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Mitos Contemporâneos - A criação publicitária

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Trabalho de Conclusão de Curso apresentado na ECA-USP, Departamento de Publicidade e Propaganda em 2007. Um estudo sobre a estrutura sócio-antropológica do mito e suas diversas funções a serviço das instituições de poder ao longo da história da civilização.

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ECA/USP

FERNANDO ZARPELON

‒ A C C ‒

Mitos ConteMporâneosA Criação Corporativa

Fernando Zarpelon

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Comunicações

e Artes da Universidade de São Paulo, no Departamento de Relações

Públicas, Publicidade e Propaganda e Turismo para obter graduação

de Bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Publicidade

e Propaganda.

Prof. Orientador: Dr. Eneus Trindade Barreto Filho

São Paulo

2007

Universidade de são paUlo

escola de comUnicações e artes

La Fable et la Vérité

La Verité toute nue

Sortir un jour de son puits.

Ses attrait par le temps étaient un peu détruiits.

Jeune et vieux fuyaient sa vue.

La pauvre Vérité restait là morfondue,

Sans trouver um asile oú pouvoir habiter.

A ses yeux vient se présenter

La Fable richement vêtue.

Portant plumes et diamants,

La plupart faux, mais trés brilliant.

Eh! Vous voilà, bonjour, dit-elle:

Que fait vous ici seule sur un chemin?

La Vérité répond: Vous le voyeuz, je gèle.

Aux passants je demande en vain

De me donner une retraîte,

Je leur fais peur à tous. Hélas! Je le vois bien.

Vieille femme n’obtient plus rien.

Nous êtes pourtant ma cadette,

Dit la Fable, sans vanité.

Partout je suis fort bien reçue.

Mais aussi, dame Vérité,

Pourquoi vous montrer tout nue?

Cela n’est pas adroît. Tenez, arrangeons-nous;

Qu’un même intérêt nous rassemble:

Venez sous mon manteau, nous marcheron ensemble.

Chez le sage, à cause de vous.

Je ne serai point rebutée.

A cause de moi, chez le fous.

Vous ne serez point maltraitée.

Servant par ce moyen chacun selon son goût,

Grâce à votre raison et grâce à ma folie,

Vous verrez, ma sœur, que partout

nous passerons de compagnie.

A Fábula e a Verdade

A Verdade toda nua

Sai um dia de seu poço.

Os encantos, pelo tempo, foram um pouco destruídos.

Jovens e velhos fogem de sua vista.

A pobre Verdade espera em vão,

Sem encontrar um asilo onde possa habitar.

A seus olhos vem se apresentar

A Fábula ricamente vestida.

Portando plumas e diamantes,

A maior parte falsos, mas muito brilhantes.

Ei! Você aí, bom-dia, diz ela:

O que faz aqui sozinha no caminho?

A Verdade responde: Veja você, eu congelo.

Aos que passam eu peço em vão

Que me dêem um refúgio,

eu amedronto a todos. Maldição! Agora entendo.

Velhas senhoras não conseguem mais nada.

Nós somos portanto, minha caçula,

Diz a Fábula, sem vaidade.

Por toda parte sou bem recebida.

Mas assim, dama Verdade,

Porque você se apresenta toda nua?

Assim não está certo. Contenha-se, arranjemo-nos;

Que um mesmo interesse nos reúne:

Venha sobre meu manto, nós marcharemos unidas.

Junto aos sábios, por sua causa

Eu não serei rejeitada.

Por minha causa, junto aos tolos

você não será maltratada.

Servindo deste modo, cada um ao próprio gosto,

Graças à sua razão e à minha loucura,

Você verá, minha irmã, que por toda parte

nós passaremos em companhia.

Jean-Pierre Claris de

Florian, c. 1785

capa: Montagem Própria a partir da imagem carregada em 01/08/2006 por kamshots, http://www.flickr.com/photos/kamshots/204048386 em 10/06/2007.

1. Ilustração Própria: Diagrama da Tópica descrito por Gilbert Durand.

2. Carregada em 06/04/2007, por Orchard Lake, http://www.flickr.com/photos/orchardlake/448542536/ em 21/05/2007.

3. http://www.historicart.se/HA_Replica_Catalogue_egyptian.htm em 21/05/2007.

4. http://www.mjausson.com/2002/img/31Mar02/05demeter02.jpg em 21/05/2007.

5. http://photo.xanga.com/masquerading_love/b509f103288509/photo.html em 21/05/2007.

6. http://www.ufrsd.net/staffwww/stefanl/myths/hercules.jpg em 03/06/2007.

7. Alexandre Cabanel, 1863, Museu d´Orçay, Paris, França.

8. Carregada em 29/11/2005, por Cybjorg, http://www.flickr.com/photos/cybjorg/68265465/ em 21/05/2007.

9. Ilustração Própria: Bacia Semântica deságua no “Oceano da Contemporaneidade”.

10. Vadim Onishchenko, www.wildlife-photo.org, 2004-2005.

11. http://www.linsdomain.com/gods&goddesses/anubis.htm em 21/05/2007.

12. Sandro Botticelli, c.1483, The National Gallery, Londres, RU.

13. Carregada em 07/02/2007, por bazarmiraofertas, http://www.flickr.com/photos/bazarmiraofertas/383113194/ em 21/05/2007.

14. http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Flags_of_the_Union_Jack.png em 21/05/2007.

15. Eugène Delacroix, 1830, Museu do Louvre, Paris, França.

16. http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/archive/a/ af/20070108180923!Image-IPod_5G,_nano_2G,_shuffle_2G.jpg em 21/05/2007

17. http://www.stereo3d.com/img/siemensglobalplayer.jpg em 21/05/2007.

18. Carregada em 07/04/2006, por carambar67, http://www.flickr.com/photos/82241344@N00/124622125/ em 31/03/2006.

19. http://www.cccpfashion.com/images/CCCP-3-big.jpg

20. Michel Pastoureau; Heraldry: Its Origins and Meaning, London, U.K.: Thames & Hudson Ltd, 2001, p. 56.

21. Michel Pastoureau; Heraldry: Its Origins and Meaning, London, U.K.: Thames & Hudson Ltd, 2001, p. 57.

22. http://www.rohdesign.com/weblog/img/photos/National_Park_ Service_9-11_Statue_of_Liberty_and_WTC_fire.jpg em 21/05/2007.

23. http://www.mirrors.org/historical/2001-09-11-World-Trade_Center/ wtc/wtc_005.jpg em 21/05/2007.

24. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007.

Lista de Imagens e Gráficos

Agradeço primeiramente todos os deuses, santos (especialmente Santo Expedito), heróis, entidades, duendes, orixás e seres espi-rituais que podem de alguma forma ter influenciado e ajudado na

realização deste trabalho. Não fosse por eles, seria preciso, além de tudo, escolher outro tema de pesquisa.

Agradeço à Escola de Comunicações e Artes e demais unidades que freqüentei na Universidade de São Paulo; todos os funcionários, profes-sores e colegas com quem convivo desde de 2001 e que possibilitaram minha formação acadêmica.

Agradeço à Mundrungagem Cósmica, à galera do Vamoaê, aos PPTrutas e todos os grupos e e-grupos de amigos com quem compartilho idéias, inspirações, valores, referências, contatos e grandes amizades, tanto nas baladas, como no dia-a-dia das repúblicas e online.

Um agradecimento especial às pessoas que diretamente me auxiliaram neste estudo: Eneus Trindade, atencioso professor orientador; Carlos Lunetta, “patrão”, amigo e grande referência bibliográfica; Maira S. Albuquerque com quem viajei, visitei, conversei e aprendi muito sobre his-tória e mitologia; Paula K. Santos, grande amiga que me “salvou” na edição do trabalho; à família Dazroo Butantã: Sherlon, Flavião, Carol “Ambrô”, André “Legal”, Maria Regina, Adriano “Sapo”, Yara, Ami “San” e todos os agregados (que não caberiam nesta página) tão compreensivos e impresci-díveis para que o trabalho finalmente “saísse do quarto”.

Finalmente – e mais importante de todos – agradeço à minha família, aos meus pais e ao meu irmão que, mesmo longe fisicamente agora, nun-ca mediram esforços, diálogo, apoio e amor durante toda minha vida para que pudesse ultrapassar os momentos difíceis com confiança e otimismo. Este trabalho é dedicado a vocês.

Muito Obrigado!

25. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007.

26. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007.

27. Phillippe Codognethttp://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007.

28. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007.

29. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007.

30. Phillippe Codognet, http://pauillac.inria.fr/~codognet/web.html em 02/03/2007.

31. Carlos Lunetta, The articulation of visual experiences through algorithm, Boston, E.U.A.: Massachusetts College of Art, 2005, p. 24

32. http://www.bergoiata.org/fe/800-1024-1280/New_York--Times_Square.jpg em 21/05/2007.

33. Carregada em 28/07/2006, por Straws pulled at random, http://www.flickr.com/photos/ste/176933584/ em 21/05/2007.

34. Carregada em 23/09/2006, por Mantelli, http://www.flickr.com/photos/mantelli/250820227/ em 21/05/2007.

35. http://www.in70mm.com/news/2004/circlorama/images/ circlorama_picadilly_circus.jpg em 21/05/2007.

36. Carregada em 23/11/2006, por kridgett kreations, http://www.flickr.com/ photos/kridgett_kreations/304491286/ em 21/05/2007.

37. Carregada em 11/10/2006, por powerbooktrance, http://www.flickr.com/photos/powerbooktrance/267059283/ em 21/05/2007.

38. Carregada em 22/02/2007, por weathershenker, http://www.flickr.com/photos/98496150@N00/398569554/ em 21/05/2007.

39. Carregada em 08/01/2007, por Justin Hiltz, http://www.flickr.com/photos/deadmole/351247777/ em 21/05/2007.

40. Carregada em 25/09/2005, por hipertoto, http://www.flickr.com/photos/30643794@N00/46441489/ em 21/05/2007.

41. Carregada em 01/10/2005, por jaimelondonboy, http://www.flickr.com/photos/38575691@N00/48487565/ em 21/05/2007.

42. http://www.dcs.ed.ac.uk/teaching/cs4/www/graphics/ Web/intro_graphics/cgrasp.jpg em 21/05/2007.

43. http://www.cea.wsu.edu/Content/Headers/virtualrealS05.jpg em 21/05/2007.

44. http://us.movies1.yimg.com/movies.yahoo.com/images/hv/photo/ movie_pix/warner_brothers/the_matrix/matrixjacks.jpg em 21/05/2007.

45. Carregada em 14/09/2004, por andyi, http://www.flickr.com/photos/andyi/434460/ em 21/05/2007.

46. Carregada em 16/03/2007, por L’Oréal Paris Second Life, http://www.flickr.com/photos/7354016@N02/422905842/ em 21/05/2007.

47. Carregada em 23/10/2006, por Silvery, http://www.flickr.com/photos/silvery/278058062/ em 21/05/2007.

48. Carregada em 12/08/2006, por Stephanie Booth, http://www.flickr.com/photos/bunny/213397504/ em 21/05/2007.

Agradecimentos

Sumário

1 Introdução ................................................................................... 11

Iconoclastia vs. Iconolatria ......................................................... 132.1 Os Símbolos: Mitos e Arquétipos ............................................ 152.2 Pensamento Mitológico e Pensamento Científico .................... 312.3 A Propagação Mítica Estrutural e sua Função Social .............. 412.4 Evolução do Pensamento Mitológico ao Pensamento Científico ......472.5 A Criatividade, a Dinâmica dos Sistemas Simbólicos, o Caos no Senso Comum e a Queda do Determinismo Lógico no Ocidente.. 63

Semiótica na Internet e Contemporaneidade ........................... 733.1 Enunciação na Internet: Conceitos e Aplicações ..................... 753.2 Sistemas Computacionais como Sistemas Simbólicos ............. 813.3 O Contexto Mercadológico, Pós-Industrial e Global ............... 873.4 O Sagrado Corporativo: Ícones e Imaginário na Contemporaneidade ......................................................................993.5 Realidades Virtuais e Rituais Xamânicos ...............................99

Mitos Contemporâneos ...........................................................1074.1 Produção Mitológica Contemporânea na Coleção Puma French 1094.2.Enunciação Mítica: Elementos Dialógicos e Aplicações Mercadológicas ........................................................................... 113

Considerações Finais ................................................................ 119

Bibliografia ................................................................................ 123Webiografia ............................................................................... 125Anexos ....................................................................................... 127I: Coleção Puma French 77 – Apresentação para Vendas e Apresentação da Campanha ....................................................... 129II: Coleção Puma French 77 – Cenas de http://www.puma.com/french77 ..................................................................................... 151III: Coleção Puma French 77 – Letra da Música: “For Energy Infinite”.... 159

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Atarefa de distinção entre o que é verdade e o que é fantasia talvez seja a mais recorrente no nosso dia-a-dia social. Ainda que exista o con-senso sobre o que cada um destes qualitativos signifique, a tarefa de

atribuí-los a um discurso em particular não é nada fácil. O que nos leva a esco-lher entre o que acreditamos e o que não acreditamos faz parte das particula-ridades subjetivas de cada um, dos contextos, do conteúdo dos discursos e das culturas envolvidas, e isso para todos os momentos da nossa existência.

O conhecimento dessas relações é de interesse particularmente importan-te para a enunciação publicitária, que usa e abusa do trânsito entre os pólos do fantástico e do verdadeiro. A publicidade é sempre ambígua em seu aspec-to mais íntimo, pois é um discurso articulado por símbolos dispostos a fim de persuadir os receptores a fazerem, ou acreditarem em algo. Estes objeti-vos intrínsecos aos discursos publicitários lhes fazem recorrer à apropriação de imagens e figuras, cujas linguagens metafóricas não podem desfrutar de absoluto consenso conceitual em uma sociedade de classes. Por mais que use-mos símbolos e eles tenham referência comum, cada um de nós guarda sig-nificados de uma maneira pessoal e íntima que traduz a nossa identidade através da relação que temos com eles.

As imagens e figuras têm compreensão muito mais instantânea e geral do que os discursos lógicos, pois são formas inconscientes de percepção. Estão conectadas com a satisfação dos nossos desejos, nossas pulsões e nossas neces-sidades particulares e irracionais. Via de regra, a necessidade pessoal é mais urgente do que a necessidade do grupo. Inclusive, foi para facilitar a solução das necessidades pessoais através força sinérgica das ações em grupo que acredita-mos, hoje em dia, que o ser humano tenha desenvolvido e evoluído a própria linguagem. O sistema semiótico, assim concebido pela cultura, atribui dinami-camente valores sociais (e econômicos) maiores ou menores aos símbolos que articula. Além disso, é este mesmo sistema (que também é ideológico) quem gera e conceitua a própria realidade para qualquer coletividade que o compartilhe.

Principal operadora destas imagens e símbolos na sociedade hoje, a publi-cidade é a enunciação do capitalismo corporativo e pós-industrial por exce-lência. O Ocidente, como veremos, sempre procurou destituir o poder das

1 Introdução

MiTOS COnTEMPORânEOS12 13

imagens através de técnicas, métodos e condutas que as rejeitassem dentro de seus sistemas e isso nos possibilitou avanços tecnológicos e científicos. Porém, ignorar e combater as imagens totalmente sempre se mostrou infru-tífero. Além disso, recentemente estes esforços vêm sendo pouco a pouco abandonados em favor do processo de globalização dos mercados, que é enca-beçado pelas instituições corporativas.

A pós-modernidade, ou modernidade-mundo, e a série de novas caracte-rísticas incorporadas à sociedade pelas novas tecnologias, e pelo atual con-texto evolutivo dos sistemas simbólicos, inauguram novas formas de organi-zação social e novas perspectivas de mundo. Estas novas relações simbólicas dizem respeito à maneira como nos identificamos para conosco, para com os outros e, em muitos aspectos, remontam velhas estruturas sociais que acre-ditávamos decadentes. Estruturas neotribais surgem para darmos conta de explicar novos contextos e situações sociais com os quais nos deparamos na contemporaneidade. O discurso oficial do mundo globalizado, sob o “man-to” da publicidade, cria e dispõe ao público diversas realidades, parciais e diluídas, que passeiam livres entre verdade e fantasia.

A vivência de realidades parciais pode ser experimentada de muitas manei-ras através do acesso ao universo imaginário. Os mitos e sonhos, os transes e rituais, os heróis e anti-heróis, todos são elementos facetados do universo imaginário, do inconsciente coletivo, da nossa memória comum.

Pretendemos com este trabalho entender aspectos e características da moder-nidade-mundo dentro do imaginário. Analisaremos a articulação dos meios e discursos de suas instituições através da uma leitura de uma campanha publi-citária inserida no contexto do mercado global. Com ênfase dos elementos sim-bólicos que constituem esta comunicação sob uma perspectiva mitológica, bus-caremos abarcar os aspectos trazidos pelas novas mídias nesta análise.

O modo que uma sociedade entende e atua no espaço não é muito mais do que a tradução e solução das suas necessidades consensuais. Compreender, ainda que apenas parcialmente, a natureza do consenso entre verdade e fan-tasia nas diversas classes e culturas da nossa sociedade Ocidental é o maior interesse do nosso estudo.

Ao final do trabalho, analisaremos a mitogênese corporativa no caso da “Coleção Puma French 77” e procuraremos propor algumas idéias, bem como tecer alguns comentários acerca da produção simbólica contemporânea. Colocaremos e discutiremos alguns pontos que acreditamos que possam ser bené-ficos para a construção de uma estrutura social mais eficiente, justa e ética atra-vés da comunicação entre os mais diferentes seres humanos e suas instituições.

2 Iconoclastia vs. Iconolatria

iCOnOClASTiA vS. iCOnOlATRiA 15

Ocapitalismo pós-industrial enquanto sistema ideológico estabe-lece-se de maneira análoga a qualquer outro sistema humano de símbolos, valendo-se da linguagem que emana do aparato comu-

nicativo social para sua existência e fluxo. O sistema capitalista em suas configurações atuais, em virtude da complexa tecnologia comunicacio-nal, tem em suas características estruturais, elementos essenciais que podem ser identificados desde os seus primórdios com permanências e transformações em seu processo evolutivo.

Ao assimilar a dinâmica dos poderes atribuídos aos símbolos sociais e, conseqüentemente, a vantagem da classe que os manipula, associan-do-se aos significados legítimos destes símbolos comuns, procuraremos desvendar os meandros por onde habitam as imagens arquetípicas das culturas humanas e a pluralidade que hoje convive com a globalização.

O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer

uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do mundo (e em particular do mundo

social) supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, “uma

concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível

a concordância entre as inteligências” Durkheim, ou, depois dele, Radcliffe-Brown,

que faz assentar a “solidariedade social” no fato de participar num sistema simbólico

tem o mérito de designar explicitamente a função social (no sentido do estruturo-

funcionalismo) do simbolismo, autêntica função política que não se reduz à função de

comunicação dos estruturalistas. Os símbolos são os instrumentos por excelência da

“integração social”: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação (cf. a

análise durkheimiana da festa), eles tornam possível o consensus acerca do sentido

do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social:

a integração “lógica” é a condição da integração “moral”.

(Bourdieu, 1989, P. 9).

Compreender o sentido de diferentes condições culturais é essencial para este trabalho. As nuances específicas de cada grupo humano (este-ja este em quaisquer que sejam os níveis de atuação), dadas primeiramen-

2.1 Os Símbolos: Mitos e Arquétipos

MiTOS COnTEMPORânEOS16 iCOnOClASTiA vS. iCOnOlATRiA 17

te por sua linguagem e cultura, mas que se estendem em interações sociais, formas de tratamento, rituais, mitos e imagens diferentes; atua-rão como ferramentas para a compreensão do funcionamento do sistema ideológico em cada contexto.

Procuraremos entender como estas configurações, antes geografica-mente isoladas, atuam no novo ambiente “virtualmente global” que pre-senciamos. Afinal, isso é pertinente ao modo como cada cultura utilizou sua própria memória coletiva, organizou seu tempo-espaço e produziu em conhecimento e sabedoria através de uma linguagem estabelecida.

Cada linguagem traça um círculo mágico ao redor do povo a que pertence, círculo

do qual não existe escapatória possível, a não ser que se pule para outro.

(Cassirer, 1972, P. 23).

Este grande círculo permeia a “lógica” lingüística e estabelece um sistema de idéias, um sistema ideológico. Suas histórias particulares, origens, modo de con-ceituação do universo e de produção estão contidos dentro do arcabouço do ima-ginário ou inconsciente coletivo. Tais termos são, sem sombra de dúvida, bastante controversos no meio acadêmico, e buscaremos abordar estes conceitos e suas respectivas definições para elucidar melhor este ponto mais adiante.

O mito é especial em nossa abordagem porque é uma identidade antro-pológica muito marcante dentro da memória coletiva. Max Müller nos diz:

A mitologia é inevitável, é uma necessidade inerente à linguagem, se reconhecemos

nesta a forma externa do pensamento: a mitologia é, em suma, a obscura sombra

que a linguagem projeta sobre o pensamento, e que não desaparecerá enquanto a

linguagem e o pensamento não se superpuserem completamente: o que nunca será o

caso. indubitavelmente, a mitologia irrompe com maior força nos tempos mais antigos

da história do pensamento humano, mas nunca desaparece por inteiro. Sem dúvida,

temos hoje nossa mitologia, tal como nos tempos de Homero, com a diferença apenas

de que atualmente não reparamos nela, porque vivemos à sua própria sombra e porque,

nós todos, retrocedemos ante a luz meridiana da verdade. Mitologia, no mais elevado

sentido da palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento, e

isto em todas as esferas possíveis da atividade espiritual.

(Müller apud Cassirer, 1972, P.20).

A mitologia de uma cultura expressa o seu modo de produção social, o meio através do qual a cultura se desenvolve, o que ela dispõe em seu habi-

tat e, por fim, está atrelada a distribuição de classes sociais e a relação entre elas. Afinal, se conceituarmos a mitologia como este poder que a linguagem, especialmente a visual, exerce sobre o pensamento, isso não poderá deixar de abarcar a esfera política e, conseqüentemente, econômica da sociedade.

(...) a diversidade entre as várias línguas, não é uma questão de sons e signos

distintos, mas sim de diferentes perspectivas do mundo. Se, por exemplo, em grego,

a luz é denominada “Medidora” e, em latim, “luminosa” (luna) ou, sendo mesmo

idioma, como no sânscrito, o elefante ora se chama “O que bebe duas vezes”, ora “O

Bidentado”, ora “Aquele que é munido de uma mão”, tudo isto mostra que a linguagem

nunca designa simplesmente os objetos como tais, mas sempre conceitos formados

pela atividade espontânea do espírito, razão pela qual a natureza dos referidos

conceitos depende do rumo tomado por esse exame intelectual.

(Cassirer, 1972, P.44).

Nesta atividade espontânea do espírito, aquele que estiver mais próxi-mo do “oculto”, do “sagrado”, do “mágico” em sua função social possuirá um status quo seguramente superior. Seu conceito pessoal estará atrelado a idéias que são mais importantes dentro da perspectiva de mundo de cada cultura. O status dialético inverso – a classe massificada – concen-trará suas energias para a produção alienada pela fé na promessa de um sistema ideológico. O mito estabelece relações sociais de classe na medi-da em que é difundido por um segmento dominante e compreendido como verdade pelo segmento majoritário, massificado.

Contra todas as formas do erro “interacionista”, o qual consiste em reduzir as

relações de força a relações de comunicação, não basta notar que as relações de

comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem,

na forma e no conteúdo, do poder material do simbólico acumulado.

(Bourdieu, 1989, P. 11).

Os símbolos, que hoje podem estar associados com uma determinada classe, surgiram socialmente muito antes mesmo desta classe tomá-lo para si. Não basta a intenção de se associar a um símbolo, é preciso acu-mular materialmente este símbolo para que qualquer associação com ele seja reconhecida socialmente. Uma classe social associada a um símbolo comum, faz com que a recorrência do uso deste resulte, por muitas vezes, na “sinapse” para com a sua imagem.

MiTOS COnTEMPORânEOS18 iCOnOClASTiA vS. iCOnOlATRiA 19

Mas afinal, de onde vem esta característica plenamente associativa das palavras? Como o poder material do simbólico é acumulado por algum estrato social, já que um todo coletivo sempre participa da pro-dução material? É de se esperar que este poder imanente tenha origem com a própria palavra dentro da evolução dos sistemas de pensamen-to humano.

(...) todo o trabalho intelectual que o espírito executa ao enformar impressões

particulares em representações e conceitos gerais, visa essencialmente a romper

o isolamento do dado “aqui e agora”, para relacioná-lo com outra coisa e reuni-

lo aos demais numa ordem inclusiva, na unidade de um “sistema”. A forma lógica

do conceber, sob o ângulo do conhecimento teórico não é senão o preparo para

a forma lógica do ajuizar – mas não esqueçamos que todo ajuiza–mento tende

a subjugar e dispersar a aparência da singularização que vai aderida a cada

conteúdo particular da consciência. O fato aparentemente singular é conhecido,

compreendido e conceituado, somente quando é “subsumido” a um universal,

quando é aceito como o “caso” de uma lei, como membro de uma multiplicidade

ou de uma série. neste sentido, todo juízo verdadeiro é sintético, pois seu principal

propósito é este urdimento dos particulares em um sistema. Tal síntese não pode

realizar-se imediatamente ou de golpe, mas precisa ser elaborada aos poucos, pela

atividade progressiva que relaciona as intuições isoladas ou as percepções sensíveis

particulares, reunindo depois o todo resultante em um complexo relativamente maior,

até conseguir, enfim, que a unificação final de todos estes complexos separados

produza a imagem coerente da totalidade dos fenômenos.

(Cassirer, 1972, P. 44).

A partir desta imagem coerente, desta construção social significativa (ainda que repleta de singularizações derivadas dos juízos pessoais de valor), a palavra passa a existir e ser compartilhada com um referencial comum dentro do sistema social e cultural que lhe deu vida. Como um bebê, cada palavra passa a existir socialmente quando tem um nome, quando é partilhada, quando é substantivada e passa a ser referenciada nos discursos e documentos.

O sistema faz com que a palavra passe a designar a compreensão que se tem de sua existência e atuação no mundo real, na realidade comum. Vai além e, através de suas conexões com as demais palavras dentro do emaranhado lingüístico, passa a ser o lastro para aquilo que se entende como “verdade social” dentre convivas em paz cultural.

A identidade essencial entre a palavra e o que ela designa torna-se ainda mais

evidente se, em lugar de considerar tal conexão do ponto de vista objetivo, a tomamos

de um ângulo subjetivo. Pois também o eu do homem, sua mesmidade e personalidade,

estão indissoluvelmente unidos com seu nome, para o pensamento mítico. O nome

nunca é um mero símbolo, sendo parte da personalidade de seu portador; é uma

propriedade que deve ser resguardada com o maior cuidado e cujo uso exclusivo deve

ser ciosamente reservado.

(Cassirer, 1972, P. 65).

A palavra surge dentro de uma rede, uma vez que estabelece conexão com as demais palavras do sistema do qual faz parte. E isto inclusive para a deno-minação e identificação de cada indivíduo. Elas definem-se meta-lingüistica-mente em um novo significado e transformam-no em um conceito. Este novo conceito comum condensa, dentro de seu significado, propriedades que nada mais são do que a descrição das suas relações específicas com os outros sig-nos do sistema e das regras a que obedece dentro de sua hierarquia.

A correta articulação de conceitos não tem acesso irrestrito e muito menos popularizado. Quando o indivíduo compreende/ é compreendido pelo siste-ma, e reconhece os símbolos de maneira correta, passa a ter autoridade sobre suas corretas articulações, pois se subentenderá maior “destreza” no seu racio-cínio. Isso potencializará a eficácia de sua atuação social em comparação com os demais do grupo. Além disso, subjetivamente cresce o valor simbólico de um sujeito quanto mais reconhecimento, importância pessoal e identificação ele possui para com os símbolos valorizados oficialmente dentro de um dado sistema. Ao desvendar a existência, a palavra torna-se meio imprescindível para a partilha de informações essenciais à vida do grupo.

De fato, a palavra, a linguagem, é que realmente desvenda ao homem aquele

mundo que está mais próximo dele que o próprio ser físico dos objetos e que afeta mais

diretamente sua felicidade ou sua desgraça. Somente ela torna possível a permanência

e a vida do homem na comunidade; e nela, na sociedade na relação com um “tu”

também assume forma determinada o seu próprio “eu”, sua subjetividade.

(Cassirer, 1972, P. 78).

O poder de consenso das inteligências que uma linguagem comum gera é capaz de descrever a nossa própria experiência subjetiva no mundo. Para que reconheçamos dentro de um sistema ideológico as respostas às nossas necessidades humanas, precisaremos ver nele verossimilhança com a pró-

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pria realidade. O poder lingüístico é quem possibilita a compreensão de cada “vida” dentro do seu contexto cultural, bem como o seu atuar dentro do sistema e seu espectro existencial subjetivo inconsciente.

É importante assinalar neste momento que o sistema ideológico que nos referimos ainda não tem nenhuma relação com a lógica binária gre-ga surgida apenas muito mais adiante no pensamento da cultura Ocidental. Um sistema ideológico obedece às suas próprias regras e rela-ções internas, que são estabelecidas de acordo com as configurações espe-cíficas de cada grupo humano que o compartilha culturalmente.

Não é na mera substantivação (nomeação) que cessa a atuação da pala-vra. Pelo contrário, como precisamos sempre recorrer a palavras para con-ceituar outras palavras, incorremos em uma espécie de espiral para onde não há saída no momento em que se acaba o repertório lingüístico do gru-po. Neste momento surge o discurso consensual. Ele designa e explica o sistema, mas sua atuação lingüística não tem função necessariamente denotativa. Ele trabalha através de imagens, metáforas, figuras de lingua-gem e criatividade para permitir a convergência e o conformismo entre as inteligências num mesmo ponto.

Tudo o que chamamos de mito (...) é, na verdade, o resultado de uma deficiência

lingüística originária, de uma debilidade inerente à linguagem. Toda designação

lingüística é essencialmente ambígua e, nesta ambigüidade, nesta “paronímia” das

palavras, está a fonte primeva de todos os mitos.

(Müller apud Cassirer, 1972, P. 18).

Surgem metáforas e metonímias como soluções para o círculo restri-to de possibilidades da meta-linguagem. Estas figuras têm liberdade poética para utilizar recursos lingüísticos que tornam o funcionamen-to do sistema inteligível a todos e assegura seu estabelecimento enquan-to verdade social.

O mito não se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como profere.

O mito tem limites formais, mas não substanciais. (...) O mito não pode definir-se nem

pelo seu objeto, nem pela sua matéria, pois qualquer matéria pode ser arbitrariamente

dotada de significação: a flecha apresentada para significar uma provocação é também

uma fala. não há dúvida que na ordem da percepção, a imagem e a escrita, por exemplo,

não solicitam o mesmo tipo de consciência; e a própria imagem propõe diversos modos

de leitura. (...) no mito, pode encontrar-se o mesmo esquema tridimensional [semiológico]

de que acabei de falar: o significante, o significado e o signo. Mas o mito é um sistema

particular, visto que ele se constrói a partir de uma cadeia semiológica que existe já antes

dele: é um sistema semiológico segundo.

(Barthes, 1993, P. 131).

Este sistema semiológico segundo é peça fundamental para o consen-so do grupo, pois é como um compêndio das imagens comuns e dos ter-mos inconscientes do contrato social. Estes termos inconscientes, ainda em tempo, estão relacionados com as necessidades irracionais comuns em cada ser.

A moderna ciência lingüística, em seu esforço para iluminar a “origem” da

linguagem, também recorreu muitas vezes ao aforismo de Hamann, de que a poesia é

a “língua materna da humanidade”; também ela acentuou que a linguagem tem suas

raízes, não no lado prosaico, mas sim no lado poético da vida, que, por conseguinte,

seu fundamento último não deve ser procurado no abandono à percepção objetiva

das coisas, nem em sua classificação segundo determinadas notas características,

mas sim no primitivo poder do sentimento subjetivo. Mas, embora esta teoria da

expressão lírico-musical pareça, à primeira vista, poder evadir-se do círculo vicioso

em que sempre torna a cair a teoria da expressão lógica, tampouco consegue superar

o abismo entre a função expressiva da linguagem e sua função denotativa. Pois

também nesta teoria persiste um hiato entre o aspecto lírico da expressão verbal e

seu caráter lógico; o que precisamente permanece inexplicado é a substituição pela

qual o som da sensação se transforma em som denotativo e significativo.

(Cassirer, 1972, P. 54).

A respeito desta dúvida sobre a origem subjetiva ou objetiva da lingua-gem, Durand nos oferece uma excelente teoria para que entendamos o funcionamento do conjunto imaginário dentro de uma sociedade. Para ele todo imaginário humano articula-se por meio de estruturas plurais e irredutíveis, contidas dentro de três classes que gravitam ao redor dos processos intelectuais do separar (heróico), incluir (místico) e dramatizar (disseminador) e pela distribuição das imagens de uma narrativa ao lon-go do tempo (2004, p. 40).

Ele sugere o diagrama da tópica (Imagem 1) para que entendamos o trajeto antropológico dos signos. O diagrama consiste em um círculo, seccionado em duas fatias horizontais, as quais correspondem (de bai-xo pra cima) às três camadas freudianas, aplicadas a um corpo social:

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id, ego e superego. A porção submersa e mais profunda representa id, o que Jung denomina inconsciente coletivo está ligado à estrutura psicoló-gica do animal social. Nesta parte os sistemas arquetípicos provocam as imagens arquetípicas. A segunda porção é a região onde se vive; onde acontecem as estratificações sociais, a divisão social do trabalho e onde são distribuídas funções dentro dos rituais do cotidiano cultural. Aqui habitam as nossas personas, ou máscaras sociais, com as quais nos apre-sentamos frente às demais pessoas e interagimos lingüisticamente no nosso cotidiano. A porção superior corresponde ao superego ou seu equi-valente racionalizado em códigos, planos, programas, pedagogias e todo o protocolo das instituições (DuranD, 2004, p.92).

A partir deste círculo ele prossegue fatiando na vertical, separando desta forma os pólos ambíguos dos símbolos: o sagrado e o profano. É a dialética do imaginário que opera entre os juízos oficiais e os falsos. O trajeto antropológico do símbolo percorre este círculo. Com seis pontos em seu perímetro, o símbolo parte da ponta inferior (onde habitam as imagens arquetípicas do imaginário) do círculo e caminha até o outro pólo (onde habitam os códigos e leis do consciente cultural). Em movi-mento rotacional, ele estabelece um fluxo que passa pelo uso prático-coti-diano (no equador habitado pelas personas), determinando papéis sociais. Ele ascende até o plano do superego, lá ele encontra o ápice no código e retorna; passando continuamente entre o código, entre a expressão social

particular no plano das interações sociais, até sua correspondente ima-gem arquetípica no inconsciente, esteja este símbolo profano ou sagrado (positivo ou negativo) dentro do sistema.

Os símbolos tecem uma rede de usos legalizados (sentidos) no cotidiano que lhes simplificam, estereotipam para que possam estar disponíveis para participar das interações inter-pessoais. Depois que foi simplificado e sinte-tizado em uma imagem, o símbolo pode passear muito mais livremente pelas sentenças de um discurso, embora sem sua original espontaneidade.

Conhecendo o código “oficial” de um símbolo (contido nas constru-ções filosóficas e ideológicas) apenas em sua forma estereotipada, esta-remos nos esquivando da possibilidade de articulá-lo corretamente den-tro do discurso e entregamos automaticamente poder de autoridade àquele que o faz competentemente no palco do cotidiano. Assim surge na instância lingüística a separação entre classes sociais, dada pela habi-lidade de articulação dos símbolos de um sistema.

No catolicismo, a Palavra está associada com a própria “Carne Sagrada de Cristo”, o “verbo” que todos comungam num simbólico gesto antropo-fágico durante a cerimônia. Desta maneira, todos fazem parte do mesmo grupo, pois são identificados e constituídos da mesma substância que o herói (Jesus) sacrificado para salvar e saciar o grupo, como um cordeiro. Além disso, não esqueçamos que foi a “Voz de Deus” (Jeová), no livro de Gênesis na Bíblia, quem teve poder para criar a luz.

Como exemplo ilustrativo da autorização lingüística, podemos citar o personagem Fabiano, de Graciliano Ramos em Vidas Secas. Ele ouvia pala-vras que gostaria de pronunciar, mas cujo significado não compreendia. Dado seu pequeno repertório cultural, estava fadado, como uma criança, a admirar os discursos alheios que articulavam conceitos mais “complexos” do que aqueles que lhe foram apresentados. Para ele, que sempre era ludi-briado e humilhado por ignorância, estes símbolos desconhecidos só podiam ser assimilados no campo do “mistério da fé” irracional, onde as imagens metafóricas dão conta da inteligibilidade do sistema.

Quando usamos um nome sem plena consciência do objeto ou idéia que designa dentro do sistema ao qual ele está integrado, no mínimo, aumenta-mos o risco vexatório de incorrer em inúmeros problemas de linguagem. Eles virão sob as mais diversas modalidades e não possibilitarão a compreensão dos demais indivíduos inseridos no contexto do sistema; não gerando desta forma qualquer cognição ou desencadeamento de ação em favor da comuni-dade. Ou pior, em engano que comumente se torna prejuízo para o grupo.

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Estes níveis de fala a que nos referimos (pretI, 2000), são uns dos fatores deter-minantes na marginalização moral e intelectual de um indivíduo em uma cultura, dentre inúmeros outros como origem étnica, social, aparência e capa-cidade física e apresentação pessoal.

Quem não possui retrospecto positivo em suas argumentações sis-temáticas acaba destituído do poder da Palavra em sua oratória e sua opi-nião é desvalorizada. Porém, a cren-ça na eficácia do símbolo, mesmo sem sua compreensão total dentro do sistema, já permite ao indivíduo uma vida social ordinária. A sociedade em última instância não cobra do sujeito compreensão do sistema, apenas sua aceitação. A linguagem liga-nos ine-xoravelmente ao campo das satisfa-ções irracionais (indispensáveis à vida) e abriga o “mistério sagrado” do símbolo em seu arcabouço.

Há um poder imanente àquele que possui autoridade sobre a Palavra (ou discurso) que pode ser aceito enquanto verdade dentro do sistema. O poder de manipular conceitos cuja compreensão participa de um sistema de atua-ção social hierarquicamente superior é determinante no potencial social de quem pronuncia a palavra. Seja no quesito agregador, que trás a participação de mais indivíduos nas atividades de interesse coletivo (aumentando a con-centração energética), como no quesito identificador, que atribui identidades/ identificações comuns para aqueles que em seu discurso reconhecem uma verdade, o potencial social do sujeito autoridade é favorecido.

Quanto maior o poder de um ser, e quanto mais eficácia e “significação” mítica

contém, tanto mais se estende a significação de seu nome. A prescrição que manda

guardar segredo, aplica-se, em primeiro lugar, ao nome do deus, pois o mero enunciado

deste desata todos os poderes encerrados neste deus.

(Cassirer, 1972, P. 71).

Ainda neste sentido podemos divagar mais sobre a questão energética da enunciação. Ao proferir uma palavra, ou invocar um deus – por ela ser esta condensação de uma idéia dentro de um sistema – damos um passo muito grande na conversão de uma ação mais concentrada e de maior impacto na realidade, potencializando sua atuação na natureza. A sua energia é o próprio potencial de ação coletiva.

Afim de que seja criado e legitimado, um símbolo passa pelo crivo social que o reconhece dentro daquilo que significa. Como vimos, o sím-bolo é dialético e participa do processo histórico daqueles que o reconhe-cem, alterando suas configurações no significante, bem como no signifi-cado de acordo com o contexto em que é apresentado. Porém, existem traços inconscientes nestes símbolos que se expressam como imagens, e embora alterados todas as vezes que os reapresentamos, ainda permane-cem correntes e gerais mesmo em culturas distintas. São os arquétipos e as imagens arquetípicas que aparecem nos mitos.

Para Jung os arquétipos são, juntamente com os instintos, os dois com-ponentes que formam o inconsciente coletivo humano. Os instintos são impulsos que desencadeiam ações a partir das necessidades irracionais. Assim, da mesma maneira, ele sugere que existem modos inconscientes de compreensão que regulam a nossa própria percepção. Formas intrín-secas de idéias intuitivas que são determinantemente necessárias para todos os processos psíquicos e intelectuais.

Embora, por estas características, não se possa afirmar ou mesmo con-ferir a existência de arquétipos absolutos e conteúdos padronizados (com-partilhados por todas as culturas), alguns deles são seguramente fortes e muito recorrentes, como as imagens materna e paterna, ou mesmo os heróis da criação e fertilidade. Para Jung eles estavam divididos entre anima (o feminino) e animus (o masculino), o self (a porção de nossa personalidade que reconhecemos) e a sombra (a porção de nossa personalidade que “recal-camos” no inconsciente); os quatro instintos básicos de sua teoria.

Instintos determinam nossas ações e arquétipos determinam nosso modo de apreensão do mundo. Ambos, instintos e arquétipos são coleti-vos porque estão preocupados com o universal, com os conteúdos herda-dos além do pessoal e do individual, com as memórias sociais que possi-bilitam o entendimento do indivíduo e suas correlações com sua comu-nidade (Jung apud HyDe, 2000, p.59). A maneira como percebemos uma situação (arquétipo) determina nossos impulsos para agir diante dos fatos cotidianos. A compreensão inconsciente através do arquétipo determina

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O Sacramento da Eucaristia na Igreja Católica

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a forma e vetor do instinto, estabelecendo máscaras para nosso atuar social, estas são as personas que assumimos. Por outro lado, nosso impul-so em agir (instinto) também determina como compreendemos uma situ-ação (arquétipo novamente).

Jung chega a esta relação “ovo-galinha” e sugere que o arquétipo pode ser facilmente descrito como a autopercepção do instinto, ou então como um “auto-retrato do instinto”; na exata mesma medida que a consciência individual é uma percepção interna do processo objetivo da vida. (Jung

apud HyDe, 2000, p.59). Auto-retrato que se manifesta mesmo sem possuir uma existência material fixa, sempre através de imagens que são correla-tas, mas não idênticas.

Esta concepção junguiana é análoga com a concepção que Lévi-Strauss tem sobre as imagens mitológicas. Para ambos, elas possuem estruturas que mesmo ofuscadas pelas arbitrariedades culturais, podem ser verifi-cadas e analisadas por um método científico. O antropólogo inclusive che-ga a fazer analogias entre as curas xamânicas e as curas da psicanálise em Antropologia Cultural (1996), mas não temos o interesse de nos aprofun-darmos no mérito específico deste tema para a psicologia. Apenas preten-demos demonstrar que as duas ciências compreendem que as imagens habitam nos campos do inconsciente humano.

Elas são invocadas durante nossos esforços diários em busca da satis-fação das nossas necessidades e desejos em primeira instância, e possuem a importantíssima característica de ter uma universalidade, no sentido de que as fronteiras culturais da linguagem visual são muito mais difusas do que as da linguagem verbal, por exemplo. Esta universalidade estrutural nas linguagens do imaginário (mitologias) é uma das grandes descober-tas de Lévi-Strauss.

As histórias de caráter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado,

absurdas, mas apesar de tudo, dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma

criação “fantasiosa” da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente única – não

se esperaria encontrar a mesma criação num lugar completamente diferente.

(lévi-strauss, 1989, P. 23).

Por exemplo, em todas as eras e culturas, a humanidade se imaginou em comunhão com um “sábio espírito”. Uma das formas mais comuns desta con-cepção no Ocidente é a imagem de um “homem idoso” encontrado em inú-meros mitos e lendas e, tradicionalmente, acompanhado de uma longa bar-

ba, grisalha e patriarcal. Nem todas as culturas necessariamente comparti-lham a imagem de um senhor em idade avançada, com os mesmos traços e vestes, mas certamente no tocante “sábio espírito” haverá uma ou mais enti-dades análogas – não necessariamente masculinas – a quem se recorre ritu-almente de maneira a obter as respostas sábias disponíveis naquela cultura.

Fazendo o caminho inverso, podemos pensar no instinto da “nutri-ção”. Certamente este é um instinto universal já que é imperativo a todos nós. Portanto, todas as culturas devem possuir um mito análogo que explique como aquele povo vem sobrevivendo e prosperando em respon-der a esta necessidade geral e natural.

Nestes mitos encontraremos as imagens arquetípicas equivalentes ao arquétipo. Pensando no auto-retrato do instinto da nutrição, por exem-plo, sua imagem arquetípica poderá estar num deus em forma de animal (em uma comunidade que vive do pastoreio ou da caça) ou em alguma divindade da fertilidade (em uma comunidade agrícola), ou em algum mascote corporativo de uma cadeia de lanchonetes (em uma comunida-de urbana). De qualquer forma, criamos um elo entre a necessidade irra-cional e sua resposta mais econômica dentro do inconsciente comum.

(...) na linguagem, os conteúdos perceptivos, apesar de toda a diversidade e até da

mais completa disparidade, podem alcançar uma unificação, sempre que os conteúdos

sejam vistos como coincidentes, correspondentes entre si em seu “sentido” teleológico

ou, neste caso, em seu significado cultural.

(Cassirer, 1972, P. 59).

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Hathor/ Egito

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Ceres/ Roma

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Ronald/ Estados Unidos

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A existência do arquétipo pode ser apenas inferida, dada sua nature-za inconsciente. A imagem arquetípica é trazida à tona no consciente e é a maneira como percebemos os arquétipos para nós mesmos. Assim, os arquétipos, nossos modos de percepção, são sempre velados, embora reve-lados em imagens deles próprios. São idéias primordiais, mas não prin-cípios abstratos lógicos ou necessariamente racionais, eles estão carrega-dos com o senso da manifestação do sagrado, ou ainda, “daquele que sacia o instinto”, e são comuns aos indivíduos que compartilham a mesma cul-tura, o mesmo imaginário.

Para Durand, os arquétipos são também idéias elementares, que podem ser chamadas idéias “de base”. Ele os interpreta como estrutu-ras mentais de base biológica e inconsciente, mas que não estão mais aprisionadas nas quatro formas primordiais de Jung. Para corroborar neste aspecto, citamos:

não só há duas matrizes arquetípicas produtoras de imagens e que se organizam

em dois esquemas míticos, animus e anima, mas que se pluralizam num verdadeiro

“politeísmo” psicológico: a anima, por exemplo, pode ser Juno, Diana ou vênus... O

psiquismo não se limita a ser “tigrado” por dois conjuntos simbólicos opostos, mas

é também mosqueado por uma infinidade de nuanças que remetem ao panteão das

religiões politeístas e das quais as astrologias modernas mantiveram alguns traços.

(durand, 2004, P.38).

Mas assim um outro problema surge. O que levaria a linguagem a esco-lher alguma configuração específica na série de fluxos de impressões que atacam nossos sentidos ou brotam da nossa mente, em detrimento de outras? O que obriga que nos coloquemos em alerta a sua frente e lhe asseguremos uma significação única? Quais atributos um objeto precisa possuir para que possamos lhe conferir um justo nome? Quando é que um “certo ato” merece ser especificamente verbalizado?

Podemos obviamente voltar a pensar na satisfação da pulsão instinti-va particular do espírito humano. Mas alguns outros elementos também caracterizam esta relação, que se torna complexa na medida em que aumenta a interação dramática dos diferentes instintos individuais em um grupo. A linguagem precisa dar conta de convergir as mais ímpares pulsões dos inconscientes individuais para um inconsciente “coletivo”. Através de suas imagens ela descreve e executa o sistema que possibilita a satisfação consciente destas necessidades humanas.

logo que se aborda o problema neste sentido, a lógica tradicional abandona o

pesquisador ou o filósofo da linguagem, pois a explicação que dá sobre o surgimento

das representações gerais e dos conceitos genéricos pressupõe aquilo que aqui se

procura e de cuja possibilidade indagamos, ou seja, a formação das noções lingüísticas.

O problema se faz ainda mais difícil e urgente, se consideramos que a forma dessa

síntese ideacional, que conduz aos conceitos verbais primários e a determinadas

denotações lingüísticas, não é prescrita de modo simples e unívoco pelo próprio objeto,

mas, ao contrário, abre um amplo campo de ação para a livre atividade da linguagem

e para sua peculiaridade especificamente espiritual.

(Cassirer, 1972, P. 43).

A compreensão da gênese de diferentes sistemas lingüísticos, indepen-dentes uns aos outros, dentre os seres humanos nos trás uma série de implicações. Ao verificarmos seu funcionamento nestes incontáveis pla-nos, nos obrigamos abandonar a predileção ao nosso próprio sistema e o decorrente desmerecimento das demais perspectivas de mundo.

Os diferentes imaginários interagindo possibilitam a “alucinação cole-tiva” que cada grupo cultural vive. É o que Mircea Eliade (elIaDe apud

DuranD, 2004, p. 73) entende como illud tempus. O illud tempus é o “con-formismo das inteligências”, contido nos momentos culturais de cada um dos grupos humanos e é o “calendário” de eventos através dos quais os rituais estão organizados. O tempo ritual é o tempo sagrado do mito e tudo que não se encaixe dentro deste sagrado não existe para o sistema cultural, estando com isso associado ao “sofrimento”, à quebra de equilí-brio do sistema e à subseqüente não satisfação das necessidades comuns. O equivalente para a dimensão espacial é o templo, local onde se sucedem os acontecimentos das narrativas míticas e onde, geralmente, encontra-mos as representações materiais dos símbolos sagrados.

A idéia de “alucinação coletiva” advém do fato de que não podemos interpretar os símbolos de outras culturas, caso não aceitemos a existên-cia de “realidades relativas”. Dentro deste conceito fica implícito que esta-mos, no executar diário de nossas atividades, imersos na influência lógi-co-lingüística de nossa própria cultura.

(...) em todas as religiões, mesmo nas mais arcaicas, há uma organização de uma

rede de imagens simbólicas coligidas em mitos e ritos que revelam uma trans-história

por detrás de todas as manifestações da religiosidade na história. Um processo mítico

que se manifesta pela redundância imitativa de um modelo arquetípico (perceptível

MiTOS COnTEMPORânEOS30 iCOnOClASTiA vS. iCOnOlATRiA 31

mesmo no cristianismo, onde os “eventos” do novo Testamento se repetem sem

“eliminar” aqueles do longínquo Antigo Testamento) e pela substituição do tempo

profano por um tempo sagrado: o illud tempus da narrativa ou ato ritual.

(eliade apud durand, 2004, P.73).

Esta alucinação só pode ser geral em um grupo se estivermos subjuga-dos às normas e leis que coletivizam esta ilusão. Alguém que ouse sair des-te padrão certamente estará tomando uma atitude criativa que suscitará dúvidas e paixões (políticas) em relação à tradição vigente. Este conflito, entre o oficial e a solução criativa/ profana, é uma força que se revela pro-pulsora da dinâmica dos sistemas simbólicos.

Porém, como veremos mais à frente, devido às peculiaridades con-temporâneas (advindas dos novos suportes comunicacionais) deste pro-cesso de substituição e modificação nos sistemas simbólicos, a dinâmi-ca simbólica foi em muito acelerada. O conflito entre o oficial e o extra-oficial, o sagrado e o profano perdem força em virtude do amplo espaço de discussão e partilha de informações, o oficial passa a ser parcial e fragmentado em diferentes sistemas simbólicos dispersos no seio da glo-balização. A separação entre emissores e receptores fica ofuscada com as novas tecnologias. Para entender o presente precisaremos saber qual foi o processo de desenvolvimento dos símbolos no pensamento humanos, considerar as relações culturais que lhe são intrínsecas e não perder de vista sua função social.

Existe uma infinidade de recortes de momentos históricos que podem ser tomados estruturalmente de modo a perceber similaridades e dis-tanciamentos entre o que gostaríamos de chamar “momentos cultu-

rais”. Momento cultural nos parece um bom termo já que sugere que qualquer interpretação de imagens precisa, necessariamente, dispor de um contexto geográfico e temporal específico ao grupo a que pertence. São illud tempus diversos onde o modo de produção característico de uma determinada popu-lação é permeado no dia-a-dia por outros símbolos e outros mitos; homogê-neos, coesos e coerentes em si, mas circunstancialmente diferentes daqueles que conhecemos em nossa própria rotina produtiva diária. Por vezes incoe-rentes com o nosso sistema simbólico que Ocidental, estas realidades hoje podem ser reconhecidas dentro de sua sabedoria e diversidades adaptativas.

O que é admirável, tanto em Eliade como em Corbin, para uma teoria do

imaginário, é que eles conseguem mostrar, com uma erudição gigantesca, que que

o imaginário dispõe, ou tem acesso a, de um tempo – illud tempus – específico

que escapa à entropia da dissimetria newtoniana (sem o “depois” que necessita o

“antes”), e a uma extensão figurativa (na koja abad = “não onde” em persa) diferente

do espaço das localizações geométricas”.

(durand, 2004, P. 38).

O estranhamento ao nos depararmos com ficções, mitos, símbolos e hábitos culturais diferentes tenderá a ser maior na medida em que nos distanciamos culturalmente de um dado povo. Entender os distan-ciamentos e proximidades culturais é um exercício de extremo valor, uma vez que só com isso poderemos compreender melhor a contem-poraneidade e sua heterogeneidade mitológica mais à frente.

Como já vimos, processos arquetípicos são aqueles desencadeados pela dinâmica dos símbolos sociais, relacionados desde tempos arcaicos com as necessidades da condição existencial humana. São uma série de atividades e condicionamentos que estabelecem algumas “certezas” e pré-visibilida-des acerca da vida na dimensão social dos sujeitos que interagem, seja com

2.2 Pensamento Mitológico e Pensamento Científico

MiTOS COnTEMPORânEOS32 iCOnOClASTiA vS. iCOnOlATRiA 33

outros sujeitos, seja com o meio em que habitam. Estes processos são expe-riências ativas no ser ao longo da narração da espécie humana, como o nas-cer e pôr-do-sol. E que, por possuírem homônimos arquetípicos em todos os indivíduos, acabam por se estabelecer como uma unidade fundamental para preenchimento da memória coletiva do imaginário inconsciente.

O mito é estabelecido como uma malha dinâmica de processos arque-típicos e caracterizado pelo uso e abuso da magia, do milagre, do incom-preendido, do inexplicável, do sagrado, do acreditado, do campo semân-tico onde habita a fé, daquele a quem se atribui crédito. Vale-se do inefá-vel, do “outro social” que é externo ao ser, e que não encontramos no em-si, dos bens, signos ou percepções comutadas nesse encontro cotidiano; vale-se do produto que sacia e da sociedade da qual herdamos, não gra-tuitamente, uma linguagem. A necessidade de preencher esta lacuna imposta pelo desejo determina uma busca incessante em nossa existên-cia e se confunde com o objeto “a” lacaniano no escopo do ego. Este obje-to “a” determina o “próximo passo” de nosso dia-a-dia, da nossa existên-cia enquanto seres constituídos socialmente.

A partir de lacan el significante implica que no hay nunca una significación

completa, podría decirse que para el hablante siempre falta un significante para poder

significarlo todo. no hablamos de un significado total, sino simplemente que en el

dicho, en cualquier dicho, siempre algo escapa a la significación. Por la estofa misma

del significante algo siempre escapa a la significación; en este sentido puede decirse

que falta un significante. Falta que no se puede suturar ya que aun agregando un

significante igual seguiría faltando; esto equivale a decir que el significante segrega un

resto que es insignificabilizable. Eso que falta, eso que el significante, como Aquiles,

nunca podrá alcanzar, hará decir a lacan que es su único descubrimiento. El nombre

de este descubrimiento es: objeto “a”.�

(d’angelo et alii; 1984, P. 42).

Compreender a importância da elevada ordem de grandeza psicoló-gica desta “falta” na linguagem, deste “insignificabilizável”, é de grande

�. A partir de Lacan o significante implica que não há nunca uma significação completa, poderia dizer-se que para o emissor sempre falta um significante para poder significá-lo todo. Não falamos de um significado total, sendo simplesmente que no discurso, em qualquer discurso, algo sempre escapa à significação. Pela estofa mesma do significante algo sempre escapa à significação; neste sentido pode-se dizer que falta um significante. Falta que não se pode conter já que mesmo a um agregando um significante igual seguiria faltando; isto equivale a dizer que o significante segrega uma parte que é insignificabilizável. Esta falta, essa que é significante, como Aquiles, nunca poderá alcançar, dirá Lacan que é sua única descoberta. O nome desta descoberta é: objeto “a”.

valia para nosso estudo. A existência de fatos e experiências subjetivas que não podem ser explicadas dentro de um sistema simbólico é nativa do pensamento humano. Ficamos assim, enquanto sujeitos sociais, nes-ta constante busca pelo objeto “a”, pelo objeto de desejo, conforme nos comenta D’Angelo sobre o pensamento de Lacan.

Isso já está cimentado na estrutura psicológica humana desde o momento em que iniciamos nosso processo cognitivo na infância. Somos “doutrinados” a justificar nossas pulsões e atos a partir do que é dado pela cultura e tradição que temos acesso. O Homo sapiens é uma espécie diferenciada das demais devido a uma série de caracte-rísticas biológicas no desenvolvimento do seu cérebro que o faz des-de tempos muito remotos um Homo symbolicus. São fatos biológicos imprescindíveis que nos trazem esta natureza social simbólica. Durand (2004, p.45) comenta que a formação anatômica do cérebro humano se encerra por volta dos sete anos, e as reações encefalográficas se nor-malizam apenas aos vinte anos de vida, o que coincide, inclusive com a estabilização hormonal em um adulto. Deste modo, o homem pas-sa a ser o único ser vivo com uma maturação tão lenta que permite ao meio, especialmente ao meio social, desempenhar um grande papel no desenvolvimento cerebral. Já desde tempos muito remotos somos seres que utilizam linguagem para operar os arquétipos que vivem submersos no inconsciente.

O limite meta-lingüístico do sistema é a válvula de escape para a cria-tividade, que emerge do caos (da desordem dos símbolos) em busca de associações metafóricas que se transferem em significados sociais para além do código. Parece-nos clara a percepção de que símbolos depen-dem de outros símbolos associados para serem utilizados de maneira a atingir uma cognição mínima e cumprir seu papel comunicativo. Desta forma, quando não é mais possível manejar estes símbolos devido ao esgotamento de suas inter-relações diretas, há uma fuga para o pensa-mento mitológico/ figurativo, onde questões fundamentais da existência humana podem repousar com a segurança de uma explicação soberana, totalizadora, convincente e legitimada.

no fim de contas, esta tradução [meta-lingüística] é a que se espera de um dicionário

– o significado da palavra em outras palavras que, a um nível ligeiramente diferente, são

isomórficas relativamente à palavra ou à expressão que se pretende perceber.

(lévi-strauss, 1989, P. 24).

MiTOS COnTEMPORânEOS34 iCOnOClASTiA vS. iCOnOlATRiA 35

Conforme veremos mais à frente, quando discutirmos a evolução do pen-samento científico, durante um bom tempo acreditamos na possibilidade de uma descrição absoluta da natureza através da matemática e da supressão dos sentidos humanos para a compreensão do universo. Como a máquina e o desenvolvimento técnico das ciências conquistaram tantos avanços signi-ficativos, passamos a crer que só ela poderia nos fornecer a precisão ótima para nossa visão e perspectiva do mundo, mas o cientificismo e a lógica biná-ria mostraram-se concepções frustrantes, como veremos mais adiante.

A matemática é uma linguagem particularmente boa para descrever, discutir e

imaginar coisas que são realmente complicadas. Quanto mais complexa for uma estrutura,

tanto mais fácil será abarcá-la com as nossas mentes. As palavras são, com freqüência,

inadequadas. A linguagem se desenvolveu através da necessidade de partilhar nossas

experiências num nível de complexidade mais ou menos tradicional, mas inadequado para

se compreender o mundo inteiro, ou a alma do mundo, ou a biosfera do planeta Terra. A

matemática tem apenas um pouco mais de magia que a linguagem comum.

(aBrahaM in MCKenna, 1992, P.59).

Avanços das teorias da física permitiram modificações imensas na investigação dos “sistemas de imagens”, pois acrescentaram no senso comum as dimensões da relatividade que até então eram subjugadas de sua real relevância pelas as teorias do conhecimento e da linguagem.

Gerald Holton, médico americano, foi quem melhor determinou, com uma

seriedade e exaustão totalmente científicas, o papel direcional dos sistemas da

imagem (que ele denomina “pressupostos temáticos” ou thêmata) na orientação

singular da descoberta. Estes thêmata contribuíram para o que Einstein chamava

de Weltbild, a “imagem do mundo”, (não apenas do Universo, mas “do mundo”, do

ambiente cotidiano humano). na sua generalidade formal, os thêmata se aproximam

(descontínuo-contínuo; simplicidade-complexidade; invariância-evolução etc.)

dos “arquétipos junguianos” ou do que denominamos de “esquemas”. Holton, ao

retomar uma diferença célebre entre os imaginários “dionisíacos” e “apolíneos”,

demonstrou, de maneira muito minuciosa e corroborada por amplas pesquisas

de psicossociólogos, que as descobertas dos especialistas mais importantes

(Kepler, newton, Copérnico e, sobretudo, niels Bohr e Einstein...) foram de alguma

forma pressentidas pela formação e as fontes imaginárias de cada pesquisador

(freqüências, educação, leituras...).

(durand, 2004, P.70).

As ciências da física e matemática, dentre outras, desenvolveram inú-meras teorias que recorrem a conceitos como “caos”, “entropia” e “ambi-güidade”; antes excluídos mesmo do léxico do pensamento lógico-discur-sivo. Com estes conceitos novamente ativos no senso comum contempo-râneo, a importância do pensamento imaginário toma um novo fôlego, já que nem todo o volume de informações e dados hoje acumulados conse-guem oferecer uma predizibilidade absoluta a partir dos dados científi-cos, sejam eles de quaisquer níveis: metereológicos, econométricos ou mercadológicos. Não raro, padrões numéricos irracionais emergem quan-do estes dados são analisados. Padrões estes que podem ser expressos e compreendidos através de símbolos, mas sua cuja exatidão matemática descritiva vai ao infinito daquilo que não pode ser comunicado exatamen-te por sua falta de significação (sua “insignificabilização”), desta vez na própria matemática; as reticências dos números irracionais...

no século XiX, acreditava-se, de um modo geral, que não existia, em absoluto,

nenhuma indeterminação. Acreditava-se que tudo era totalmente determinado pelas leis

eternas da natureza. laplace pensava que todo o futuro e todo o passado do universo

poderiam ser calculados a partir do seu estado presente, se houvesse uma mente

poderosa o bastante para efetuar os cálculos e realizar as observações. Essa ilusão da

previsibilidade total manteve a ciência sob o seu feitiço durante gerações. (...) O ideal da

predizibilidade total era, em princípio, nada mais nada menos do que um ato de fé.

(sheldraKe in MCKenna, 1992, P. 54).

A ciência também passou por um estágio mítico até se desenvolver nos moldes atuais. Isso foi necessário para que pudesse compartilhar os conhecimentos humanos, pois nos mitos a realidade pessoal da existên-cia pode ser comutada e aceita pelo senso comum: o sentimento ético-existencial de responsabilidade para com a vida e a atuação social do sujeito. Existe uma força coesiva nos símbolos que draga o homem para sua existência social e que dá conta da previsibilidade total do mundo com a utilização de imagens. Isso só é possível por força da fé partilha-da em um sistema ideológico.

O mito, a arte, a linguagem e a ciência aparecem como símbolos: não no sentido

de que designam na forma de imagem, na alegoria indicadora e explicadora, um real

existente, mas sim, no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu próprio

mundo significativo. neste domínio, apresenta-se este autodesdobramento do

MiTOS COnTEMPORânEOS36 iCOnOClASTiA vS. iCOnOlATRiA 37

espírito, em virtude do qual só existe uma “realidade”; um Ser organizado e definido.

Conseqüentemente, as formas simbólicas especiais não são imitações, e sim, órgãos

dessa realidade, posto que, só por meio delas, o real pode converter-se em objeto de

captação intelectual e, destarte, tornar-se visível para nós.

(Cassirer, 1972, P. 22).

Nós, seres humanos, sempre buscamos algo que transcenda o raio ilu-minado pelo conhecimento, algo que nos explique a última coisa que foi explicada. Como a mais curiosa criança cheia de porquês, o desejo de compreender o mundo que nos cerca não deixa de ser recorrente jamais e é inquietante, até que a pressão moral elimine esta conduta. Tão inquie-tante que não permite que o homem produza satisfatoriamente – caso não propriamente imerso num sistema ideológico.

A não-eficiência divina sempre fomenta a busca de novos ídolos e movimentos sociais. A não-conformidade entre os sacrifícios e as graças é por vezes fatal às ideologias descuidadas. Os mitos e o conjunto de fato-res de sua legitimação coletiva dissolvidos no illud tempus do grupo a que pertence, preenchem uma lacuna crucial na concepção simbólica da vida social humana:

O mito fracassa em dar ao homem mais poder material sobre o meio. Apesar de tudo,

dá ao homem a ilusão, extremamente importante, de que ele pode entender o universo e de

que ele entende, de fato, o universo. Como é evidente, trata-se apenas de uma ilusão.

(lévi-strauss, 1989, P. 32).

No momento que não temos mais repertório e substratos meta-lingü-ísticos para explicar algo partimos para a criatividade, a fantasia, a fic-ção, para o mito. Isso está no caminho dialeticamente oposto ao fluxo do pensamento apolíneo, argumentativo, racionalizado, cartesiano (que divide o objeto em quantas forem partes necessárias para seu estudo). Não obstante, o pensamento normatizado oficial é que difunde para as massas a ilusão do entendimento do universo como realidade.

Esta é a originalidade do pensamento mitológico – desempenhar o papel do

pensamento conceptual: um animal susceptível de ser usado como, diria eu, um operador

binário, pode ter, dum ponto de vista lógico, uma relação com um problema que também

é um problema binário (...) na realidade não existe uma espécie de divórcio entre mitologia

e ciência. Só o estádio contemporâneo do pensamento científico é que nos habilita a

compreender o que há neste mito, perante o qual permanecíamos completamente cegos

antes de a idéia das operações binárias se tornar um conceito familiar para todos.

(lévi-strauss, 1989, P. 37).

Embora o mito trabalhe no campo da ilusão (das imagens, das narrações e dos sonhos), ele está operando no mesmo nível simbólico que o real, ainda que esteja afastado em um grau do sistema lingüístico primeiro (o do código). Ele se permite privilégios lingüísticos como utilizar em conjunto, por exemplo, as funções conotativa e lírica da linguagem para formular o consensus (BourDIeu,

1989, p. 9). As suas relações sociais próprias com as alegorias (e quaisquer que sejam as figuras de linguagem envolvidas) formam um sistema de imagens bastantes à satisfação intelectual do grupo humano a que pertence.

Isso acontece porque para que o illud tempus se torne confiável (e não fruto da alucinação individual de êxtases religiosos/ artísticos, alucinó-genos ou patologias psiquiátricas) ele usa o conceito de verdade como uma ventosa que lhe estabiliza agarrada ao real coletivo. Assim a socie-dade nos coage a compartilhar seus significados simbólicos, punindo quem não se enquadra com a força centrípeta que atua aos poucos empur-rando alguns indivíduos para a margem de seu núcleo.

Um conceito é uma unidade operante do sistema simbólico. Conceito cons-titui-se como a síntese de um arranjo de objetos acordantes em determina-das características e, por conseguinte, uma parte de seus conteúdos são reu-nidos no pensar; este abstrai as características heterogêneas retendo para si unicamente as homogêneas e refletindo sobre elas, de onde surge, na cons-ciência, a idéia geral dessas classes de objetos agrupados em rede.

Os conceitos do conhecimento teórico constituem apenas uma camada superior

da lógica, que por sua vez se alicerça em uma camada inferior: a lógica da linguagem.

Antes que pudesse iniciar o trabalho intelectual do conceber e compreender os

fenômenos, foi preciso realizar, certamente, a tarefa de denominar e alcançar certo

grau de elaboração; pois este labor que transforma o mundo das impressões sensíveis,

como também o animal possui, um mundo espiritual, um mundo de representações e

significações. Todo conhecer teórico parte de um mundo já enformado pela linguagem,

e tanto o historiador, quanto o cientista, e mesmo o filósofo, convivem com os objetos

exclusivamente ao modo como a linguagem lhos apresenta. E esta vinculação imediata,

inconscientemente, é mais difícil de ser descoberta do que tudo quanto o espírito cria

mediatamente, por atividade consciente do pensamento.

(Cassirer, 1972, P. 48).

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Um conceito se constitui quando certo número de objetos acordantes em determinadas características e, por conseguinte, em uma parte de seu con-teúdo, é reunido no pensar; este abstrai as características heterogêneas, retém unicamente as homogêneas e reflete sobre elas, donde surge, na consciên-cia, a idéia geral dessa classe de objetos. Logo, o conceito (notio, conceptus) é a idéia que representa o símbolo através da linguagem (CassIrer, 1972, p. 42). Os conceitos religiosos e os conceitos lingüísticos coincidem em caracterís-ticas essenciais. A separação dos dois é recente na história humana.

Ao acatarmos o conceito de verdade como não sendo nada além deste acordo social entre as inteligências, poderemos vislumbrar nossas diver-sas personas e compreender a lógica intrínseca a nossos atos cotidianos. O acordo social é quem possibilita a produção de bens, a distribuição de tarefas/ remunerações e, por conseqüência, produtos de necessidade social. Cria-se uma ilusão coletiva que dá sentido à existência, à realida-de. São as versões, que os mitos e as ciências consideram verdades, para o real significado da vida social.

A história do Ocidente é marcada por uma guerra contra as forças sim-bólicas do imaginário, contra o poder mitológico de estabelecer um illud tempus distinto do seu padrão para a compreensão da realidade. Vale lem-brar que nossa herança ancestral mais antiga no Ocidente é o monoteís-mo do Pentateuco e a proibição de criar qualquer imagem (Eidôlon) como substituto ao divino. A herança monoteísta deu origem ao “método da ver-dade” que, conforme nos diz Gilbert Durand (O Imaginário), é oriundo do socratismo grego e baseado na lógica binária onde só existem pares de valo-res; sendo que um deles é necessariamente “verdadeiro” e antagônico a um outro, necessariamente “falso”.

Santo Agostinho em seu maniqueísmo platônico (e por que não dizer binário) foi um dos precursores desta postura no pensamento Ocidental também. E este preceito filosófico dá vazão a um iconoclasmo endêmico no Ocidente. Durand (2004, p. 9) ainda nos assinala que há pensadores que afirmam que foi a própria sintaxe grega quem exigiu e desencadeou este dualismo no pensamento de Aristóteles e Platão. Mesmo nas socie-dades mais inclinadas para o racionalismo e a austeridade, o “culto ao riso” sempre foi presente, embora compensado dialeticamente com o “cul-to ao choro”. Ao longo da história da civilização houve inúmeras tentati-vas de minimizar ou alijar da massa o “culto ao riso”, mas isso se mos-trou impossível. Como exemplo, podemos citar as saturnais romanas ou os carnavais feudais europeus, tão bem pontuados por Bakhtin:

A dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia no estágio anterior

da civilização primitiva. no folclore dos povos primitivos encontra-se, paralelamente

aos cultos sérios (por sua organização e seu tom), a existência de cultos cômicos, que

convertiam as divindades em objetos de burla e blasfêmia (riso ritual); paralelamente aos

mitos sérios, mitos cômicos e injuriosos; paralelamente aos heróis, seus sósias paródicos.

(...) Entretanto, nas etapas primitivas, dentro de um regime social que não conhecia ainda

nem classes nem Estado, os aspectos sérios e cômicos da divindade, do mundo e do

homem eram segundo todos os indícios, igualmente sagrados e igualmente, poderíamos

dizer, “oficiais”. (...) Mas quando se estabelece o regime de classes e de Estado, torna-se

impossível outorgar direitos iguais a ambos os aspectos, de modo que as formas cômicas

– algumas mais cedo, outras mais tarde – adquirem um caráter não-oficial, seu sentido

modifica-se, elas complicam-se e aprofundam-se, para transformarem-se finalmente nas

formas fundamentais de expressão da sensação popular do mundo, da cultura popular. É

o caso dos festejos carnavalescos no mundo antigo, sobretudo nas saturnais romanas,

assim como nos carnavais da idade Média que estão evidentemente muito distantes do

riso ritual que a sociedade primitiva conhecia.

(BaKhtin, 1999, P. 5).

Dado a estas características sempre dúbias atribuídas às imagens (sagra-das ou profanas), elas não puderam desfrutar do mesmo grau de importân-cia conferido ao raciocínio lógico e oficial; uma vez que dependem da per-cepção subjetiva e não podem ser reduzidas a argumentos “falsos” ou “ver-dadeiros”. As imagens passam ao longo de nossa história a serem acusadas de “amantes do erro e da falsidade” por proporem esta “realidade velada”, enquanto a lógica aristotélica exigia “claridade e diferença”, a seriedade. Todavia, a propriedade das imagens de sintetizar aspectos indemonstráveis da subjetividade jamais passou desatenta ao pensamento ocidental.

(...) graças à linguagem imaginária do mito, Platão admite uma via de acesso para

as verdades indemonstráveis: a existência da alma, o além, a morte, os mistérios

do amor... Ali onde a dialética bloqueada não consegue penetrar, a imagem mítica

fala diretamente à alma.

(durand, 2004, P.16).

Por estas razões “passionais” envolvidas na linguagem, jamais se con-seguiu controlar absolutamente o uso e gênese de imagens dentro das sociedades ocidentais, e que também por isso, não apenas as oficiais foram disseminadas nestes séculos de histórias. Como exemplo, temos

MiTOS COnTEMPORânEOS40 iCOnOClASTiA vS. iCOnOlATRiA 41

as invasões bárbaras sofridas pelo Império Romano, que sempre vinham recheadas com novos deuses, heróis e santos, que podiam ser renega-dos ou submetidos ao sincretismo religioso. Tudo dependia do valor político do símbolo em questão e da maneira que ele poderia ser arti-culado em benefício de Roma. Desta maneira, podemos reafirmar que não é recente, de fato, a compreensão de que poder simbólico acumu-lado é poder material.

O que denominamos um “sistema simbólico” não possui uma rigidez intransigente. Existem sempre flexibilidades onde trocas de informações entre culturas ocorrem. Para os especialistas da “teoria dos sistemas”, este vocábulo implica na idéia de uma abertura necessária: trata-se de um con-junto relacional entre vários elementos que podem até mesmo ser contra-ditório entre si. Assim como geneticamente temos crossovers cromossômi-cos que criam novos códigos pelo contato e interação entre eles, podemos perceber o movimento de intercâmbio acontecendo nas bordas culturais e dando origem à pluralidade e sincretismos dentro do imaginário, o que permite inclusive a eclosão de culturas mistas.

Por conseguinte, a origem da coerência dos plurais culturais do ima-ginário encontra-se em sua natureza sistêmica, e esta, por sua vez, fun-da-se no princípio do “terceiro dado”, na ruptura da lógica bivalente onde “A” exclui “não-A”. Com efeito, Durand nos diz (2004, p.84) que permitir um conjunto de atributos intermediários entre culturas significa permi-tir a “A” e “não-A”, participarem em “B”. Esta é a fonte primária da diver-gência entre o que se entende como pensamento mítico e o que se enten-de como pensamento lógico-racional. Para que assuma uma modalidade de pensamento, o homem precisa, por razões de coerência simbólica, abandonar a outra.

Sabendo de antemão da pluralidade de concepções culturais que convivem no contemporâneo, precisamos investigar a maneira como opera a difusão mítica estrutural que contemplamos nas

sociedades. Entender o movimento de transmissão e de renovação mito-lógica nos permitirá mais à frente acompanhar melhor ressignificações míticas de nossa contemporaneidade.

Já argumentamos a respeito da influência dos signos sob o status social do indivíduo que acumula valor simbólico. Estamos cientes de que as classes mais elevadas socialmente são tidas como “cultura oficial”, que dominam as tradições, as instituem e as destituem. As demais tradições dominadas pos-suem preceitos e hábitos próprios que não se enquadram, e podem até mes-mo ser tabu, frente às práticas da cultura dominante. Isso dá origem a toda sorte de preconceitos, disfunções cognitivas, desentendimentos, diásporas e aversões típicas de uma Torre de Babel. Acaba por excluir a cultura domina-da dos meios materiais disponíveis mais eficientes para a difusão de sua ide-ologia. Seu “poder” vai esvaindo-se com o abandono da sua prática ritual, até finalmente perecer aculturada. A ruína dos templos e a substituição do illud tempus tornam um deus ineficiente e acontece então, lentamente, a substitui-ção pelo seu oposto dialético. A fé é frustrada e há uma tremenda migração ideológica que afeta os hábitos, rituais e perspectivas de existência social.

Todavia, nenhuma cultura é completamente soberana sobre as demais. Ao abarcar novos indivíduos, um imaginário sofre modificações adaptati-vas que contemplam seguramente perspectivas diferentes daquelas dos indi-víduos dominantes. Perceberemos, certamente, um movimento retrógrado natural por parte das instituições que precisarão se readaptar ao novo con-texto. Abrir espaço intelectual para indivíduos “aculturados” é o ponto cul-minante deste processo, pois isso certamente gera interpretações distintas sobre o código, o superego social e sua gestão. Na própria expansão de um sistema simbólico e de sua compreensão, decorrente da aculturação de algum grupo, surge o desacordo sob sua interpretação, num movimento dialético. Quando um elemento “comum” do imaginário passa a apresen-tar duas versões antagônicas igualmente válidas surge o dilema social:

2.3 A Propagação Mítica Estrutural e sua Função Social

MiTOS COnTEMPORânEOS42 iCOnOClASTiA vS. iCOnOlATRiA 43

não apenas todo “objeto” imaginário é constitutivamente “dilemático” (cf. Claude

lévi-Strauss) ou “anfibológico” (isto é, “ambíguo” ao compartilhar com seu oposto

uma qualidade comum), mas é a física contemporânea que, pelos seus conceitos de

“complementariedade” (cf. niels Bohr), antagonismo e “contraditariedade”, introduziu o

status científico do anfibólio.

(durand, 2004, P. 84).

O dilema do imaginário acontece quando existe um embate cultural dentro de um sistema. Como o mito não raciocina nem descreve, ele tenta convencer pela redundância, pelo pleonasmo e pela repetição. Como já fora notado por Goebbels, ministro das comunicações do nazismo alemão, que acreditava que “uma verdade é uma mentira repetida inúmeras vezes”.

Nuanças suaves permeiam toda esta repetição. Porém, a contrapartida des-tas particularidades é que cada ato ritual acaba por portar uma mesma verda-de relativa à totalidade do mito. Nestes diversos fragmentos rituais, está conti-da a totalidade do objeto mítico a que corresponde. Assim, os rituais supersti-ciosos (de eficácia questionável) são também resquícios de uma aculturação.

O imaginário, nas suas manifestações mais convencionais (o sonho, o onírico, o rito, o mito, a narrativa da imaginação etc.) e, em relação à lógi-ca Ocidental desde Aristóteles, é alógico. A identidade não-coordenada, o tempo assimétrico, a redundância e a metonímia do plano de existên-cia mítica definem uma lógica inteiramente outra em relação àquela, por exemplo, do silogismo ou daquela da narração jornalística, mas muito próxima em certas medidas à lógica musical.

Desse modo, precisamos de alguns critérios para estabelecer uma possível “gramática do imaginário”. As unidades operantes deste movi-mento devem ser as unidades lingüísticas que criam significados ao tecer continuamente o sistema num fluxo de idéias. A mitoanálise pre-cisa compreender os atributos conceituais de cada imagem e sua eti-mologia até o momento cultural que se pretende analisar e não apenas prender-se à forma material explícita que ela apresenta.

Assim, todo ser divino carrega sinteticamente em seu epíteto a sua sig-nificação arquetípica. Hércules significa “glória de Hera”; Afrodite, a que “nas-ce da espuma” e Christos, o “ungido”. Quando estes atributos são substan-tivados, eles passam a possuir uma dimensão de atuação na realidade do illud tempus. O trajeto antropológico do signo mitológico é reafirmado pelas orações, litanias, ladainhas e mantras, que reforçam socialmente a gama de adjetivos que potencializam e definem a entidade sagrada.

Esta potencialidade é então conver-tida em atuação verbal. A ação mate-rializada na natureza é quem pode, de fato, responder às necessidades huma-nas. As imagens ligam-se aos arquéti-pos através de seus atributos verbais.

As estruturas verbais pr imárias

representam, de alguma forma, os

moldes ocos que aguardam serem

preenchidos pelos símbolos distribuídos

pela sociedade, sua história e situação

geográfica. Reciprocamente, contudo, para

sua formação todo símbolo necessita das

estruturas dominantes do comportamento

cognitivo inato do sapiens. Assim, os

níveis “da educação” se sobrepõem na

formação do imaginário: em primeiro

lugar encontra-se o ambiente geográfico

(clima, latitude, locações continentais,

oceânicas, montanhosas, etc.), mas desde

já regulamentado pelos simbolismos

parentais da educação, o nível dos jogos

(o lúdico) e das aprendizagens por último.

E, finalmente, pelo nível que René Alleau

denomina de “sintomático”, ou o grau

dos símbolos e alegorias convencionais

determinados pela sociedade para a boa

comunicação dos seus membros.

(durand, 2004, P. 91).

Contrapondo agora um sistema imaginário com outro diverso teremos os já comentados dilemas inerentes a relação simbólica. Ao final da que-rela de valores, alguns aspectos do sistema dominado atualizarão o siste-ma dominante. Outros símbolos podem ainda ser “potencializados” e obrigados a permanecerem “profanos” (embora latentes no imaginário e emergindo de tempos em tempos) e serão considerados alógicos e arras-tados pelo fluxo comunicacional vigente até as sombras do imaginário.

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Hercules/ Glória de Hera.

Afrodite/ A que nasce da espuma

Christos/ O ungido

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Um sistema sociocultural possui sempre um conjunto mais vasto em sua profusão de imagens, o qual contém conjuntos mais restritos. E assim ao infinito, seja caminhando para o macro-cosmos, seja para o micro-cosmos, teremos escopos diferentes. Os imaginários sociais, mito-lógicos, religiosos, éticos e artísticos sempre têm raízes e ramificações onde poderemos encontrar seu volume de atuação material.

No fluxo contínuo destas idéias polarizadas entre o inconsciente e o consciente social encontramos uma ordem morfogênica. Uma ordem que estabelece forma particular às imagens mitológicas e arquetípicas sobre o relevo das condições sócio-ambientais, e que não pode ser completa-mente arbitrária ou aleatória. Ela foi teorizada e descrita por Durand:

Assim, levando em consideração estas várias constatações, aperfeiçoamos o

conceito de “bacia semântica”. Ele já estava implícito na nossa “tópica”, matizando em

subconjuntos o movimento sistêmico, o qual, por um lado, conduz o “isso” imaginário

ao esgotamento no “superego” institucional e, por outro, suspeita desse “superego” e

o erode pelos escoamentos abundantes de um “isso” [id] marginalizado.

(durand, 2004, P. 103).

Porém, ao lançarmos um olhar mais atento para nossa contemporanei-dade poderemos avançar nesta metáfora. Hoje temos uma “topografia do imaginário” bem diferente do que podíamos imaginar antes do advento das novas mídias, representadas emblematicamente pela Internet.

A revolução comunicativa e social que este novo paradigma inaugura nos permite expandir a teoria de Durand até uma etapa posterior aos del-tas e meandros (2004, p. 114) das correntes do imaginário. Um momento onde diversos f luxos imaginários, de diferentes culturas e tradições, desembocam num vasto oceano do imaginário global, inaugurado pelas novas tecnologias e que garantiram o acesso de uma grande parte das “bacias semânticas” a um espaço virtualmente comum no mar aberto da web. Espaço este onde não existem mais fronteiras delimitadas entre ima-gens sagradas e profanas.

Compreendemos assim a função social da propagação mítica. O traje-to antropológico do signo permite a atuação subjetiva de cada indivíduo em seu grupo. Nossas escolhas e atitudes espontâneas (não racionaliza-das), como aquelas do momento do consumo, são processadas através de imagens arquetípicas que são retransmitidas culturalmente. Esta premis-sa é essencial para que possamos mais à frente entender a explosão do uso de imagens no mercado globalizado e a busca sistêmica do marketing (e suas instituições) em suprir e/ ou criar estas necessidades no ser huma-no. Voltaremos nossos olhos agora sobre o que se teoriza a respeito da evolução do pensamento humano ao longo dos tempos.

Bacia Semântica desagua no “Oceano da Contemporaneidade”.

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Sabemos, por certo, que a Mitologia é anterior à História, à Ciência e ao Capitalismo e compreendemos agora a forte maneira como estão relacionadas tanto em sua estrutura, como em sua função social.

Precisamente porque se propõem a solucionar os mesmos problemas, encai-xam-se de maneira análoga na sociedade e herdam inclusive algumas de suas estruturas hierárquicas enquanto instituições equivalentes.

O exemplo mais emblemático é o fato que as primeiras universidades surgiram em mosteiros. Os monges também eram quem abrigavam as bibliotecas e, por conseqüência, o conhecimento. Quando o mito deixou lentamente de ser legitimado como verdade oficial, a busca da verdade científica tomou, conseqüentemente, seu lugar na pedagogia e na trans-missão de conhecimento teórico.

(...) nas nossas sociedades, a História substitui a Mitologia e desempenha a mesma

função já que para as sociedades sem escrita e sem arquivos a Mitologia tem por

finalidade assegurar, com um alto grau de certeza – a certeza completa é obviamente

impossível –, que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao passado. Contudo, para nós

o futuro deveria ser sempre diferente, e cada vez mais diferente do presente, dependendo

algumas diferenças, é claro, das nossas preferências de caráter político. Mas, apesar de

tudo, o muro que em certa medida existe na nossa mente entre mitologia e História pode

provavelmente abrir fendas pelo estudo de Histórias concebidas não já como separadas

da Mitologia, mas como uma continuação da Mitologia.

(lévi-strauss, 1989, P. 63).

Desta forma parece interessante neste momento lançarmos olhos pelo caminho que percorreu a Mitologia até sua, por assim dizer, metamorfo-se em História. Vários autores já procuraram estabelecer possíveis etapas na evolução dos mitos.

A mitologia evolui à velocidade que a complexidade da experiência humana requisita narrações e imagens para nossas percepções enquanto sujeitos sociais. O mito evolui porque evolui a gama de aspectos da realidade a serem abarcados pelos textos sagrados e pelas leis. Por isso mesmo seus temas são comuns e suas

2.4Evolução do Pensamento Mitológico ao Pensamento Científico

MiTOS COnTEMPORânEOS48 iCOnOClASTiA vS. iCOnOlATRiA 49

inflexões inalienáveis da cultura pela qual foi gerado. O conhecimento depen-de do “avanço lingüístico” proporcionado pela calibragem de suas característi-cas intermediárias (os atributos conceituais dos símbolos) com a realidade per-cebida coletivamente pelas histórias oficiais e discursos legítimos.

Quando Kant definiu o conceito de “realidade” mediante a consideração de que é

preciso designar como “real” todo conteúdo da percepção empírica, na medida em que

seja determinado por leis gerais e, destarte, ordenado na uniformidade do “contexto da

experiência”, demarcou com isso exaustivamente o conceito de realidade do pensamento

discursivo. nem o pensamento mítico, nem a concepção verbal primitiva, porém, conhecem

de início semelhante “contexto da experiência”, pois sua função, como já vimos, consiste,

antes, na liberação, na diferenciação e individualização e quando a intuição foi concentrada

em um só ponto e – em certa medida – reduzida a este, é que surge daí a formação mítica

e lingüística, brota a palavra ou o mítico “deus momentâneo”.

(Cassirer, 1972, P. 75).

Ao que tudo indica a transmissão do mito teve origem com os conta-dores de história que pela primeira vez encadearam as imagens de manei-ra a organizá-las e preservá-las com o passar das gerações, unindo o gru-po através de sua memória coletiva, seu imaginário em uma realidade comum. (lévI-strauss, 1989, p. 56).

A este respeito ainda, podemos citar McKenna (1992) que propõe uma teo-ria polêmica, mas sem sombra de dúvidas pertinente, sobre a evolução dos sistemas simbólicos. Seu estudo tem grande peso no que se compreende atu-almente sobre a transição do matriarcado para o patriarcado na história da civilização. Ele foca em aspectos da vida social num ambiente antropológico pré-lingüístico, um momento antropológico onde são adorados deuses momentâneos e o matriarcado é predominante entre as culturas.

Para ele o arquétipo feminino, anima, sempre esteve relacionado com o caos, com a criatividade e, desta forma, este matriarcado arcaico não con-cebe um ego, apenas um corpo social com o qual se identificavam os indi-víduos. Práticas como os rituais psicodélicos de sexo grupal e de transes (induzidos pelo uso de alucinógenos) eram comuns. Tudo era ritualizado segundo a ideologia da ilusão coletiva destas comunidades. Os filhos e fru-tos destas práticas estavam absolutamente inseridos no contexto social.

McKenna defende que pequenos grupos de caçadores/ coletores e de pastores deste momento cultural ingeriam substâncias alucinógenas e dis-solviam suas fronteiras perceptivas comuns à realidade – como algumas

culturas ainda preservam tradicionalmente até os dias de hoje. Ao invés de ego, valores de parceria tribais coletivistas operavam intuitivamente numa matriz matriarcal. As irregularidades que fugiam às explicações mitológicas deste momento mantinham a realidade cultural assentada no plano dos valores do grupo e da espécie, os quais estavam equilibrados com o ecossistema e as práticas cooperativas em lugar das competitivas.

Quando estas práticas foram sendo interrompidas, à medida que diminuíam os

suprimentos dessas plantas, surgiram novas formas religiosas, e o tempo entre esses

grandes festivais foi-se tornando cada vez mais longo. O ego começou a se firmar,

primeiro como uma espécie de aberração cancerosa, depois foi se convertendo

rapidamente num novo estilo de comportamento, que eliminou outros estilos de

comportamento, suprimindo o acesso às fontes do caos. O ponto que quero frisar

é que entre o ego e a compreensão plena da realidade existe uma barreira: o medo

do ego de se render ao fato do caos. numa sociedade pré-moderna, mulher alguma

poderia escapar ao caos devido ao script de parto automático, segundo o qual as

mulheres devem parir repetidas vezes até morrerem. As mulheres estão biologicamente

roteirizadas a estarem muito mais perto do caos simplesmente por que há episódios

em suas vidas que têm a garantia de serem solventes de fronteiras.

(MCKenna, 1992, P. 54).

Nestes primeiros estágios mitológicos o homem possuiu uma relação de dependência muito grande do ambiente e daquilo que ele pode prover enquan-to recurso material. Quando um lugar, objeto, conduta, ou ritual oferece sal-vação a um povo é onde surgem então os denominados deuses momentâneos:

Se desejamos encontrar algum análogo para a concepção mítica posta aqui em

questão [deuses momentâneos], cumpre retroceder, ao que parece, ao nível primitivo

das interjeições verbais.

(Cassirer, 1972, P. 88).

No Brasil temos a interjeição “Oxalá!”, entidade mítica da mitologia Yoruba (pai da humanidade e dono de todas as cabeças), muito presente na religião Candomblé e que, como interjeição da língua portuguesa do Brasil, transmite um desejo de sucesso, uma fé no sucesso, uma torcida pelo sucesso. Nos E.U.A. o ritmo blues também está associado com enti-dades mitológicas afro-americanas, os blues-devils, relacionados com os espíritos que traziam tristeza e depressão, retomavam a memória de uma

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situação melhor (pré-escravidão e deslocamento geográfico compulsório) e inspiravam-os a entoarem seus cantos enquanto trabalhavam. Ambos são bons exemplos de deuses momentâneos, pois possuem até nos dias de hoje sua função lingüística preservada para invocar tais entidades.

Por causa desta vivacidade e excitabilidade do sentimento religioso, qualquer

conceito, qualquer objeto que por um instante dominasse todos os pensamentos,

podia ser exaltado, independentemente da hierarquia divina: inteligência, Razão,

Riqueza, Casualidade, o instante Decisivo, vinho, a Alegria do Festim, o Corpo de um

Ser Amado... Tudo o que nos vem repentinamente como envio do céu, tudo o que nos

alegra, entristece ou esmaga, parece um ser divino para o sentimento intensificado.

(Cassirer, 1972, P. 34).

Podemos imaginar assim um contexto de onde emergiria um deus momentâneo. Um homem ferido que se refugia numa caverna e con-segue se salvar e depois volta contando como conseguiu realizar o fei-to. Uma tribo que atravessa uma montanha e encontra sua caça, repassa seu relato para a geração seguinte, que disso foi fruto direto. Surge uma nova denominação. Este sentimento de salvação é tão intenso que merece um culto porque está relacionado com necessida-des irracionais e inconscientes do ser. São aspectos biológicos como a nutrição, a hidratação, a cura, a respiração, a reprodução etc.

É claro que existe uma contrapartida: o reconhecimento do símbolo só acontece à medida que possui uma dimensão real de atuação. Quando um mito passa a ser ineficiente a criatividade dá novamente vazão à tor-rente evolutiva do pensamento, gerindo novos ídolos, imagens e uma nova versão para o mito.

Depois deste estágio algumas tribos abdicam o nomadismo em favor de se estabelecer em uma determinada região. Foi na Revolução Agrícola que passamos a produzir sistematicamente nosso alimento e começamos a intervir na natureza ao perceber o processo de evolução e de ciclos daquilo que tínhamos necessidade de “consumir”. É a eclosão dos mitos de fertilidade e da constante renovação cíclica da vida.

Acima destes demônios momentâneos que vêm e vão, aparecendo e desaparecendo

como as próprias emoções subjetivas que os originam, ergue-se agora uma nova

série de divindades, cujas fontes não residem no sentimento momentâneo, mas no

atuar ordenado e duradouro do homem. na medida em que avança o desenvolvimento

espiritual e cultural, tanto mais a atitude passiva do homem diante do mundo externo

transforma-se em ativa.

(Cassirer, 1972, P. 35).

A noção de ciclos permite que passemos a adorar entidades que agora podem ser denominadas deuses especiais. É preciso adorar a chuva, para que venha no momento propício. É preciso adorar o sol e tudo o que possa sim-bolicamente se associar com fertilidade e abundância, entendidas como o reconhecimento da prática do culto e trabalho com a terra. O homem tam-bém compreende as estações do ano e suas implicações no ambiente, os ciclos de vida e morte. São deuses de imagens zoomorfizadas e vinculadas aos fenô-menos naturais. Deste profundo respeito e entendimento da atuação dos deu-ses e da necessidade de sua adoração surgem os cultos.

Onde quer que se estabeleça um deus especial, onde quer que ele se erga como

uma conf iguração determinada, esta

configuração é investida de um nome

especial, derivado do círculo de atividade

par t icu la r que deu or igem ao deus .

Enquanto este nome for compreendido,

enquanto for percebido em sua significação

originária, suas limitações hão de estar em

correspondência com as do deus; através

de seu nome, um deus pode ser mantido

duradouramente no estreito domínio para

o qual foi, na sua origem, criado.

(Cassirer, 1972, P. 36).

O princípio de unidade trazido pela identidade comum é fundamental para o amálgama social. Uma sociedade só poderá se estabelecer em uma região se encontrar um objetivo comum entre seus membros e adorar deuses cujos domí-nios são compreendidos por todos. Um centro, onde todos aqueles membros

Deuses Zoomorfos: Chacal e Anúbis (deus egípcio da morte).

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convergem seus esforços diários a fim de compartilharem e celebrarem sua existência coletiva, só é possível com o estabelecimento da estrutura moral de compromissos específicos e recíprocos dos deuses especiais.

É o nascimento do ego e a queda das sociedades matriarcais. Lugares cultivados passam a ser propriedade de uma comunidade, que passa a delimitar fronteiras físicas e culturais. O valores sociais dos meios pas-sam a ter pesos diferentes, já que podem satisfazer melhor ou pior às necessidades gerais do ser humano. Os valores de parceria são substitu-ídos pela competitividade decorrente da escassez material do meio. Surge a estrutura familiar. Os rituais orgiásticos vão sendo pouco a pouco extin-tos e a certeza da paternidade passa a ser imprescindível na nova ordem, em função da transmissão de posses e direitos. Aparece a hereditarieda-de dos valores simbólicos das imagens arquetípicas, antes incorporadas arbitrariamente por qualquer indivíduo.

As cosmogonias culminam em grandes mitos genealógicos, que nar-ram a história do ambiente que habitam (normalmente a partir de esta-dos caóticos) até a “geração presente”. Cria-se uma organização do sis-tema simbólico. O modo que a cultura estrutura os sistemas pela atua-ção dos diferentes domínios é atualizado continuamente. Estes nomes sagrados identificam àqueles que conhecem a narração mitológica e nela têm fé. São como redemoinhos que atraem todos aqueles que o legiti-mam e reconhecem para seu centro, e, quanto mais se conhece a res-peito do símbolo e seus rituais, maior o poder de influência no domí-nio que exerce. Preferimos a imagem de um redemoinho para esta repre-sentação porque ela sugere inclusive os “efeitos hipnóticos” do trajeto antropológico dos símbolos, donde é possível compartilhar com um gru-po uma ilusão coletiva.

(...) porém, o eu só pode trazer à consciência este seu atuar de agente, como

antes o seu sofrer de paciente, projetando-o para fora e colocando-o diante de si

em firme configuração visível. Cada direção particular desta atuação humana gera

seu correspondente deus particular. Também estas divindades, que Usener chama de

“deuses especiais” (Sondergötter), ainda não possuem, por assim dizer, uma função

ou significação geral; ainda não penetram o ser em toda sua amplitude e profundidade,

permanecendo limitados a um setor, a um círculo muito determinado. Mas, em suas

esferas respectivas, tais deuses ganharam determinação e duração, tendo com isto

também alcançado certa universalidade.

(Cassirer, 1972, P. 35).

Desse modo, à medida que novas revoluções acontecem, outros seto-res e domínios das necessidades existenciais vão aflorando e um outro estágio mitológico: os deuses pessoais. Estes deuses são, segundo Usener (apud CassIrer, 1972, p.78), frutos de um processo histórico-lingüístico que culminou com a necessidade de universalizar cada vez mais a compreen-são do símbolo sagrado, expandir suas fronteiras até um limite máximo que encontrasse em si todas as expectativas do próprio ser.

Ainda em tempo, segundo Cassirer, os deuses especiais representam um ponto de passagem necessário que a consciência religiosa deve atravessar para chegar a seu objetivo último e supremo: a conformação dos deuses pessoais.

O conceito de deus especial, que expressa mais um certo fazer do que um certo

ser, só então ganha corporeidade e, em certa medida, sua própria carne e sangue. Este

deus, agora, é capaz de agir e sofrer como uma criatura humana.

(Cassirer, 1972, P. 36).

As imagens arquetípicas destes novos ídolos pessoais sofrem antropo-morfizações. Os deuses passam a interagir com os homens comuns e não mais atuam de acordo conduta geral do grupo. Realizam milagres e uti-lizam seus atributos mágicos seguindo vontades típicas de quem possui um ego também. Os deuses passam a tomar atitudes pontuais em relação às personas. A estes deuses é conferido o poder de modificar o curso ordi-nário da existência individual e para que ele seja mais eficaz seus rituais vão aumentando a complexidade.

É possível neste momento persuadir um Deus através de oferendas e sacrifícios pessoais, ou esperar alguma retaliação caso suas especificidades

Deuses Antropomorfos: “Vênus e Marte” deuses romanos da beleza e da guerra, respectivamente.

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de desejos não sejam contempladas pela conduta daquele sujeito que o ado-ra. São os mitemas, propostos por Lévi-Strauss (1996), que vão vagarosa-mente organizando mais e mais a existência e o atuar social do sujeito.

Como o mito não é nem um discurso para demonstrar nem uma narrativa para

mostrar, deve servir-se das instâncias de persuasão indicadas pelas variações

simbólicas sobre um tema. Estes “enxames”, “pacotes” e “constelações” de imagens

podem ser reagrupados em séries coerentes ou “sincrônicas” – os “mitemas” de

lévi-Strauss (a menor unidade semântica num discurso e que se distingue pela

redundância) – além do fio temporal do discurso (diacronia).

(durand, 2004, P. 60).

Estas unidades semânticas mínimas não por acaso residem na redundân-cia. Elas são os limites formais da meta-linguagem para a elucidação da rea-lidade cultural do grupo. São produtos daquela deficiência lingüística intrín-seca a que já nos referíamos anteriormente. Mitemas são as sínteses discur-sivas básicas que se aplicam na justificativa de hábitos culturais dos sujeitos de um grupo. A iconolatria pede a execução do ato ritual da maneira mais aplicada possível, pois só através da bajulação existe a chance ser agraciado com a simpatia divina e, quiçá, favores sobre-humanos. Executar o ritual de acordo com o protocolo passa a ser essencial para a eficácia do deus.

(...) todo aquele que queira conseguir sua proteção e ajuda deve tomar o máximo

cuidado para ingressar realmente em seu círculo, para lhe conferir sua proteção e

ajuda deve tomar o máximo cuidado para lhe conferir seu “justo” nome. (...) Este modo

estereotipado de invocação deve repetir-se sempre; pois, cada serviço oferecido em

honra do deus, cada desejo dirigido a ele, só é acolhido por ele na medida em que

se der sob o seu devido nome. Por isso, a arte da correta invocação desenvolveu-se

em Roma a ponto de tornar-se uma verdadeira técnica sacerdotal, cujo produto, os

Indigitamenta, estava sob custódia dos pontífices.

(Cassirer, 1972, P. 72).

É neste estágio que encontramos a mitologia greco-romana, ou mais à frente a hagiografia católica. Embora a natureza politeísta da primeira seja diversa da novidade introduzida pelo monoteísmo cristão, a Igreja não dei-xou de utilizar a facilidade de conversão proporcionada pela aceitação e sin-cretismo de santos regionais e suas respectivas imagens dentro do oficial, nas ocasiões em que isso apontava em seu favor “diplomático” e político.

(...) não é o “estado civil” indicado pelo nome próprio o que importa na identificação

de um deus, herói ou santo, mas as litanias “compreensivas” dos seus atributos. Mas

o atributo quase sempre é subentendido por um verbo: afastar, avisar, atrair, ungir

etc. É o nível verbal que desenha a verdadeira matriz arquetípica. Dominique Raynaud

evidenciou muito bem na sua tese este primado da “esquematização verbal” do qual

derivam secundariamente o que, em �990, denominamos de as “imagens arquetípicas

epítetas”, seguidas das “substantivas” e, por fim, dos símbolos supradeterminantes

pelo meio geográfico e social, e o momento sociocultural.

(durand, 2004, P. 89).

O poder de um símbolo passa a ser cada vez mais valioso quando expres-sado por abundantes epítetos e reconhecimentos. Quanto mais vezes a “Virgem Maria”, ou o “Mártir” forem reconhecidos em diferentes santos regionais, quanto mais múltipla for sua ubiqüidade, mais abrangentes serão seus poderes de influência sobre o domínio. As ladainhas (ou litanias) de atributos são quem asseguram sua vivacidade e atuação eficaz na realida-de de uma comunidade. Proteger os ritos é função social esperada de cada um nós e, ao assistir isso com atenção, fazemos com que todos sejam coa-gidos à mesma conduta. A aceitação dos fatos narrados e das explicações/

Imagens de Santos Católicos.

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verificações proporcionadas pelos mitemas é ativa no processo de reconhe-cimento da eficácia dos esforços individuais de adoração. Abre-se o leque de representações e a possibilidade de expansão da fé.

A Idade Média se desenrola sob a égide da Santa Igreja e um longo tem-po se passa com os iconólatras retomando seus postos e disputando espa-ços dentre as diferentes doutrinas em conflito neste período. Durante pouco mais de treze séculos a Igreja Católica foi desenvolvendo imagens sagradas e monges guardavam suas relíquias a sete chaves. Homens san-tos regionais e mártires foram admitidos na corte divina, houve a proli-feração de ordens eclesiásticas e surge o culto ao presépio natalino.

A este respeito é interessante citar que as batalhas entre feudos medie-vais pré-cruzadas eram defendidas em nome de santos protetores e padro-eiros. Como resquício histórico há a cruz vermelha sobre o branco na bandeira inglesa, que é a cruz de São Jorge; a cruz transversal branca sobre o azul na bandeira da Escócia, que é a cruz de Santo André. Já a cruz transversal vermelha sobre o branco na bandeira irlandesa é a cruz de São Patrício, que levou o catolicismo aos celtas. Isso para citar apenas um dos cenários de conflitos medievais.

Todavia, com o advento da escolástica medieval e o redesco-brimento das obras de Aristóteles, tudo isso foi novamente questio-nado em função da presença “terrorista” da expansão islâmi-ca, que com seu monoteísmo mais fresco e vigoroso (verifica-do até os dias de hoje), exigiu um retorno à “fé original” cristã. Buscando com isso uma concen-tração ideológica mais encorpa-da a fim de reunir forças sufi-cientes para enfrentar o perigo eminente da invasão. Isso foi conseguido restringindo os demais cultos de santos. Depois do “método da verdade” aristoté-lico este foi um segundo golpe do iconoclasmo ocidental.

Mas como é possível adorar uma entidade cuja imagem arquetípica não é única? Ora, podemos imaginar que neste momento algo aconteceu para permitir ao ser humano agrupar diferentes representações dentro de um mesmo arquétipo. Durante as cruzadas os esforços bélicos foram concen-trados em nome de um ícone centralizador: “Jesus Cristo” e a “Santa Igreja Católica Apostólica Romana”. Objetivando a reconquista da Terra Santa e a tomada de território do Islã, o Ocidente conseguiu finalmente expul-sar o invasor da Europa depois de árdua resistência, inclusive cultural, que até hoje deixou vestígios em palavras e hábitos ibéricos. Com o fim das cruzadas, as diversas ordens eclesiásticas começaram a apresentar entre si novas rixas relativas às interpretações da “palavra sagrada”. Embora Roma tenha por muito tempo conseguido centralizar a interpre-tação oficial da Bíblia, era difícil não admitir as alterações necessárias para o conformismo com as especificidades regionais.

Muito mais tarde, Galileu e Descartes fundaram as bases da física moderna e do mecanicismo racionalista, culminando num terceiro golpe do iconoclasmo Ocidental. Embora atualizassem em muito os erros come-tidos por Aristóteles e a posterior escolástica medieval, eles não contra-dizem em momento algum a “lógica clássica” de que a razão é o único meio de legitimação e acesso à verdade. A partir do século XVII o imagi-nário passa a ser banido dos processos intelectuais:

O legado do universo mental, as experiências de Galileu (...) e o sistema geométrico

de Descartes (...) representam um universo mecânico no qual não há espaço para a

abordagem poética. A mecânica de Galileu e Descartes decompõem o objeto estudado

no jogo unidimensional de uma única causalidade: assim, tomando como modelo de

base bolas de sinuca que se chocam, o universo concebível seria regido por um único

determinismo, e Deus é relegado ao papel de “dar o empurrãozinho” inicial a todo

o sistema. O século Xviii acrescentará outra coluna da tradição aristotélica a esta

herança cristã de cinco séculos de racionalismo incontornável: o empirismo factual

(que delimitará os “fatos” e fenômenos). Os grandes nomes de David Hume e isaac

newton permanecem atrelados ao empirismo e com eles esboça-se o início do quarto

momento (no qual ainda estamos mergulhados) do iconoclasmo ocidental.

(durand, 2004, P. 13).

Este quarto momento inaugurado pelo empirismo praticamente cimen-ta as bases daquilo que será a ideologia embrionária do Estado e das ins-tituições capitalistas modernas, que culminaram nas revoluções liberais.

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Surgem as infindáveis metáforas e analogias da natureza do homem com a “máquina perfeita”, que precisa ser estudada a fim de ser descrita mate-maticamente. É a pretensão de se alcançar um determinismo absoluto na natureza a partir de equações. Os Estados tornam-se laicos e ocorre uma secularização verificável em todos os aspectos sociais dos símbolos.

O positivismo e as filosofias da História, às quais as Ciências da Comunicação tributam suas origens, serão produto da conjunção entre a fac-tualidade da análise empírica com o rigor iconoclasta do racionalismo clássi-co. Estas duas correntes esvaziaram por completo a legitimidade conferida ao imaginário, ao raciocínio simbólico pela semelhança, ou seja, a metáfora.

Emergem o cientificismo e o historicismo. Qualquer imagem que não esteja neste momento devidamente estabelecida como um mero “clichê” de sentido estreito e estereotipado passa a ser suspeita de ser passionali-dade. São as divagações dos “poetas malditos”, as alucinações e delírios dos doentes mentais, as visões dos místicos e as obras de arte que serão expulsas da terra firme da ciência. Mesmo a classe dominante deste momento (a burguesia) passa a reservar-se do gasto com decorações, que são tratados como mero deleite estético sem significado real. Toda a arte sofre uma grande transformação:

(...) foi só quando o pensamento mitológico (...) passou para segundo plano no

pensamento ocidental da Renascença e do século Xviii, que começaram a aparecer

as primeiras novelas, em vez de longas histórias ainda elaboradas segundo o modelo

da mitologia. E foi precisamente por esta altura que testemunhamos o aparecimento

dos grandes estilos musicais.

(lévi-strauss, 1989, P. 68).

Com isso a ética e estética protestante tornam-se regra no Ocidente. A Reforma é o período onde esta nova perspectiva de mundo é finalmente incor-porada oficialmente à cultura. Embora todo este processo tenha sido lento, a erosão do papel do imaginário na filosofia e na epistemologia ocidental pro-porcionou um grande potencial técnico que desenvolveu máquinas, aparelhos e rituais sociais que inauguraram um novo herói: o “adulto civilizado”, sepa-rado por sua “mentalidade lógica” das demais culturas do mundo.

no Ocidente, a partir do final do século Xviii, as religiões institucionalizadas passaram

a ser consideradas conforme o gosto historicista e cientificista do dia. Estas tentações,

que reagrupamos sob o nome de “modernismo”, almejam, segundo as palavras do

filósofo Jean Guitton, “fundar a fé sobre o espírito dos tempos”. Donde, claro, o esforço

dobrado dos teólogos para “desmitificar” as verdades de fé e fundamentá-las em fatos

históricos positivos. Os teólogos ocidentais só conseguiram exorcizar as tentações

modernistas e iconoclastas recentemente. Com o questionamento da “modernidade”,

o “monoteísmo” do futuro científico fragmentou-se em pluralismos, foi renegado por

uma “filosofia do não” (G. Bachelard), e as grandes “religiões seculares”, o nacional-

socialismo e o leninismo-stalinista, desmoronaram. Jean-Pierre Sirronneau, na primeira

parte de sua tese Sacré et désacralisation [O sagrado e a dessacralização], analisou

muito bem estes movimentos de dessacralização e secularização que atingem a teologia

em cheio. não deixa de ser significativo que o revisionismo teológico tenha se originado

fora das diretrizes das igrejas. nos primeiros anos do nosso século, as dificuldades para

as explicações historicistas do sagrado produziram uma corrente inteira de análises

“fenomenológicas” (que se atêm “à coisa em si”, ao próprio objeto do religiosus) do

Sagrado. E é nesta corrente que se situam dois dos principais inovadores do papel do

imaginário nas aparições (hierofanias) do “religioso” no centro do pensamento humano:

o romeno Mircea Eliade (�907-�986) e o francês Henry Corbin (�903-�978).

(durand, 2004, P. 72).

Neste sentido, o desenvolvimento das filosofias da História teve influ-ência de tal pensamento: o ponto de vista do autor de qualquer documen-to histórico é necessariamente político e isso precisa ser tomado em con-ta na sua análise. O “adulto civilizado” é co-autor de qualquer documen-to científico aceito pela comunidade científica internacional.

Obviamente esta questão autoral não pode ser a única diferença entre História e Mitologia. No entanto, a “história oficial” disseminada pelos meios de comunicações legitimados nunca deixou de ser estigmatizada pela mediação dos valores das elites. Sempre detentores do poder simbó-lico acumulado e institucionalizado, para estas classes burguesas os mitos tomam a forma de ficção e a arte se destina a “imitar a vida”. A princípio separados entre o jornalismo (objetivo) e a publicidade (subjetiva), hoje, este aparatus comunicativo do capitalismo tende novamente à homoge-neização com as mídias eletrônicas, mas sempre tomando como lastro receptivo de seu discurso o “adulto civilizado”, também considerado público-alvo de suas enunciações.

Assim, o processo contínuo de busca da verdade ainda é submetido à lógi-ca binária grega. A diferença fundamental na Ciência é acerca do conhecimen-to, tido como infinito e inesgotável. Ao contrário da Mitologia, a Ciência não estabelece dogmas compulsórios sobre os conceitos gerais da linguagem.

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das revoluções l iberais (Industrial e Francesa espe-cificamente) foram aos pou-cos transferindo a eficiên-cia da atuação divina para as máquinas e aparatos téc-nicos avançados pela ciên-cia. Neste ínterim surge também a ritualização do uso destes aparatos.

Não obstante, mesmo durante a Revolução Indus-trial inglesa esta nova pers-pectiva ritual gerou contro-vérsia e acontecimentos significativos como o ludis-mo (movimento social de artesões têxteis do começo do século XIX que protestavam contra as mudanças introduzidas pela Revolução Industrial) e outros que visavam destruir máquinas e fábricas.

Apesar de certas resistências pontuais, as instituições capitalistas não falharam em disseminar seu avanço tecnológico e valores ideológicos atra-vés do consumo social de suas novidades tecnológicas. Não é possível para o homem, no exercício de sua função social, compreender o funcio-namento das máquinas que ressurgem mais complexas todos os dias; quando muito ele pode compreender a sua total aplicabilidade. A conver-gência dos avanços foi customizada socialmente para produtos e apara-tos que encantam as pessoas, bem como os mitos de outrora, pois satis-fazem às mesmas necessidades inconscientes de sobrevivência e acesso ao sagrado. A mitologia capitalista, ao dar conta dos arquétipos com ima-gens arquetípicas hi-tech, criou ícones e instituições disseminadoras de sua cultura oficial.

As representações simbólicas deste aparato possuem imagens arquetí-picas esboçadas em logotipos e mascotes corporativos que são conceitos de design pretensiosamente globais. Imagens estas que já tinham suas antecessoras nas bandeiras e símbolos das nações, ou mesmo nos brasões feudais e, muito antes, nas respostas subconscientes do homem às suas necessidades irracionais; deste modo contemplando aquilo que se espe-ra de uma imagem arquetípica.

Haverá sempre novos problemas, e, ao mesmo ritmo com que a ciência foi capaz de

resolver problemas filosóficos que se consideravam insolúveis há uma dúzia de anos ou

há um século, voltarão a aparecer novos problemas que não haviam sido apercebidos

como tais. Haverá sempre um fosso entre as respostas que a ciência está habilitada a

dar-nos e as novas perguntas que essas respostas provocarão.

(lévi-strauss, 1989, P. 25).

Enquanto para a mitologia o sistema fechado que a caracteriza ofere-ce uma versão singular e não permite adendos para abarcar novas reali-dades e situações, na Ciência este empecilho é facilmente ultrapassado. A única verdade absoluta na Ciência é a de que não existe verdade abso-luta. O cânone científico abre a possibilidade que tudo possa ser questio-nado e comprovado através do método científico. Ele ainda sugere a aná-lise fractal dos objetos: tudo será dividido em partes suficientes para uma analise satisfatória.

O que se descobre ao ler estes livros é que a oposição – a oposição simplificada

entre Mitologia e História que estamos habituados a fazer – não se encontra bem

definida, e que há um nível intermédio. A mitologia é estática: encontramos os mesmos

elementos mitológicos combinados de infinitas maneiras, mas num sistema fechado,

contrapondo-se à História, que, evidentemente, é um sistema aberto. O caráter aberto

da História está assegurado pelas inumeráveis maneiras de compor e recompor as

células mitológicas ou as células explicativas, que eram originariamente mitológicas.

(lévi-strauss, 1989, P. 61).

Como efeitos desta postura introspectiva e “micro-cósmica” da Ciência (voltada para a análise); presenciamos o fenômeno contemporâneo da especialização superlativa da atuação profissional. Os indivíduos são con-duzidos por carreiras que os encaixam em atividades sociais cada vez mais específicas. Estas células explicativas interagem dando vida à nos-sa complexa sociedade, embora não possam evitar a alienação daqueles que participam do processo, dado o condicionamento micro-cósmico exi-gido pela especialização.

A Ciência tem sua faceta mágica na tecnologia, nas engrenagens e bugi-gangas desenvolvidas pelo seu avanço técnico. A sinergia das expertises, experimentadas pelos ambientes de pesquisas dos Estados-Nacionais e das corporações, permitiu o desenvolvimento de ferramentas humanas que ficaram complexas como as próprias especialidades. Os imaginários

Revoluções Liberais: Liberdade conduzindo à vitória.

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2.5Os objetos sociais que hoje consu-

mimos, participam do imaginário no abrangente escopo do mercado global, antes jamais experimentado por quais-quer outros sistemas simbólicos. Seja por seu alcance territorial ou popula-cional, nenhum outro sistema simbó-lico foi, até onde se tem conhecimento, tão influente no pensamento humano. Aproveitaremos para discutir estes aspectos políticos e sociais contempo-râneos mais à frente em um capítulo específico, em função de sua relevân-cia para este estudo.

No cientificismo existe a ilusão de que o homem alcançou o status de mestre da natureza. Religiosos come-çam a aumentar o volume das acusa-ções de que os cientistas estariam “brincando de deus”. Dada à eficiência alcançada nesta busca (que o determi-nismo lógico empreendeu) da absoluta descrição da natureza; são criadas as condições para o desenvolvimento de técnicas de comunicação como a fotografia, a produção gráfica, o rádio, a televisão, o cinema etc.

Graças a este efeito perverso (que subverte a lógica binária que lhe deu origem) da “civilização da imagem”, a que nos refere Durand (2004, p.31), culminamos todos estes meios finalmente no computador e na nova mídia: a Internet, a rede virtual que inaugura uma nova etapa na histó-ria dos sistemas simbólicos humanos. Etapa esta que discutiremos espe-cialmente no próximo capítulo deste estudo.

Os avanços tecno-científicos e a postura analítica micro-cósmica da Ciência acabaram nos levando até as teorias da física moder-na. Entre elas, a Teoria da Relatividade, as Teorias da Física

Quântica e as Teorias do Caos são as mais significativas, pois ironicamen-te processam um novo movimento no imaginário do Ocidente. É a eclo-são dos novos padrões artísticos, da contracultura, do retorno à busca da verdade do sagrado e da verificação da impossibilidade de total determi-nação da natureza através da matemática e do mecanicismo. Citamos dois importantes autores a este respeito:

Com a mecânica quântica, em �927, veio um reconhecimento do autêntico

indeterminismo que vigora na natureza. Desde essas épocas, tem havido um reconhecimento

gradativo de que a indeterminação existe não só no nível quântico, mas também em todos

os níveis de uma organização natural. Há uma espontaneidade, um indeterminismo e uma

probabilidade inerentes no tempo, na quebra das ondas, no fluxo turbulento, nos sistemas

nervosos, nos organismos vivos, nos ciclos bioquímicos e em toda uma série de fenômenos.

Até mesmo o velho modelo, favorito como representante da ordem matemática racional

total, das órbitas dos planetas no sistema solar, revela-se caótico e imprevisível em temos

da física newtoniana. O mesmo indeterminismo está sendo agora reconhecido em todos

os níveis da natureza. A mim me parece que esse estado de abertura da natureza, esse

indeterminismo, essa espontaneidade, essa liberdade é algo que corresponde ao princípio

do caos em seus sentidos intuitivo e mitológico. Os matemáticos têm utilizado a palavra

caos em vários sentidos técnicos, e não é totalmente clara para mim a maneira como esses

modelos técnicos de sistemas caóticos correspondem às noções intuitivas de caos.

(sheldraKe in MCKenna, 1992, P. 55).

Gerald Holton permite-nos perceber que, atualmente, e para explicar suas próprias

orientações, o pensamento científico vê-se constrangido a pedir auxílio ao mesmo imaginário

durante tanto tempo reprovado, no século Xvii, pelo iconoclasmo das teorias originárias... no

próprio santuário da física, que esteve longamente voltado apenas para o seu mecanicismo,

as imagens irreconciliáveis da onda (contínua) e do corpúsculo (descontínuo) vêem-

se obrigadas a se associarem a um “mecanismo ondulatório”. Dessa forma, a precisão

A Criatividade, a Dinâmica dos Sistemas Simbólicos, o Caos no Senso Comum e a Queda do Determinismo Lógico no Ocidente

Aparelhos Computacionais Hi-tech: I-Pod’s da Apple, Capacete e JoyStick da Siemens para Realidade Virtual.

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científica não pode abrir mão de uma “realidade velada” (Bernard d’Espargnat), onde os

símbolos, estes objetos do imaginário humano, servem como modelo.

(durand, 2004, P. 71).

O argumento da lógica binária não é mais suficiente para explicar dinâmica social contemporânea. A criatividade, deste modo, é o que vem dar substrato à constante renovação mitológica. Ela puxa o movimento dialético à medida que novas soluções precisam ser desenvolvidas para abarcar os dilemas advindos dos embates culturais. A criatividade que emana da dramaturgia (interação) diária das personas precisa ser expres-sa através de um meio. Quanto maior o alcance do meio, maior e mais complexa será a sociedade abarcada pelos símbolos que difunde.

A única maneira de conservar uma tradição é renová-la em função das circunstâncias da época. Quando o mundo se altera, a religião e a mitolo-gia (ou os sistemas simbólicos) precisam se transformar. As diferentes sociedades buscam equilibrar as cargas dialéticas emanadas deste movi-mento em trágico e cômico, em riso e choro, em sagrado e profano, em classe dominada e dominante.

O momento criativo é onde permitimos associar os signos certos a fim de recriar as parafernálias comunicativas, mitológicas e, sobretudo, lin-güísticas que operam e gerem, sendo esta sua função social, as institui-ções; sobretudo igrejas/ seitas e entidades que trabalham com mídia: publicidade, jornalismo, ficção, esportes e artes. Sabemos também que a criatividade eclode com muito mais força na cultura popular, já que ela precisa concentrar muito mais seus esforços para fazer frente ao gigantis-mo do aparato comunicacional oficial. No momento criativo nos encon-tramos legitimamente libertos das amarras sociais convencionais e salta-mos para o universo simbólico com uma aleatoriedade associativa que ricocheteia nas possibilidades das sinapses cerebrais.

Aquilo que Lévi-Strauss (1976) chama de pensamento desinteressado em seu Totemismo ou O pensamento selvagem se confunde com o que conhe-cemos como livre associação de idéias (fundamental para o brainstorming corporativo) ou a maiêutica (“parto de idéias” dos gregos socráticos). No momento que abrimos mão da tradição por uma postura criativa, que tem a finalidade de totalizar uma compreensão total do universo ou de algum domínio, o símbolo é “negligenciado” de suas associações convencionais na linguagem codificada e são permitidas as alegorias e licenças poéticas para que dinâmica sistêmica prossiga em seu fluxo:

Dizer que um modo de pensamento é desinteressado, e que é um modo intelectual

de pensar, não significa que seja igual ao pensamento científico. Evidentemente que

continua a ser diferente em certos aspectos, e que lhe é inferior noutros. E continua a ser

diferente porque a sua finalidade é atingir, pelos meios mais diminutos e econômicos, uma

compreensão geral do universo – e não só uma compreensão geral, mas sim total. isto é,

trata-se de um modo de pensar que parte do princípio de que, se não se compreende tudo,

não se pode explicar coisa alguma. isto está inteiramente em contradição com o modo de

proceder do pensamento científico, que consiste em avançar etapa por etapa, tentando

dar explicações para um determinado número de fenômenos e progredir, em seguida, para

outros tipos de fenômenos, e assim por diante. Como já disse Descartes, o pensamento

científico divide a dificuldade em tantas partes quantas necessárias para resolver.

(lévi-strauss, 1989, P. 31).

Outro ponto a ser considerado é que este pensamento criativo está alta-mente vinculado ao momento de ócio, defendido por Domenico de Masi (2000). No ócio é que surge o insight, o vislumbre do novo significado, a nova associação suficientemente forte para ser compreendida e legitima-da socialmente. O que nos dá uma boa percepção de como é que a socie-dade distribui às classes o tempo livre que lhes cabe. Não gostaríamos de nos aprofundar neste mérito, no entanto, obviamente o tempo criativo legítimo é permitido apenas às elites.

Nestas características “universalizadoras” do pensamento mítico (de que tudo precisa ser compreendido para que algo possa ser explicado) estão representações do riso e do choro, do clímax orgástico social, do coro no estádio de futebol, da repetição da palavra de ordem, das calami-dades e dos desastres compartilhados. Em outras palavras, esta é a sínte-se necessária para que a identificação pessoal com os símbolos e imagens sejam ótimas para toda uma população em questão.

As sociedades descrevem as suas próprias histórias e mundos, ou melhor, suas próprias versões de história, adequadas para a manutenção da classe dominante e do sistema em sua posição. Replicando a ideologia nos mais criativos suportes e designs, para os mais repetidos conceitos e objetivos, a classe dominante consegue se manter vinculada ao poder material/ simbólico. Já que é vetado à classe subjugada legitimar o valor da sua cultura, ela é por esta relação assim denominada subcultura. Desta forma, a comunicação e o pensamento humano evoluí em complexidade à medida que precisa criar novos códigos para de prevenir o acesso da subcultura aos meios de dominação.

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A dificuldade em se expressar de acordo com o código formal é a barreira para o acesso da subcultura aos meios de dominação. A linguagem escrita, o código em sua excelência, são as instâncias dos símbolos no superego social.

A linguagem escrita cria para nós a ilusão de um mundo independente. A noção

de um mundo de Formas transcendente e eterno não poderia ter surgido enquanto

não existisse a linguagem escrita, porque esta lhe fornece o modelo. Pelo que penso

ser uma espécie de idolatria, os símbolos e as estruturas feitos pelos seres humanos,

depois de escritos duram para sempre, segundo se imagina, no âmbito de algum outro

reino. A linguagem falada é muito mais antiga do que a escrita, mas é um processo que

acontece no tempo. A memória envolvida em culturas orais é transportada em histórias

continuamente recontadas, que evoluem à medida que são transmitidas.

(sheldraKe in MCKenna, 1992, P. 69).

Sabendo disso, e pensando na contemporaneidade, que é assumida-mente uma sociedade composta por símbolos predominantemente visu-ais; um logotipo corporativo (enquanto símbolo dentro de um sistema) expressa um conceito partilhado no imaginário através da comunicação de uma instituição e é tomado como verdade pelo consumidor. Ele iden-tifica a imagem e busca o produto irracionalmente, pelo reflexo incons-ciente do arquétipo, como solução imediata de sua necessidade. Para satis-fazer nossas necessidades sociais de identificação, tecemos uma expres-são pessoal através dos símbolos disponíveis no imaginário coletivo.

A constatação da presença de um símbolo é o bastante para que uma associação seja feita e julguemos se nossa personalidade associa-se ou não ao conceito; porém, jamais poderemos nos isentar da compreensão deste, por razões sociais de dependência e, sobretudo, vantagem de nossa influ-ência política. Ignorar o conhecimento e o sistema ideológico é um ato que gera sérias implicações na colocação social de um indivíduo e o conheci-mento da cultura dominante é sempre lastro para o julgamento das sabe-dorias das demais culturas.

A palavra não pode ser contestada em seu significado mítico. É impres-cindível que, sob todos os aspectos, ela esteja livre da “contaminação” de outros atributos ao seu conceito. Deste modo, a aura sagrada surge. Rituais e etiquetas para a correta utilização do símbolo são criados para impedir seu fácil acesso e possível desvio. Ele passa a ser cercado de cuidados especiais, de reserva simbólica: a intocabilidade e a impronunciabilidade do sagrado, por exemplo. Com isso ainda valoriza seu lado espiritual e transcendente.

Todo signo é tributário ao sistema que o criou, mas seu significado pode ser usurpado e modificado por decorrência dos movimentos sociais e da mudança de paradigma cultural adotado na sua análise. Como já citamos na teoria das “bacias semânticas”, qualquer fluxo de idéias con-tínuo apresenta confluências e inter-relacionamentos dialéticos com outros fluxos que se modificam mutuamente neste contato. Porém, um deles sempre há de prevalecer, carregando consigo toda a energia da qual se apodera com a dominação cultural do outro.

É inevitável ilustrar a maneira como a suástica nazista é tratada no oci-dente e sua carga de vergonha, pesar e insanidade difundida pelos vence-dores da II Guerra Mundial. Igualmente, a foice e o martelo foram banidos da área de influência americana, durante a Guerra-Fria e as Ditaduras Latino-Americanas. Embora hoje em dia o ícone tenha caído nas mãos da cultura pop, juntamente com o rosto de Che Guevara, e tenha evoluído a favor do sistema capitalista de forma irônica; o símbolo nazista até hoje não foi superado. Podemos ainda pontuar uma das principais teses protestan-tes contra o catolicismo: a supressão do culto aos santos e seu vigor violen-to ao depredar imagens. Da mesma forma, o Islã age contra as imagens que consideram pagãs e/ ou hereges. Uma guerra, em sua dimensão ideológi-ca, sempre depende destes arquétipos para concentrar suas tropas e esfor-ços.

Outro exemplo elucidativo foi o que aconteceu na França durante a revolução burguesa e ascensão do Estado-Nacional. Em sua famosa sessão de 19 de Junho de 1790, a Assembléia Constituinte decretou a supressão de brasões e ao mesmo tempo de títulos da nobreza, indumentárias, estan-dartes, pendões, ordens de cavalaria, decorações e todos os “símbolos do

Varal com Camisetas de Che Guevara à venda e Regata com Foice e Martelo.

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feudalismo”. O uso de brasões foi abolido. Assim uma nova iconografia sempre surge para ilustrar e representar novos

tempos. Para ilustrar este fato, temos o romantismo francês e suas grandio-sas composições dramáticas. Um exemplo destacável poderia ser a alegoria da “liberdade”, antropomorfizada em mulher e trajando vestes à moda clás-sica grega. Sua importância era tão grande enquanto ícone do movimento revolucionário que ganhou inúmeras representações em telas e estátuas – onde o exemplo mais emblemático é a enorme obra presenteada pela França aos Estados Unidos e ancorada em Manhattam: a estátua da liberdade.

Aliás, bem próximo de onde se encontra esta famosa estátua, um outro grande símbolo foi destruído ao vivo worldwide e desencadeou uma guerra ideológica contra inimigos sem rostos ou pátria: os “terroristas islâmicos fun-damentalistas”. O ataque ao World Trade Center sem sombra de dúvidas é um momento histórico, não tanto pelo espetáculo trágico-midiático e o

impacto das imagens proporciona-das pelo incidente, mas principal-mente pelo seu significado contex-tual: as torres eram materializações simbólicas ultrajantes para guerra islâmica contra o capitalismo. É cla-ro que não podemos esquecer que o ataque foi muito mais amplo, mas os outros alvos parecem-nos agora secundários, se pensarmos na rele-vância de um ataque contundente ao que se traduz como “Centro Comercial do Mundo”. Exatamente o edifício que se pretendia sede, templo do mercado globalizado.

Entendemos que este ato não seja suficiente para alterar um sistema ideológico e seus mitos, mas é com certeza uma das primeiras provi-dências a serem tomadas em tais ocasiões históricas. Da mesma for-ma como uma camiseta de futebol pode ser queimada como forma de agressão simbólica pela torcida adversária, ou uma bandeira é reco-lhida e outra hasteada assim que é efetivada a tomada de território ao final de uma batalha. O processo de câm-bio ideológico opera no movimento dialético, criando significados opostos para um mesmo significante, um deles oficial e outro profano.

Dessa forma, uma alteração na linguagem (estrutura básica na cons-trução de uma sociedade) acarretará mudanças, acertos, gambiarras e mesmo supressão e proibição de mitos e símbolos. Compreendemos que o mito é um sistema semiológico segundo, operando sempre metaforica-mente com a linguagem, deslocando-se de um nível o sistema formal das significações imediatas.

Lévi-Strauss nos diz que o mito é “uma magnífica lente na maneira como o homem sempre pensou” (lévI-strauss in WIseman, 2000, p. 134). Para ele o mito era o verdadeiro caminho para a compreensão do incons-

Brazões medievais foram abolidos pela Assembléia Constituinte durante a Revolução Francesa.

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1Estátua da liberdade e World Trade Center em Chamas no dia 11 de Setembro.

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ciente coletivo, bem como o sonho era para Freud ao inconsciente parti-cular. Sabendo que o homem sempre buscou satisfazer as mesmas neces-sidades existenciais – tanto por meio do pensamento mitológico, como pelo lógico-científico – verificamos uma evolução e passamos por etapas até chegarmos neste presente estado “plasmático” que a pós-modernida-de se apresenta. Com a possibilidade de explicar o mundo utilizando novamente conceitos como o “caos”, com o inchaço urbano e o aumento vertiginoso do fluxo comunicacional e comercial humano, principalmen-te através do uso de imagens, a Ciência volta a ter interesse em campos de conhecimento por tanto tempos esquecidos.

(...) tenho a sensação de que a ciência moderna, na sua evolução, não se está a

afastar destas matérias perdidas, e que, pelo contrário, tenta cada vez mais reintegrá-

las no campo da explicação científica. O fosso, a separação real, entre a ciência e aquilo

que poderíamos chamar pensamento mitológico, para encontrar um nome, embora não

seja exatamente isso, ocorreu nos séculos Xvii e Xviii. Por essa altura, com Bacon,

Descartes, newton e outros, tornou-se necessário à ciência levantar-se e afirmar-se

contra as velhas gerações de pensamento místico e mítico, e pensou-se então que a

ciência só podia existir se voltasse costas ao mundo dos sentidos, o mundo que vemos,

cheiramos, saboreamos e percebemos; o mundo sensorial é um mundo ilusório, ao

passo que o mundo real seria um mundo de propriedades matemáticas que só podem

ser descobertas pelo intelecto e que estão em contradição total com o testemunho dos

sentidos. Este movimento foi provavelmente necessário, pois a experiência demonstra-

nos que, graças a esta separação – este cisma, se quiser –, o pensamento científico

encontrou condições para se auto-constituir.

(lévi-strauss, 1989, P. 18).

Não cabe a nós, portanto, julgar a postura que o Ocidente tomou durante todos estes séculos em excluir o “caos” do seu senso comum e dos seus sistemas simbólicos. O que pretendemos neste estudo é o apro-fundamento da compreensão sobre o sistema simbólico contemporâneo, pós-industrial e virtualmente global.

Seguiremos a tendência de revalorização dos conhecimentos e estudos sobre as imagens, que voltam a ter valor graças às circunstâncias atuais da socieda-de. Imagens são aspectos da atuação social humana cuja interpretação a mui-to estávamos afastados na Ciência, em benefício do paradigma da lógica biná-ria, que não reconhece qualquer coisa que não possa ser reduzida em verda-deiro e falso. Como vimos, a imagem é dúbia em sua essência (sagrada e pro-

fana) e esta característica precisa ser pontuada durante sua interpretação.No próximo capítulo estudaremos o contexto dos sistemas simbólicos

contemporâneos e suas particularidades advindas do avanço tecnológico e da introdução dos novos meios de comunicação. Esta discussão (que apresentamos sobre os aspectos antropológicos, psicológicos e sociais dos símbolos e imagens) será essencial em nossa análise posterior, principal-mente pelo fato de que a linguagem visual é a quem caracteriza o siste-ma simbólico atual.

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3 Semiótica na Internet e Contemporaneidade

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A pós a introdução dada no capítulo passado sobre as origens dos sistemas simbólicos e suas relações com a atuação social huma-na, procuraremos, neste capítulo, abrir a discussão destes temas

no nosso contexto cultural contemporâneo. Para isso, será necessário compreender como se dá enunciação simbólica nestes novos meios.

Todo discurso se dá na interface de um emissor e receptor dentro de um dado espaço-tempo. Entender os mecanismos enunciativos de um computador significa entender os processos de codificação internos das mensagens neste suporte como uma das formas de mediação da comuni-cação entre emissores e receptores.

Nesse sentido, as contribuições da enunciação lingüística são, sem sombra de dúvida, lugares de partida para se pensar a enunciação midi-ática computacional, que em suas especificidades demanda a compreen-são dos mecanismos internos de codificação, enquanto suporte/ espaço do processo das comunicações virtuais mediados pelo computador.

Desse modo, um longo caminho precisou ser percorrido pelo conheci-mento humano até que as máquinas fossem aperfeiçoadas para a transmis-são de informação, dados e, posteriormente, expandidos em textos, ima-gens, sons, vídeos e outras infin-dáveis aplicações.

Um dos primeiros passos para o avanço destas técnicas certa-mente está no desenvolvimento de um sistema binário suficiente-mente eficiente para a representa-ção dos símbolos sociais. O siste-ma de notação binária representa a “linguagem universal” para a mecânica e eletrônica porque pode codificar diferentes infor-mações em um modelo reconhe-cido e computado por uma máqui-

Medalhão de Leibnitz, base de números binários em 1718.

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3.1 Enunciação na Internet: Conceitos e Aplicações

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na. O reconhecimento de que as propriedades mais importantes das ope-rações binárias eram, acima das aritméticas, as lógicas; permitiu um gran-de salto no desenvolvimento dos computadores.

Ainda que argumentemos que, em sua camada mais interna, um sis-tema de computador não seja nada além um artefato desenvolvido com o objetivo de estocar e manipular informações codificadas de maneiras con-venientes, este sistema estará sempre sujeito a uma análise semiótica. Todas suas outras camadas operam símbolos que podem ser interpreta-dos pelos diversos grupos de profissionais que os manipulam.

There are always texts that must be interpreted as statements or prescriptions

about some present or future state of the system. As we change level, the concepts

signified by the texts change. On the lower levels, the meaning of the signs are related

to the physical parts of the machine, like registers and storage cells. As we ascend, the

texts are interpreted differently, we move away from a physical interpretation, and new

software concepts appear, like run-time, stacks, heaps, and variables. A total picture of

the whole system will depict semiotic activities from the top down to the very bottom

of the system. A computer system can be seen as a complex network of signs, and

every level contains aspects that can be treated semiotically.2�

(andersen, 1992, P. 5).

Mesmo assim ainda existe um abismo entre este princípio e o que vivenciamos. É muito interessante que computadores possam calcular e operar notações binárias, mas uma outra etapa precisa ser alcançada para que eles possam processar outros níveis mais relevantes de informação. A primeira delas talvez seja a codificação dos símbolos do alfabeto, moven-do o escopo de atuação destes sistemas computacionais para o nível das palavras. Muitos modelos foram propostos até que se chegasse no padrão ASCII (American Standard Code for Information Interchange), atualmente compartilhado universalmente pela indústria de computadores e basea-do em 8 bits de informação binária.

2. Sempre há textos que precisam ser interpretados como declarações ou prescrições sobre o presente ou futuro estado do sistema. Ao trocarmos de nível, os conceitos significados pelos textos mudam. Em níveis ainda mais profundos, os sentidos dos signos estão relacionados com as partes físicas da máquina, como registradores e células de armazenagem. Ao subirmos, os textos são interpretados diferentemente, nos afastamos da interpretação física, e novos conceitos de software aparecem como runtime, pilhas, alocação de memória e variáveis. Uma representação total do sistema inteiro vai mostrar atividades semióticas do topo à base do sistema. Um computador pode ser visto como uma complexa rede funcional de símbolos que em todos os níveis possuem aspectos que podem ser tratados semioticamente.

Depois de operar palavras, foi vez das imagens começarem a entrar dentro da dinâmica dos processamentos computacionais. A digitalização e codificação binária de imagens, ao que tudo indica, tiveram origem com a necessidade e dificuldade das missões espaciais em compor imagens que pudessem ser retransmitidas por sondas até a terra. As primeiras ima-gens digitais eram compostas por duzentas linhas e cada linha compos-ta por duzentos pontos. Cada ponto desta imagem (pixels ou picture ele-ments) era gravado em um código, que os descreviam através de seqüên-cias de “zeros” e “uns”. Assim, para branco (0) tínhamos “000000” e para preto (63) “111111”. Cada figura era então constituída de quarenta mil pequenos pontos codificados em duzentos e quarenta mil (240 000) bits de código binário que era transcrito numa fita magnética quando envia-do por ondas eletromagnéticas até a terra, onde era decodificado. A títu-lo de comparação, podemos citar o fato de que, atualmente, para a com-posição destas imagens computadores pessoais processam pixels e mati-zes cromáticas na ordem dos Megabytes.

No entanto este não é o único avanço que possibilitou às imagens computacionais atingirem tal grau de complexidade. A indexação des-tes bitmaps (mapas de bits) foi também indispensável para que elas pudessem ser úteis enquanto dados manipuláveis. Inclusive, a habili-dade manipulativa trazida pela indexação provou ser etapa essencial para a explosão do cyberspace e da Internet. A expansão da rede até os principais f luxos de comunicação da sociedade, com o crescimento exponencial verificado na sua trajetória, só foi possível quando sinais de trocas eletrônicas puderam ser ao mesmo tempo mais complexos

As Primeiras Imagens Digitais: impressão das fotos da Mariner IV em números binários; Ranger VII, Imagens da Lua; Mariner IV, imagens de Marte.

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(sintetizando melhor as informações) e menos “secos” (tornando-se mais aprazes esteticamente).

A principal consideração aqui nos remete a tudo o que já foi dito anterior-mente sobre as imagens. Obviamente elas são mais “fáceis” de serem memo-rizadas e articuladas pelo raciocínio binária do que as palavras, por partirem de uma lógica analógica, embora no computador as imagens passem por uma codificação binária para ter uma expressão “analógica” na tela.

No século XVII alguns enciclopedistas já se dedicavam à tarefa de indexar as imagens dos “principais objetos” do mundo e das principais ações da vida humana (CoDognet, 2007). Os primeiros dicionários ilus-trados entendiam as imagens como ícones para todas as coisas visíveis do mundo.

Uma das técnicas que precisou ser desenvolvida, muito antes, foi o anexo de letras e de números nas imagens, os quais eram utilizados para referências dentro dos textos. Estas legendas deram origem ao que hoje conhecemos como infográficos. Ao mesmo tempo, os padres Jesuítas aperfeiçoaram suas cartilhas usando o mesmo sistema de inde-xação em inúmeros textos e publicações destinadas à evangelização. Porém, sabemos que a maior parte destas edições eram destinadas a temas como arquitetura, metalurgia, hidráulica e mecânica. As conven-ções de desenho técnico, desenvolvidas durante a Renascença, viraram o padrão destes impressos.

O alfabeto filosófico para esta enciclopédia global deveria ser um “alfabeto de imagens”, composto por clichês de impressão. Os sistemas de indexação desenvolvidos para as imagens no final da Idade Média correspondem, mesmo considerando as características peculiares a cada suporte, aos sistemas que utilizamos hoje em dia nos hiper-textos da world wide web (www).

As data have to be transmitted through some external (usually analog) medium,

a further encryption scheme (semiotic system) has to be devised and applied: the

communication protocol. The current success of the World Wide Web protocol on

the internet (http) is mainly due to its ability to manipulate images and sound in

addition to simple alphanumeric text. As humans communicate through this medium

and exchange cultural signs, some problematic issues should be raised. indeed,

the human being has to decompose himself as a collection of transmissible and

immediatly understandable signs in order to be communicable, and this drift can

be seen today in personal Web pages or electronic mail communications. The self

is mutilated and disintegrated into conventional signs, in a deeper and much more

dramatic way than oral communication.32

(Codognet, 15/04/2007).

Não nos é surpreendente que os computadores tenham passado a habi-tar o “reino das imagens” ao adicionar no cyberspace a dimensão necessá-ria a esta forma de representação simbólica. Com o passo dado em dire-ção à possibilidade de imagens computacionais, o termo “realidade vir-tual” deixa de ser um mero delírio e passa a ser cada vez mais recorren-te no senso comum. Os impactos introduzidos por este fato na organi-zação e cotidianos sociais humanos são profundos. As características da sociedade global são em grande parte devidas à integração ocorrida entre as mídias, que formam a multimídia centralizada pela Internet.

As ferramentas comunicacionais introduzidas pela nova mídia não

3. Um dado precisa ser transmitido através de um meio externo (normalmente analógico), um subseqüente esquema de encriptação (sistema semiótico) precisa ser desenvolvido e aplicado: o protocolo de comunicação. O atual sucesso do protocolo da World Wide Web na Internet (http) é principalmente devido à sua habilidade de manipular imagens e sons somados ao que era simplesmente texto alfanumérico. Seres humanos ao se comunicarem através deste meio e realizarem trocas culturais levantam alguns temas problemáticos. De fato, seres humanos precisam decompor a si mesmos como um apanhado de símbolos transmissíveis e imediatamente compreensíveis para comunicar, e esta influência pode ser vista hoje em páginas pessoais ou correspondência eletrônica. O ser é mutilado e desintegrado em signos convencionais de uma maneira ainda mais profunda e dramática do que na comunicação oral

Dicionários e Enciclopédias Ilustradas do Renascimento e do Iluminismo.

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teriam jamais tal relevante significância por si sós, pois características aparentemente novas (como a virtualidade) são a muito conhecidas e estu-dadas pelas ciências da comunicação. No entanto, a Internet, engatilhou no processo inconsciente dos arquétipos humanos uma nova perspecti-va de mundo (eletrônica e global) para as figuras e imagens coletivas. Páginas web são atrativas e repletas de informações carregadas de signi-ficado simbólico. Nossa proposta consiste em analisar a enunciação dos conteúdos simbólicos destas novas ferramentas para determinar quais os conceitos “clássicos” de comunicação que podem ser contemplados na dinâmica enunciativa deste sistema simbólico contemporâneo.

Ao pensar na relação entre os símbolos computacionais enquanto “sistemas”, ou ainda, enquanto propriedade de um grupo social e não de uma mente particular, parece não haver razão para

excluí-los do estudo semiótico tradicional apenas por apresentarem-se sob um novo suporte. Os símbolos continuam a ser nossos veículos de cognição individual, bem como os meios que utilizamos para interagir com outras pessoas e objetos.

Certamente tudo o que já foi discutido sobre a imagem, o imaginá-rio, a linguagem e a cultura até este momento do trabalho precisam novamente ser levados em conta. Inclusive o que vimos sobre a estru-tura comunicativa social, sobre os sistemas ideológicos e sobre as traje-tórias simbólicas será imprescindível para a abordagem que pretende-mos fazer neste capítulo.

Sistemas computacionais são desenvolvidos por seres humanos, para seres humanos e todas as estruturas comunicacionais desta relação pos-suirão correlatos verificáveis na nova mídia. O desenvolvimento das téc-nicas e das rotinas de programação proporcionou que muitos termos da lingüística fossem aplicados na codificação funcionais dos computado-res. Estes termos usados muitas vezes de forma até mesmo descuidada, ainda assim conservam alguns significados originais, mesmo quando aplicados às novas condições exigidas pelas características intrínsecas ao suporte.

Como exemplo ilustrativo podemos citar o emprego do termo “arqué-tipo”. Em linguagem de programação ele se refere a expressões comu-táveis entre várias linguagens, a partir de um domínio de conteúdos padrão, na forma de declarações limitadas estruturalmente por um modelo referencial. São expressos, com igual rigor, em geral para pro-porcionar maior re-utilização, embora especializados na inclusão de particularidades locais de um sistema programado. Eles acomodam quaisquer números de linguagens e terminologias necessárias. São imprescindíveis para práticas saudáveis de programação e para a inte-gração entre sistemas.

3.2 Sistemas Computacionais como Sistemas Simbólicos

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Não pretendemos aqui discorrer sobre a construção de um sistema computacional e todas as nuanças e particularidades técnicas envolvi-das nas Ciências da Computação para que um programador possa dar vida a tal estrutura. Nosso foco concentrar-se-á nas idéias elementares que precisam ser transcritas em linguagem computacional para que as máquinas possam hoje operar o f luxo comunicacional de uma fatia cada vez mais gorda do material simbólico-cultural humano.

The computational language acts as an extra channel - it has similar structural

properties to other communication means, thus, correlations of similar elements

in the structure can be established. The computer language, in essence a binary

series of logical and arithmetical operations, can be understood by contextualizing

other channels – especially, but not limited to, verbal and visual realms. We can

communicate to a computer by typing verbal commands; the verbal will become

a digital process, returned and converted to any output – verbal, visual, haptical,

sonorous or any other available.(…) The structure of the computational language

is similar to the structure of visual, verbal or any other language; a structure of

elements interacting in a composition. Elements can be arranged to work together

in a logical environment just as in the visual or verbal form.4�

(lunetta, 2005, P.23).

Lunetta ainda propõe em sua tese inter-relações entre as linguagens verbais, visuais e computacionais em diversos níveis:

A linguagem verbal, a visual e a computacional possuem estrutu-ras correlatas quando analisadas em suas “unidades” semânticas (ou semantemas), empregados em cada uma destas formas. Desse modo, temos a letra (fonética, manuscrita ou tipografada) como unidade mínima para linguagem verbal, e seus equivalentes na linguagem visual e computacional: o ponto (adimensional) e o bit (ligado ou des-ligado), respectivamente.

4. A linguagem computacional age como um canal extra – ela tem propriedades estruturais similares a outros meios de comunicação, assim, correlações de elementos em sua estrutura podem ser estabelecidas. A linguagem computacional, em essências séries binárias de operações lógicas e aritméticas, pode ser compreendida por suas contextualizações em outros canais – especialmente, mas não limitados, aos campos verbais e visuais. Podemos nos comunicar com computadores entrando comandos verbais; o verbal se transformará em processo digital, retornará e converterá em qualquer output – verbal, visual, táctil, sonoro ou outro disponível. (...) A estrutura da linguagem computacional é similar à estrutura visual, verbal ou de qualquer outra língua; elementos estruturais interagindo numa composição. Os elementos podem então ser organizados para trabalharem juntos em um ambiente lógico, bem como em sua forma verbal ou visual.

Estas unidades primárias são organizadas e agrupadas em unidades de um outro nível, que estabelecem sentidos (culturalmente “arbitrá-rios”) em um segundo nível. Letras se unem para gerar palavras; pon-tos, para gerar formas e bits para gerarem variáveis. Os semantemas des-tes níveis tornam-se conceitos sintetizados, rotulações para as quais significados são atribuídos. Assim, surge o terceiro nível, encadeando as unidades concebidas no nível anterior, os sujeitos sociais tecem uma rede que expressa idéias em sentenças (linguagem verbal), composições (linguagem visual) e códigos (linguagem computacional). Cada um des-tes últimos níveis semânticos cria equivalentes instâncias lingüísticas cuja função simbólica é geral para o ser humano.

Para criar e recriar então sistemas simbólicos e sociais dentro de uma máquina, um programador estará cercado dos dilemas pertinen-tes às escolhas simbólicas em sua rotina produtiva. A dualidade dos símbolos não cessa jamais. Apesar de sua representação em um con-texto computacional, onde toda imagem depende na base de sua cons-trução de um input binário que lhe codifique, esta característica ambí-gua permanece evidente. Num suporte lógico-matemático, onde só existe a possibilidade de “A” ou “B” serem verdadeiros, as imagens con-tinuam dúbias nos significados atribuídos subjetivamente pelos usuá-rios em seus outputs.

Although systems designers may not be van Gogh’s, they are faced with similar

problems when building systems: should we base our system on a metaphor that

users understand in order to ensure understandability, but running the risk of

constructing a system that really do not give users new opportunities, or should we

invent new ways of doing and looking at things, risking that nobody will understand

it? in fact, it is possible to stretch the analogy even further: it is not only sculptors

that give form to substance. Designers and programmers of computer systems do

LinguagemVerbaL

LinguagemVisuaL

Linguagem ComputaCionaL

Representação verbal dos fatos

Representação visual dos fatos

Representação lógica dos fatos

letra Ponto Bit

Palavra Forma Objeto/ variável

Sentença Composição Código

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ge

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1

MiTOS COnTEMPORânEOS84 SEMióTiCA nA inTERnET E COnTEMPORAnEiDADE 85

the same thing, only the substance they mould does not consist of stone but of

program executions (viz. sequences of system states), and the tools they use to

shape the substance are not chisels but programming environments.52

(andersen, 1992, P. 11).

A partir desta constatação podemos avançar na compreensão da “subs-tância” utilizada pela computação para estas criações e operações simbó-licas novas. A seqüência de estados de uma variável em um programa é a trajetória semiótica deste símbolo dentro do sistema, passeando entre o código que o constitui e as instâncias (verbais ou visuais) na sua interfa-ce com o usuário. As linguagens empregadas para constituir os sistemas precisarão tanto dar conta das suas relações internas no código, quanto das relações que estabelecerão com aqueles que as utilizarão. Ao satisfa-zer isso, um sistema computacional dá vazão a uma ideologia que cons-titui o ambiente virtual particular constituído por um código. O código aplicado se torna um ambiente onde os objetos obedecem a regras lógi-cas totalmente descritas dentro da programação e alteráveis de acordo com as necessidades daquele que o gerou.

O ambiente virtual – ao qual todos os objetos (ou variáveis) do sistema computacional obedecem – se torna ainda mais complexo quando nos apro-fundamos na nova relação que o usuário (sujeito social) estabelece com este meio. Quando um sujeito consegue objetivar sua presença dentro de um sistema ele passa a compartilhar uma realidade com os demais símbolos e os parâmetros e atributos designados para as variáveis desta realidade vir-tual. Depois que um usuário consegue ultrapassar esta primeira barreira (entrar no sistema), ele pode executar ações com as novas ferramentas que lhe ficam disponíveis. A aplicabilidade dos computadores se expandiu monstruosamente, incorporando símbolos de diferentes domínios e viabi-lizando operações em volumes de informação cada vez maiores.

A acumulação de ferramentas e aplicativos possibilitou na década de 90 a popularização da Internet e dos computadores pessoais. A principal

5. Embora designers de sistemas não sejam “van Goghs”, eles enfrentam problemas similares quando constroem sistemas: devemos nos basear em uma metáfora que usuários entendem para assegurar a compreensão, mas correndo o risco de construir um sistema que não abre novas oportunidades reais, ou devemos inventar novas maneiras de fazer e olhar as coisas, arriscando que ninguém entenda isso? De fato, é possível alongar a analogia ainda além: não apenas escultores dão forma à substância. Designers e programadores de sistemas computacionais fazem a mesma coisa, apenas a substância que moldam não consiste de pedra, mas sim execuções programáticas (a saber, seqüências de estados de um sistema), e as ferramentas que usam para dar forma à substância não são cinzéis, mas ambientes de programação

diferença deste novo suporte é que além dos meios de produção simbóli-ca serem intrínsecos a ele, foi aberto um canal de emissão comunicativa gigantesco, limitada em tese apenas pela postura ativa, que é necessária ao usuário que busca e disponibiliza a informação na rede. Uma vez que a dinâmica enunciativo-receptiva das informações neste novo meio é mui-to mais veloz, os sujeitos podem trocar papéis e atuar de maneira muito mais livre. Na emissão, pela liberdade daquilo que se tem espaço e pro-teção para expressar; e na recepção, pela liberdade daquilo que se esco-lhe para contemplar e interpretar.

Computational devices became a medium, with an important difference from other

known media – they allow direct feedback and participation from the audience. The

concepts of broadcaster and viewer got blurred, since one can become the other after

few keystrokes.63

(lunetta, 2005, P. 18).

A relatividade que se apresenta, advinda da coexistência de realidades parciais provenientes das diversas fontes de informação aceitas pela Internet, contradiz muitas vezes as próprias ideologias capitalistas, cienti-ficistas e patriarcais no sujeito social contemporâneo. No instante que o mundo computacional abre a possibilidade do sujeito definir e calibrar seus próprios atributos, suas personas (ou avatares) podem passear livres da necessidade de coerência com o senso comum, e sem coerção alguma por tal atitude. Isso tudo aliado com a possibilidade do anonimato e a coexis-tência de diferentes domínios e sistemas simbólicos na rede abre espaço para que se tenha a vivência desta pluralidade de realidades conscientes.

O ego se vê fragmentado em benefício das trocas econômicas e cultu-rais potencializadas pelo contexto global de atuação destes símbolos vir-tuais. O simulacro poderoso da realidade virtual, que interage com a ver-dade empírica e o espaço mecanicista (ainda tão presente nas massas), nos presenteia com as novas ferramentas comunicacionais das institui-ções midiáticas, desenvolvidas através de avanços tecnológicos e criando ilusões (illud tempus) muito próximas daquelas que concebíamos até a pouco como “arcaicas”.

6. Aparatos computacionais se tornaram um meio, com uma importante diferença das outras mídias conhecidas – eles permitem feedback direto e participação da audiência. Os conceitos de difusor e espectador são embaçados, uma vez que um pode se tornar o outro depois de poucos comandos no teclado.

MiTOS COnTEMPORânEOS86 SEMióTiCA nA inTERnET E COnTEMPORAnEiDADE 87

A Internet é o local onde se dá a maior vazão de símbolos através dos novos sistemas semióticos que se proliferam no mundo virtual e que pos-suem sua dimensão real no processo de re-tribalização que vivenciamos em nossa sociedade, sobretudo nas grandes metrópoles, e que discutiremos no próximo tópico.

Afim de entender estes novos sistemas simbólicos na sociedade pre-cisaremos verificar quais as instituições que os introduziram nes-ta escala global de consumo. Sabemos que, caso a tecnologia com-

putacional ficasse restrita a pequenos grupos, não poderíamos verificar tamanha pluralidade de sistemas. Foi com a popularização de computa-dores pessoais, consoles de jogos eletrônicos e de aparelhos hi-tech que expandiram as possibilidades dos sistemas simbólicos computacionais.

O contexto da produção em massa destas máquinas faz parte de uma dinâmica econômico-social ampla. Inicialmente utilizados com finalida-des militares, muito rapidamente os computadores passaram para o ambiente corporativo. E assim sucessivamente, até que os avanços na miniaturização e barateamento dos custos dos componentes eletrônicos abrissem espaço para computadores pessoais, laptops e toda a gama que hoje temos de produtos multifuncionais.

Entendemos que qualquer aparato computacional e comunicacional é em sua essência um produto cultural. O processo material de sua produ-ção se insere no contexto das instituições corporativas, que por sua vez compartilham da ideologia e dos símbolos do capitalismo em todos os níveis semióticos. É a gênese do que hoje entendemos por era pós-indus-trial, cujas tendências são agrupadas sob o nome de pós-modernismo.

As formas da publicidade e da propaganda neste ambiente atuam contexto materializando as imagens e símbolos do sistema capitalista em seu presente estágio, que se expandiu especialmente após o final da Guerra-Fria contra o sistema comunista soviético. Além de informar sobre os produtos à disposição dos consumidores, ela se estabelece como um gênero híbrido na medida em que se faz presente em todos os espaços da produção cultural sob as mais diferentes formas.

A propaganda, como já indicou Mattelart (1989, p. 139-162), está pre-sente no mundo midiático, nas artes, nos esportes e por todo nosso coti-diano: publireportagens, publicidade em programas, testemunhais, mer-chandising, patrocínios, promoções, licenciamento de personagens de ficção para estes fins (spin off), embalagens, e mais recentemente os web-

3.3 O Contexto Mercadológico, Pós-Industrial e Global

MiTOS COnTEMPORânEOS88 SEMióTiCA nA inTERnET E COnTEMPORAnEiDADE 89

sites com suas funcionalidades e jogos eletrônicos disponíveis gratuita-mente na Internet. A publicidade (com a liberdade do discurso ficcional que substituiu as narrativas mitológicas) cria realidades que cercam os indivíduos, submetendo-os a um bombardeio de símbolos do mercado globalizado, tanto nos espaços coletivos como nos privados.

A linguagem e os símbolos de mercado espalham-se pelo mundo acom-panhando sua dinâmica evolutiva. Ela invade praticamente todos os círculos de relações sociais. Isso universaliza determinados modos de falar, codificar, pensar. Cria-se uma espécie de língua franca universal, econômica, racional, moderna, prática, pragmática e telemática. Este processo de globalização pro-movido pela publicidade, também descrito por Ianni (2000, p. 219), mundia-liza signos e símbolos, logotipos e slogans, qualificativos e estigmas.

(...) essa atividade profissional sempre acompanhou e foi propulsora do processo

de expansão da economia em escala global. Registra-se desde o Século XiX a atuação

de agências de publicidade inglesas, americanas e francesas em mercados outros,

além dos limites de seus países de origem. Tais ações iniciam o processo de definição

da política geoestratégica das redes mundiais de publicidade que se torna mais nítido

a partir de meados da década de 80.

(trindade in BarBosa, 2005, P. 87).

Apoiada na ideologia do discurso competente, a publicidade coloca-se como modelo da representação deôntica (dever-ser) dos indivíduos con-temporâneos (trInDaDe in BarBosa, 2005, p. 90). Atuam no universo sim-bólico, no imaginário, por meio de caricaturas e estereótipos construídos sob o que se entende falaciosamente como consenso e padrão mundial. Estabelecem-se valores padronizados de beleza, juventude, profissiona-lismo, de gêneros, tudo de acordo com o tempo e espaço do público-alvo idealizado nas enunciações das mensagens mercadológicas. Estes padrões, por sua vez, contradizem os valores culturais dos grupos humanos que são dominados, cheios de ressentimentos (resultantes dos conflitos cria-dos pela expansão e dominação econômicas), neste processo.

Todos os sistemas simbólicos em suas vidas buscam igualmente o cres-cimento. Assim, as corporações e empresas aumentaram seu poder sim-bólico a ponto de ultrapassarem os próprios Estados-Nacionais na influ-ência que exercem sobre os meios de produção cultural da pós-moderni-dade, ou modernidade-mundo, como preferem alguns autores como Ianni (2000), considerando a atualidade fruto da ampla difusão do modelo euro-

peu e americano no que tange a política, a economia e cultura imposta às outras sociedades do planeta. As ideologias corporativas trazem novos valores sobre o sagrado e o profano contemporâneos.

(…) media and retail companies have inflated to such bloated proportions that simple

decisions about what items to stock in a store or what kind of cultural product to commission

– decisions quite properly left to the discretion of business owners and culture makers – now

have enormous consequences: those who make choices have the power to reengineer the

cultural landscape. When magazines are pulled from Wal-Mart’s shelves by store managers,

when cover art is changed on CDs to make them Kmart-friendly, or when movies are refused

by Blockbuster video because they don’t conform to the chain’s “family entertainment” image,

these private decisions send waves through the culture industries, affecting not just what is

readily available at the local big box but what gets produced in the first place.7�

(Klein, 2002, P. 166).

A atuação padronizadora destas instituições e mercadorias em todos os can-tos do planeta onde o capitalismo global chega; vai fundamentada no ideário de progresso, de evolução e de poder de consumo, compreendidos consensu-almente como indicadores da qualidade de vida de uma população. Quanto mais atuante um sujeito-consumidor é, mais ele estará bem inserido no uni-verso da cultura mundializada. Isso influencia em absoluto o modo de ser das pessoas, ditando hábitos comportamentais através do consumo de bens (mate-riais e, sobretudo, simbólicos). O poder econômico das grandes corporações que é capaz de intervir por melhores preços de fornecedores, começa a atuar também censurando a própria produção cultural, garantindo o predomínio do sistema capitalista em detrimento dos demais com que compete.

(...) if not always the original intent, advanced branding is to nudge the hosting

culture into the background and make the brand the star. it is not to sponsor culture

but to be the culture.82

(Klein, 2002, P. 30).

7. As empresas de mídia e varejistas inflaram a tais proporções que simples decisões, como quais produtos estocar em uma loja, ou qual tipo de produto cultural comissionar – decisões antes próprias da discrição de homens de negócio e produtores culturais – agora têm enormes conseqüências: aqueles que fazem decisões têm poder de remontar a paisagem cultural. Quando revistas são tiradas das prateleiras do Wal-Mart por gerentes de lojas, quando capas de CD’s são modificadas para contemplar a imagem de “entretenimento familiar” da rede, estas decisões privadas mandam ondas para a indústria cultural, afetando não apenas o que está disponível, mas o que é produzido em primeiro plano.8. (...) se não sempre o intento original, o branding avançado carrega a cultura hospedeira para o plano de fundo e transforma a marca na estrela. Não para patrocinar cultura, mas para ser cultura.

MiTOS COnTEMPORânEOS90 SEMióTiCA nA inTERnET E COnTEMPORAnEiDADE 91

Assim, o que muitos chamam de pós-modernidade é o resultado do processo histórico percorrido pelo sistema capitalista, que passou pela modernidade baseada na razão Iluminista quando se deu a for-mação da sociedade burguesa. Antes pautado na organização políti-ca dos Estados-Nacionais, o sistema capitalista, pela sua convenien-te expansão econômica, acabou por enfraquecê-los, determinando novas formas de perceber a relação entre os indivíduos e entre seus espaços e tempos.

A categoria espaço ganha um caráter de não-lugar, assim como o tempo assume uma certa atemporalidade (trInDaDe in BarBosa,

2005, p. 90), decorrentes do fato de que os produtos deste sistema glo-bal têm suas matrizes de matérias-prima de origens distintas, cada parte do processo acontece em um local, assim como os serviços de empresas multinacionais que atuam, através de funcionários e escri-tórios, em suas várias instâncias no mundo.

Dessa forma, a única coisa que permanece intacta nesses bens de consumo

mundiais é a determinação do valor simbólico dado pela marca, que pode ter uma

origem nacional, mas que, pela sua ampla utilização mundial, passa a ser um

patrimônio universal, sem pátria e ao mesmo tempo pertencente a todos os lugares.

É a contradição dos lugares e não-lugares da atual modernidade.

(trindade in BarBosa, 2005, P. 92).

A coexistência e simbiose de valores, hábitos e costumes locais e nacionais muitas vezes contraditórios é um dos elementos mais rele-vantes nesta análise. Isso gera a tendência, bastante acentuada nos últi-mos anos, da incansável busca das empresas por identidades corpora-tivas apoiadas na idéia de diversidade, seja ela cultural, comportamen-tal ou qualquer outra. Os conceitos que constituem as identidades empresariais são elaborados, em situações ideais, a partir de pesquisas de opinião e dados mercadológicos, que buscam afinar a comunicação empresarial com as vontades, os desejos e as necessidades dos públi-cos a que se destinam.

(…) consumer companies would only survive if they built corporate empires

around “brand identities”. (…) So, of course, if the market researchers and cool

hunters all reported that diversity was the key character trait of this lucrative

demographic, there was only one thing to be done: every forward-thinking

corporation would have to adopt variations on the theme of diversity as their

brand identities.93

(Klein, 2002, P. 112).

O sonho de diversidade em alguns critérios se verifica quando pensa-mos nas grandes metrópoles. Estes espaços mundiais são encontrados em cidades como Hong-Kong, São Paulo, Paris, Nova York, Tókio, Nova Deli, Frankfurt, Londres, Singapura, Cidade do México e tantas outras que poderiam aqui se encaixar. Estes aglomerados urbanos são os territórios conquistados pela “mundialidade” que coexiste com os territórios de expressão nacionais e regionais excluídos pela globalização.

Outro espaço importantíssimo onde a mundialização dos símbolos acontece é o espaço virtual. Lá ela encontra a situação ótima para o seu desenvolvimento:

To see the birthplace of this kind of brand ambition, you have to go online,

where there was never really any presence of a wall existing between editorial and

9. (…) empresa de bens de consumo apenas sobreviveriam se construíssem seus impérios corporativos em torno de “identidades de marca”. (...) Então, obviamente, se todos os pesquisadores de mercado e caçadores de tendência atestam que diversidade é a característica chave para o trato deste contingente demográfico lucrativo, havia apenas uma coisa a ser feita: qualquer corporação que pensasse olhando para o futuro adotaria variações sobre o tema da diversidade em suas identidades corporativas.

Anúncios Publicitários Externos em Metrópoles: Nova Iorque, Tóquio, São Paulo e Londres.

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advertisement. On the web, marketing language reached its nirvana: the ad-free ad.

For the most part, the online version of media outlets feature straightforward banner

ads similar to their paper or broadcast versions, but many media outlets have also used

the net to blur the line between editorial and advertising much more aggressively than

they could in the non-virtual world.�04

(Klein, 2002, P. 42).

A ausência de barreiras no que concerne autenticidade, autoridade, e par-cialidade informativa abre espaço para enunciações publicitárias inovadoras, condensando diversas técnicas e subterfúgios, que buscam eficiência merca-dológica a partir das possibilidades dos trazidas pelos novos suportes.

Entre elas, podemos citar, como exemplo, o que se compreende atual-mente como marketing viral: uma estratégia de marketing que busca a divul-gação de espaços da rede por meio da participação voluntária de usuários que querem compartilhar uma informação. Lançando mão destas e muitas outras estratégias mercadológicas como os teasers, promoções de curta dura-ção, jogos online especialmente desenvolvidos, e outras menos ortodoxas como os hoaxes e ARG’s (Alternate Reality Games); as empresas atraem con-sumidores e anunciam seus produtos. O que fica claro é que as empresas não estão apenas vendendo seus produtos online; elas estão vendendo um novo modelo de relacionamento das pessoas com a mídia. Através do patro-cínio de entretenimento, produção cultural e apoio corporativo, associam-se aos materiais simbólicos e culturais produzidos e que são considerados relevantes para suas ambições e metas corporativas.

�0. Para ver o local de nascimento desta ambição corporativa, é preciso ir online, onde nunca realmente ouve a presença de uma barreira entre o editorial e o publicitário. Na web, a linguagem de mercado alcança seu nirvana: publicidade gratuita da publicidade. Para a maior parte dos casos, a versão online das lojas se apresentam de maneiras similares a suas versões impressas ou televisivas, mas muitos estabelecimentos virtuais também usaram a rede para desfocar o limite entre editoriais e publicidades muito mais agressivamente do que poderiam fazê-lo no mundo não-virtual.

Como a imagem sempre foi desvalorizada como linguagem científica para explicar o mundo, ela ainda não inquietava a consciência moral do Ocidente que se acreditava vacinado por seu iconoclasmo endêmico. A

produção obsessiva de imagens encontrava-se delimitada ao campo do “distrair”. Todavia, as difusoras de imagens – digamos as “mídias” – encontram-se onipresen-tes em todos os níveis de representação do homem ocidental ou ocidentalizado.

A imagem midiática está presente desde o berço até o túmulo, ditando as intenções de produtores anônimos ou ocultos: no despertar pedagógico da criança, nas escolhas econômicas e profissionais do adolescente, nas escolhas tipológicas (de aparência) de cada pessoa, até nos usos e costumes públicos e privados, às vezes como informação, às vezes velando a ideologia de uma pro-paganda, e noutras escondendo-se através de uma publicidade sedutora. A importância da manipulação icônica (relativa à imagem), todavia, não inquie-ta. É dela que dependem todas as outras valorizações – das escolhas feitas nos experimentos de “manipulações e melhoras” genéticas e nas cirurgias plásti-cas cosméticas, inclusive.

A diferença entre produto e marca neste sentido é fundamental. Produto é algo produzido em uma fábrica; uma marca é algo comprado por um con-sumidor. Máquinas quebram, carros enferrujam, pessoas morrem, o que sobrevive ao tempo no capitalismo são as marcas, os símbolos que compre-endem a fatia mais grossa dos patrimônios corporativos da atualidade.

What was crystallized in those moments when pop culture bridged the wartime

divide, however, was that even if there exists no other cultural, political or linguistic

common ground, Western media have made good on the promise of introducing the first

truly global lexicon of imagery, music and icons. if we agree on nothing else, virtually

everyone knows that Michael Jordan is the best basketball player that ever lived.���

(Klein, 2002, P. 175).

��. O que ficou cristalizado nestes momentos em que a cultura pop conectou o que tempos de guerra dividiram, no entanto, foi que mesmo que não existisse outro arcabouço cultural, político ou lingüístico comum, a mídia Ocidental tem cumprido a promessa de introduzir o primeiro léxico global para o imaginário, a música e os ícones. Se não concordarmos em mais nada, virtualmente todos sabem que Michael Jordan é o maior jogador de basquete que jamais existiu.

3.4O Sagrado Corporativo: Ícones e Imaginário na Contemporaneidade

MiTOS COnTEMPORânEOS94 SEMióTiCA nA inTERnET E COnTEMPORAnEiDADE 95

Como já vimos no principio de nosso estudo, imagens arquetípi-cas estão plenamente relacionadas com a satisfação de nossos dese-jos e pulsões inconscientes. Assim, quando as empresas criam siste-mas de imagens próprios, virtualmente globais, que procuram esta-belecer ideologia, verdade e sistemas, interdependentes ainda que particulares, para cada corporação; isso cria necessariamente um gru-po “global” de indivíduos que compartilham símbolos e isto abarca todos aqueles que podem ser identificados enquanto consumidores por estas instituições.

A verdade absoluta, o total determinismo, abandonado mesmo pela ciência, se fragmenta em verdades particulares convenientes à vida cotidiana e ao público-alvo. Aqui é que se desenha bem a estrutura mitológica contemporânea. Cada território, real ou simbólico, segre-ga arbitrariamente seu modo de representação e sua prática lingüísti-ca: “Cujus regio, ejus religio” (Cujo rei, sua religião). Donde surge esta babelização em potencial, termo cuja práxis procura negar o espectro da globalização.

En fait, il y a bien des uniformisations mondiales : économiques, musicales,

consommatoires, mais il faut s’interroger sur leur véritable prégnance. Et se demander

si la véritable efficace n’est pas à chercher du côté des mythes tribaux et de leur aspect

existentiel. la communication en réseaux, dont internet est une bonne illustration,

forcerait ainsi, à repenser en ce sens, pour la postmodernité, «l’universel concret» de

la philosophie hégélienne.�22

(MaFFesoli, 2007, P. 2).

As instituições sociais se tornam cada vez mais abstratas, imateriais e dinâmicas, não têm mais a exigência de uma existência física, real e singu-lar; a virtualidade dá conta de suas funções sociais. Donde emerge o neo-tribalismo pós-moderno que se edifica devido à falta de solidariedade e pro-teção (evidenciadas com a perda de poder dos Estados-Nacionais), que caracterizam as sociedades contemporâneas. No ambiente das megalópo-les “selva de pedra”, as tribos executam os papéis que lhe são próprios.

�2. De fato, existem uniformizações mundiais: econômicas, musicais, de consumo, mas isto nos faz interrogar sua real pregnância. Interroga-se se sua eficácia verdadeira não está em buscar a perspectiva dos mitos tribais e de seus aspectos existenciais. A comunicação em redes, da qual a Internet é uma boa ilustração, forçará assim, a repensar neste sentido o “concreto universal” da filosofia hegeliana para a pós-modernidade.

Ainsi, il est frappant de voir que les diverses institutions ne sont plus ni contestées

ni défendues. Elles sont tout simplement «mitées», et servent de niches à des micro

entités fondées sur le choix et l’affinité. Affinités électives que l’on retrouve au sein

des partis, des universités, syndicats et autres organisations formelles, et fonctionnant

selon les règles de solidarité d’une franc-maçonnerie généralisée. Et ce, bien sûr,

pour le meilleur et pour le pire. Tribus religieuses, sexuelles, culturelles, sportives,

musicales, leur nombre est infini, leur structure est identique : entraide, partage du

sentiment, ambiance affectuelle. Et l’on peut supposer qu’une telle fragmentation de

la vie sociale soit appelée à se développer d’une manière exponentielle, constituant

ainsi une nébuleuse insaisissable n’ayant ni centre précis, ni périphéries discernables.

Ce qui engendre une socialité fondée sur la concaténation de marginalités dont aucune

n’est plus importante qu’une autre.�33

(MaFFesoli, 2007, P. 1).

Ao serem mitificadas, estas instituições corporativas executam o importante papel de criar as imagens que vão satisfazer a necessidades destas neotribos; que por sua vez escolhem, dentre a variedade de siste-mas disponíveis no mercado, aquelas que melhor lhe identificam e satis-fazem simbolicamente. Esta conexão não é guiada pela imagem que a marca tem na cultura, mas pelo profundo significado psicológico e sócio-cultural que o consumidor guarda sobre a marca durante seu processo de significação e identificação pessoal.

Como exemplo temos o emblemático caso da Nike. Desde que ela se tornou líder em vendas de roupas identificadas por marca, ou brand clo-thing (KleIn, 2002, p. 56), não é surpresa que isso tenha levado às últimas conseqüências por algumas pessoas: a marca na carne. Não apenas deze-nas de funcionários da Nike têm o swoosh tatuado, como em toda a América do Norte este símbolo se tornou um dos símbolos mais popula-res para estes fins.

�3. Assim, é notável perceber que as diversas instituições não são mais contestadas ou defendidas. Elas são apenas “mitificadas” e servem de nichos às micro-entidades criadas de acordo com o acaso e afinidades. Afinidades eletivas que nos remonta aos partidos, universidades, sindicatos e outras organizações formais, que funcionam segundo as regras de solidariedade de uma franco-maçonaria generalizada. E é assim pelo melhor ou pelo pior. Tribos religiosas, sexuais, culturais, esportivas, musicais, seus nomes são infinitos, suas estruturas são idênticas: iniciação, partilha de sentimentos, ambiente afetivo. E pode-se supor que uma tal fragmentação da vida social seja impelida a se desenvolver exponencialmente, constituindo assim uma inalienável nébula que não possui nem centro preciso, nem periferias discerníveis. Isto forma uma sociedade uma sociedade fundada na concatenização de marginalidades onde nenhuma é mais importante que outra.

MiTOS COnTEMPORânEOS96 SEMióTiCA nA inTERnET E COnTEMPORAnEiDADE 97

outras. Ainda mais viáveis financei-ramente para o crescimento dos sis-temas simbólicos do que os templos físicos, ainda existem os templos e espaços virtuais construídos e dis-poníveis na rede.

Para entender finalmente como se processam os mitos corporativos, precisamos pensar no significante do mito enquanto totalizador de sentido e forma, não esquecer de sua ambigüidade e reagir de acordo com o seu mecanismo cultural constitu-tivo. Precisamos compreender a dinâmica própria dos contextos mitológicos. Para nos tornarmos lei-tores mitológicos eficientes, precisa-mos vivê-los simultaneamente como uma história verdadeira e irreal. Precisamos aceitar e pensar sobre como acolhemos os mitos que identificam nós mesmos, porque em qual-quer outro caso a intenção do mito será demasiado obscura para que seja eficaz, ou demasiado clara para que se acredite nele.

O mito nada esconde ou ostenta: deforma. O mito não é uma mentira nem uma confissão: é uma inflexão. Ele aparece para firmar o compro-misso de um grupo, ele é o próprio compromisso: encarregado de trans-mitir um conceito intencional, o mito só tropeça nos limites meta-lingü-ísticos, porque a linguagem ou lhe eclipsa em uma metáfora, ou lhe des-mascara. A elaboração do sistema semiológico segundo a que nos refere Barthes em sua obra Mitologias (1993), é o que permite que o mito escape a este dilema, naturalizando-o.

Este é o princípio do mito: transformar a história em natureza. Compreendemos assim por que, aos olhos dos consumidores de mitos, a intenção, o apelo dirigido ao homem pelo conceito, pode ser manifesto sem parecer interessado. O que se faz com o que a fala mítica profere é perfeitamente explícito, mas automaticamente petrificado de naturalida-de; não é lido como hipótese, é tomado como razão. Tudo se passa quan-do acatamos um sistema simbólico como se a imagem arquetípica provo-

The idea of harnessing sport shoe technology to create a superior being – of Michael

Jordan flying through the air in suspended animation – was nike mythmaking at work.

These commercials were the first rock videos about sports and they created something

entirely new. As Michael Jordan says, “What Phil [Knight] and nike have done is turn

me into a dream”.�44

(Klein, 2002, P. 52).

Utilizando estes heróis (vindos da indústria esportiva, cinematográfi-ca, da telenovela ou da animação, preferencialmente) os enunciados con-tidos nas publicidades reproduzem seus valores através de todas as mídias quantas consigam articular.

Da necessidade de articular mídias para um maior impacto comunica-tivo, surgem os “templos corporativos”. Virtualmente todas as empresas de bens de consumo e entretenimento que vinham construindo a ima-gem de suas marcas através do marketing, da sinergia entre mídias e de patrocínios, agora procuram edificar suas próprias lojas de marca. Para estas companhias, lojas multi-marcas tornaram-se antiéticas segundo os cada vez mais estritos princípios de gerência de marca. São os casos de corporações como Nike, Diesel, McDonald’s, Virgin, Disney e tantas

�4. A idéia de encaminhar a tecnologia de calçados esportivos para a criação de um ser superior – de Michael Jordan voando suspenso no ar por animação – é a gênese mitológica da Nike trabalhando. Estes comerciais foram os primeiros vídeos de impacto sobre esportes e eles criaram algo inteiramente novo. Como Michael Jordan disse: “O que Phil [Knight] e a Nike fizeram foi transformar-me em um sonho.

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Tatuagens Corporativas: Warner Bros., Mizuno, Nike e Apple.im

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Templos de Corporativos: Nike Town em Berlin e Virgin Mega Store em Londres.

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casse naturalmente o conceito, como se o significante criasse o significa-do: o mito é uma fala excessivamente justificada socialmente.

Uma análise mitológica não aumentará absolutamente sua potência ou fracasso: o mito é simultaneamente imperfectível e indiscutível. A natu-ralização de conceitos, uma das funções essenciais dos mitos, a partir de uma causalidade artificial e metafórica dá conta de sustentar sua fala ino-cente. E não porque suas intenções estejam ocultas, se estivessem os mitos não seriam eficazes.

O que permite a um leitor absorver um mito inocentemente é o fato de não se perceber nele um sistema semiológico (sistema de valores), mas sim um sistema indutivo: onde existe apenas uma equivalência. Ele vê uma espécie de rede de processos causais: o significante e o significado têm relações naturais e não políticas, sociais, etc. A semiótica vê a mito-logia diferentemente do que a vê o consumidor de mitos, este a enxerga como um sistema factual a lhe explicar convincentemente a natureza das coisas do mundo, a semiótica observa os elementos simbólicos que cons-tituem o discurso, bem como suas inter-relações, instrumentais lingüís-ticos, suportes.

Com estas últimas elucidações, fornecidas pelo estudo de Barthes, per-cebemos finalmente que na contemporaneidade o consumo assume a fun-ção do sagrado, uma vez que é ele quem satisfaz as necessidades irracio-nais do homem. Na mesma medida, ocorre a sacralização das mercado-rias. O mito de outrora, apoiado na Ciência, Arte e Religião, hoje migra e apóia-se no consumo e na Indústria Cultural para disseminar seus sím-bolos e valores socialmente.

A realidade virtual é uma tecnologia que permite a um usuário inte-ragir com um ambiente simulado por computador, seja verossí-mil ou fantástico. A maioria dos ambientes de realidade virtual

são experiências ainda primárias, apresentadas por de meio telas de com-putadores. No entanto, algumas simulações incluem ainda outras infor-mações sensoriais, como o som através de microfones e head-phones (que isolam o sujeito acusticamente).

Algumas ainda mais avançadas incluem dispositivos muito mais sensí-veis ao tato. Usuários podem interagir com um ambiente virtual tanto atra-vés do uso de periféricos convencionais como teclado e mouse, ou aparelhos mais recentes como joysticks, tablets e luvas com sensores entre outros. Os ambientes simulados podem ser verossímeis ao mundo real como, por exem-plo, simulações para pilotos e treinamentos de combate, ou diferir dele em absoluto, como nos jogos para entretenimento. Na prática, ainda é muito difícil criar experiências virtuais de alta fidedignidade com a realidade físi-ca, principalmente em função das limitações técnicas no poder de proces-samento necessário para gerar estes sistemas, na resolução das imagens e na banda de comunicação que não comportam tal volume de dados. Mas já é esperado que estas limitações técnicas sejam eventualmente ultrapassadas conforme as tecnologias amadureçam em seu contexto produtivo, tornan-do-se mais poderosas e viáveis financeiramente com o passar dos anos.

Com os atuais limites tecnológicos, a visão e a audição são os dois sen-tidos melhores empregados nas simulações consideradas de alta qualidade. Embora existam esforços no sentido de simular cheiros e gostos fisicamen-te através de cápsulas que os produzam quimicamente, estes experimen-tos tendem a serem inviáveis na medida em que se aumenta a gama e com-plexidade de fragrâncias a serem simuladas (perfumes, por exemplo).

Desse modo, os pesquisadores buscam, objetivando simulações mais convincentes e reais, acumular seus esforços para conseguirem um meio de manipular os sentidos e sensações através de aparatos que atuem dire-tamente no cérebro humano, órgão responsável pela organização e atri-buição de relações entre os símbolos culturais.

3.5 Realidades Virtuais e Rituais Xamânicos

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Em Sete de Abril de 2005, a Sony veio a público com a informação de que entrou com o pedido de patente para a idéia de um aparelho que gera-ria diferentes freqüências e padrões ondulatórios ultra-sônicos que viriam a recriar satisfatoriamente os cinco sentidos15,1de maneira parecida com aquela ficcionalmente representada na trilogia Matrix. Embora a empre-sa não tenha conduzido ainda nenhum teste e isso seja apenas uma idéia, pesquisas neurológicas e psiquiátricas têm mostrado que isso será possí-vel em breve com o avanço tecnológico. Muitos falam que esta seria a últi-ma invenção humana, quando simulações excelentes se tornassem bara-tas e populares ninguém ousaria abandonar as ilusões “perfeitas” que elas nos possibilitariam.

Tudo ainda é muito incipiente, mas pensar em tal possibilidade de vir-tualidade pelo viés das Ciências da Comunicação nos leva ao campo aber-to do imaginário comum, dos sonhos, dos mitos e das imagens arquetí-picas. Tal virtualidade ótima seria como um “portal dimensional” por onde o consciente visitaria o inconsciente prazerosamente, satisfazendo todos os desejos e necessidades do ego quantas este pudesse desejar; sejam elas de cura psicológica ou de natureza hedonista. A experiência mágica que seria proporcionada por tais aparelhos é a que associamos compara-tivamente com a experiência de um ritual xamânico:

(...) é necessário ver nas condutas mágicas a resposta à uma situação que se

revela à consciência por manifestações afetivas, mas cuja natureza profunda é

intelectual. Pois sozinha, a história da função simbólica permitiria a explicação desta

condição intelectual do homem, de que o universo não significa jamais o bastante, e

que o pensamento dispõe sempre de demasiadas significações para a quantidade de

objetos nos quais ele pode enganchá-las. Dilacerado entre esses dois sistemas de

�5. Times Online, http://www.timesonline.co.uk/tol/news/uk/article378077.ece em 22/04/2007.

Luva com sensores de movimentos e experiências de realidade virtual.

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referência, o do significante e o do significado, o homem exige ao pensamento mágico

que lhe forneça um novo sistema de referência, no seio do qual os dados até então

contraditórios possam se integrar.

(lévi-strauss, 1996, P. 212).

Quando pensamos o que as realidades virtuais representam em um contex-to semiótico e antropológico contemporâneo (neotribal, globalizado, pós-indus-trial, pós-moderno, modernidade-mundo, etc.), veremos que elas se encaixam estruturalmente com as experiências xamânicas das sociedades tribais indíge-nas, que Lévi-Strauss nos descreve em sua obra Antropologia Estrutural (1996).

Seja pela administração de substâncias que induzem a estados alterados de consciência (hoasca, cogumelos, L.S.D., peyote, etc.), outros remédios, ou quaisquer outras formas de práticas intoxicantes (jejuns, redução de oxige-nação sangüínea através de mantras ou cânticos, privação de movimento cor-poral, exaustão por vigília e mesmo auto-flagelação); os rituais em geral não falham em simular satisfatoriamente realidades simbólicas e mitológicas que identificam grupos humanos. A partir de ambos (virtualidade computacio-nal ótima e práticas que agrupamos sob o frágil nome de “xamânicas”) seria possível vivenciar o imaginário, experimentar a realidade simbólica em sua plenitude, compreender, vivenciar e significar o mundo de acordo com um sistema fechado e compartilhado coletivamente em sua última instância.

Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade objetiva, não tem importância:

a doente acredita nela, e ela é membro de uma sociedade que acredita. Os espíritos

protetores e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os animais mágicos, fazem

Plugs intradérmicos no filme Matrix e Sensores Neurais.

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parte de um sistema coerente que fundamenta a concepção indígena do universo. A doente

os aceita, ou, mais exatamente, ela não os pôs jamais em dúvida. O que ela não aceita são

dores incoerentes e arbitrárias, que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas

que, por apelo ao mito, o xamã vai reintegrar num conjunto onde todos os elementos se

apóiam em conjunto.

(lévi-strauss, 1996, P. 228).

Pensar a realidade virtual no processo evolutivo do pensamento nos leva a questionar a natureza da realidade objetiva e da organização social mediada pelos símbolos e imagens culturais. O virtual, cuja dimensão digital é apenas um aspecto, nos leva impreterivelmente a considerar o poder da eficácia simbólica dos rituais e simulações biônicas, das expe-riências de êxtases religiosos e artísticos, bem como das experiências de cyberspace sobre a conduta social humana. Isso determina socialmente a própria atribuição de valor simbólico. O seu valor pode ser medido pela legitimação e abrangência social enquanto arcabouço simbólico comum, e ainda economicamente.

Precisamos destacar, entretanto, que existem muitas diferenças entre a forma de virtualidade proporcionada pelos rituais e mitos tribais e seus equivalentes apresentados pelos sistemas e aparatos modernos que os simu-lam: lojas, materiais promocionais, rádio, teatro, cinema, televisão, ações de relações públicas e mídias computacionais. Os mitos tribais apóiam-se na imaginação do receptor, que atua ativamente na investigação do univer-so imaginário pessoal. Nos outros meios, boa parte desta função é realiza-da por um intermediário, que conforme vão evoluindo as tecnologias, pas-sam a determinar uma postura mais passiva do receptor nesta articulação simbólica. Ainda que a recepção seja ativa e disponha de resistências, ela procura ser cada vez mais prevista na perspectiva do emissor.

A respeito das diferenças entre o efeito das substâncias enteogênicas e o da experiência virtual, Radfahrer (2002, p.293) aponta sete diferenças básicas entre o que proporcionam cada uma destas simulações. Estas dife-renças estariam sobre aspectos como 1. o uso da razão, reduzida a um estado contemplativo na primeira e que não sofre alterações em compu-tadores. 2. O espaço virtual também se difere por se apresentar sob uma série de percepções que cabem ao usuário filtrar no primeiro caso e no segundo é caracterizado por um espaço em branco, a ser preenchido pelos interesses do programador e/ ou usuário. 3. Os usos rituais, que são ine-xistentes nos computadores (ou de pouca referência bibliográfica). 4. A

natureza e a variedade de estímulos, sinestésica e que tende a atordoar usuários das substâncias enteogênicas, e que é restrita (até o momento) a poucos efeitos no mundo computacional. 5. Existem diferenças também no que concerne o foco, que apesar dos esforços rituais em concentrar a atenção, permanecem difusos com a ingestão dos psicoativos e que, ao contrário, são totais para quem mergulha num ambiente simulado por computador. Os últimos dois dizem respeito 6. ao poder do usuário e 7. ao seu poder sobre o ambiente. No caso das substâncias, não existe qual-quer controle e apenas a administração supervisionada é recomendada/ aceita, fica-se à mercê da substância enquanto durar seu efeito; no caso da virtualidade computacional o controle do usuário é completo em ambos os casos, já que ele é mestre da simulação e pode direcioná-la como quiser, e a qualquer momento no ambiente.

Quaisquer que sejam suas formas, a virtualidade e a fantasia de se deixar o corpo

para trás fazem parte da cultura humana: em diversos cultos religiosos, a experiência

visionária negativa é constantemente acompanhada de sensações corpóreas de um

tipo e característica muito especiais, enquanto visões maravilhosas são geralmente

associadas à separação do corpo, à desindividualização. Entretanto nunca elas estiveram

tão fortemente ligadas às tecnologias existentes. na formulação contemporânea,

não é apenas importante deixar o corpo, mas reconstruí-lo como objeto técnico sob

controle humano, o que significa uma transformação essencial de biomorfismo para

tecnomorfismo, em uma simbiose sem precedentes. Os próprios atributos tradicionais

da palavra “espiritual”: mítico, mágico, etéreo, incorpóreo, intangível, imaterial, ideal,

platônico, se encaixam perfeitamente na definição atual do “digital”.

(radFahrer, 2002, P. 295).

As experiências de realidade virtual computacionais podem incluir entre seus predecessores os jogos RPG (Role Playing Game), desenvolvi-dos na década de 70, e onde os jogadores assumem personagens que interagem em uma história cujo mestre/ narrador constrói e é interme-diário (como um xamã). A realidade por ele criada estabelece a relação entre os jogadores e os demais personagens, fatos e acontecimentos desenvolvidos durante a aventura, jornada ou batalha, dependendo do contexto simbólico de cada jogo. A natureza inconsciente desta viagem, jornada conduzida pelo mestre de RPG, deve ser, sob a luz de nossa comparação, semelhante àquela assumida durante a experiência con-duzida por um xamã:

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O inconsciente deixa de ser o inefável refúgio das particularidades individuais,

deixa de ser o depositário de uma história única, que faz de cada um de nós um ser

insubstituível. Ele se reduz a um termo pelo qual nós designamos uma função: a função

simbólica, especificamente humana, sem dúvida, mas que, em todos os homens, se

exerce segundo as mesmas leis; que se reduz, de fato, ao conjunto destas leis.

(lévi-strauss, 1996, P. 234).

Esta mesma estrutura de jogo RPG foi concebida computacionalmente com a introdução dos MMORPG’s (Massively Multiplayer Online Role-Playing Game). Nesta modalidade de entretenimento as correlações com as experiências xamâ-nicas são ainda mais fortes, pois, como o próprio nome já sugere, nestes casos múltiplos jogadores compartilham um ambiente virtual. Os participantes assu-mem personagens fictícios e podem controlar sensorialmente uma gama sig-nificante de ações prescritas no código que gera o sistema. Ele difere de outros jogos de usuário único ou dos de pequeno número de usuários pela persistên-cia do ambiente virtual (usualmente hospedado em rede pela empresa que publicou o jogo), que é contínuo mesmo que o jogador se ausente. O exemplo mais emblemático atualmente talvez seja o título Second Life.

A diferença básica entre a ficção e a verdade consensual, no que concer-ne à compreensão dos receptores, é a possibilidade de experimentar situa-

ções das quais não teríamos acesso caso não tivéssemos tomado as esco-lhas que tomamos no curso de nossa história particular. Embora as expe-riências de virtualidade trazidas pelas substâncias enteogênicas diferen-ciem em muitos aspectos das trazidas pela tecnologia capitalista, o espaço virtual se apresenta como um sinônimo de inexistente, imaginário, não-verdadeiro, mas isso não quer dizer inverossímil, muito pelo contrário. Esta alucinação é assim entendida então por seu sentido estrito de “percepção sem objeto”, ou seja, uma ilusão a respeito de um ambiente que não existe em lugar material algum e cuja sensação de vivência simbólica é viabiliza-da pela tecnologia ou pelo uso das já citadas substâncias.

Obviamente não pretendemos aqui dizer que os avanços tecnológicos em busca da realidade virtual nos levaram a um estágio social neotribal. Muito menos dizer que foi pela formação destas neotribos que aparece-ram na sociedade representações simbólicas de realidades parciais, dis-poníveis no mercado de símbolos. Talvez estas nem sejam mesmo as melhores estruturas metafóricas para compreender como acontece a orga-nização do imaginário contemporâneo, contudo estas teorias todas são muito pertinentes e coerentes no que se propõem a discutir, e acredita-mos que esta analogia aqui estabelecida não deixará de ser válida para a análise que faremos no próximo capítulo deste estudo.

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Criação de avatar e cenas do jogo Second Life.

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4 Mitos Contemporâneos

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Chegamos finalmente na fase de análise mitológica do nosso tra-balho. Obviamente poderíamos escolher inúmeros exemplos de mitogênese na sociedade contemporânea. A comunicação cor-

porativa nunca desfrutou, como já vimos, de tantos poderes para este fim criativo. Porém, alguns critérios na escolha do caso específico para nos-so estudo certamente foram aplicados. Precisávamos de um exemplo de campanha de marketing onde as ferramentas estivessem afinadas com as tendências apontadas nas características da pós-modernidade.

Tínhamos que selecionar corporações com contextos de atuação que pudessem ser, de fato, considerados globais. Depois, dentre estas, sele-cionar produtos cuja função social e aquisição estivessem relacionadas clara e diretamente com o processo de identificação social dos sujeitos. Era necessário que a comunicação em questão se dedicasse a construir uma realidade particular, que esta realidade se prestasse a explicar ideo-logicamente algo que aconteceu na realidade comum. Era imprescindível que os produtos, ao serem comprados, identificassem um grupo de pes-soas, que compartilha e convive com estes símbolos no seu dia-a-dia de alguma maneira. As vivências mitológicas necessárias para a mitogêne-se, constituídas pelos diversos mitemas, precisavam estar evidentes na campanha e acessíveis a os seus públicos. Precisávamos ainda que a cam-panha escolhida fosse articulada e integrada em uma pluralidade sufi-ciente e eficiente de mídias e materiais promocionais, a serem utilizados como corpus para os fins pretendidos pelo nosso trabalho.

Escolhemos, por estas razões, analisar a campanha de lançamento de uma coleção de roupas da reconhecida marca Puma. Sob o título “French 77”, os produtos e os conceitos da coleção foram concebidos a partir de uma história que teria acontecido (suposição baseada em fatos jornalísticos) nos bastidores do mundo do tênis profissional. Todos os materiais analisados e referenciados encontram-se nos anexos I, II e III deste trabalho.

A narrativa conta uma passagem da vida de Guillermo Vilas, tenista argentino, que no ano de 1977 foi a grande revelação mundial do esporte. Recebendo da mídia o epíteto de “Touro dos Pampas”, ele era aclamado

4.1Produção Mitológica Contemporânea na Coleção Puma French 77

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um fenômeno das quadras. Já havia se sagrado vice-campeão do Aberto da Austrália (Australia Open) e campeão do Aberto da França (Roland Garros), dois dos quatro mais importantes torneios do tênis internacional (Grand Slam) e estabelecido a mais longa seqüência de vitórias até então (50). Além da evidente fama decorrente de seu sucesso nas quadras, Vilas também era notório por seu estilo de vida, regado a muitas festas, viagens e mulheres. Ele é facilmente identificado com a tradicional figura arquetí-pica do capitalismo: o playboy, o autêntico bon-vivant.

Chega então o terceiro grande torneio, Wimbledon na Inglaterra, e Guillermo, franco favorito, misteriosamente deixa de comparecer ao even-to, além de ficar longe do acesso da mídia. Os tablóides e revistas de cele-bridades não demoram em perceber que o repentino sumiço coincide com a ausência da princesa Caroline de Mônaco (então com dezenove anos), que havia assistido a todos os jogos de Vilas durante o Aberto da França sentada junto à quadra. Semanas depois, os dois reaparecem às lentes mais ou menos no mesmo período. Ele perdeu uma grande chance de fazer história no torneio, mas voltou a ganhar no Aberto dos Estados Unidos (US Open), último torneio Grand Slam daquele ano. Talvez pudes-se ter ido além em suas conquistas se tivesse comparecido, mas os rumo-res sobre a história de amor com a princesa não deixam sombra de dúvi-das de que aquele foi o grande ano do tenista.

De qualquer modo, o lugar que a linha criativa da Puma leva nossa imaginação, ao resgatar e fantasiar sobre esta passagem intrigante do tênis internacional, é o ambiente de onde teria sido protagonizada a história de amor. As roupas, acessórios, materiais de campanha e ações publici-tárias homenageiam e estabelecem o herói Guillermo Vilas na França. Para que o consumidor vivencie o mito eficientemente, a empresa desen-volveu todos os elementos e esforços da sua comunicação voltados a repro-duzir, trinta anos depois, uma versão contemporânea da história. Convidando seus consumidores a reviver, através do estabelecimento de analogias simbólicas proporcionadas pelo visual retrô, a experiência de estrelato pela qual passou o tenista naquele ano, sobretudo o seu suces-so social e amoroso.

A associação da imagem de Guillermo Vilas com a Puma remonta a pró-pria trajetória do tenista, para contribuir ainda mais com a força comunica-tiva do conceito. A empresa, na verdade, resgatou o Touro dos Pampas de seus arquivos, afinal ele sempre foi patrocinado por ela durante a sua carreira como atleta. Ela presta homenagem ao herói resgatando conceitos visuais e

símbolos da época de seu auge, com o uso de materiais novos e de desenhos atualizados. Os produtos tiveram detalhes inspirados no mundo do tênis pro-fissional e procuram contemplar roupas casuais (street-wear) com o visual característico às indumentárias da modalidade em 1977. Esta mistura de per-fis, verificada no todo da coleção, mantém os pés firmemente apoiados no presente, caracterizando produtos inclusivos, confortáveis e de apelo abran-gente; ainda que de notável estilização, sofisticação e aparência.

O público-alvo que a comunicação da Puma busca capturar a atenção é constituído por formadores de opinião em moda. A empresa espera con-vencê-los dos conceitos com as peças mais sofisticadas e divertidas da coleção, que são apresentadas nos comerciais. Além disso, estende sua oferta a produtos mais básicos e de preços mais acessivos (onde são espe-rados os maiores volumes de vendas) de modo que todos que desejem, possam de fato experimentar “ la vie GV en Paris Juin 1977” (a vida Guillermo Vilas em Paris, Junho de 1977).

Desse modo, a coleção foi montada para satisfazer vários níveis dife-rentes de consumo, enquanto mantém uma idéia única permeando todos seus objetos. Utilizando essencialmente elementos geométricos simples como listras e círculos, a linguagem visual da coleção utiliza ainda íco-nes franceses em sua composição, como a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo, presentes na mídia impressa. As cores escolhidas são predominantemen-te tons de azul e o branco, e fazem referência à bandeira da Argentina, ainda que não fiquem restritas a estes.

A plataforma da campanha para o segundo quarto do ano de 2007, pri-mavera no hemisfério Norte, pode ser divida entre uma sólida e distinta parte voltada para os pontos de venda da marca e o apoio de uma massi-va comunicação composta por anúncios em revistas de comportamento, painéis de mídia externa diversos e quatro spots de 15 segundos para a televisão. O período mais ativo da publicidade está planejado nos Estados Unidos, Canadá e alguns países da Europa entre os dias 1º de Abril e 15 de Maio de 2007.

Foram providenciadas atividades de relações públicas como eventos de lançamentos para a mídia e para o público em geral em Mônaco, com a pre-sença de Guillermo Vilas e outras celebridades, além de diversas sessões de fotos. Inclusive, para este período foi planejado um grande esforço de asses-soria de imprensa para conseguir espaço em editoriais de moda. Algumas atividades de marketing de guerrilha também foram planejadas para acon-tecer nos torneios de Wimbledon e de Roland Garros deste ano.

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Por fim, foi desenvolvido um website que, além de possuir informa-ções e detalhes sobre todos os objetos da coleção, proporcionam aos usuários conduzir ações através do ambiente interativo. Os usuários de Internet podem checar o catálogo de produtos, comprar, ver fotos da coleção, ouvir a música-tema, assistir aos spots de televisão e jogar um jogo especialmente desenvolvido para a campanha.

São sobre estes elementos comunicativos, que constituem o sistema simbólico presente nos materiais publicitários desenvolvidos para a cole-ção, que pretendemos debruçar nossos esforços no próximo tópico des-ta análise. Estaremos atentos especialmente ao website, pois além da enunciação na nova mídia ser uma dos focos do nosso trabalho, ele pra-ticamente sintetiza em seu conteúdo toda a campanha e contém a maior parte das informações verbais e visuais disponíveis aos consumidores.

Como já discutimos anteriormente, o capitalismo global age cons-truindo verdades e realidades parciais que são difundidas pelos mitos da publicidade em nossa sociedade. O sistema de símbo-

los criado para a coleção “French 77” da Puma não faz por menos. A integração das mídias para a comunicação da campanha certamente alcança seu objetivo e consegue ser percebida como uma unidade pelos consumidores. Desta forma, o que se expressa em cada uma das peças completa e enriquece o que se entende sobre o todo do conceito.

Assim, os spots de televisão e o website são os materiais-chave desta análise, pois são eles que conseguem criar a representação do espaço idealizado onde se leva a imaginação do consumidor assim que ele adquire os produtos da marca. Este local é exatamente onde se pode vivenciar o mito propagado pela campanha. Neste ambiente, desenro-lam-se as ações relativas ao herói, esse é o seu domínio simbólico pro-priamente expresso e o local onde seus atributos fazem-se eficazes.

Ali é o universo onde o mito é possível, onde se verifica o seu funciona-mento. Podemos dizer que os produtos em merchandising nas peças publi-citárias são transfigurados, dentro deste ambiente, nos próprios atributos do herói Guillermo Vilas. As peças de roupa utilizadas na comunicação per-mitem que se compreenda que são elas que possibilitam que qualquer um desfrute do estilo de vida do herói, que qualquer um seja o herói.

Utilizar as roupas do comercial significa para o consumidor que ele pertence ao universo criado pela Puma; logo, qualquer um que tenha conhecimento do mito reconhecerá neste sujeito os atributos do herói em questão. O consumidor apropria-se dos símbolos de modo antropofági-co ao consumi-lo, criando com isso a sua própria identidade social. Esta identidade será certamente reconhecida e legitimada em sua tribo ao ser notado portando a indumentária que está associada ao herói.

Constituído por um fundo infinito neutro e branco, o espaço virtual de “French 77” ganha tridimensionalidade nos spots de TV e no website com plataformas de aspecto vetorizado (coloridas em tons claros e satu-rados) que se movimentam ordenadamente (como num jogo de videoga-

4.2Enunciação Mítica: Elementos Dialógicos e Aplicações Mercadológicas

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me típico do final da década de 70) para criar os caminhos por onde os personagens passam ao pular de disco em disco. Neste ambiente intera-gem pessoas trajando as peças da coleção, todos na faixa de vinte anos e que caminham até plataformas maiores onde existem concentrações de pessoas dançando numa festa.

A música tema da campanha chama-se For Energy Infinite e é do extin-to grupo Marazin, natural de Boston (EUA). A letra, que se encontra no anexo III deste trabalho, começa sugerindo um sujeito feliz que diz sen-tir falta dos seus tempos de solteiro. Como estivesse se justificando, o eu-lírico procura dizer que gosta da pessoa a quem se dirige como gosta de todas e pede para que “ondas de inspiração” o carreguem.

Na terceira estrofe diz que “todos colocaram campainhas em suas casas”, como se os tempos de “balada” tivessem terminado. Lamenta-se disso perguntando se ninguém percebe que “energia é uma coisa breve”. Completa dizendo não entender como esta “saudade” dos tempos de fes-ta o traz novamente até ela e que era “inocente” sozinho.

No refrão aparece um segundo eu-lírico, feminino como supomos, que conversa com o primeiro perguntando se alguém está a ouvir as palavras que ele a escreveu. Ela se torna implacável ao perguntar se todos percebem a inocência de “bem... está acabado”. Então ele repete muitas vezes em arre-pendimento “Eu sei, eu sei, eu sei (...) Eu poderia ter lhe contado”.

Estabelece-se assim, com o auxílio explícito da canção, um clima de encontros, flertes e galanteios para todo ambiente da campanha. O arqué-tipo do bon-vivant, do sujeito que não se envolve em relacionamentos lon-gos e que leva um estilo de vida conforme lhe guia a “inspiração” e as gla-morosas festas e viagens, está presente no eu-lírico da música e encaixa-se perfeitamente na comunicação como um possível discurso do herói da nossa campanha.

Com os personagens interagindo neste espaço, partimos para a descrição dos spots de TV . No primeiro, uma garota caminha por pequenas platafor-mas amarelas retangulares, de cantos arredondados. Um rapaz nota que ela vai passando, sai da plataforma onde se encontra com outras pessoas e vai ao encontro dela,. formando um segundo caminho paralelo ao primeiro. Ela per-cebe a presença dele, há uma troca de olhares entre os dois, ela sorri e fecha o zíper da blusa que veste, fazendo assim com que os dois caminhos se apro-ximem para que ele possa alcançá-la. Os dois se abraçam e saem andando.

O segundo spot começa com uma festa repartida ao meio por os blocos azuis que funcionam como gráficos de um espectro sonoro. Um homem e uma

mulher, cada um de um lado da festa, utilizam os blocos como degraus e o pla-no da câmera fecha para dar close-up nos tênis. O casal encontra-se no meio das duas pistas, dá as mãos e sai andando. A câmera dá uma volta e os dois estão novamente se dirigindo à pista caminhando por um chão quadriculado.

O terceiro spot é bem parecido com o primeiro. Um homem corre por blocos pretos, uma garota corre por blocos iguais, mas de ponta-cabeça. Os dois param na mesma plataforma, a câmera sai de um detalhe do tênis e ela o puxa para o mesmo lado em que se encontra. Eles se abraçam e saem andando em direção a uma outra festa.

No último spot da campanha um rapaz e uma garota jogam tênis em uma quadra que obedece ao mesmo padrão de toda a direção de arte da campanha. Começa uma chuva, ele puxa os cordões do gorro de sua blu-sa e com isso os dois campos se juntam. A rede desaparece para que eles possam se abraçar e saírem sob a proteção da blusa dele.

Todos os vídeos são assinados ao final com a logomarca da Puma e o endereço eletrônico (puma.com), e possuem o mesmo trecho inicial da música. Além disso, podemos dizer que em todos os comerciais o uso de detalhes das roupas funciona como plot-point para a aproximação dos casais. Confirmando para o receptor da comunicação, mais uma vez, a associação entre as roupas e o estilo de vida proporcionado a quem as veste. As roupas, através da realidade parcial construída pelo mito no material publicitário, é atribuída de poderes mágicos que influenciam o ambiente para que se tenha sucesso no encontro de um par. São estes mesmos atributos mágicos que o consumidor espera inconscientemente receber ao comprar os produtos.

Terminada a descrição dos spots, partimos para o website. Na página inicial temos quatro plataformas grandes, identificadas pelas cores: rosa, verde, azul clara e azul escura. Estas plataformas funcionam como nave-gador para o usuário. Ao clicar sobre elas, acessa outros estados da pági-nas, a saber: Inspiration (Inspiração), His (Ele), Hers (Ela) e o jogo Party Hopper (Estimulante de Festas).

Os efeitos sonoros são típicos de uma partida de tênis (raquetadas, vozes de arbitragem, torcida, etc.) e interagem identificando os botões. O menu também pode ser acessado através da barra de navegação superior, que ainda possui quatro outras páginas: “Spots de TV”, “Cadastro de E-mail”, “Encontre uma Loja” e “Conte a um amigo”, que são auto-explica-tivos por si sós. Ao lado disso, ainda temos um player que toca a música da campanha e permite ao usuário parar, voltar, ouvir trechos de outras

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músicas, regular o volume e/ ou retirar o som da página. A plataforma cor-de-rosa no plano mais próximo tem uma garota sentada a balançar as pernas que pendem, e não possui navegação alguma, apenas interage atra-vés de sons quando o mouse é posicionado sobre ela.

A primeira plataforma navegável do caminho do website é a azul cla-ra ao centro, nela vê-se um homem (His) e uma mulher (Hers). Ao clicar em um dos dois vamos para um ambiente onde três modelos vestem dife-rentes roupas da coleção. Cada uma das peças recebe um rótulo que a identifica com a interação do mouse. Clicando em uma peça de roupa abre-se uma janela onde se encontra todo o catálogo, masculino ou femi-nino de acordo com a primeira escolha. Nesta janela há uma breve des-crição do produto, uma imagem, as cores disponíveis para a peça, um botão de aproximação (que abre uma grande imagem do produto em pri-meiro plano) e um botão que redireciona para o endereço de lojas da Puma no mundo.

A segunda, de cor verde, é a plataforma Inspiration. Nesta parte do web-site temos uma fotografia de Guillermo Vilas, ainda jovem, preparando-se para executar uma rebatida. Ao lado da imagem temos um texto que explica sucintamente o conceito da coleção, estabelece os atributos do herói e conta a anedota durante Wimbledon em 1977 com a princesa de Mônaco. No canto superior direito desta mesma janela de texto há um botão que dá acesso a outras fotos de divulgação. As primeiras imagens são das extraordinárias performances do Touro dos Pampas, nelas a logo-marca da Puma aparece em placas publicitárias dispostas nas quadras. Depois temos ainda fotos contemporâneas de modelos trajando as roupas da coleção em iates, carros e lugares luxuosos. O ensaio foi realizado em Mônaco e contou com a participação de Vilas, que dirige um automóvel conversível em uma das imagens e sempre aparece acompanhado de pelo menos duas garotas.

Por fim, a terceira, de cor azul escura, dá acesso ao jogo Party Hopper. Para jogar, o usuário pode optar entre um homem e uma mulher. O obje-tivo é simples, consiste em pular pelas plataformas até alcançar a festa que acontece mais adiante sem cair no abismo branco. Existem, disponí-veis em determinadas plataformas, bolinhas de tênis nas cores azul, laran-ja e amarela que pingam e oferecem ao jogador que as alcança a tempo vantagens de vida extra, tele-transporte e slow motion, respectivamente. O usuário possui apenas dois comandos: “pulo” ou “superpulo” (jump ou power jump), disponíveis a qualquer hora do jogo. Ele torna-se envol-

vente conforme vão evoluindo as fases e a dificuldade vai aumentando pela quantidade de pulos necessários até o final da fase e com a acele-ração na oscilação das plataformas. Ao chegar ao final de cada fase o jogador ganha um simpático sorriso da modelo e pode escolher entre encaminhar o link do jogo a um amigo ou dirigir-se à próxima fase. O usuário é estimulado a permanecer jogando pela existência de um ranking com os melhores jogadores.

Procuramos evidenciar, com essas descrições e análises, os aspectos mitológicos da campanha “French 77” da Puma. A mitogênese, ao pas-sar às mãos corporativas, continua acontecendo exatamente da manei-ra como já nos dizia Barthes em Mitologias (1993), constituindo um sis-tema factual onde o grupo é induzido sacralizar os símbolos que satis-fazem nossas necessidades humanas, sociais ou subjetivas, e que são os produtos de consumo dos nossos tempos. Os mitos sempre estabelecem valores para as sociedades, explicando e suprindo o imaginário coleti-vo com fatias de representação da realidade que não correspondem necessariamente à realidade objetiva da ciência. Pelo contrário, a publi-cidade em geral se comunica através de imagens que na nossa contem-poraneidade geram sistemas simbólicos fechados e parciais como os totens de Lévi-Strauss (1976). Estes sistemas ideológicos são cada vez mais céleres e eficientemente vivenciados pelas pessoas, em função dos avanços tecnológicos, e se prestam a identificar grupos; hoje as neotri-bos urbanas, que emergem nas metrópoles como resposta ao imenso individualismo gerado pelas condutas, valores e características do capi-talismo pós industrial na modernidade-mundo.

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C hegamos assim ao final do nosso estudo. Procuramos no decor-rer destes capítulos abarcar os aspectos semânticos do estudo das imagens e entender como que o aparato comunicacional da socie-

dade contemporânea e a mitogênese (o processo de criação mitológica) foi assumida pelas instituições corporativas no decorrer da história da civilização ocidental.

Para estes fins, buscamos abordar a obra de alguns autores normalmen-te estudados pela psicologia, antropologia, sociologia e lingüística, mas que sem sombra de dúvida oferecem pensamentos e teorias importantíssimas para o avanço das Ciências da Comunicação. Ainda que cada um destes campos do conhecimento concentre seus esforços em sentidos por vezes obtusos entre si, todos utilizam objetos comuns para suas análises: os sím-bolos sociais. Os símbolos, como vimos, participam inexoravelmente da existência humana não só pela necessidade que temos de utilizá-los em todos os momentos de nossa existência, mas também por influenciarem os aspectos da formação e do desenvolvimento dos indivíduos: sociais, cultu-rais, psicológicos, ideológicos, cognitivos etc.

O capitalismo pós-industrial, o marketing global, o desenvolvimento da Internet, a re-introdução do conceito de caos no senso comum, o retor-no à busca do sagrado; tudo isso inaugura um novo momento na histó-ria do imaginário e do pensamento humano no Ocidente. O processo de sacralização dos produtos de consumo aumenta exponencialmente em nossos tempos e a indústria cultural patrocinada por estas instituições difunde valores que se chocam e, por uma questão de inércia, afastam do palco principal do cotidiano os valores pátrios, regionais e/ ou religiosos das comunidades aonde chegam.

Fatos como o aparecimento da literatura de auto-ajuda, da figura arque-típica do homem-marca ou self-made-man e a cristalização do marketing eleitoral nas plataformas das campanhas políticas anunciam a chegada des-ta nova perspectiva de mundo. Antigas instituições milenares, como o Estado ou mesmo a Família, parecem não serem mais tão eficientes como outrora para atribuir significados aos contextos de vida enfrentados no dia-

5 Considerações Finais

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a-dia dos grandes centros metropolitanos. As pessoas passam a se identifi-car e agregar de acordo com símbolos comuns, mas que não pertencem mais a um único sistema centralizador. A liberdade de escolha de ideolo-gias e a troca de sistemas, que em tempos não tão longínquos da história ocidental era sinônimo de traição e falta de caráter em um sujeito, hoje pare-cem indispensáveis para que o homem contemporâneo possa se situar a qualquer instante em seu espaço social. Caracterizando uma sociedade que só pode ser compreendida pelo conceito de diversidade humana, situações novas que emergem todo dia sem precedentes, jurisprudências e significa-dos nesta confluência confusa de valores.

As auto-ajudas e os vídeo-games participam da sociedade contemporânea, cada um a seu modo, oferecendo uma narrativa possível para o universo secu-lar que deu origem às corporações e que não pode mais ser sustentado devi-do às proporções alcançadas pelo mercado global. Como o capitalismo pós-industrial jamais poderá tomar por completo o lugar da cultura base de um sujeito, na auto-ajuda e no universo dos jogos ele se permite – em favor da dominação simbólica em última instância – um sincretismo (normalmente originário de culturas dominadas) para que as pessoas recuperem a espiritu-alidade e um objetivo de vida além do consumo. Como alguns não podem mais ter fé nos valores e promessas do capitalismo, a auto-ajuda constrói uma espécie de limbo para o imaginário entre os símbolos do mercado global e um qualquer sistema ideológico anterior este. Cabe aqui ainda lembrar das projeções feitas a respeito do desenvolvimento das realidades virtuais com-putacionais e as comparações que tecemos com os rituais tribais xamânicos, hoje também redescobertos pela auto-ajuda.

Temos ainda o arquétipo do self-made-man que define sujeitos autodi-datas cuja produção de material simbólico é extraordinariamente acumu-lada em pouquíssimo tempo. Essa maneira de alcançar prestígio e reco-nhecimento social parece ser atualmente a maneira mais rápida e eficien-te para o sucesso. São inúmeros e não param de aparecer na mídia casos de adolescentes nerds que ganharam fortunas repentinas com desenvol-vimento de ferramentas computacionais e idéias inovadoras para corpo-rações, que lucram ainda mais do que pagam por isso. A possibilidade quase lotérica de achar o grande filão de atuação, de ser “abençoado” pela criatividade, de se “fazer” intelectualmente, profissionalmente e de ser reconhecido financeiramente coloca-se questionavelmente como única saída do sujeito para o seu sucesso no ambiente extremamente competi-tivo e voraz do mercado de trabalho contemporâneo.

Esse arquétipo também se faz presente atualmente na política. Uma pes-soa legitimamente reconhecida como self-made-man consegue seguramente vantagens e maiores taxas de aprovação perante a opinião pública. O marke-ting eleitoral inclusive vem se dedicando a isso, deixando de lado as tradicio-nais doutrinas políticas do liberalismo (como a esquerda, e a direita e deri-vados) e concentrando seus esforços comunicacionais para constituir candi-datos alinhados aos mesmos conceitos de diversidade que o mercado global precisou desenvolver para ser coerente com seus públicos específicos.

Por outro lado, não podemos deixar de comentar nestas considerações finais o fato que a dinâmica dialética dos símbolos não se faz de rogada. No mesmo instante que o interesse das corporações procura sacralizar seus produtos, ondas no sentido contrário já profanam estes símbolos. Como exemplo claro deste aspecto citamos as cada vez mais ignoradas leis de direitos autorais que procuram proteger os usos, e decorrentes divi-dendos, dos símbolos sociais. A pirataria de produtos da indústria cultu-ral, a quebra de patentes, a reprodução não autorizada de marcas regis-tradas e a arte de guerrilha (rapidamente desvirtuada pelo marketing) caracterizam, sem sombra de dúvidas, o uso profano que se faz dos mitos corporativos na grande geléia cultural de nossos tempos. Estas condutas trazem em si signos de resistência ao domínio dos sistemas corporativos. São formas ilícitas, marginais, mas que são resultado direto das práticas desiguais e monopolistas das instituições.

O trajeto antropológico dos símbolos sociais, a polarização deles entre imaginário e código, entre sagrado e profano, presente no pensamento humano desde seu princípio, não foi alterado em suas características essenciais com a chegada deste novo momento histórico em que vivemos. As corporações certamente têm consciência da dimensão e do poder de suas atuações na sociedade, mas parecem não perceber a ossatura dos malefícios que andam causando aos nossos próprios meios de existência no planeta devido à corrida desenfreada por crescimento econômico.

Pelo conhecimento disso, gostaríamos de encerrar este trabalho propondo às corporações globais (instituições que hoje dispõem de tantos poderes mate-riais simbólicos quantos os necessários para dar vazão ao processo mitogênico na sociedade) que se dediquem a construir, dar subsídio e apoio à construção de um imaginário mais ético e responsável. Um imaginário que contribua para a solução dos problemas que a sociedade enfrenta em função do próprio siste-ma capitalista pós-moderno. Só isso poderá fazer jus à abrangência tão impo-nente deste novo sistema simbólico que impera entre nós, homo symbolicus.

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Webiografia

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Anexos

MiTOS COnTEMPORânEOS128 AnEXOS 129

Anexo I

MiTOS COnTEMPORânEOS130 AnEXOS 131

MiTOS COnTEMPORânEOS132 AnEXOS 133

MiTOS COnTEMPORânEOS134 AnEXOS 135

MiTOS COnTEMPORânEOS136 AnEXOS 137

MiTOS COnTEMPORânEOS138 AnEXOS 139

MiTOS COnTEMPORânEOS140 AnEXOS 141

MiTOS COnTEMPORânEOS142 AnEXOS 143

MiTOS COnTEMPORânEOS144 AnEXOS 145

MiTOS COnTEMPORânEOS146 AnEXOS 147

MiTOS COnTEMPORânEOS148 AnEXOS 149

MiTOS COnTEMPORânEOS150 AnEXOS 151

Anexo II

MiTOS COnTEMPORânEOS152 AnEXOS 153

MiTOS COnTEMPORânEOS154 AnEXOS 155

MiTOS COnTEMPORânEOS156 AnEXOS 157

AnEXOS 159

For Energy Infinite

My fingers jingle round and roundForget that it may come to for miss my days aloneI should have seen this one longFor many thousand dollars blew it in the sound

I love you too as I love everyoneLet the waves of inspirationComing for their daily happeningsFor they can move me

Then everyone placed bells into their homesBut could anyone know that energy is brief?How could this missed thing bring me back to you?I was innocent alone

I could have told youI could have told youOh, OhI know, I know…

Is anyone listening to the words you wrote? Else me?Has anyone perceived the innocence of “well it’s over”?

Oh, OhI know, I know…I could have told youI know, I know, I know…

So this is when I could sit down and explain what all this means

Is anyone listening to the words you wrote? Else me?Has anyone perceived the innocence of “well it’s over”?

Para Energia ao Infinito

Meus dedos gingam por aíEsqueço que isso pode estar vindo por falta de meus dias sozinhoEu deveria ter aproveitado por mais tempoPor muitos mil dólares bradei isso ao som

Eu te amo também como amo todasDeixe as ondas da inspiraçãoVir para seus acontecimentos diáriosPara que possam me levar

Então todos colocaram campainhas em suas casasMas poderia alguém saber que energia é breve?Como pode esta saudade me trazer de volta a você?Eu era inocente sozinho

Eu poderia ter lhe contadoEu poderia ter lhe contadoOh, OhEu sei, Eu sei…

Tem alguém ouvindo as palavras que você escreve? Além de mim?Alguém percebeu a inocência de “bem… está acabado”?

Oh, OhEu sei, Eu sei…Eu poderia ter lhe contadoEu sei, Eu sei…

Foi então que pude me sentar e explicar o que isso tudo significa

Tem alguém ouvindo as palavras que você escreve? Além de mim?Alguém percebeu a inocência de “bem… está acabado”?

Banda: Mazarin Álbum: We’re already there – 2005.

Anexo III