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Autoria: Alex Fisberg
Produo Grfica: Gustavo Piqueira / Casa RexCapa, projeto grfico e paginao: Gustavo Piqueira / Casa Rex
Este livro licenciado sob Creative Commons Atribuio - NoComercial -
SemDerivaes 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0), disponvel em
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/legalcode
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Mais informaes em: www.mochilasocial.com 1a edio So Paulo 2013 www.mochilasocial.com
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muito difcil agradecer a todo mundo que de uma for-
ma ou de outra fez parte desta experincia e da organizao
de tudo isso em um livro. Comeo agradecendo toda minha
famlia, representada aqui pelos meus pais, Silvio e Ester, emeu irmo, Daniel, pelo carinho, o apoio, a criao e os desa-
fios de sempre que me fazem mover o que for necessrio para
estas realizaes. Meus amigos de toda parte, sempre ao lado,
mesmo distncia, mostram que por mais sozinho e afastado
que eu esteja, nunca fico solitrio. Juju, por todo o carinho,
distncia ou juntos, me empurrando para algo significativo.
E ao meu amigo imaginrio e voz na minha cabea que me im-
pede de ficar sem refletir um segundo (mesmo deixando a vida
mais cansativa).
Em Israel, tive o prazer de contar com o apoio e incentivo de
toda a equipe do Weitz Center for Development Studies, com des-
taque principal para meu chefe e amigo Yossi Ofer, cujas palavras
e conhecimento foram pea fundamental para a concretizao da
minha vontade e curiosidade em projeto e depois em ao. No
posso deixar de lado a receptividade do casal - Dani e Fabian - que
me acolheu nas ltimas semanas antes de partir e que ficou com
metade da minha mala para aliviar o peso.
No Egito, agradeo aos dois jovens que nos deram carona e
nos acolheram no Sinai e a todos os bedunos com os quais cru-zei por uma grata demonstrao de acolhimento e respeito ao
estrangeiro. Fico feliz por ter tido a oportunidade de conversar
com Mina no nibus durante a passagem pelo canal de Suez e por
ter podido acompanhar - quase sem querer - um pequeno pedao
da Primavera rabe na praa Tahrir, e sair ileso.
Na Etipia, agradeo infinitamente meu amigo Afework
Fekadu por sua hospitabilidade e por ter me recebido de braos
abertos no meu primeiro pas do leste da frica. Agradeo as
conversas, o aprendizado e a troca de experincias. Juanpa
agradeo a companhia, as longas conversar em portunhol
e as vivncias pelo norte do pas. Alm disso, de certa forma
agradeo a todos os jovens de rua com quem conversei e cujas
intenes, apesar de questionveis, me fizeram importantes
questionamentos e reflexes.No Qunia preciso comear pelas famlias de Stanley,
James e Debrah, que desde o primeiro momento em que
pisei no pas me acolheram e me ofereceram tudo o que eu
precisava e muito mais. A companhia, a troca de experincias e
aprendizados jamais ser contabilizado em sua totalidade. Aos
amigos Mutembei, John (SUFTA), Medina (Carolina for Kibera),
Emmanuel, jovens da Myto, amigos da Aiesec e de tantas outras
organizaes com as quais tive o prazer e a oportunidade de
visitar e aprender.
AG RA D EC I E N TO S
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Agradeo imensamente Susan Blaustein e Paulo Cunha,
que junto com Beldina e Merciline, abriram as portas e seu conhe-
cimento da Millenium Cities Initiative (MCI) em Kisumu, projeto
da ONU alinhado aos Objetivos do Milnio. Agradeo tambm o
apoio de Ben e a equipe do LVRAC.
Em Dadaab, agradeo a UNHCR, a WFP, Save the Children,
CARE, NRC, Mdecins Sans Frontires, entre outras organizaes
internacionais que ofereceram conhecimento, transporte, aloja-
mento e entrevistas para uma experincia ainda mais impactante
no campo de refugiados.Em Uganda, agradeo primeiramente ao casal de Couchsur-
fers americanos que me acolheu em sua casa nos primeiros dias
de minha estadia. Com eles, conheci Katherine (Film4Change) e
Gabry que mudaram um pouco o curso da minha pesquisa pelo
pas. Um obrigado imenso Barbara e Rafael, que foram muito
mais que anfitries e mostraram um outro lado de Kampala e da
vida. A todos da Little Light (Namuwongo), Resty pela sabedoria,
Dorit pelo acolhimento e Boaz pelo carinho e apoio. Sem contar o
apoio distncia de Naama e Itzhak, junto a Brit Olam. Agradeo
tambm aos voluntrios israelenses e todos os jovens de NIIAD e
Muse no caminho para Entebbe.
Ainda em Uganda, agradeo a Skye Dobson e toda a
equipe do Slum Dwellers International - SDI, alm do pessoal
da AcTogether Uganda, Federation of Urban Poor Uganda e osestudantes intercambistas da NTNU.
Em Ruanda, comeo agradecendo ao amigo Amos que
me incentivou e me conectou com uma srie de pessoas inte-
ressantssimas na regio. Com ele, agradeo a equipe do TAG
Development que me fez companhia por alguns dias. Agradeo
a Mikolaj e Anthony pela hospedagem e pelas conversas, alm
de muita inspirao.
Agradeo a Anne Heyman, por me acolher e me apresentar
um dos lugares mais inspiradores que j vi: Agohozo-Shalom Youth
Village. Agradeo a todos os jovens que conheci e conversei, a to-
dos os coordenadores de ncleo e voluntrios que me inspiraram.
Na Tanznia agradeo a companhia do grupo de jovens aus-
tralianos que me acompanhou no nibus e, em Kahala, o apreo e
acolhimento das pessoas que conheci no ITRC. Agradeo o contato
e a dedicao em me mostrar o melhor lado de toda atuao da SDI
de Tim, Stella e Meki, da CCI Tanzania, ao pessoal da Federation of
Urban Poor Tanzania e todos os envolvidos no trabalho em Daravani.
Tambm na Tanznia agradeo Cintia e todo o pessoal da
2Seeds pela incrvel experincia em Magoma, pelos aprendiza-dos, as reflexes e o acesso.
Alguns agradecimentos especiais Fizsel Czeresnia e Lucia
Wjuniski que contriburam para o Mochila Social desde o incio en-
quanto eu ainda viajava; Luciana Golcman, agradeo imensamente
a criao do logotipo do projeto Mochila Social, feito a milhares de
quilmetros de distncia e cujo resultado ficou incrvel; Gustavo Pi-
queira e equipe da Casa Rex (Samia Jacintho, Ana Lobo e Marianne
Meni) agradecimentos infinitos pelo trabalho indescritvel e sem
palavras que foi feito com o meu texto e imagens, valorizando o
trabalho e transformando em algo digno de ser publicado, impac-
tante e destacando um olhar nobre sobre uma vivncia delicada.
Agradeo tambm a Tatiana Bargas e a toda equipe da Gr-
fica Pancrom por acreditarem no projeto e virarem parceiros
na hora exata. Tambm aos amigos Mona Dorf, Rafael Seibel,Ricardo Ramos Filho, Bia Patricio, Ruth e Miranda, Karen Ro-
zembaum, Tato, Taly, Dan, Andy, Juboh, queridos do Terraos
pelas orientaes e ao infinito nmero de pessoas que, de al-
guma maneira, acreditaram, leram, comentaram, criticaram,
ajudaram com conexes, ideias, contatos, paixes, incentivos
e desafios. Eu com certeza esqueci um monte de gente, mas
posso ir adicionando sempre no site www.mochilasocial.com e
nas futuras edies. Sintam-se agradecidos e saibam que cada
micro interferncia faz toda a diferena.
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Agradecimento tambm aos mais de 310 apoiadores que via-
bilizaram esta edio e sua consequente distribuio em escolas e
espaos de aprendizado por meio de financiamento colaborativo.
Um obrigado a todos que participaram desta experincia!
Para saber mais sobre o livro e o projeto, acesse www.
mochilasocial.com e fique vontade para mandar comentrios,
crticas e sugestes.
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O filsofo francs Serge Latouche nos pergunta o que
podemos aprender com a frica?. Em artigo de 2004, ele conta
um mito africano (que) apresenta as relaes entre brancos e
negros como o dilogo de duas mscaras. A mscara do brancotem orelhas bem pequenas e uma boca enorme. A mscara do
negro tem uma boca bem pequena e grandes orelhas. O branco
aquele que sabe tudo e quer ensinar tudo aos outros, mas ele
no sabe escutar. O negro cuja palavra no recebida, apenas
pode escutar contra sua vontade ou por sabedoria1.
Talvez esteja na hora de ouvir mais o que os mercados
emergentes e a frica podem nos contar. Afinal, o capitalismo
est mudando. A viso de que o lucro o nico e principal ob-
jetivo de organizaes tem apresentado mais do que crticas,
PREFC IOcomprovaes de que esta lgica no tem sustentabilidade
no longo prazo.
Um novo olhar para o capitalismo e sua forma de ser
necessrio. Este novo olhar busca o diferente, aceita desafios
e tem uma dose de coragem. Tudo isso que Alex Fisberg est
propondo. Por meio dos olhos deste jovem jornalista possvel
buscar o novo.
Todos sabemos da enorme pobreza existente no mundo.
A questo que fica como e se possvel mudar esta situao.
A pobreza no est apenas ligada falta de renda, mas tambma limitaes s liberdades individuais2. Governos, rgos mul-
tilaterais, organizaes sociais e at empresas privadas esto
buscando solues, cada um em sua esfera.
Um tema como este no ter uma resposta nica e muito
menos simples. E o que me chama a ateno a possibilidade
de repensarmos modelos e paradigmas. Mais do que isso, a ideia
de que cada pessoa, organismo e organizao podem fazer di-
ferente e ter um impacto. Isto se torna mais interessante ao
lecionar para jovens e ver o brilho em alguns olhares que de-
monstram que eles tm a vontade, a competncia e o esprito
empreendedor para mudar o olhar.
Muitos destes jovens tornam-se empreendedores sociais
em um movimento ainda relativamente pequeno, mas crescente
e cada vez mais percebido na sociedade. Estes jovens tambmquerem ganhar dinheiro, mas com valores bsicos e fortes de
fazer o bem. Dando mais fora a este movimento temos grandes
organizaes privadas tambm buscando uma viso mais susten-
tvel, mais social ou de um capitalismo consciente.
Para muitos estes so apenas termos ligados a greenwashing
e que no mudam os princpios bsicos do capitalismo. Alguns,
ainda concordam com Friedman de que o maior papel social de
uma empresa ter lucro e com isso perpetuar-se, oferecendo
empregos e bens sociedade.
1 Latouche, Serge.
Pode a frica
contribuir para
resolver a crise
do ocidente?
IV Congresso
Internacional De
Estudos Africanos.
Barcelona 12 15 de
janeiro de 2004.
2 Sen, Amartya.
Desenvolvimento
como Liberdade.
Companhia das
Letras: So Paulo.
2000.
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Talvez por ingenuidade, acredito que esta nova gerao
com brilho nos olhos e vontade de fazer diferente ainda pode
mudar muita coisa. No algo que acontece em um ou dois
anos. um movimento que precisa de pacincia, mas que pode
ter frutos muito positivos no longo prazo.
Mas para tanto, importante pensar fora da caixa. Buscar
novos paradigmas. E, por isso, quem sabe outras culturas ou os
pases dos mercados emergentes em uma tpica inovao reversa
possam trazer uma nova viso e compreenso de como o modelo
econmico pode evoluir.Como na histria de Laura Bohannan sobre Shakespare
na Selva, podemos compreender que as diferentes experin-
cias podem trazer significados e interpretaes distintos, sendo
assim extremamente relevante a busca de um novo olhar. Um
novo olhar para a frica, um novo olhar para o mundo.
Edgard Barki
Professor Doutor da Escola de Administrao
de Empresas de So Paulo (EAESP-FGV)
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dei a notcia. E foi somente no momento em que as palavras saram
da minha boca que me dei conta da seriedade da proposta:
Me... Pai... Ento, ao invs de voltar para o Brasil em julho,decidi que vou passar uns meses na frica. Ainda no sei exata-
mente por quanto tempo ou qual o roteiro, mas se estou o tempo
inteiro tentando discutir desenvolvimento social e pobreza, nada
mais correto do que ir pra l. Eu tenho bons contatos e uma boa
ideia do que quero fazer... Vou avisando vocs.
Filho, voc inventa cada uma...
E foi a partir da que, em maio de 2011, comecei a prepa-
rar minha viagem pela frica Subsaariana, uma regio com o
estigma da Pobreza estampado na cara. A verdade que nunca
tive curiosidade de conhecer, em particular, algum pas africano.
Tambm nunca pensei que um dia chegaria frica, e jamais
imaginei uma experincia como essa que vou relatar neste livro.
Em setembro de 2010 eu estava no aeroporto. Na-
quele momento, as lgrimas de meus pais caam em fun-
o da minha viagem para Israel com o objetivo de fazer
um treinamento de trs semanas e, de l, seguiria para um
trabalho de mdio prazo na ndia. As minhas escorreram
somente depois de passar pela segurana e entender o que
estava deixando para trs por conta dessa teimosia. Mas,mesmo inseguro, no fundo eu sabia que no era teimosia.
Nos ltimos anos estive envolvido at o pescoo com a rea so-
cial, mas como nunca consegui ter clareza do que isso de fato
significava, resolvi explorar outras realidades e tentar extrair
novas experincias que pudessem contribuir com meu traba-
lho no Brasil.
Em outubro de 2010 cheguei ndia. Talvez com o mesmo
pensamento, talvez por acreditar em certas semelhanas com o
Brasil e o momento em que estamos passando no desenvolvimen-
to social em ambos os pases. Passei mais de cinco meses traba-
lhando em trs projetos diferentes para compreender que, mais do
que as semelhanas corriqueiramente ressaltadas, estamos vivendo
momentos bastante distintos. Principalmente, vivemos sob lgi-
cas diferentes, baseadas em tradies bem especficas em cadapas. No acho correto colocar no mesmo patamar duas naes de
culturas to diversas, sob a anlise de apenas uma delas.
Morei a maior parte do tempo em Hyderabad, quarta maior
cidade e um dos polos tecnolgicos da regio sudeste da ndia.
Com herana do reinado da monarquia dos Nizams, a cidade
uma exceo no pas e possui 40% de sua populao de religio is-
lmica. L, pude explorar, no dia a dia, certa diversidade indiana,
mas tambm acabei me envolvendo com o cotidiano tradicional
e o estilo de vida da sociedade.
FOI NUMA CONVERSATRIVIALPELOSKYPE QUE
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Minha atividade principal na ndia era acompanhar o ci-
clo migratrio de trabalhadores semi-escravos que vinham de
estados do nordeste para o sudeste, junto organizao interna-
cional Aide Et Action South Asia. Atrados por falsas propostas
de trabalho ou muitas vezes sequestrados e traficados, esses ho-
mens eram obrigados a migrar com suas famlias e trabalhar para
pagar dvidas das quais nem sabiam que tinham. Suas famlias
eram ento incorporadas ao trabalho e a uma rotina exploratria,
restando organizao da qual eu fazia parte apenas contribuir
com a educao das crianas presas ao ambiente de trabalho eadvogar por melhores condies de vida junto aos patres.
Enquanto pesquisava, escrevia e produzia material so-
bre este ciclo migratrio pouco retratado no pas, acabei me
envolvendo com o setor de negcios sociais da ndia. Por meio
de um projeto britnico, chamado Ayllu Initiative, passei a
contribuir no mapeamento de iniciativas consideradas sociais
que so desenvolvidas em toda a ndia. Com isso, surgiram
diversas oportunidades de aprender solues simples, com vis
comercial, para erradicao da pobreza e melhoria da qualidade
de vida das pessoas. Uma das iniciativas que mais me impressionou
foi um filtro de gua em forma de canudo, de U$ 5,00, daqueles que
garantem 99.99% de pureza para qualquer tipo de gua (contanto
que no contaminada por produtos qumicos).
Tambm conheci organizaes cujo papel resumia-se a ofe-recer microcrdito em regies sem acesso aos mercados conven-
cionais, uma empresa de design de Rickshaws voltada ao pblico
de baixssima renda e um sistema de gerenciamento de ambuln-
cias e servios mdicos computadorizados distncia. Todas estas
vivncias serviram para que eu pudesse mergulhar de cabea no
tema do desenvolvimento social e da pobreza, sob um novo olhar.
Meu ltimo ms na ndia foi uma imerso na pobreza de Mumbai,
cidade to intensa e complexa que , ao mesmo tempo, similar e
completamente distinta da minha cidade natal So Paulo.
Intrigavam-me as linhas do trem e as conexes entre o luxo
extravagante e a misria das favelas de Mumbai. Em menos de 15
minutos, possvel percorrer a distncia entre a estao de trem
prxima casa do magnata das telecomunicaes Mukesh Ambani,
avaliada em mais de 1 bilho de dlares, e chegar tranquilamente
em Dharavi, considerada a maior favela da sia, com estimativa
de mais de um milho de moradores. Antilla, como conhecida a
humilde moradia do empresrio Ambani, dono da Relliance,
um bom exemplo das distores sociais que existem na ndia.
Como continuao de um programa de fellowship, mu-dei-me para Israel. Agora eu trabalharia para uma agncia de
desenvolvimento social do governo israelense cujo principal
propsito era o intercmbio de conhecimento e tecnologia en-
tre esse pas e o mundo em desenvolvimento. Exatamente o
que eu estava procurando extrair de Israel. No Weitz Center
for Development Studies tive a oportunidade de conhecer me-
lhor a cultura israelense, um pas relativamente jovem, porm
imerso em histria milenar.
Se Israel e a regio do Oriente Mdio so conhecidos por
seus conflitos tnico-religiosos, isto uma questo de escolha
e direcionamento de alguns. H tanto assunto na rea do de-
senvolvimento social como h no conflito entre israelenses e
palestinos. E na minha escolha, priorizei os avanos no desen-
volvimento e nas possibilidades de mudana social que a trocade experincias oferece em benefcio da populao e deixei em
segundo plano os aspectos negativos da guerra. Claro, no pude
evitar o envolvimento com diferentes organizaes de direitos
humanos que tentam resolver o conflito a seu modo, mas me en-
volvi principalmente com o cenrio de desenvolvimento pblico
orientado pelo Estado de Israel.
Participei tambm de uma viagem de 5 dias pela Jordnia, rea-
lizando encontros e conversas com vrias organizaes no governa-
mentais e agncias do governo atuantes no setor social. De pequenas
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iniciativas locais at organizaes de escopo global, pude conhecer
um pouco mais sobre um pas to prximo e to diferente do Brasil.
Porm, foi trabalhando com pesquisa em Israel que come-
cei a plantar as sementes que me levariam, ainda que ao acaso,
para o leste africano. Uma das especialidades do meu chefe,
Yossi Offer, era o desenvolvimento local. Como elaborar estra-
tgias complexas para incentivar o crescimento de uma regio
nos aspectos sociais, culturais e econmicos. impressionante o
quanto possvel aprender com a simples proposta de mudana de
olhar: de uma observao atenta s necessidades para um planeja-mento voltado aos recursos j existentes em cada regio.
A frmula simples: ao invs de abordar uma regio ba-
seada principalmente nos problemas e necessidades existentes,
propem-se analisar quais so os recursos e ativos j existentes no
local e que podem ser catalisados e desenvolvidos para a melhoria
das condies de vida de quem j esta por ali. Organizamos um
curso de desenvolvimento e melhoria de favelas e bairros po-
bres em parceria com a UN-Habitat, voltado exclusivamente
para gestores pblicos e atores sociais da frica, sia e leste
europeu. Com isso, no preciso nem dizer que a minha rede de
contatos no continente africano aumentou consideravelmente.
Com a data de retorno previsto ao Brasil se aproximando,
resolvi que era a hora certa de tomar a deciso e planejar o que
pudesse ser planejado. Sabia o que queria fazer, porm, tinhauma ideia limitada de quanto tempo e dinheiro ainda teria dis-
ponvel, mas precisava de uma justificativa: para mim, para meus
pais e para a expanso da viagem no planejada. Comecei ento
a escrever. Naquele momento, ainda compartilhava de maneira
ingnua a viso em bloco de um continente-pas. Minha motiva-
o era bastante simples: se eu estava interessado, estudando e
tentando me aproximar de experincias nas mais variadas formas
de desenvolvimento social e pobreza, o continente estigmatizado
pelo tema teria que fazer parte do meu itinerrio. E assim foi.
Depois de algumas rpidas pesquisas, decidi ir ao chamado
Chifre da frica. Por qu? Porque j havia ouvido falar atravs
de algumas notcias que, de tempos em tempos, so divulgadas
nos meios de comunicao. Esse era, at ento, o meu imaginrio
daquilo que seria a frica como um todo. No achei que fosse
correto ir apenas para um pas e basear toda a minha experincia
no continente levando em conta somente uma viso. Assim, no
mapa, fiz um trajeto com canetinha3passando por alguns pases
dessa regio, um pouco baseado na pesquisa prvia, um pouco
pensando nos contatos que eu j possua e muito pela beleza est-tica do roteiro quase circular que eu desenhava.
Sabia da existncia de algumas dificuldades tcnicas para
viajar por aquela regio. Afinal, a frica subsaariana cercada
por histrias sombrias de pases cujos acontecimentos internos
so um mistrio, como Somlia, Sudo e Congo. Mas no mapa, o
contorno em volta do Lago Victoria comeando da Etipia e ter-
minando na Tanznia soava como uma opo muito bvia. E o
estigma de pobreza da regio me atraa, no por puro vouyerismo,
mas pela oportunidade de desconstruo de uma imagem ainda
nem bem formada na minha cabea. Afinal, do que estamos falan-
do quando descrevemos com tanta propriedade um lugar do qual
nem ao menos conhecemos?
Resolvi ir. Chequei minha conta bancria e percebi que o
dinheiro que havia juntado para as duas viagens anteriores sobre-vivia solitrio, ainda que ele estivesse na UTI. Pensei em captar
recursos, mas o processo com empresas e parceiros se mostrou
ineficiente distncia. Cogitei uma arrecadao entre amigos e
conhecidos, mas acabei decidindo manter a minha relao com o
projeto distante da lgica de contribuies financeiras. Meu objetivo
era aprender. E aprendendo, compartilhar e mobilizar outras pes-
soas a criarem suas prprias formas de contribuir com a mudana
da realidade, como indivduos, para a construo de uma sociedade
mais justa onde quer que estejam.
3 Brincadeira.
Fiz isso tudo no
Google Maps
usando ferramentas
sofisticadas de
demarcao de
rotas, mas esta
apenas minha
verso moderna da
histria da canetinha
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Mas da minha parte, no adiantaria apenas ficar na frente
do computador ou sentado em uma biblioteca estudando o que se
fala da pobreza. Ainda no encontrei e nem pretendo encontrar
uma definio definitiva. No acredito que existam pobres por
a. Afinal, Pobreza uma condio mutvel, uma soma de fatores
organizados ou desorganizados de forma a desequilibrar o funcio-
namento justo de uma vida humana. Minha contribuio no por
meio da palavra, nem por meio do texto. Eu acredito na construo
de experincias relevantes que possam moldar quem somos e, a
partir da, o que quer que faamos ser social, benfico e positivo.Mas ento, por que este livro? Por um motivo bem espec-
fico, ou seja, o acmulo de experincias e vivncias nesta rea de
desenvolvimento social e erradicao da pobreza , de certa forma,
ingrato. No entanto, se por um lado o aprendizado , na maioria
das vezes, sobre o que no deu certo, sobre uma observao da si-
tuao catica em seu estado mais complexo ou mesmo a simples
constatao da dificuldade em se resolver todos os problemas de
uma vez ; por outro lado, somente quando todos ns estivermos
um pouco mais conscientes do impacto que causamos no entorno
que comearemos a engatinhar para solues mais justas e efi-
cientes. Assim, que este relato e algumas provocaes sirvam para
que levantemos as perguntas adequadas e comecemos ento a cor-
rer atrs de respostas mais qualificadas.
Os poucos dias que me restavam entre o trmino do meutrabalho em Israel junto ao Weitz Center e a minha partida para
outro continente serviram para colocar algumas ideias e planos no
lugar. Abandonei mais da metade dos meus pertences na sala de
um casal de amigos; coloquei algumas peas de roupa em um
mochilo de 70 litros nas costas e meu computador, caderninho
e mquina fotogrfica na mochila vermelha posicionada junto a
minha barriga. Com a casa nas costas e o escritrio na barriga,
parti em direo frica para realizar o projeto que eu mesmo
havia criado dias antes: o Mochila Social.
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Mais do que uma viagem de pesquisa, estou tentando propor um
olhar diferente, um olhar mais aberto para tudo que est aconte-
cendo a nossa volta. Muitas vezes viajamos com um certo teor de
indiferena e com a cabea focada apenas no que estamos vivendoe sem perceber situaes diversas.
Hoje, creio que possumos grande parte das habilidades e
dos conhecimentos necessrios para a soluo de muitos proble-
mas sociais. No s os governos, ONGs, empresas e instituies
tm responsabilidade sobre o que h de errado no mundo, mas
cada um de ns. Afinal, estas organizaes so formadas por um
conjunto de indivduos e, em ltima instncia, so as decises
pessoais que influenciam as propostas para que o resultado final
seja positivo ou negativo.
PROPOSTADE OLHAR
Portanto, acredito na importncia da nossa formao indi-
vidual como estratgia de mudana social. O que vemos, sentimos
e pensamos influencia diretamente o que fazemos. Escolhi esse
caminho para me expor a diferentes experincias em busca de
um melhor entendimento sobre o que significa viver em situa-
o de pobreza, o que significa carecer dos recursos mais bsicos
que damos como normais em nossas vidas. No porque acredito
que nesse momento tenho a habilidade de fazer a diferena na
prtica, mas porque estou interessado na minha formao como
pessoa, independentemente do que eu venha a fazer no futuro.Imagino que as interaes com as pessoas que cruzaram o
meu caminho nessa viagem foram pontos cruciais para o sucesso
da experincia. E o compartilhamento de ideias, pensamentos e
aprendizados, foi uma oportunidade de encontrar mais pessoas
que, assim como eu, sentem-se insatisfeitas com o que veem nas
sociedades. Mesmo que no necessariamente saibam como agir
para tal mudana. No viajei necessariamente em busca de res-
postas, mas em busca de perguntas mais elaboradas, mais concre-
tas e mais fceis de serem convertidas em ao.
Gostaria de propor a abertura de nossos olhos para o que h
de simples naquilo que nos rodeia. Desmistifiquemos os proble-
mas que parecem insolveis e que assim ento seja possvel agir.
Uma ao que no esteja distante de nossos interesses pessoais e
que no esteja distante de nossas habilidades at agora adquiridas.Minha proposta canalizar o que temos de bom individual e
coletivamente para melhor atender nossas demandas sociais.
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SOBREINFLUENCIARPESSOASUGANDARUANDATANZNIASOBREESTARDE VOLTA
SOBREVIAJAR SOZINHOEGITOETIPIAQUNIA
DADAAB -AHSEEUFOSSE PRA SOLIA...
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Sozinho. assim que comea a minha experincia pelo leste africano.
Mas afinal, o que estar sozinho em um mundo que ultrapassou os
7 bilhes de pessoas enquanto eu viajava, conectado o tempo todo
nos mais diversos meios de comunicao e cujas distncias entre umcanto e outro s so perceptveis com muito esforo?
Em primeiro lugar, acho que importante dizer que dificil-
mente estive sem ningum ao meu lado durante toda a viagem.
Na maioria do tempo, contei com o apoio de pessoas locais ou, pelo
menos, de moradores que viviam no pas em questo por perodos
de curto, mdio ou longo prazos. Alm disso, permaneci conectado
minha famlia e amigos o maior tempo possvel. Mesmo assim,
acredito na relevncia do momento solitrio e das reflexes que
apenas ocorrem no exlio fsico. Esse contato com o meu mundo
particular e com minhas experincias anteriores foi fundamental
para a manuteno da minha unidade como ser pensante e, tam-
bm, com a possibilidade de crescer a partir das vivncias passadas
e das opinies alheias. Mas, um segundo aspecto que considero
importante destacar antes de comear a contar esta experincia,
a dificuldade que encontrei em lidar com alguns temas e vi-
vncias sem um companheiro de viagem para refletir junto; um
parceiro para dar apoio nas horas mais difceis. Assim, era bvia
a necessidade de organizar e compartilhar de alguma forma esses
pensamentos inconclusos. Foi ento que nasceu a ideia de umblog. Meu companheiro de viagem ganhou forma e nome, apesar
do aspecto frio com o qual nos relacionvamos.
Por alguns momentos, cheguei a conversar com este meu
novo amigo, Sam, de origem coreana. Ao estilo do filme Nufrago
e o relacionamento entre a personagem de Tom Hanks e a bola de
vlei, apelidada de Mr. Wilson, passei a encontrar no meu laptop
Samsung um parceiro de reflexes. s vezes com ele desligado,
outras com documentos em branco espera de palavras que fi-
zessem sentido e expressassem meus pensamentos, fui levando
a srio o comprometimento com o projeto Mochila Social. Assim
seria mais fcil terceirizar algumas emoes e dificuldades, como
parte do trabalho, e no interferir na minha composio pessoal
de maneira prejudicial.
Acredito que a vantagem de estar sozinho uma certa valo-rizao do prprio jeito de ser e pensar. Uma reduo da presso
social em fazer coisas das quais discordamos, mas muitas vezes
no temos energias para deixar para trs. Uma oportunidade de
priorizar desejos e vontades individuais em detrimento das ex-
pectativas que nos cercam diariamente em nosso cotidiano, seja
por influncia da famlia, amigos, trabalho, sociedade ou de ns
mesmos atravs do olhar depreciativo pelo qual muitas vezes nos
julgamos. Distante do meu cotidiano habitual, pude me permitir
a chance de ser quem eu quis ser, organizar meu dia da maneira
sobrev i A j A r
soz in ho
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como acreditava mais interessante e declinar ofertas inadequadas
ou desconexas com meus objetivos dentro dessa experincia.
No me senti sozinho, apesar de muitas vezes contar ape-
nas com a minha prpria companhia. No fiquei mais triste ou
mais feliz do que durante meu dia a dia convencional, mas, com
certeza, me senti mais livre para pensar e explorar novas vivncias.
O mais importante: quando sozinho, me permiti observar as coi-
sas mais simples com o olhar mais complexo possvel, sem medo
das opinies e desinteresses alheios. Ao mesmo tempo, consegui
simplificar a minha relao com o meu entorno e aprender avalorizar o que realmente me completa.
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COEcEI A VIAGEAFRICANA PELO EGITOpois estava morando no vizinho, Israel, a trabalho. Cruzei a fronteira
mais ao sul com o claro objetivo de aproveitar alguns poucos dias de
frias no famoso deserto do Sinai. Afinal, para chegar ao Cairo porterra, eu seria obrigado a me deliciar com as paisagens de tirar o
flego do deserto e do mar Vermelho.
Parti de Tel Aviv em direo a Eilat, no sul de Israel, no nibus
que saa de madrugada. Apesar das crianas que resolveram celebrar
suas frias dentro do nibus, a viagem de pouco mais de 4 horas foi
bem tranquila. De l, um txi me levou fronteira com o Egito, onde
cruzei para a cidade de Taba. Havia lido que era possvel obter visto
na hora e assim o fiz. Mas no foi to fcil. O fiscal da imigrao me
orientou a conversar com um dos guias tursticos que estavam ali.
Por uma quantia injustificvel, obtive um selo do Egito (que nada
mais passava de uma espcie de figurinha de lbum) e assim o
carimbo de entrada. Segundo ele, agora eu estava sob sua respon-
sabilidade, por isso o valor elevado na emisso do selo.
Ainda era muito cedo e no haviam nibus disponveis de
Taba para a cidade de Dahab. Esperei por mais de uma hora senta-
do com outros passageiros at uma pequena van lotar. Por cinco li-
bras egpcias a mais, samos um pouco mais cedo. Na hora de pagar,
uma deciso monetria: at Dahab custava 100 libras egpcias e at
Nuweiba, famosa por alguns resorts, era apenas 50. Hesitei por unsinstantes e decidi pela mais barata. Pouco a pouco, os passageiros
iam sendo deixados em seus respectivos resorts. Eu e a Dani, uma
brasileira e amiga de infncia que me acompanhava, descemos lite-
ralmente no meio do nada, supostamente na cidade de Nuweiba.
Aps perambular um pouco, dois rapazes ofereceram carona
e perguntei: like... as friends?, para saber o quanto na amizade
seria essa histria. Nossa amizade valia 10 libras e ganhamos caro-
na at praticamente o paraso. A areia amarelada, protegida pelas
montanhas de rocha, abrigava algumas poucas tendas de sap, no
maior silncio que um deserto pode oferecer. Fizemos o que tnha-
mos para fazer: dormimos frente de uma das mais belas paisa-
gens dos ltimos tempos.
Para ir embora, nos recusamos a pagar um txi carssimo e
fomos estrada em busca de carona mais barata. Tivemos a sorte deencontrar dois pescadores muito simpticos que nos arranjaram um
txi (quase o mesmo preo que teramos pago). Um dos rapazes era
mudo e foi uma conversa muito interessante, baseada totalmente
nas nossas habilidades de fazer sinais comuns a qualquer cultura.
O caminho de Taba at Nuweiba trouxe uma reflexo: era
impressionante ver a infraestrutura turstica abandonada e a
quantidade de hotis e conglomerados imobilirios em construo
parada. A princpio, imaginei que isto seria reflexo da baixa es-
tao, causada tanto pelo calor quanto pelas agitaes dos ltimos
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meses no pas. Pelo tamanho das construes e pelo nvel de
abandono, acabei concluindo que a regio estava abandonada
h mais tempo, talvez desde quando as fronteiras entre Egito,
Israel e Gaza ficaram to sensveis, ou mesmo devido s diversas
atividades suspeitas e ilegais que ocorrem diariamente em meio a
este silncio todo no deserto.
Lembro que o Sinai conecta a frica a Israel e o resto do
Oriente Mdio. rota de transporte de todo tipo de mercadoria
atravs do Canal de Suez. Uma infinidade de refugiados viaja de-
zenas de dias de pases como Sudo, Congo, Nigria, Eritreia eEtipia em busca de segurana, e acaba encontrando segurana
no lado israelense (no que isso no lhes cause uma srie de
outros problemas...).
Chegar em Dahab, a prxima cidade turstica, foi um alvio.
Por um momento, pensei que a regio do Sinai continuaria com-
pletamente deserta. No que eu estivesse procurando alguma coisa
especfica, mas eu particularmente adoro interagir com os rabes e
estava comeando a sentir falta da hospitalidade beduna por aqui.
A cidade de Dahab fica localizada no golfo de Aqaba, em
uma entradinha que, eu acredito, s a gua mesmo passeia
tranquilamente. De um lado o Egito, do outro a Arbia Saudita.
Ao norte I srael e Jordnia. Segundo um dos guias, um japons
achou que era tranquilo cruzar o golfo e visitar o lado da Arbia
Saudita e est at hoje tentando voltar. (Brincadeiras parte,no vale a pena arriscar).
O turismo a principal e aparentemente nica atividade
comercial por aqui. A regio dominada por bedunos cujas tra-
dies incluem criao de animais e consumo de gua de fontes
subterrneas, tradio passada de gerao em gerao. claro que
a movimentao de turistas de diversas partes acaba comprome-
tendo a autenticidade de algumas atitudes mas, de maneira geral,
o povo por aqui se mostrou muito solcito e divertido de conversar.
Sentam na minha mesa, falam de futebol (dica: saber o nome de
um jogador egpcio pode abrir muitas portas ou pelo menos qua-
lificar conversas) e fazem a experincia mais e mais prazerosa.
A praia maravilhosa: h menos de 2 metros da areia poss-
vel mergulhar de snorkel e observar um recife de corais majestoso e
uma diversidade de peixes que eu, morador de cidade, s havia visto
em protetores de tela. De um dos bares beira-mar observa-se de
um lado a imensido do mar Vermelho e os diversos mergulhadores,
e do outro o agito de comerciantes divididos entre oferecer merca-
dorias quase fora e limpar a calada a cada 5 minutos com gua
salgada e sabonete.A torneira e o chuveiro tambm so de gua salgada. No
to salgada como a que vem do mar, mas o suficiente para deixar
os olhos irritados no banho e um gosto desagradvel ao escovar
os dentes. A vantagem que a cozinha dos restaurantes no fica
visvel para os turistas, o que poupa a informao sobre com
qual gua e como as refeies so preparadas.
Enquanto mergulhava de snorkel por que no sou gran-
de f de ir muito fundo fiquei um pouco chateado ao encontrar
alguns sacos de lixo danando junto ao movimento dos intermin-
veis cardumes. Fui descobrir depois que uma organizao local de
moradores convida os turistas para uma faxina subaqutica no
primeiro sbado de cada ms. Mais do que isso, fica claro o impacto
de um nico item de lixo quando descartado incorretamente.
Durante o dia, o que vale ir a alguma praia para mergulhar.E isso mais significativo na praia principal, descendo as escadas
por qualquer um dos bares que d acesso gua e ficar encantado
com a existncia de tanta vida marinha to prxima da superfcie.
noite, jantar e tomar uma cerveja local como a Stella (quando
pedi, achei que o sobrenome seria Artois, como a francesa, mas
acho que estava mais para algo como Stella Al Sheik).
Como fui em baixa temporada e durante o perodo de
Ramadan, foi possvel me aproximar com mais facilidade dos mo-
radores locais pois no havia tantos turistas. Durante as festividades
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sofrendo algum tipo de trapaa. Depois de nove horas de nibus
e cautelosas pesquisas no meu guia e com meus companheiros
de viagem sobre quanto deveria custar um txi da estao at o
centro da cidade, desci do nibus para escutar um valor seis vezes
maior.
Quanto s tentativas de explorao de turistas, confesso
que j estou calejado da ndia. Acho que o que mais me afetou
no Egito foi o embasamento dessas mentiras. No basta cobrar
preos abusivos. A estratgia tentar convencer o turista de que
tudo vai dar errado e a melhor opo confiar no novo amigo.nibus? J parou de passar; Seu hotel fechou; muito longe,
o nibus no vai passar e melhor voc pegar meu txi.
Checava uma informao na Internet, conferia no guia, con-
versava com mochileiros e ao sair para a rua todos tentavam me
convencer do apocalipse. Normalmente, a equipe do hotel solcita
aos viajantes e costuma dar dicas de como evitar as trapaas. Mas
no por aqui. Meu maior inimigo era a recepo do hotel, que me
segurava por horas tentando me convencer a contratar diversos
servios antes de checar as coisas na rua. Mas eu sou teimoso.
Sa pela manh para sacar dinheiro e graas ineficincia
do meu banco fiquei na mo. Porta aberta para um transeunte
qualquer me abordar e oferecer a mais pura das amizades. Depois
dele, outros quatro me ofereceram exatamente a mesma amiza-
de, inclusive com as mesmas informaes pessoais e propostas.Acabei acreditando que todas as pessoas moram em Giza (onde
ficam as pirmides) e adoram a companhia de turistas como eu
para o jantar. Acredito que eu seria um dos pratos principais.
Acabei indo s pirmides de nibus, seguindo o conselho
despretensioso de um vendedor de gua, que no tinha como
se beneficiar da minha pergunta (e eu j havia comprado gua).
Quarenta minutos depois, o motorista me aponta uma das pir-
mides vista da rua. Meu rabe to fluente quanto sua lingua-
gem de sinais, mas fica claro que h apenas uma direo a seguir.
Mais vinte minutos e estou em frente ao complexo de entrada das
pirmides. E, particularmente, perplexo.
Eu j ouvira que as pirmides estavam situadas bem no
meio da cidade, mas no fazia ideia de como isso influenciava
o clima, o relevo e impactava a paisagem. De um minuto para o
outro me vi no deserto, com uma garrafa de gua na mo, camiseta
amarrada na cabea e culos escuros. Em meio multido de
camelos, cavalos e todo tipo de oferta, decidi explorar os monu-
mentos a p, poupando meu dinheiro e pacincia. Caminhando
por vinte minutos sob o sol a pino, fiz uma descoberta geomtricabvia: pirmides no fazem sombra em nenhuma hora do dia.
As pirmides so, de fato, impressionantes, mas confesso
que o que mais me interessava era o contraste entre a cidade e
o deserto. Alguns degraus escalados na segunda maior pirmide
e tudo ficava exposto: no primeiro plano, uma milenar pirmide,
um altar de celebrao continuidade da vida; e atrs, a expresso
urbana de como essa vida continuou.
No sei exatamente a linha ideolgica e as motivaes reais
que os levaram a construir tais monumentos, mas tenho a im-
presso que o contnuo desconforto causado aos turistas no os
agradaria. So incessantes ofertas de produtos e servios na rea.
Observei japoneses, italianos e russos lutarem com vendedores
e policiais para se livrar de servios indesejados. Os policiais de
branco, prestam um importante desservio: oferecem a chamadamelhor vista da pirmide, com direito a foto, em troca de alguns
Bounds egpcios (pronncia rabe, trocando o p pelo b).
Resolvi ento voltar. Um nibus me levou at o trem, que
me levou praa Tahrir. De l, tentei entrar no museu egpcio,
mas devido ao Ramadan o horrio de funcionamento estava alte-
rado e eu excludo da experincia. Sem problemas, meu interesse
neste dia nico estava mais voltado praa do que ao turismo
propriamente dito. Afinal, o Egito vive um momento de transio
interessante e eu estava ali no centro da baguna.
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A presena da polcia e do exrcito apenas precauo.
Outra instncia do julgamento de Mubarak estava prevista para
aquele dia e os nervos do pas ficam mais tensos. Caminhes
trazem dezenas de policiais armados e vestidos de preto, enquan-
to soldados camuflados seguram metralhadoras do alto de seus
tanques. Nenhum agito por ali, e depois das cinco da tarde uma
calmaria. Segundo me disseram, as pessoas foram para casa assistir
ao julgamento transmitido em rede nacional.
Tambm jejuei nesse dia, junto com milhes de muulmanos
para o Ramadan. O jejum comea perto das trs da manh e encerracom o pr-do-sol. Senti o sabor diferenciado de um Shwarma depois
de tantas horas sem comer, mas mesmo com a fome o prato no
me surpreendeu. Foi interessante caminhar e ver as diferentes
quebras pblicas de jejum pelas ruas adjacentes. Em poucos mi-
nutos, a cidade inteira se transforma em um imenso restaurante,
com todos quebrando o jejum ao mesmo tempo, em qualquer
esquina da cidade.
De barriga meio cheia, meio vazia, voltei ao meu hotel para
uma ltima noite de sono. Confesso que fiquei contente de estar
dando sequncia viagem, mas sentia o peso da falta de progra-
mao nos dois dias que passei no Cairo, sem ter conseguido
visitar nenhuma organizao. O Egito no era necessariamente o
foco do Mochila Social, mas estava no meio do caminho e poderia
ento ser aproveitado de alguma forma.Depois de lutar contra as ofertas de pagar trs vezes mais em
um txi, fui de manh rodoviria e esperei. E esperei mais um
pouco. Depois de uma hora que meu nibus no passava, decidi me
render e pegar um txi. Em poucos minutos estava no aeroporto,
pronto para pegar o voo com destino Etipia. Fui surpreendido
com a diversidade de pessoas no avio em um voo no meio da se-
mana, de madrugada, do Cairo Addis Ababa, capital da Etipia.
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Uma observao antes de continuar: eu, desde o incio, sabia que
era algum tipo de esquema, trapaa ou coisa do gnero. Porm, ainda
confio na minha habilidade de julgamento, poder de convencimento e lbia
para me tirar de roubadas. Ao mesmo tempo, minha curiosidade para
entender esse tipo de negcio me faz sempre ir em frente. Com cautela.
Conversamos um pouco enquanto caminhvamos eu havia
comentado com Yonatan, meu novo amigo, a necessidade de um
banho e consequentemente shampoo. Durante o caminho, contou-
-me sua histria: 25 anos, estudando literatura na universidade de
Addis Ababa, atualmente de frias, mora perto da regio onde estoue queria praticar o ingls. Se eu dissesse que ia para a esquerda, ele
se convidaria para ir tambm, ento resolvi, de certa forma, us-lo.
Eu estava planejando visitar a regio chamada Mercato, vinte
minutos de caminhada de onde estou hospedado. considerado um
dos maiores e mais caticos mercados da frica. Havia lido sobre
a regio e pensei que seria um bom lugar para comear a observar
a vida cotidiana. Assim, combinei com Yonatan que tomaria banho,
deixaria todos os meus pertences no hotel e seguiramos juntos para
o Mercato. Fiz questo de deixar claro, antes e durante, que no car-
regava absolutamente nada comigo, o que me daria certa liberdade.
O Mercato, como conhecido o aglomerado na regio de um
dos maiores mercados abertos do continente africano, um exem-
plo vivo da mistura quase catica que identifica o leste africano.
Quando sa do hostel, Yonatan no estava. Fui ento caminhandosozinho de Piazza at a entrada do que seria o Mercato. No trajeto,
o asfalto quebrado se alterna com a cobertura apenas de terra, e no
caso, lama negra que invadia minhas sandlias e marcava os meus
ps. Caixotes so levados de um lado para o outro, deixando cair
alimentos e outros itens no cho sujo. Porm, sempre havia algum
na rua disposto a pegar um destes itens com muita satisfao.
Tmido, no quis sacar a minha mquina fotogrfica e es-
tragar o meu pseudo disfarce embaixo de um agasalho e capuz.
Assim, observei a janela aberta de um prdio de trs andares,
aparentemente comercial, e resolvi tentar subir para um melhor
ngulo. A clnica de sade na qual entrei ficou surpresa com a
minha presena. Digo isso porque secretrias, pacientes e mdi-
cos deixaram seus problemas de lado e focaram suas atenes em
mim, que me debruava pela janela em busca de boas fotografias
desse cenrio to complicado.
Em outra ocasio, dois dias depois, voltei ao Mercato com
Yonatan, meu guia improvisado que tentava extrair qualquer coi-
sa de mim. Para mim valeria a pena: ele me mostraria alguns lu-
gares que os turistas normalmente no frequentam porque elesabia o que eu estava procurando e queria me impressionar em
troca de uma potencial discusso na hora de ir embora sobre o
custo para este passeio (infelizmente, muito difcil estabelecer
um preo antes do servio prestado. O que, sem dvida, o moti-
vo de grande parte dos aborrecimentos na regio).
Passei, pelo menos, umas quatro horas entre vielas mal pla-
nejadas e aglomerados infinitos de produtos de todo tipo, espalha-
dos e desorganizados em pequenas barracas. Impressionava-me
no s a sujeira do lugar em grande parte culpa da garoa fina e
das chuvas do dia anterior , mas tambm a presena de pessoas
em condies de sade terrveis, sejam elas pedintes ou no.
O mercado carrega o nome italianizado de uma poca de
domnio estrangeiro sobre o pas. Mas, sem dvida, caminhando
pelas pequenas vielas do lugar, a frica estampada: do estigma realidade. Catico, desorganizado e sem planejamento, o mercado
oferece todo tipo de mercadoria. E todo tipo de paisagem tambm.
Yonatan me contou que havia trabalhado por trs meses
no Censo da regio. Porm, em poucos minutos de caminhada,
diversas pessoas o abordavam sorrindo e gritando Ganja (que eu
sei, desde a ndia, que significa maconha). No me importa. O que
me interessa que, de fato, ele tem acesso e respeito na regio, o
suficiente para me tirar da rota turstica e mostrar um pouco mais
a fundo o que esse recanto antropolgico tem escondido.
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No caminho, ruas sem asfalto, sem definio clara de comeo
e fim e enlameadas devido temporada de chuvas. Um movimento
intenso de pessoas, animais e mercadorias. Burros de cargas, cabras,
pedintes, mutilados e doentes circulam sem distino. s vezes, es-
tirado ao cho, um corpo, humano ou animal. Em meio conversa
com meu guia improvisado, observo sobre seus ombros uma pai-
sagem cinza e dolorida. Ningum parece notar a minha presena.
Mas eu pareo ter o pensamento ligado no 220v.
Comercialmente, as lojas se agrupam mais ou menos por ati-
vidade. Produo de caf para um lado, manuseio de ferro do outro(exportado principalmente para companhias chinesas para a cons-
truo de estradas). Vegetais so fatiados e distribudos no cho de
uma viela cujo deslocamento quase impossvel, enquanto roupas
e tecidos so manufaturados no fim do extenso corredor.
De sandlias, sinto entre os dedos a insalubridade do local.
E quando observo crianas e portadores de deficincia largados
no mesmo cho que me causa tanto desconforto, sinto meus ps
um pouco mais pesados ao me deslocar. Ignoro a espiadela que
trouxe ao meu conhecimento um rato morto. Estou distrado com
um pedinte cuja pele esta tomada por grandes bolhas e feridas.
Ele expe seu corpo no meio da rua, e mesmo assim consegue
desviar uma infinidade de olhares. No o meu. No estou mais
olhando para ele, mas tenho sua imagem em minha cabea.
Sem tempo para reflexes. Entramos ento numa sinfoniade jovens e crianas martelando, quase que em sintonia, longas
peas de ferro. O material bruto deve ser exportado China.
Os lucros tambm ficaro com os orientais. Peas gigantescas de
um tempero esbranquiado so cortadas s pressas e oferecidas
aos pedestres que se aglomeram nos poucos centmetros de lar-
gura entre uma tenda e a outra.
A maioria das vestimentas est manchada de tons de marrom.
Apesar de algumas roupas e lenos originalmente apresentarem
cores vibrantes, o desgaste estampa-se como uma etiqueta de
marca: Etipia. H uma rea de temperos. Outra para artesanato.
E h a parte limpa, desouvenirse lembrancinhas da Etipia, habita-
da por alguns poucos rostos diferenciados da multido: osfarengis.
espreita, sempre um aglomerado de pedintes. De certa
forma, respeitam a deciso do transeunte de compartilhar ou no
suas pequenas riquezas. De um lado, alguns poucos guardas com o
uniforme amarrotado observam o movimento. Presencio um furto
seguido de perseguio por parte de um dos policiais. Tudo falso,
segundo meu jovem guia. Algum tempo depois, ambos dividiro
os lucros e muitas vezes tambm a recompensa pela captura edevoluo de um bem valioso.
Do alto do segundo andar de um pequeno comrcio, obser-
vo e fotografo. No h como captar a energia do lugar. Nem os
diversos odores. Muito menos transparece no olhar da mquina
o que estou observando. Deso desviando de um cadeirante cujos
braos movem um par de pedais. Ele empurrado por um jovem
coberto por um pano imundo, e juntos pedem colaborao. No
a mim. Minha presena quase no se faz notar, e eu no consigo
entender o porqu.
O Mercato movimenta diversas indstrias da cidade. Por
um lado, chineses usam o ferro produzido na regio para a cons-
truo de rodovias, enquanto os indianos exploram o mercado
de manufaturados. Todos se renem no mercado para comprar
diversos tipos de bens. E muitos veem no Mercato a oportunida-de de um negcio, um ponto de esmola ou um furto. H espao
para todos, ao mesmo tempo em que todos se esforam para no
esbarrar uns nos outros.
A rea residencial circunda o comrcio e abriga grande par-
te das famlias que trabalham no Mercato. Vielas de terra e pedra,
bem menos populosas. Largados no cho, mais alguns corpos.
Impossvel compreender o estado vital de cada um deles. Enquanto
uns parecem ter escolhido o local para estabelecer-se, com um pe-
queno pedao de plstico estendido em busca de esmolas, outros
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parecem ter apenas padecido sem opo. A regio das casas no
foi feita para visitas, por isso no passo muito tempo por l.
No caminho de volta, opto por uma longa caminhada.
Muitas imagens vm cabea e preciso de alguns momentos
para rev-las. O lugar considerado um dos maiores mercados
a cu aberto do continente africano, mas tenho certeza que o
lugar muito mais. Saio sem consumir nada, fui orientado a no
carregar nada comigo. Mas levo na bagagem um amontoado de
cenas e impresses sobre o que se passa por ali.
Depois de mais de quatro horas de entra e sai na regio, re-tornamos. Conversamos sobre futebol, polticas pblicas de habi-
tao e a vida na Etipia e no Brasil. Ele foi me guiando por um
caminho um pouco mais longo do que o da ida, e fiz questo de
deixar claro que sabia perfeitamente onde estava e como retornar,
meio que em tom de brincadeira. Chegando perto do hostel, ele me
perguntou ento quais eram meus planos a seguir. Se eu no estava
a fim de curtir um pouco, mascar Qat5 e trocar ideia profunda
com ele e seus amigos. Avisei-lhe que, infelizmente, estava aqui a
trabalho, que tinha que voltar a escrever e mais tarde encontraria
meus amigos por aqui.
Peguei seu telefone, para uma futura interao. O tempo in-
teiro eu fazia piadas do tipo: eu no preciso do seu telefone, eu sei
que amanh voc vai estar por aqui procurando pessoas como eu.
Ele achava graa, e acho que entendeu que eu no estava muito afim de cair em trapaas. Retornei e fui descansar. Precisava de um
intervalo. Estava muito cansado da viagem e sentindo um grande
peso pelas coisas que observei no Mercato.
Depois que acordei, sa para um caf pela regio e fui abor-
dado por dois garotos com a mesma histria. Dei corda aos dois.
Quando voltei do caf, fui abordado por mais um. Dei a mesma cor-
da. Quando sa noite para jantar, sozinho, achei que a brincadeira
tinha limite e que, sem a luz do dia, nada seria to seguro ento
resolvi jantar no restaurante em frente ao hostel em que estava
dormindo. Comi pela primeira vez uma refeio etope: Carne Fir
Fir, com injera, o po tradicional da regio. Surpreendentemente,
o sabor no me incomodou mas, obviamente, no comi nem me-
tade do prato (claro, com as mos).
Vou escrever sobre o que pesquisei e descobri a respeito
do esquema dos jovens universitrios etopes com quem vinha
conversando: depois de toda a introduo e ganho da confiana,
s vezes depois de xcaras de caf ou copos de cerveja em res-
taurantes locais, convidam o turista para uma atividade na qual
oferecem um servio sem preo. Algo como uma apresentaode msica local (mesmo que seja em CD) ou o consumo de Qat
acompanhado de uma conversa (Yonatan me disse que essas con-
versas so apelidadas de Facebook).
Assim, ao final da experincia em grupo normalmente
distante do hostel, em algum lugar onde eles possuam maior
domnio cobram o servio prestado sob ameaas (no sei e
no vou descobrir de que intensidade). Algo em torno de 2.000
Birrs (mais de U$ 100,00), segundo escutei de viajantes de lon-
ga data por aqui. A diferena que em um caf ou bar eles
no podem trapacear, somente quando o produto pertence
a eles e no pode ser precificado que eles atuam. Detalhe: as
histrias so extremamente bem contadas e mesmo diante de
perguntas capciosas, a maioria deles se saiu muito bem (claro,
com pequenas incoerncias e discrepncias, porm impercep-tveis para o turista desavisado).
E eu que ficava pensando o tempo inteiro em propor para
Yonatan que ele profissionalizasse seu servio de guia local,
rendendo boas revises em todos os fruns online de viajantes.
Acabei conversando com outro rapaz chamado Tony por bastante
tempo. Chegamos concluso que o golpe estava ficando man-
jado, e acabei deixando a sugesto de uma apresentao mais
sincera e direta por parte deles, em troca de alguns Birrs em con-
cordncia com o turista. Algo do tipo: sou um jovem etope, mo-
5 Qat uma
folha de mascar,
uma espcie de
droga relaxante
muito consumida
na regio.
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rador local e conhecedor da regio. Ofereo-me como seu guia/
ponto de segurana pela regio por X Birrs. Ele, claro, concordou
comigo, mas duvido que v mudar suas prticas.
Ao longo dos dias, fui me interessando mais e mais pelo
tema. Conversei com dezenas de jovens pelas ruas de Piazza, e
tambm com muitos mochileiros. Alguns deles foram vtimas de
golpes (uma garota austraca perdeu 500 Birrs junto ao namorado
numa roda de conversa). Tive uma longa conversa com dois jo-
vens e fiz uma proposta sria de mudar a estratgia deles para a
lgica de guia local. Conversamos por pelo menos 1 hora, discuti-mos preconceito, frica, Brasil e o impacto do turismo na regio.
Por todo tempo, ambos acenavam com a cabea, elogiavam-
-me pelo approach diferenciado e pela oportunidade de trocar
ideia. Enquanto isso, na rua, dezenas de pedintes passavam, em
piores condies de sade e estabilidade social. Chegamos con-
cluso que nem todos os turistas so iguais e que nem todos os
jovens da regio esto tentando passar a perna de alguma forma.
Na hora da despedida, uma ltima pergunta: Alex, voc pode pa-
gar uma taxa pela nossa bno para a sua viagem?
Devolvi um sorriso, um aperto de mo a laEtipia e sa.
Tentava apenas sentir a cidade. Explorava os pontos turs-ticos alternados com experincias de imerso na realidade local,
pelo menos ao mximo que me era permitindo sendo umfarengi6.
O percurso dirio permitia um bom contato com a dicotomia que
divide a cidade: de um lado uma classe mdia-alta e muito alta de
expatriados, funcionrios pblicos ou de ONGs e agncias inter-
nacionais, desfilando em carros 4x4, frequentando os cafs mais
caros e os supermercados mais ocidentalizados. Do outro lado,
o objeto de estudo e trabalho da maioria destes funcionrios.
As pessoas comuns na rua, os moradores de habitaes inade-
quadas e vtimas da informalidade no comrcio e da falta de
apoio de instituies pblicas.
Havia lido um dado impressionante no livro Planeta Fa-
vela, de Mike Davis: 99,4% da populao urbana viveria no que
so consideradas favelas. Mas onde elas estavam ento? Em Addis,
pelo menos, no tinha esta sensao de que a quase totalidade da
populao morasse em favelas.
Os prximos dias seriam mais reflexivos. Comeava a me en-
volver com a cidade, num misto de admirao cultural e depresso
social. A imagem que a maioria das pessoas tem da Etipia a que largamente divulgada nos momentos de crise: fome, seca, po-
breza e doenas. Adultos e crianas magrrimos observam a lente
da cmera com o olhar perdido, desesperanado. Largados num
cenrio desrtico ou no meio da rua esto desesperados em busca
de comida ou ajuda. Pois , a Etipia no fica bem na foto.
Mendicncia uma condio socialmente estabelecida e
aceita na Etipia. Mais ou menos se espera que uma parcela de
sua riqueza v diretamente para as mos de pedintes nas ruas.
Caso voc se oponha a contribuir, tambm esta deciso respei-
tada por quem pede. Difcil encontrar um pedinte que v falar
muito e acompanhar o pedestre por quilmetros. Ele pergunta,
voc responde. E assim est.
praticamente impossvel caminhar pela cidade sem ter de
virar o rosto em algum momento, evitando uma imagem difcilde lidar. Ao mesmo tempo, tambm impossvel passar na rua
sem, espontaneamente, esboar um sorriso. De alguma maneira,
a simpatia e cordialidade (verdadeira) do etope fizeram com
que eu me sentisse muito bem acolhido. Nunca vi um povo to
prestativo, simptico e aberto.
O pas, sem dvida, carece de infraestrutura bsica e ma-
nuteno. As ruas e caladas so, de maneira geral, largas e bem
desenhadas, mas o asfalto falho, cheio de buracos e infiltra-
es. Muitas vezes, rua e calada se confundem em um amonto-
6 Farengi o termo
usado na Etipia
para se referir ao
estrangeiro, ao
branco, ao turista.
Na essncia, no tem
carter pejorativo,
mas muitas vezes
usado dessa forma.
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ado de pedras empilhadas cobrindo ou expondo pequenos lagos
que se formam com a gua das chuvas. Outras vezes, observa-se
o encanamento de esgoto em aberturas no cho com mais de 2
metros de profundidade.
Para atravessar as largas avenidas, faixas de pedestre so
amplamente respeitadas. Apesar da escassez de semforos em
funcionamento, dezenas de policiais organizam o trfego e mo-
toristas dirigem atentos e param para a travessia segura dos pe-
destres. O trnsito expressa um pouco das desigualdades sociais
do pas. Entre andarilhos embrulhados em cobertores, minivansde transporte coletivo e carros em questionvel estado de con-
servao, uma classe se destaca: a classe mdia-alta das agncias
internacionais de ajuda humanitria.
Desfilam pela cidade em caminhonetes e veculos 4X4 es-
tampando as mais diversas combinaes de siglas e logotipos.
Destacam-se na paisagem cinzenta e suja do resto de Addis Ababa,
carregando um branco lmpido em sua maioria. H alguns pontos
conhecidos por serem frequentados quase que exclusivamente
por essa classe (sejam eles estrangeiros ou consultores locais con-
tratados por essas agncias).
Na regio de Bole, repleta de embaixadas e representaes
de organizaes internacionais, pode-se encontrar os mais diver-
sos produtos diretamente importados dos EUA ou Europa, no
Friendship Market ou no Bambis Supermarket. Alm dos merca-dos, alguns cafs oferecem um ambiente mais, digamos, ociden-
talizado. E, claro, os preos, apesar de ainda infinitamente mais
baratos que no Ocidente, refletem certa diviso social. O famoso
Kaldis Caf a verso etope do Starbucks (ou o inverso, como
muitos por aqui afirmam) e, segundo um amigo meu, oferecem,
alm do caf, um ponto de encontro para farengisentrarem em
contato com a difundida prostituio do pas.
Ouve-se muita reclamao da falta de oportunidade de em-
pregos na Etipia. E a falta de qualificao profissional oferece
melhores opes junto mendicncia do que nos desgastantes
subempregos. Mesmo assim, observa-se uma ampla variedade
de empregos de rua, como engraxates e limpadores de sapato
(isso mesmo, com gua e sabo), vendedores de carto telefnico
e livros, auxiliares de txi e, claro, alguns poucos trapaceiros pelas
reas mais cheias de turistas.
As melhores oportunidades de trabalho esto junto s agn-
cias e organizaes internacionais. Vagas expostas em murais ao
longo das ruas e junto a empresas de realocao de trabalho. Ao
mesmo tempo, muitas reclamaes vm tambm destas organi-zaes, acusadas de investir muito mais dinheiro em sua prpria
equipe e bem-estar do que nas necessidades especficas do pas.
O imponente complexo da ONU expe um pouco essa realidade.
A moeda do pas o Birr, que em ingls soa como beer,
cerveja. Talvez venha da a cordialidade, afinal, todas as dvidas
se resolvem pagando algumas cervejas. As notas parecem ter
sido impressas uma vez no passado e nunca mais. Desfazem-se
e cheiram muito mal, dando a impresso que esto circulando
h muito tempo. Em vrias cdulas que passaram pelas minhas
mos, marcava-se 1995. O problema que, tendo em vista que
o calendrio seguido na Etipia est oito anos atrasado7
, estasnotas podem ter mais de 20 anos.
Apesar da esttica urbana do pas ser desfavorvel s lentes
(mas favorvel, claro, ao sensacionalismo), a sensao de percorrer
as ruas principais ou pequenas vielas a de se estar em casa. Bom,
na verdade me senti muito mais seguro por aqui, andando pela
madrugada e na escurido total do que em So Paulo, mas cada
um com seus problemas. A Etipia, ento, no fica bem na foto.
Mas fora das telas da TV, ou das pginas de revistas e jornais, o pas
traz um encanto principalmente marcado pelo convvio humano.
7
A Etipia segueo calendrio
chamado Geez,
derivado do
calendrio
Alexandrino que,
por sua vez,
baseia-se no egpcio.
H uma diferena
de 7 a 8 anos
com o calendrio
gregoriano, devido
a diferenas no
clculo da exata
data da anunciao
de Jesus Cristo.
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Conheci um espanhol no hostel de Addis Ababa e chama-
va-o de Juanpa. Por alguma razo, nos demos bem. Ele havia
viajado para a Etipia com o objetivo de voluntariar junto or-
ganizao da Madre Teresa de Calcut, ou Las Sisters como
costumava falar com forte sotaque catalo. Ele simpatizou com
meu trabalho e eu com sua pessoa. Decidimos viajar juntos para
a regio norte do pas. Uma oportunidade de conhecer uma rota
turstica repleta de igrejas esculpidas em pedra e um olhar sobre
as reas rurais do pas.
Tentamos, na primeira vez, ir de nibus, mas eu tinha certapressa para a viagem, j que estava com passagem comprada para o
Qunia dali a cinco dias e a passagem oficial tinha que ser reservada
com pelo menos dois dias de antecedncia. Resolvemos ento ir da
maneira, digamos, alternativa: numa van carregada de mantimentos
e abarrotada de pessoas. Negamos a primeira van pois havia caixas
e mais caixas de sabe-se l o qu invadindo toda a rea reservada aos
passageiros. Combinamos de pegar ento o transporte sugerido por
um amigo, no meio da madrugada. Esta seria uma viagem de aproxi-
madamente doze horas at o primeiro destino, Bahir Dahr.
Aguardamos nos sofs da entrada do hostel, meio acorda-
dos, meio dormindo e nada. Passaram-se algumas horas sem sinal
do nosso transporte e sem conseguirmos nos comunicar com o
nosso improvvel motorista. Amanheceu e no havamos sado
do lugar. Passamos o dia indignados, porm aproveitamos paraexplorar o entorno da regio. Enfim, fizemos um novo acordo
com um novo amigo e agora sim iramos conseguir o transporte,
tambm pela madrugada. Explicamos diversas vezes a situao da
noite anterior e fizemos que jurassem de ps juntos que desta vez
no haveria surpresas.
Quase uma hora depois do previsto, l estava nossa van.
Meio banco para mim, o banco da frente na regio do cmbio
para Juanpa. Algumas mudanas e o rearranjo de lugares e pronto:
meio banco para mim, meio banco para ele. Assim viajaramos
doze horas nas estradas pouco cuidadas de uma rota pouco explora-
da nessas condies por turistas na regio (normalmente os turistas
voam ou optam pelo servio de alguns nibus de semi-luxo).
A viagem comeou por volta das 4 da manh. Com mais
de 15 pessoas na van, o espao para cada um de ns era restrito.
Mesmo assim, eu tinha acesso a uma das janelas, o que me permitia
vez ou outra esticar a mo por uma delas e fotografar. Em um mo-
mento de cansao, experimentei uma sensao de xtase privado:
com um pacote de bolachas de chocolate de baixo custo nas mos,
fechei os olhos e me transportei para fora daquele veculo. Fiqueienvolto no sabor doce do biscoito que irradiava pelo meu corpo e
transcendia a realidade na qual estava preso. Fiquei rindo sozinho
e apreciando o fato de aos poucos ir aprendendo a dar o devido
valor aos pequenos prazeres cotidianos.
Muito verde. A paisagem dividia-se entre longos campos
floridos e algumas moradias feitas de uma arquitetura cuja essn-
cia parecia brotar da prpria terra. Vez ou outra, passvamos por
um vilarejo, um aglomerado maior de casas e pessoas ocupadas
com o cultivo daquela terra frtil devido temporada de chuvas.
Quando parvamos, por razo nenhuma, descamos para intera-
gir com as vilas nas quais estvamos. Em uma delas, um pequeno
mercado agitava e reunia grande parte da populao local em um
gramado que representava o centro da vila. Frutas, vegetais e ani-
mais. Eram essas as ofertas do dia, e provavelmente da semana.Sentia-me em um filme. As casas de barro e madeira, erguidas
como abrigo para as centenas de pessoas pelas quais passvamos,
eram o nico contraste construdo pelo homem na paisagem na-
tural da regio. O verde intenso da grama tambm contrastava
com a falta de tons coloridos dos panos que envolviam os habitan-
tes destes vilarejos. E, claro, falta infraestrutura e investimento
pblico e/ou privado no coletivo alm de incentivos produo
rural como ferramenta de erradicao da pobreza. Mesmo que a
Etipia seja um case de relativo sucesso no mundo das agncias
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internacionais, alguns elementos estruturais continuam devendo
muito para o desenvolvimento social do pas.
Em um destes momentos, em que eu me coloquei no papel
temporrio de turista, tive uma experincia transformadora na
minha forma de observar e interagir pelo resto da viagem. Estava
fazendo um roteiro pelo norte do pas, entre as cidades de Bahir
Dahr e Gondar, indo em direo famosa cidade de Lalibela. Igrejas
encravadas e esculpidas em pedra so o foco das atividades turs-
ticas da cidade. So 15 delas e, de fato, so impressionantes (uns
dizem at que o lugar mais interessante que Petra, na Jordnia,tambm famosa por seus templos encravados na pedra).
De van, eu e o espanhol fomos obrigados a fazer uma pe-
quena escala no programada na minscula cidade de Gashena.
De l, esperaramos qualquer forma de transporte, pblico ou pri-
vado, para uma carona at Lalibela. Sabamos que a estrada era de
pssima qualidade e o caminho seria fisicamente doloroso, mas
jamais poderamos imaginar que a experincia seria o que foi.
Chorei, mas no choro mais.
Estvamos esperando o nibus como qualquer outra pessoa.
Eu e um amigo espanhol havamos descido do primeiro nibus,
de mais de 10 horas, e agora espervamos sentados em um troncode rvore, em meio a uma fina chuva. Os olhares estavam todos
voltados a nossa estranha presena naquela vila, fazendo um tra-
jeto no to comum parafarengis. De qualquer forma, faltava-nos o
resto do trajeto por terra e precisvamos de uma carona.
Tentamos entrar no primeiro nibus e fomos barrados.
No que no houvesse mais assentos, mas o motorista deixou
claro em uma linguagem corporal que no podia nos aceitar an-
tes que o intermedirio definisse nosso preo diferenciado. Uma
srie de avaliaes depois, um rapaz nos alertou que se quiss-
semos pegar aquele nibus deveramos reservar nossos assentos
pagando quatro vezes mais do que o resto dos passageiros.
De repente uma luz. Um cidado etope, com excelente in-
gls e pinta de ricao, fazendo o mesmo trajeto. Ele ofereceu aju-
da como nosso intermedirio, mas fomos aos poucos percebendo
que a luz estava mais para luz negra. Ele estava na verdade nego-
ciando os assentos das pessoas que j estavam dentro do nibus,
oferecendo mais dinheiro e obrigando-as a deixar o nibus. Deixa-
mos claro a ele que discordvamos do que estava fazendo, e que
no nos importava esperar pelo prximo e viajar normalmente.Todas as pessoas desceram do nibus e comeou um rema-
nejamento de lugares. Primeiro, nosso amigo tomou o lugar da
frente, considerado o melhor. Em seguida, os rapazes nos empur-
raram para dentro do nibus. Logo depois, todas as pessoas que
chegaram antes de ns tiveram que se realocar e se apertar nos
assentos remanescentes. Ao sentarmos, os preos: 20 Birrs para
todo mundo, 40 Birrs para nosso amigo e seu lugar especial e 60
Birrs para os doisfarengisque no podem argumentar diretamente
com o motorista.
Sentado, eu reclamava ter um lugar que no merecia. Recla-
mava tambm pagar trs vezes o valor da viagem. E argumentava
com nosso amigo que toda a movimentao que estava aconte-
cendo era simplesmente errada. Aparentemente, depois de risa-
das, ficou claro que moral e tica no eram uma preocupao paraaquele senhor, que havia acabado de voltar de um treinamento
para agncias internacionais na Alemanha. Para mim eram. Amea-
amos descer do nibus, mas fomos alertados que o procedimento
se repetiria em qualquer conduo que tentssemos pegar.
Enquanto isso, na multido que nos observava, um rosto es-
tava imvel. Suas roupas estavam rasgadas. Nenhuma novidade
dentro do cenrio em que tantas outras crianas cobrem-se ape-
nas com alguns poucos farrapos. Os adultos tambm parecem
vestir a mesma roupa h semanas. O marrom da terra e do desgaste
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predomina sobre todas as outras cores e o odor impregna os quatro
bancos da minivan.
Eu vi que ele me olhava desde o momento em que desci do
primeiro nibus. Eu, claro, podia compreender a novidade que eu
trazia. Fiquei impressionado com a quantidade de tempo que ele dis-
punha para me observar. Tambm, no meio de Gashena, uma vila a
62 quilmetros em direo Lalibela por terra, no h muita oportu-
nidade de atividade, seja ela econmica ou social. Sua pele negra era
muito escura e lisa, mas estava coberta por poeira. Seu lbio resseca-
do quase imvel, de tempos em tempos esboava um meio sorriso.Eu no sorria. Estava furioso com o episdio do remaneja-
mento dos assentos e a justificativa que mais odeio escutar por
aqui: This is Africa. Meu olhar estava de encontro ao do garoto do
lado de fora da minivan. Nossos olhares no se deixavam nem por
um instante e fiquei a imaginar o que ele estaria pensando. Enro-
lado em um pano que um dia foi roxo, l estava ele, imvel, talvez
com o pensamento esvaziado, talvez com a cabea cheia de coisas.
No sei o que aconteceu. Meu peito apertou. Meu olho ume-
deceu. Fiquei com vergonha. L estava eu, depois de mais de um
ano de viagem, derramando lgrimas por um garoto qualquer
numa vila qualquer no meio da Etipia. No escondi minhas
lgrimas, mas tambm elas no foram percebidas. A gua salgada
que escorria era um resumo do que havia visto nos ltimos dias.
E eu que me considero to forte e preparado para observar erefletir sobre a Pobreza.
Havia algo na complexidade daquela cena toda que me fez
descuidar da minha postura por um momento. No chorei de
d ou de pena. No chorei de dio ou raiva. Chorei porque no
entendi. Chorei porque ainda no entendo como possvel que
dois mundos to diferentes convivam em tamanha harmonia.
Chorei, mas no choro mais.
Fiquei com a sensao de que havia passado uma ideia erra-
da, uma imagem que no contribua de fato para o que eu estava
querendo fazer pelo leste da frica. Muita gente comentou que
dividia estes sentimentos comigo. Eu no acho. Fiquei pensando
depois qual era o meu papel ao escrever sobre o que via e veria
ali pelo continente estigmatizado e pr-definido por todo mundo.
Alm de no chorar mais e de fato, acho que no derra-
mei mais nenhuma lgrima ao longo da viagem tambm me
propus a observar, vivenciar e relatar outro lado dos pases visitados.
J que todo mundo tem uma ideia especfica sobre o que a frica,mesmo sem nunca ter pisado em pas algum, ou mesmo sem ter
visto fotos que no as produzidas por Sebastio Salgado h duas
dcadas, resolvi destacar o que melhor me cabia: meu olhar. Se as
pessoas iriam de qualquer forma se basear no que eu estava ven-
do, ento por que no deixar o jornalismo seco de lado e escrever
de forma um pouco mais, digamos, humana?
Afinal, o que eu estava vendo era surpreendente, mas no
da forma como eu imaginava. Cada minuto no continente afri-
cano fazia com que eu me arrependesse de ter gasto tempo na
faculdade, em frente ao computador ou qualquer outro ambiente
em que acreditava estar aprendendo. No que eu de fato me ar-
rependa, mas no h lugar melhor para aprender do que com
as nossas prprias experincias vivenciais. Assim, abri os olhos
e continuei a viagem.Ao chegar a Lalibela, acho que j estava com um novo
modo ligado. Chegamos com aquela van da qual no supor-
tava nem mesmo pensar. Descemos ento em qualquer lugar
da cidade e de l caminhamos at uma das pousadas indicadas
no guia. A primeira era muito cara, e resolvemos apenas comer
um omelete com caf preto bem forte, para acordar. Com uma
proposta melhor, acabamos decidindo ficar na pousada vizinha.
O preo era quase incalculvel se convertido e o quarto era mais
do que o suficiente.
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Assim, paga-se um preo relat ivamente elevado, sem a
garantia que essa desproporcionalidade ser reinvestida no de-
senvolvimento social das reas visitadas. Sem um repasse para
infraestrutura e melhoria das condies de trabalho, a tendncia
continuar transformando o turismo em uma relao parasitria,
na qual poucos so os reais beneficirios deste setor. uma pena
observar esse tipo de relacionamento, j que o turismo, se bem
desenvolvido, poderia ser usado propositalmente como ferramenta
de desenvolvimento das comunidades que vivem ao redor destes s-
tios arqueolgicos, igrejas, tribos e assim vai, sem necessariamenteacarretar perdas culturais, como diversas vezes ocorre.
Assim, se voc no esta disposto a se submeter s mesmas
condies, muitas vezes precrias, que esto disponveis em algu-
mas cidades para a maioria da populao, vai sem dvida ter que
botar a mo no bolso.
Minha crtica vem do no investimento desse dinheiro no
desenvolvimento social destas regies. No livro P na frica, do
Fabio Zanini, ele comenta sobre essa carncia de servios para a
classe mdia. Eu concordo com o argumento, mas avanaria um
pouco mais: alm de faltarem investimentos para suprir as neces-
sidades de uma classe mdia, faltam tambm polticas pblicas
de repasse do dinheiro injetado por estrangeiros na melhoria da
qualidade de vida das comunidades em maior situao de pobreza
destas regies. Se bem planejados, os projetos que aliam turismoe desenvolvimento local podem ser a soluo para o crescimento
de regies remotas e seus arredores.
Deixar a Etipia no foi tarefa fcil. As pessoas muito sim-
pticas, a comida excelente. Para um brasileiro fresco com qual-
quer tipo de comida, mergulhar num prato de esttica duvidosa
sempre foi um desafio. Fui surpreendido com a efervescncia cul-
tural, expressa na msica, na dana e na religiosidade dos etopes.
Para um pas nunca colonizado, em um continente onde cultura e
colonizao esto sempre interligados e normalmente de uma
maneira pouco positiva , a Etipia a possibilidade de uma expe-
rincia ainda real da cordialidade e hospitalidade do africano.
Fui obrigado a voar de Lalibela de volta capital Addis Ababa
pois, caso contrrio, perderia o meu voo para o Qunia (afinal, a
viagem de minivan demoraria dois dias). No aeroporto, conheci um
rapaz portugus, professor universitrio, muitssimo interessado
pela minha histria e, principalmente, pelo fato de falarmos a
mesma lngua. Mas durante as turbulncias do meu voo, somadas
chuva e meu, digamos, pnico de avies, s torcia para que ele
esquecesse a conversa e me deixasse lidar com meus medos empaz. No vejo a menor graa em tirar sarro de quem se concentra
para enfrentar seus medos. E que voo. Uma pssima experincia,
dias antes de pegar outro voo para Nairobi, no Qunia.
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mais tranquilo ou, pelo menos, eu estava mais tranquilo. Apesar
de apaixonado pela Etipia, estava tambm muito curioso para
conhecer o Qunia e, principalmente, Nairbi. Ouvi muito sobrea cidade, sobre ser o centro de inovao e mobilizao social do leste
africano. Estava empolgado para rever alguns amigos e, c laro, visitar
projetos que conhecia apenas do meu computador.
Chegar em um pas sem ter nada planejado j difcil,
mas chegar de madrugada e com a guarda levantada ainda pior.
Do aeroporto, discuti por mais de uma hora com um servio de txis
para garantir que eu no estava entrando em um desses esque-
mas com turistas mal informados. Cheguei a me divertir bastante
com o jogo de negociaes no qual estvamos nos desafiando.
No fim, acho que ambos fizemos um bom negcio, mas a viagem
do aeroporto at uma possibilidade de hostel no foi to sutil
quanto imaginava. Pelo menos no da minha parte.
No posso negar que cheguei a Nairbi com os punhos
erguidos, em posio de defesa. Ouvi muitas histrias de roubo
e truques e o apelido de NaiRobbery, repetido em dezenas de
fruns, guias e livros, no era nada animador. Abordei diversosmuzungus8, na tentativa de baratear meu transporte, mas ne-
nhum deles estava indo na mesma direo que eu.
No carro, conversava com o motorista e conduzia a conversa
para dois lados: primeiro, elogiar a simpatia e amizade da popula-
o queniana (uma esquizofrnica tentativa de convenc-lo a no
me roubar); depois, compartilhar uma srie de histrias infundadas
sobre a minha pessoa para garantir que eu no era um idiota qual-
quer: afirmei ser a minha quinta vez no pas, contei horrores sobre
a vida em So Paulo e quo acostumado violncia estou, gabei-me
de campeonatos de luta e conhecimentos de defesa pessoal. No final,
acho que o motorista deve ter pensado que era eu quem ia assalt-lo.
No local marcado com um x no meu guia, o hotel no qual
planejava me hospedar j no existia mais. Em compensao, de
2007 para c (data de publicao do meu guia), muitos outroshotis abriram naquela regio. A msica alta e as diferentes
modelos que passeavam pela rua me diziam exatamente em que
parte da cidade estava. Depois de verificar em mais de 5 opes e
perceber que todas estavam lotadas, acabei por encontrar uma
habitao adequada para aquelas poucas horas de sono.
Ao sair na rua no dia seguinte, tive certeza de onde estava:
praticamente no meio da rua 25 de Maro de Nairbi (misturada
com a rua Augusta). Recebi uma bela recepo dos vizinhos en-
quanto saa em busca de um caixa eletrnico para pagar o hot
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