75
Ministério da Saúde Fundação Oswaldo Cruz Centro de Pesquisas René Rachou Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde Influência do Saber Biomédico na Percepção da Relação Saúde/Doença/Incapacidade em Idosos da Comunidade por Gustavo Vaz de Oliveira Moraes Belo Horizonte Dezembro/2012 DISSERTAÇÃO MSC-CPqRR G.V.O. MORAES 2012

Modelo Biomédico

Embed Size (px)

DESCRIPTION

artigo modelo biomédico

Citation preview

  • Ministrio da Sade

    Fundao Oswaldo Cruz

    Centro de Pesquisas Ren Rachou

    Programa de Ps-graduao em Cincias da Sade

    Influncia do Saber Biomdico na Percepo da Relao

    Sade/Doena/Incapacidade em Idosos da Comunidade

    por

    Gustavo Vaz de Oliveira Moraes

    Belo Horizonte

    Dezembro/2012

    DISSERTAO MSC-CPqRR G.V.O. MORAES 2012

  • Ministrio da Sade

    Fundao Oswaldo Cruz

    Centro de Pesquisas Ren Rachou

    Programa de Ps-graduao em Cincias da Sade

    Influncia do Saber Biomdico na Percepo da Relao

    Sade/Doena/Incapacidade em Idosos da Comunidade

    por

    Gustavo Vaz de Oliveira Moraes

    Dissertao apresentada com vistas

    obteno do Ttulo de Mestre em Cincias

    na rea de concentrao Sade Coletiva.

    Orientao:

    Dra. Joslia Oliveira Arajo Firmo

    Dra. Karla Cristina Giacomin

    Belo Horizonte

    Dezembro/2012

  • iii

    Catalogao-na-fonte Rede de Bibliotecas da FIOCRUZ Biblioteca do CPqRR Segemar Oliveira Magalhes CRB/6 1975

    M827i 2012

    Moraes, Gustavo Vaz de Oliveira.

    Influncia do Saber Biomdico na Percepo da Relao Sade/Doena/Incapacidade em Idosos da Comunidade / Gustavo Vaz de Oliveira Moraes. Belo Horizonte, 2012.

    xi, 64 f.: il.; 210 x 297mm. Bibliografia: f.: 69 - 75 Dissertao (Mestrado) Dissertao para

    obteno do ttulo de Mestre em Cincias pelo Programa de Ps - Graduao em Cincias da Sade do Centro de Pesquisas Ren Rachou. rea de concentrao: Sade Coletiva.

    1. Idoso/psicologia 2. Sade da Pessoa com

    Deficincia 3. Processo Sade-Doena I. Ttulo. II. Firmo, Joslia Oliveira Arajo (Orientao). III. Giacomin, Karla Cristina (Orientao)

    CDD 22. ed. 305.26

  • iv

    Ministrio da Sade

    Fundao Oswaldo Cruz

    Centro de Pesquisas Ren Rachou

    Programa de Ps-graduao em Cincias da Sade

    Influncia do Saber Biomdico na Percepo da Relao

    Sade/Doena/Incapacidade em Idosos da Comunidade

    por

    Gustavo Vaz de Oliveira Moraes

    Foi avaliada pela banca examinadora composta pelos seguintes membros:

    Prof. Dra. Joslia Oliveira Araujo Firmo (Presidente)

    Prof. Dra. Betnia Diniz Gonalves

    Prof. Dra. Virgnia Torres Schall de Matos Pinto

    Suplentes: Prof. Dr. Antnio Igncio de Loyola Filho

    Dissertao ou tese defendida e aprovada em: 21 / 12 / 2012

  • v

    (...) Nosso amor pela pessoa velha no deve ser uma opresso, uma tirania a

    inventar cuidados chocantes, temores que machucam. Faam o que bem entendam,

    cometam imprudncias, desobedeam conselhos. Libertemos os velhos de nossa

    fatigante bondade (...) (Paulo Mendes Campos, Cuidado com os velhos,1969)

  • vi

    Dedicatria

    Aos meus avs, aos meus pais e aos meus

    filhos, demonstrao inequvoca e prazerosa da

    continuidade da vida, por me fazerem compreender

    que, da mesma forma que todos contemos as

    idades que j fomos, todas as idades esto contidas

    na velhice, e que uma boa velhice boa para todos

    de todas as idades.

  • vii

    Agradecimentos

    Cris, minha esposa, pelo amor, carinho, companheirismo e cumplicidade;

    Aos meus filhos, Ana Clara e Francisco, principais motivaes de querer sempre

    fazer melhor;

    Aos meus pais, Joo Carlos e Cida, exemplos de integridade e dedicao, pelo apoio

    e afeto e pela viabilizao e incentivo minha formao pessoal e profissional ao

    longo da vida que me possibilitaram chegar at aqui;

    Aos meus sogros, irmos e cunhados pela amizade e apoio nos momentos de

    necessria ausncia durante a elaborao deste estudo;

    minha orientadora, Joslia, pela competncia, clareza e firmeza na orientao

    deste trabalho, no s em relao ao contedo e ao mtodo, mas tambm

    disciplina e organizao;

    minha co-orientadora, Karla Giacomin, amiga e parceira neste e noutros projetos,

    pela disponibilidade e generosidade e pelas inestimveis contribuies nesta

    dissertao;

    Ao amigo Wagner Jorge pela participao ativa e incansvel em todas as etapas da

    elaborao desta dissertao, sempre de forma fraterna e generosa;

    Aos colegas da Antropologia Mdica: Adauto, Jussara, Josiane, Kelly e Ana Carolina

    pela convivncia e aprendizagem;

    s minhas companheiras da Geros, Marcella e Ruth, pelo estmulo s contnuas

    reflexes a cerca do envelhecer;

    Ao Centro de Pesquisas Ren Rachou, pela infraestrutura tcnica;

    Biblioteca do CPqRR pelo acesso gratuito informao cientfica, essencial

    elaborao desta dissertao, e pela catalogao e normalizao da mesma.

    Aos idosos de Bambu que, ao dividirem suas experincias, viabilizaram este estudo.

  • viii

    SUPORTE FINANCEIRO:

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais, FAPEMIG

  • ix

    Sumrio

    Resumo ........................................................................................................................x

    Abstract .......................................................................................................................xi

    1. Introduo ..............................................................................................................14

    1.1 O saber biomdico ................................................................................................17

    1.2 O conceito de sade e incapacidade no saber biomdico ...................................19

    1.3 A divergncia entre o saber dos indivduos e o saber biomdico ........................21

    2. Objetivos ................................................................................................................24

    2.1 Objetivo geral ........................................................................................................25

    2.2 Objetivos especficos ............................................................................................25

    3. Quadro Terico ......................................................................................................26

    4. Percurso Metodolgico ..........................................................................................30

    4.1 Local do estudo ....................................................................................................31

    4.2 Populao do estudo ............................................................................................32

    4.3 Coleta dos dados ..................................................................................................32

    4.4 Anlise dos dados ................................................................................................34

    4.5 Aspectos ticos .....................................................................................................35

    5. Resultados e discusso .........................................................................................36

    5.1 A valorizao da biomedicina ...............................................................................39

    5.2 A culpabilizao do indivduo ...............................................................................44

    5.3 A naturalizao das doenas na velhice ..............................................................48

    5.4 Os recursos e aes .............................................................................................53

    6. Concluses ............................................................................................................60

    7. Anexos ...................................................................................................................63

    7.1 Anexo I Carta de aprovao N.o 02/2010 CEP / CPqRR ................................64

    7.2 Anexo II Termo de consentimento livre e esclarecido .......................................65

    7.3 Anexo III Dados demogrficos e codificao dos idosos entrevistados ........... 66

    8. Referncias ............................................................................................................70

  • x

    Resumo

    O saber biomdico fundamenta-se em uma viso biolgica e mecanicista do ser

    humano e na abordagem curativa das doenas e representa a viso oficial do corpo

    humano nas sociedades capitalistas ocidentais baseadas na capacidade de

    produo e de consumo. Tal saber tem influenciado no apenas as prticas objetivas

    de sade, mas, tambm, a subjetividade das pessoas em relao ao seu corpo e

    sua vida. Em um contexto de envelhecimento populacional acelerado e intenso, a

    compreenso da influncia do saber biomdico na percepo dos processos

    sade/doena/incapacidade por idosos se justifica pela necessidade de

    entendimento dos modos de pensar e de agir dos indivduos face experincia da

    velhice. O presente trabalho tem por objetivo compreender, a partir de uma viso

    antropolgica, como os elementos do saber biomdico influenciam a percepo da

    relao de sade, doena e incapacidade de idosos residentes na comunidade de

    Bambu, MG. A pesquisa foi realizada na perspectiva da abordagem qualitativa,

    constituindo-se em um estudo etnogrfico observacional. A amostra foi constituda

    por 57 idosos (27 homens e 30 mulheres) com idades entre 62 e 96 anos. Foi

    utilizado o modelo dos signos, significados e aes na coleta e anlise dos dados,

    para permitir a sistematizao dos elementos do contexto que participam da

    construo de maneiras tpicas de pensar e agir diante da incapacidade. Os achados

    da pesquisa evidenciam que o conhecimento mdico-cientfico foi apropriado pela

    cultura local, transformando-a e determinando os modos de pensar e agir dos idosos

    de Bambu. Foram identificadas quatro categorias analticas de significados

    associados ao saber biomdico: a valorizao da biomedicina, a culpabilizao dos

    indivduos, a naturalizao das doenas na velhice e os recursos e aes utilizados

    pelos idosos. Os resultados demonstram que os participantes valorizam muito a

    figura do mdico sem questionar as suas prescries, reproduzem a viso biomdica

    associando as doenas e limitaes idade e culpabilizam-se pela atual condio de

    sade/doena em que dispem de poucos recursos. O saber biomdico impregnado

    no campo de fala dos idosos identifica as condies de doena e incapacidade como

    signos naturais da velhice; e, a partir dessa viso, influencia a reinterpretao do

    cotidiano da vida dos indivduos, limitando recursos e lhes recomendando repouso e

    resignao.

  • xi

    Abstract

    The biomedical knowledge is based on a biological and mechanistic view of the

    human being and on a curative approach of diseases. It represents the official views

    of the human body in Western capitalist societies built upon production capacity and

    consumption. This knowledge has influenced not only the practices of objective health,

    but also the subjectivity in relation to ones body and life. In a context of rapid and

    intense population aging, understanding of the influence of biomedical knowledge in

    perception health / illness / disability processes of the elderly is justified by the need to

    acknowledge the ways of thinking and acting according to the experience of old age.

    This study aims to understand, from an anthropological vision, how elements of

    biomedical knowledge influence the perception of the health, disease and disability in

    elderly community residents of Bambu, MG. The survey was conducted from the

    perspective of a qualitative approach, consisting in an ethnographic observational

    study. The sample consisted of 57 older adults (27 men and 30 women) aged

    between 62 and 96 years. We used the model of signs, meanings and actions in

    collecting and analyzing data, once it enables the systematization of context elements

    that participate in the construction of typical ways of thinking and acting towards

    disability. The research results show that medical and scientific knowledge was

    assimilated by local culture, transforming it and determining the ways of thinking and

    acting of the Bambu elderly. We identified four analytical categories of meanings

    associated with biomedical knowledge: the valuing of biomedicine, the self-blaming,

    the naturalization of diseases in old age and the resources and actions used by the

    elderly. The results show that participants greatly value the doctor, not questioning

    their prescriptions, reproduce the biomedical vision, associating diseases and

    limitations to old age and blame themselves for the current health / disease condition

    that has few resources. The impregnated biomedical knowledge in the field of elderly

    speech identifies the disease and disability conditions as natural signs of aging, and,

    from this view, influences the reinterpretation of everyday life of individuals, limiting

    resources and recommending them rest and resignation.

  • 14

    1 Introduo

  • 15

    Em todo o mundo, usualmente, o envelhecimento populacional tem sido

    compreendido como uma ameaa potencial sustentabilidade dos sistemas fiscal,

    econmico, previdencirio e de sade pblica dos pases. Portanto, muitos debates

    no mbito internacional tratam de aes institucionais necessrias para enfrentar o

    desafio que isso representa. Alm disso, o aumento expressivo da expectativa de

    vida acontece em um mundo que tambm experimenta profundas alteraes

    tecnolgicas, comportamentais e sociais, que repercutem na estrutura e na dinmica

    das famlias, tais como a crescente participao feminina no mercado de trabalho, a

    reduo do nmero de filhos e a instabilidade nos casamentos. Em uma populao

    cada vez mais envelhecida, tudo isso concorre para aumentar a demanda por

    assistncia sade e por cuidados no familiares de longa durao 1,2.

    No Brasil, esse processo de transio demogrfica, caracterizada pela reduo das

    taxas de mortalidade e fecundidade e pelo aumento da expectativa de vida, comea a

    ser notado a partir de 1940. Em 1950, o pas possua 2,6 milhes de idosos com 60

    anos de idade ou mais, representando menos de 5% da populao brasileira; em

    2010, esse grupo j era de 19,6 milhes, correspondendo a 10,2% da populao1.

    Assim, o processo brasileiro de envelhecimento populacional tambm chama a

    ateno pela velocidade com que ocorre. Se, nos pases desenvolvidos esse

    processo se deu de forma bem mais lenta - por exemplo, para a populao idosa

    crescer de 7 para 14% foram necessrios quase 70 anos nos EUA e mais de 100

    anos na Frana - em nosso pas estima-se que o mesmo avano acontecer em

    apenas duas dcadas1,3.

    Alm disso, especificamente no mbito da sade, de maneira concomitante

    transio demogrfica, observa-se a transio epidemiolgica, processo responsvel,

    em grande parte, pela queda da taxa de mortalidade, com reduo significativa das

    doenas infectocontagiosas e aumento importante das doenas crnicas. Estas

    ltimas, de curso insidioso e de longa durao, podem comprometer a capacidade do

    indivduo de executar as atividades da vida diria, repercutindo diretamente sobre a

    famlia, o trabalho, a previdncia social, as polticas de sade e de assistncia social,

    entre outras. Entretanto, apesar de o envelhecimento ter sido quase sempre ligado

    ideia de debilidade fsica e de perda da independncia, vrios estudos tm

    demonstrado a reduo na proporo de idosos com incapacidade, embora com o

  • 16

    aumento do contingente idoso da populao, o nmero de pessoas com incapacidade

    tenda a aumentar 4,5.

    Ademais, a perspectiva de envelhecer, com ou sem incapacidade, acontece em uma

    cultura ocidental que assume valores consumistas e individualistas, baseados na

    juventude e na auto-suficincia do indivduo. Eles reforam a imagem da pessoa

    idosa apenas como um sujeito improdutivo, decadente, portador de mltiplas

    doenas, grande consumidor de medicamentos e de servios de sade e a da velhice

    como um processo que, inevitavelmente, levar incapacidade6 e dependncia de

    terceiros sejam eles o Estado, a comunidade, a famlia ou um cuidador.

    Esse curso inexorvel para a incapacidade deve ser discutido a partir de diferentes

    correntes de pensamento que podem investir na recuperao e reinsero dos

    indivduos ou desacreditar e impedir o investimento nessa direo. Afinal, sabe-se

    que a incapacidade, alm de suas consequncias nefastas sobre a autonomia e a

    independncia dos sujeitos, tem sido geradora de discriminao e excluso das

    pessoas que a vivenciam, h vrios sculos. Neste sentido, retomando a ideia de

    Robert Murphy (1987), Le Breton7 afirma:

    O homem deficiente um homem com estatuto intermedirio,

    um homem do meio-termo. Ele nem doente nem saudvel,

    nem morto nem completamente vivo, nem de fora da sociedade,

    nem dentro dela. (p. 75)

    Alm disso, a representao que o sujeito faz de seu corpo em um dado contexto

    social e cultural tambm reflete a interiorizao do julgamento social acerca da sua

    maneira de viver e dos seus atributos fsicos, e isso determinaria largamente a sua

    auto-estima7.

    Vale lembrar que, atualmente, o conhecimento biomdico tem assumido um papel

    social cada vez mais relevante nesta avaliao, uma vez que ele a representao

    oficial do corpo humano na sociedade ocidental. Ele atua como uma espcie de

    verdade universal do corpo, um etnocentrismo elementar ao qual cedem, no

    entanto, numerosos pesquisadores. pela viso biomdica que conceitos como

    higiene, preveno, perspectiva mdico-simblica do limpo e do sujo, do prprio e do

    nefasto, do sadio e do doente so culturalmente condicionados7.

  • 17

    Porm, ao discutir o assunto Le Breton7 expe as contradies dessa viso, uma vez

    que o contrato tcito que preside o encontro do homem que tem uma deficincia e do

    homem vlido se sustenta pelo fato de fingir que essa alterao orgnica ou

    sensorial no criaria nenhuma diferena entre eles.

    Assim, em um contexto de envelhecimento populacional acelerado e intenso, o

    interesse na compreenso da influncia do saber biomdico na percepo dos

    processos sade/doena/incapacidade por idosos est largamente justificado.

    1.1 O saber biomdico

    A Medicina uma arte milenar. Porm, em comparao com a medicina hipocrtica,

    a prtica mdica atual foi radicalmente modificada pela assimilao de conceitos

    cartesianos que se encontram na origem do modelo mecanicista do corpo humano

    que prevalece at os nossos dias. Este modelo representa um princpio de

    inteligibilidade do mundo proposto por Descartes, segundo o qual o conhecimento

    deve ser til, racional, despido de sentimento e capaz de produzir eficcia social8.

    No sculo XIX, a medicina passa a produzir um discurso cientfico a respeito da

    sade e da doena, estabelecendo novas relaes de causa e efeito para as

    molstias e levando objetivao da anlise e objetificao do paciente e

    consequente perda de sua identidade9.

    Desde Descartes e ao longo dos trs ltimos sculos, com o surgimento da medicina

    moderna e o desenvolvimento da industrializao e da economia capitalista, e,

    principalmente, desde a segunda metade do ltimo sculo, observa-se a ampliao

    do raio de atuao da medicina e a extrapolao do seu campo de atuao tradicional

    em relao s doenas, com grande crescimento da definio dos problemas da vida

    em termos mdicos10.

    Historicamente, a cincia biomdica tem suas razes no positivismo, com nfase no

    mtodo emprico para se chegar ao conhecimento, na linguagem matemtica para

    traduzir e transmitir o conhecimento e na crena na neutralidade da cincia. A sua

    racionalidade baseia-se em um carter generalizante, mecanicista e analtico:

  • 18

    generalizante porque se prope a produzir modelos de validade universal e leis de

    aplicao geral, no se ocupando de casos individuais; mecanicista porque seus

    modelos tendem a naturalizar o corpo humano como uma gigantesca mquina,

    compreendido por uma causalidade linear e possvel de ser traduzida em

    mecanismos; e analtica porque a abordagem terica e universal adotada para a

    elucidao das leis gerais sobre o funcionamento da mquina humana pressupe

    o isolamento de partes e que o funcionamento do todo dado pela soma das

    partes11. Da se compreende a viso fragmentada do indivduo e a supervalorizao

    da especializao, que tm como objetivo produzir um grande conhecimento de uma

    parte especfica do organismo.

    Ainda de acordo com a prtica biomdica*, alm da determinao biolgica, haveria

    uma normatizao vertical, segundo a qual o mdico seria detentor do conhecimento

    e o paciente visto de forma fragmentada e sem autonomia, sem voz ativa no processo

    decisrio de sua prpria propedutica e teraputica. Desse modo, a prtica mdica

    costuma ser prescritiva e autoritria, com predominncia de uma viso restrita e

    curativa das doenas, em grande parte decorrente de um passado recente de um

    perfil epidemiolgico em que prevalecia doenas infectocontagiosas, muitas delas de

    elevada mortalidade, mas de baixa morbidade ou passveis de cura8.

    A ampliao da jurisdio mdica se deu atravs da prescrio de normas morais de

    conduta e de comportamentos por seus especialistas, estabelecendo diversas

    medidas de controle sobre o corpo individual e coletivo e levando produo de uma

    cultura medicalizada. Desse modo, h o desenvolvimento de um poder sobre a vida

    o biopoder que exercido sobre os indivduos e a sociedade14.

    De acordo com essa viso, o indivduo - e o meio que o cerca - apontado como

    responsvel pelo seu processo de adoecimento e recebe a seguinte convocao: o

    cidado de bem no deve reformar seu comportamento em funo dos decretos da

    cincia?9 Esse questionamento traduz a fora moralizante do conhecimento

    cientfico, no qual a cincia assume uma conotao cujo poder comparvel ao de

    um novo deus e cuja engrenagem de ordenamento social no parece ser divergente

    da religio15.

    * O modelo que fundamenta o ensino e a prtica biomdica tem um marco importante no incio do sculo XX

    com a publicao do Relatrio Flexner. Embora haja controvrsias em relao ao relatrio, seus princpios afirmam a determinao biolgica das doenas, a formao mdica centrada nos hospitais e o estmulo disciplinaridade e especializao, decorrente da viso reducionista do conhecimento cientfico

    12,13.

  • 19

    Diante da crescente apropriao dos modos de vida do ser humano pela medicina, ao

    final da dcada de 1960, surgiu o termo medicalizao para se referir, por exemplo,

    s normas ditadas pelo saber biomdico sobre o nascimento, o envelhecimento e a

    morte, por meio da produo de conceitos, diagnsticos e intervenes, baseados na

    concepo biolgica de sade e doena, a partir da qual haveria a classificao do

    que seria normal e patolgico16. Uma das principais consequncias dessa

    medicalizao seria a dependncia progressiva das pessoas em relao s

    prescries mdicas e supervalorizao dos prescritores, ocasionando a perda de

    autonomia dos indivduos para lidar com os aspectos do cotidiano da vida, como o

    sofrimento e a morte17.

    De fato, esse modelo se fortaleceu no ltimo sculo com o sucesso no recuo das

    epidemias, os avanos tecnolgicos e cientficos e o aumento da longevidade, mas,

    tambm, por corresponder s expectativas das sociedades modernas capitalistas

    ocidentais que valorizam o individualismo, a produtividade, o acmulo de riquezas e a

    capacidade de consumo. Desse modo, as doenas prejudicam a capacidade

    produtiva dos indivduos e, medida que o conhecimento mdico avanou,

    tratamentos mais enrgicos, como a antibioticoterapia, foram sendo desenvolvidos

    tambm com o objetivo de recuperar e devolver o doente, o quanto antes, para o

    trabalho9.

    Nesse contexto da sociedade capitalista ocidental, a referncia de normalidade,

    esttica e funcional, o jovem14, o que abre espao para que a velhice deixe de ser

    reconhecida como etapa natural da vida e passe a ser classificada como uma

    categoria patolgica. Alm disso, cria expectativas sobre o corpo, os comportamentos

    e a sade16 e determina modos especficos de pensar e agir dos idosos, em um claro

    exemplo de como a medicina se torna uma forma cultural de controle social.

    1.2 O conceito de sade e incapacidade no saber biomdico

    Em meados do sculo XX, a Organizao Mundial da Sade (OMS) lana o conceito

    de sade como estado de bem-estar fsico, psicolgico e social, o qual se torna

    referncia9 apesar das crticas em relao ao seu carter utpico e dificilmente

  • 20

    atingvel. Embora, na teoria, ele incorpore outros fatores como determinantes da

    sade, alm do campo biolgico; na prtica, pela dificuldade de se estabelecer

    critrios, classificaes e instrumentos de medida para o reconhecimento da sade

    dos indivduos, a sade permanece sendo identificada apenas pela ausncia de

    doenas. Alm disso, com a evoluo da epidemiologia emergem as noes de risco

    e de probabilidade de adoecer, associadas a variados fatores como a predisposio

    gentica, os hbitos de vida e os elementos do meio natural e sociocultural. Por sua

    vez, a descoberta mdica da presena de fatores de risco ou de sinais e sintomas

    reveladores de doenas rotula de doentes indivduos que se mostram de toda

    maneira ativos e sujeitos da prpria existncia.

    Para a Medicina, os sintomas, a incapacidade e a morte so os desfechos em sade

    de particular interesse para os pacientes e para aqueles que se preocupam com eles.

    So estes os eventos que os mdicos tentam prever, interpretar e modificar quando

    cuidam de pessoas18. No que tange incapacidade, sua compreenso discutvel a

    partir de diferentes correntes de pensamento, com destaque para dois modelos: o

    social e o biomdico. O primeiro reconhece a incapacidade pela diminuio de

    oportunidades sociais para os indivduos portadores de alguma deficincia,

    relacionada a contextos socioculturais especficos, resultando na discriminao e

    excluso social de quem apresente essa caracterstica. Enquanto para o modelo

    biomdico, que reflete a evoluo deste saber nos ltimos sculos, inicialmente, a

    incapacidade seria consequncia de anormalidades bio-fisiolgicas provocadas por

    doenas, levando disfuno e deficincia orgnicas19.

    Nos ltimos 30 anos, a OMS props classificaes especficas e conceitos mais

    abrangentes da incapacidade, que culminaram na publicao, em 2001, da

    Classificao Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Sade (CIF). Ela

    define a incapacidade como um processo que designa os comprometimentos, as

    limitaes de atividade ou a restrio na participao na famlia, na comunidade, na

    profisso, sendo um produto da interao dinmica entre as condies de sade

    (doenas, leses, traumas) e os fatores contextuais (ambiente e atributos pessoais)

    do indivduo20, 21.

    Porm, apesar de todo o avano e do esforo da medicina em sistematizar as

    prticas de sade por meio de padronizaes e protocolos de diagnstico e

    tratamento baseados na melhor evidncia cientfica, as concepes de sade e

  • 21

    doena dos diferentes grupos que compem a sociedade so heterogneas e

    possuem caractersticas que variam de acordo com o contexto sociocultural de cada

    um. Por exemplo, vrios estudos tm demonstrado que as concepes do sujeito

    sobre a sua doena so absolutamente distintas daquelas de um profissional de

    sade, especialmente do mdico, em relao mesma molstia22.

    1.3 As divergncias entre a viso dos indivduos e o saber biomdico

    Embora a velhice seja uma etapa natural da vida humana, existem muitos modos de

    ser velho e de lidar com o envelhecimento, suas limitaes biolgicas e suas

    mudanas sociais. Ucha23 em um artigo memorvel discorre sobre o quanto a viso

    de pessoas mais jovens sobre a velhice valoriza as perdas, enquanto a das pessoas

    mais velhas foca as capacidades e oportunidades desta etapa da vida.

    No mbito da sade, durante a consulta mdica busca-se dissipar pelo interrogatrio

    os mal-entendidos nascidos do distanciamento do discurso de quem procura o

    cuidado daquele da cultura mdica assumido pelo profissional de sade. Porm, isso

    no se faz sem dificuldades, posto que, como afirma Le Breton7, na cultura mdica:

    O corpo se d como uma mquina a qual convm gerir os

    recursos e suprimir as disfunes. A significao atribuda pelo

    doente sua dor ou a sua doena uma fantasia que no deve

    de modo algum interferir com o ato mdico. (p. 167)

    Alm disso, com a evoluo do saber biomdico e sua superfragmentao em

    especialidades, a consulta mdica se tornou um negcio de especialistas, no qual o

    homem comum pode acabar desamparado e sem cuidado7. Assim, quando existe

    uma aproximao nas linguagens e concepes, pode haver uma potencializao no

    cuidado, na adeso ao tratamento e at na melhoria da qualidade de vida. Por sua

    vez, pode ocorrer um efeito contrrio quando se observa uma dissociao entre a

    expectativa do sujeito e as normas biomdicas. ainda mais desafiador reconhecer

    que o que for prescrito ao indivduo ser interpretado por ele buscando compreender,

    admitir ou refutar o saber biomdico, em um processo dialtico que tambm sofre

    influncias do meio e do amadurecimento do indivduo, ao longo do curso da vida.

  • 22

    Esse distanciamento entre o saber biomdico e a demanda da pessoa pode ser

    observado ao analisar as diferenas entre a viso biomdica e a viso dos idosos.

    Por exemplo, ao investigar as maneiras de pensar e agir de idosos hipertensos, Firmo

    et al demonstraram uma clara distino entre o que as pessoas entendiam por

    problema de presso e presso alta e a condio mdica conhecida como

    hipertenso arterial. Segundo os participantes do estudo, a presso alta era

    considerada como um problema, normalmente desencadeada por problemas

    familiares e que poderia ser reconhecida por algumas manifestaes especficas,

    sendo o nico momento em que eles consideravam as intervenes como realmente

    necessrias24. Certamente, essa no a concepo mdica em relao

    hipertenso arterial e ao modo correto de abord-la.

    Outro exemplo da divergncia entre os dois saberes pode ser visto em estudos que

    avaliam o chamado envelhecimento bem sucedido. Apesar de muitos estudos

    demonstrarem a reduo na prevalncia de incapacidade funcional na populao

    idosa, em vrios pases do mundo, em um estudo norte-americano, McLaughlin et

    al25 observaram que a porcentagem de idosos que preencheram critrios objetivos de

    envelhecimento bem sucedido por ano permaneceu estvel, de 1998 a 2004, em

    torno de 11% nos Estados Unidos. Em outro estudo que avaliou o envelhecimento

    bem sucedido medido pelos pesquisadores e o auto-relatado pelos prprios idosos,

    Cernin et al26 observaram que 30% dos participantes foram objetivamente

    classificados como bem sucedidos, enquanto que 63% dos idosos se declararam

    como bem sucedidos. Vahia et al27 ao avaliar o auto-relato de mulheres idosas

    quanto ao envelhecimento bem sucedido demonstraram que, numa escala crescente

    de 0 a 10, mais de 80% das mulheres se deram nota igual ou superior a 7, sendo que

    para mais de 70% a nota foi igual ou maior do que 8. Esses pesquisadores ponderam

    que, enquanto nos estudos epidemiolgicos e quantitativos os avaliadores valorizam

    atributos fsicos e funcionais, os estudos qualitativos demonstram que os fatores

    psicolgicos e sociais e a capacidade de adaptao s doenas influenciam a

    percepo que os idosos tm de sua prpria sade.

    Diante do exposto, fundamental compreender como o saber biomdico

    apreendido pela pessoa idosa, atribuindo significado s suas vivncias, e como isso

    interfere nas suas prticas de sade, uma vez que ele influencia a percepo dos

  • 23

    processos de sade, doena e incapacidade e os modos de pensar e agir do

    indivduo.

  • 24

    2 Objetivos

  • 25

    2.1 Objetivo Geral

    O presente trabalho tem por objetivo compreender, a partir de uma viso

    antropolgica, como os elementos do saber biomdico influenciam a percepo da

    relao de sade, doena e incapacidade de idosos residentes na comunidade.

    2.2 Objetivos Especficos

    - Identificar os elementos do saber biomdico presentes na fala dos idosos

    relacionados aos processos de sade, doena e incapacidade.

    - Compreender como esses elementos participam da construo de significados para

    a relao sade/doena/incapacidade pelos idosos.

    - Compreender como os significados atribudos pelos idosos relao

    sade/doena/incapacidade influenciam as suas aes de sade.

  • 26

    3 Quadro Terico

  • 27

    A presente pesquisa foi desenvolvida na perspectiva da abordagem qualitativa,

    constituindo-se em um estudo etnogrfico observacional28. Fundamentada nos

    pressupostos da etnografia, a pesquisa utilizou o mtodo de coleta de dados baseado

    no contato direto intersubjetivo entre o pesquisador e o sujeito pesquisado. Na

    perspectiva observacional foi utilizada a propriedade do mtodo qualitativo que,

    segundo Turato29, estabelece o ambiente natural do sujeito como o espao

    inequvoco onde ocorre a observao sem controle das variveis e sem produzir nele

    nenhuma modificao.

    Uma das grandes contribuies da antropologia para a sade foi a construo de um

    quadro conceitual e metodolgico inovador que investiga o envelhecimento a partir da

    perspectiva mica30. Para essa metodologia a interpretao do cientista construda

    na perspectiva dos entrevistados e no como uma discusso na viso do pesquisador

    ou da literatura29. Assim, na presente pesquisa, o idoso foi convocado a falar sobre a

    vida e sobre si, mais especificamente sobre suas condies de sade. Isso

    possibilitou ao pesquisador o mergulho no ambiente local e cultural desse idoso, lugar

    onde ele se organiza e que lhe confere significados particulares sobre a sua prpria

    experincia.

    A cultura , portanto, um texto interpretvel, sendo entendida como o contexto que

    confere inteligibilidade a situaes e acontecimentos da vida, estruturando o campo

    social em um tecido semntico. Dessa forma, os idosos constroem psicossocialmente

    a sua experincia, como por exemplo, o processo de envelhecer, de adoecer e ou de

    se tornar funcionalmente incapaz na velhice, em uma elaborao cultural de formas

    singulares de envelhecer.

    Nessa perspectiva a abordagem interpretativa da antropologia, utilizada na presente

    pesquisa, muda o foco da doena como uma entidade biolgica para a experincia da

    doena em um determinado contexto social e cultural. Ressalte-se que em humanos,

    os fenmenos nunca so apenas um fenmeno, pois eles esto sempre imbudos de

    significado na juno entre os quadros pessoal e coletivo. Esse significado

    apropriado pelos pesquisadores da antropologia interpretativa como o elemento que

    influencia o curso da doena moldando a experincia subjetiva, bem como o

    comportamento individual e social em resposta da doena31.

  • 28

    Sob o ponto de vista da Antropologia Mdica ou Antropologia da Sade, a doena

    no pode ser definida apenas como um processo patolgico, no sentido biomdico do

    termo, sendo o processo sade/doena uma construo sociocultural. Nessa

    perspectiva, vrios estudiosos, entre eles Eisenberg32 (1977) e Kleinman33 (1980),

    elaboraram conceitos e formas de compreender a doena que ainda so usados at

    hoje34. A teoria proposta por Eisenberg diferencia a doena processo e a doena

    experincia. Segundo ele, a doena processo (disease) se refere s anormalidades

    dos processos biolgicos e psicolgicos, na funo e/ou estrutura dos rgos e

    sistemas do corpo, e a doena experincia (illness) experincia subjetiva de mal-

    estar32. Kleinman desenvolveu o conceito de modelos explicativos (explanatory

    models) para descrever o conjunto de crenas e expectativas sobre uma doena,

    formuladas por indivduos em uma determinada cultura. De acordo em essa

    perspectiva, o modelo biomdico de compreenso do processo sade/doena

    apenas uma das maneiras de interpretar esse fenmeno e tambm social e

    culturalmente construdo33.

    Illness tambm pode ocorrer na ausncia de doena35. Corroborando esse sentido,

    Ucha36 aborda a questo de que a experincia da doena no considerada como

    um simples reflexo do processo patolgico no sentido biomdico do termo; mas

    concebida como uma construo cultural que se expressa em formas especficas de

    pensar e agir. Portanto, os modelos disease/illness so formas de construir a

    realidade, de impor significado no caos do mundo fenomenolgico da doena37.

    Segundo Morin38 (2001), as sociedades s existem e as culturas s se formam,

    conservam, desenvolvem e transmitem atravs das interaes entre os indivduos e

    so organizadas e organizadoras atravs do veculo cognitivo da linguagem.

    Dispondo de seu capital cognitivo, a cultura institui as normas que organizam a

    sociedade e governam os comportamentos individuais. As interaes entre os

    indivduos portadores/transmissores da cultura geram novos conhecimentos que

    regeneram a sociedade, a qual regenera a cultura. Assim, as normas culturais geram

    processos sociais e regeneram globalmente a complexidade social adquirida por essa

    mesma cultura, de tal modo que cultura e sociedade esto em relao geradora

    mtua38.

    Com o desenvolvimento da medicina moderna, o saber biomdico vai-se fortalecendo

    e a medicina, progressivamente, amplia o seu campo de atuao, interferindo em

  • 29

    aspectos comuns da vida atravs da prescrio de comportamentos e de normas de

    conduta. Pela colocao de Morin, pode-se compreender como o saber biomdico,

    atravs de sua influncia nos indivduos e na sociedade, assimilado pela cultura e

    passa a constitu-la.

    Algumas vezes profissionais de sade e doentes empregam modelos explicativos

    diferentes para a doena, fato que pode explicar o insucesso do tratamento34.

    Conhecer essas diferenas pode facilitar a comunicao entre tais grupos, ampliar a

    compreenso dos profissionais quanto s vrias formas de conceber o processo

    sade/doena, aumentar a aderncia das pessoas que utilizam o servio de sade s

    intervenes e aos tratamentos propostos. Isso desafiador, mas pode ser propulsor

    de avanos na educao em sade e na promoo da sade dos indivduos e da

    coletividade.

  • 30

    4 Percurso Metodolgico

  • 31

    4.1 Local de estudo

    A pesquisa foi conduzida na rea urbana da cidade de Bambu, municpio do centro-

    oeste do estado de Minas Gerais, distante 270 quilmetros de Belo Horizonte e que

    possui uma populao estimada em 2010 de 22.734 habitantes, incluindo zona rural e

    urbana39. O municpio vem passando por um progressivo fenmeno de urbanizao,

    conforme ocorrido no Brasil aps 1950, podendo verificar uma evoluo significativa:

    a populao urbana que representava 16% em 1950 passou para 73% em 1991 e em

    2010 representava 85% da populao total do municpio. A composio etria da

    populao tambm foi se alterando ao longo desses ltimos cinquenta anos,

    observando-se o seu envelhecimento progressivo: em 1960, 3,8% dos habitantes

    apresentavam 60 ou mais anos de idade; em 1970 esta proporo passou para 5,1%,

    em 1980 para 7,3% e em 1991, para 9,3% e de acordo com o senso do IBGE de

    2010 essa populao passou a representar 15,9%. O crescimento da populao

    idosa neste municpio foi maior (7,1%) do que no pas em geral (6,2%) no perodo

    compreendido entre 1991 e 200940,41.

    A economia da cidade de Bambu tem a sua principal fonte de renda proveniente da

    explorao produtiva de seus recursos naturais, em atividades agrcolas, pecuria e

    de extrao mineral. O municpio grande produtor de gros, compondo a sua

    produo agrcola o caf, arroz, milho, soja e cana-de-acar. Bambu se destaca no

    estado de Minas Gerais na explorao de pecuria leiteira. Sua principal produo

    mineral a extrao de caolim42.

    O Mapa da Pobreza e Desigualdade do municpio mostra que h uma incidncia de

    32,47% da populao em estado de pobreza, aumentando o segmento da populao

    que passa a se cadastrar no Programa Bolsa-Famlia, sem que todos, no entanto,

    consigam obter o benefcio39, 42.

    Quanto s questes relativas sade43, Bambu se destacou como centro de

    profilaxia contra a doena de Chagas. O Posto Avanado de Estudos Emanuel Dias,

    criado para controle da Doena de Chagas, presta at hoje assistncia mdica

    populao. A rede pblica de assistncia sade do municpio conta com seis

    Unidades Bsicas de Sade que integram a Estratgia de Sade da Famlia (ESF),

    um Centro de Sade, uma unidade do Ncleo de Apoio Sade da Famlia (NASF),

    um hospital da Fundao Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG) e um

  • 32

    hospital municipal, o Hospital Nossa Senhora do Brasil. No existem instituies de

    longa permanncia para idosos44.

    4.2 Populao de estudo

    Para reconstruir o universo de representaes (maneiras de pensar) e

    comportamentos (maneiras de agir) associados incapacidade funcional foram

    selecionados idosos com 60 anos ou mais residentes em Bambu, cadastrados nas

    seis Unidades Bsicas de Sade e assistidos pela Estratgia de Sade da Famlia.

    Com o objetivo de proporcionar a multivocalidade ao relatrio final, a pluralidade da

    nossa amostra foi caracterizada pela composio de um grupo de entrevistados, de

    ambos os sexos, de diversas idades, variados nveis funcionais e residentes nas

    vrias regies da cidade.

    Na perspectiva da abordagem qualitativa foi utilizado o critrio de saturao para

    regular o tamanho da amostra45. Para isso, foram identificados fatores operacionais

    de redundncia e repetio dos dados, fatores tericos de consistncia e

    representatividade de elementos associados incapacidade e a qualidade das

    informaes obtidas sobre funcionalidade, contribuindo para a deciso de um

    determinado ponto de saturao amostral.

    4.3 Coleta de dados

    Foram realizadas entrevistas com os idosos em seu domicilio. A tcnica de pesquisa

    utilizada na coleta de dados foi a entrevista semi-estruturada, permitindo a ampliao

    do campo de fala dos idosos pertencentes amostra. Todas as entrevistas foram

    gravadas aps consentimento livre e esclarecido dos informantes.

    O modelo de Signos, Significados e Aes, desenvolvido por Corin et al46 foi utilizado

    na coleta e anlise dos dados, em razo de o mesmo permitir:

    a) o acesso a lgicas conceituais privilegiadas por uma populao especfica para

    compreender e explicar uma determinada condio;

  • 33

    b) a identificao dos diferentes elementos de um contexto particular que intervm na

    construo de comportamentos concretamente adotados por esta populao frente

    ao problema24, 47; e

    c) a sistematizao dos elementos do contexto que participam da construo de

    maneiras tpicas de pensar e agir dos participantes, no caso especfico, como

    pensam e agem os idosos entrevistados em relao sua sade.

    O modelo de Corin et al46 tem origem na corrente interpretativa em antropologia, na

    qual emerge uma nova concepo da relao entre indivduos e cultura47. Segundo

    Geertz48 que se situa na origem dessa corrente , a cultura constitui um universo de

    smbolos e significados que permite os sujeitos de um grupo interpretar suas

    experincias e guiar suas aes. Para este autor o conceito de cultura

    essencialmente semitico, pois na mesma perspectiva de Max Weber, o homem um

    animal amarrado s teias de significado que ele mesmo teceu. Assim Geertz48

    assumiu a cultura como sendo estas teias e sua anlise, portanto, no como uma

    cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa,

    procura do significado (p. 4)

    Este modelo parte do comportamento concreto dos indivduos para reconstruir as

    lgicas conceituais subjacentes a seus comportamentos23. Assim, para reconstruir o

    universo de representaes (maneiras de pensar) e comportamentos (maneiras de

    agir) associados incapacidade pelos idosos residentes em Bambu as entrevistas

    tiveram inicialmente as seguintes perguntas geradoras:

    a) Como voc acha que est sua sade?

    b) Para voc, o que uma sade boa? E sade ruim?

    c) Como o seu dia-a-dia, sua rotina? Como um dia em sua vida?

    A partir das respostas obtidas, outras perguntas foram feitas de maneira aberta

    abordando o contexto biopsicossocial, os recursos, o impacto e o significado da

    incapacidade. As entrevistas foram gravadas para possibilitar a anlise mais

    cuidadosa e detalhada dos dados.

  • 34

    4.4 Anlise dos dados

    Primeiramente, as entrevistas foram transcritas e lidas vrias vezes. Aps essa

    primeira fase da anlise, cada entrevista foi fragmentada buscando identificar frases,

    palavras, adjetivos, concatenao de idias, sentido geral do texto49, que tratassem

    dos temas: sade, doena e incapacidade. Para a elaborao das categorias

    centrais, os seguintes passos foram seguidos:

    Um primeiro nvel de anlise visou examinar as articulaes entre estes temas e

    elementos do saber biomdico presentes nas falas.

    No segundo nvel de anlise foram identificados 1) os sistemas de signos,

    significados e aes, a partir da identificao de signos relacionados a cada um dos

    temas citados; 2) as explicaes privilegiadas frente a esses signos e 3) as reaes e

    aes desencadeadas por esses signos. A partir dos sistemas de signos, significados

    e aes foi avaliado o impacto especfico de diferentes elementos do contexto

    pessoal, social e cultural sobre a construo e a evoluo das reaes e dos

    comportamentos47.

    Para tanto, foi necessrio proceder :

    1 - Releitura do material para organizao dos relatos e definio de categorias

    analticas com os principais signos identificados nas falas;

    2 - Leitura de bibliografia especfica para estabelecer as categorias empricas,

    confrontando-as com as categorias analticas teoricamente estabelecidas;

    3 - Anlise final do contedo, onde se buscou compreender as aes e falas dos

    sujeitos diante da realidade dos indivduos entrevistados.

    Para assegurar o anonimato dos entrevistados eles foram identificados pelo sexo (M

    ou H) e pelo nmero de sequncia de realizao da entrevista. Para exemplificar:

    como a primeira e a segunda entrevista foram realizadas com mulheres, estas foram

    identificadas como M1 e M2 respectivamente. Assim como na sequncia de

    realizao das entrevistas a terceira e a sexta foram realizadas com homens, estas

    foram identificadas como H3 e H6 respectivamente. Isso foi feito sequencialmente

    com todas as entrevistas (anexo III).

  • 35

    4.5 Aspectos ticos

    Esta pesquisa parte de um projeto maior intitulado Abordagem Antropolgica da

    Dinmica da Funcionalidade em Idosos que foi submetido anlise e aprovado pelo

    Comit de tica em pesquisa com seres humanos do Centro de Pesquisa Ren

    Rachou (anexo I). Todos os participantes assinaram um termo de consentimento

    (anexo II), em acordo com a Resoluo n196/1996 do Conselho Nacional de Sade.

  • 36

    5 Resultados e Discusso

  • 37

    Foram entrevistados 57 idosos (27 homens e 30 mulheres) com idades variando entre

    62 e 96 anos, residentes em Bambu, cadastrados nas seis Unidades Bsicas de

    Sade e assistidos pela Estratgia de Sade da Famlia. Quanto ao estado civil, vinte

    e quatro eram casados, um em unio estvel, sete solteiros, e vinte e cinco vivos. A

    maioria deles teve filhos. No grupo, prevalecem a baixa escolaridade e a origem rural,

    com predomnio da religio catlica. Os principais motivos de mudana para a cidade

    foram a maior proximidade com o servio de sade e/ou com a escola para os filhos.

    Todos os participantes responderam a questes referentes s suas percepes de

    sade. Na anlise das falas, no foi observada diferena entre a concepo de

    homens e mulheres sobre o tema estudado.

    Os achados da pesquisa demonstram como o conhecimento mdico-cientfico foi

    apropriado pela cultura local, transformando-a e determinando os modos de pensar e

    agir dos idosos de Bambu. Segundo Morin, sociedade e cultura esto em relao

    geradora mtua38. A cultura institui as regras e as normas que organizam a sociedade

    e controlam os comportamentos individuais48. Os indivduos, portadores e

    transmissores da cultura, interagem entre si e produzem novos conhecimentos que,

    por sua vez, esto sob o controle de variveis culturais e histricas. As interaes

    entre os indivduos e o conhecimento produzido regeneram a sociedade, a qual

    regenera a cultura. H, portanto, um tronco comum entre conhecimento, sociedade e

    cultura38. Da mesma maneira, as idias culturais impregnam e saturam o saber

    biomdico, cujas concepes sobre a sade e a doena pressionam as mentalidades

    sociais50.

    Assim, pode-se pensar que o conhecimento biomdico tcnico-cientfico incorporado

    sociedade e cultura modula comportamentos que no contribuem para recuperar

    a capacidade dos indivduos e ignora os sinais de declnio fsico e funcional, na

    medida em que classifica tais sinais como naturais da idade.

    Em Bambu, no campo de fala dos participantes da pesquisa diversos significados e

    maneiras especficas de conceber o saber biomdico e a forma como este saber

    define a velhice foram identificados na reproduo da fala de mdicos; na referncia a

    medicamentos e doenas; na relao de causalidade entre patologias e hbitos de

    vida com as condies de sade e de existncia; no relato de prticas concretas,

  • 38

    como a utilizao dos servios de sade e a realizao de tratamentos, consultas,

    exames complementares, cirurgias, internaes e outros procedimentos.

    Aps vrias leituras e de um olhar especfico e cuidadoso sobre as entrevistas, foram

    identificadas quatro categorias analticas de significados associados ao saber

    biomdico: a valorizao da biomedicina, a culpabilizao dos indivduos, a

    naturalizao das doenas na velhice e os recursos e aes. Esses recortes foram

    julgados significativos, pois representam o sentido das ideias dos sujeitos

    pesquisados. Em cada categoria de significado foram discriminadas vrias

    subcategorias analticas de acordo com os signos percebidos e associados pelos

    sujeitos s suas percepes de sade e doena.

    Dentre os significados observados associados ao saber biomdico, depreendeu-se

    das falas dos idosos que:

    O saber biomdico e suas prescries so muito valorizados;

    A palavra do mdico no questionada;

    A especialidade mdica, a tecnologia e a complexidade dos exames crescem

    em importncia diagnstica e prognstica;

    A condio de vida na velhice decorre da idade, das escolhas e circunstncias,

    mas ningum questiona quem determina as escolhas/circunstncias da vida;

    O saber biomdico refora a ideia de que a velhice uma doena;

    Diante da velhice-doena a Medicina no prope alternativas;

    A f religiosa traz cena o grande mdico que Deus e, abaixo de Deus, o

    profissional mdico e seus remdios;

    O termo incapacidade na forma como apresentado pelo saber biomdico no

    aparece em nenhuma das falas dos entrevistados. Para eles os signos que

    remetem a uma condio de incapacidade so dar trabalho e o medo de

    depender de outrem.

  • 39

    5.1 A Valorizao da Biomedicina

    Confirmando a literatura51, no campo de fala dos entrevistados, o saber biomdico

    muito valorizado pelos idosos, especialmente na figura do mdico, reconhecido como

    sua principal autoridade. Um idoso relata a sua confiana neste profissional:

    "Tem um mdico que conhecido, ento eu tenho aquela confiana de

    conversar com ele. Que nem eu falei pra ele: eu quero consultar com o

    senhor. Eu quero, eu quero que o senhor, o senhor achar, o senhor me

    esclarecer, que eu acho que bom saber o qu que t acontecendo.

    (H7, 84 anos, casado)

    Mesmo quando o diagnstico ou a prescrio so insatisfatrios, a imagem deste

    profissional preservada e sua conduta permanece inquestionvel, pois a

    argumentao de natureza biolgica, ou seja, a doena, incorporada subjetividade

    da pessoa idosa para justificar a sua condio, como mostra a fala de uma das

    entrevistadas:

    "Mas os mdico bom, boba, porque a doena mesmo que no sai.

    (M24, 86 anos, viva)

    Na velhice, diante da alta prevalncia de condies crnicas, a dependncia da

    interveno mdica torna-se ainda mais evidente:

    Uai, hoje eu tava falando com a menina: minha perna melhorou, que eu

    no tava aguentando nem fazer assim com ela no, . O comprimido

    que eu tomei. Eu no posso ficar sem remdio... A ele foi e passou pra

    mim um remdio pra inflamaes e esse inflamatrio foi uma beleza!

    esse que eu tomo at hoje. No fico sem ele, no. (M22, 77 anos,

    solteira)

    Em Bambu, alm da prescrio de medicamentos, o saber biomdico tambm

    moralizante e determina comportamentos e normas de conduta que regulam as aes

    do dia-a-dia dos entrevistados, embora:

    a) contrariem a vontade dos sujeitos:

  • 40

    "A minha glicose t meio alta, sabe? Tenho que fazer umas dietas... ,

    agora s deixar de comer um doce, n? Eu gosto de doce, mas a

    gente tem que parar, n? (H47, 69 anos, casado)

    b) ignorem as experincias de vida pregressa, impondo-se de maneira autoritria:

    Uma senhora mais velha ao ser perguntada se realiza visitas a outras pessoas relata:

    Visita? Eu no saio de casa, no. missa eu j no vou mais porque a

    gente tem, o mdico mesmo fala: no vai, no. (M35, 93 anos, viva)

    c) no escutem o que a pessoa traz como demanda:

    (...) a gente no precisa falar muita coisa que eles j to dando a

    receita (...) (M55, 86 anos, casada )

    De acordo com a prtica biomdica vigente, haveria uma normatizao vertical, em

    que o mdico aparece como detentor absoluto do conhecimento cientfico e o

    paciente como ser sem autonomia, examinado e compreendido de forma

    fragmentada8. Nessa relao, o comportamento do paciente frente ao mdico,

    comentado por Le Breton7:

    O doente se doa ento em objeto puro de uma relao

    tcnica, ele renuncia a toda competncia pessoal sobre seus

    males, e a toda vontade de questionar sua significao e sua

    ressonncia em seu tecido relacional. (p. 148)

    Assim, no grupo estudado, essa hierarquia notada quando se reconhece como valor

    a disciplina do doente prescrio, como pode ser comprovada por uma

    entrevistada, ao ser perguntada se toma a sua medicao corretamente:

    Tomo tudo direitinho. O mdico at falou comigo coisa boa tratar de

    quem quer melhorar. (M10, 72 anos, casada)

    Alm disso, um dos elementos que reforam o triunfalismo da medicina no sculo XX

    o desenvolvimento e o domnio da tecnologia pelo saber biomdico, o qual ao

    oferecer provas concretas da veracidade de seus argumentos, torna-se um

    importante instrumento de convencimento, e refora a iluso compartilhada implcita

    na demanda do paciente e na resposta do mdico de que a medicina tudo pode7. A

  • 41

    partir disso, os exames complementares assumem grande importncia na percepo

    de sade dos entrevistados, que passam a considerar sua real condio de sade

    como sendo aquela revelada pelos exames, como diz uma idosa:

    As outras coisas eu passei em tudo pra fazer a cirurgia das vistas, n?

    Fiz, no teve nada nos meus exames que impedia. Quer dizer que t

    bom, n? Graas a Deus!" (M19, 83 anos, viva)

    E tambm esta outra entrevistada:

    No tenho nada. Esses dias eu fui l em [outra cidade de mdio porte],

    fiz tudo que exame, graas a Deus no tenho nada, nem tumor, nem

    nada. (M39, 76 anos, viva)

    At mesmo a subjetividade e a experincia corporal dos indivduos ficam submissas

    ao veredicto dos exames, pois o exame quem fala, como relata esta senhora:

    Ah, a minha sade, eu quando fao um exame me fala que eu no sinto

    nada... (M44, 69 anos, separada)

    Tal percepo ainda reforada ao constatar que o poder de predio dos exames

    muito valorizado pelo mdico:

    "O doutor F. olhou os meus exames e falou assim: dona M.! Ele me

    chama de M., n? A senhora com 83 anos, esses exames tudo que a

    senhora fez agora pra fazer cirurgia de vistas, dona M., a senhora t de

    parabns! No acusou nada nos exames! (M19, 83 anos, viva)

    Entretanto, medida que o poder preditivo dos exames complementares aumenta de

    forma crescente, o profissional mdico se torna do mesmo modo refm dele, uma vez

    que a qualidade do seu trabalho passa a ser avaliada conforme a utilizao e a

    prescrio desses recursos50. Essa concepo pode ser observada no relato desta

    mulher ao explicar por que prefere consultar em uma cidade vizinha de mdio porte a

    faz-lo em Bambu:

    "(...) l tem mais assim mais recurso, n? Parece, sabe, mais exame,

    aqui mais difcil. Aqui a gente vai num mdico aqui, o mdico quando

    a gente chega l: o qu que c tem? Pronto e voc vai embora. L,

  • 42

    no. Eles pedem os exames, olha, tem [um] pra cada coisa. (M44, 69

    anos, separada)

    Outros elementos da biomedicina contempornea bastante considerados pelos

    sujeitos so a especializao mdica, a tecnologia hospitalar e a valorizao dos

    grandes centros urbanos, como relata este idoso ao ser perguntado sobre o que

    deveria melhorar na assistncia mdica de Bambu:

    Eu acho que deveria, que assim, nas especializaes mdicas deveria

    ter mais, por exemplo, aqui ns no temos aqui em Bambu um...

    mdico de pele, como que chama? ... [Dermatologista?] Um

    dermatologista altura. A gente, nesse ponto eu acho que falta nas

    especializaes mdicas, deveriam ter mais e o hospital tambm ser um

    hospital mais bem equipado, voc entendeu. O hospital nosso ele um

    bom hospital, mas muito assim, muito precrio. No tem, se voc

    precisar de uma cirurgia que feita meio a grosso modo, no temos um

    centro moderno, no temos exames modernos como j tem nos grandes

    centros e ns temos essas dificuldades pra sade." (H18, 65 anos,

    casado)

    Tal opinio compartilhada por outro senhor:

    "Mais especialidade ento melhor. Contratar um mdico, aparelho pra

    mdico e tudo, que aqui tudo favorece pra ns aqui. [Se no for assim]

    Daqui um tempo ns vo sair e procurar um outro lugar longe." (H29, 65

    anos, casado)

    Porm, a forma de tratamento do profissional mdico tambm avaliada. Uma idosa

    afirma:

    s marcar e ele (o mdico) vem, atende a gente direitinho, muito

    educado, trata a gente bem, no maltrata a gente. (M13, 66 anos,

    viva) (grifo nosso)

    Assim, fica subentendido que ela j foi maltratada por algum profissional de sade ou

    presenciou maus tratos no servio.

  • 43

    Outra caracterstica do saber biomdico se apresentar com linguagem e tcnicas

    complicadas, com a inteno de se tornar o grande detentor do conhecimento sobre

    os processos da vida e sobre o sofrimento e o adoecimento17, 52. Disso decorre uma

    crescente dependncia e submisso ao conhecimento tcnico-cientfico do mdico e

    culmina com a perda da autonomia dos indivduos. Isso foi observado em Bambu,

    onde ao mdico conferida tamanha autoridade que ele pode tutelar a pessoa que

    consulta, fato confirmado na fala de um idoso:

    (...) foi um dia ele disse: N., eu vou internar voc l no sanatrio. Mas

    por que, doutor? Porque voc no tem quem te olhe e l voc vai ter

    tudo e eu sou mdico de l e eu te dou uma olhada diria. (H3, 75

    anos, casado)

    interessante observar que, em uma cultura local de forte influncia religiosa como a

    de Bambu, aonde Deus a referncia suprema, o saber biomdico e a interveno

    mdica se aproximam da ao divina, o que corrobora a literatura15. A fala de um

    idoso ilustra essa questo:

    "E receitou pra mim, assim... no tava dormindo muito bem, no.

    Consultei... ah, eu vou receitar um remedinho pra voc dormir. (...)

    Dormi bem, no senti falta, no acordei, no tive falta de ar e, graas a

    Deus, no sinto falta de ar hora nenhuma, graas a Deus. (...) Graas a

    Deus! Abaixo de Deus foi o remedinho dele. (H7, 84 anos, casado)

    Assim, na fala dos idosos de Bambu, podem-se perceber vrios elementos da crtica

    que Ivan Illich17 fez medicina moderna, a partir do conceito de iatrognese - iatros

    (mdico) e genesis (origem) relativo aos malefcios provocados pelo processo de

    medicalizao e que se apresenta em trs vertentes: a clnica, a social e a cultural. A

    iatrognese clnica refere-se s doenas que o mdico causa como, por exemplo, ao

    prescrever drogas que induzem interaes medicamentosas danosas ou aos efeitos

    malficos de um exame invasivo no paciente. A iatrognese social diz respeito ao

    processo de dependncia crescente da populao, no caso presente da populao

    idosa, em relao a prescries mdicas, medicaes, exames laboratoriais,

    conhecimento especializado e normas de conduta da medicina, levando

    disseminao da ideia do papel de doente, em que o sujeito se torna passivo e

    dependente da autoridade mdica. Enquanto para Illich, a iatrognese cultural seria o

  • 44

    fato de a medicina desacreditar e combater todas as outras formas de lidar com as

    doenas que no sejam comprovadas pela cincia, o que provoca uma destruio do

    potencial cultural das pessoas e das comunidades para lidar de forma autnoma com

    a enfermidade e o sofrimento52,53.

    5.2 A Culpabilizao do Indivduo

    Em todo o mundo, a compreenso da velhice como fenmeno social tem sofrido

    modificaes profundas desde o ltimo sculo.

    No Brasil, at meados do sculo XX, a velhice era tratada como uma questo privada,

    envolvendo apenas o indivduo e sua famlia. A partir da segunda metade do ltimo

    sculo, algumas polticas pblicas passaram a abordar a questo do envelhecimento,

    especialmente aquelas voltadas aposentadoria e aos debates quanto aos modos de

    financi-la. Mais recentemente, com a difuso do conhecimento sobre a influncia

    dos hbitos de vida na qualidade da sade, associada a polticas pblicas precrias

    para os cuidados de longo prazo para os idosos, especialmente os idosos mais

    velhos e incapacitados, observa-se um movimento de reprivatizao da velhice54.

    Para Guita Debert55:

    Transformar os problemas da velhice em responsabilidade

    individual no contexto brasileiro propor a redefinio de

    polticas pblicas muito precrias, intensificar nossas

    hierarquias sociais, , em suma, recusar a solidariedade entre

    geraes, o que um fundamento da vida social, da mesma

    forma que a universalizao da aposentadoria um dos

    fundamentos dos Estados modernos.

    No entanto, em Bambu, essa transferncia da responsabilidade para o nvel

    individual j acontece e notada nas entrevistas. Este significado tambm associado

    ao saber biomdico atribui a condio atual de sade, seja ela boa ou ruim, como

    resultado de hbitos de vida e de circunstncias passadas ligadas ao contexto scio-

  • 45

    cultural do indivduo. O idoso retm, ou mesmo utiliza prticas de cuidado com a

    sade, aprendidas em fases anteriores de sua vida com seu grupo tnico56.

    Neste sentido, ao discutir o modo pelo qual as concepes sobre o corpo e a sade

    so reelaboradas nas sociedades ocidentais contemporneas, Featherstone57 afirma

    que elas remetem a uma cultura do consumidor , segundo a qual o indivduo assume

    a responsabilidade pela prpria sade, atravs da ideia de doenas auto-inflingidas,

    resultantes de abusos corporais como a bebida, o fumo, a falta de exerccios. Em

    Bambu, um idoso confirma que para ter boa longevidade:

    (...) o conselho que eu poderia dar assim : primeiro: no beber, no

    usar drogas, no fumar e atividade. (H18, 65 anos, casado)

    Contudo, ao atribuir a condio de sade na velhice aos hbitos decorrentes do

    estilo de vida adotado ao longo de dcadas, tem-se a ideia de que se trata de uma

    escolha deliberada do indivduo, o que, de certo modo, culpabiliza-o pela condio

    atual. Assim, a racionalidade mdica aborda problemas de ordem socioeconmico-

    cultural desviando o foco do problema objetivo para aspectos subjetivos do

    indivduo58.

    Esta concepo autopreservacionista do corpo encorajaria os indivduos a adotarem

    estratgias instrumentais para combater a deteriorao e a decadncia (aplaudida

    pela burocracia estatal, que procura reduzir os custos com a sade educando o

    pblico para evitar a negligncia corporal), alm de agregar a noo de que o corpo

    seria um veculo do prazer e da auto-expresso57.

    Cabe observar que, muitas vezes, a imagem que a pessoa idosa tem de si e da sua

    situao bem diferente daquela descrita pela medicina. Em um estudo qualitativo

    com 10 idosos brasileiros, Jardim et al59 observaram que os entrevistados

    vivenciavam o processo de envelhecimento de diferentes formas, relataram a velhice

    como uma fase de prazer e no foram percebidos sentimentos de rejeio ou de

    inferioridade. Tal fato, associado a novas representaes da velhice observadas em

    clubes da terceira idade, universidades abertas terceira idade e nos veculos de

    mdia, que mostram pessoas interessadas em descobrir novas identidades,

    desenvolver novos projetos de vida, estabelecer novos relacionamentos com outras

    pessoas do mesmo ou de outros grupos etrios, com o objetivo de buscar novas

  • 46

    formas de prazer, bem-estar e auto-realizao, contrastam com o esteretipo de

    decadncia e pobreza60 e reforam a caracterstica de grande heterogeneidade desse

    grupo.

    Ao contrrio de uma velhice focada na aparncia e na esttica do corpo, no presente

    estudo, as prticas defendidas pela sociedade ocidental e pelo saber biomdico

    foram identificadas nas falas dos idosos, porm nenhum deles trata o corpo como

    expresso ou veculo do prazer ou ainda a velhice como etapa de aprendizagem.

    Questes de ordem esttica no foram abordadas pelos idosos entrevistados.

    Para eles o corpo compreendido como ferramenta de trabalho e de sobrevivncia,

    conforme se observa no campo de fala de uma idosa, ao narrar a evoluo das

    doenas e da incapacidade ao longo de sua vida, apresentando-se como primeira

    pessoa no lugar de protagonista de seu estado de adoecimento:

    "Muitos anos que eu ando assim, doente. Primeiro eu fiquei, fiquei de

    cama um ano. E... com diabetes. Depois tive internada em Belo

    Horizonte. Fiquei, fiquei l e vim embora. A eu fui pelejando. Fiz muito

    regime e sarei do diabetes, mas atacou as vistas. Eu quase no

    enxergo. Depois veio, eu passei a andar, assim, escorando, escorando.

    A eu pegava, eu no dava conta nem de levantar. Eu peguei a escorar,

    escorar, a peguei a andar escorada na manguara, com pouco prazer,

    mas tive isso ne mim. Tava trabalhando, tava panhando caf. A me

    inchou os braos, as mo de repente. ... A eu fiquei pelejando. Depois

    eu enrolei as mos de repente e foi rpido, no demorou nada. Quando

    eu vi j tava tudo enrolada. A eu pelejei, pelejei, no teve jeito, no.

    Tomava remdio, tomei o remdio, o remdio me acabou comigo,

    acabou com a minha boca tudo... (M8, 83 anos, viva)

    Esse relato calcado na vida, no trabalho braal e na impotncia diante da situao

    diverge frontalmente do formato previsvel e controlado da vida proposto pelo modelo

    biomdico que parece ignorar que o estilo de vida do sujeito, muitas vezes, o

    nico modo possvel de sobrevivncia dentro de determinado contexto social61.

  • 47

    Outro senhor encontra na vida laboral a justificativa para sua condio de sade na

    velhice, mas assume a culpa e responsabiliza a prpria ignorncia pelo

    comportamento de risco:

    "Eu fiquei nas condies que eu t aqui agora por ignorncia minha

    mesmo. No tempo que eu era novo, tinha sade, graas a Deus, o peso

    que era pra dois eu queria pegar sozinho e muitas das vezes eu

    peguei." (H7, 84 anos, casado)

    Semelhante culpabilizao est presente no registro da fala de um profissional

    mdico, o qual apontou como causalidade das doenas de um senhor os excessos

    cometidos no passado:

    s vezes que eu fui consultar em Belo Horizonte o mdico falou: ah,

    essas coisas assim que quando voc era novo voc obrigou muito a

    trabalhar, sabe? A a gente fica mais coisa assim, n? (H20, 69 anos,

    solteiro)

    Ademais, aspectos psicolgicos e da personalidade tambm so associados

    responsabilizao do indivduo pela qualidade da sade na velhice, como afirma um

    idoso sobre o seu segredo para se chegar bem aos 68 anos:

    "O meu maior segredo no guardar, no guardar rancor. o principal.

    Sou nervoso demais. Eu brigo fcil, fcil, mas depois tambm eu vou l

    e peo desculpas. (risos)" (H56, 68 anos, casado)

    Enquanto outro homem enaltece o saber biomdico ao incluir a prtica de ir ao

    mdico e tomar remdios como medida necessria para melhorar a sade:

    "(...) eu acredito que ir no mdico, tomar um remdio, para ver se

    controla, eu acredito que isso. Eu acredito que eu tinha que parar um

    bocado de trabalhar, tomar mais remdio para ver se Deus ajuda, se

    conserva." (H3, 75 anos, casado)

    Porm, a ideia de velhice como encargo individual foi, a tal ponto culturalmente

    assimilada, que outra senhora chega a anistiar Deus de qualquer responsabilidade

    sobre o processo dela de velhice com doenas, quando afirma no seu relato:

  • 48

    "O mdico fala que eu constipei os ossos. Ah, gente... no Deus que

    faz isso, no. Deus no faz nada ruim pra gente... Ah, eu acho que eu

    mesma sou culpada... Ah, porque eu trabalhava direto. Eu trabalhei 11

    anos sem falhar um dia. (M8, 83 anos, viva)

    Ao explicar sobre a assistncia sade, ela demonstra descrena e insiste na sua

    culpa:

    Ah, uniu o SUS com os outros tudo, n, mas eu agora quase no t

    consultando, no. Eu acho que no t adiantando mais no, agora no

    adianta remdio mais. Adianta assim, se eu tivesse cuidado mais tempo,

    n? Se eu tivesse cuidado mais tempo, antes de ficar do jeito que eu t,

    tinha mais. Depois, ele [o marido] morreu. Eu trabalhando, trabalhando.

    A que dobrou mais, que tinha que trabalhar, n? Mas onde eu falo

    que eu culpo eu mesma, n, que Deus no no. (M8, 83 anos, viva)

    Portanto, os signos, significados e aes presentes nas falas dos entrevistados

    apontam a necessidade de ampliar os determinantes da condio de vida na velhice

    para alm da noo de escolhas pessoais. Cabe considerar outros fatores

    intrnsecos, situacionais, de histria de vida e macro-estruturais, como afirma Neri62

    para quem a noo de que a boa longevidade seja uma questo de responsabilidade

    individual exime as instituies sociais de seus deveres para com os idosos. Para

    essa autora uma velhice saudvel depende dos investimentos em sade e em

    educao ao longo de toda a vida, cabendo ao Governo, Escola, e s profisses

    estabelecer as bases para um desenvolvimento bem-sucedido para todos os

    cidados.

    5.3 A Naturalizao das Doenas na Velhice

    Em Bambu, nas falas dos idosos no se concebe a velhice sem doenas e sem a

    perda da sade, como demonstra um idoso de forma contundente:

  • 49

    "S o que no t bom a velhice. Porque a velhice doentia. H um

    ditado que fala assim: senectus esculopus: a velhice doentia. E .

    (H15, 79 anos, casado)

    Esse senhor refere-se ao brevirio latino ipsa senectus morbus que quer dizer a

    marca da velhice a doena, sentido que foi registrado por Sneca como senectus

    insanabilis morbus est e cuja traduo seria a velhice uma doena incurvel ou

    como imortalizado por Terncio senectus ipsa morbus est traduzido como a velhice

    ela mesma uma doena.

    A sociedade ocidental repercute essa viso milenar da velhice que estabelece uma

    imagem negativa da pessoa idosa e representa a experincia do envelhecimento

    como inexorvel tragdia pessoal, irreversvel e irremedivel. Nessa perspectiva

    dialtica a experincia corporal do idoso se transforma em uma experincia social e

    reforada pela cincia biolgica que define a velhice como uma degenerao

    orgnica irreversvel e irremedivel, fadada ao declnio das funes e das reservas

    fisiolgicas e morte63. Um senhor aponta a velhice como responsvel pelo declnio

    de sua sade:

    "Minha sade t cada vez pior... porque a veieza justamente atrapalha,

    n? (H9, 74 anos, casado)

    Em outro estudo qualitativo, realizado na cidade de Campinas, Garcia et al tambm

    observaram que os idosos daquela cidade tm a concepo de velhice como perda

    ou incapacidade e que as enfermidades so consideradas distrbios prprios da

    idade e no passveis de tratamento64.

    importante observar que o saber biomdico produz o argumento cientfico da

    senilidade conceito que nomeia o envelhecimento patolgico, ou seja envelhecer

    com doenas o qual ecoa entre os entrevistados na forma da aceitao de sintomas

    e doenas, bem como da maior vulnerabilidade orgnica65. Pode-se dizer que o

    mesmo conceito reproduzido pelo profissional mdico, internalizado pelo idoso e

    pela cultura local, e se revela na compreenso de todos esses atores que

    correlacionam a velhice e as doenas como consequncias naturais e inerentes

    idade avanada, conforme observado na narrativa deste senhor:

  • 50

    " coluna. Eu tenho artrose, bico de papagaio e desgaste. Tem trs

    coisas, s pela idade, n? T doendo por causa j mais minha idade.

    (H47, 69 anos, casado)

    Ressalte-se que o signo bico de papagaio advm da assimilao pelos idosos da

    interpretao das imagens radiolgicas sugestivas de alteraes degenerativas da

    coluna que se assemelham forma de bico de papagaio e so atribudas a desgastes

    e artrose. Portanto, ao falar de bico de papagaio o sujeito demonstra ter

    assimilado o saber biomdico e nele justifica sua dor e sua impotncia.

    Assim, os cdigos da cultura que configuram o saber biomdico so reproduzidos e

    se sustentam na relao com o saber popular, como pode ser percebido na narrativa

    de um idoso ao reproduzir a fala do seu mdico:

    "(...) [o mdico] s falou comigo assim: o senhor no preocupa muito

    no, caa um jeito de ficar mais despreocupado, repouso, isso maior

    que voc sente agora idade. Essa idade da gente aparece uma

    coisinha aqui, aparece outra por l, o senhor no tem que preocupar,

    no." (H7, 84 anos, casado)

    Em Bambu, foi realizado um estudo66 no qual foi percebido que o olhar do outro

    sobre a velhice era carregado desse negativismo que o profissional expressa. Tal

    olhar corrobora com o processo de naturalizao e homogeneizao da velhice e

    simultaneamente mantm e refora os esteretipos transmitidos pela cultura. Porm,

    a recomendao mdica de inatividade e repouso tende a agravar as doenas,

    acelerar o processo de envelhecimento e marcar esse momento da vida por

    sentimentos de inferioridade e desgosto67, retroalimentando este ciclo vicioso fundado

    em crenas e comportamentos que adoecem a velhice.

    A associao entre doena e velhice to forte que, se uma pessoa tiver boa sade

    e boa capacidade funcional, ela pode no ser considerada velha, ainda que esteja em

    idade avanada, conforme narra essa senhora, viva pela segunda vez, ao ser

    perguntada sobre como reconheceria uma pessoa velha:

    Eu acho que no tem idade pra falar aquela pessoa t velha, no. Ela

    tendo sade, ela no pensa que t velha, no. Por exemplo, se ela

    sentir bem, se ela come bem, se ela dorme bem, se ela anda, se ela

  • 51

    conversa com todo mundo, ela t disposta pra tudo... Agora assim, eu

    acho que a pessoa tendo essa disposio, no (tem) velhice, no. No

    tem velhice, que eu casei com o meu segundo marido, ele j tava com

    sessenta e muitos anos tambm. Ns viveu 18 anos. Ele morreu com 88

    anos. Ele nunca foi assim, de ficar cabisbaixo e morreu. Adoeceu e num

    instantinho morreu. [Morreu sem ficar velho?] Morreu sem ficar velho..."

    (M5, 77 anos, viva)

    Com os avanos tecnolgicos e cientficos e com o sucesso no controle de epidemias

    e na cura de doenas infecciosas no ltimo sculo, a viso curativa da medicina se

    fortaleceu, assim como a falsa crena na sua infalibilidade9. Tal crena, associada

    ideia de que a idade avanada seja ela prpria a causadora das doenas dos velhos,

    atribui velhice a incurabilidade dos problemas crnicos de sade e no reconhece

    nem deixa transparecer a impotncia da medicina em lidar com eles, como se pode

    perceber no relato desta senhora ao reproduzir o que um mdico lhe disse:

    O mdico falou que isso, o doutor A., meu mdico l de Belo Horizonte,

    ele falou que eu constipei os ossos. Agora no tem jeito, no. No tem

    jeito de curar osso, o mdico no cura. No tem jeito. igual lenha.

    Lenha secou, complica, n?" (M8, 83 anos, viva)

    Essa impotncia do mdico em lidar com deficincias crnicas que requerem

    cuidados permanentes e o fato de esse profissional ser treinado para interceder em

    casos agudos talvez explique a orientao recebida por um dos entrevistados:

    Vou ao mdico dirio s, meu Doutor o X, n? X que mdico meu,

    a d aquela perrengada ele arranja aquele remdio e fala: C leva

    esse e vai tomando, acaba uma receita e pega outra e, na hora que

    piorar mais, c volta. (H23, 82 anos, casado) (grifo nosso)

    Portanto, o saber biomdico no prope alternativas velhice-doena, o que

    tacitamente aceito por parte dos idosos, sem quaisquer resistncias ou

    questionamentos. Essa questo ilustrada pela fala de um homem:

    " meio sem recurso, porque a coluna no sara; cuidando a tempo,

    conserva; conforme a vez que d, melhora; mas sarar no sara, no...

  • 52

    Agora convencer como que t, repouso, ficar quietinho e usar os

    remedinhos. isso a. (H7, 84 anos, casado)

    A compreenso da velhice como um tempo que exige resignao e desistncia diante

    de perdas inexorveis atribudas idade corrobora a percepo dos idosos

    entrevistados e aquela contida nas falas dos mdicos que eles registram. Porm isso

    refora a expectativa de perda gradual da capacidade vital e consequentemente gera

    na pessoa idosa o medo da dependncia, da incapacidade, dos enfrentamentos

    decorrentes de doenas, em especial das crnico-degenerativas, e da prpria

    morte56. Nas falas transparece o medo de que as coisas piorem, a ponto de depender

    de terceiros, presente na fala de um dos entrevistados, ao ser perguntado se tem

    medo de que algo possa lhe acontecer no futuro:

    s ficar invlido. (H30, 76 anos, solteiro)

    Indagado sobre o porqu do medo, ele esclarece:

    Ah, porque sofre, n? Sofre. E o sofrimento nunca bom, n? (H30,

    76 anos, solteiro)

    Quando perguntado sobre o que acha ser mais difcil - ficar sem fazer uma coisa ou

    precisar de algum ele pondera:

    Ah, isso, todos os dois ruim. A gente no dar conta de fazer e

    precisar dos outros. (H30, 76 anos, solteiro)

    Assim, o medo dessa restrio da independncia funcional chega a ser maior at do

    que o medo de morrer, como explicitado na fala dessa entrevistada:

    "No, eu falo assim: a morte de repente, muito melhor do que ficar na

    cama penando, no ? (...) Ah, eu penso que ruim, ficar dependendo,

    depende dos outros demais, n? No pode fazer nada. No fcil, no!

    (M14, 88 anos, viva)

    A mesma opinio compartilhada por um senhor idoso:

    Eu no tenho medo da morte no, se falar assim: vai morrer amanh,

    no tem problema. Eu tenho medo de, por exemplo, eu sou assim, um

    pouco agitado, se eu cair numa cama e no puder andar, um trem

  • 53

    assim, a eu tenho medo, de ficar dando trabalho pros outros, ficar pela

    mo dos outros. A prefervel que a gente morresse. (risos)" (H18, 65

    anos, casado)

    Uma viva em seu relato teme a incapacidade e as mutilaes que podem advir das

    doenas:

    Agora o que eu t com medo esses trem for me entravando e eu

    parar de caminhar e ir para uma cama. isso a o que eu mais t com

    medo. disso. Igual muita gente. Estas doenas acaba cortando a

    perna, brao. Isso da a gente tem medo. Ah que no fcil. C v, a

    gente nasce perfeito e morre aleijado?! (M24, 86 anos, viva)

    impressionante constatar como o determinismo biolgico da medicina, que associa

    a velhice a doenas, o seu carter mecanicista, que compara o corpo a uma mquina,

    e o seu carter generalizante, com a pretenso de determinar leis gerais, que trata a

    velhice como um fato homogneo e olha para os idosos como se todos fossem

    iguais68, so incorporados pela cultura e internalizados pelos participantes da

    pesquisa. Atravs de suas falas, eles demonstram que tambm os mdicos e outros

    profissionais de sade trazem esse conceito incorporado e reforam-no junto aos

    idosos. Vale lembrar que, alm da formao tcnico-cientfica que esses profissionais

    recebem, eles tambm so integrantes da mesma sociedade e

    portadores/transmissores da mesma cultura que a populao idosa representada no

    estudo. Tudo isso contribui para a sedimentao do esteretipo de que a velhice

    naturalmente doentia e, por ser o envelhecimento um processo inexorvel,

    progressivo e irreversvel, no h muito que se fazer a no ser esperar (fazer

    repouso, ficar quietinho). Com isso, o sentimento de impotncia e o temor diante da

    possibilidade de uma dependncia futura se tornam inevitveis e negar a velhice

    transforma-se em um meio possvel de continuar a ser socialmente aceito.

    5.4 Os Recursos e Aes

    O quarto tema que trata dos recursos e aes resulta da interao entre as trs

    categorias anteriores: a valorizao da biomedicina - a medicalizao da vida; a

  • 54

    culpabilizao do indivduo pela sua condio de sade na velhice e a naturalizao

    das doenas e limitaes justificadas pela idade; que repercutem no pensamento e

    nas atitudes dos idosos e da sociedade.

    Uma das maneiras de agir a aceitao daquilo que preconizado pelo saber

    biomdico para lidar com doenas crnicas e incurveis, como relata esta senhora

    que reconhece o benefcio da consulta a especialista e do uso contnuo de

    medicamentos para tratar diferentes problemas de sade:

    "Eu tenho Chagas, eu tenho ... essa tremura, Parkinson... Eu trato com

    um neurologista de (uma cidade prxima). Ele falou pra mim: dona M.,

    no tem cura, mas tem melhora, melhora. Se a senhora tomar os

    remedinhos direito e todos os remdios que eu t receitando a senhora

    vai melhorando. Na verdade, eu t melhorando, alivia demais. (M51, 70

    anos, viva)

    Por sua vez, interessante observar que em relao s prticas de sade e ao

    controle de doenas, o saber biomdico pode divergir dos modos de pensar e agir

    dos entrevistados, como o caso de uma idosa que rejeita a medicao, pela crena

    na capacidade de reao do organismo:

    Eu acho que, eu no gosto tambm, por exemplo, se eu tenho alguma

    dorzinha de cabea, eu no tomo comprimido, no... Porque pelo o que

    eu sei, que o prprio organismo ele j reage, n? (...) Reage sozinho, j

    no precisa. caso de tolerar um pouquinho. (M38, 69 anos, solteira)

    Essa divergncia pode ser compreendida a partir da complexidade de interaes que

    envolvem o conhecimento humano. Outra entrevistada, ao falar sobre a vizinha jovem

    que fazia caminhada e faleceu, mostra que, por vezes, a experincia pessoal fala

    mais alto e desafia os decretos da medicina:

    Eu no ando mais, eu andava, fazia caminhada, depois que a D.

    morreu eu falei assim: eu velha, t aguentando os trancos e os

    barrancos tudo, passa apertado e t passando e menina novinha

    morreu, eu no vou ficar fazendo caminhada, no! [Por qu? Ela morreu

    como?] De aneurisma fulminante. Morreu na hora. A eu larguei de fazer

    caminhada. (M5, 77 anos, viva)

  • 55

    Por sua vez, um senhor encontrou uma estratgia para ignorar este prognstico fatal

    que admite como natural a presena de enfermidades e de limitaes na idade

    avanada: ele se considera diferente porque prefere no consultar o mdico por

    qualquer motivo para no se deparar com os problemas inevitveis da velhice:

    Eu fico assim, eu sou uma pessoa diferente, eu no fico procurando.

    igual voc pegar um carro, um carro velho. Se voc for com ele pro

    mecnico todo dia, voc acha defeito pra ele todo dia, voc entendeu. A

    voc vai convivendo com um barulhinho, voc vai l, um barulhinho...

    Voc vai convivendo. Porque se voc comear levar ele pro mecnico

    num primeiro barulhinho, aquilo l s vezes t tudo bo, voc pensa

    assim: tem um barulhinho a. Tira esse barulhinho e aparece um outro

    barulhinho. (H18, 65 anos, casado)

    Essa atitude de resistncia reconhece o pensamento cartesiano e mecanicista

    fundante do saber biomdico que compreende a velhice como uma equao

    matemtica, na qual o corpo velho = mquina defeituosa, ou seja, o sintoma

    representa o defeito que o idoso nomeia como barulhinho. Porm, ao incorporar a

    viso mecanicista da biomedicina, admite-se a viso do corpo velho como uma

    mquina desgastada no qual, portanto, defeitos/doenas so mais do que naturais e

    esperados, e, para os quais, a oficina da cincia biomdica no oferece conserto,

    reforando a compreenso de que a velhice doentia por si.

    Desse modo, apesar de todo avano cientfico e tecnolgico, a biomedicina no

    apresenta respostas satisfatrias para muitos prob