, mas por fazer parte de um grupo social mar-ginalizado historicamente, que vem sendo assassinado ao longo destes anos de Brasil. Da mesma forma, os Amarildos, ao se perceberem como um grupo, percebe-ram que a luta não é pela sobrevivência, como um ani-mal caçado que foge em uma selva, mas de resistência e oposição a um modelo social que sobrevive da exclusão de outros. Sendo os dominantes uma minoria numérica, cabe a eles, portanto, a dominação pela cultura, pela ideologia. Ou seja, fazer com que os subalternos não

Page 10: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 0

se sintam assim.Que aspirem à ascensão e não se vejam como um grupo explorado.

Esta difícil tarefa de alienar as pessoas, fazendo-as se afastarem de seu eu histórico, não foi fácil, mas, da mesma forma, foi desenvolvida com sutilezas. Nas últimas duas décadas, assistimos a todo um rosário de fetiches individualistas, numa grande investida na despolitização. A política neoliberal, efetivada a partir de 1990, tirou a sociedade e o Estado da pauta de discussão e tratou todos os problemas sociais como se fossem naturais e a serem resolvidos individualmente. O desemprego não era fruto de uma política econômica, mas culpa do trabalhador que não se qualificava. Seu sucesso dependia exclusivamente de seu esforço, a despeito de vivermos índices de desemprego alarmantes. Eis a era da autoajuda, onde cada um pode ser líder de si mesmo e casais inteligentes enriquecem juntos. Lançada a uma corrida de sobrevivência pessoal, a sociedade assistiu, atônita, à desarticulação ou ao esvaziamento de associações e sindicatos. Os “Seus Josés” não se perceberam como trabalhadores e “Amarildos”, com outros nomes, porém negros e favelados, sumiram aos montes.

Movimentos sociais fragilizados, chegamos ao ápi-ce da representação individual. Esfacelou-se o Estado e o homem, em seu papel histórico. O homem, despido de sua natural participação social, passa a viver em so-ciedade sem que seus grupos e identidades se construam por esta participação. Ou melhor, se construam por sua omissão. Da mesma forma, o Estado, minimizado e re-presentante de indivíduos/individualismos passa a gestar

Page 11: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

M a r c e l o B i a r

1 1

negócios e administrações sem que se tenha a população, como objetivo e combustível. A representação política, tal qual idealizada no parlamento, como um espelho da pluralidade social, se perde em assuntos e interesses in-dividuais, se perdendo da essência de sua existência. A cura muitas vezes mata. A radicalidade da alienação usa-da pelos setores dominantes acabou por desacreditar os mecanismos de representação.

A fratura da sociedade

Uma sociedade baseada em indivíduos que abdicam de sua condição de protagonistas da história, com um Estado que não representa diretamente os embates sociais, é uma anomalia histórica.De tal forma que, arrisco afirmar, não sustenta tal situação por um longo período. Grosso modo podemos chamar de regime de exceção. Tão anômalo quanto uma ditadura. Sim, é verdade que o jogo político implica na tentativa de dominantes investirem na alienação dos subalternos. Distantes da compreensão de sua condição histórica, estarão igualmente distantes da ação consciente sobre esta. Contudo, dois equívocos parecem ter ocorrido. O primeiro é o de acreditar na própria mentira. Conduzir a sociedade a um comportamento individualista e alienado não elimina a condição humana enquanto condição política. Assim, parecem ter errado, os grupos dominantes, aoacreditarem na constância da condição alienada. Mais que isso, por acreditarem ser

Page 12: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 2

esta a condição humana. Por outro lado, erraram ao confundir o esvaziamento dos movimentos sociais com o fim das demandas sociais. Demandas estas que, aliadas à histórica condição social do homem, podem, a qualquer momento, resgatar o “homo politicus”.

Eis que a passagem aumentou. Vinte centavos. Um grupo protestou. Mas eles não pegam ônibus, disse o comentarista, como diria Nelson Rodrigues, “idiota da objetividade”, no telejornal e emissora de igual compe-tência. E mais gente protestou. A polícia reprimiu violen-tamente. E mais gente protestou. Incapazes de perceber a razão social da manifestação, que não passava efeti-vamente por uma questão matemática financista, onde o estopim do clamor é acionado por centavos a mais ou a menos, o Estado continuou a soprar a brasa sem en-tender de onde vinham as chamas. O vazio político que havia sido criado como forma de alienar e dominar mais facilmente atingiuo homem como um todo. Assim, do-minantes beneficiados por este estado de torpor também eram vítimas, sendo que o mal, em seu caso, era não sa-ber atuar historicamente e perceber o momento. Embora artífices da alienação, enquanto cidadãos, também foram atingidos pelo mecanismo usado. Desaprenderam a aná-lise social. Os homens não se viam sujeitos da história e este grupo dominante não sabia mais ler a sociedade de homens atuantes. Boquiabertos, tendo acreditado num quase direito divino de seus poderes, ficaram observando o grito de junho sem saber o que falar. Sem conhecer aquela língua, acuaram-se, como se aqueles ventos fos-sem passageiros.

Page 13: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

M a r c e l o B i a r

1 3

Quanto mais cartazes brotavam nas ruas, mais se confirmava a tese de que o que unia aquelas pessoas não eram os slogans que, como já disse, eram muitas vezes contraditórios. Era o cartaz, o seu levantar, quem apare-cia de forma protagonista. Por isso, o não diálogo insti-tucional e, mais ainda, a repressão– tanto expressa pelas balas de borracha e gás lacrimogêneo, quanto pelas infor-mações da mídia oficial, que insistia em criminalizar as manifestações–, só serviram para fomentar o clamor que, embora não sabendo, exatamente, ou intelectualmente, porque existia, se afirmava de forma inequívoca.

É difícil mensurar, em um movimento de massas, o grau de formalização e consciência de suas ações. Con-tudo, toda a prática possui um aspecto pedagógico. Des-ta forma, embora não houvesse uma articulação teóri-ca por trás, a atuação da mídia oficial e da polícia foi, gradativamente, delineando quem eram os “inimigos”. A despeito de os telejornais terem tentado dividir o movi-mento entre aqueles que usavam de violência e aqueles que não, sendo estes apontados como cidadãos pacíficos e os demais como bárbaros e vândalos, gradativamente, ainda que, mantendo a diversidade dos comportamentos, a aceitação entre todos foi se construindo A identidade manifestante, antagonizada com seus algozes, se impôs. Vândalos e bárbaros, necessariamente, reconhecem os re-presentantes do Império Romano.

Diferente de movimentos históricos anteriores, que saíam às ruas contra algo e com propostas prontas como alternativa, como, por exemplo,os que eram contra o la-tifúndio e propunham a Reforma Agrária, os gritos de

Page 14: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 4

junho foram ganhando tom de coro pela antítese. De ca-racterística acéfala, lideranças (se é que cabe este termo para este movimento) e urgências foram se revezando. Anonymous, que desempenharam um grande protago-nismo no início, foram ultrapassados pela necessidade de afirmação da face manifestante. Grupos que eram vistos como violentos inicialmente, Black Blocs, passaram a ser parte importante do todo, na medida em que, ao rejeitar a ação policial, resolveram responder às agressões. Por fim, igualmente necessário foi o surgimento da Mídia Ninja como elemento de denúncia e defesa ante as agres-sões físicas e ideológicas dos braços do Estado.

Outro aspecto interessante que deve ser destacado é que o movimento iniciado em junho de 2013 nasce justa-mente da reação à condição resignada que tentou ser im-posta ao homem, e sem vínculo com nenhum movimento estabelecido anteriormente. Assim, ainda que fruto da ausência de formulação teórica, a rejeição à condição so-cial/política formal que não lhes ouvia, a rejeição a tudo o que advinha da sociedade política estabelecida foi total. “Sem partido”, “sem política” foram gritos presentes que motivaram, até mesmo, a agressão a outros manifestan-tes presentes. Estes, ainda que de partidos absolutamente minoritários e antitéticos ao poder formal, sem ter culpa ou participação na construção dos valores vigentes, são descartados pela simples identificação com a lógica pre-dominante que, à revelia de suas vontades, gerou a polí-tica onde o cidadão era espectador. Para ser justo, e não me permitir a sedução pelo maniqueísmo fácil, há que se afirmar que, como não há dominação que não possua

Page 15: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

M a r c e l o B i a r

1 5

participação do dominado, a representatividade falida e anuladora da cidadania foi alicerçada com o consenti-mento destes que, hoje, gritam.

O discurso antipartidário, e antipolítico, mais am-plamente falando, disseminado principalmente durante a ditadura e que tanta adesão teve pelos mais diversos setores sociais brasileiros, foi um importante elemento de anulação da vida social/política no Brasil. Uma arma fundamental na construção hegemônica, usada para dis-tanciar o homem de seu fazer histórico. Mas, como a dialética é implacável, a negação à participação política, corroborada pelo cidadão comum, acabou por gerar nele o incômodo da inércia e levá-lo às ruas. Da mesma for-ma que esta prática inerte foi articulada e favoreceu aos setores dominantes, e acabou por gerar a força que hoje assistimos de repúdio a esta prática.

Perplexos. Assim ficaram todos. Mas, por quê? Por que, se demandas não faltavam e a história das sociedades é, também, a história das participações e interações entre os homens? Ficaram perplexos aqueles que acreditaram em suas mentiras. No “homo resignadus”. Perplexos,por-que tentam entender o tsunami olhando a onda, e não o deslocamento da placa terrestre. As manifestações são o reflexo ou grito de uma sociedade fraturada. Uma fratura que cansou de ser discreta e se fez exposta. A negaçãoà condição política do homem, à farsa da representativida-de alicerçada em valores que fogem ao cotidiano efetivo do homem, à negação de participação do mesmo, levaram além da reação ou negação. Foi rompido efetivamente o contrato social possível ante as partes. A fraude política

Page 16: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 6

que se tornou a gestão da vida pública permitiu que os homens buscassem seu direito ao grito, sem reivindicá-lo. Não havia mais elo institucional para pautas. A negação do fazer política implicou na geração da negação às insti-tuições políticas. Assim, enquanto prefeito e governador manifestavam o desejo de conversar com lideranças e rei-vindicavam o conhecimento da pauta, manifestantes não os queriam, não mais por serem maus gestores ou coisa que o valha, mas por não significarem nada ante a atual condição social, a não ser a personificação do que não se deseja. Uma vidraça estilhaçada anunciava a falta de elo com a formalidade da sociedade. Da mesma forma, a pedra atirada em um policial, mais do que o revide a uma histórica repressão, era a negação do reconheci-mento daquele sujeito enquanto representante do órgão repressor e sua autoridade. Ou seja, mais do que negar a repressão, negava-se a relação de que estes ocupavam tal posto. Contrato social rompido, atores sem personagem.

Uma radical fratura tomou as relações sociais brasi-leiras. Não tenho dúvidas de que novos ventos se apre-sentam. Não podemos cegar ante o peso das redes sociais enquanto difusoras de ideias e, até mesmo, um novo lócus para fazer política. Mas também não podemos superes-timá-la. Ela se apresenta como mídia mais democrática e interativa, onde a horizontalidade de sua organização é um ensaio para novos fazeres da vida cidadã. Também me parece que a cultura das manifestações mudou. A dis-posição para o confronto, por parte dos chamados “vân-dalos”apresenta-se como uma nova faceta dos levantes. Da mesma forma, a participação de grupos de advoga-

Page 17: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

M a r c e l o B i a r

1 7

dos, médicos, etc, em apoio aos manifestantes, demons-tra uma interação das funções profissionais com suas funções sociais. Parece-me uma reintegração do homem. Uma desalienação. A radicalidade destas manifestações, insisto, não estão em seus confrontos físicos, quantitati-vos atingidos, número de passeatas e atos, nem tão pouco pela amplitude de suas pautas (ou ausência delas). Tudo isso, na verdade, demonstra a oposição, esta sim, pro-funda e radical, a despolitização da condição humana. Destarte, foi ou está sendo, um movimento de negação. Como tal, desconstrói sem propor algo em seu lugar. Pois é do grito das ruas, de seu ímpeto e contundência, que de-vemos ouvir o dito implícito. Para mim, salta aos ouvidos a reafirmação do homem participativo. Salta, ainda, a ne-gação a uma representatividade distanciada e anuladora do sujeito histórico. Desta forma, ainda que tenha pa-recido haver a irredutível negação às representações, em tempos em que a expressão “não me representa” ganhou notoriedade, o que ouço, com clareza, é a necessidade de se estabelecer práticas de representação menos distantes e mais ativas. Não, não deixaremos de ter deputados. Mas não teremos só eles e no formato que hoje atuam,como uma burocrática e distanciada representação.Pelo contrá-rio, vejo um aumento nos grupos representantes de idéias e práticas. Estes, contudo, não estarão mais organizados de forma tão inatingível e vertical. Da mesma forma, não serão, em alguns casos, necessariamente instituições tal qual estamos acostumados. Centrais sindicais, poder legislativo e agrupamentos episódicos, estas novas mo-dalidades de movimento social vão se relacionar de for-

Page 18: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 8

ma mais dinâmica. Pulverizadas as relações de produção, multiplicados os sujeitos históricos, também suas repre-sentações seguirão esta lógica, com tempos de perma-nência mais etéreos e subjetividades afloradas. A roda da história continuará seu implacável curso e a infidelidade a ela será sempre penalizada impiedosamente, deixando para trás todo aquele que a negue.

O “não me representa” põe em xeque uma época em que se delegava poder a terceiros comodamente. Assim, nem teremos mais grupos detentores únicos e estáveis do poder, nem o cidadão que critica externamente sua rea-lidade como se não lhe pertencesse o destino político da sociedade. Quanto tempo levaremos para estabelecer esta nova relação? Não se sabe. Mas está irreversivelmente em curso. Calcificações em fraturas graves dependem sempre de muitos fatores. Mas uma coisa é certa: nada será como antes, amanhã!

Page 19: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

1 9

Uma cidade muda, não muda!1

cristovão Duarte

Une transformation de la société suppose la possession

et la gestion collective de l’espace, par intervention

perpétuelle des intéressés, avec leurs multiples

intérêts, divers et même contradictoires.2

Henri Lefebvre

O que querem as ruas, afinal? Qual a pauta de reivindi-cações das manifestações? Quem são e o que pensam os manifestantes? Anarquistas, vândalos, fascistas, inconse-quentes? Como e por quais motivos tantos, em tão pouco tempo, se juntaram aos protestos? Existem lideranças? Quem os organiza? Contra o que eles lutam? O que se pode esperar deste movimento?

1 Frase de cartaz exibido por uma manifestante no Rio de Janeiro.

2 “Uma transformação da sociedade supõe a apropriação e a gestão coletiva do es-paço, pela intervenção permanente dos interessados, com seus múltiplos interesses, diversos e mesmo contraditórios”. LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Pa-ris: Ed. Anthropos, 2000.

Page 20: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

2 0

Essas foram, grosso modo, algumas das perguntas suscitadas pelos protestos que tomaram as ruas das principais cidades brasileiras em junho de 2013. Costumeiramente dedicadas aos automóveis e atravancadas pelos engarrafamentos, as ruas de nossas cidades deram lugar a uma multidão colorida, formada, em sua maioria, por jovens estudantes oriundos das classes médias (o plural visa a tornar mais elástica essa classificação).

Os protestos, inicialmente convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL), rapidamente se ampliaram e se transformaram numa luta contra a falta de representatividade dos partidos políticos, contra a corrupção e pela ampliação de direitos. Este foi o pano de fundo sobre o qual outras questões, mais pontuais e que estão na ordem do dia, afloraram nas manifestações, tais como os vultosos investimentos públicos para a Copa (2014) e as Olimpíadas (2016), em detrimento de outras prioridades como a saúde, a educação e a moradia, o superfaturamento das obras e a falta de participação da sociedade nas decisões governamentais. Some-se a isso o repúdio generalizado ao Projeto de Emenda Constitucional (PEC 37) que retirava do Ministério Público o poder de investigação e ao Projeto da “cura gay”, apresentado ao congresso pela bancada evangélica, destinado a legalizar o “tratamento e cura” da homossexualidade. Não se tratava, portanto, apenas da redução do preço das passagens de ônibus. O contagioso vigor insurrecional demonstrado nas ruas e nas redes sociais indicava que a indignação dos manifestantes ia muito além disso.

Page 21: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

C r i s t o v ã o D u a r t e

2 1

O movimento, numa espécie de acordo tácito, afirmou-se como independente e apartidário. E embora os cartazes ostentassem variadas palavras de ordem, indo das questões mais genéricas às reivindicações mais específicas (algumas muito bem humoradas, por sinal), nenhuma delas poderia, por si só, sustentar a força de coesão e o engajamento das pessoas ali presentes.

Um misto de revolta e felicidade marcou o caráter das primeiras grandes concentrações. Havia um inequívoco sentimento de alegria no fato de tantos manifestantes terem deixado suas casas e vindo para as ruas se juntar aos demais no propósito de construção de um futuro melhor para todos.

Nossa perplexidade se viu agravada, em grande medida, pelo ineditismo da força de mobilização que, nas primeiras grandes manifestações, levou para as ruas mais de um milhão de pessoas. No caso do Rio de Janeiro, isso corresponde, aproximadamente, à quinta parte da população da cidade, rivalizando, em número de componentes, com os seus principais e mais tradicionais blocos carnavalescos3.

Muitos se apressaram em condenar os protestos, temerosos de que, sem contar com uma pauta de reivindicações e propostas que definissem com clareza

3 Vale destacar que embora as avaliações inicialmente veiculadas pela imprensa apon-tassem um número menor de manifestantes, a comparação com as fotos aéreas dos blocos carnavalescos se encarregou de desfazer o equívoco e atestar a real dimensão dos protestos.

Page 22: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

2 2

seus objetivos, o movimento pudesse ser alvo de manipulação por grupos conservadores. A faixa etária dos manifestantes, pela pouca experiência com a luta política, também foi alvo de preocupação, sobretudo por parte da geração anterior, que conheceu o triste período de exceção imposto pela ditadura militar no Brasil (1964-1985). Certamente, a esses argumentos sobrepôs-se ainda o espectro de um eventual movimento golpista, interessado em reverter as conquistas recentemente alcançadas com os programas sociais do governo federal, que vêm assegurando direitos aos setores mais pobres da população brasileira.

Desfeitos os primeiros sustos e já com o movimento em refluxo (ou, talvez melhor dizer, em hibernação), as reflexões aqui desenvolvidas pretendem dar sequência e desdobramento aos questionamentos inicialmente apresentados. Mesmo não havendo respostas prontas e acabadas, acreditamos ser possível tentar apreender, à luz dos ensinamentos de Henri Lefebvre sobre “o direito à cidade” 4, alguns dos sinais emitidos pelo fenômeno espontaneísta e insurrecional de que estamos tratando.

O ponto de partida deve ser necessariamente o reconhecimento de que algo de novo transpareceu na forma de mobilização e expressão do movimento. Uma nova geração, que até então parecia ausente e desinteressada por política, surpreendeu o País (e o mundo), afirmando-se ativamente presente na cena política nacional. Difícil

4LEFEBVRE, Henri.O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes, 1991.

Page 23: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

C r i s t o v ã o D u a r t e

2 3

enquadrar nos velhos esquemas de organização política dos movimentos sociais o novo papel desempenhado pela juventude nas manifestações de rua e em sua articulação por meio das redes sociais.

O compartilhamento de informações se intensificou de modo radical, amplificando e repercutindo os significados simbólicos do movimento. Transformado em arena política virtual, o Facebook permitiu à sociedade brasileira o acompanhamento em tempo real das manifestações que se sucederam nas principais cidades do País. O fenômeno Mídia Ninja5, documentando os protestos com câmeras portáteis, trouxe as ruas para dentro das casas de muitos milhões de brasileiros. A tudo se podia assistir, ao vivo e em cores, sem a tendenciosa edição dos jornais televisivos (sarcasticamente ridicularizados pelos comentários que proliferaram na rede). Todos nós nos tornamos, a um só tempo, testemunhas e replicadores das imagens do despreparo e da truculência da repressão policial que se abateu sobre os manifestantes, mas também da beleza de um povo que se descobriu mais forte do que normalmente se pensava.

A novidade, no entanto, não se esgota nas formas de utilização das redes sociais. É preciso considerar, com particular atenção, a deliberada recusa a qualquer forma de liderança ou adoção de pautas fechadas contendo reivindicações específicas, o que resultou, entre outras coisas, no caráter apartidário do movimento.

5 Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação): grupo de mídia alter-nativa que ganhou notoriedade mundial pela cobertura, em tempo real, das manifes-tações de junho de 2013 no Brasil.

Page 24: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

2 4

Um movimento apartidário não é um movimento contra a existência de partidos políticos. No caso em questão, os jovens manifestantes pretenderam apenas explicitar que os partidos atuais não os representavam. Isso não significava que eles não queriam ser representados ou, mesmo, que pretendiam abolir qualquer forma de representação política (aliás, se assim não fosse, nem haveria razão para protestar). O que se afirmava, com todas as letras,era que os partidos atuais estavam servindo a outros fins que não aqueles que lhes deram origem, ou seja, os de assegurarem representação democrática aos cidadãos-eleitores que lhes confiaram seu voto. De igual modo, não podemos afirmar que o movimento seja contra o Estado, mas contra a sua utilização como instrumento de imposição dos interesses privados sobre os interesses públicos.

Recusar o aparelhamento político por grupos organizados ou mesmo lideranças carismáticas foi, portanto, a tônica e o trunfo político das manifestações. Mesmo o Movimento Passe Livre, que teve um papel relevante no primeiro momento, compreendeu perfeitamente que não poderia liderar a totalidade do movimento, nem tinha porque assumir essa tarefa. O movimento foi muito além do estopim que lhe deu origem, reunindo pessoas com as mais variadas origens, visões de mundo e tendências políticas num mesmo e gigantesco protesto popular. O que se viu foi um só corpo em movimento; um grande corpo sócio espacial coletivo6.

6 A imagem do corpo socioespacial coletivo foi inspirada pela leitura do artigo de

Page 25: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

C r i s t o v ã o D u a r t e

2 5

Sem rupturas aparentes, sem frações, sem sectarismos, sem divisões. Um movimento que reúne e agrega; um movimento que se vê, ainda que por um breve momento, como uma só onda, um só povo!

Estaremos enveredando aqui pelo caminho da mis-tificação e do idealismo? Como admitir que tenha sido possível esse suposto ou ilusório desvanecimento de fron-teiras entre modos tão díspares de ser e de pensar? Na verdade, pretendemos argumentar que não houve ne-nhum apagamento, nem escamoteação das diferenças. Antes, pelo contrário, as diferenças foram fundamentais!

A tomada de posição, em tudo reforçada pelas pala-vras de ordem e pelos cartazes, evitou deliberadamente aquilo que poderia dividir ou separar as pessoas. Viu-se e ouviu-se nas passeatas, isto sim, um unissonante clamor pela construção de um País mais justo, mais democráti-co e mais solidário. Por mais clarividente e politicamente eficaz que se considere essa estratégia, devemos ter em conta o caráter espontâneo e coletivo dessa construção social, engendrada, por assim dizer, no calor da luta, e tacitamente assumida pelos manifestantes. Por isso, na maior parte das vezes em que determinados grupos ou indivíduos pretenderam se destacar do corpo coletivo das passeatas por atos de violência imotivada7 ou por osten-tarem bandeiras de partidos políticos, assistiu-se mani-

Ana Clara Torres Ribeiro: “O sujeito corporificado e bioética, caminhos da democra-cia” in: Revista Brasileira de Educação Médica, v. 24, n.1, jan./abr., 2000.

7 Não será discutida neste artigo a ação dos Black Blocs ou de outros grupos mascara-dos que depredaram o patrimônio público e privado, nem suas possíveis motivações.

Page 26: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

2 6

festações de repúdio e desagrado por parte dos demais participantes.

A união dos diferentes só se tornou possível diante da configuração de um mesmo e único inimigo comum, representado por tudo aquilo que ameaça e restringe o direito à diferença, ou seja, aquilo que produz a homogeneização e que fratura a sociedade, separando e segregando os iguais e escamoteando as diferenças. Tal é a lógica da dominação capitalista, transformando a cidade em mercadoria e submetendo a vida urbana aos interesses do mercado. Tal é a forma individualista e autocentrada assumida pela sociedade de consumo, para quem as diferenças representam sempre uma ameaça a ser vigiada, controlada, mantida a distância.

Só o reconhecimento da diferença, que envolve a liberdade de escolhas e a subjetividade, permite o encontro com o outro. As práticas socioespaciais cotidianas implicam no exercício permanente da alteridade, do contraditório, da tolerância e do pluralismo como condições fundamentais para a vida em democracia. Desta forma, nos encontros entre os diferentes, na reafirmação das condições de pertencimento de cada um ao grupo social, é produzida uma nova (e atualizada) compreensão do que é ou pode vir a ser a cidade, do que podemos esperar dela e como queremos que ela seja.

Para Lefebvre, o direito à diferença se materializa e se consolida no direito à cidade – uma cidade entendida como o lugar do encontro dos diferentes. Ainda

Page 27: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

C r i s t o v ã o D u a r t e

2 7

segundo o autor, a forma urbana é a forma mental e social da simultaneidade, da reunião, da convergência, dos encontros, da festa8. Trata-se, portanto, de um reduto de resistência do valor de uso, isto é, reduto de resistência da diferença, da diversidade, da complexidade. A forma do valor de troca impõe ao urbano a lógica do mundo da mercadoria, suprimindo um direito até então intocado, no exato momento em que o desenvolvimento da sociedade urbana poderia propiciar a sua ampliação efetiva para toda a sociedade: o direito ao valor de uso do espaço e do tempo, implícito no direito à cidade9.

O direito à cidade e à cidadania manifesta-se como o direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar, o direito à apropriação, mas também o direito de não ser excluído da centralidade e do movimento da cidade10. O corpo, afirmando-se simultaneamente como “sujeito” e “objeto”, reivindica o direito à diferença, que engloba todos os demais e que se manifesta na prática e no uso do espaço11.

Sem cidade não pode haver cidadania. Para que não se torne apenas um valor abstrato, a cidadania precisa ser concretamente exercida como uma prática socioespacial cotidiana, que implica e se manifesta no espaço urbano.

8 LEFEBVRE, Henri. La revolucion urbana. Madri: Alianza Editorial, 1972.

9 LEFEBVRE, Henri.O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes, 1991.

10 Ibid., p. 135.

11LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Ed. Anthropos, 2000.

Page 28: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

2 8

Dessa forma, o alcance da luta pelo direito à cidade e à cidadania deve levar em conta o significado político e cultural da presença das pessoas nas ruas e nas praças de nossas cidades.

Temos assistido, desde o século passado, a um sistemático processo de esvaziamento e destruição dos espaços de convivência e de socialização nas nossas cidades. A aceleração do movimento e o aparecimento dos meios de transporte motorizados, a partir do advento da industrialização, produziu grandes impactos sobre a vida urbana. Os automóveis, cada vez mais potentes, mais velozes e mais numerosos, tomaram de assalto as ruas, afugentando as pessoas. As ruas foram alargadas, asfaltadas, surgiram viadutos, cavaram-se túneis, produzindo um ambiente cada vez mais hostil e tecnificado. Associados a estas transformações, o aumento das distâncias entre casa e trabalho, a periferização das grandes cidades e os processos de verticalização e segregação sociopespacial impostos pela especulação imobiliária deterioraram ainda mais as condições de vida nos centros urbanos.

O esvaziamento das ruas correspondeu, de forma estrita e funcional, aos objetivos da dominação e controle das cidades, dando origem a processos de fragmentação e homogeneização do tecido urbano, bem como à privatização dos espaços públicos. A cidade, espoliada, saqueada e sonegada a seus cidadãos, tornou-se uma mercadoria para compra e venda, a serviço do poder econômico. O abandono

Page 29: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

C r i s t o v ã o D u a r t e

2 9

das ruas foi também uma espécie de exílio dentro da própria cidade, o que resultou na capitulação do direito à cidade e à instauração do lugar do desencontro e do apartheid social.

Por isso o ato de ocupar a cidade deve ser celebrado como uma reconquista. Voltar às ruas significa também a reapropriação do espaço público. Nas ruas, compartilhadas e reaproriadas pelos cidadãos, reencontramos a força de resposta do lugar e os conteúdos explosivos e revolucionários do encontro entre os diferentes.

O lugar do encontro se transmuta em festa e em celebração da vida urbana. Nas manifestações de junho de 2013, a celebração e a festa também tiveram lugar. A juventude presente nas ruas nos relembra e ensina que a alegria, a rebeldia e a irreverência também fazem parte da luta anticapitalista. A revolução (permanente) por eles anunciada é a reafirmação da certeza de que um outro mundo é possível. Sua construção, no entanto, somente pode se dar pela política, entendida, neste contexto, como a própria superação da política: como uma práxis, libertadora e inventiva, capaz de antecipar o lugar, possível-impossível, da utopia.

Page 30: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

3 0

Estados da consciência social: urbanização, internet e redes sociais12

leonarDo Mezentier

“Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente,

mas o que melhor se adapta às mudanças.”

Charles Darwin

As manifestações de rua no Brasil, que se iniciaram em junho de 2013, também chamadas de Revolta do Vinagre pela forma como os manifestantes resistiram à violência policial, tiveram como estopim mais uma rodada de au-mento das passagens de ônibus nas cidades brasileiras. Na opinião de muitos intelectuais e das grandes mídias, a novidade dessas mobilizações foi terem sido organizadas e convocadas por meio das redes sociais. Mas será que as

12 Interpretar acontecimentos sociais quando eles ainda estão acontecendo repre-senta um enorme risco para qualquer pesquisador, e o autor desse texto não se julga, de modo algum, a pessoa mais preparada para essa tarefa. Mas ser um sábio das questões resolvidas pareceu ser uma alternativa ainda pior.

Page 31: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

L e o n a r d o M e z e n t i e r

3 1

redes sociais só tiveram um papel importante no proces-so de mobilização e convocação para as manifestações, ou também é possível identificar nelas uma relevante atuação na construção da insatisfação social, que está na base das manifestações? O objetivo desse ensaio é explo-rar a hipótese teórica de que a irrupção dessas manifes-tações está ligada a uma mudança na forma como se dá o processo de formação da consciência social, decorrente do desenvolvimento do processo comunicacional da so-ciedade, pela generalização do uso da internete celulares nos contatos interpessoais. Coletividades sociais – classes, grupos sociais, forma-ções socioterritoriais – possuem uma compreensão do mundo e de si mesmos, compartilhada por seus mem-bros. Essa compreensão,que as coletividades sociais compartilham, do mundo e da sua própria existência, será aqui indicada pela expressão consciência social13. A consciência social está em permanente e cotidiana transformação, o que não significa evolução. No en-tanto, nesse processo,estruturas importantes que con-dicionam a formação da consciência permanecem re-lativamente estáveis, por períodos de longa duração, determinando aquilo se pode chamar14 de “estados da consciência social”. Assim, além das transformações cotidianas pelas quais passa a consciência social, o pro-cesso histórico apresentou também momentos de mu-danças nas estruturas que condicionam o processo de

13 A cultura se sobrepõe a consciência social, estabelecendo um sistema de linguagens, símbolos e representações pelos quais a consciência se expressa, definindo os limites e aspossibilidades da consciência; mas é a consciência que cria e recria a cultura.

14 Na falta de melhor ideia.

Page 32: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

3 2

formação da consciência, implicando em mudançasnos estados da consciência social.Georg Simmel tratou da consciência social com base nas condicionantes associadas à formação das grandes metrópoles, e Georg Lukács abordou os problemas da consciência de classeassociados ao conflito de classes em sociedades que se industrializavam. A hipótese teórica que se pretende sugeriraqui é a de que as atuais mani-festações de rua, que a partir de junho de 2013 tomaram conta dos noticiários, estão associadas às mudanças no processo pelo qual se produz e se reproduz a consciência social, indicando uma tendência àformação de um novo estado da consciência social no Brasil.Cabe assinalar que a noção de estado da consciên-cia busca evocar as condições externas à consciência que condicionam ao seu processo de formação e que, portanto, não determinam, por si só, os conteúdos da consciência social. As ideias, as estruturas linguísticas, os valores, as utopias, as ideologias e as representa-ções culturais que povoam a consciência são produtos da criação humana, e sua capacidade de prevalência sobre a consciência dos coletivos sociais não depende exclusivamente das condições em que a consciência se forma. Mas esse conteúdo também é influenciado, em parte, pelas próprias condições em que se dá o proces-so de formação da consciência, na medida em que esse processo pode ser mais ou menos democrático, com os atores participando em maior ou menor condição de igualdade, com maior ou menor mediação entre emis-sor e receptor da mensagem, com uma proporção mais

Page 33: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

L e o n a r d o M e z e n t i e r

3 3

ou menos igual de receptores e emissores de mensa-gens. Castells sugere, por exemplo, que:

“ Embora cada mente humana individual construa seu pró-

prio significado, interpretando em seus próprios termos

as informações comunicadas, esse processamento mental

é condicionado pelo ambiente da comunicação. Assim, a

mudança do ambiente comunicacional afeta diretamente as

normas de construção de significado e, portanto, a produção

do poder.” (CASTELLS, 2013: 11)

História e estados da consciência social

Ao longo da história da formação do capitalismo no ocidente, acompanhando o processo de urbanização15 da vida social, é possível reconhecer diferentes momentos do estado da consciência social. Essas mudanças, mais cedo ou mais tarde, implicaram em mudanças nos sistemas políticos.

Jacques Le Goff assinala que, ainda no mundo feudal, o desenvolvimento do comércio obrigou o comerciante a ler, a escrever, a contar e a viajar; privilégios até então

15 Considerando a urbanização de um ponto de vista abrangente, trata-se de um pro-cesso que tem implicado na permanente, intensa e crescente transformação de toda a vida social em vida urbana, o que envolve não só a criação, expansão e transformação de cidades, mas também a formação de uma rede urbana cada vez mais integrada – incluindo represas, portos, estradas, meios de comunicação de informação, de trans-missão de energia –, e ainda modificações no campo, onde o modo de produção e o modo de vida estão, cada vez mais, subordinados ao urbano; um processo que em sua totalidade constitui um modo de vida cada vez mais homogeneizado espacialmente, no âmbito de economias nacionais territorialmente articuladas pela interdependência econômica e política.

Page 34: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

3 4

dos clérigos. A vida letrada e a experimentação existen-cial proporcionada pelas viagens e pela vida dos negócios transformou a consciência do comerciante. Assim, tendo o comerciante como um vetor, a nova consciência (Renasci-mento) difundiu-se, corroendo as bases do sistema de po-der do mundo feudal, dando passagem aos regimes absolu-tistas. Em seguida, o processo de formação e expansão de cidades, que produziu a multiplicação dos contatos sociais e a confrontação social da desigualdade entre a corte e o resto, bem como o desenvolvimento da imprensa e da pro-dução de livros, alimentou a corrosão dos regimes abso-lutistas, dando origem a estados republicanos (Revolução Francesa), inicialmente monarquias constitucionais. Poste-riormente à Revolução Industrial, a urbanização se acelera e surgem metrópoles e grandes cidades, com uma parcela cada vez maior de trabalhadores no tecido urbano e, com elas, o conflito e o autorreconhecimento dos grupos sociais (identidades), a segregação socioterritorial, uma sociedade civil cada vez mais complexa, a expansão e a dinamização da vida pública (Habermas). Os sistemas políticos precisa-ram se modificar; e não há formação socioterritorial urba-nizada, com mais de 85% de sua população vivendo em cidades, que não tenha adotado um regime de democracia representativa.

Ao longo desse processo, o desenvolvimento tecnoló-gico sempre impulsionou o desenvolvimento da comuni-cação, na medida em que gerava novos meios e possibi-lidades de transporte de objetos, pessoas, informações e energia, que possibilitaram ampliar a comunicação. Da mesma forma, o desenvolvimento da comunicação sem-

Page 35: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

L e o n a r d o M e z e n t i e r

3 5

pre alimentou o desenvolvimento tecnológico, tendo em vista que as trocas comunicacionais são o grande impul-sionadordo desenvolvimento científico.

Considerando essa trajetória de longa duração, não se pode desconsiderar, portanto, que o avanço da urbanização e dos processos de comunicação, incluindo um maior domínio da leitura e da escrita por um maior número de indivíduos, vem determinando mudanças im-portantes nos estados de consciência social, que implica-ram em mudanças nos sistemas políticos.

Os processos de transformação dos sistemas políticos, decorrentes de mudanças no estado da consciência social, não impediram o desenvolvimento do capitalismo, mas democratizaram e republicanizaram,progressivamente, os sistemas políticos, implicando numa série de direitos (coletivos, individuais, trabalhistas, sociais, políticos) que se sobrepuseram às relações sociais, incluindo aí as re-lações comerciais e,entre essas, as relações entre capital e trabalho. Até que ponto esse processo de progressiva constituição de direitos, por si, levará a uma transforma-ção mais profunda da sociedade, isso é uma questão em aberto na história.

Informática, internet e as novas manifestações

Sendo assim, é possível considerar a hipótese teórica de que fenômenos como celulares e internet (com seus blo-gs, Wikileaks,redes sociais),combinados ao aumento do

Page 36: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

3 6

número de pessoas que dominam mais de uma língua, bem como ao aumento de viagens internacionais, este-jampropiciando um conjunto de condições que configu-ram um novo estado da consciência social. Os protestos antiglobalização, os fóruns sociais mundiais, os OCUPY, a solidariedade internacional, as manifestações mundo afora, inclusive no Brasil, podem ser compreendidas com base na ideia de que existem novas condicionantes para a formação da consciência social.

Pode ser útil recorrer ao conceito de inteligência coletiva, formulado por Gramsci, para avançar na reflexão sobre o papel da internet, especialmente das redes sociais no processo de formação da consciência social16. Gramsci diz que o partido é a inteligência coletiva da classe social. Aqui, a palavra inteligência não quer indicar superioridade intelectual, mas capacidade de pensar, capacidade de analisar, de criar, de ter ideias e propostas sobre o mundo, boas ou más, certas ou erradas; sem esquecer que é a inteligência uma das faculdades que determinaa vontade e a coragem do sujeito para realizar seus objetivos, pois é a inteligência que indica, ao sujeito, os limites e possibilidades presentes na sua existência, ainda que, também nisso, nem sempre acerte.

Se a inteligência não livra os indivíduos de equívocos, o mesmo se pode dizer das coletividades. No entanto, opartido é visto por Gramsci como o lugar privilegiado de construção da consciência social de classe, superior

16 Pierre Lévy aciona a noção de inteligência coletiva, não só no sentido político, originalmente adotado pro Gramsci, mas também tratando do desenvolvimento da consciência na sua relação com o desenvolvimento das capacidades produtivasda so-ciedade e do seu papel no processo de produção de bens e serviços.

Page 37: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

L e o n a r d o M e z e n t i e r

3 7

aos sindicatos porque suplanta as segmentações de classe, sendo abrangente e geral; isso é o que importa. No partido, afirma Gramsci, todo trabalhador é um intelectual, isto é, alguém que analisa, tem ideias e propostas; e o partido é o lugar do contraditório dialético das individualidades que dele participam, gerando um debate que possibilita o desenvolvimento da consciência social de classe.

Generalizando a tese de Gramsci, é possível indicar que todo lugar onde os membros de uma coletividade possam debater sobre o mundo e sobre seus interesses no mundo se constitui uma forma de inteligência coletiva, numa forma de realização e desenvolvimento da consciência social de uma coletividade. Pode-se, portanto, considerarque os celulares, os computadores e a internet – especialmente as redes sociais – estão determinando importantes mudanças na forma como se dá o processo de construção da consciência social na contemporaneidade.

Mas redes sociais são muito diferentes dos partidos. Os partidos são centralizados, hierarquizados, relativamente homogêneos ideologicamente, com fronteiras e estruturas definidas e estáveis. As redes sócias são descentralizadas, horizontais, heterogêneas do ponto de vista ideológico, esuas estruturas são fluidas e mutantes. Essa perspectiva ajuda a explicar, por exemplo, o descompasso entre os partidos políticos e as manifestações de rua que estão se processando no Brasil, mas também permite supor que a interação entre esses dois tipos de inteligência coletiva será de extrema relevância para o futuro político da sociedade.

Page 38: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

3 8

Celulares, computadores, internet e esfera pública

Na sociedade contemporânea, as redes sociais,construídas a partir do uso da internet e dos telefones sem fio,estão se constituindo num novo e importante elemento da esfera pública, tal com sugerida por Habermas (1984). A esfera pública – onde estão presentes as atuações das grandes mídias, dos partidos políticos, das instituições do setor público, dos organismos da sociedade civil e das persona-lidades e estruturas acadêmicas – está sendo dinamizada e reestruturada por esse novo elemento: as redes sociais articuladas pela internet e telefones sem fio, como água, penetram, às vezes, de forma explicita, às vezes de forma discreta, nos locais de trabalho, de residência e de lazer; participando em todos os entes da esfera pública, levan-do e trazendo ideias e informações. Nesse sentido, as re-des sociais estão se constituindo num vetor importante da definição social do que seja o interesse público.

“Segundo o Ibope Media, somos 94,2 milhões de internau-

tas tupiniquins (dezembro de 2012), sendo o Brasil o 5º país

mais conectado (do mundo). De acordo com a Fecomércio

-RJ/Ipsos, o percentual de brasileiros conectados à internet

aumentou de 27% para 48%, entre 2007 e 2011. O prin-

cipal local de acesso é a lan house (31%), seguido da pró-

pria casa (27%) e da casa de parentese amigos, com 25%

(abril/2010).”17

17(Fonte: http://tobeguarany.com/internet_no_brasil.php)

Page 39: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

L e o n a r d o M e z e n t i e r

3 9

Nesse sentido, vale lembrar que “quanto mais interativo for um processo de comunicação, maior será a probabilidade de formação de um processo de ação coletiva.” (CASTELLS, 2013: 19)

Na internet, opera um exército invisível de analistas e redatores, com origem nas camadas universitárias, que influenciam os sentimentos coletivos produzindo ideias, teorias, representações de identidade, imagens e símbolos. Nesse sentido, a internet “empoderou” as camadas médias universitárias.

O desenvolvimento de uma esfera pública da vida social acompanhou a urbanização, que se materializa também no desenvolvimento de um sistema de transporte e comunicação, ao qual se integram, contemporaneamente, celulares, computadores e a internet. Esses novos meios,pelo seu impacto sobre os processos comunicacionais, representam, por si mesmos, um novo momento do processo de urbanização da vida social e de desenvolvimento da esfera pública. Por sua capacidade de propiciar a comunicação entre as pessoas e a experimentação de fatos vividos por outras pessoas, por meio da transmissão de imagens digitalizadas, a internet e os celulares já são um dos elementos da sociabilidade na “nova cidade” e estão determinando o processo de construção das vontades e desejos que vão construir a “nova cidade”.

Page 40: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

4 0

Bibliografia:

CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos so-

ciais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. 4ª ed. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janei-

ro: Tempo Brasileiro, 1984.

LE GOFF, J. O apogeu da cidade medieval.São Paulo: Martins Fon-

tes, 1992.

LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

LUKÀCS, G. História e consciência da classe. Porto: Publicações Es-

corpião, 1974.

SIMMEL, G. “A metrópole e vida mental” in: Velho, G. (org.)O

fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

Page 41: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

4 1

Manifestações: o velho e o novo

lincoln De aBreu Penna

Quando os jovens ativistas do Movimento do Passe Livre (MPL) saíram às ruas, em São Paulo, e foram reprimidos com a violência costumeira das forças policiais do estado, teve início um conjunto de manifestações, as chamadas Jornadas de Junho. Entendê-las tem sido o exercício de muitos governantes, cientistas políticos e cidadãos inte-ressados nos rumos dos acontecimentos. Tentarei também entrar de cara nesse time de intérpretes usando três passos que me parecem um bom caminho: (1) apreender os fatos, (2) compreendê-los e, finalmente, (3) interpretá-los.

1. A apreensão desses fatos transcorridos durante o mês de ju-

nho implica numa necessária percepção da realidade maior,

aquela que nos integra como sociedade ao mundo de hege-

monia capitalista. Sim, a crise mais recente, de caráter es-

trutural e crônico do capitalismo, iniciada em 2008, está na

base de tudo. E a lógica do capital penetrou de tal forma nas

relações sociais e políticas de modo a reproduzir seus valo-

res, que contaminou profundamente as instituições, e,dentre

elas, os partidos políticos, não importandosuas linhas pro-

gramáticas e ideológicas.

Page 42: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

4 2

É claro que a lógica capitalista introduziu-se no campo po-

lítico desde que o capitalismo ganhou a dimensão de um

sistema mundial. Mas, de uns tempos para cá, mais precisa-

mente com o fim da experiência do socialismo real, tornou-

se hegemônico o suficiente para fazer valer suas regras e leis,

de modo a se impor junto às práticas sociais e políticas, e em

todas as formações sociais e nacionais, varrendo tradições

culturais e universalizando seu modo de ser.

A adequação das políticas econômicas e financeiras ao novo

receituário dessa hegemonia aprisionou os governos e os

fez refém desse poder mundial do capital. No Brasil, essa

política foi incrementada pelo governo de Fernando Hen-

rique Cardoso, mas continuada por Lula e Dilma do ponto

de vista da orientação macroeconômica. No caso dos dois

últimos, com pequenas concessões aos segmentos sociais

situados mais à margem desse processo concentrador e ex-

cludente.

Contudo, o que mais salta aos olhos é a adoção de práticas

políticas típicas da ideologia do capital. Nestas práticas, o

que vale são os interesses privados a se multiplicarem com

o uso ilícito e constante dos recursos públicos. Não é mais

a corrupção que se encontra presente num ou noutro pro-

jeto governamental, mas o apetite de quadros partidários

usando, sem cerimônia, a máquina dos aparelhos de estado

para se locupletarem, em conivência com um setor do em-

presariado de características corruptoras. E mesmo os parti-

dos de esquerda transformaram-se em máquinas eleitoreiras

contumazes, cada vez mais distantes dos movimentos sociais

organizados.

Com isso, as gestões dos governos municipais, estaduais e

federal acabaram contaminadas e contaminando aqueles

Page 43: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

L i n c o l n d e A b r e u P e n n a

4 3

que primam pela observância das ações honestas. Há uma

série de situações em que o interesse privado cruza-se com

o público, porém, no setor de transporte, a coisa alcançou

uma dimensão alarmante, tanto nas concessões aos empre-

sários desse ramo quanto na administração dos espaços pú-

blicos. Soma-se a isso a adoção de uma política de incentivo

à produção de automóveis, o que ajuda a estrangular ainda

mais a mobilidade nos grandes centros urbanos pelo acú-

mulo de veículos. Isto porque, para escoar a produção de

automóveis, instalou-se a contradição entre uma política de

facilitação de créditos, de um lado, e a ausência de políticas

voltadas para ampliar e melhorar a mobilidade urbana nos

grandes centros, de outro, o que tem criado um cenário de

grande irritabilidade na população. Não por acaso foi na

área dos transportes que essa situação levou a tantas outras

catarses coletivas, de modo a mobilizar milhões de cidadãos.

2. A compreensão desses fatos nos leva a crer que existe,

sem dúvida, uma relação entre o que se passa no âmbito

da crise capitalista e o surgimento dessas atitudes mais

combativas de parte significativa da população. Tem ha-

vido dois tipos de avaliação diante desses fenômenos de

massa: os que creditam tais ações a uma suposta tentati-

va da direita de operacionalizar um golpe, pondo gente

na rua para que se crie um ambiente favorável à inter-

venção militar. Trata-se da velha querela entre a ordem

e os desordeiros, sempre estimulada pelos setores mais

conservadores, tão a gosto dos grupos antipopulares; e

os que veem nessas manifestações indícios de uma nova

cultura política, ainda em fase bem rudimentar. Nesta,

todavia, uma coisa desponta de cara: o abandono com-

pleto das instituições, sobretudo o desprezo aos parti-

dos políticos e aos políticos profissionais. No primeiro

Page 44: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

4 4

caso, por um interesse meramente político e ideológico,

de modo a criar as condições para um retrocesso; no se-

gundo, pela sensação de que tais instituições precisam,

urgentemente, se reciclar. Promover uma baita autocrí-

tica de suas práticas políticas mais recentes.

Ambas as avaliações precisam ser mais bem reexami-

nadas. No primeiro caso, a rejeição aos manifestantes

tem partido de grupos organizados ou comprometi-

dos partidariamente, alvos quase que preferenciais dos

manifestantes. Exacerbam a presença de infiltrados no

movimento, como se tais pessoas pudessem orientar o

comportamento dos participantes. Trabalham com a ló-

gica de que há uma conspiração no ar, e com a premissa

de que o governo do PT é o objetivo dessa conspiração.

Pode ser que isso aconteça, mas positivamente não me

parece ter a dimensão sugerida por esses críticos das

manifestações.

Também situam a ausência de lideranças ou comandos

organizados como sendo típico de ações orquestradas

de fora para dentro, não entendendo, no entanto, que

essas ausências fazem parte do novo quadro de agita-

ções políticas, promovidas, em grande parte, por inter-

nautas movidos por concepções políticas bem distintas

da linguagem política de um passado recente. Neste, o

discurso conduzia às manifestações. Hoje, as manifes-

tações representam o próprio discurso difuso, confuso,

mas marcado pela ação direta de cunho anarco-volun-

tarista.

A outra avaliação coloca a questão do ponto de vista

da novidade. Considera que essas manifestações refle-

tem um fenômeno que precisa ser aprofundado pelos

Page 45: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

L i n c o l n d e A b r e u P e n n a

4 5

analistas, porquanto o que se assiste é a presença de

um grito em defesa da legitimidade das coisas da políti-

ca, entendendo-a como primazia a ser a ela concedida,

mesmo em detrimento da legalidade ordeira, ciosa dos

princípios do estado democrático de direito e, enfim, da

própria ordem estabelecida.

E entende mais: que o lado vândalo das manifestações

obedece ao caráter das revoltas, pois não há revolta

que não seja violenta. E manifesta outro aspecto pou-

co salientado: o de que esses vândalos não acreditam

mais em arranjos dentro da ordem. Instintivamente

proclamam a falência da política de acordos, conchavos

e tratativas, pois os exemplos vividos demonstraram que

essas negociações, com vistas a incorporar demandas de

oponentes ao sistema, não prosperam na perspectiva de

quem já não acredita no funcionamento desse sistema.

3. Interpretar esses acontecimentos implica em redimen-

sionar o contexto no qual se situa a crise estrutural do

capitalismo dos nossos dias e compreender o caráter

desses novos protagonistas da política brasileira. São

eles jovens, em sua maioria, quase todos sem experiên-

cias na política que vigorava tradicionalmente e sinto-

nizados com o mundo em ebulição,por meio das redes

sociais.

Creio que vieram para ficar na vida política do País e

acender uma contradição a mais no cenário das relações

sociais em vigor. Refiro-me à contradição entre as velhas

práticas sociais e políticas ainda vigentes, principalmen-

te no campo dos aparelhos repressivos do estado, e a

emergência do novo ator político centrado na figura de

quem, ao mesmo tempo, protesta com energia e exige

Page 46: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

4 6

soluções em curtíssimo espaço de tempo. Esses novos

atores integram a classe média ampliada, na qual cabem

muitas representações: a tradicional, proprietária e ten-

dencialmente reacionária, ciosa de direitos e privilégios

para os seus entes; a constituída pelo diversificado leque

do assalariamento progressivo dos profissionais liberais

que a compõem; e uma fatia não menos desprezível de

emergentes oriundos das classes subalternas, alçados à

condição de setor intermediário pelo critério de renda.

Nesta classe média ampliada, ocorrem divergências pro-

vindas de visões de mundo distintas, o que impede que

se trate tal conglomerado como classe média apenas. É

preciso requalificá-la, inclusive porque em seu interior

se trava uma das muitas formas de luta de classe, cada

vez mais presente no panorama das estratificações so-

ciais realinhadas.

Assim, legitimista, participativa e politizada de maneira

original,bem diferente da politização até então conhe-

cida, destaca-se pelo protagonismo consciente do papel

simultâneo de cidadania plena e de consumidor empe-

nhado em se informar e cobrar o bom funcionamento

dos serviços públicos.

No campo da política formal, a crise que tem prospe-

rado vitima fundamentalmente o estado e as relações

entre governantes e governados. Os primeiros incapazes

de darem respostas às demandas sociais acumuladas e

retardadas, ao passo que os segundos desacreditam na

eficiência das instituições encarregadas de intermedia-

rem essa relação dos cidadãos com os seus representan-

tes. A perspectiva de se ter em curso experiências novas

de democracia direta envolve o instituto da reforma po-

Page 47: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

L i n c o l n d e A b r e u P e n n a

4 7

lítica, termo que, embora não tenha sido em momento

algum proclamado pelos manifestantes, tornou-se im-

perioso, tendo em vista que a participação mais ativa

do cidadão necessita de medidas que possam favorecer

esse diálogo entre as partes, isto é, entre governantes e

governados, ou representantes e representados.

O importante é constatar que a pauta política está sen-

do determinada pelas ruas. São as sucessivas manifesta-

ções que estão produzindo as agendas dos governos em

todos os níveis, a começar pelo nível federal, indispensá-

vel para que se possam aperfeiçoar os mecanismos tais

como a adoção, por exemplo, do recall, ou seja, a pos-

sibilidade de, de tempos em tempos, o eleitor reavaliar

o voto dado ao seu representante. Claro que, para isso,

é preciso a criação do sistema distrital, de preferência o

misto, aquele no qual o eleitor pode votar na represen-

tação nacional e votar para o representante paroquial,

de modo a poder monitorar o seu desempenho.

A verdade é que, de um modo geral, as conquistas obtidas

por meio das pressões que se iniciaram com a anulação ou

redução drástica das passagens dos coletivos urbanos e for-

çaram a governantes a recuarem de seus propósitos iniciais,

como aconteceu com o governador do Rio de Janeiro, Sérgio

Cabral, que cedeu às reivindicações no que se refere ao en-

torno do Maracanã, são fatos concretos, de uma retumbante

vitória do povo nas ruas. Pelos caminhos convencionais, essas

demandas por certo não teriam acontecido com tanta rapi-

dez,e com resultados tão positivos. Nem o sindicalismo, em

suas fases mais combativas, alcançou na democracia rediviva

brasileira êxitos em tão pouco tempo, e jamais mobilizaram,

Page 48: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

4 8

juntamente com os partidos políticos de esquerda, tanta gente

nas ruas. Este é, quer queiram ou não, um atestado da força

do movimento popular. Aliás, sempre foi assim. É uma lei his-

tórica: quando as massas vão às ruas, os resultados acontecem

inapelavelmente.

O novo que se firma ainda padece de uma identidade mais

nítida. Em contrapartida, o velho que estrebucha tenta resistir

aos ventos dos novos tempos, libertários e descompromissa-

dos com o passado. Seu ocaso parece próximo, mas ele esper-

neia, na ânsia de se manter vivo e necessário à manutenção da

ordem, pois ele é a própria expressão da ordem, que no Brasil

rejeita o povo, sobretudo o segmento social mais marginaliza-

do, contra o qual lança mão da repressão seletiva e permanen-

te. Agora, essa mesma ordem anacrônica se volta em nome da

paz policiada para os segmentos intermediários, muitos deles

derivados de setores da classe dominante, despossuída de sua

posição anterior, e, neste caso, a repressão ganha os holofotes

da mídia que os acompanham e, de certa forma, também os

representam.

Não, os novos protagonistas da cena política brasileira não

pretendem nem podem reproduzir as funções que a velha

e a reformada esquerda brasileira exerceu por ocasião da

transição da ditadura para a democracia. Naqueles tempos,

era indispensável à transição o funcionamento dos partidos

políticos. Afinal, ao longo da ditadura eles não puderam

exercer seus legítimos, assim como o poder legislativo foi in-

teiramente reduzido ao papel de carimbador das legislações

derivadas do executivo. E ao retornarem com a vigência do

estado de direito democrático, inaugurado com a Constitui-

ção de 1988, era de se esperar que voltassem revigorados e

cheios de energia.

Page 49: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

L i n c o l n d e A b r e u P e n n a

4 9

Ocorre que, presentemente, a ideologia do capitalismo mi-

nou a credibilidade dos partidos. Todos, sem exceção,torna-

ram-se cúmplices da falência de uma democracia totalmente

descaracterizada do ponto de vista de seus resultados

práticos. A convivência dessa democracia formal, política e

institucional com o capitalismo demonstrou-se impraticável.

Na verdade, enquanto a democracia tende a se mover para

todos os lados e a incorporar mais desejos por parte de popu-

lações excluídas parcialmente ou totalmente do convívio so-

cial, a progressão capitalista se dirige para uma concentração

devastadora de capital e de riqueza, num mundo ainda mais

desigual do que tem sido desde os primórdios do funciona-

mento desse sistema de poder.

O que de mais retrógrado se mantém no panorama atual é

tudo o que diz respeito à ordem, à propriedade e às formas

repressivas, inerentes aos mecanismos resistentes às mudan-

ças; ao passo que prosperam as inquietações, com vistas a

novas formas de convívio social, incipientes, desorganizadas

e desordeiras, mas profundamente comprometidas com o que

há de mais sublime no ser humano: a solidariedade aos mais

fracos, desvalidos e desassistidos, num turbilhão de gestos li-

bertários e dispostos a abrir novos e promissores horizontes,

com a violência dos indignados.

Independente das muitas abordagens sobre esses fatos, o

que está ocorrendo é algo que se situa entre as práticas po-

líticas de ontem e as que vêm se estruturando aos trancos e

barrancos hoje em dia. Com suas contradições e ambiguida-

des, com o desprezo pelo passado remoto ou recente, o fato

é que se trata de alguma coisa que precisa ser diagnosticada

com vistas a dar rumo ao processo de transformação, cujo

alvo para todos nós, sedentos de justiça social, deve ser a

Page 50: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

5 0

instauração de um novo modo de vida, de uma sociedade

verdadeiramente alternativa, que aprofunde a democracia,

levando-a à radicalidade, e com os olhos voltados para a

busca incessante da velha e querida utopia: a da igualdade

entre homens e mulheres.

Que os novos tempos conjuguem os direitos inalienáveis do

ser humano, incluindo a todos, com vistas à sociedade liberta

de entraves ao exercício pleno da cidadania, na qual não seja

necessária a vigilância por parte do Estado. Que a própria so-

ciedade conduza seu destino autonomamente. Tampouco seja

preciso uma polícia armada, violenta, truculenta e voltada

exclusivamente para reprimir o povo. A autodefesa dos cida-

dãos haverá, num futuro breve, de se impor naturalmente, de

modo a excluir de seu convívio os que a agredirem, motivados

por impulsos antissocietários.

Nesse dia, teremos consumado o processo de libertação das

teias que enredam a todos. Assim, a catarse que se assistiu nas

Jornadas de Junho voltarão não para manifestar as insatisfa-

ções generalizadas de hoje, mas para proclamar, com alegria,

a realização dos primeiros sonhos de uma utopia inesgotável,

que deve nos conduzir para a estrada interminável do bem-es-

tar social, com repartição das riquezas e com a certeza de que

todos podem conviver em paz. Com a paz assegurada pela

justiça social.

Mas para que esses passos possam ser dados com absoluta

garantia de que não se corre o risco de mais uma frustração, e

tampouco retrocesso, é necessário que estejamos todos cons-

cientes de algumas atitudes políticas que possam realmente

embalar essas manifestações na direção de conquistas popu-

lares. Para tanto, uma série de compromissos propositivos

precisa ser assumida. Trata-se de uma tarefa derivada dos as-

Page 51: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

L i n c o l n d e A b r e u P e n n a

5 1

pectos positivos já mencionados. Assim, listo abaixo algumas

dessas atitudes e iniciativas.

1. Combate às práticas políticas desviantes da

democracia, sejam elas provenientes da ação

policial ou de manifestantes que não primam

pela defesa do contraditório, ou seja, o direito

de conviver com os diferentes e divergentes das

opiniões manifestadas.

2. Defesa das instituições democráticas e cobran-

ça de mudanças radicais para que elas possam

operar efetivamente na consolidação de espa-

ços democráticos. Cito, dentre elas, o poder le-

gislativo, as instâncias do poder judiciário e,

sobretudo, a adoção de uma polícia cidadã e

desarmada.

3. A defesa intransigente das atividades dos parti-

dos políticos, sem que esta defesa não signifique

o nosso aval para práticas nocivas da ação de

muitos de seus militantes, principalmente da-

queles vinculados aos partidos populares e de

conteúdo programático doutrinário. Os de es-

querda, principalmente.

4. Compromisso com os projetos de alargamento

da democracia, na direção da democracia social

e não apenas política, de modo a incluir pautas

que avancem ainda mais na direção de reformas

estruturais, muitas delas amparadas pela atual

Constituição de 1988 e suas emendas populares.

5. Luta continuada a favor da justiça social como

único caminho verdadeiro da democracia so-

Page 52: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

5 2

cial, cujo nome que mais a identifica é o socia-

lismo, e não o capitalismo, inteiramente incom-

patível com as demandas provenientes dos mais

sinceros manifestantes mundo afora e, inclusi-

ve, no Brasil.

6. Criação de núcleos de ação reflexiva e ativa nas

diversas formas de organização societária, para

que a organização popular e independente se

some às formas institucionais reformuladas e

sintonizadas com os anseios populares e façam

fluir as iniciativas com vistas à construção de

uma nova sociedade, não capitalista e solidária.

7. Que se firme definitivamente o compromisso

com a defesa da diversidade, em todos os níveis,

e se some esforços na luta contra as desigualda-

des sociais e os preconceitos de todo gênero, in-

dispensáveis para um projeto transformador e

capaz de assegurar melhores condições de vida

à humanidade.

Page 53: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

5 3

A Democracia Frankenstein

Flávia vinhaes

Como seria a América Latina se tantas ditaduras não encontrassem por aqui terreno tão fértil? No Brasil, a cada dia torna-se mais clara a herança deixada pelo au-toritarismo ditatorial que se instalou repetidas vezes em nosso país. Essas práticas totalitárias são frequentemente observadas na segurança pública, na administração pú-blica, na corporação jurídica e no trato com o cidadão. Enquanto forem mantidos o perdão e o esquecimento a essas ditaduras infames, enquanto houver uma sociedade que esconda seus mortos no armário e anistie seus algo-zes, veremos caminhar esse Frankenstein ao qual diaria-mente somos obrigados a nos submeter e que insistem em chamar de democracia.18

Essa história vem de longe. Os fluxos migratórios no Brasil, originários das zonas rurais quando da industria-lização e urbanização das cidades brasileiras, criaram um grande quantitativo de trabalhadores que, parcialmente absorvidos pelas empresas capitalistas, deixaram como

18 Aqui, fico à vontade para reproduzir algumas expressões utilizadas por Marcelo Kloster ao relatar o caso da ditadura na argentina. Tão imprescindível amigo, com comentários sempre oportunos.

Page 54: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

5 4

resíduo um amplo contingente de trabalhadores deso-cupados, inaugurando o exército industrial de reservas do capitalismo industrial periférico brasileiro. Estes tra-balhadores, ainda desorganizados e mal remunerados quando ensaiaram sua inserção no movimento sindical organizado, foram interrompidos por uma ditadura ci-vil-militar. O modelo de capitalismo desenvolvido, ori-ginário dos países centrais, com pactuação de ganhos de produtividade entre trabalho e capital, não teve tempo nem espaço político para se consolidar por aqui, onde prevaleceu o trabalho mal remunerado, desqualificado e desorganizado.

Apenas em meados dos anos 80, os atos políticos e movimentos sociais puderam se expressar livremente.Até então, eram violentamente reprimidos pelo Estado ditatorial. Inicialmente, havíamos pensado que a garantia do direito a eleições diretas já seria um grande passo. Dessa forma, elegeríamos um representante do povo, que lutaria pelos interesses do povo, numa democracia representativa. Mas voto não combina com pobreza, não combina com necessidade, com analfabetismo, com baixa estima, com concentração de renda. E desta forma, nosso voto inicialmente não foi revolucionário.Ao contrário, em muitos rincões deste País, o voto legitimou a permanência das oligarquias locais, que tratavam o Estado como a prorrogação de suas casas.

O final da ditadura inaugurou uma nova época na América Latina: a hegemonia do neoliberalismo. Os tra-balhadores que antes não puderam exercer seus direitos num estado de exceção, na década de 90 curvaram-se ao

Page 55: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l á v i a V i n h a e s

5 5

poder do mercado, sem que houvesse tempo para se faze-rem valer os direitos republicanos garantidos na Carta de 88. Altas taxas de juros, alto nível de desemprego, reestru-turação produtiva, downsizing, palavras de ordem como empregabilidade, globalização e competitividade baseada no aumento de produtividade (muitas vezes obtida por meio da intensificação do ritmo do trabalho), compunham o mantra do neoliberalismo. O trabalhador passou então a ser responsável por ser empregável. Nos fizeram acredi-tar que o emprego estava vinculado a nossas qualificações que, a cada dia, tinham que ser mais plurais, quando, na verdade, a atividade econômica, diante da diminuição do Estado, da retração dos investimentos produtivos e das altas taxas de juros, estava absolutamente contraída e o mercado de trabalho cada vez mais precarizado, com mais vínculos informais, menores salários e direitos trabalhis-tas, e a população testemunhou o desmonte dos direitos sociais recém garantidos e ainda pouco experimentados. Trocamos a ditadura militar pela ditadura do mercado.

O modelo neoliberal expôs o País a ataques espe-culativos, crises cambiais e retração de seus parques produtivos. Os tão esperados investimentos diretos, na realidade, vieram atraídos pelo processo de privatização e pelas fusões e aquisições, sem garantir a criação de novas plantas produtivas (os chamados investimentos greenfield) e novos postos de trabalho, apenas operando a transferência de propriedade e impondo a nova lógica ao mercado brasileiro.

Mais uma vez os trabalhadores foram vítimas do capitalismo terceiro mundista; aquele capitalismo neces-

Page 56: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

5 6

sário ao capitalismo central. E nesse contexto, de bai-xos salários e relações flexíveis de trabalho, reivindicar qualquer melhoria parecia impossível. A solidariedade se esfacelava a cada imposição de que fôssemos todos ven-cedores, porque no mundo não havia lugar para perde-dores. O tecido social, diante da supressão dos vínculos solidários e do clima acirrado de competição pessoal e profissional, foi se esgarçando. Na esfera pessoal, o neoli-beralismo caracterizou-se pelo individualismo exacerba-do; pelos transtornos do humor, como a depressão; e pela síndrome do pânico.

Os fracassos eram interpretados como pessoais, visto que se negava a ideia de coletividade, e, até na hora de narrá-los, havia vergonha por se pensar serem os únicos que, no jogo dos vencedores,eram os perdedores. Perde-dores na esfera profissional, pessoal e afetiva.

As pessoas se esconderam atrás de seus computadores, trabalhavam cada vez mais horas.A palavra workaholic, outro clichê neoliberal, contrastava com os salários es-tagnados, e a tensão social estava posta. A ditadura do mercado foi responsável por mercantilizar e sucatear os serviços públicos e transformou o Estado em mais um player do mercado, mas claro, um player garantidor, em última instância.

Pois não há bem que sempre dure nem mal que nun-ca se acabe. Eis que elegemos um governo popular, cujo discurso e prática eram opostos aos anteriores, cujo olhar para a sociedade era respeitoso e buscava entender suas contradições e complexidades. Um governo que, pela pri-meira vez na história do Brasil, era exercido por um tra-

Page 57: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l á v i a V i n h a e s

5 7

balhador, sindicalista e nordestino, que se orgulhava de sua trajetória e que criou uma arquitetura de programas sociais do tamanho da necessidade do Brasil.

Fomos entendendo que as pessoas não podiam viver na extrema pobreza porque isso configurava um proble-ma moral, de justiça social, econômico e distributivo. Nos sensibilizamos com o fato de que as pessoas eram pobres não porque fossem preguiçosas, mas porque neste País, um dos piores do mundo em termos distributivos, não existia mobilidade social.Portanto,quem nascia pobre, provavelmente morreria na mesma condição. E entende-mos que esse ciclo de reprodução da pobreza precisaria, necessariamente, ser interrompido.

Atualmente, convivemos com políticas contraditó-rias, que apontam para o aprofundamento da justiça so-cial e da inadiável participação do Estado enquanto in-dutor de investimentos e promotor do bem-estar social, ao mesmo tempo em que testemunhamos apropriações indevidas da coisa pública, que identificamos um Estado extremamente burguês, autoritário, e, não raro, violento. Essas contradições nos inquietam. A urgência de um Es-tado que faça a sua autocrítica, que questione sua heran-ça totalitária e mercadológica,torna-se, a cada dia, mais urgente.

Não foi só pelos 20 centavos, mas foi também pelos 20 centavos. Eis que nos mexemos e timidamente fomos às ruas. As manifestações no Brasil sempre foram trata-das como atos de delinquência, mesmo em governos ditos democráticos. Ocorre que, na inicialmente pequena e tí-mida manifestação do Movimento Passe Livre, em São

Page 58: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

5 8

Paulo, a polícia trouxe todo o seu arsenal de violência. Eram poucos manifestantes, ordeiros, causa justa, pouca adesão. O que estava havendo? Por que o aparelho de repressão do Estado estava presente?

As manifestações que se seguiram contaram com uma enorme adesão da população e a violência por par-te do Estado não deixou de estar presente em nenhuma delas. A polícia foi se equipando, o Batalhão de Choque já se posicionava antes mesmo de os atos políticos se iniciarem e a sociedade percebeu que este Estado, que julgava desorganizado, corrupto, excludente, era tam-bém muito violento.

O aumento da passagem de ônibus foi revogado em vários estados do Brasil, e o povo se sentiu mais forte. Depois de décadas de impotência, descobrimos que, se nos organizássemos, conseguiríamos que o Estado, que em tese estava ali para nos representar, mas que poucas vezes o tinha feito, nos olhasse, nos ouvisse e atendes-se algumas de nossas reivindicações. Percebemos que o neoliberalismo, com suas doutrinas individualistas, apostava na atomização dos indivíduos de forma a man-tê-los desmobilizados, e assim não havia necessidade de recorrer às armas. Mas agora, sem o totalitarismo mer-cadológico, pareceu que, de novo, recorreram às velhas táticas de violência.

Sem líderes definidos, a chamada para as passeatas ocorreu por meio da rede, mas sua organização se deu de forma intuitiva. Tempos de organização horizontal. Al-gumas pessoas formando barreiras para combater a vio-lência policial, outras filmando todo o ato político, sem

Page 59: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l á v i a V i n h a e s

5 9

edições, para que a sociedade observasse o movimento ao mesmo tempo em que se criava um registro dos fatos, muitas outras dando lições de direitos civis, um grupo socorrendo os que tinham sido vítimas da violência ex-trema do Estado.

A necessidade de nos reconhecermos enquanto socie-dade, enquanto coletivo, para além de nossos desejos in-dividuais ou de nossa vitórias pessoais, levou-nos às ruas, nos fez questionar o papel da mídia inescrupulosa que temos no Brasil, nos fez criar novas narrativas, nos deu coragem de brigarmos por utopias. Há tempos nem os sindicatos, associações ou movimento de trabalhadores têm tido tanta adesão como temos visto com a “primave-ra de junho”. Não que tenham se tornado desnecessários, mas certamente precisam se reinventar.

Uma característica de parte destes jovens é que che-garam alienados do debate político, inclusive frequente-mente negando a política e utilizando clichês construí-dos e infiltrados pela própria mídia que, hoje, atua, ela mesma, como um partido político. Inegavelmente, há virtude nesta geração do “eu quero”, “eu mereço”: uma disposição para a luta que, nos mais velhos, já estava adormecida. Não obstante, talvez ainda não entendam que a política é um jogo de correlações de forças onde, reiteradamente, o povo tem assumido o lado mais fraco. Apesar do efeito surpresa das manifestações, que nos ga-rantiu, indiscutivelmente, alguns ganhos políticos e so-ciais, parece-me que, sem perda de tempo, as instituições já se reorganizaram para lidar com esta “nova” forma de organização política.

Page 60: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

6 0

E como a toda ação corresponde uma reação, temos presenciado um fenômeno que acreditávamos só ocorrer nas periferias e bairros pobres das cidades: a exacerbação da violência por parte dos aparelhos do Estado, inclusive no trato com a classe média. Afinal, a ditadura nunca acabou para os pobres. O Estado democrático de Direito foi construído para as classes dominantes. As instituições operam para reproduzir a lógica da exclusão, não para combatê-la.

Os Blocs vão às ruas e provocam a polícia. Não é raro saírem machucados. No fundo, eles estão expondo para toda essa sociedade que durante muito tempo não teve olhos de ver, que essa polícia não cabe num Estado Republicano, que as instituições ditas democráticas não foram feitas para todos e que, se contestada esta insti-tucionalidade, haverá represálias. Ainda sobre os Blocs, a quem não defendo nem condeno porque os reconhe-ço enquanto um movimento social a mais, sempre penso no porquê da motivação pela destruição do patrimônio público. Por que quebrar os vidros da Câmara dos Ve-readores, com aquela arquitetura neoclássica belíssima, ou o Teatro Municipal, recém restaurado e inaugurado, ou mesmo os orelhões e canteiros? Será que não estão nos dizendo que essa parte da cidade não lhes pertence? Afinal, quem vai ao Municipal? Quais são os Projetos de Lei votados na Assembleia ou na Câmara, que têm por objetivo melhorias para a coletividade? Onde estão os canteiros e orelhões dos municípios mais pobres? Tal-vez eles não se reconheçam nos aparelhos públicos sociais ou culturais deste Estado. Afinal, particularmente o Rio,

Page 61: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l á v i a V i n h a e s

6 1

mas não só, tem se mostrado uma cidade hostil, que não acolhe a sua população, enquanto para os bancos e em-preiteiras está sempre de braços abertos.

É possível que, sem intencionar, esse movimento te-nha nos mostrado que a violência veiculada pela grande mídia, como se o povo fosse baderneiro, é usada para encobrir toda a violência do Estado praticada contra o ci-dadão comum que estiver disposto a garantir seu espaço nesta correlação de forças políticas. De novo, o povo quer ser um ator político relevante.

De junho até setembro foram 500 prisões arbitrárias só no Estado do Rio de Janeiro. Alguns dos jovens presos sequer tiveram acesso a um advogado. Outros foram encaminhados para prisões de segurança máxima como se fossem criminosos de alta periculosidade. São jovens de classe média, estudantes universitários, alguns estagiários que têm utopias de um país mais justo e igualitário. Foram às ruas elaborar melhor suas demandas, buscar seus pares, participar da vida política deste País e foram recebidos a balas de borracha e gás lacrimogêneo como que sendo alertados a não mexer neste vespeiro. No início das manifestações, estes jovens ousaram oferecer flores aos policiais com a esperança ingênua de que fossem todos uma só voz. Levaram tapa na cara, spray de pimenta nos olhos e pancadas. Parece terem entendido que estão de lados opostos. A polícia está defendendo, com muita clareza, uma classe social específica. Não estão ali como parte do povo, estão como capatazes, porque o Brasil é especialista em criar capatazes.

Page 62: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

6 2

Estamos vivendo a criminalização dos movimentos sociais, a infração aos direitos constitucionais. Temos no Rio de Janeiro um Ministério Público a mando do poder do Estado que, junto com o judiciário, homologam a prá-tica da polícia, expondo a pouca nitidez institucional que tomou conta do Estado. É preciso que o judiciário volte ao seu lugar, é preciso que o Estado abdique da violência desnecessária e que sua ação seja desmilitarizada, pois tem tratado a sociedade como inimiga. Se faz urgente a desmilitarização da polícia, que utiliza a violência para calar o povo, que coloca o patrimônio à frente da vida, que nos mostra que a democracia nunca afastou dos am-bientes menos privilegiados o Estado Policial.

É necessário que cada instituição se reposicione e traga o direito de volta a esta democracia imperfeita. Chega de Frankenstein. É hora de se entender o direito como direito para o outro, principalmente para os que es-tão vulneráveis, para que no ambiente político possamos reconstruir nossa dignidade.

Page 63: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

6 3

Sete provocações (ligeiras) sobre uma conjuntura cheia de enigmas

Por Marcelo BarBosa e KaDu MachaDo

A atuação das forças democrático-populares deve ser no sentido de corrigir as distorções de nosso sistema políti-co, e não abri-lo à possibilidade de uma contrarreforma

1- Começando pelo óbvio. Ninguém conseguiu forne-cer explicações conclusivas sobre as motivações, a gênese e o comportamento dos sujeitos envolvidos, ou ainda os possíveis desdobramentos das jornadas iniciadas no mês de junho corrente. A perplexidade envolveu a academia, o staff político e a liderança dos movimentos de massa.

Todos, no entanto, tentaram responder aos desafios da conjuntura por meio de iniciativas que, de uma ma-neira geral, produziram uma sensação de improviso, de atropelo diante dos fatos. Nem as ações da Presidente da República escaparam a esta lógica.

Em vista das dificuldades, a cautela recomenda a moderação do apetite compreensivo para lidar com uma constelação de fenômenos tão marcada pelo contraditó-

Page 64: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

6 4

rio. Este texto, mais do que demarcar uma linha de ar-gumentação pronta e acabada, destina-se a submeter à crítica certos consensos que se instalam no senso comum dos observadores e atores da política.

2- Nada será como antes. Alguns setores da esquer-da – mais acomodatícios – apostam que o “turbilhão vai passar” e as coisas voltarão ao “normal”. Pensando assim, militam no equívoco.

O sujeito político presente nas ruas, independente-mente de sua classificação teórica – para alguns, trata-se dos filhos de uma nova classe; para outros, os herdei-ros da insatisfação das camadas médias com o governo do PT –, não voltará para casa. Estes jovens pretendem continuar em ação. Os ritmos e a intensidade de sua atividade poderão variar.Talvez haja momentos de cal-maria, mas a mobilização vai prosseguir enquanto as causas para sua existência permanecerem.

Isso parece confirmado pelo modo como a luta já contagia outros setores sociais, inclusive a área sindical. O resultado aponta para o fim da interdito a temas como a reforma agrária, a reforma urbana, a democratização das comunicações, a garantia do caráter público para a educação e a saúde, entre outros itens que pareciam blo-queados até pouco mais de um mês.

3- Dilma mudou ou mudou a conjuntura? Uma das maneiras de tentar entender o quadro político consiste em afirmar que “com Lula era melhor”.

Page 65: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

M a r c e l o B a r b o s a e K a d u M a c h a d o

6 5

Uma opinião algo injusta: mesmo antes do atual mandato presidencial já acumulavam indícios da neces-sidade de introduzir mudanças, de ultrapassar o legado positivo da administração do operário de São Bernardo.

Dilma bem que tentou.No início, baixou juros, afrou-xou a vigilância com a meta da inflação, deu prioridade ao crescimento. O seu revés correspondeu à deterioração do quadro externo. Com a ampliação dos efeitos da crise mundial, o grande capital começou a chantagear o go-verno e a exigir a retomada da velha receita neoliberal: elevação de juros, privatizações e internacionalização da economia, entre outras medidas. Confrontado com estas pressões, o governo tem mais capitulado do que resistido.

Com isso, estamos sendo não apenas incapazes de propor uma agenda mais avançada que a de Lula – dese-jo difuso das ruas –, como ameaçados de retroceder em relação ao conquistado entre 2003 e 2010.

4- Duas pautas contrastantes. A plataforma de aqui-sição de direitos que emergiu dos protestos apresenta muita energia.Ela se destina a tornar a sociedade brasi-leira mais democrática e justa.

Já a pauta política, não.Esta gira em torno de temas cujo núcleo radica na

confusão de objetivos, entre os quais o combate abstrato à corrupção. E quem quiser tirar a prova, nem precisa da leitura dos editoriais d’O Globo e da Folha de SP. Basta navegar pelo site da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político Brasileiro, que deveria refletir uma orientação progressista, mas que se perde em

Page 66: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

6 6

questões como o fim da aposentadoria aos parlamentares e outras miudezas.

Visualizar a dissimetria entre estes dois eixos de mo-bilização ajuda a entender como a rua tem tanta força, mas tão pouca clareza quanto aos fins.

Com essa constatação, por certo, não se pretende desconhecer a importância das demandas pela democra-tização das instituições políticas. Pelo contrário. Este as-sunto apresenta tanta centralidade que os movimentos de massas e os partidos de esquerda deveriam chamar para si a tarefa de intervir neste debate, em vez de delegá-la à iniciativa política do executivo.

5- Desenvolvimento não é palavrão. Toda a sorte de crimes tem sido cometida em nome do crescimento eco-nômico no Brasil, ninguém duvida: agressões ao meio ambiente, invasões a áreas de nações indígenas, priva-tizações de equipamentos públicos, como portos, entre outros.

Nenhuma dessas práticas guarda identidade – sem querer entrar no debate teórico – com a pesquisa desen-volvimentista, que tem seu marco fundador nas ideias de Celso Furtado.

Parece auto evidente a impossibilidade de superar o atraso social e econômico do País com base num reper-tório que não inclua a sustentabilidade e a justiça social. O País precisa rejeitar um projeto baseado na mera acu-mulação de capital.

Feitas todas essas ressalvas, entretanto, é preciso re-conhecer que o País precisa crescer.

Page 67: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

M a r c e l o B a r b o s a e K a d u M a c h a d o

6 7

Não será possível resgatar a dívida para com a edu-cação, a saúde e o transporte sem o aumento da oferta de emprego e a geração de renda. E, sem aumento da arrecadação, também torna-se utópica a reivindicação pelo aumento do investimento direto do poder público em hospitais, escolas e transportes coletivos.

Em suma, amadurece a necessidade de romper com as políticas de arrocho fiscal, tão onipresentes nos últimos 20 anos.

6- Qual o nível de abrangência de uma “reforma” política? O sistema político que está aí, com todas as suas falhas (entre as quais a hipertrofia do poder executivo), permitiu ao PT e a seus aliados chegarem ao poder, pela via eleitoral, e impulsionaram o processo de mudanças inaugurado em 2003.

Com este marco legal, estatuído pela Constituição de 88, aconteceu a articulação dos instrumentos de demo-cracia direta com os aparatos da representação – para benefício dos movimentos de negros, mulheres, quilom-bolas, gays e outros grupos de pressão legítima.

Estando longe da perfeição, a organização política brasileira – ao contrário do senso comum – não pode ser comparada a estruturas como o regime de terras, o siste-ma financeiro ou a legislação sobre as comunicações, das quais nada se aproveita.

O sistema político brasileiro precisa é de aperfeiçoa-mento. Necessita incorporar a seu acervo o voto em lista e o financiamento público de campanha.

Page 68: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

6 8

Mas, para fazer isto, não se faz requerida uma refor-ma. No quadro da atual correlação de forças, a realiza-ção de um plebiscito genérico em suas bandeiras encerra o risco da adoção de medidas elitistas, como o voto facul-tativo, o voto distrital, ou ainda o recall, tão do agrado do ministro Joaquim Barbosa. O escopo de uma consulta deste tipo exige delimitação precisa de seus objetivos.

7- Evitar as armadilhas no nosso caminho. Conforme as afirmações já mencionadas neste texto, por ser exces-sivamente genérico e ambivalente, o campo semântico denominado “reforma política” mais confunde que es-clarece.

Não se enganem os companheiros, o sistema político brasileiro, especialmente no que se refere aos mecanis-mos eleitorais, com voto proporcional, eleição em dois turnos, obrigatoriedade do alistamento dos elementos de baixo da pirâmide social, é uma pedra no sapato dos mercados.

Para estes setores, trata-se de colocar em prática uma democracia de baixos teores como a dos EUA, a do Rei-no Unido ou a do nosso vizinho, o Chile. A atuação das forças democrático-populares deve ser no sentido de cor-rigir as distorções de nosso sistema político, e não abri-lo à possibilidade de uma contrarreforma*.

*Desde sempre, as iniciativas de emendas ao texto da Constituição de 1988 apresentaram o aspecto de con-trarreformas, inclusive nos casos das mudanças no capí-tulo da ordem econômica, patrocinadas pelo presidente

Page 69: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

M a r c e l o B a r b o s a e K a d u M a c h a d o

6 9

Fernando Henrique, bem como na equivocada reforma da previdência, encaminhada e aprovada pelo governo Lula, em 2003.

Page 70: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

7 0

Mídia de Massa x Massas de Mídias: as manifestações de 2013 e a emergência da

contrainformação

Flora DaeMon

1. A imprensa em pauta

É possível olhar para as manifestações e protestos de 2013 a partir de perspectivas variadas. Este livro, neste sentido, é a materialização deste exercício. Tais eventos incluíram no debate e na agenda pública reflexões – mais ou menos otimistas – a respeito de distintas tentativas e, obviamente, êxitos no processo de alteração da topografia política contemporânea. Uma das engrenagens deste circuito, sem dúvida, é a imprensa.

Neste capítulo, vamos nos dedicar a analisar as ten-sões forjadas a partir das coberturas noticiosas, com vistas às disputas pelo direito de significar a partir da potencialização de (novos?) atores que embaralham os ofícios de reportar e de se manifestar num mesmo gesto

Page 71: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l o r a D a e m o n

7 1

político-ativista. Para tanto, utilizaremos como exercício-base uma das premissas fundamentais do trabalho jor-nalístico, que se ancora na ideia de “ouvir os dois lados de uma dada história”. Nosso esforço, nestas linhas, será o de escutar as diversas interpretações sobre tais even-tos,com basenum olhar sobre o papel da imprensa. Em outras palavras, a prática de narrar jornalisticamente, a partir de agora, perderá seu aspecto ferramental para se situar no centro deste debate político.

Observaremos, assim, o comportamento e as dispu-tas dos diversos atores da comunicação à luz dos even-tos ocorridos no Rio de Janeiro em 2013. Neste sentido, vamos nos dedicar a responder se, tal como o discurso da mídia, que em nome de uma apuração mais próxima da objetividade opta pela publicização de interpretações múltiplas sobre um dado caso, é possível exercitar um olhar sobre os tais dois lados desta que se tornou uma história de disputa midiática.

Em jogo, jornalistas vinculados às grandes empresas de comunicação, profissionais que atuam em veículos alternativos (ou contra-hegemônicos), as assessorias de imprensa de corporações diretamente envolvidas no con-texto político das ruas e dos discursos e os novos atores desta engrenagem: indivíduos “leigos”, ligados ou não à grupos organizados de comunicação e ativismo.

2. A Comunicação como campo de disputa

Até bem pouco tempo era comum ouvirmos no meio jornalístico um jocoso jargão que se referia às práticas da

Page 72: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

7 2

área: “quem sabe faz, quem não sabe ensina”. Esta ideia, disseminada por aqueles que defendem uma larga dis-tância entre as investigações teóricas desenvolvidas pela academia e a prática profissional e cotidiana de reportar, parece, nos dias de hoje, ainda mais infundada.

Esta disputa entre o conhecimento das redações e o saber da academia tem início na constituição do campo da Comunicação como ciência. Ao contrário de outros já legitimados, o território por onde transitam jornalis-tas e seus discursos é, naturalmente, mais vulnerável do que o campo das Ciências Médicas ou Exatas, por exem-plo, e até mesmo das já consolidadas Ciências Sociais. A Comunicação, neste sentido, encontra-se destacada num subgrupo de conhecimento intitulado “Ciências Sociais Aplicadas”.

Num contexto em que o dom de narrar fatos é parti-lhado socialmente por atores “independentes” – e muitas vezes estimulado pelas empresas de comunicação, como veremos mais adiante –, qual seria então a especificidade do conteúdo jornalístico produzido pelos profissionais de imprensa? Parece-nos que a resposta a essa questãonão se situa na academia, que, ao olhos dos jornalistas “de verdade”, apenas se detém a criticar a difícil prática coti-diana e profissional, mas, tampouco, pode ser encontra-da nas redações. O que nos parece evidente é que existem pistas, e que estas estão nas ruas, na forma como as novas tentativas de produção e disseminação de conteúdo vem sendo forjadas nos últimos tempos. E é sobre esse emba-te, essas disputas travadas numa complexa engrenagem composta por poderes públicos, privados e a sociedade

Page 73: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l o r a D a e m o n

7 3

civil (mais ou menos) organizada que nos dedicaremos a partir de agora.

Mas antes de nos debruçarmos mais diretamente so-bre os eventos de 2013, um adendo parece fundamental. Estamos nos referindo ao risco de incorrermos em teo-rias premonitórias, visto que analisar é sempre observar a partir de uma perspectiva, o que pode ser agravado em circunstâncias como as que presenciamos: estamos pensando enquanto agimos e, em nosso caso, escrevendo enquanto as ruas (e as mídias) se reinventam. Assim, res-saltamos o caráter provisório destas linhas e o desejo de que tenham função multiplicadora para a agenda públi-ca. Nossa intenção, ao longo do texto, é jogar luz sobre questões e hipóteses para que todos nós – jornalistas e/ou consumidores de mídia, igualmente implicados nesta época de muitas ênfases e pouco tempo – nos comprome-tamos com esse debate, de forma a concordar, aprimorar ou refutar os conteúdos aqui discutidos.

3. Mídia de Massa x Massas de Mídias

A constituição do campo da Comunicação, como vi-mos, foi atravessada historicamente por disputas diver-sas. O ano de 2013, neste sentido, pode ser considerado como um marco público para o debate sobre o direito de narrar e, consequentemente, de significar. É evidente que a emergência das novas tecnologias da comunicação possibilitou experimentações outras que consideravam o simultâneo como uma das principais forças destas nar-rativas. Ainda assim, não acreditamos que o nascimento

Page 74: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

7 4

destes novos relatos sejam uma simples consequência do avanço tecnológico, mas da potencialização, por estas novas ferramentas comunicacionais, de um desejo polí-tico de comunicar.

E é neste contexto que surge a dimensão testemunhal da cobertura. As ruas cariocas19, ocupadas por milhares20 de indivíduos, pareciam clamar por reportagens que com-plexificassem as muitas causas, demandas e apropriações forjadas por manifestantes. Tais abordagens, com exce-ção de produções desenvolvidas pelos chamados veículos alternativos, não encontraram espaço nas páginas e links das grandes corporações de mídia. A característica difusa das massas, em vez de provocar leituras mais profundas sobre o desejo legítimo de se manifestar, por muitas vezes se tornou motivo de deboche por parte de profissionais da imprensa. Um dos casos mais emblemáticos foi prota-gonizado por Arnaldo Jabor, comentarista da TV Globo:

“Mas afinal, o que provoca um ódio tão vio-

lento contra a cidade? Só víamos isso quan-

do a organização criminosa de São Paulo

queimou dezenas de ônibus. Não pode ser

por causa de vinte centavos. A grande maio-

ria dos manifestantes são filhos de classe

19 Estamos nos referindo aos eventos ocorridos no Rio de Janeiro, mas que se asse-melham a (e dialogam com) episódios protagonizadospormuitas cidades e capitais brasileiras nesse mesmo período.

20Não há um consenso sobre o número de participantes em cada protesto. Os dados fornecidos pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, publicizados pelos meios de comu-nicação hegemônicos, divergem das informações apresentadas por manifestantes e entidades que participaram dos mesmos. Há indicações de que o protesto ocorrido em 20 de junho de 2013 tenha somado mais de 1 milhão de pessoas nas ruas do Centro do Rio de Janeiro.

Page 75: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l o r a D a e m o n

7 5

média, isso é visível. Ali não havia pobres

que precisassem daqueles vinténs não. Os

mais pobres ali eram os policiais apedre-

jados, ameaçados com coquetéis molotov,

que ganham muito mal. No fundo, tudo é

uma imensa ignorância política. É burrice

misturada a um rancor sem rumo. Há, tal-

vez, a influência da luta na Turquia, justa

e importante contra o islamismo fanático.

Mas aqui, se vingam de que? Justamente a

causa deve ser a ausência de causas. Isso:

ninguém sabe mais por que lutar! (...) Esses

caras vivem num passado de uma ilusão.

Eles são a caricatura violenta da caricatura

de um socialismo dos anos cinquenta que

a velha esquerda ainda defende aqui. Real-

mente esses revoltosos de classe média não

valem nem vinte centavos”21.

A guinada para uma cobertura forjada no calor da experiência ganha, assim, grande projeção. Não encon-trando eco nos discursos da grande mídia do que se via, ouvia e sentia nas ruas e, também, nas redes sociais, uma considerável parte da população fluminense engajou-se em publicizar versões bastante distintas daquelas apre-sentadas pelos meios de comunicação hegemônicos, so-bretudo a respeito de atos de violência excessiva por parte das polícias contra os manifestantes. A contrainforma-ção e o embate ideológico materializado pela disputa de coberturas entram, definitivamente, em cena.

21Transcrição feita a partir do vídeo original.

Page 76: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

7 6

É nesse contexto que ganha projeção o grupo Mídia Ninja: Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação. Com a proposta de combinar prática de comunicação com ativismo político, os ninjas ganharam a simpatia de pessoas de todo País. O grande diferencial da iniciativa residia na transmissão ao vivo, em vídeo, das manifesta-ções, por diversos atores situados em pontos distintos da cidade, na congregação, num único espaço – a Fan Page no Facebook – dos conteúdos postados e compartilhá-veis, no potencial colaborativo na construção da infor-mes noticiosos e, também, na força da multiplicação de ninjas entre a população.

A visibilidade do Mídia Ninja tornou-se tão grande que, não raro, é possível encontrar pessoas que o consideram sinônimo de jornalismo alternativo, capaz de combater as versões simplificadoras veiculadas pelos grandes meios de comunicação. Em que pese o fato de esta reflexão não se voltar especificamente sobre o grupo, buscamos aqui complexificar sua atuação, de modo a evidenciar o mérito desta iniciativa, mais próxima de uma horizontalidade e, sobretudo, de uma postura evidentemente mais vulnerável e, por isso, humana, mas também de não atribuir a ela o sentido generalista de “única alternativa viável”.

O risco, caso esta interpretação seja partilhada irre-fletidamente, é o de transportá-la do “céu dos engajados e puros” para o “inferno dos incapazes” ou, até, dos “mal intencionados”. O episódio do convite feito por Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro, aos Ninjas para a reali-zação de uma entrevista, é, nesse sentido, um bom exem-plo. A convocação, em tom de urgência e destituída de

Page 77: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l o r a D a e m o n

7 7

tempo para uma preparação maior, acabou por revelar ingenuidades por parte dos repórteres ninjas. O político, ao contrário, muito bem assessorado, exemplificou um caso bem-sucedido de mídia training. A angústia dos se-guidores dos “narradores independentes” no Facebook, que alardeavam armadilhas em cena, evidenciou, pela primeira vez, o outro lado da projeção e ampla aceitação pública.

Pouco tempo depois, em 5 de agosto, já como convi-dados do tradicional programa Roda Viva, da TV Cul-tura, Pablo Capilé e Bruno Torturra, idealizadores do grupo, pareceram reverter as principais críticas de seus apoiadores de outrora. Com uma retórica bastante enfá-tica, baseada no conhecimento das ruas e, sobretudo, na necessidade de diluir as fronteiras entre a comunicação e o ativismo político, os Ninjas, para o desespero de uma bancada de jornalistas experientes que insistia em ques-tões como o financiamento da iniciativa – pergunta esta que evidentemente não encontraria uma resposta razoá-vel se direcionada aos mesmos reconhecidos profissionais de imprensa ligados a grandes corporações de comunica-ção –consagraram-se novamente com uma via possível.

Page 78: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

7 8

Figura 1: Charge de Chico Caruso sobre a participação da Mídia

Ninja no Programa Roda Viva.

Diante de reportagens herméticas, distantes da realidade das ruas, surgem também novas propostas de narrativas, tanto no que se refere aos conteúdos, quanto nas formas de captá-las e publicizá-las. Cientes da limitação do alcance destas novas e potentes experimentações, se comparadas ao poder de propagação das mídias hegemônicas, diferentes grupos de ocupantes das ruas passam a entender que o uso estratégico do espaço público, para o qual o foco da grande mídia necessariamente será direcionado durante os protestos, torna-se uma importante ferramenta. Se as palavras de ordem dos manifestantes serão, muitas vezes, silenciadas em função de coberturas “tradicionais”, feitas a distância por meio de um helicóptero, a alternativa da projeção desses mesmos dizeres não poderá ser deliberadamente apagada.

Page 79: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l o r a D a e m o n

7 9

Figura 2: Manifestações ocorreram durante a visita do Papa

Francisco. As projeções ampliaram a visibilidade das causas.

Mas afinal, o que está em jogo?

Diante da irrupção de tais produtos “midiático-ativistas”, o percurso tradicional de produção da notícia, antes invisível ao público, é explicitado na medida em que o consumidor de mídia, a priori apenas personagem de pautas jornalísti-cas, busca deter o direito de produzir e disseminar seus pró-prios conteúdos, ainda que passíveis de processos de edição quando reproduzidos por veículos da grande imprensa.

Neste sentido, situamos as discussões travadas aqui a partir do olhar sobre os processos sociais forjados

Page 80: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

8 0

pelos atores postos em cena no circuito cultural da comunicação, em que pesem as condições de intervenção nas estruturas de produção dos discursos, bem como a força da autoridade inerente à natureza institucional das organizações de mídia:

“Por bem ou por mal, a cultura é agora

um dos elementos mais dinâmicos — e

mais imprevisíveis — da mudança histó-

rica no novo milênio. Não deve nos sur-

preender, então, que as lutas pelo poder

sejam, crescentemente, simbólicas e dis-

cursivas, ao invés de tomar, simplesmente,

uma forma física e compulsiva, e que as

próprias políticas assumam progressiva-

mente a feição de uma ‘política cultural’”

(HALL, 1997, p. 4).

Tomamos como ponto de partida a conversão do cir-cuito da cultura em circuito da comunicação, conforme defende Escosteguy (2007), na medida em que considera-mos a dimensão simbólica como parte fundante da vida social contemporânea. Assim, nossa proposta é observar o choque entre a instância autorizada de enunciação dos fatos (e seus respectivos atores jornalísticos) e sujeitos que subvertem este modelo e que movimentam a engrenagem midiática com suas audácias noticiáveis. Mais do que autores de suas trajetórias políticas, estes se engajam na produção de relatos, numa campanha midiatizada, cujo objetivo principal é a disputa pelo controle de constru-ções simbólicas a respeito de suas causas.

Page 81: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l o r a D a e m o n

8 1

Defendemos que é possível entender tal embate como a materialização da tentativa de conformação de senti-dos, postos em cena numa arena comunicacional e políti-ca. O potencial interpretativo das ações e sujeitos tornou-se evidência da importância do jogo de representações. Entender quem são estes novos atores, tanto quanto com-preender por que o são por meio de discursos midiáticos calcados na ideia de representação, tornou-se alvo de uma disputa, experimentada por produtores de midiativismo e jornalistas, centrada na concepção de identidade. Ou, em outras palavras, na luta por quem teria mais autori-dade para conferir informações (e sentidos) que pudes-sem auxiliar o consumidor de mídia na formação de sua opinião.

De um lado, temos sujeitos, não necessariamente profissionais, que, em sua defesa, possuem o argumento de não ter possibilidade de inscrição social plena, bem como de representação efetiva na grande imprensa das causas que defendem, por conta de uma cobertura noti-ciosa pouco complexa. Do outro, encontramos os jorna-listas que invertem a distância do objeto narrado, como categoria de acusação, para torná-lo seu trunfo e a garan-tia de não “contaminação”.

Estaríamos diante, então, da disputa pelo poder capaz de construir e promover a manutenção de uma certa visão sobre a “realidade” por meio de instrumentos de comunicação, memória, cultura e discurso. Ou, a partir de Hall, podemos pensar que, da imbricação entre linguagem e representação, emergirão tentativas de modelações de práticas sociais a partir da cultura

Page 82: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

8 2

que “presente nas vozes e imagens incorpóreas (...) nos interpelam das telas, aos postos de gasolina” (1997, p. 5).

Desta forma, consideramos que a opção por tais estratégias midiáticas é resultado de um reconhecimento, de uma certa “gramática da ação”, experimentada pelos autores de conteúdos midiáticos (MARTÍN-BARBERO, p. 2003), bem como do peso da mediação por meio desta tecnicidade (idem). Essa interpretação parece apontar para um processo de mediação capaz de completar o circuito comunicacional, nos moldes propostos por Hall, que, neste caso, é composto por atores que ora ocupam o papel de receptores da grande mídia, ora se transfiguram em “autores de relatos midiativistas” que reinterpretam e disputam a arena midiática contemporânea:

“é sob a forma discursiva que a circula-

ção do produto se realiza, bem como sua

distribuição para diferentes audiências.

Uma vez concluído, o discurso deve en-

tão ser traduzido – transformado de novo

– em práticas sociais, para que o circuito

ao mesmo tempo se complete e produza

efeitos. Se nenhum ‘sentido’ é apreendido,

não pode haver ‘consumo’. Se o sentido

não é articulado em prática, ele não tem

efeito.” (HALL, 2003: 388)

A explicitação do processo de construção simbólica da notícia, nesse sentido, torna-se particularmente interessante, na medida em que as narrativas midiáticas experimentadas por esses sujeitos passam

Page 83: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l o r a D a e m o n

8 3

a ser interpretadas, também, como gestos criminosos, conforme podemos observar em publicação no Twitter pela Polícia Militar do Rio de Janeiro:

Figura 2: Twitter da Polícia Militar do Rio de Janeiro

Historicamente, a prática jornalística se valeu de discursos autorreferenciais, cujo objetivo prioritário era naturalizar a ideia de missão informativa, como argumento para viabilizar a legitimação pública de sua função social. Nesse sentido, a fala que pretendia validar a prática de imprensa estrategicamente apoiou-se na ideia de dever público para autenticar sua atuação, baseada em posturas que se intitulavam neutras e imparciais, teoricamente fundamentais àqueles que “necessitavam de esclarecimento”.

Page 84: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

8 4

O ritual da objetividade, desta forma, passa a ser um instrumento político dos media,apontado por Tuchman como uma espécie de baluarte que reduziria o impacto das críticas sobre o processo de construção da notícia: “os jornalistas invocam a sua objetividade quase do mesmo modo que um camponês mediterrâneo põe um colar de alhos à volta do pescoço para afastar os espíritos malignos” (1993, p. 75).

Quando nos deparamos com declarações que pretendem denunciar a impossibilidade de uma cobertura noticiosa “correta” desenvolvida por midiativistas, por conta de alegadas “parcialidades”, não parece ser excessivo retomarmos o debate acerca do ideal de objetividade jornalística. Calcado na idealização do receptor que completaria, a partir de seu lugar interpretativo, a leitura possibilitada pelo “repórter isento”, tal perspectiva propõe a “constatação” de que o conteúdo seria apropriado pelo público que, agora “esclarecido”, tornar-se-ia capaz de formar, ele mesmo, suas próprias opiniões.

Ainda em 1931, Dovifat já alertava para a impossibilidade de o profissional de imprensa estabelecer um afastamento total da substância jornalística, na medida em que os sujeitos são passíveis de erros que, neste caso, são entendidos como a “contaminação” do relato por seu autor:

“Um jornal não pode ser ‘objetivamente

verdadeiro’, mas apenas ‘subjetivamen-

te verdadeiro’. Imagine-se o que seria um

jornal puramente ‘objetivo’. Ele se asseme-

Page 85: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l o r a D a e m o n

8 5

lharia a uma construção de fórmulas ma-

temáticas e aluiria com o primeiro erro de

cálculo; mais ainda, ninguém o leria”. (DO-

VIFAT apud KUNCZIK: 2002, p. 226)

É possível pensar então que a imparcialidade e o equilíbrio, oficialmente necessários ao exercício do jornalismo, são, na prática, um questionável dilema ético da profissão. Mais do que isso, o ritual da objetividade passa a ser um instrumento estratégico desse jogo político de enquadramentos (TUCHMAN, 1993). Nessa perspectiva, somente textos produzidos com o alardeado rigor jornalístico poderiam garantir uma leitura “não contaminada” ao público-alvo. De acordo com Chalaby (1996), o projeto de construção de uma classe distinta de textos fez com que os jornalistas desenvolvessem normas e valores discursivos próprios, estruturados em regras que se transformaram em pressupostos da prática jornalística.

O estabelecimento de tais códigos garantiria, então, o controle sobre a base cognitiva de uma determinada profissão com o intuito de assegurar o monopólio sobre a prática e minimizar a concorrência (SOLOSKI, 1993). As escolas profissionais são, nesse sentido, fundamentais para certificar que os futuros trabalhadores da área in-trojetem essas regras ao ponto de legitimar a estandardi-zação dos produtos jornalísticos:

“Para fazer isto uma profissão exige: 1)

que um conjunto de conhecimentos eso-

téricos e suficientemente estáveis relativa-

Page 86: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

8 6

mente à tarefa profissional seja ministra-

do por todos os profissionais, e 2) que o

público aceite os profissionais como sendo

os únicos capazes de fornecer os serviços

profissionais”. (SOLOSKI, 1993, p. 94)

A estratégia de utilizar fontes e responsabilizá-las pela veracidade dos fatos passa a ser, neste contexto, um importante instrumento jornalístico, pois “ajuda a isolar tanto os jornalistas como sua organização das acusações de parcialidade e reportagens imprecisas” (TUCHMAN apud SOLOSKI, 1993, p. 96). O simples gesto de colocação de aspas, a rigor, isentaria o jornalista de qualquer acusação de parcialidade que comprometeria o desenrolar dos fatos. Mais do que isso, o uso desse recurso gráfico acrescentaria ao relato jornalístico aquilo que Tuchman (1993) chama de prova suplementar.

Nesse sentido, cremos que a especificidade da prática jornalística resida não só (nem principalmente) “no seu poder de declarar as coisas como sendo verdadeiras, mas no seu poder de fornecer as formas sob as quais as declarações aparecem” (SCHUDSON, 1993, p. 279). Tal capacidade se efetiva por meio das rotinas produtivas que irão estabelecer quais são as fontes mais adequadas àquela reportagem, que uso será dado às declarações e, sobretudo, qual acontecimento merecerá o status de notícia, e com que destaque.

A partir da naturalização deste processo, os veículos de comunicação passam a ser reconhecidos socialmente como a instância legítima para determinar, dentre os eventos cotidianos, aqueles que ganharão status de

Page 87: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l o r a D a e m o n

8 7

notícia. Como apontam os estudos sobre o newsmaking –que busca observar as rotinas responsáveis pela transformação do acontecimento em notícia jornalística –, essa capacidade é calcada, sobretudo, no exercício de filtragem, conhecido como gatekeeping, desempenhado pelos jornalistas ao selecionar fatos “considerados suficientemente interessantes, significativos e relevantes para serem transformados em notícias” (WOLF, 2002, p. 195). Nesse sentido, a emergência do relato “midiativista”surte efeito de ameaça à função de gatekeeper, bem como à autoridade jornalística, já que pauta, à força, os meios de comunicação e, mais do que isso, oferece, aos receptores que se identifiquem com seu ponto de vista, novas possibilidades de conteúdos a partir da lógica testemunhal.

Podemos propor um entendimento deste conflito a partir da percepção do que Fausto Neto chama de processo de midiatização da sociedade, que, entre outras consequências, deslocaria os “receptores” para além do papel de meros consumidores de produtos midiáticos. Dessa forma, os processos de referenciação da realidade “migram para outras práticas sociais, atravessando-as e afastando-as por operações significantes, cujo emprego é condição para que as mesmas passem a ser reconhecidas” (2008, p. 94).

Ao analisar estratégias recentes de veículos de comunicação que conclamam seu público à produção de conteúdos jornalísticos, o autor percebe a emergência de um fenômeno que “colocaria todos – produtores e consumidores – em uma mesma realidade, aquela de

Page 88: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

8 8

fluxos, e que permitiria conhecer e reconhecer, ao mesmo tempo”

(2008, p. 93).Tal cenário é resultado de uma política que pretende

gerenciar as estratégias discursivas voltadas para os con-sumidores de mídia e que, de acordo com Fausto Neto, alteram a topografia jornalística, reinserem o leitor em situação de protagonista e promovem a autorreferencia-lidade do processo produtivo. Ainda assim, ele explica, “há na estratégia um sintoma que sinaliza preocupações da produção em evitar que os seus receptores possam va-gar para ‘pontos de fuga’” (2008, p. 101). Com a finali-dade de capturá-los para atuar de forma controlada no âmbito do dispositivo, essas ferramentas impossibilitam seu uso divergente, garantindo a manutenção do controle do discurso.

A intenção de estreitamento da vinculação leitor-produtor ocultaria, assim, o fenômeno que o autor cha-mou de interação simetrizante, que é “baseada na ilusão de que ‘todos podemos nos apresentar na televisão’, ‘de que não haveria sujeitos mais interessantes do que ou-tros’, produzindo-se uma espécie de redução da alterida-de: tudo vale, todos somos iguais ante as mídias” (2008, p. 102).

No caso específico da questão posta nesta reflexão, podemos pensar os “relatos midiativistas”como uma sub-versão da artimanha de inclusão do público no processo de produção de notícias, descrita por Fausto Neto. Ao contrário do “cidadão comum”, que envia sua reporta-gem-denúncia em resposta à demanda do veículo, estes

Page 89: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

F l o r a D a e m o n

8 9

novos atores tentam viabilizar suas declarações e versões dos fatos para além das fronteiras autorizadas pela polí-tica de midiatização.

Fausto Neto analisa as chamadas zonas de afetação produzidas pela emergência da cultura midiática, que pretendem, de forma calculada, valer-se da estratégia de publicizar “o modo de ser da redação e suas editorias, agora transformados em novos ambientes, que aparecem visualizados com a descrição do que são, de como fun-cionam e de como neles estão instalados os jornalistas” (2008, p. 97).

Dessa maneira, a emergência dos “relatos midiativis-tas” inverte o sentido da estratégia descrita por Fausto Neto, na medida em que os veículos jornalísticos têm seu lugar de controle dessa zona de afetação ameaçado. Nos-sa hipótese, desta forma, propõe que tais conteúdos, de modo inverso, provocam uma espécie de “curto-circuito” na calculada rotina produtiva, na medida em que o gesto de publicização das declarações da fonte, por ela mesma, torna-se “já a notícia”,que demandará uma resposta dos veículos informativos.

Acreditamos, assim, que a interferência no circuito da comunicação, promovida por esses sujeitos, realiza uma espécie de “quebra do enquadramento” usual das re-portagens. Ao exercitar novas formas de protagonismos, esses indivíduos questionam (e desorganizam) a centrali-dade da mediação enquanto instância necessária às prá-ticas informativas.

Nosso objetivo, como alertamos, não é esgotar as in-terpretações sobre este complexo cenário composto por

Page 90: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

9 0

ruas, redações, universidades e favelas no qual se forjam, todos os dias, novas leituras, experiências e propostas. Buscamos, na verdade, evidenciar a potência presente nas rupturas, às vezes violentas, nos ordenamentos de sentidos e nas práticas (sempre) conflituosas de narrar o mundo, que a polifonia das ruas da cidade tem nos apre-sentado nestes tempos.

Ninjas ou não, as ruas clamam e, mais do que isso, convertem-se em um ambiente propício à constituição de novas formas de narrar e, consequentemente, de disputar o direito de existir. Talvez isso já seja suficiente para que os grandes veículos de imprensa retomem o que perde-ram e o que há de mais rico na comunicação: o contato dialógico com o humano e todas as suas contradições. Resta-nos, agora, descobrir como nos posicionaremos diante de tantas difíceis disputas que, apesar de todos os riscos, nos possibilitam a perspectiva de inventarmos mecanismos simbólicos de nos (re)construirmos, sempre, como sujeitos histórico capazes de produzir novas possi-bilidades de futuro.

Page 91: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

9 1

O Tempo Passa...Passa?

eliana vinhaes Barçante .

“A luta continua...”

“Não fique aí parado... Você é explorado!”

“Caminhando e cantando e seguindo a canção...”

As ruas eram o palco das denúncias. E eram muitas: tor-turas, desaparecimentos, violênciacotidiana, medo, si-lêncio, abaixo a ditadura!

A ditadura civil militar – que não se limitou às fileiras das Forças Armadas, mas teve adesão, apoio financeiro e ideológico de empresários, banqueiros, setores da classe média, setores da Igreja Católica – conviveu com seguidas lutas de resistência. Ora a luta armada, ora a transgressão na imprensa independente, ora na panfleta-gem, ora os sequestros de estrangeiros (Elbrick, embai-xador americano; Holleben, embaixador da Alemanha; Bucher, embaixador da Suíça), ora os assaltos a bancos, que financiavam as operações de guerrilha, ora as

Page 92: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

9 2

emboscadas para a aquisição de armas e a troca de presos políticos por sequestrados, para que saíssem dos porões de tortura e assassinato do Estado. Os governos Médici e Costa e Silva aprofundaram o arbítrio, desesperados com as ofensivas dos setores da esquerda. Surgem os Atos Institucionais, que culminam com o AI5.

Vivemos nas trevas quando o aparato repressivo se intensificou. Fomos violentamente silenciados, mas aos poucos o rumor das ruas reviveu.

Na reação à luta armada que se manifestou com os sequestros, com as guerrilhas urbanas e rurais, com os assaltos a bancos para prover a luta da esquerda contra os interesses do capital, as ruas fizeram parte do cenário de resistência.

O espaço público foi ocupado por passeatas.As vozes progressistas, o movimento estudantil organizado, as li-deranças partidárias e os intelectuais ocuparam as ruas com destemor. Mas a repressão acabou emudecendo o sonho de construção de um governo revolucionário.

Muitos foram presos e torturados, exilados, cassados, e a perda de lideranças foi progressivamente marcando o cenário político.Lamarca e Marighela foram assassina-dos e as frentes da guerrilha urbana foram dizimadas. Rearticulou-se a guerrilha rural após 1970, como PC do B, dissidência do PCB. Aos poucos a repressão estendeu-se ao foco guerrilheiro.

Se a frente armada foi severamente perseguida, ou-tros setores se articularam na reação possível, diante da máquina da repressão.

Page 93: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E l i a n a V i n h a e s B a r ç a n t e

9 3

O tempo vai garantindo a rearticulação da resistência ao regime de exceção. Novos canais vão sendo construí-dos em torno do MDB, que congregava as insatisfações anti-ditadura.

Com a farsa eleitoral que polarizava Arena e MDB, ainda foi possível reconstruir espaços de discussão e re-sistência à ditadura.

Com Geisel, temos a distensão: “lenta, segura e gradual”. Nenhum grande avanço, mas algumas ara-gens de participação. Os centros urbanos, inconforma-dos com seu silenciamento, vão buscando novas formas de participação. O MDB polarizava setores que se indignavam, após anos de repressão. As Comunidades Eclesiais de Base CEBs) aliavam-se à resistência. A luta pelos direitos humanos se consolidava.

E as ruas voltaram a ser o espaço de compartilha-mento de insatisfações, denúncias e inquietações. Fomos às ruas respondendo às palavras de ordem, aos comandos partidários, ao clamor pela liberdade.

Estávamos todos juntos, aqueles que lutaram con-tra o arbítrio, contraa ditadura civil militar. Havia uma glória em estarmos conseguindo abalar a ditadura. Mas sentíamos que ainda não conquistáramos a liberdade. A democracia demorou. Fomos pacientes.

Fomos às ruas, como testemunhas da insatisfação, denúncia e mobilização.

O ano de 1978 marcou novas alternativas: o avan-ço organizado da oposição ao regime e ao enterro do AI-5. Forma-se o Comitê para a Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. As greves começam a reivindicar melhores

Page 94: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

9 4

condições de salário e trabalho. As greves do ABC foram emblemáticas para a geração que percebia novas possibi-lidades de participação.

A sociedade exigia a “abertura” política e a palavra de ordem era Anistia. Figueiredo, com a precariedade do seu exercício democrático, alegava aos que se opunham que ele os prenderia e os arrebentaria, bem aos moldes truculentos da caserna. Mas foi útil, naquele momento.

Contudo, avançar significava paciência, capacidade de negociação e firmeza. Novas organizações independentes se manifestavam: impregnados da busca de novos ares, os setores progressistas da sociedade construíram formas associativas de participação.

Associações de bairro, movimento estudantil, debates, encontros, grupos de estudo iam se proliferando e se inserindo no espaço possível de participação.

Se o MDB aglutinou as forças políticas mais avançadas dentro do quadro democrático, enquanto não foi pulverizado no PMDB, seu papel foi fundamental na incorporação das vozes democráticas. E aí, as discussões se fragmentaram na busca de novas formas de agremiação.

Mas as ruas foram o espaço de denúncia, de resistência, de compartilhamento, que agregou os que lutavam pela abertura política. Nada se teria conquistado se não fossem as ocupações que se fizeram das ruas. Multidões se encontravam, cantavam, emitiam palavras de ordem. Eram tempos de alegria para os que viveram no obscurantismo da ditadura.

Não se conquistou o que se desejava. Tivemos a Ementa Dante de Oliveira renegada a um novo tempo.

Page 95: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E l i a n a V i n h a e s B a r ç a n t e

9 5

Queríamos Diretas Já! Não conquistamos o direito de eleger nossos representantes através do voto direto. A decepção com a negação da ementa deixou a multidão inconsolável.

A negociação em torno do nome de Tancredo agradou aos incautos. Não era o que se desejava, mas o que se podia conquistar, após tantos anos de obscurantismo. Sua morte nos legou Sarney.

Mas, avançamos e buscamos a possibilidade das eleições diretas. Lamentavelmente, Collor foi eleito. Uma decepção. Mais uma vez fomos pacientes. E fomos conquistando o direito a representantes que falassem a nossa língua. FHC, intelectual da USP, foi um exemplo do que tivemos que aturar.

E vieram Lula e Dilma.

Reinventado as ruas.

Estamos num momento delicado. A crise de representação denunciou que o Presidencialismo de Coalizão não dá conta das expectativas da sociedade. E ela se expressa nas demandas da rua. Os jovens, que haviam se resguardado no silêncio, brotaram das entranhas das cidades. Vieram com o vigor e a aragem do novo. Apresentavam uma agenda que não conhecíamos e deixaram perplexos a esquerda, os setores progressistas e a direita.

São jovens que não se submetem aos canais de representação tradicionais. Falam por si e não aceitam

Page 96: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

9 6

lideranças, muitas delas ilegítimas. Vão às ruas com a energia e a disposição que a juventude confere aos que acreditam em sua luta. Sua perspectiva é horizontal. Sua ação é a direta. Não cultivam lideranças, mas referências. Aceitam discutir, mas estão na luta. Vão às ruas sem medo. Enfrentam a polícia que está emagrecendo com o trabalho que estes jovens lhes impõem. Ainda bem. Andavam muito cevados nos carros parados, articulando falcatruas denunciadas pela imprensa. Agora precisam correr. Os Black Blocs lhes dão uma sova a cada movimento que vai às ruas. E eles não são esporádicos. A mídia Ninja registra o que está ocorrendo em tempo real, sem edição. Não tem o charme de Bonner, nem de Patrícia. A imagem fala da ocorrência.

A retórica da mídia oficial não responde ao teclado das redes que percorrem e capilarizam a informação.

Os setores de esquerda também estão perplexos. Inicialmente desacreditei da energia de suas convicções. Hoje as respeito. Não são jovens de classe média insatisfeitos com o preço da passagem. São também jovens que lutam por respeito à mobilidade urbana, mas vão além.

Cansaram da hipocrisia que lhes impunham as autoridades com viés autoritário. No Rio de Janeiro, os “donos da cidade” tiveram que recuar. Cabral e Paes acharam que os votos conquistados lhes garantiam o direito à cidade. Falavam com a empáfia de quem controlaa nossa história. E quando menos esperaram, eclodiu das entranhas e becos da cidade o clamor da insatisfação, da denúncia, da discórdia. Reúnem-se nas

Page 97: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E l i a n a V i n h a e s B a r ç a n t e

9 7

praças, avenidas, ao sabor das exigências da hora. E partem para a caminhada. Se não houver provocações, caminham sem susto, caso contrário, enfrentam o arbítrio e partem para a derrubada de ícones do capital.

Bons ventos falam a Voz das Ruas! Não há vândalos, expressão construída com a clara intenção de desvirtuar e desqualificar a real intenção dos jovens e de suas denúncias. Há denúncia de desrespeito, desigualdades, falcatruas e impunidade. Se os ícones do capital estão sendo dilapidados, a violência do lucro dos bancos, das empresas, da impunidade chegou ao seu limite. Não há mais espaço para o discurso “bom mocista” dos veículos de comunicação oficiais. Não aceitam mais as determinações impostas pela Câmara e pela Assembleia de que basta ser eleito para fazer o que bem se deseja. Os representantes eleitos, o foram em circunstâncias que estão sendo repensadas. Não se deseja mais que corporações imprimam a tônica das determinações que regulam as cidades.

A inconstitucionalidade do mandato de Natan Donadon, que manteve seu mandato na ocultação dos votos da Câmara, explicita a crise de representação. O STF viu sua decisão ser desrespeitada. A ironia de Marco Aurélio Melo mostra o absurdo a que chegamos. Condenado por peculato e formação de quadrilha, o deputado federal continua na Papuda, homenageando “os reeducandos confinados”. A afronta coloca em questão as práticas das bancadas de coalizão. O Congresso se deixou enganar, por omissão ou conivência. Não basta a declaração retórica de Amir Lando de que “O Povo

Page 98: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

9 8

tem o direito de execrar esta Casa”. É pouco, muito pouco! Frase de efeito, que adormecerá nos corredores de práticas viciadas.

Há que se rever os caminhos. Novas demandas estão sendo construídas. As ruas são o espaço que a cidade construiu e que terá que responder por elas.

Se as cidades foram construídas como espaço de representação dos interesses da burguesia, hoje não mais a pertencem, unicamente. Como expressão das relações sociais capitalistas, pretende confirmar a produção e reprodução do capital; mas as contradições das cidades contemporâneas, por serem complexas, impõem novas formas de participação. Todos podem fazer uso de suas ruas e becos. Todos, agora, podem reclamar de demolições que não atendam aos desejos da cidade como um todo. Não se aceita mais que se derrubem escolas para construir estacionamentos. As Jornadas de Junho denunciaram e cobraram novos rumos políticos. Não se abaixa a cabeça diante dos recentes aumentos de tarifas de transporte urbano, como o Movimento Passe Livre (MPL), em São Paulo. O MPL, organização horizontal e autonomista, mas dirigente, foi o ator mais importante na primeira fase dos protestos.22

E as manifestações não ficaram circunscritas ao desejo do ordenamento burguês da democracia liberal. Romperam com a “ordem” instituída, destruíram os ícones do capitalismo, invadiram lojas, quebraram portas e máquinas

22SECCO, Lincoln. As Jornadas de Junho; Cidades Rebeldes. São Paulo: Boitempo&Carta Maior,2013.

Page 99: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E l i a n a V i n h a e s B a r ç a n t e

9 9

de bancos, fizeram fogueiras com pneus, dificultando a repressão policial, ocuparam espaços urbanos.

No primeiro momento, a PM teve “carta branca” para reprimir as manifestações, buscando, por meio da intimidação, conter a indignação que irrompia. As de-núncias, pelas imagens da imprensa independente, mos-traram como a corporação agia contra os jovens desarma-dos. Indiscriminadamente, lançavam gás lacrimogêneo, atiravam balas de borracha e spray de pimenta. Os jovens investiram, então, com sua coragem e destemor. Não se deixaram intimidar e, como num rastilho de pólvora, disseminaram as diversas insatisfaçõesque estavam sufo-cadas em suas gargantas, ampliando a abrangência dos protestos. O ataque a jornalistas e a um movimento que congregava jovens de classe média facilitou a onda de so-lidariedade de amplos setores da sociedade.

E mais uma denúncia passa a cultivar as ruas: a vio-lência do Estado contra os cidadãos, numa política coer-citiva e punitiva. “A cidade expõe a militarização da vida sob a forma da hipertrofia da dimensão vigilante-re-pressiva-punitiva”23. A morte, ainda não confirmada, de Amarildo, na Comunidade da Rocinha, expôs a violência a que a população desassistida e mais pobre está sujeita, cotidianamente, revelando a impunidade dos agentes do Estado. Os corpos somem e nada se apura, por incompe-tência ou conivência.

As ruas serviram para mais esta denúncia, que expli-citou as formas de gestão dos órgãos de segurança, vol-

23BRITO, Felipe &OLIVEIRA, Pedro Rocha de.“Territórios Transversais”. In: Cida-des Rebeldes. Sâo Pulo: Boitempo& Carta Maior,2013.

Page 100: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 0 0

tados para a garantia da ordem burguesa. O patrimônio privado não pode ser penalizado, dentro desta lógica. A “vandalização”, expressão interessadamente construída sobre as manifestações, oculta a vandalização do capital sobre o trabalho. A violência com a pobreza, a injusti-ça, a corrupção são descoladas da violência do capital. A mídia conservadora focaliza os protestos dos indignados como o grande perigo que se instala na garantia da segu-rança da cidade. Esquece-se dos atos de vandalismo, da repressão impune, da precarização das relações de traba-lho, do estado em que as cidades convivem com a situa-ção da Educação e da Saúde. Esquece-se das condições em que a mobilidade urbana se encontra, impondo um acréscimo de mais de três horas à população pobre, sobre suas jornadas de trabalho , devido às péssimas condições do deslocamento casa-trabalho.

E ainda estão tentando criminalizar as máscaras. Votam-se proibições de manifestações espontâneas, que se utilizam de máscaras, num misto de ironia, defesa e criatividade. O pior é que a vitória da criminalização do uso de máscaras, na Câmara e na Assembleia do Rio de Janeiro, compromete o conjunto de representações popu-lares. Ainda sob o enevoado voto secreto, vota-se pela criminalização destas manifestações. O Batman, coita-do, acabou no camburão! Vira circo perverso!

Recentemente a governo federal criou o Programa Mais Médicos. Mas o corporativismo médico elitista branco mobilizou-se contra o projeto. Levantam-se as vozes que pretendem deter o controle do mercado da Saúde, com deficiências e descuidados com a popula-

Page 101: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E l i a n a V i n h a e s B a r ç a n t e

1 0 1

ção mais pobre. A Saúde pública, precarizada, impõe condições inimagináveis à população de baixa renda. Nos rincões do Brasil, nem se consegue visualizar aten-dimento médico eficiente. Não há medicina profilática que possa evitar epidemias, decorrentes de contamina-ções variadas, da falta de vacinações, da fome endêmi-ca. Mas diante da iniciativa governamental, tentando atender às demandas das ruas, vozes se levantam denun-ciando o programa. Não basta o programa, mas não queremos que se detenha a iniciativa de atendimento aos que o necessitam.

A Educação pública “de qualidade” acabou refém de estatísticas que não refletem Projetos Pedagógicos de Estado, que possam erguer sua gente das condições do analfabetismo funcional. Os docentes, mal remunerados, adoecem com a desqualificação a que a mídia, a “meri-tocracia” e a sociedade em geral lhes impõem. Acabam sendo responsabilizados pela ausência de projetos peda-gógicos autônomos e consequentes, que fujam das cam-panhas pré-eleitoreiras.

“Padronizar a educação é matar a criatividade e a riqueza de todo o processo pedagógico”, na fala de Geisa Linhares. Não se pode avaliar a meritocracia da Educa-ção por meio da avaliação do professor, conquistada por meio de notas obtidas pelos alunos em exames oficiais. (Geisa Linhares – O GLOBO 02/09/2013). Sua denún-cia legítima de fraude na Educação implica no equívoco de se pensar em “treinar” docentes e discentes, para que atendam às expectativas de um modelo de teste. Testes que são forjados, pois construídos para atender a uma

Page 102: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 0 2

demanda que não corresponde à qualidade da Educação. A quem interessam esses resultados?

Fui professora de História, com muito orgulho, e muito aprendi com meus pares, do CAP-Uerj, durante a minha carreira. Hoje aposentada, após muitos anos de magistério público e privado, tendo experimentado com meus alunos da graduação em História na Uerj, dos quais era professora de Prática de Ensino de His-tória, uma série de estratégias que podem ser úteis ao exercício do Magistério, posso fazer uma leitura críti-ca de medidas tomadas de forma arbitrária na relação professor-aluno-mundo. Construíamos, coletivamente, nossos projetos pedagógicos, que eram sistematicamen-te revisados e avaliados. Não havia medição de conhe-cimento, no sentido de selecionar “bons” e ”ruins”, mas construíamos nossas dúvidas e acertos na prática coti-diana. A resposta não era a nota que os alunos conquis-tavam, mas o envolvimento, decorrente das discussões sistemáticas que ocorriam em sala, com a utilização de várias linguagens. E esta sala de aula presencial, viva, comportava incertezas, visibilidade, por meio de acompanhamento por parte de nossos alunos-mestres, que observavam resultados, comentavam suas dúvidas, apontavam novos caminhos. Portanto, construíamos o conhecimento possível, com compromisso, com a uti-lização de metodologias e técnicas que aplicávamos e testávamos, livres de coerção. Todos tinham voz.

Os resultados eram excelentes! Muitas “excursões dirigidas” para que pudéssemos sentir o passado, cons-truído no tempo, com apoio de uma reitoria progressista,

Page 103: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E l i a n a V i n h a e s B a r ç a n t e

1 0 3

facilitando acomodação e transporte sempre que se soli-citava. Estas experiências sempre foram compartilhadas pelas coordenações, direção do CAP e reitoria, e com os alunos-mestres, que vivenciaram com os alunos do curso básico do CAP as várias possibilidades de um trabalho de campo. Partíamos com mais de cem alunos para o campo de pesquisa, que se associava a outras disciplinas que não somente a História. Estimulávamos desafios a serem superados nestas experiências. Um verdadeiro Co-légio de Aplicação de Metodologias e Técnicas, novas e exemplares.

Muitas eram as dramatizações, cuja criatividade aflorava da juventude viva e criativa. Muitas eram as mú-sicas que criaram, após leituras debatidas em grupo, de textos históricos. Outras vezes, eram batalhas vivas, si-muladas com “sangue” (em saquinhos de plástico, com tinta) trazido de casa, com as vestimentas inventadas e armas simuladas, de época. Outras vezes eram canções que traduziam o tempo de Atenas, com a contribuição de Chico Buarque de Hollanda, nosso grande compositor. E as discussões eram infindáveis. Por que essas práticas não podem ser disseminadas, em detrimento de uma nota, única, seca e pobre, que se diz avaliadora–e rejeito, di-zendo– do NADA?

No ensino universitário, cria-se a figura caricata doHomo Lattes, amordaçando, num quantitativismo estatístico, a produção do conhecimento, adoecendo do-centes pela cobrança indiscriminada de artigos publica-dos em revistas indexadas, rompendo com a solidarieda-de entre os pares, exigindo a participação em congressos

Page 104: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 0 4

para atender aos “rankings” instituídos pelos órgãos de fomento à pesquisa e, pior, criando a figura dos “Me-nudos da História” (expressão cunhada brilhantemente pelo prof. Francisco Falcon– UFRJ, nos idos dos anos 80-90), quando se aprofundaram as exigências de se pro-duzir, num tempo exíguo, suas dissertação e teses, com o apoio de bolsas. Jovens ainda imaturos, sem experiên-cia do magistério-pesquisa, investiam nos cursos para sobreviver e defender seus direitos a bolsas de pesquisa. Após as defesas de dissertações e teses,submetiam-se a concursos para ingressarem nas universidades públicas. Essa “corrida” comprometeu a qualidade da produção do conhecimento, a despeito do grande número de disserta-ções e teses defendidas. Os orientadores ficaram reféns deste projeto. A natureza de cada ciência deixou de ser considerada, em nome de um banco de teses não visitado e pouco útil à reflexão e à transformação de nossa socie-dade. Comprometeu-se a natureza do trabalho docente, onde se privilegiava a titulação em detrimento da capaci-dade específica do trabalho docente. E disso falo sobre a área de Ciências Humanas. Nas demais, não teria autori-dade para tais afirmações.

Posso afirmar que a qualidade de alguns projetos trouxe excelentes reflexões e contribuições à Historiogra-fia. Mas a quantidade não refletiu a quanlidade. Muita energia perdida.

Enfim, as razões das ruas são inúmeras. Hoje, não re-fletem, explicitamente, a luta ideológica da Guerra Fria, que norteava a polarização esquerda-direita dos anos 60-70. Entretanto, as condições que se forjam com a acu-

Page 105: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E l i a n a V i n h a e s B a r ç a n t e

1 0 5

mulação desmedida, com a especulação da terra e dos imóveis, com a imobilidade urbana, como no caso do Rio de Janeiro, revelam as dores do povo, as queixas do povo. E elas vêm de longe.

Disseminados por toda a cidade, não mais restritos às ruas centrais do Rio de Janeiro, os protestos ocupam, inclusive e sem medo, as ruas da zona sul, que nunca foi incomodada com as queixas dos mais necessitados. Seus ouvidos moucos negavam-se à solidariedade com as questões populares. Hoje, ocupam os espaços públicos, acampam nas ruas, portam cartazes, máscaras, usando jograis para disseminar as mensagens horizontais e cole-tivas. Não esperam que lhes concedam as ruas. Tomam-nas, acampando em frente às residências de governantes, aos prédios da prefeitura e do Estado, à Câmara de Ve-readores e Assembleia Legislativa. E aqui estamos falan-do, prioritariamente, do Rio de Janeiro.

Impedem CPIs ilegítimas, conquistam liminares de curto prazo, denunciam votações viciadas e tomam as ruas em movimentos grevistas.

Professores em greve são agredidos por PMs, despre-parados para lidar com a natureza das reivindicações, jus-tas e há décadas desconsideradas pelos órgãos do poder. Atordoados, lançam sobre os mestres balas de borracha, gás lacrimogêneo e sua truculência, gestada na ditadura, com o intuito de dispersá-los, expulsá-los de sua ocupa-ção legítima na Câmara de Vereadores, por exemplo.

O clamor das ruas, praças e comunidades passa a compor o cenário de demandas não assistidas pelo poder público. As autoridades cada vez mais se veem compe-

Page 106: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 0 6

lidas a ouvir estas vozes, por tanto tempo sufocadas e silenciadas. As redes sociais acompanham diuturnamente estas manifestações-protestos que aprofundam as ques-tões relativas à crise de representatividade. Novas vozes se impõem às determinações insensíveis dos poderes as-sociados aos privilégios do capital.

Há que ouvi-las, interpretá-las e construir formas de representação e de fazer política, que atendam a tantas insatisfações. Penso que podemos conseguir. Desde que não se desdenhe a inteligência popular, a capacidade de se fazer política, a seriedade deste momento.

Senão, as ruas estão disponíveis e abertas para seu povo! E iremos a ela, sem pudor.

Page 107: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

1 0 7

A paz armada

Karla vargas

A Rocinha desceu. E acho que desceu tarde para reivin-dicar os seus direitos. A política é vista na Rocinha como moeda de troca. “Voto em tal político e o que terei de volta?” E assim segue a vida, com todos os problemas de sempre e algumas maquiagens.

Moro na Rocinha desde que nasci e isso já faz uns 34 anos. De lá para cá, as únicas melhorias que vi fo-ram o valão da Via Apia ser tampado e as casas de pau ganharem tijolos, sendo que esta não foi com a ajuda de políticos. Não foi obra pública.

O saneamento básico, que é a questão que mais afeta aos favelados, passou a ser o quesito para políticos con-seguirem entrar e serem ouvidos. Mas, como sempre, só ficam na promessa. Contudo, como a Rocinha é uma favela na divisa entre a zona sul e a Barra, a questão da violência passou a ser o pote de ouro dos políticos. Pois todos querem a paz, mas não a dos pobres e favelados,e sim de quem e para quem paga altos impostos. Enquanto isso, o que fica na TV e nos jornais é a pacificação de favelas.

Page 108: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 0 8

Pacificar o que e para quem? Em qual momento foi questionado o que queriam e precisavam os que moram nas favelas? Todos concordamos que favela é um ambien-te esquecido por políticas públicas e que as polícias só en-tram com o intuito de prender, e não proteger. Como mu-dar pensamentos antigos e preconceituosos de que todo favelado é bandido e todo policial é corrupto? Juntando os dois, restou a desconfiança.

Como acreditar em uma pacificação que agride e ata-ca? Como ter uma paz sem acreditar nela? Assim é que vivemos. O medo é a forma de proteção que os favelados acreditam, pois ter medo do dono do morro é uma forma de se proteger. E ter medo de um policial é a forma como acharam que protegeriam os pobres.

Até bem pouco tempo atrás conhecíamos bandidos por apelidos e não pelos nomes.Agora, no entanto, conheci policiais que se denominam por apelidos e, como bandi-dos, colocam terror em quem não segue suas ordens. As-sim aconteceu com Amarildo: um pobre, negro e favelado que teve o desprazer de conhecer a ira de Cara de Macaco, um policial da Unidade Pacificadora da Polícia.

E todos perguntam: e esse Amarildo não era envolvi-do? Ele não conhecia os bandidos? Ele não frequentava as festas de bandidos? E se conhecesse e fosse bandido? Ainda assim, não temos pena de morte e ele deveria ao menos ser julgado pela justiça. Mas o que ocorre em uma comunidade carente é a lei do cão e sofra em silêncio, pois pode acabar sofrendo mais consequências.

Gritar e reclamar não são cultura de um pobre. So-frer calado é a melhor maneira de ter paz.Mas essa não

Page 109: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

K a r l a V a r g a s

1 0 9

foi a alternativa da esposa de Amarildo, que representa milhares de pessoas que sofrem com a violência de inti-midação e preconceitos. Reclamar o corpo do seu marido em plena Auto estrada Lagoa-Barra, que fechou um túnel e aterrorizou um bairro chique como São Conrado, foi a luz que acendeu de que algo estava errado com a pacifi-cação.

Os favelados não se uniram completamente até por-que não queriam se ver envolvidos com pessoas cujo desa-parecimento é posto como consequência de envolvimento com o crime. Então, restou para os jovens estudantes, que já estão em protestos contra o governador e sua po-lítica de ditador, unirem-se à esposa de Amarildo e lutar pelos direitos antes negados aos pobres.

Pobres não são pobres por que querem, e não moram em favelas por opção, mas por necessidade. A pacificação não deve ser armada, mas aliada à educação, à saúde e ao saneamento básico que uma comunidade carente precisa.

Page 110: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

1 1 0

As Manifestaçoes de Junho, os Intelectuais e o Vandalismo de Estado

José antonio sePulveDa

Não é exagero afirmar que o ano de 2013 entrou para história do Brasil por causa das manifestações populares de junho e julho. De fato, o discurso ideológico de que o povo Brasileiro é apático, principalmente no que diz res-peito à política, foi desmascarado pela realidade. Apesar de uma agenda difusa, essas manifestações impuseram às elites brasileiras um descontentamento, principalmente no que diz respeito à prestação estatal de serviço público. Tudo começou com o Movimento do Passe Livre (MPL), que canalizou, a partir de um grito de denuncia contra o sistema de transporte no País, toda a raiva latente do povo brasileiro contra o aparelho estatal.

Enquanto a agenda dos manifestantes era difusa, a resposta do Estado era confusa. As grandes cidades foram as principais vítimas. Os poderes executivos das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro demonstraram uma sucessão de erros, marcados por atos autoritários e recuos inacreditáveis. A população, que no primeiro

Page 111: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

J o s é A n t ô n i o S e p u l v e d a

1 1 1

momento foi chamada pelos representantes do Estado de arruaceira, em um segundo momento foi reconhecida por estar exercendo seu direito democrático de se manifestar. Dessa forma, o descompasso político dos diferentes entes federativos reforçaram o movimento, que acabou tomando uma proporção inimaginável. Alguns eventos tiveram mais de 1 milhão de pessoas.

Vale destacar uma pauta importante da manifesta-ção: o mau uso do dinheiro público. Tal pauta se agrava-va com a Copa das Confederações, importante torneio de futebol que precede a Copa do Mundo. As reformas nos estádios de futebol, os altos valores das entradas, que tor-naram o futebol, antes um esporte popular, um esporte de elite, inflamaram ainda mais o movimento. Algumas figuras políticas foram seriamente criticadas e hostiliza-das. Um exemplo disso foi o governador do Estado do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, perseguido, inclusive, em sua residência.

Durante o mês de julho o movimento foi enfraque-cendo. A mídia, apesar de “aprovar” as manifestações, iniciou um violento ataque às pessoas que intitulou de “vândalos”. Foi construído um discurso que defendia a manifestação “pacífica”. Por conta dos tais “vândalos”, o Estado fez uso de um forte aparelho repressivo, muito comum nas favelas brasileiras: à violência policial. Tal aparelho demonstrou-se totalmente despreparado ao res-ponder com violência desmedida. Todavia, a resposta violenta funcionou. Aos poucos, o movimento enfraque-ceu, até o golpe final: a “Jornada Mundial da Juventude”, evento organizado pela Igreja Católica que contou, inclu-

Page 112: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 1 2

sive, com a presença do Papa argentino Francisco. Em uma grande jogada política, a Igreja Católica e o Papa apoiaram e endossaram o movimento. Apesar de peque-nos conflitos entre os manifestantes e os fieis que parti-cipavam da jornada, a situação se acalmou. Assim, já no final de julho, a grande mobilização da massa se dissipou e o movimento permaneceu organizado por sindicatos e entidades civis e religiosas.

O enfraquecimento do movimento possibilitou o ar-remate final da elite política fluminense. O alvo passou a ser os chamados “Black Blocs”, um movimento inter-nacional, de orientação anarquista, cujos membros ves-tem-se de preto,cobrem seus rostos com máscaras e pra-ticam atos invasivos contra as entidades conservadoras e repressoras da sociedade. As principais vítimas são: os aparelhos do Estado, ou seja, sedes da prefeitura e de ór-gãos públicos; e os agentes do capital, de um modo geral, agências bancárias.Assim, por conta desses “vândalos” (Black Blocs), o poder legislativo do Estado do Rio de Janeiro aprovou uma lei (lei nº 2405/2013) que proíbe o uso de máscaras em manifestações públicas, ferindo, de todas as formas, o direito democrático do indivíduo de demonstrar suas reivindicações. Essa nova legislação evidencia quem são os verdadeiros vândalos.

Com efeito, a resposta do Estado escancara a sua violência, ou melhor, o vandalismo estatal. Afinal, o cidadão destrói o trem porque ele não funciona. Eles não destroem aquilo que funciona.Se o fizessem, aí sim seria vandalismo. Vândalo é quem oferece esse serviço. Quantas pessoas foram e são prejudicadas diariamente,

Page 113: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

J o s é A n t ô n i o S e p u l v e d a

1 1 3

em seus empregos e compromissos, por causa do péssimo serviço de transporte no Brasil? Essas pessoas têm que aceitar pacificamente? É legitimo o Estado, em nome da ordem, responder violentamente?

Historicamente, todos os movimentos sociais que alcançaram êxito foram marcados por momentos de extrema violência. Inclusive a existência do Estado de-mocrático, característico do mundo contemporâneo, foi resultado de processos revolucionários intensos, marca-dos por guerras e longas batalhas. É o caso da Revolução Francesa edos movimentos de independência nas Améri-cas e na África.

O discurso midiático de que o Brasil é um Estado democrático e que a violência não condiz com esse es-tatuto é, no mínimo, discutível. A conquista da efetiva democracia, ou seja, não somente a democracia política, mas também social, depende de uma ampla participação popular, visto que a tendência das elites é sempre se man-ter no poder. Tal participação esporadicamente se torna violenta. Normalmente proporcional à violência legítima exercida pelo Estado.

A mídia, que funciona socialmente como aparelho reprodutor dos interesses das elites, tende a criar ini-migos da democracia dentro do próprio povo, escamo-teando assim a verdadeira violência. Como a população sofre constantemente sem mecanismos de esclarecimen-to e reflexão, ela tende também a reproduzir o discurso midiático.

Creio que o que sentimos na pele é o que o sociólogo Francês Pierre Bourdieu chamou de violência simbólica.

Page 114: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 1 4

Para conservar as desigualdades sociais, basta deslocar toda a culpa do fracasso das reivindicações aos arruaceiros e baderneiros, que, como bem diz a mídia em geral aqui no País, “se infiltram em movimentos pacíficos para arrumar confusão e enfraquecer o movimento”. Será que sem esses baderneiros o movimento chamaria tanta atenção?

Feito esse breve resumo das manifestações, acompa-nhadas de algumas inquietações, apresento o objetivo deste texto: analisar algumas declarações de intelectuais e formadores de opinião que falaram sobre os eventos de junho e julho de 2013 no Brasil.

Por conta da dificuldade de se classificar algumas fi-guras que emitem opiniões pública sem jornais e/ou tele-visões sobre o mundo social, decidi chamá-los, por falta de opção, de formadores de opinião. Esse é o caso de Arnaldo Jabor, cronista de jornal e de televisão e cineasta nas horas vagas. Tal personagem é um exemplo do pro-cesso de construção de culpados no interior da manifes-tação. Além disso, ele é um exemplo de como a mídia mudou de opinião durante os acontecimentos de junho.

Em um primeiro momento, Jabor classificou as mani-festações como incoerências políticas de pessoas antiqua-das que não viram que o mundo mudou, e que as ideias revolucionárias do passado não funcionam mais nos dias de hoje. Quando Jabor percebeu que o movimento fa-zia amplas críticas aos partidos políticos, aos sindicatos e aos demais grupos organizados, ele mudou de opinião e passou a apoiar o movimento; principalmente quando entendeu que tal manifestação atacava aqueles segmentos sociais que ele também atacava. Portanto, para tal per-

Page 115: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

J o s é A n t ô n i o S e p u l v e d a

1 1 5

sonagem, manifestação só serve se tiver em congruência com suas ideias, senão são antiquadas e ultrapassadas.

Outros personagens tiveram posturas mais interes-santes. Talvez seja problemático comparar o Jabor a Zi-zek e a Boaventura de Souza Santos. Justamente por isso não irei compará-los. Usei o Jabor somente como exem-plo da formulação do discurso midiático. Passo agora a fazer uma pequena análise do que os mencionados in-telectuais estrangeiros escreveram e declararam sobre as manifestações.

A maior parte dos autores estrangeiros que está ana-lisando os movimentos de junhocolocam tal fato dentro de um quadro mais amplo de manifestações sociais que vem ocorrendo no mundo, em especial o Occupy e a Pri-mavera Árabe. Apesar da semelhança temporal, tais mo-vimentos possuem dinâmicas e motivos propulsores di-ferentes. A crise do capitalismo global, principalmente a partir de 2008, que mexeu um pouco com a posição dos Estados Unidos da América, expos uma ferida profunda nas grandes cidades do mundo desenvolvido: a existência da pobreza, agravada pelo desemprego.

A Europa seguiu o mesmo caminho dos Estados Uni-dos da América. Aos poucos, diferentes países da União Europeia começaram a ruir: Irlanda, Grécia, Portugal e Espanha são os principais exemplos disso.

Quase que simultaneamente estouraram as crises dos países do norte da África e do Oriente Médio, com carac-terísticas distintas; em especial, na luta pela democracia. O alvo do ataque era a monarquia, que reinava absolu-ta por todo o mundo árabe. Muitas dessas monarquias,

Page 116: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 1 6

aliadas de países ocidentais no enfrentamento aos grupos radicais islâmicos.

Nesse contexto, autores como Slavoj ZizeK, consegui-ram fazer bem a distinção entre esses movimentos, aproxi-mando-os em análise mais estrutural.Ou seja: o vínculo é a crise do capitalismo. Assim, apesar das particularidades de cada movimento, eles fazem parte de uma revolta con-tra o sistema. A força de tais movimentos é proporcional aos interesses da mídia e das elites. No caso do mundo árabe, em especial no Egito, o movimento é apoiado pela Irmandade Muçulmana. Ou seja, as forças conservadoras e reacionárias estão apoiando o movimento.

No caso do Brasil, Zizek aponta a espontaneidade e a intensidade do movimento como marcas de originalidade. Apesar de algumas semelhanças com os movimentos na Turquia, o epicentro do movimento não está diretamente carregado de uma disputa religiosa como naquele país. No Brasil, o alvo principal é a corrupção e o mau uso do dinheiro público. Tal problema é resultado de anos de descaso do poder público em relação à qualidade dos ser-viços oferecidos a população. Uma “fagulha”, no caso o aumento das passagens de ônibus, denunciado pelo Mo-vimento do Passe Livre(MPL), fez explodir o movimento. Toda a insatisfação foi para a rua.

Zizek entende que, no caso brasileiro, o problema se estabelece a partir de uma demanda exposta, assim como no resto do mundo, pelas mídias sociais. A existência desse novo veículo de comunicação, ágil e eficiente, pro-moveu uma nova realidade. Todavia, de um modo geral, parece que o capitalismo está, nesse momento, se reorga-

Page 117: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

J o s é A n t ô n i o S e p u l v e d a

1 1 7

nizando a partir de novas propostas. Por isso, uma carac-terística importante do movimento no Brasil é a presença da juventude.

Com relação à violência do movimento, Zizek con-sidera uma questão secundária, pois essa não incomoda tanto quanto a violência do Estado. Em entrevista ao pro-grama da TV Cultura Roda Viva, ele ratificou a impor-tância de uma luta contra a violência institucional.

Já Boaventura de Souza Santosassocia as mani-festações ao sucesso do governo Lula, que tirou uma grande camada da população da miséria e,agora, essa reivindicava uma melhor qualidade de vida. O conjun-to de políticas públicas iniciadas em 2003 criou ex-pectativas não só no que diz respeito à sua vida, mas também ao modo como se posicionam na sociedade, ao modo como usam os serviços públicos. Ou seja, os serviços públicos não acompanharam as transforma-ções sociais.

Segundo Santos, as políticas de inclusão realizadas nos últimos dez anos atingiram seu limite e as formas de participação não são tão eficazes. Além disso, o ser-viço público não se desenvolveu como deveria, e ele dá o exemplo da saúde. Apesar de o Brasil ser um país com tradição de movimentos sociais fortes, tais movimentos viram suas atividades se tornarem bastante restringidas nos últimos tempos, principalmente por causa de seus vínculos com o próprio governo. Isso gerou certa frustra-ção quanto às prioridades do governo e, naturalmente, um grande desgaste.

Santos entende que as manifestações são muito im-portantes para pressionar as instituições, os partidos e

Page 118: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 1 8

os governos, mas elas não fazem propriamente uma for-mulação política. O que elas fazem é pressão para que haja formulação política. No Brasil, as agendas eram tão diversas quanto a composição das classes presentes nos protestos. Houve uma forte presença da juventude. As manifestações têm uma composição e, misturadas ne-las, há forças aproveitadoras que tentam tirar dividendos contra o PT. Mas elas são uma minoria. É uma insatisfa-ção popular, sobretudo das camadas mais jovens, contra uma política que não responde aos seus anseios.

O autor Boaventura de Souza Santos acabou, então, absolvendo o governo e centrando a sua crítica no sistema político, e não no Partido dos Trabalhadores. Segundo ele, o problema é que, enfim, o Brasil tem um governo de esquerda que, no entanto, vive de coligações problemáti-cas, fruto da organização partidária no Brasil. O proble-ma é que os brasileiros conhecem muito bem o que foram as políticas de direita dos governos anteriores. Nenhum deles realizou as políticas de inclusão social que agora têm lugar. E, portanto, existe um descrédito na política em seu conjunto. O PT e o governo da presidente Dilma têm uma crise de legitimidade a resolver. E só podem re-solver com mais democracia, com mais políticas de inclu-são, com mais dinheiro para os cidadãos e menos para as grandes empreiteiras e para o grande capital financeiro internacional.

O ponto de vista do sociólogo português nos leva a entender que o governo não tem responsabilidade direta na crise política do Brasil. O problema seria o sistema político partidário. Ele entende também que se o gover-

Page 119: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

J o s é A n t ô n i o S e p u l v e d a

1 1 9

no não der uma resposta rápida, em especial, oferecen-do uma reforma política, a situação pode se agravar. Em todos os movimentos há momentos de refluxo. E ele pensa que, no caso brasileiro, o movimento não se aguenta neste momento, embora possa vir a explodir mais tarde. Neste momento, há certa espera com espe-rança de que alguma coisa se faça. Se ela não se fizer, a situação pode voltar. Pode até, aliás, ser mais incontro-lável. Se não houver uma reposta rápida a estas reivin-dicações, o refluxo atual voltará, eventualmente, mais incontrolável e mais forte.

Santos afirma também que, com a eleição da presiden-te Dilma Roussef, o Brasil quis acelerar o passo para se tornar uma potência global. Muitas das iniciativas, nesse sentido, vinham de trás, mas tiveram um novo impulso: Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente, Rio +20, em 2012; Campeonato do Mundo de Futebol, em 2014; Jogos Olímpicos, em 2016; luta por lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU; papel ativo no crescen-te protagonismo das “economias emergentes”, os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul); nomeação de José Graziano da Silva para diretor-geral da Organi-zação das Nações Unidas para a Alimentação e Agricul-tura (FAO), em 2012, e de Roberto Azevedo para diretor-geral da Organização Mundial de Comércio, a partir de 2013; uma política agressiva de exploração dos recursos naturais, tanto no Brasil como em África, nomeadamen-te em Moçambique; favorecimento da grande agricultura industrial, sobretudo para a produção de soja, agro-com-bustíveis e a criação de gado.Beneficiando de uma boa

Page 120: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 2 0

imagem pública internacional, granjeada pelo presidente Lula e as suas políticas de inclusão social, este Brasil de-senvolvimentista impôs-se ao mundo como uma potência de tipo novo, benévola e inclusiva. Não podia, pois, ser maior a surpresa internacional perante as manifestações que, na última semana, levaram para a rua centenas de milhares de pessoas nas principais cidades do País.

Perante as recentes manifestações na Turquia, foi ime-diata a leitura feita pelos analistas internacionais acerca da existência de “duas Turquias”. No caso do Brasil, foi mais difícil reconhecer a existência de “dois Brasis”. Mas ela aí está, aos olhos de todos. A dificuldade em reco-nhecê-la reside na própria natureza do “outro Brasil”: um Brasil furtivo a análises simplistas. Segundo Santos, esse Brasil é feito de três narrativas e temporalidades. A primeira é a narrativa da exclusão social (um dos países mais desiguais do mundo), das oligarquias latifundiárias, do caciquismo violento, de elites políticas restritas e racis-tas, uma narrativa que remonta à colônia e se tem repro-duzido sob formas sempre mutantes até hoje. A segunda narrativa é a da reivindicação da democracia participati-va, que remonta aos últimos 25 anos, e que teve os seus pontos mais altos no processo constituinte que conduziu à Constituição de 1988, nos orçamentos participativos sobre políticas urbanas em centenas de municípios, no impeachment do Presidente Collor de Mello, em 1992, na criação de conselhos de cidadãos nas principais áreas de políticas públicas, especialmente na saúde e na educa-ção,nos diferentes níveis da ação estatal (municipal, esta-dual e federal). A terceira narrativa tem apenas dez anos e

Page 121: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

J o s é A n t ô n i o S e p u l v e d a

1 2 1

diz respeito às vastas políticas de inclusão social adotadas pelo presidente Lula, a partir de 2003, e que levaram a uma significativa redução da pobreza, à criação de uma classe média com elevado pendor consumista, e ao reco-nhecimento da discriminação racial contra a população afrodescendente e indígena.

O que aconteceu desde que a presidente Dilma assu-miu as funções de Estado foi a desaceleração ou mesmo o estancamento das duas últimas narrativas. E como em política não há vazio, o espaço que elas foram deixando de baldio foi sendo aproveitado pela primeira e mais antiga narrativa, que ganhou novo vigor sob as novas roupagens do desenvolvimento capitalista a todo o custo e as novas (e velhas) formas de corrupção. As formas de democracia participativa foram cooptadas, neutralizadas no domínio das grandes infraestruturas e mega projetos, e deixaram de motivar as gerações mais novas. As políticas de inclu-são social esgotaram-se e deixaram de corresponder às ex-pectativas de quem se sentia merecedor de mais e melhor. A qualidade de vida urbana piorou em nome dos eventos de prestígio internacional que absorveram os investimen-tos que deviam melhorar transportes, educação e serviços públicos em geral. O racismo mostrou a sua persistência no tecido social e nas forças policiais. Aumentou o assassi-nato de líderes indígenas e camponeses, demonizados pelo poder político como “obstáculos ao desenvolvimento”. Ou seja, para Santos, o problema que explode hoje o Brasil, de certa forma, está na gestão da presidente Roussef.

Respeito bastante o ponto de vista de tão renomado pensador português. Ele demonstra estar atualizado com

Page 122: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 2 2

os problemas brasileiros. Todavia, depositar a culpa da si-tuação do Brasil na atual gestão e no sistema partidário brasileiro me parece um pouco simplista. Reconheço a im-portância do governo Lula, mas entendo que esse não foi suficiente para fazer as reformas necessárias no País. Al-gumas questões, como a tributária, foram negligenciadas. As reformas estruturais necessárias não foram feitas, o go-verno rendeu-seà velha tradição patrimonialista da cultura política brasileira e incorporou a corrupção como norma e o tráfico de influência como uma arma contra os inimigos.

Em suma, creio que as manifestações de junho expu-seram um paradoxo construído durante a gestão do pre-sidente Lula: em nome de uma pretensa inclusão social, aceitamos e praticamos atos de corrupção. Tal paradoxo não é novidade na história política brasileira. Os gover-no Vargas, Kubitschek e Goulart enfrentaram as mesmas questões e adotaram as mesmas posturas. Para agradar ao povo, fizeram qualquer coisa (populismo), e deixaram de fazer o que realmente importava para transformar as con-dições de vida do povo brasileiro de forma efetiva. Afinal, mais do que poder de compra, o povo quer um sistema de transporte que funcione, um sistema de saúde que garanta a qualidade de vida de todos e um sistema educacional que possibilite à população vislumbrar um futuro melhor.

Todas as questões mencionadas acima apareceram como bandeira nas manifestações de junho, o que com-prova o grau de insatisfação do povo brasileiro. Todavia, reconheço que a força conservadora da sociedade tende a abafar o movimento e a mídia a conformar a população. Afinal, a vida continua...

Page 123: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

1 2 3

Sobre os autores:

Cristovão Fernandes Duarte_ Graduado em Arquitetu-ra e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Urbanismo pela UFRJ e doutor em Plane-jamento Urbano e Regional pela UFRJ. É docente da UFRJ. Autor do livro Forma e Movimento (Rio de Janeiro: Vianna & Mosley: Ed. PROURB, 2006) e co-organizador do livro Fa-vela&Cidade (Napoli: Giannini Editore, 2008). Mantém blog com textos e videos sobre a cidade contemporânea: http://cris-tovao1.wordpress.com/

Eliana Vinhaes Barçantes_ Mestra em História pela Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é docente da Uni-versidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) (Aposentada) e Universidade Estácio de Sá (UNESA).

Flávia Vinhaes_ Doutora em Economia, mestre em Pla-nejamento Urbano e Regional, ambos pela Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente trabalha como tecnologista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na Coordenação de Índice de Preços e é docente da Universidade Candido Mendes (UCAM) e da Fundação Getú-lio Vargas (FGV/MBA).

Page 124: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 2 4

Flora Daemon_ Jornalista, Doutoranda em fase de con-clusão da tese e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (PPGCOM/UFF). É pesquisadora associa-da ao Núcleo de Estudos em Comunicação e Violência (NEV-COM/UFF).

José Antônio Sepúlveda_  Professor Adjunto de Política da Educação no Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor de artigos na área de educação. Co-laborador do Observatório da Laicidade na Educação.

Kadu Machado _ Jornalista, trabalha na Fiocruz, e é coordenador do Núcleo Celso Furtado, do PT-RJ

Karla Vargas_ Pedagoga formada pela Universidade Está-cio de Sá (UNESA) .

Leonardo Marques de Mesentier_ Arquiteto do Centro Lucio Costa – IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), Doutor pelo Instituto de Pesquisa e Pla-nejamento Urbano e Regional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), Professor Adjunto da Escola de Ar-quitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), com diversos artigos publicados em coletâneas de li-vros e periódicos científicos.

Lincoln Penna_ Professor de História do Brasil da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (aposentado), Dou-tor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), atual presidente do Movimento em Defesa da Economia Na-cional (MODECON), e autor de livros e artigos na área de história política.

Page 125: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 2 5

Marcelo Barbosa é advogado, doutor em Literatura Com-parada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e diretor-coordenador do Instituto Casa Grande.

Marcelo Biar_ Historiador, Mestre em Serviço Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e Doutoran-do em fase de conclusão da tese em História, pela Universida-de Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é docente da Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC). Autor de Antônio Con-selheiro_ Nem santo nem pecador (Editora Rocco), e coorde-nador do www.juntosnacontramao.com.br

Page 126: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013
Page 127: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

1 2 7

Num mundo onde tentam nos impor uma visão única da realidade, nos levando a não reflexão e resignação, não basta mais apenas estar na contramão. Queremos a afirmação cole-tiva da contramão como negação disto que aí está. Negação do mundo que produz mais alimentos do que necessário e as-siste parte de sua população morrer de fome. Que cinicamente faz campanhas pela paz enquanto silencia diante da triste es-tatística que nos mostra que uma mulher é agredida a cada 5 minutos, no Brasil. Que silencia ante a polícia que mais mata no mundo e que tem como sua maior vítima o jovem, negro e favelado.

Negar esta sociedade é antes de mais nada afirmar nossa crença na ação transformadora. É nossa afirmação humana na construção cotidiana de um mundo mais justo.

Eis aqui uma trincheira. Eis aqui uma praça, uma rua, uma mesa de bar, um livro, uma qualquer coisa onde, juntos, seremos melhores. Eis aqui, mais uma semente de uma outra sociedade.

Neste site recebemos qualquer um que esteja na contra-mão. Qualquer um que queira dividir planos e ações transfor-madoras. Pensamos na radicalidade democrática. Não a de-mocracia, palavra banalizada, que brota sem sentido da boca de nossos algozes. Mas a democracia que nos fará sujeitos plenos de nossa história. Democraticamente, portanto, deixa-

Page 128: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

E o p o v o r e i n v e n t o u a s r u a s . . .

1 2 8

mos claro, preconceituosos, conservadores, elitistas e defenso-res da sociedade desigual e perversa que vivemos, não cabem neste espaço. Aqui podemos divergir sobre os caminhos que seguiremos, mas nunca sobre onde queremos chegar! Aqui es-tamos na contramão e, cada vez mais, juntos!

www.juntosnacontramao.com.br

Page 129: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013
Page 130: Miolo e o povo reinventou as ruas 27112013

Este livro foi composto em Sabon LT Std pelaEditora Multifoco e impresso em papel offset 75g.