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 MISÉRIA DOURADA Jorge Mautner (1993)

Miséria Dourada Mautner

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  • MISRIA DOURADA

    Jorge Mautner

    (1993)

  • misria dourada

    Duas citaes e imagens paralelas e simultneas, como su-cede ser tudo nesta literatura de quarta-dimenso, poderiam defi-nir, dentro da indefinio das coisas, este livro:

    Dilogo travado entre o chefe da Gestapo Heinrich Himm-ler, e Adolf Hitler. Quando perguntado pelo chefe da Gestapo Himmler quais seriam os novos inimigos do III Reich triunfante, j que no existiriam mais nem judeus, nem homossexuais, nem deficientes fsicos, nem ciganos, nem lderes de outros partidos, o fhrer respondeu: Sero trs categorias de inimigos, caro Heinri-ch: os diferentes, os estranhos e os humoristas!!!!

    Clementina de Jesus sorrindo, cantando para mim, no so-nho mais bonito, duas msicas, uma do eterno Dorival Caimmy , e outra do imortal Vincius de Moraes e do Baden Powell, e repetin-do muitos vezes: E a mo da doura hein????... t no Gantois!!!! e depois: Eu nunca fiz coisa to certa, entrei pra Escola do Perdo, a minha casa vive aberta, abri todas as portas do corao!!!!

  • jorge mautner

    Um caso de dupla personalidade integrada e... feliz!!!!

    Eu ando meio morto eno sei por quanto tempo. Eu ando em terrasde fezes de porco.Celso Alencar

    A noite caa como um banho de fascas em cima de Vila Isa-bel. Alm daquele abuso de estrelas faiscando em cima da baa de Guanabara assemelhando-se a uma multido de diademas, dia-mantes, esmeraldas, guas-marinhas emanando suas luzes estela-res em cima da cidade eternamente-modernamente maravilhosa, ainda existia aquela lua escandalosa a navegar como se fosse uma bola de neve luminosa a inspirar serenatas, romnticos, poetas, feiticeiros e namorados em geral a fazerem mais serenatas, a se-rem mais romnticos, mais poetas, mais feiticeiros, e mais namo-rados ainda!!!!

    Naquele bairro bomio e histrico, tradicional e imortal de Vila Isabel, havia um bar de esquina no qual numa saleta dos fun-dos existia uma mesa de bilhar e que nesta noite de sexta-feira esta-va repleta de jogadores, profissionais e amadores. Estava tambm entupido de gente de todas as cores, de brasileiros e brasileiras, a grande sala central assim como tomando conta de toda a calada, e estendendo-se para muito alm do permetro de propriedade do bar mesas e cadeiras inconfortveis atulhadas, empilhadas, abar-rotadas, preenchidas de gente!!!!

    O burburinho era grande e havia muita, mas muita gritaria mesmo. As pessoas deste lugar chamavam aquilo de conversao, mas era pura gritaria, vozerio, berros, urros. Mas o que fazer? Era

  • misria dourada

    assim mesmo que se expressavam estes brasileiros e brasileiras neste bar bomio nesta noite mgica de Vila Isabel.

    Havia numa das mesas um casal de rara viso: ele era um chins, e ela era uma mulata. O chins tentava explicar para sua mulata que em noites de lua cheia como esta dava para enxergar um coelho, ou se quiserem uma lebre na lua. E ela, a mulata sam-bista da Escola de Samba de Vila Isabel, retrucava que no, no era nada disso. O que se via na lua cheia em noites como estas era nada mais nada menos que So Jorge Ogum, montado em seu ca-valo branco espetando o eterno drago da maldade.

    Na mesa ao lado havia um intelectual estudioso do samba discutindo com mais trs colegas o contedo social e poltico, existencial e esotrico da briga entre Wilson Batista e Noel Rosa, o poeta de Vila Isabel. Tambm discutiam aos berros como todo mundo.

    L no fundo da saleta de bilhar, sentado imerso em semi-es-curido numa confortvel poltrona antiga e de couro j desgasta-do pelo tempo, porm como todas as peas antigas de tima qua-lidade e resistncia, um forte e atltico, altssimo e simpaticssimo cidado negro atendia uma fila de clientes que silenciosamente esperavam na fila, tambm imersa naquela semi-escurido ave-ludada, a hora de serem atendidos por aquele a quem chamavam de Z Diabo.

    E o que estava vendendo este Z Diabo? Ora, trouxinhas de maconha e papelotes de coca-na, que os colombianos chamam de La Cama, e no Brasil chamam de p.

    Foi quando Z Diabo avistou um vulto conhecido que ain-da estava l no fundo da fila de clientes pacientes e silenciosos que mergulhados na semi-escurido aveludada de veludo negro do ambiente iam seguindo como se fossem um cortejo disciplinado de crentes religiosos, catlicos praticantes que em passo de ceri-monial srio, taciturno, seguro e devoto iam se aproximando dele, Z Diabo, e que pareciam curvar-se perante ele, beijar suas mos de padre-confessor, ajoelhar-se perante ele, permanecer no mais do que quatro ou vinte e quatro segundos no mximo parecen-do realmente estarem comungando e tomando a hstia sagrada,

  • jorge mautner

    e no entanto o que se passava naquela semi-escurido daquele ambiente aveludado de veludo negro de missa satnica oficiada pelo monge diablico, sacerdote infernal, Z Diabo, era a discre-ta operao de estenderem a mo direita com o dinheiro contado na mo, e receberem a trouxinha de maconha, ou o papelote de cocana, ou ambos na mo esquerda, e ato contnuo se retirarem em silncio, na discrio, na manha de gato, na mesma postura de quem se faz de quase invisvel com a qual entraram e se postaram na fila como um bando de cordeirinhos de Deus.

    Mas como ia dizendo, Z Diabo ao avistar um vulto conhe-cido, possuidor que era de um faro anormal aliado a uma viso de guia negra, e eu diria possuidor de dons telepticos que o torna-vam uma pessoa portadora de ax e poderes extra-sensoriais dig-nos de um mdium ou xam dos mais sofisticados, e que o fazia possuir, creio eu, alm do terceiro olho, uma viso que ia alm do infra-vermelho e alm do ultravioleta e que como aqueles visores de raios infra-vermelhos usados principalmente nos rifles pelo exrcito dos EUA, so capazes de enxergar no maior escuro, orde-nou com um gesto nobre e autoritrio, seco e majestoso, que no deixava qualquer dvida sobre a sua inata capacidade de dar or-dens e ser obedecido incontinenti, sem nenhuma discusso, que o vulto reconhecido por ele sasse imediatamente da fila e se adian-tasse e se apresentasse diante dele.

    E isto de fato se deu e sucedeu. No houve murmrios, nem sequer um nico comentrio sobre o fato obviamente ululante de que algum estava furando a fila descaradamente. Tudo ali esta-va submetido a uma espcie de universo-sistema-atmosfera-leis autoritrias, rgidas, ditatoriais, absolutas cujo comandante-guia--chefe-Fhrer profano-sagrado-absoluto-irresvalvel era o Z Diabo.

    Logo que o vulto chamado a furar a fila e a se apresentar pe-rante o Z Diabo se aproximou deste, travou-se o seguinte di-logo, que foi executado em tom sbrio, cantado, quase em ritmo e melodia de um samba-cano bem suave e cool, entre aqueles dois gatos negros, porque sim, o vulto que furou a fila e se apro-ximou de Z Diabo a mando e comando, invocao e chamado

  • misria dourada

    deste, tambm era da cor negra do veludo negro, da pantera negra, da prola negra, do bano e da nix, da Noite Rainha, do buraco negro e do saci-perer!!!!

    S que o negro recm-chegado que furara a fila a mando de Z Diabo era muito mais magro que este e embora tivesse um metro e oitenta de altura no era de longe to alto, atltico, massa, gigante, como Z Diabo o era, ainda , espero eu!!!! Chamava-se Marcus Pantera negra, e era baterista de todos os ritmos, msica popular avanada brasileira, jazz, soul, e batucadas em geral!!!! Seu apelido era Marquinhos mos e dedos de veludo negro, e j havia tocado com muita gente famosa e no famosa, por exemplo, foi baterista de Jorge Mautner, de Zizi Possi, de Luiz Melodia, de Ma-risa Monte, etc., etc., etc., etc.

    Eis o dilogo, entre os dois gatos, panteras negras, malaba-ristas, artistas do abismo, travado em tom de troca de vibraes e irradiaes de relmpagos e raios cheios de subtons, subsignifica-dos em forma e contedo, maneira e jeito de mantras, cnticos, toques, sugestes, cheias de malcia, magia, simpatia, telepatia!!!!

    Z Diabo: Oi, Marquinhos dedos e mos de veludo ne-gro, como vai? H tanto tempo que a gente no se v... o que te traz aqui e por aqui? No estavas na Europa, excursionando com aque-le grupo do Lus Melodia, o nosso Prola Negra do Estcio de S?

    Marquinhos: ... eu estava, mas agora estou por aqui. Cheguei apenas h vinte e quatro horas atrs, vim diretamente do gelo da Sua para o calor do aeroporto do Galeo, e depois de to-mar um ligeiro e refrescante chuveiro gelado l na casa dos meus pais em Engenho de Dentro, vim diretamente para c, para ver como andam as coisas, matar saudades, quem sabe encontrar a Vanessa... e comprar uns bagulhos com voc!!!! E isso a!!!!

    Z Diabo: - isso a... vamos, toma estas duas trouxas de marijuana como dizem os mexicanos, e dois papelotes de brilho do melhor... e voc no paga nada, presente de amigo antigo, camarada, companheiro e parceiro de sambas imortais... v se me telefona um dia destes pra gente compor juntos aqui, ou no Est-cio ou na Mangueira ou no meu bangal l na baixada fluminense, em Belfort Roxo, mas v se voc se manda agora mesmo, porque o

  • jorge mautner

    papo estava bom mas daqui a pouco o pessoal da fila vai comear a reclamar, eu conheo eles, a moda agora, democracia, parla-mentarismo, greves, desobedincia civil, mole???? Ax pra voc Marquinhos dedos e mos de veludo negro!!!!

    Marquinhos: Ciao meu chapa, meu irmo, meu cumpa-dre, meu parceiro, at um dia, ou melhor dizendo, uma noite des-tas, vamos combinar sair com a Vanessa minha garota e aquela sua namorada francesa, aquela loirinha gostosa tipo Miss Mundo que gamou total no meu amigo Valdemar dos Santos e Silva, vulgo Z Diabo, nego dos neges, pra ningum botar defeito, o malandro da ginga e do papo e da cantada e da malandragem mais certei-ra deste mundo, do primeiro, do segundo, do terceiro e do quarto mundo!!!! E... obrigado pelas quatro presas mas da outra vez eu pago em dobro!!!!

    Z Diabo: Te manda logo, tu no paga em dobro da prxima vez coisa nenhuma, eu s exijo que em troca voc cante e toque as nossas melodias para a minha loira francesa a gata Claire Rosanne pra ela ver que no papo nem inveno minha... mas agora te manda... v se te cuida, pe os bagulhos bem malocados dentro da sunga e v se no d bobeira que em noite de sexta-feira, lua cheia, os homens da lei esto loucos e possessos pra prender, encarcerar, enjaular, torturar!!!! Take care, Ogum te proteja!!!!

    Marquinhos: Ax!!!!Z Diabo: Ax!!!!Na manh do dia seguinte nascida chuvosa com So Pedro

    castigando o Rio de Janeiro de maneira impiedosa atravs de chu-vas torrenciais e tropicais e mortais e fatais j h mais de treze horas, transformou-se em manh luminosa com o sol surgindo como num desenho animado, ou pintura ingnua de criana a lpis de cor, com seus raios amarelos e que secaram e desumedeceram tudo e todas as coisas em questo de segundos-instantes-momentos-fraes, e eis que l pelo meio-dia em ponto, o carioca j se sentia novamente feliz, bem-humorado, otimista e alegre!!!! Sigmund Freud fala muito sobre a importncia da beleza na vida de todos ns mortais. Diz o moderno-eterno-moderno Orculo de Delfos que sem esta beleza a nos circundar, incentivar, provocar, elevar, seria quase impossvel

  • misria dourada

    resistir, existir, viver, sobreviver, nesta amarga-real-hostil-agressiva vida-paisagem-sociedade-civilizao!!!!

    Quando a noite caiu, era como se a prpria noite Rainha do poema de Fernando Pessoa casse sobre a cidade maravilhosa, a baa de Guanabara, o Cristo Redentor, o Corcovado, o Po de A-car, a Vista Chinesa, a Barra, a Floresta da Tijuca, e sobre... Vila Isa-bel!!!!

    Marcus Pantera, o Marquinhos dedos e mos de veludo negro, andava gingando distraidamente pelas ruas do mgico--mtico-glorioso-lindo bairro de Noel Rosa, saboreando o ar e o gosto, o aroma e o perfume do Feitio da Vila que segundo o po-eta Noel de Medeiros Rosa tendo o nome de princesa transfor-mou o samba em feitio decente que prende a gente... e estava asso-biando justamente este samba imortal chamado Feitio da Vila, quando avistou todo garboso, militar, prussiano, vistoso, um negro atltico, forte, gigantesco, magntico, que ostentando uma brilhante-impecvel-engomada-elegante farda de Polcia Militar com a divisa de sargento, quase marchando com suas faiscantes botas pisando em compasso de samba militar, com algemas, cas-setete, balas e revlver na cintura, culos ray-ban cinematogrfico de super-heri gal, com a expreso, tiques, caras e bocas de um Marlon Brando negro, exibindo toda a fora, majestade, magni-ficncia-pureza da lei, da ordem, da moral, do direito, no havia mais dvida alguma, o seu amigo-companheiro-camarada-par-ceiro o Valdemar dos Santos e Silva, vulgo Z Diabo!!!!

    Quando os dois e aproximaram frente a frente, cara a cara, face a face, nariz a nariz, eis o surpreendente, inesperado, cho-cante, impressionante dilogo que se deu e sucedeu como fascas, raios, relmpagos, flechadas, em tom e som, contedo e forma, de tragdia-grega-comdia-negra, eis, eis, eis, eis:

    Marcus Pantera, vulgo Marquinhos dedos e mos de veludo negro:

    Oi, meu chapa-irmo-cumpadre-parceiro Valdemar dos Santos e Silva, vulgo Z Diabo, o que que voc est fazendo aqui e por aqui, nesta hora, agora, todinho uniformizado-fardado-ar-mado-engomado????

  • jorge mautner

    Ao que ligeiro-matreiro-brasileiro-malandro o VaIdemar dos Santos e Silva, vulgo Z Diabo, respondeu-retorquiu-falou-disse:

    Ora meu bom amigo-irmo-chapa-cumpadre Marcus Pantera, vulgo Marquinhos dedos e mos de veludo negro... eu hoje estou procurando por mim mesmo... ontem!!!!