Mochila Social

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    Autoria: Alex Fisberg

    Produo Grfica: Gustavo Piqueira / Casa RexCapa, projeto grfico e paginao: Gustavo Piqueira / Casa Rex

    Este livro licenciado sob Creative Commons Atribuio - NoComercial -

    SemDerivaes 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0), disponvel em

    http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/legalcode

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    outros direitos, tais como direitos de imagem, de privacidade

    ou direitos morais, podem limitar o uso do material

    Mais informaes em: www.mochilasocial.com 1a edio So Paulo 2013 www.mochilasocial.com

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    muito difcil agradecer a todo mundo que de uma for-

    ma ou de outra fez parte desta experincia e da organizao

    de tudo isso em um livro. Comeo agradecendo toda minha

    famlia, representada aqui pelos meus pais, Silvio e Ester, emeu irmo, Daniel, pelo carinho, o apoio, a criao e os desa-

    fios de sempre que me fazem mover o que for necessrio para

    estas realizaes. Meus amigos de toda parte, sempre ao lado,

    mesmo distncia, mostram que por mais sozinho e afastado

    que eu esteja, nunca fico solitrio. Juju, por todo o carinho,

    distncia ou juntos, me empurrando para algo significativo.

    E ao meu amigo imaginrio e voz na minha cabea que me im-

    pede de ficar sem refletir um segundo (mesmo deixando a vida

    mais cansativa).

    Em Israel, tive o prazer de contar com o apoio e incentivo de

    toda a equipe do Weitz Center for Development Studies, com des-

    taque principal para meu chefe e amigo Yossi Ofer, cujas palavras

    e conhecimento foram pea fundamental para a concretizao da

    minha vontade e curiosidade em projeto e depois em ao. No

    posso deixar de lado a receptividade do casal - Dani e Fabian - que

    me acolheu nas ltimas semanas antes de partir e que ficou com

    metade da minha mala para aliviar o peso.

    No Egito, agradeo aos dois jovens que nos deram carona e

    nos acolheram no Sinai e a todos os bedunos com os quais cru-zei por uma grata demonstrao de acolhimento e respeito ao

    estrangeiro. Fico feliz por ter tido a oportunidade de conversar

    com Mina no nibus durante a passagem pelo canal de Suez e por

    ter podido acompanhar - quase sem querer - um pequeno pedao

    da Primavera rabe na praa Tahrir, e sair ileso.

    Na Etipia, agradeo infinitamente meu amigo Afework

    Fekadu por sua hospitabilidade e por ter me recebido de braos

    abertos no meu primeiro pas do leste da frica. Agradeo as

    conversas, o aprendizado e a troca de experincias. Juanpa

    agradeo a companhia, as longas conversar em portunhol

    e as vivncias pelo norte do pas. Alm disso, de certa forma

    agradeo a todos os jovens de rua com quem conversei e cujas

    intenes, apesar de questionveis, me fizeram importantes

    questionamentos e reflexes.No Qunia preciso comear pelas famlias de Stanley,

    James e Debrah, que desde o primeiro momento em que

    pisei no pas me acolheram e me ofereceram tudo o que eu

    precisava e muito mais. A companhia, a troca de experincias e

    aprendizados jamais ser contabilizado em sua totalidade. Aos

    amigos Mutembei, John (SUFTA), Medina (Carolina for Kibera),

    Emmanuel, jovens da Myto, amigos da Aiesec e de tantas outras

    organizaes com as quais tive o prazer e a oportunidade de

    visitar e aprender.

    AG RA D EC I E N TO S

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    Agradeo imensamente Susan Blaustein e Paulo Cunha,

    que junto com Beldina e Merciline, abriram as portas e seu conhe-

    cimento da Millenium Cities Initiative (MCI) em Kisumu, projeto

    da ONU alinhado aos Objetivos do Milnio. Agradeo tambm o

    apoio de Ben e a equipe do LVRAC.

    Em Dadaab, agradeo a UNHCR, a WFP, Save the Children,

    CARE, NRC, Mdecins Sans Frontires, entre outras organizaes

    internacionais que ofereceram conhecimento, transporte, aloja-

    mento e entrevistas para uma experincia ainda mais impactante

    no campo de refugiados.Em Uganda, agradeo primeiramente ao casal de Couchsur-

    fers americanos que me acolheu em sua casa nos primeiros dias

    de minha estadia. Com eles, conheci Katherine (Film4Change) e

    Gabry que mudaram um pouco o curso da minha pesquisa pelo

    pas. Um obrigado imenso Barbara e Rafael, que foram muito

    mais que anfitries e mostraram um outro lado de Kampala e da

    vida. A todos da Little Light (Namuwongo), Resty pela sabedoria,

    Dorit pelo acolhimento e Boaz pelo carinho e apoio. Sem contar o

    apoio distncia de Naama e Itzhak, junto a Brit Olam. Agradeo

    tambm aos voluntrios israelenses e todos os jovens de NIIAD e

    Muse no caminho para Entebbe.

    Ainda em Uganda, agradeo a Skye Dobson e toda a

    equipe do Slum Dwellers International - SDI, alm do pessoal

    da AcTogether Uganda, Federation of Urban Poor Uganda e osestudantes intercambistas da NTNU.

    Em Ruanda, comeo agradecendo ao amigo Amos que

    me incentivou e me conectou com uma srie de pessoas inte-

    ressantssimas na regio. Com ele, agradeo a equipe do TAG

    Development que me fez companhia por alguns dias. Agradeo

    a Mikolaj e Anthony pela hospedagem e pelas conversas, alm

    de muita inspirao.

    Agradeo a Anne Heyman, por me acolher e me apresentar

    um dos lugares mais inspiradores que j vi: Agohozo-Shalom Youth

    Village. Agradeo a todos os jovens que conheci e conversei, a to-

    dos os coordenadores de ncleo e voluntrios que me inspiraram.

    Na Tanznia agradeo a companhia do grupo de jovens aus-

    tralianos que me acompanhou no nibus e, em Kahala, o apreo e

    acolhimento das pessoas que conheci no ITRC. Agradeo o contato

    e a dedicao em me mostrar o melhor lado de toda atuao da SDI

    de Tim, Stella e Meki, da CCI Tanzania, ao pessoal da Federation of

    Urban Poor Tanzania e todos os envolvidos no trabalho em Daravani.

    Tambm na Tanznia agradeo Cintia e todo o pessoal da

    2Seeds pela incrvel experincia em Magoma, pelos aprendiza-dos, as reflexes e o acesso.

    Alguns agradecimentos especiais Fizsel Czeresnia e Lucia

    Wjuniski que contriburam para o Mochila Social desde o incio en-

    quanto eu ainda viajava; Luciana Golcman, agradeo imensamente

    a criao do logotipo do projeto Mochila Social, feito a milhares de

    quilmetros de distncia e cujo resultado ficou incrvel; Gustavo Pi-

    queira e equipe da Casa Rex (Samia Jacintho, Ana Lobo e Marianne

    Meni) agradecimentos infinitos pelo trabalho indescritvel e sem

    palavras que foi feito com o meu texto e imagens, valorizando o

    trabalho e transformando em algo digno de ser publicado, impac-

    tante e destacando um olhar nobre sobre uma vivncia delicada.

    Agradeo tambm a Tatiana Bargas e a toda equipe da Gr-

    fica Pancrom por acreditarem no projeto e virarem parceiros

    na hora exata. Tambm aos amigos Mona Dorf, Rafael Seibel,Ricardo Ramos Filho, Bia Patricio, Ruth e Miranda, Karen Ro-

    zembaum, Tato, Taly, Dan, Andy, Juboh, queridos do Terraos

    pelas orientaes e ao infinito nmero de pessoas que, de al-

    guma maneira, acreditaram, leram, comentaram, criticaram,

    ajudaram com conexes, ideias, contatos, paixes, incentivos

    e desafios. Eu com certeza esqueci um monte de gente, mas

    posso ir adicionando sempre no site www.mochilasocial.com e

    nas futuras edies. Sintam-se agradecidos e saibam que cada

    micro interferncia faz toda a diferena.

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    Agradecimento tambm aos mais de 310 apoiadores que via-

    bilizaram esta edio e sua consequente distribuio em escolas e

    espaos de aprendizado por meio de financiamento colaborativo.

    Um obrigado a todos que participaram desta experincia!

    Para saber mais sobre o livro e o projeto, acesse www.

    mochilasocial.com e fique vontade para mandar comentrios,

    crticas e sugestes.

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    O filsofo francs Serge Latouche nos pergunta o que

    podemos aprender com a frica?. Em artigo de 2004, ele conta

    um mito africano (que) apresenta as relaes entre brancos e

    negros como o dilogo de duas mscaras. A mscara do brancotem orelhas bem pequenas e uma boca enorme. A mscara do

    negro tem uma boca bem pequena e grandes orelhas. O branco

    aquele que sabe tudo e quer ensinar tudo aos outros, mas ele

    no sabe escutar. O negro cuja palavra no recebida, apenas

    pode escutar contra sua vontade ou por sabedoria1.

    Talvez esteja na hora de ouvir mais o que os mercados

    emergentes e a frica podem nos contar. Afinal, o capitalismo

    est mudando. A viso de que o lucro o nico e principal ob-

    jetivo de organizaes tem apresentado mais do que crticas,

    PREFC IOcomprovaes de que esta lgica no tem sustentabilidade

    no longo prazo.

    Um novo olhar para o capitalismo e sua forma de ser

    necessrio. Este novo olhar busca o diferente, aceita desafios

    e tem uma dose de coragem. Tudo isso que Alex Fisberg est

    propondo. Por meio dos olhos deste jovem jornalista possvel

    buscar o novo.

    Todos sabemos da enorme pobreza existente no mundo.

    A questo que fica como e se possvel mudar esta situao.

    A pobreza no est apenas ligada falta de renda, mas tambma limitaes s liberdades individuais2. Governos, rgos mul-

    tilaterais, organizaes sociais e at empresas privadas esto

    buscando solues, cada um em sua esfera.

    Um tema como este no ter uma resposta nica e muito

    menos simples. E o que me chama a ateno a possibilidade

    de repensarmos modelos e paradigmas. Mais do que isso, a ideia

    de que cada pessoa, organismo e organizao podem fazer di-

    ferente e ter um impacto. Isto se torna mais interessante ao

    lecionar para jovens e ver o brilho em alguns olhares que de-

    monstram que eles tm a vontade, a competncia e o esprito

    empreendedor para mudar o olhar.

    Muitos destes jovens tornam-se empreendedores sociais

    em um movimento ainda relativamente pequeno, mas crescente

    e cada vez mais percebido na sociedade. Estes jovens tambmquerem ganhar dinheiro, mas com valores bsicos e fortes de

    fazer o bem. Dando mais fora a este movimento temos grandes

    organizaes privadas tambm buscando uma viso mais susten-

    tvel, mais social ou de um capitalismo consciente.

    Para muitos estes so apenas termos ligados a greenwashing

    e que no mudam os princpios bsicos do capitalismo. Alguns,

    ainda concordam com Friedman de que o maior papel social de

    uma empresa ter lucro e com isso perpetuar-se, oferecendo

    empregos e bens sociedade.

    1 Latouche, Serge.

    Pode a frica

    contribuir para

    resolver a crise

    do ocidente?

    IV Congresso

    Internacional De

    Estudos Africanos.

    Barcelona 12 15 de

    janeiro de 2004.

    2 Sen, Amartya.

    Desenvolvimento

    como Liberdade.

    Companhia das

    Letras: So Paulo.

    2000.

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    Talvez por ingenuidade, acredito que esta nova gerao

    com brilho nos olhos e vontade de fazer diferente ainda pode

    mudar muita coisa. No algo que acontece em um ou dois

    anos. um movimento que precisa de pacincia, mas que pode

    ter frutos muito positivos no longo prazo.

    Mas para tanto, importante pensar fora da caixa. Buscar

    novos paradigmas. E, por isso, quem sabe outras culturas ou os

    pases dos mercados emergentes em uma tpica inovao reversa

    possam trazer uma nova viso e compreenso de como o modelo

    econmico pode evoluir.Como na histria de Laura Bohannan sobre Shakespare

    na Selva, podemos compreender que as diferentes experin-

    cias podem trazer significados e interpretaes distintos, sendo

    assim extremamente relevante a busca de um novo olhar. Um

    novo olhar para a frica, um novo olhar para o mundo.

    Edgard Barki

    Professor Doutor da Escola de Administrao

    de Empresas de So Paulo (EAESP-FGV)

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    dei a notcia. E foi somente no momento em que as palavras saram

    da minha boca que me dei conta da seriedade da proposta:

    Me... Pai... Ento, ao invs de voltar para o Brasil em julho,decidi que vou passar uns meses na frica. Ainda no sei exata-

    mente por quanto tempo ou qual o roteiro, mas se estou o tempo

    inteiro tentando discutir desenvolvimento social e pobreza, nada

    mais correto do que ir pra l. Eu tenho bons contatos e uma boa

    ideia do que quero fazer... Vou avisando vocs.

    Filho, voc inventa cada uma...

    E foi a partir da que, em maio de 2011, comecei a prepa-

    rar minha viagem pela frica Subsaariana, uma regio com o

    estigma da Pobreza estampado na cara. A verdade que nunca

    tive curiosidade de conhecer, em particular, algum pas africano.

    Tambm nunca pensei que um dia chegaria frica, e jamais

    imaginei uma experincia como essa que vou relatar neste livro.

    Em setembro de 2010 eu estava no aeroporto. Na-

    quele momento, as lgrimas de meus pais caam em fun-

    o da minha viagem para Israel com o objetivo de fazer

    um treinamento de trs semanas e, de l, seguiria para um

    trabalho de mdio prazo na ndia. As minhas escorreram

    somente depois de passar pela segurana e entender o que

    estava deixando para trs por conta dessa teimosia. Mas,mesmo inseguro, no fundo eu sabia que no era teimosia.

    Nos ltimos anos estive envolvido at o pescoo com a rea so-

    cial, mas como nunca consegui ter clareza do que isso de fato

    significava, resolvi explorar outras realidades e tentar extrair

    novas experincias que pudessem contribuir com meu traba-

    lho no Brasil.

    Em outubro de 2010 cheguei ndia. Talvez com o mesmo

    pensamento, talvez por acreditar em certas semelhanas com o

    Brasil e o momento em que estamos passando no desenvolvimen-

    to social em ambos os pases. Passei mais de cinco meses traba-

    lhando em trs projetos diferentes para compreender que, mais do

    que as semelhanas corriqueiramente ressaltadas, estamos vivendo

    momentos bastante distintos. Principalmente, vivemos sob lgi-

    cas diferentes, baseadas em tradies bem especficas em cadapas. No acho correto colocar no mesmo patamar duas naes de

    culturas to diversas, sob a anlise de apenas uma delas.

    Morei a maior parte do tempo em Hyderabad, quarta maior

    cidade e um dos polos tecnolgicos da regio sudeste da ndia.

    Com herana do reinado da monarquia dos Nizams, a cidade

    uma exceo no pas e possui 40% de sua populao de religio is-

    lmica. L, pude explorar, no dia a dia, certa diversidade indiana,

    mas tambm acabei me envolvendo com o cotidiano tradicional

    e o estilo de vida da sociedade.

    FOI NUMA CONVERSATRIVIALPELOSKYPE QUE

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    Minha atividade principal na ndia era acompanhar o ci-

    clo migratrio de trabalhadores semi-escravos que vinham de

    estados do nordeste para o sudeste, junto organizao interna-

    cional Aide Et Action South Asia. Atrados por falsas propostas

    de trabalho ou muitas vezes sequestrados e traficados, esses ho-

    mens eram obrigados a migrar com suas famlias e trabalhar para

    pagar dvidas das quais nem sabiam que tinham. Suas famlias

    eram ento incorporadas ao trabalho e a uma rotina exploratria,

    restando organizao da qual eu fazia parte apenas contribuir

    com a educao das crianas presas ao ambiente de trabalho eadvogar por melhores condies de vida junto aos patres.

    Enquanto pesquisava, escrevia e produzia material so-

    bre este ciclo migratrio pouco retratado no pas, acabei me

    envolvendo com o setor de negcios sociais da ndia. Por meio

    de um projeto britnico, chamado Ayllu Initiative, passei a

    contribuir no mapeamento de iniciativas consideradas sociais

    que so desenvolvidas em toda a ndia. Com isso, surgiram

    diversas oportunidades de aprender solues simples, com vis

    comercial, para erradicao da pobreza e melhoria da qualidade

    de vida das pessoas. Uma das iniciativas que mais me impressionou

    foi um filtro de gua em forma de canudo, de U$ 5,00, daqueles que

    garantem 99.99% de pureza para qualquer tipo de gua (contanto

    que no contaminada por produtos qumicos).

    Tambm conheci organizaes cujo papel resumia-se a ofe-recer microcrdito em regies sem acesso aos mercados conven-

    cionais, uma empresa de design de Rickshaws voltada ao pblico

    de baixssima renda e um sistema de gerenciamento de ambuln-

    cias e servios mdicos computadorizados distncia. Todas estas

    vivncias serviram para que eu pudesse mergulhar de cabea no

    tema do desenvolvimento social e da pobreza, sob um novo olhar.

    Meu ltimo ms na ndia foi uma imerso na pobreza de Mumbai,

    cidade to intensa e complexa que , ao mesmo tempo, similar e

    completamente distinta da minha cidade natal So Paulo.

    Intrigavam-me as linhas do trem e as conexes entre o luxo

    extravagante e a misria das favelas de Mumbai. Em menos de 15

    minutos, possvel percorrer a distncia entre a estao de trem

    prxima casa do magnata das telecomunicaes Mukesh Ambani,

    avaliada em mais de 1 bilho de dlares, e chegar tranquilamente

    em Dharavi, considerada a maior favela da sia, com estimativa

    de mais de um milho de moradores. Antilla, como conhecida a

    humilde moradia do empresrio Ambani, dono da Relliance,

    um bom exemplo das distores sociais que existem na ndia.

    Como continuao de um programa de fellowship, mu-dei-me para Israel. Agora eu trabalharia para uma agncia de

    desenvolvimento social do governo israelense cujo principal

    propsito era o intercmbio de conhecimento e tecnologia en-

    tre esse pas e o mundo em desenvolvimento. Exatamente o

    que eu estava procurando extrair de Israel. No Weitz Center

    for Development Studies tive a oportunidade de conhecer me-

    lhor a cultura israelense, um pas relativamente jovem, porm

    imerso em histria milenar.

    Se Israel e a regio do Oriente Mdio so conhecidos por

    seus conflitos tnico-religiosos, isto uma questo de escolha

    e direcionamento de alguns. H tanto assunto na rea do de-

    senvolvimento social como h no conflito entre israelenses e

    palestinos. E na minha escolha, priorizei os avanos no desen-

    volvimento e nas possibilidades de mudana social que a trocade experincias oferece em benefcio da populao e deixei em

    segundo plano os aspectos negativos da guerra. Claro, no pude

    evitar o envolvimento com diferentes organizaes de direitos

    humanos que tentam resolver o conflito a seu modo, mas me en-

    volvi principalmente com o cenrio de desenvolvimento pblico

    orientado pelo Estado de Israel.

    Participei tambm de uma viagem de 5 dias pela Jordnia, rea-

    lizando encontros e conversas com vrias organizaes no governa-

    mentais e agncias do governo atuantes no setor social. De pequenas

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    iniciativas locais at organizaes de escopo global, pude conhecer

    um pouco mais sobre um pas to prximo e to diferente do Brasil.

    Porm, foi trabalhando com pesquisa em Israel que come-

    cei a plantar as sementes que me levariam, ainda que ao acaso,

    para o leste africano. Uma das especialidades do meu chefe,

    Yossi Offer, era o desenvolvimento local. Como elaborar estra-

    tgias complexas para incentivar o crescimento de uma regio

    nos aspectos sociais, culturais e econmicos. impressionante o

    quanto possvel aprender com a simples proposta de mudana de

    olhar: de uma observao atenta s necessidades para um planeja-mento voltado aos recursos j existentes em cada regio.

    A frmula simples: ao invs de abordar uma regio ba-

    seada principalmente nos problemas e necessidades existentes,

    propem-se analisar quais so os recursos e ativos j existentes no

    local e que podem ser catalisados e desenvolvidos para a melhoria

    das condies de vida de quem j esta por ali. Organizamos um

    curso de desenvolvimento e melhoria de favelas e bairros po-

    bres em parceria com a UN-Habitat, voltado exclusivamente

    para gestores pblicos e atores sociais da frica, sia e leste

    europeu. Com isso, no preciso nem dizer que a minha rede de

    contatos no continente africano aumentou consideravelmente.

    Com a data de retorno previsto ao Brasil se aproximando,

    resolvi que era a hora certa de tomar a deciso e planejar o que

    pudesse ser planejado. Sabia o que queria fazer, porm, tinhauma ideia limitada de quanto tempo e dinheiro ainda teria dis-

    ponvel, mas precisava de uma justificativa: para mim, para meus

    pais e para a expanso da viagem no planejada. Comecei ento

    a escrever. Naquele momento, ainda compartilhava de maneira

    ingnua a viso em bloco de um continente-pas. Minha motiva-

    o era bastante simples: se eu estava interessado, estudando e

    tentando me aproximar de experincias nas mais variadas formas

    de desenvolvimento social e pobreza, o continente estigmatizado

    pelo tema teria que fazer parte do meu itinerrio. E assim foi.

    Depois de algumas rpidas pesquisas, decidi ir ao chamado

    Chifre da frica. Por qu? Porque j havia ouvido falar atravs

    de algumas notcias que, de tempos em tempos, so divulgadas

    nos meios de comunicao. Esse era, at ento, o meu imaginrio

    daquilo que seria a frica como um todo. No achei que fosse

    correto ir apenas para um pas e basear toda a minha experincia

    no continente levando em conta somente uma viso. Assim, no

    mapa, fiz um trajeto com canetinha3passando por alguns pases

    dessa regio, um pouco baseado na pesquisa prvia, um pouco

    pensando nos contatos que eu j possua e muito pela beleza est-tica do roteiro quase circular que eu desenhava.

    Sabia da existncia de algumas dificuldades tcnicas para

    viajar por aquela regio. Afinal, a frica subsaariana cercada

    por histrias sombrias de pases cujos acontecimentos internos

    so um mistrio, como Somlia, Sudo e Congo. Mas no mapa, o

    contorno em volta do Lago Victoria comeando da Etipia e ter-

    minando na Tanznia soava como uma opo muito bvia. E o

    estigma de pobreza da regio me atraa, no por puro vouyerismo,

    mas pela oportunidade de desconstruo de uma imagem ainda

    nem bem formada na minha cabea. Afinal, do que estamos falan-

    do quando descrevemos com tanta propriedade um lugar do qual

    nem ao menos conhecemos?

    Resolvi ir. Chequei minha conta bancria e percebi que o

    dinheiro que havia juntado para as duas viagens anteriores sobre-vivia solitrio, ainda que ele estivesse na UTI. Pensei em captar

    recursos, mas o processo com empresas e parceiros se mostrou

    ineficiente distncia. Cogitei uma arrecadao entre amigos e

    conhecidos, mas acabei decidindo manter a minha relao com o

    projeto distante da lgica de contribuies financeiras. Meu objetivo

    era aprender. E aprendendo, compartilhar e mobilizar outras pes-

    soas a criarem suas prprias formas de contribuir com a mudana

    da realidade, como indivduos, para a construo de uma sociedade

    mais justa onde quer que estejam.

    3 Brincadeira.

    Fiz isso tudo no

    Google Maps

    usando ferramentas

    sofisticadas de

    demarcao de

    rotas, mas esta

    apenas minha

    verso moderna da

    histria da canetinha

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    Mas da minha parte, no adiantaria apenas ficar na frente

    do computador ou sentado em uma biblioteca estudando o que se

    fala da pobreza. Ainda no encontrei e nem pretendo encontrar

    uma definio definitiva. No acredito que existam pobres por

    a. Afinal, Pobreza uma condio mutvel, uma soma de fatores

    organizados ou desorganizados de forma a desequilibrar o funcio-

    namento justo de uma vida humana. Minha contribuio no por

    meio da palavra, nem por meio do texto. Eu acredito na construo

    de experincias relevantes que possam moldar quem somos e, a

    partir da, o que quer que faamos ser social, benfico e positivo.Mas ento, por que este livro? Por um motivo bem espec-

    fico, ou seja, o acmulo de experincias e vivncias nesta rea de

    desenvolvimento social e erradicao da pobreza , de certa forma,

    ingrato. No entanto, se por um lado o aprendizado , na maioria

    das vezes, sobre o que no deu certo, sobre uma observao da si-

    tuao catica em seu estado mais complexo ou mesmo a simples

    constatao da dificuldade em se resolver todos os problemas de

    uma vez ; por outro lado, somente quando todos ns estivermos

    um pouco mais conscientes do impacto que causamos no entorno

    que comearemos a engatinhar para solues mais justas e efi-

    cientes. Assim, que este relato e algumas provocaes sirvam para

    que levantemos as perguntas adequadas e comecemos ento a cor-

    rer atrs de respostas mais qualificadas.

    Os poucos dias que me restavam entre o trmino do meutrabalho em Israel junto ao Weitz Center e a minha partida para

    outro continente serviram para colocar algumas ideias e planos no

    lugar. Abandonei mais da metade dos meus pertences na sala de

    um casal de amigos; coloquei algumas peas de roupa em um

    mochilo de 70 litros nas costas e meu computador, caderninho

    e mquina fotogrfica na mochila vermelha posicionada junto a

    minha barriga. Com a casa nas costas e o escritrio na barriga,

    parti em direo frica para realizar o projeto que eu mesmo

    havia criado dias antes: o Mochila Social.

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    Mais do que uma viagem de pesquisa, estou tentando propor um

    olhar diferente, um olhar mais aberto para tudo que est aconte-

    cendo a nossa volta. Muitas vezes viajamos com um certo teor de

    indiferena e com a cabea focada apenas no que estamos vivendoe sem perceber situaes diversas.

    Hoje, creio que possumos grande parte das habilidades e

    dos conhecimentos necessrios para a soluo de muitos proble-

    mas sociais. No s os governos, ONGs, empresas e instituies

    tm responsabilidade sobre o que h de errado no mundo, mas

    cada um de ns. Afinal, estas organizaes so formadas por um

    conjunto de indivduos e, em ltima instncia, so as decises

    pessoais que influenciam as propostas para que o resultado final

    seja positivo ou negativo.

    PROPOSTADE OLHAR

    Portanto, acredito na importncia da nossa formao indi-

    vidual como estratgia de mudana social. O que vemos, sentimos

    e pensamos influencia diretamente o que fazemos. Escolhi esse

    caminho para me expor a diferentes experincias em busca de

    um melhor entendimento sobre o que significa viver em situa-

    o de pobreza, o que significa carecer dos recursos mais bsicos

    que damos como normais em nossas vidas. No porque acredito

    que nesse momento tenho a habilidade de fazer a diferena na

    prtica, mas porque estou interessado na minha formao como

    pessoa, independentemente do que eu venha a fazer no futuro.Imagino que as interaes com as pessoas que cruzaram o

    meu caminho nessa viagem foram pontos cruciais para o sucesso

    da experincia. E o compartilhamento de ideias, pensamentos e

    aprendizados, foi uma oportunidade de encontrar mais pessoas

    que, assim como eu, sentem-se insatisfeitas com o que veem nas

    sociedades. Mesmo que no necessariamente saibam como agir

    para tal mudana. No viajei necessariamente em busca de res-

    postas, mas em busca de perguntas mais elaboradas, mais concre-

    tas e mais fceis de serem convertidas em ao.

    Gostaria de propor a abertura de nossos olhos para o que h

    de simples naquilo que nos rodeia. Desmistifiquemos os proble-

    mas que parecem insolveis e que assim ento seja possvel agir.

    Uma ao que no esteja distante de nossos interesses pessoais e

    que no esteja distante de nossas habilidades at agora adquiridas.Minha proposta canalizar o que temos de bom individual e

    coletivamente para melhor atender nossas demandas sociais.

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    SOBREINFLUENCIARPESSOASUGANDARUANDATANZNIASOBREESTARDE VOLTA

    SOBREVIAJAR SOZINHOEGITOETIPIAQUNIA

    DADAAB -AHSEEUFOSSE PRA SOLIA...

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    Sozinho. assim que comea a minha experincia pelo leste africano.

    Mas afinal, o que estar sozinho em um mundo que ultrapassou os

    7 bilhes de pessoas enquanto eu viajava, conectado o tempo todo

    nos mais diversos meios de comunicao e cujas distncias entre umcanto e outro s so perceptveis com muito esforo?

    Em primeiro lugar, acho que importante dizer que dificil-

    mente estive sem ningum ao meu lado durante toda a viagem.

    Na maioria do tempo, contei com o apoio de pessoas locais ou, pelo

    menos, de moradores que viviam no pas em questo por perodos

    de curto, mdio ou longo prazos. Alm disso, permaneci conectado

    minha famlia e amigos o maior tempo possvel. Mesmo assim,

    acredito na relevncia do momento solitrio e das reflexes que

    apenas ocorrem no exlio fsico. Esse contato com o meu mundo

    particular e com minhas experincias anteriores foi fundamental

    para a manuteno da minha unidade como ser pensante e, tam-

    bm, com a possibilidade de crescer a partir das vivncias passadas

    e das opinies alheias. Mas, um segundo aspecto que considero

    importante destacar antes de comear a contar esta experincia,

    a dificuldade que encontrei em lidar com alguns temas e vi-

    vncias sem um companheiro de viagem para refletir junto; um

    parceiro para dar apoio nas horas mais difceis. Assim, era bvia

    a necessidade de organizar e compartilhar de alguma forma esses

    pensamentos inconclusos. Foi ento que nasceu a ideia de umblog. Meu companheiro de viagem ganhou forma e nome, apesar

    do aspecto frio com o qual nos relacionvamos.

    Por alguns momentos, cheguei a conversar com este meu

    novo amigo, Sam, de origem coreana. Ao estilo do filme Nufrago

    e o relacionamento entre a personagem de Tom Hanks e a bola de

    vlei, apelidada de Mr. Wilson, passei a encontrar no meu laptop

    Samsung um parceiro de reflexes. s vezes com ele desligado,

    outras com documentos em branco espera de palavras que fi-

    zessem sentido e expressassem meus pensamentos, fui levando

    a srio o comprometimento com o projeto Mochila Social. Assim

    seria mais fcil terceirizar algumas emoes e dificuldades, como

    parte do trabalho, e no interferir na minha composio pessoal

    de maneira prejudicial.

    Acredito que a vantagem de estar sozinho uma certa valo-rizao do prprio jeito de ser e pensar. Uma reduo da presso

    social em fazer coisas das quais discordamos, mas muitas vezes

    no temos energias para deixar para trs. Uma oportunidade de

    priorizar desejos e vontades individuais em detrimento das ex-

    pectativas que nos cercam diariamente em nosso cotidiano, seja

    por influncia da famlia, amigos, trabalho, sociedade ou de ns

    mesmos atravs do olhar depreciativo pelo qual muitas vezes nos

    julgamos. Distante do meu cotidiano habitual, pude me permitir

    a chance de ser quem eu quis ser, organizar meu dia da maneira

    sobrev i A j A r

    soz in ho

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    como acreditava mais interessante e declinar ofertas inadequadas

    ou desconexas com meus objetivos dentro dessa experincia.

    No me senti sozinho, apesar de muitas vezes contar ape-

    nas com a minha prpria companhia. No fiquei mais triste ou

    mais feliz do que durante meu dia a dia convencional, mas, com

    certeza, me senti mais livre para pensar e explorar novas vivncias.

    O mais importante: quando sozinho, me permiti observar as coi-

    sas mais simples com o olhar mais complexo possvel, sem medo

    das opinies e desinteresses alheios. Ao mesmo tempo, consegui

    simplificar a minha relao com o meu entorno e aprender avalorizar o que realmente me completa.

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    COEcEI A VIAGEAFRICANA PELO EGITOpois estava morando no vizinho, Israel, a trabalho. Cruzei a fronteira

    mais ao sul com o claro objetivo de aproveitar alguns poucos dias de

    frias no famoso deserto do Sinai. Afinal, para chegar ao Cairo porterra, eu seria obrigado a me deliciar com as paisagens de tirar o

    flego do deserto e do mar Vermelho.

    Parti de Tel Aviv em direo a Eilat, no sul de Israel, no nibus

    que saa de madrugada. Apesar das crianas que resolveram celebrar

    suas frias dentro do nibus, a viagem de pouco mais de 4 horas foi

    bem tranquila. De l, um txi me levou fronteira com o Egito, onde

    cruzei para a cidade de Taba. Havia lido que era possvel obter visto

    na hora e assim o fiz. Mas no foi to fcil. O fiscal da imigrao me

    orientou a conversar com um dos guias tursticos que estavam ali.

    Por uma quantia injustificvel, obtive um selo do Egito (que nada

    mais passava de uma espcie de figurinha de lbum) e assim o

    carimbo de entrada. Segundo ele, agora eu estava sob sua respon-

    sabilidade, por isso o valor elevado na emisso do selo.

    Ainda era muito cedo e no haviam nibus disponveis de

    Taba para a cidade de Dahab. Esperei por mais de uma hora senta-

    do com outros passageiros at uma pequena van lotar. Por cinco li-

    bras egpcias a mais, samos um pouco mais cedo. Na hora de pagar,

    uma deciso monetria: at Dahab custava 100 libras egpcias e at

    Nuweiba, famosa por alguns resorts, era apenas 50. Hesitei por unsinstantes e decidi pela mais barata. Pouco a pouco, os passageiros

    iam sendo deixados em seus respectivos resorts. Eu e a Dani, uma

    brasileira e amiga de infncia que me acompanhava, descemos lite-

    ralmente no meio do nada, supostamente na cidade de Nuweiba.

    Aps perambular um pouco, dois rapazes ofereceram carona

    e perguntei: like... as friends?, para saber o quanto na amizade

    seria essa histria. Nossa amizade valia 10 libras e ganhamos caro-

    na at praticamente o paraso. A areia amarelada, protegida pelas

    montanhas de rocha, abrigava algumas poucas tendas de sap, no

    maior silncio que um deserto pode oferecer. Fizemos o que tnha-

    mos para fazer: dormimos frente de uma das mais belas paisa-

    gens dos ltimos tempos.

    Para ir embora, nos recusamos a pagar um txi carssimo e

    fomos estrada em busca de carona mais barata. Tivemos a sorte deencontrar dois pescadores muito simpticos que nos arranjaram um

    txi (quase o mesmo preo que teramos pago). Um dos rapazes era

    mudo e foi uma conversa muito interessante, baseada totalmente

    nas nossas habilidades de fazer sinais comuns a qualquer cultura.

    O caminho de Taba at Nuweiba trouxe uma reflexo: era

    impressionante ver a infraestrutura turstica abandonada e a

    quantidade de hotis e conglomerados imobilirios em construo

    parada. A princpio, imaginei que isto seria reflexo da baixa es-

    tao, causada tanto pelo calor quanto pelas agitaes dos ltimos

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    meses no pas. Pelo tamanho das construes e pelo nvel de

    abandono, acabei concluindo que a regio estava abandonada

    h mais tempo, talvez desde quando as fronteiras entre Egito,

    Israel e Gaza ficaram to sensveis, ou mesmo devido s diversas

    atividades suspeitas e ilegais que ocorrem diariamente em meio a

    este silncio todo no deserto.

    Lembro que o Sinai conecta a frica a Israel e o resto do

    Oriente Mdio. rota de transporte de todo tipo de mercadoria

    atravs do Canal de Suez. Uma infinidade de refugiados viaja de-

    zenas de dias de pases como Sudo, Congo, Nigria, Eritreia eEtipia em busca de segurana, e acaba encontrando segurana

    no lado israelense (no que isso no lhes cause uma srie de

    outros problemas...).

    Chegar em Dahab, a prxima cidade turstica, foi um alvio.

    Por um momento, pensei que a regio do Sinai continuaria com-

    pletamente deserta. No que eu estivesse procurando alguma coisa

    especfica, mas eu particularmente adoro interagir com os rabes e

    estava comeando a sentir falta da hospitalidade beduna por aqui.

    A cidade de Dahab fica localizada no golfo de Aqaba, em

    uma entradinha que, eu acredito, s a gua mesmo passeia

    tranquilamente. De um lado o Egito, do outro a Arbia Saudita.

    Ao norte I srael e Jordnia. Segundo um dos guias, um japons

    achou que era tranquilo cruzar o golfo e visitar o lado da Arbia

    Saudita e est at hoje tentando voltar. (Brincadeiras parte,no vale a pena arriscar).

    O turismo a principal e aparentemente nica atividade

    comercial por aqui. A regio dominada por bedunos cujas tra-

    dies incluem criao de animais e consumo de gua de fontes

    subterrneas, tradio passada de gerao em gerao. claro que

    a movimentao de turistas de diversas partes acaba comprome-

    tendo a autenticidade de algumas atitudes mas, de maneira geral,

    o povo por aqui se mostrou muito solcito e divertido de conversar.

    Sentam na minha mesa, falam de futebol (dica: saber o nome de

    um jogador egpcio pode abrir muitas portas ou pelo menos qua-

    lificar conversas) e fazem a experincia mais e mais prazerosa.

    A praia maravilhosa: h menos de 2 metros da areia poss-

    vel mergulhar de snorkel e observar um recife de corais majestoso e

    uma diversidade de peixes que eu, morador de cidade, s havia visto

    em protetores de tela. De um dos bares beira-mar observa-se de

    um lado a imensido do mar Vermelho e os diversos mergulhadores,

    e do outro o agito de comerciantes divididos entre oferecer merca-

    dorias quase fora e limpar a calada a cada 5 minutos com gua

    salgada e sabonete.A torneira e o chuveiro tambm so de gua salgada. No

    to salgada como a que vem do mar, mas o suficiente para deixar

    os olhos irritados no banho e um gosto desagradvel ao escovar

    os dentes. A vantagem que a cozinha dos restaurantes no fica

    visvel para os turistas, o que poupa a informao sobre com

    qual gua e como as refeies so preparadas.

    Enquanto mergulhava de snorkel por que no sou gran-

    de f de ir muito fundo fiquei um pouco chateado ao encontrar

    alguns sacos de lixo danando junto ao movimento dos intermin-

    veis cardumes. Fui descobrir depois que uma organizao local de

    moradores convida os turistas para uma faxina subaqutica no

    primeiro sbado de cada ms. Mais do que isso, fica claro o impacto

    de um nico item de lixo quando descartado incorretamente.

    Durante o dia, o que vale ir a alguma praia para mergulhar.E isso mais significativo na praia principal, descendo as escadas

    por qualquer um dos bares que d acesso gua e ficar encantado

    com a existncia de tanta vida marinha to prxima da superfcie.

    noite, jantar e tomar uma cerveja local como a Stella (quando

    pedi, achei que o sobrenome seria Artois, como a francesa, mas

    acho que estava mais para algo como Stella Al Sheik).

    Como fui em baixa temporada e durante o perodo de

    Ramadan, foi possvel me aproximar com mais facilidade dos mo-

    radores locais pois no havia tantos turistas. Durante as festividades

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    sofrendo algum tipo de trapaa. Depois de nove horas de nibus

    e cautelosas pesquisas no meu guia e com meus companheiros

    de viagem sobre quanto deveria custar um txi da estao at o

    centro da cidade, desci do nibus para escutar um valor seis vezes

    maior.

    Quanto s tentativas de explorao de turistas, confesso

    que j estou calejado da ndia. Acho que o que mais me afetou

    no Egito foi o embasamento dessas mentiras. No basta cobrar

    preos abusivos. A estratgia tentar convencer o turista de que

    tudo vai dar errado e a melhor opo confiar no novo amigo.nibus? J parou de passar; Seu hotel fechou; muito longe,

    o nibus no vai passar e melhor voc pegar meu txi.

    Checava uma informao na Internet, conferia no guia, con-

    versava com mochileiros e ao sair para a rua todos tentavam me

    convencer do apocalipse. Normalmente, a equipe do hotel solcita

    aos viajantes e costuma dar dicas de como evitar as trapaas. Mas

    no por aqui. Meu maior inimigo era a recepo do hotel, que me

    segurava por horas tentando me convencer a contratar diversos

    servios antes de checar as coisas na rua. Mas eu sou teimoso.

    Sa pela manh para sacar dinheiro e graas ineficincia

    do meu banco fiquei na mo. Porta aberta para um transeunte

    qualquer me abordar e oferecer a mais pura das amizades. Depois

    dele, outros quatro me ofereceram exatamente a mesma amiza-

    de, inclusive com as mesmas informaes pessoais e propostas.Acabei acreditando que todas as pessoas moram em Giza (onde

    ficam as pirmides) e adoram a companhia de turistas como eu

    para o jantar. Acredito que eu seria um dos pratos principais.

    Acabei indo s pirmides de nibus, seguindo o conselho

    despretensioso de um vendedor de gua, que no tinha como

    se beneficiar da minha pergunta (e eu j havia comprado gua).

    Quarenta minutos depois, o motorista me aponta uma das pir-

    mides vista da rua. Meu rabe to fluente quanto sua lingua-

    gem de sinais, mas fica claro que h apenas uma direo a seguir.

    Mais vinte minutos e estou em frente ao complexo de entrada das

    pirmides. E, particularmente, perplexo.

    Eu j ouvira que as pirmides estavam situadas bem no

    meio da cidade, mas no fazia ideia de como isso influenciava

    o clima, o relevo e impactava a paisagem. De um minuto para o

    outro me vi no deserto, com uma garrafa de gua na mo, camiseta

    amarrada na cabea e culos escuros. Em meio multido de

    camelos, cavalos e todo tipo de oferta, decidi explorar os monu-

    mentos a p, poupando meu dinheiro e pacincia. Caminhando

    por vinte minutos sob o sol a pino, fiz uma descoberta geomtricabvia: pirmides no fazem sombra em nenhuma hora do dia.

    As pirmides so, de fato, impressionantes, mas confesso

    que o que mais me interessava era o contraste entre a cidade e

    o deserto. Alguns degraus escalados na segunda maior pirmide

    e tudo ficava exposto: no primeiro plano, uma milenar pirmide,

    um altar de celebrao continuidade da vida; e atrs, a expresso

    urbana de como essa vida continuou.

    No sei exatamente a linha ideolgica e as motivaes reais

    que os levaram a construir tais monumentos, mas tenho a im-

    presso que o contnuo desconforto causado aos turistas no os

    agradaria. So incessantes ofertas de produtos e servios na rea.

    Observei japoneses, italianos e russos lutarem com vendedores

    e policiais para se livrar de servios indesejados. Os policiais de

    branco, prestam um importante desservio: oferecem a chamadamelhor vista da pirmide, com direito a foto, em troca de alguns

    Bounds egpcios (pronncia rabe, trocando o p pelo b).

    Resolvi ento voltar. Um nibus me levou at o trem, que

    me levou praa Tahrir. De l, tentei entrar no museu egpcio,

    mas devido ao Ramadan o horrio de funcionamento estava alte-

    rado e eu excludo da experincia. Sem problemas, meu interesse

    neste dia nico estava mais voltado praa do que ao turismo

    propriamente dito. Afinal, o Egito vive um momento de transio

    interessante e eu estava ali no centro da baguna.

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    A presena da polcia e do exrcito apenas precauo.

    Outra instncia do julgamento de Mubarak estava prevista para

    aquele dia e os nervos do pas ficam mais tensos. Caminhes

    trazem dezenas de policiais armados e vestidos de preto, enquan-

    to soldados camuflados seguram metralhadoras do alto de seus

    tanques. Nenhum agito por ali, e depois das cinco da tarde uma

    calmaria. Segundo me disseram, as pessoas foram para casa assistir

    ao julgamento transmitido em rede nacional.

    Tambm jejuei nesse dia, junto com milhes de muulmanos

    para o Ramadan. O jejum comea perto das trs da manh e encerracom o pr-do-sol. Senti o sabor diferenciado de um Shwarma depois

    de tantas horas sem comer, mas mesmo com a fome o prato no

    me surpreendeu. Foi interessante caminhar e ver as diferentes

    quebras pblicas de jejum pelas ruas adjacentes. Em poucos mi-

    nutos, a cidade inteira se transforma em um imenso restaurante,

    com todos quebrando o jejum ao mesmo tempo, em qualquer

    esquina da cidade.

    De barriga meio cheia, meio vazia, voltei ao meu hotel para

    uma ltima noite de sono. Confesso que fiquei contente de estar

    dando sequncia viagem, mas sentia o peso da falta de progra-

    mao nos dois dias que passei no Cairo, sem ter conseguido

    visitar nenhuma organizao. O Egito no era necessariamente o

    foco do Mochila Social, mas estava no meio do caminho e poderia

    ento ser aproveitado de alguma forma.Depois de lutar contra as ofertas de pagar trs vezes mais em

    um txi, fui de manh rodoviria e esperei. E esperei mais um

    pouco. Depois de uma hora que meu nibus no passava, decidi me

    render e pegar um txi. Em poucos minutos estava no aeroporto,

    pronto para pegar o voo com destino Etipia. Fui surpreendido

    com a diversidade de pessoas no avio em um voo no meio da se-

    mana, de madrugada, do Cairo Addis Ababa, capital da Etipia.

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    Uma observao antes de continuar: eu, desde o incio, sabia que

    era algum tipo de esquema, trapaa ou coisa do gnero. Porm, ainda

    confio na minha habilidade de julgamento, poder de convencimento e lbia

    para me tirar de roubadas. Ao mesmo tempo, minha curiosidade para

    entender esse tipo de negcio me faz sempre ir em frente. Com cautela.

    Conversamos um pouco enquanto caminhvamos eu havia

    comentado com Yonatan, meu novo amigo, a necessidade de um

    banho e consequentemente shampoo. Durante o caminho, contou-

    -me sua histria: 25 anos, estudando literatura na universidade de

    Addis Ababa, atualmente de frias, mora perto da regio onde estoue queria praticar o ingls. Se eu dissesse que ia para a esquerda, ele

    se convidaria para ir tambm, ento resolvi, de certa forma, us-lo.

    Eu estava planejando visitar a regio chamada Mercato, vinte

    minutos de caminhada de onde estou hospedado. considerado um

    dos maiores e mais caticos mercados da frica. Havia lido sobre

    a regio e pensei que seria um bom lugar para comear a observar

    a vida cotidiana. Assim, combinei com Yonatan que tomaria banho,

    deixaria todos os meus pertences no hotel e seguiramos juntos para

    o Mercato. Fiz questo de deixar claro, antes e durante, que no car-

    regava absolutamente nada comigo, o que me daria certa liberdade.

    O Mercato, como conhecido o aglomerado na regio de um

    dos maiores mercados abertos do continente africano, um exem-

    plo vivo da mistura quase catica que identifica o leste africano.

    Quando sa do hostel, Yonatan no estava. Fui ento caminhandosozinho de Piazza at a entrada do que seria o Mercato. No trajeto,

    o asfalto quebrado se alterna com a cobertura apenas de terra, e no

    caso, lama negra que invadia minhas sandlias e marcava os meus

    ps. Caixotes so levados de um lado para o outro, deixando cair

    alimentos e outros itens no cho sujo. Porm, sempre havia algum

    na rua disposto a pegar um destes itens com muita satisfao.

    Tmido, no quis sacar a minha mquina fotogrfica e es-

    tragar o meu pseudo disfarce embaixo de um agasalho e capuz.

    Assim, observei a janela aberta de um prdio de trs andares,

    aparentemente comercial, e resolvi tentar subir para um melhor

    ngulo. A clnica de sade na qual entrei ficou surpresa com a

    minha presena. Digo isso porque secretrias, pacientes e mdi-

    cos deixaram seus problemas de lado e focaram suas atenes em

    mim, que me debruava pela janela em busca de boas fotografias

    desse cenrio to complicado.

    Em outra ocasio, dois dias depois, voltei ao Mercato com

    Yonatan, meu guia improvisado que tentava extrair qualquer coi-

    sa de mim. Para mim valeria a pena: ele me mostraria alguns lu-

    gares que os turistas normalmente no frequentam porque elesabia o que eu estava procurando e queria me impressionar em

    troca de uma potencial discusso na hora de ir embora sobre o

    custo para este passeio (infelizmente, muito difcil estabelecer

    um preo antes do servio prestado. O que, sem dvida, o moti-

    vo de grande parte dos aborrecimentos na regio).

    Passei, pelo menos, umas quatro horas entre vielas mal pla-

    nejadas e aglomerados infinitos de produtos de todo tipo, espalha-

    dos e desorganizados em pequenas barracas. Impressionava-me

    no s a sujeira do lugar em grande parte culpa da garoa fina e

    das chuvas do dia anterior , mas tambm a presena de pessoas

    em condies de sade terrveis, sejam elas pedintes ou no.

    O mercado carrega o nome italianizado de uma poca de

    domnio estrangeiro sobre o pas. Mas, sem dvida, caminhando

    pelas pequenas vielas do lugar, a frica estampada: do estigma realidade. Catico, desorganizado e sem planejamento, o mercado

    oferece todo tipo de mercadoria. E todo tipo de paisagem tambm.

    Yonatan me contou que havia trabalhado por trs meses

    no Censo da regio. Porm, em poucos minutos de caminhada,

    diversas pessoas o abordavam sorrindo e gritando Ganja (que eu

    sei, desde a ndia, que significa maconha). No me importa. O que

    me interessa que, de fato, ele tem acesso e respeito na regio, o

    suficiente para me tirar da rota turstica e mostrar um pouco mais

    a fundo o que esse recanto antropolgico tem escondido.

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    No caminho, ruas sem asfalto, sem definio clara de comeo

    e fim e enlameadas devido temporada de chuvas. Um movimento

    intenso de pessoas, animais e mercadorias. Burros de cargas, cabras,

    pedintes, mutilados e doentes circulam sem distino. s vezes, es-

    tirado ao cho, um corpo, humano ou animal. Em meio conversa

    com meu guia improvisado, observo sobre seus ombros uma pai-

    sagem cinza e dolorida. Ningum parece notar a minha presena.

    Mas eu pareo ter o pensamento ligado no 220v.

    Comercialmente, as lojas se agrupam mais ou menos por ati-

    vidade. Produo de caf para um lado, manuseio de ferro do outro(exportado principalmente para companhias chinesas para a cons-

    truo de estradas). Vegetais so fatiados e distribudos no cho de

    uma viela cujo deslocamento quase impossvel, enquanto roupas

    e tecidos so manufaturados no fim do extenso corredor.

    De sandlias, sinto entre os dedos a insalubridade do local.

    E quando observo crianas e portadores de deficincia largados

    no mesmo cho que me causa tanto desconforto, sinto meus ps

    um pouco mais pesados ao me deslocar. Ignoro a espiadela que

    trouxe ao meu conhecimento um rato morto. Estou distrado com

    um pedinte cuja pele esta tomada por grandes bolhas e feridas.

    Ele expe seu corpo no meio da rua, e mesmo assim consegue

    desviar uma infinidade de olhares. No o meu. No estou mais

    olhando para ele, mas tenho sua imagem em minha cabea.

    Sem tempo para reflexes. Entramos ento numa sinfoniade jovens e crianas martelando, quase que em sintonia, longas

    peas de ferro. O material bruto deve ser exportado China.

    Os lucros tambm ficaro com os orientais. Peas gigantescas de

    um tempero esbranquiado so cortadas s pressas e oferecidas

    aos pedestres que se aglomeram nos poucos centmetros de lar-

    gura entre uma tenda e a outra.

    A maioria das vestimentas est manchada de tons de marrom.

    Apesar de algumas roupas e lenos originalmente apresentarem

    cores vibrantes, o desgaste estampa-se como uma etiqueta de

    marca: Etipia. H uma rea de temperos. Outra para artesanato.

    E h a parte limpa, desouvenirse lembrancinhas da Etipia, habita-

    da por alguns poucos rostos diferenciados da multido: osfarengis.

    espreita, sempre um aglomerado de pedintes. De certa

    forma, respeitam a deciso do transeunte de compartilhar ou no

    suas pequenas riquezas. De um lado, alguns poucos guardas com o

    uniforme amarrotado observam o movimento. Presencio um furto

    seguido de perseguio por parte de um dos policiais. Tudo falso,

    segundo meu jovem guia. Algum tempo depois, ambos dividiro

    os lucros e muitas vezes tambm a recompensa pela captura edevoluo de um bem valioso.

    Do alto do segundo andar de um pequeno comrcio, obser-

    vo e fotografo. No h como captar a energia do lugar. Nem os

    diversos odores. Muito menos transparece no olhar da mquina

    o que estou observando. Deso desviando de um cadeirante cujos

    braos movem um par de pedais. Ele empurrado por um jovem

    coberto por um pano imundo, e juntos pedem colaborao. No

    a mim. Minha presena quase no se faz notar, e eu no consigo

    entender o porqu.

    O Mercato movimenta diversas indstrias da cidade. Por

    um lado, chineses usam o ferro produzido na regio para a cons-

    truo de rodovias, enquanto os indianos exploram o mercado

    de manufaturados. Todos se renem no mercado para comprar

    diversos tipos de bens. E muitos veem no Mercato a oportunida-de de um negcio, um ponto de esmola ou um furto. H espao

    para todos, ao mesmo tempo em que todos se esforam para no

    esbarrar uns nos outros.

    A rea residencial circunda o comrcio e abriga grande par-

    te das famlias que trabalham no Mercato. Vielas de terra e pedra,

    bem menos populosas. Largados no cho, mais alguns corpos.

    Impossvel compreender o estado vital de cada um deles. Enquanto

    uns parecem ter escolhido o local para estabelecer-se, com um pe-

    queno pedao de plstico estendido em busca de esmolas, outros

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    parecem ter apenas padecido sem opo. A regio das casas no

    foi feita para visitas, por isso no passo muito tempo por l.

    No caminho de volta, opto por uma longa caminhada.

    Muitas imagens vm cabea e preciso de alguns momentos

    para rev-las. O lugar considerado um dos maiores mercados

    a cu aberto do continente africano, mas tenho certeza que o

    lugar muito mais. Saio sem consumir nada, fui orientado a no

    carregar nada comigo. Mas levo na bagagem um amontoado de

    cenas e impresses sobre o que se passa por ali.

    Depois de mais de quatro horas de entra e sai na regio, re-tornamos. Conversamos sobre futebol, polticas pblicas de habi-

    tao e a vida na Etipia e no Brasil. Ele foi me guiando por um

    caminho um pouco mais longo do que o da ida, e fiz questo de

    deixar claro que sabia perfeitamente onde estava e como retornar,

    meio que em tom de brincadeira. Chegando perto do hostel, ele me

    perguntou ento quais eram meus planos a seguir. Se eu no estava

    a fim de curtir um pouco, mascar Qat5 e trocar ideia profunda

    com ele e seus amigos. Avisei-lhe que, infelizmente, estava aqui a

    trabalho, que tinha que voltar a escrever e mais tarde encontraria

    meus amigos por aqui.

    Peguei seu telefone, para uma futura interao. O tempo in-

    teiro eu fazia piadas do tipo: eu no preciso do seu telefone, eu sei

    que amanh voc vai estar por aqui procurando pessoas como eu.

    Ele achava graa, e acho que entendeu que eu no estava muito afim de cair em trapaas. Retornei e fui descansar. Precisava de um

    intervalo. Estava muito cansado da viagem e sentindo um grande

    peso pelas coisas que observei no Mercato.

    Depois que acordei, sa para um caf pela regio e fui abor-

    dado por dois garotos com a mesma histria. Dei corda aos dois.

    Quando voltei do caf, fui abordado por mais um. Dei a mesma cor-

    da. Quando sa noite para jantar, sozinho, achei que a brincadeira

    tinha limite e que, sem a luz do dia, nada seria to seguro ento

    resolvi jantar no restaurante em frente ao hostel em que estava

    dormindo. Comi pela primeira vez uma refeio etope: Carne Fir

    Fir, com injera, o po tradicional da regio. Surpreendentemente,

    o sabor no me incomodou mas, obviamente, no comi nem me-

    tade do prato (claro, com as mos).

    Vou escrever sobre o que pesquisei e descobri a respeito

    do esquema dos jovens universitrios etopes com quem vinha

    conversando: depois de toda a introduo e ganho da confiana,

    s vezes depois de xcaras de caf ou copos de cerveja em res-

    taurantes locais, convidam o turista para uma atividade na qual

    oferecem um servio sem preo. Algo como uma apresentaode msica local (mesmo que seja em CD) ou o consumo de Qat

    acompanhado de uma conversa (Yonatan me disse que essas con-

    versas so apelidadas de Facebook).

    Assim, ao final da experincia em grupo normalmente

    distante do hostel, em algum lugar onde eles possuam maior

    domnio cobram o servio prestado sob ameaas (no sei e

    no vou descobrir de que intensidade). Algo em torno de 2.000

    Birrs (mais de U$ 100,00), segundo escutei de viajantes de lon-

    ga data por aqui. A diferena que em um caf ou bar eles

    no podem trapacear, somente quando o produto pertence

    a eles e no pode ser precificado que eles atuam. Detalhe: as

    histrias so extremamente bem contadas e mesmo diante de

    perguntas capciosas, a maioria deles se saiu muito bem (claro,

    com pequenas incoerncias e discrepncias, porm impercep-tveis para o turista desavisado).

    E eu que ficava pensando o tempo inteiro em propor para

    Yonatan que ele profissionalizasse seu servio de guia local,

    rendendo boas revises em todos os fruns online de viajantes.

    Acabei conversando com outro rapaz chamado Tony por bastante

    tempo. Chegamos concluso que o golpe estava ficando man-

    jado, e acabei deixando a sugesto de uma apresentao mais

    sincera e direta por parte deles, em troca de alguns Birrs em con-

    cordncia com o turista. Algo do tipo: sou um jovem etope, mo-

    5 Qat uma

    folha de mascar,

    uma espcie de

    droga relaxante

    muito consumida

    na regio.

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    rador local e conhecedor da regio. Ofereo-me como seu guia/

    ponto de segurana pela regio por X Birrs. Ele, claro, concordou

    comigo, mas duvido que v mudar suas prticas.

    Ao longo dos dias, fui me interessando mais e mais pelo

    tema. Conversei com dezenas de jovens pelas ruas de Piazza, e

    tambm com muitos mochileiros. Alguns deles foram vtimas de

    golpes (uma garota austraca perdeu 500 Birrs junto ao namorado

    numa roda de conversa). Tive uma longa conversa com dois jo-

    vens e fiz uma proposta sria de mudar a estratgia deles para a

    lgica de guia local. Conversamos por pelo menos 1 hora, discuti-mos preconceito, frica, Brasil e o impacto do turismo na regio.

    Por todo tempo, ambos acenavam com a cabea, elogiavam-

    -me pelo approach diferenciado e pela oportunidade de trocar

    ideia. Enquanto isso, na rua, dezenas de pedintes passavam, em

    piores condies de sade e estabilidade social. Chegamos con-

    cluso que nem todos os turistas so iguais e que nem todos os

    jovens da regio esto tentando passar a perna de alguma forma.

    Na hora da despedida, uma ltima pergunta: Alex, voc pode pa-

    gar uma taxa pela nossa bno para a sua viagem?

    Devolvi um sorriso, um aperto de mo a laEtipia e sa.

    Tentava apenas sentir a cidade. Explorava os pontos turs-ticos alternados com experincias de imerso na realidade local,

    pelo menos ao mximo que me era permitindo sendo umfarengi6.

    O percurso dirio permitia um bom contato com a dicotomia que

    divide a cidade: de um lado uma classe mdia-alta e muito alta de

    expatriados, funcionrios pblicos ou de ONGs e agncias inter-

    nacionais, desfilando em carros 4x4, frequentando os cafs mais

    caros e os supermercados mais ocidentalizados. Do outro lado,

    o objeto de estudo e trabalho da maioria destes funcionrios.

    As pessoas comuns na rua, os moradores de habitaes inade-

    quadas e vtimas da informalidade no comrcio e da falta de

    apoio de instituies pblicas.

    Havia lido um dado impressionante no livro Planeta Fa-

    vela, de Mike Davis: 99,4% da populao urbana viveria no que

    so consideradas favelas. Mas onde elas estavam ento? Em Addis,

    pelo menos, no tinha esta sensao de que a quase totalidade da

    populao morasse em favelas.

    Os prximos dias seriam mais reflexivos. Comeava a me en-

    volver com a cidade, num misto de admirao cultural e depresso

    social. A imagem que a maioria das pessoas tem da Etipia a que largamente divulgada nos momentos de crise: fome, seca, po-

    breza e doenas. Adultos e crianas magrrimos observam a lente

    da cmera com o olhar perdido, desesperanado. Largados num

    cenrio desrtico ou no meio da rua esto desesperados em busca

    de comida ou ajuda. Pois , a Etipia no fica bem na foto.

    Mendicncia uma condio socialmente estabelecida e

    aceita na Etipia. Mais ou menos se espera que uma parcela de

    sua riqueza v diretamente para as mos de pedintes nas ruas.

    Caso voc se oponha a contribuir, tambm esta deciso respei-

    tada por quem pede. Difcil encontrar um pedinte que v falar

    muito e acompanhar o pedestre por quilmetros. Ele pergunta,

    voc responde. E assim est.

    praticamente impossvel caminhar pela cidade sem ter de

    virar o rosto em algum momento, evitando uma imagem difcilde lidar. Ao mesmo tempo, tambm impossvel passar na rua

    sem, espontaneamente, esboar um sorriso. De alguma maneira,

    a simpatia e cordialidade (verdadeira) do etope fizeram com

    que eu me sentisse muito bem acolhido. Nunca vi um povo to

    prestativo, simptico e aberto.

    O pas, sem dvida, carece de infraestrutura bsica e ma-

    nuteno. As ruas e caladas so, de maneira geral, largas e bem

    desenhadas, mas o asfalto falho, cheio de buracos e infiltra-

    es. Muitas vezes, rua e calada se confundem em um amonto-

    6 Farengi o termo

    usado na Etipia

    para se referir ao

    estrangeiro, ao

    branco, ao turista.

    Na essncia, no tem

    carter pejorativo,

    mas muitas vezes

    usado dessa forma.

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    ado de pedras empilhadas cobrindo ou expondo pequenos lagos

    que se formam com a gua das chuvas. Outras vezes, observa-se

    o encanamento de esgoto em aberturas no cho com mais de 2

    metros de profundidade.

    Para atravessar as largas avenidas, faixas de pedestre so

    amplamente respeitadas. Apesar da escassez de semforos em

    funcionamento, dezenas de policiais organizam o trfego e mo-

    toristas dirigem atentos e param para a travessia segura dos pe-

    destres. O trnsito expressa um pouco das desigualdades sociais

    do pas. Entre andarilhos embrulhados em cobertores, minivansde transporte coletivo e carros em questionvel estado de con-

    servao, uma classe se destaca: a classe mdia-alta das agncias

    internacionais de ajuda humanitria.

    Desfilam pela cidade em caminhonetes e veculos 4X4 es-

    tampando as mais diversas combinaes de siglas e logotipos.

    Destacam-se na paisagem cinzenta e suja do resto de Addis Ababa,

    carregando um branco lmpido em sua maioria. H alguns pontos

    conhecidos por serem frequentados quase que exclusivamente

    por essa classe (sejam eles estrangeiros ou consultores locais con-

    tratados por essas agncias).

    Na regio de Bole, repleta de embaixadas e representaes

    de organizaes internacionais, pode-se encontrar os mais diver-

    sos produtos diretamente importados dos EUA ou Europa, no

    Friendship Market ou no Bambis Supermarket. Alm dos merca-dos, alguns cafs oferecem um ambiente mais, digamos, ociden-

    talizado. E, claro, os preos, apesar de ainda infinitamente mais

    baratos que no Ocidente, refletem certa diviso social. O famoso

    Kaldis Caf a verso etope do Starbucks (ou o inverso, como

    muitos por aqui afirmam) e, segundo um amigo meu, oferecem,

    alm do caf, um ponto de encontro para farengisentrarem em

    contato com a difundida prostituio do pas.

    Ouve-se muita reclamao da falta de oportunidade de em-

    pregos na Etipia. E a falta de qualificao profissional oferece

    melhores opes junto mendicncia do que nos desgastantes

    subempregos. Mesmo assim, observa-se uma ampla variedade

    de empregos de rua, como engraxates e limpadores de sapato

    (isso mesmo, com gua e sabo), vendedores de carto telefnico

    e livros, auxiliares de txi e, claro, alguns poucos trapaceiros pelas

    reas mais cheias de turistas.

    As melhores oportunidades de trabalho esto junto s agn-

    cias e organizaes internacionais. Vagas expostas em murais ao

    longo das ruas e junto a empresas de realocao de trabalho. Ao

    mesmo tempo, muitas reclamaes vm tambm destas organi-zaes, acusadas de investir muito mais dinheiro em sua prpria

    equipe e bem-estar do que nas necessidades especficas do pas.

    O imponente complexo da ONU expe um pouco essa realidade.

    A moeda do pas o Birr, que em ingls soa como beer,

    cerveja. Talvez venha da a cordialidade, afinal, todas as dvidas

    se resolvem pagando algumas cervejas. As notas parecem ter

    sido impressas uma vez no passado e nunca mais. Desfazem-se

    e cheiram muito mal, dando a impresso que esto circulando

    h muito tempo. Em vrias cdulas que passaram pelas minhas

    mos, marcava-se 1995. O problema que, tendo em vista que

    o calendrio seguido na Etipia est oito anos atrasado7

    , estasnotas podem ter mais de 20 anos.

    Apesar da esttica urbana do pas ser desfavorvel s lentes

    (mas favorvel, claro, ao sensacionalismo), a sensao de percorrer

    as ruas principais ou pequenas vielas a de se estar em casa. Bom,

    na verdade me senti muito mais seguro por aqui, andando pela

    madrugada e na escurido total do que em So Paulo, mas cada

    um com seus problemas. A Etipia, ento, no fica bem na foto.

    Mas fora das telas da TV, ou das pginas de revistas e jornais, o pas

    traz um encanto principalmente marcado pelo convvio humano.

    7

    A Etipia segueo calendrio

    chamado Geez,

    derivado do

    calendrio

    Alexandrino que,

    por sua vez,

    baseia-se no egpcio.

    H uma diferena

    de 7 a 8 anos

    com o calendrio

    gregoriano, devido

    a diferenas no

    clculo da exata

    data da anunciao

    de Jesus Cristo.

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    Conheci um espanhol no hostel de Addis Ababa e chama-

    va-o de Juanpa. Por alguma razo, nos demos bem. Ele havia

    viajado para a Etipia com o objetivo de voluntariar junto or-

    ganizao da Madre Teresa de Calcut, ou Las Sisters como

    costumava falar com forte sotaque catalo. Ele simpatizou com

    meu trabalho e eu com sua pessoa. Decidimos viajar juntos para

    a regio norte do pas. Uma oportunidade de conhecer uma rota

    turstica repleta de igrejas esculpidas em pedra e um olhar sobre

    as reas rurais do pas.

    Tentamos, na primeira vez, ir de nibus, mas eu tinha certapressa para a viagem, j que estava com passagem comprada para o

    Qunia dali a cinco dias e a passagem oficial tinha que ser reservada

    com pelo menos dois dias de antecedncia. Resolvemos ento ir da

    maneira, digamos, alternativa: numa van carregada de mantimentos

    e abarrotada de pessoas. Negamos a primeira van pois havia caixas

    e mais caixas de sabe-se l o qu invadindo toda a rea reservada aos

    passageiros. Combinamos de pegar ento o transporte sugerido por

    um amigo, no meio da madrugada. Esta seria uma viagem de aproxi-

    madamente doze horas at o primeiro destino, Bahir Dahr.

    Aguardamos nos sofs da entrada do hostel, meio acorda-

    dos, meio dormindo e nada. Passaram-se algumas horas sem sinal

    do nosso transporte e sem conseguirmos nos comunicar com o

    nosso improvvel motorista. Amanheceu e no havamos sado

    do lugar. Passamos o dia indignados, porm aproveitamos paraexplorar o entorno da regio. Enfim, fizemos um novo acordo

    com um novo amigo e agora sim iramos conseguir o transporte,

    tambm pela madrugada. Explicamos diversas vezes a situao da

    noite anterior e fizemos que jurassem de ps juntos que desta vez

    no haveria surpresas.

    Quase uma hora depois do previsto, l estava nossa van.

    Meio banco para mim, o banco da frente na regio do cmbio

    para Juanpa. Algumas mudanas e o rearranjo de lugares e pronto:

    meio banco para mim, meio banco para ele. Assim viajaramos

    doze horas nas estradas pouco cuidadas de uma rota pouco explora-

    da nessas condies por turistas na regio (normalmente os turistas

    voam ou optam pelo servio de alguns nibus de semi-luxo).

    A viagem comeou por volta das 4 da manh. Com mais

    de 15 pessoas na van, o espao para cada um de ns era restrito.

    Mesmo assim, eu tinha acesso a uma das janelas, o que me permitia

    vez ou outra esticar a mo por uma delas e fotografar. Em um mo-

    mento de cansao, experimentei uma sensao de xtase privado:

    com um pacote de bolachas de chocolate de baixo custo nas mos,

    fechei os olhos e me transportei para fora daquele veculo. Fiqueienvolto no sabor doce do biscoito que irradiava pelo meu corpo e

    transcendia a realidade na qual estava preso. Fiquei rindo sozinho

    e apreciando o fato de aos poucos ir aprendendo a dar o devido

    valor aos pequenos prazeres cotidianos.

    Muito verde. A paisagem dividia-se entre longos campos

    floridos e algumas moradias feitas de uma arquitetura cuja essn-

    cia parecia brotar da prpria terra. Vez ou outra, passvamos por

    um vilarejo, um aglomerado maior de casas e pessoas ocupadas

    com o cultivo daquela terra frtil devido temporada de chuvas.

    Quando parvamos, por razo nenhuma, descamos para intera-

    gir com as vilas nas quais estvamos. Em uma delas, um pequeno

    mercado agitava e reunia grande parte da populao local em um

    gramado que representava o centro da vila. Frutas, vegetais e ani-

    mais. Eram essas as ofertas do dia, e provavelmente da semana.Sentia-me em um filme. As casas de barro e madeira, erguidas

    como abrigo para as centenas de pessoas pelas quais passvamos,

    eram o nico contraste construdo pelo homem na paisagem na-

    tural da regio. O verde intenso da grama tambm contrastava

    com a falta de tons coloridos dos panos que envolviam os habitan-

    tes destes vilarejos. E, claro, falta infraestrutura e investimento

    pblico e/ou privado no coletivo alm de incentivos produo

    rural como ferramenta de erradicao da pobreza. Mesmo que a

    Etipia seja um case de relativo sucesso no mundo das agncias

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    internacionais, alguns elementos estruturais continuam devendo

    muito para o desenvolvimento social do pas.

    Em um destes momentos, em que eu me coloquei no papel

    temporrio de turista, tive uma experincia transformadora na

    minha forma de observar e interagir pelo resto da viagem. Estava

    fazendo um roteiro pelo norte do pas, entre as cidades de Bahir

    Dahr e Gondar, indo em direo famosa cidade de Lalibela. Igrejas

    encravadas e esculpidas em pedra so o foco das atividades turs-

    ticas da cidade. So 15 delas e, de fato, so impressionantes (uns

    dizem at que o lugar mais interessante que Petra, na Jordnia,tambm famosa por seus templos encravados na pedra).

    De van, eu e o espanhol fomos obrigados a fazer uma pe-

    quena escala no programada na minscula cidade de Gashena.

    De l, esperaramos qualquer forma de transporte, pblico ou pri-

    vado, para uma carona at Lalibela. Sabamos que a estrada era de

    pssima qualidade e o caminho seria fisicamente doloroso, mas

    jamais poderamos imaginar que a experincia seria o que foi.

    Chorei, mas no choro mais.

    Estvamos esperando o nibus como qualquer outra pessoa.

    Eu e um amigo espanhol havamos descido do primeiro nibus,

    de mais de 10 horas, e agora espervamos sentados em um troncode rvore, em meio a uma fina chuva. Os olhares estavam todos

    voltados a nossa estranha presena naquela vila, fazendo um tra-

    jeto no to comum parafarengis. De qualquer forma, faltava-nos o

    resto do trajeto por terra e precisvamos de uma carona.

    Tentamos entrar no primeiro nibus e fomos barrados.

    No que no houvesse mais assentos, mas o motorista deixou

    claro em uma linguagem corporal que no podia nos aceitar an-

    tes que o intermedirio definisse nosso preo diferenciado. Uma

    srie de avaliaes depois, um rapaz nos alertou que se quiss-

    semos pegar aquele nibus deveramos reservar nossos assentos

    pagando quatro vezes mais do que o resto dos passageiros.

    De repente uma luz. Um cidado etope, com excelente in-

    gls e pinta de ricao, fazendo o mesmo trajeto. Ele ofereceu aju-

    da como nosso intermedirio, mas fomos aos poucos percebendo

    que a luz estava mais para luz negra. Ele estava na verdade nego-

    ciando os assentos das pessoas que j estavam dentro do nibus,

    oferecendo mais dinheiro e obrigando-as a deixar o nibus. Deixa-

    mos claro a ele que discordvamos do que estava fazendo, e que

    no nos importava esperar pelo prximo e viajar normalmente.Todas as pessoas desceram do nibus e comeou um rema-

    nejamento de lugares. Primeiro, nosso amigo tomou o lugar da

    frente, considerado o melhor. Em seguida, os rapazes nos empur-

    raram para dentro do nibus. Logo depois, todas as pessoas que

    chegaram antes de ns tiveram que se realocar e se apertar nos

    assentos remanescentes. Ao sentarmos, os preos: 20 Birrs para

    todo mundo, 40 Birrs para nosso amigo e seu lugar especial e 60

    Birrs para os doisfarengisque no podem argumentar diretamente

    com o motorista.

    Sentado, eu reclamava ter um lugar que no merecia. Recla-

    mava tambm pagar trs vezes o valor da viagem. E argumentava

    com nosso amigo que toda a movimentao que estava aconte-

    cendo era simplesmente errada. Aparentemente, depois de risa-

    das, ficou claro que moral e tica no eram uma preocupao paraaquele senhor, que havia acabado de voltar de um treinamento

    para agncias internacionais na Alemanha. Para mim eram. Amea-

    amos descer do nibus, mas fomos alertados que o procedimento

    se repetiria em qualquer conduo que tentssemos pegar.

    Enquanto isso, na multido que nos observava, um rosto es-

    tava imvel. Suas roupas estavam rasgadas. Nenhuma novidade

    dentro do cenrio em que tantas outras crianas cobrem-se ape-

    nas com alguns poucos farrapos. Os adultos tambm parecem

    vestir a mesma roupa h semanas. O marrom da terra e do desgaste

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    predomina sobre todas as outras cores e o odor impregna os quatro

    bancos da minivan.

    Eu vi que ele me olhava desde o momento em que desci do

    primeiro nibus. Eu, claro, podia compreender a novidade que eu

    trazia. Fiquei impressionado com a quantidade de tempo que ele dis-

    punha para me observar. Tambm, no meio de Gashena, uma vila a

    62 quilmetros em direo Lalibela por terra, no h muita oportu-

    nidade de atividade, seja ela econmica ou social. Sua pele negra era

    muito escura e lisa, mas estava coberta por poeira. Seu lbio resseca-

    do quase imvel, de tempos em tempos esboava um meio sorriso.Eu no sorria. Estava furioso com o episdio do remaneja-

    mento dos assentos e a justificativa que mais odeio escutar por

    aqui: This is Africa. Meu olhar estava de encontro ao do garoto do

    lado de fora da minivan. Nossos olhares no se deixavam nem por

    um instante e fiquei a imaginar o que ele estaria pensando. Enro-

    lado em um pano que um dia foi roxo, l estava ele, imvel, talvez

    com o pensamento esvaziado, talvez com a cabea cheia de coisas.

    No sei o que aconteceu. Meu peito apertou. Meu olho ume-

    deceu. Fiquei com vergonha. L estava eu, depois de mais de um

    ano de viagem, derramando lgrimas por um garoto qualquer

    numa vila qualquer no meio da Etipia. No escondi minhas

    lgrimas, mas tambm elas no foram percebidas. A gua salgada

    que escorria era um resumo do que havia visto nos ltimos dias.

    E eu que me considero to forte e preparado para observar erefletir sobre a Pobreza.

    Havia algo na complexidade daquela cena toda que me fez

    descuidar da minha postura por um momento. No chorei de

    d ou de pena. No chorei de dio ou raiva. Chorei porque no

    entendi. Chorei porque ainda no entendo como possvel que

    dois mundos to diferentes convivam em tamanha harmonia.

    Chorei, mas no choro mais.

    Fiquei com a sensao de que havia passado uma ideia erra-

    da, uma imagem que no contribua de fato para o que eu estava

    querendo fazer pelo leste da frica. Muita gente comentou que

    dividia estes sentimentos comigo. Eu no acho. Fiquei pensando

    depois qual era o meu papel ao escrever sobre o que via e veria

    ali pelo continente estigmatizado e pr-definido por todo mundo.

    Alm de no chorar mais e de fato, acho que no derra-

    mei mais nenhuma lgrima ao longo da viagem tambm me

    propus a observar, vivenciar e relatar outro lado dos pases visitados.

    J que todo mundo tem uma ideia especfica sobre o que a frica,mesmo sem nunca ter pisado em pas algum, ou mesmo sem ter

    visto fotos que no as produzidas por Sebastio Salgado h duas

    dcadas, resolvi destacar o que melhor me cabia: meu olhar. Se as

    pessoas iriam de qualquer forma se basear no que eu estava ven-

    do, ento por que no deixar o jornalismo seco de lado e escrever

    de forma um pouco mais, digamos, humana?

    Afinal, o que eu estava vendo era surpreendente, mas no

    da forma como eu imaginava. Cada minuto no continente afri-

    cano fazia com que eu me arrependesse de ter gasto tempo na

    faculdade, em frente ao computador ou qualquer outro ambiente

    em que acreditava estar aprendendo. No que eu de fato me ar-

    rependa, mas no h lugar melhor para aprender do que com

    as nossas prprias experincias vivenciais. Assim, abri os olhos

    e continuei a viagem.Ao chegar a Lalibela, acho que j estava com um novo

    modo ligado. Chegamos com aquela van da qual no supor-

    tava nem mesmo pensar. Descemos ento em qualquer lugar

    da cidade e de l caminhamos at uma das pousadas indicadas

    no guia. A primeira era muito cara, e resolvemos apenas comer

    um omelete com caf preto bem forte, para acordar. Com uma

    proposta melhor, acabamos decidindo ficar na pousada vizinha.

    O preo era quase incalculvel se convertido e o quarto era mais

    do que o suficiente.

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    Assim, paga-se um preo relat ivamente elevado, sem a

    garantia que essa desproporcionalidade ser reinvestida no de-

    senvolvimento social das reas visitadas. Sem um repasse para

    infraestrutura e melhoria das condies de trabalho, a tendncia

    continuar transformando o turismo em uma relao parasitria,

    na qual poucos so os reais beneficirios deste setor. uma pena

    observar esse tipo de relacionamento, j que o turismo, se bem

    desenvolvido, poderia ser usado propositalmente como ferramenta

    de desenvolvimento das comunidades que vivem ao redor destes s-

    tios arqueolgicos, igrejas, tribos e assim vai, sem necessariamenteacarretar perdas culturais, como diversas vezes ocorre.

    Assim, se voc no esta disposto a se submeter s mesmas

    condies, muitas vezes precrias, que esto disponveis em algu-

    mas cidades para a maioria da populao, vai sem dvida ter que

    botar a mo no bolso.

    Minha crtica vem do no investimento desse dinheiro no

    desenvolvimento social destas regies. No livro P na frica, do

    Fabio Zanini, ele comenta sobre essa carncia de servios para a

    classe mdia. Eu concordo com o argumento, mas avanaria um

    pouco mais: alm de faltarem investimentos para suprir as neces-

    sidades de uma classe mdia, faltam tambm polticas pblicas

    de repasse do dinheiro injetado por estrangeiros na melhoria da

    qualidade de vida das comunidades em maior situao de pobreza

    destas regies. Se bem planejados, os projetos que aliam turismoe desenvolvimento local podem ser a soluo para o crescimento

    de regies remotas e seus arredores.

    Deixar a Etipia no foi tarefa fcil. As pessoas muito sim-

    pticas, a comida excelente. Para um brasileiro fresco com qual-

    quer tipo de comida, mergulhar num prato de esttica duvidosa

    sempre foi um desafio. Fui surpreendido com a efervescncia cul-

    tural, expressa na msica, na dana e na religiosidade dos etopes.

    Para um pas nunca colonizado, em um continente onde cultura e

    colonizao esto sempre interligados e normalmente de uma

    maneira pouco positiva , a Etipia a possibilidade de uma expe-

    rincia ainda real da cordialidade e hospitalidade do africano.

    Fui obrigado a voar de Lalibela de volta capital Addis Ababa

    pois, caso contrrio, perderia o meu voo para o Qunia (afinal, a

    viagem de minivan demoraria dois dias). No aeroporto, conheci um

    rapaz portugus, professor universitrio, muitssimo interessado

    pela minha histria e, principalmente, pelo fato de falarmos a

    mesma lngua. Mas durante as turbulncias do meu voo, somadas

    chuva e meu, digamos, pnico de avies, s torcia para que ele

    esquecesse a conversa e me deixasse lidar com meus medos empaz. No vejo a menor graa em tirar sarro de quem se concentra

    para enfrentar seus medos. E que voo. Uma pssima experincia,

    dias antes de pegar outro voo para Nairobi, no Qunia.

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    mais tranquilo ou, pelo menos, eu estava mais tranquilo. Apesar

    de apaixonado pela Etipia, estava tambm muito curioso para

    conhecer o Qunia e, principalmente, Nairbi. Ouvi muito sobrea cidade, sobre ser o centro de inovao e mobilizao social do leste

    africano. Estava empolgado para rever alguns amigos e, c laro, visitar

    projetos que conhecia apenas do meu computador.

    Chegar em um pas sem ter nada planejado j difcil,

    mas chegar de madrugada e com a guarda levantada ainda pior.

    Do aeroporto, discuti por mais de uma hora com um servio de txis

    para garantir que eu no estava entrando em um desses esque-

    mas com turistas mal informados. Cheguei a me divertir bastante

    com o jogo de negociaes no qual estvamos nos desafiando.

    No fim, acho que ambos fizemos um bom negcio, mas a viagem

    do aeroporto at uma possibilidade de hostel no foi to sutil

    quanto imaginava. Pelo menos no da minha parte.

    No posso negar que cheguei a Nairbi com os punhos

    erguidos, em posio de defesa. Ouvi muitas histrias de roubo

    e truques e o apelido de NaiRobbery, repetido em dezenas de

    fruns, guias e livros, no era nada animador. Abordei diversosmuzungus8, na tentativa de baratear meu transporte, mas ne-

    nhum deles estava indo na mesma direo que eu.

    No carro, conversava com o motorista e conduzia a conversa

    para dois lados: primeiro, elogiar a simpatia e amizade da popula-

    o queniana (uma esquizofrnica tentativa de convenc-lo a no

    me roubar); depois, compartilhar uma srie de histrias infundadas

    sobre a minha pessoa para garantir que eu no era um idiota qual-

    quer: afirmei ser a minha quinta vez no pas, contei horrores sobre

    a vida em So Paulo e quo acostumado violncia estou, gabei-me

    de campeonatos de luta e conhecimentos de defesa pessoal. No final,

    acho que o motorista deve ter pensado que era eu quem ia assalt-lo.

    No local marcado com um x no meu guia, o hotel no qual

    planejava me hospedar j no existia mais. Em compensao, de

    2007 para c (data de publicao do meu guia), muitos outroshotis abriram naquela regio. A msica alta e as diferentes

    modelos que passeavam pela rua me diziam exatamente em que

    parte da cidade estava. Depois de verificar em mais de 5 opes e

    perceber que todas estavam lotadas, acabei por encontrar uma

    habitao adequada para aquelas poucas horas de sono.

    Ao sair na rua no dia seguinte, tive certeza de onde estava:

    praticamente no meio da rua 25 de Maro de Nairbi (misturada

    com a rua Augusta). Recebi uma bela recepo dos vizinhos en-

    quanto saa em busca de um caixa eletrnico para pagar o hot