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Artigo moedas doentes.

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  • MANA 13(1): 119-151, 2007

    AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E

    A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO*

    Federico Neiburg

    As crises monetrias das ltimas dcadas do sculo XX tiveram entre outros

    efeitos o de colocar em evidncia o carter convencional do dinheiro. Talvez

    nunca antes (nem com o fim do padro ouro, no perodo entre as duas Guer-

    ras Mundiais) o espao pblico tenha estado agitado como naquela poca

    em funo de debates a respeito dos fundamentos do valor da moeda. Em

    vrios pases, os dispositivos implementados pelos especialistas para curar ou

    substituir as moedas nacionais ameaadas pela doena da inflao foram

    colocados em relao s idias e s prticas monetrias das populaes s

    quais estavam dirigidos. Ao ter como referncia emprica as inflaes bra-

    sileira e argentina, o meu objetivo explorar esses singulares processos de

    desnaturalizao pblica do valor da moeda para propor uma contribuio

    antropologia do dinheiro que tenha como eixo o exame das articulaes

    entre as idias e as prticas monetrias eruditas e ordinrias.

    A relativa ausncia de interesse por esses assuntos por parte da literatura

    deve-se ao predomnio de duas matrizes analticas que considero consti-

    turem um obstculo para a compreenso dos sentidos sociais e culturais do

    dinheiro. Uma a matriz analtica normativa, que prevalece em boa parte

    da literatura sociolgica, tributria da prpria cincia econmica, e que

    est preocupada em diagnosticar a natureza dos problemas monetrios,

    distinguindo entre moedas normais e doentes. A outra a matriz que

    predomina em boa parte da literatura antropolgica, que observa a moe-

    da atravs das lentes da grande diviso entre as moedas modernas e as

    outras. A primeira matriz no se preocupa com os sentidos ordinrios do

    dinheiro e, quando o faz, com a inteno de elaborar mecanismos que vi-

    sem ajust-los aos sentidos corretos, aqueles definidos pelos especialistas.

    A segunda matriz enfatiza a separao entre ambos os universos, deixando

    toda considerao a respeito do dinheiro moderno nas mos dos economis-

    tas na verdade, supondo que o dinheiro moderno aquele descrito pelos

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO120

    profissionais da economia, e esquecendo que o deles tambm um universo

    de sentidos e de prticas suscetvel de ser analisado como qualquer outro

    universo nativo.

    Na primeira seo deste ensaio, apresentado um breve panorama

    de alguns dos efeitos destas e de outras dicotomias sobre a antropologia do

    dinheiro. Assim, ser possvel explicitar o ponto de vista que sustenta este

    texto, situado na fronteira entre a antropologia da cincia (econmica) e a

    antropologia das culturas monetrias. A hiptese mais geral do meu argu-

    mento que uma melhor compreenso dos sentidos sociais e culturais do

    dinheiro exige considerar ao mesmo tempo: 1. a presena dos modelos e dos

    dispositivos monetrios criados pelos especialistas nos sentidos e nas prticas

    ordinrias associadas com o dinheiro; 2. a presena das idias e das prticas

    monetrias ordinrias nas formas atravs das quais os especialistas percebem

    e agem sobre a moeda; 3. o fato de que os universos de produo de idias

    e de dispositivos monetrios eruditos, isto , aqueles que esto referidos s

    teorias e s polticas monetrias, so suscetveis de serem analisados com os

    mesmos instrumentos que utilizamos para estudar qualquer outro universo

    nativo; e 4. que esse universo de sentidos e de prticas, o que no poderia

    ser de outro modo, est situado no tempo e exige uma anlise histrica.

    Ao contrrio dos habitantes de outros pases que foram tambm atin-

    gidos no fim do sculo XX por agudas crises monetrias (como Bolvia e

    Equador, na Amrica Latina; ou Turquia, Israel e os pases surgidos do co-

    lapso da Unio Sovitica), as populaes do Brasil e da Argentina conviviam

    h vrias dcadas com aumentos constantes nos ndices do custo de vida e

    com os dispositivos criados pelos especialistas para conceituar e enfrentar a

    perda do valor das suas moedas nacionais. Esses dispositivos eram apresen-

    tados como instrumentos para que as populaes pudessem se defender dos

    efeitos nocivos da inflao, ou como mecanismos destinados a que tirassem

    partido dela. Na segunda seo do artigo, so descritas as relaes entre

    os universos da economia erudita e ordinria, examinando-se alguns usos

    sociais dos ndices de medio de preos. Ao observarmos certos elementos

    da sociognese da categoria custo de vida, que relaciona quantitativamente o

    valor da moeda com o valor da vida humana, interessa sublinhar o seu carter

    de categoria-chave da cosmologia econmica, ao mesmo tempo paradigma

    de nmeros pblicos.1 De fato, os ndices que medem o custo de vida tm

    se transformado em objeto de uma enorme confiana social, em boa medida

    responsvel pela transformao em intelectuais pblicos dos especialistas

    que os produzem e manipulam os profissionais da economia, no s

    os economistas acadmicos, mas tambm os jornalistas, os funcionrios de

    agncias internacionais e de governo, os operadores de mercado e, em ter-

  • 121AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    mos mais gerais, utilizando uma expresso de inspirao weberiana, todos

    aqueles indivduos que vivem de e para a economia.

    As sees seguintes do trabalho descrevem outras dimenses da in-

    tensa relao que, na histria recente, brasileiros e argentinos tm mantido

    com os nmeros pblicos, especialmente quando, a partir da dcada de

    1960, a inflao comeou a se transformar em assunto pblico de primei-

    ra grandeza, adquirindo ainda o carter de sinnimo de crise nacional.2

    A generalizao do uso de indexadores (fundamentalmente no Brasil) e de

    divisas estrangeiras (especialmente na Argentina) eram sintomas daquilo

    que os especialistas consideravam como desajustes das principais funes

    do dinheiro: a sua utilizao como unidade de conta, como meio de cmbio

    (e de pagamento) e como reserva de valor. O uso de moedas paralelas, a

    estruturao de modalidades singulares de consumo e de poupana foram,

    todos eles, modos atravs dos quais brasileiros e argentinos lidaram com

    processos inflacionrios prolongados.

    Ao contrrio do que um esprito alheio a esses processos poderia

    acreditar, no se trata em absoluto de assuntos abstratos. O convvio com

    inflaes prolongadas, a percepo da perda diria (ou hora a hora) do valor

    da moeda tm, entre outros efeitos, o de tornar instvel a identidade das

    pessoas, introduzindo agudas incertezas nas perspectivas temporais dos

    coletivos humanos. No plano familiar, por exemplo, isso envolve prticas e

    idias relacionadas com a herana e com a poupana; a diminuio, a runa

    (ou ainda a percepo do risco de runa) das economias familiares. Estes

    so assuntos que argentinos e brasileiros experimentaram mais de uma vez,

    tanto nos surtos de liquidez em que sobrava dinheiro sem valor, como nos

    perodos de seca em que faltava dinheiro, ou ainda naqueles em que o

    dinheiro foi confiscado ou ficou retido nos bancos vrias vezes na histria

    recente de ambos os pases, como resultado, justamente, da aplicao de

    polticas antiinflacionrias. Assim, as formas sempre criativas, e certamente

    diferenciadas, associadas a trajetrias pessoais e familiares singulares, com

    capitais sociais, culturais e escolares especficos, atravs das quais as pesso-

    as lidam com a instabilidade monetria e com os dispositivos criados pelos

    profissionais da economia para combat-la, colocam-nos diante do assunto

    central deste artigo: as articulaes entre as idias e as prticas monetrias

    eruditas e as ordinrias.

    A economia nasceu como disciplina acadmica, concebendo-se a si

    prpria como a nica verdadeira cincia social, justamente devido sua

    capacidade de representar numericamente os fatos sociais, assumindo uma

    ambio ao mesmo tempo descritiva e normativa a respeito do seu objeto (ver

    Elias 2006 [1984] e Foucault 1994). Como a medicina, a economia procura

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO122

    diagnosticar as doenas, ao mesmo tempo em que prescreve a forma de

    cur-las. Assim, tratar das relaes entre as idias e as prticas monetrias

    eruditas e ordinrias permite comentar um assunto que tem alcanado certa

    importncia na antropologia e na sociologia da cincia nos ltimos anos:

    a questo da performatividade ou, em outros termos, a questo dos efei-

    tos das teorias no mundo social.

    Na seo final do ensaio, explicito em que sentido o meu argumento

    coloca-se por fora, e procura ser mais complexo que as duas alternativas hoje

    disponveis. Por um lado, a dos tericos da performatividade, como Michel

    Callon ou Bruno Latour, que consideram que a vida econmica tende a ser

    cada vez mais o resultado da moldagem (ou da formatao) da disciplina

    econmica (p.e., Callon 1998 e Callon & Latour 2001). Por outro lado, a

    dos partidrios das teorias nativas, como Daniel Miller (p.e., 2002), que

    consideram que, independente das pretenses dos economistas, as pessoas

    continuam experimentando o mundo social segundo categorias ordinrias.

    Diante destas posies, prope-se aqui uma anlise dinmica que rejeita

    qualquer causalidade simples, alm de toda viso romntica sobre a au-

    tonomia das prticas e das idias nativas que permaneceriam alheias aos

    dispositivos criados pelos especialistas. Trata-se, ao contrrio, de examinar

    empiricamente, e em perspectiva histrica, a dinmica complexa que conecta

    os tericos e as teorias da economia com as culturas econmicas que eles

    consideram nos seus modelos e que tambm contriburam para gerar.3

    As moedas dos economistas, dos socilogos e dos antroplogos

    A fronteira que separa um aumento de preos suportvel e sadio, que

    ainda poderia estimular o crescimento econmico, de outro que merece

    cuidados, e a distino entre uma simples inflao e uma crise hiperin-

    flacionria so assuntos que mobilizam as paixes dos especialistas desde

    que, em funo da inflao alem dos anos 1920, foram enunciadas as

    primeiras formulaes com pretenses cientficas a respeito das diferenas

    entre, por exemplo, as inflaes que se arrastam (creep), que trotam (trot),

    ou que galopam (galop) (ver, p.e., Feldman 1993:7).

    De fato, as desordens monetrias europias ps-Primeira Guerra

    Mundial foram vistas por esses novos profissionais, que eram os economis-

    tas4, como laboratrios para a imaginao de terapias monetrias. Figuras

    que se tornariam clebres, como Constantino Bresciani-Turroni, Ludwig

    Von Misses, Lionel Robbins ou John Maynard Keynes, devem boa parte da

    sua reputao posterior s suas explicaes dos fenmenos inflacionrios e

  • 123AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    s suas propostas para estabilizar o valor do dinheiro. Ainda que no seja

    este o lugar apropriado para examinar de perto tais formulaes, interessa

    assinalar que, fora as muitas diferenas entre eles, esses grandes nomes da

    disciplina econmica sempre mantiveram certo consenso sobre os efeitos

    degenerativos da atividade econmica ocasionada pela inflao: para alm

    de certo nvel e de determinado tempo, a perda do valor da moeda e, mais

    do que isso, a incerteza sobre o seu valor futuro deveriam ser consideradas,

    segundo todos eles, como sintomas de uma autntica doena.5

    Como se sabe, os economistas associados s correntes ortodoxas

    (ou monetaristas) tm se preocupado em explicar o valor do dinheiro como

    uma funo da oferta de moeda: quanto maior o volume de circulante, menor

    ser o valor de cada unidade. No entanto, as suas formulaes tm padecido

    de certa ambigidade, na medida em que consideram a moeda ao mesmo

    tempo como uma mercadoria igual a qualquer outra (sujeita por isso s leis

    da oferta e da procura) e como a nica mercadoria que merece ser objeto de

    polticas reguladoras do controle da oferta, por meio do crdito e das taxas de

    juros. As correntes heterodoxas, por outro lado, tm sublinhado a dimenso

    fiduciria do dinheiro, a idia de que este basicamente envolve crdito (no

    sentido de crena ou confiana) e respeito da autoridade ltima que garante

    o seu valor: o Estado soberano (ver especialmente Ingham 2004:50-ss).6

    Para alm dessas diferenas, que suscitaram e ainda suscitam gran-

    des embates tericos e polticos, economistas ortodoxos e heterodoxos tm

    concentrado suas preocupaes em um mesmo assunto: os mecanismos

    que fixam o preo da moeda. E tm coincidido tambm na formulao do

    que deve ser visto como uma verdadeira utopia monetria, segundo a qual

    uma moeda autntica ou sadia e deve ser aquela que concentra

    em um mesmo objeto a capacidade de funcionar como unidade de conta,

    como meio de troca (e de pagamento) e como reserva de valor. Essa teoria

    (funcionalista) do dinheiro, que tem sido o suposto bsico das economias

    Mainstream e que se repete em todas as definies dos manuais com

    que so treinados os aprendizes como toda utopia que procura a prpria

    realizao, basicamente uma teoria normativa, que pretende agir sobre a

    moeda atuando sobre os usos que as pessoas fazem dela.

    Recentemente, alguns autores chamaram a ateno para o fato de que

    embora os economistas outorguem uma grande centralidade moeda na sua

    dimenso prtica, isto , como objeto de polticas no plano macroeconmico,

    eles na verdade pouco tm se preocupado em conceitu-la teoricamente

    (Ingham 2004; Hart 2004; Maurer 2006; Thret no prelo; Zelizer 2003).

    De fato, os profissionais da economia, a partir das bases tericas ofereci-

    das pela utopia monetria que orienta as suas aes e idias, tm mantido

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO124

    basicamente um interesse prtico no dinheiro, procurando as formas que

    permitam a realizao do ideal de moeda normal ou sadia aquela que

    tem um valor estvel, facilitando com isso os negcios, o crescimento

    econmico ou a vida boa, dependendo da orientao mais ou menos

    utilitarista ou humanista das perspectivas em jogo.7

    Essa relativa ausncia de um interesse terico pelo dinheiro ainda mais

    significativa quando se observa a falta de ateno aos fatos monetrios que

    predomina tambm nas outras disciplinas sociais uma conseqncia da

    diviso do trabalho que foi paralela sua autonomizao como especialida-

    des universitrias, na virada do sculo XIX para o sculo XX. Como se sabe,

    o cenrio no qual aconteceu essa diviso do trabalho foi o Methodenstreit,

    a querela sobre o mtodo, em que se enfrentaram a Escola Histrica Alem,

    de autores como Gustav Schmller e Max Weber, e a Escola Austraca de Eco-

    nomia, vinculada ao nome de Carl Menger, um dos fundadores da chamada

    corrente neoclssica ou marginalista (ver Schumpeter 1996 [1954]:877-ss).

    A exportao dessa batalha para alm das fronteiras da lngua alem foi em

    boa medida responsvel pela crescente internacionalizao do predomnio

    da escola neoclssica na nascente disciplina econmica, e pelo desinteresse

    pelos fatos monetrios por parte da sociologia. A moeda passou a ser vista

    a partir de ento como algo prprio do domnio econmico, que deveria ser

    tratado por economistas.

    No entanto, esse panorama da construo do monoplio da reflexo

    sobre o dinheiro pelos economistas, e sua aceitao pelos outros cientistas

    sociais, exige nuances e, especialmente, a considerao de dois nomes que

    tm sido referncia importante nas indagaes mais recentes sobre os senti-

    dos da moeda: George Simmel e Franois Simiand, autores das primeiras

    e por muito tempo as nicas obras integrais dedicadas ao assunto por

    no-economistas, e que so tomados aqui menos nos aspectos substantivos

    dos seus escritos, e mais como referentes dos modelos predominantes em

    fragmentos significativos da literatura contempornea.

    Nesse sentido, cabe notar que, apesar de em Simmel (1987 [1909]) haver

    um forte argumento sobre o carter propriamente social dos laos objetivados

    no dinheiro, os quais seriam a expresso de formas de sociao fundadas no

    crdito e na confiana8, as leituras da sua obra tm sublinhado as idias por

    ele propostas a respeito da moeda como um produto (ou como um sintoma) e,

    ao mesmo tempo, como um instrumento da objetificao das relaes sociais

    e da individualizao da vida humana, prprias da modernidade.9

    Princpios igualmente genricos para a construo de uma sociologia

    do dinheiro podem ser reconhecidos na Escola Sociolgica Francesa, em

    especial em Franois Simiand que, como se sabe, foi o encarregado da seo

  • 125AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    de economia do Anne Sociologique (ver Steiner 2005). A tese, fielmente

    durkheimiana, segundo a qual Simiand estabelece que o dinheiro antes

    de mais nada um fato social total, expresso da vida coletiva de um grupo

    (Simiand 1934; Mauss 1974 [1934]), encontrou ecos recentes entre os eco-

    nomistas franceses ligados s escolas regulacionista e das convenes

    (ver, em especial, Aglietta & Orlan 2002). Estes autores, que consideram

    a moeda como um operador de totalizao (Orlan 2002), observam

    as crises monetrias que colocam em questo a estabilidade do valor do

    dinheiro como expresso de crises da unidade social (Orlan, no prelo)

    e, ao mesmo tempo, como um campo privilegiado de estudos, dado o seu

    carter revelador da prpria natureza do dinheiro (Thret, no prelo),

    da normalidade monetria, coerente com uma ordem social estvel e

    relativamente homognea.

    Embora uma exposio sumria como esta deva necessariamente deixar

    de lado mritos e nuances de correntes de pensamento e de autores, interessa

    sugerir como as duas aproximaes (referidas genericamente aqui a Simmel e

    a Simiand) exprimem os ideais monetrios dos especialistas, deixando pouco

    espao para a pesquisa positiva sobre os sentidos ordinrios do dinheiro, e

    menos espao ainda para uma indagao sobre as relaes entre os sentidos

    eruditos e os ordinrios. Ambas as aproximaes pressupem realidades

    humanas homogneas: o predomnio do individualismo objetificado em um

    caso, a idia de totalidade social no outro. O primeiro pouco se interessa pelos

    usos do dinheiro que escapam ao que descrito como a sua forma moderna

    (para uma crtica a Simmel neste sentido, ver Zelizer 1994:6-11); o segundo

    supe um paralelo entre desordem monetria e anomia, qualificando como

    negativo o que na verdade merece ser compreendido (para uma crtica

    noo de anomia, ver Elias 2000 [1976]:190-3).

    No entanto, na literatura antropolgica que se podem encontrar prin-

    cpios alternativos de compreenso. Quando os antroplogos comearam

    a se interrogar sobre os fatos monetrios nas sociedades que eram o seu

    objeto, segundo uma nova diviso do trabalho entre as disciplinas nas

    quais a economia mercantil no estruturava todas as dimenses da vida

    social eles descobriram caractersticas muito diferentes daquelas que

    eram atribudas ao dinheiro na modernidade, de acordo com os modelos

    comentados acima. Nas sociedades que mereciam a ateno dos antrop-

    logos, o dinheiro possua significados mltiplos que estavam atrelados s

    relaes entre as pessoas, s esferas ou aos circuitos singulares de troca

    (Dalton 1967; Bohannan 1967).

    Ao contrrio de um sentido nico, significados mltiplos; diferentemente

    de uma moeda, no singular, moedas plurais; em lugar de coletivos humanos

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO126

    homogneos, mundos sociais diferenciados. Mas isso tudo era atribudo s

    outras sociedades, no s modernas sociedades de mercado. Apesar das

    questes cruciais que suscita, durante longo tempo tal modelo no alcanou

    o mundo em que vivem os antroplogos. Assim, seguiu-se ao p da letra a

    formulao de Karl Polanyi (1957) a respeito da oposio entre moedas para

    usos especficos, encontradas nas formas sociais tradicionais, e moedas

    para usos mltiplos, as moedas modernas. Qualquer indagao sobre o

    dinheiro moderno ficou restrita s mos dos economistas e dos socilogos,

    aceitando-se assim seu monoplio sobre os fatos monetrios. No fim das

    contas, as nossas moedas no mereciam maiores atenes, elas seriam

    regidas pela utopia dos especialistas relativa estabilidade do seu valor, e

    ficariam sujeitas, claro, s terapias orientadas para corrigirem desajustes

    e curarem doenas.

    Alguns dos trabalhos mais instigantes e influentes realizados por an-

    troplogos nos ltimos anos delatam os efeitos negativos da permanncia

    dessa dicotomia. Maurice Bloch e Jonathan Parry (1989), por exemplo, de-

    monstraram de forma muito sutil como a introduo do dinheiro moderno

    em sociedades tradicionais no teve o efeito de dissolver os laos sociais,

    produzindo a diviso radical entre pessoas e coisas que seria prpria do ca-

    pitalismo.10 Embora Bloch e Parry tivessem sugerido que o papel do dinheiro

    como unidade de medida abstrata e puramente quantificadora uma teoria

    nativa ocidental (ver a respeito Maurer 2006), eles no se dedicaram em

    momento algum a observar como de fato essa teoria nativa opera na prtica,

    no mundo que ela supostamente descreve.

    O problema dos antroplogos com o dinheiro nos seus prprios univer-

    sos sociais aparece mais claramente ainda em trabalhos como os de David

    Akin e Joel Robbins (1999), que propuseram uma sugestiva sofisticao das

    noes de esfera de troca e de moedas de usos mltiplos. Acontece, no

    entanto, que o modelo elaborado por estes autores para compreender a lgica

    social e cultural das moedas locais na Melansia baseia-se em supostos no

    explicitados nem problematizados a respeito do funcionamento das moedas

    ocidentais, ou das Western notions about Money (1999:3). Akin e Robbins

    no se interrogam sobre os contedos prticos dessas Western notions,

    assimilando-as aos sentidos eruditos, prprios dos especialistas, e implici-

    tamente deixando para eles a reflexo sobre o dinheiro moderno.

    Ao identificarem a natureza do dinheiro no Ocidente com os senti-

    dos que ele tem para a cincia econmica, estes e tantos outros antroplogos

    no enxergaram a possibilidade de interrogar as relaes que entrelaam as

    prticas eruditas e as ordinrias, ou a lgica prtica que sustenta a elaborao

    de teorias e de dispositivos monetrios por parte dos especialistas. como

  • 127AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    se no plano da economia e do dinheiro a lente da grande diviso entre ns

    e os outros tivesse tido entre os antroplogos uma fora maior do que em

    outros planos da vida social.

    Acontece, porm, que aquilo que essa lente enxerga o nosso dinhei-

    ro, supostamente homogneo e que remeteria a quantidades puras, distinto

    dos outros dinheiros, estes sim, diferenciados e relativos s relaes entre os

    sujeitos contradiz boa parte da prpria experincia dos antroplogos com

    o dinheiro. Ora, o nosso dinheiro sempre qualificado. Todos ns operamos

    com sentidos do dinheiro bom e do ruim; do fcil e do difcil; do forte e do

    fraco; do virtual e do real. Tambm, como querem os especialistas, operamos

    com noes de dinheiro robusto (ou sadio) e doente; na conta do banco ou

    em espcie; aplicado ou no aplicado; dinheiro devido ou no bolso; sujo ou

    limpo. Ao olharmos nossa volta, descobrimos sem dificuldade que o dinheiro

    no existe de forma puramente homognea; que a sua realidade mltipla;

    que as moedas so plurais; que o dinheiro singularizado, marcado para

    fins especficos. Um olhar minimamente atento permite-nos observar a ns

    mesmos e aos nossos prximos, outorgando sentidos diferentes ao dinheiro

    trocado dentro de casa (com nossos filhos, esposos ou amantes), e tambm

    ao que intercambiado em outros muitos contextos, menos familiares, com

    desconhecidos, em situaes mais ou menos fugazes.

    A percepo da pluralidade dos fatos monetrios e da qualidade dife-

    rente das moedas especialmente aguda para os habitantes de pases com

    dinheiro fraco ou, justamente, com moedas doentes. Eles aprendem a lidar

    com hierarquias monetrias, a tirar proveito das diferenas entre moedas

    nacionais e moedas paralelas, entre o dinheiro vivo e o dinheiro que ago-

    niza. O tempo passa a ser um elemento crucial de qualificao quando, por

    exemplo, preciso se desfazer velozmente do dinheiro no momento em que

    ele perde o seu valor, antes de j no servir para comprar quase nada.

    Ao olhar rapidamente para fatos como esses, resulta ainda mais impres-

    sionante que tenhamos tido que esperar at o final dos anos 90 para que

    autores como Viviana Zelizer (1994) chamassem a ateno para a dimenso

    qualitativa do dinheiro entre ns. Acredito que essa desateno, que essa

    posio confortvel de boa parte dos antroplogos na grande diviso entre

    ns e os outros no plano monetrio (quando ela j era objeto de um

    questionamento acirrado em outras reas da disciplina), tenha a ver tam-

    bm com nossas prprias ambivalncias em relao ao dinheiro; ao fato de

    que ele evoca imagens ambguas de poder e potncia, e tambm aspectos

    extremamente sombrios da vida coletiva, associados ao interesse e ao lucro.

    Evoca tambm questes acentuadamente ntimas, como a gesto das nossas

    economias, assuntos rduos de serem pesquisados, que ocasionam incmodo

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO128

    e dificilmente so abertos para os melhores amigos, mas que estruturam as

    vidas individuais e coletivas.11

    como se, afinal, apesar de todas as evidncias que pudessem esti-

    mular a nossa reflexividade a respeito do dinheiro, ns nos curvssemos s

    representaes eruditas sobre as moedas modernas. Segundo elas, tudo o

    que fosse capaz de ser qualificado em relao ao dinheiro no seria mais

    do que epifenmeno (ideologia, superestrutura), alguma coisa externa aos

    fatos propriamente monetrios, que seriam antes de mais nada numricos

    e totalizantes a noo de externalidade, cunhada pela economia neo-

    clssica, sublinha justamente isto: o carter artificial das qualidades e das

    singularidades em face dos fatos econmicos. Voltamos assim ao foco deste

    texto dedicado ao exame das articulaes entre as idias e as prticas mo-

    netrias dos especialistas e as formas de experimentar e de dar sentido ao

    dinheiro na vida ordinria.12

    Nmeros pblicos e culturas monetrias

    Qualquer leitor de jornal, ou freqentador do noticirio televisivo, est acos-

    tumado a dormir e a acordar com indicadores de preos, convive diariamente

    com o vocabulrio que descreve situaes e tendncias que apelam para uma

    sucesso de siglas e expresses (como IPC, IGP, prvia do ms, quadrise-

    mana, entre tantos outros), seguidas sempre de percentagens e previses.

    Ele, ou ela, perceber com naturalidade o fato de que variaes de dcimos

    nessas percentagens possam ser objeto de debates apaixonados, nos quais

    personagens pblicas, revestidas de uma singular autoridade, discorrem

    sobre o bem-estar de uma populao ou sobre o futuro de uma nao.

    Essa curiosa meteorologia que est entre ns aparentando sempre ter

    estado aqui, como um fato da natureza, possui, no entanto, uma histria

    singular. E igualmente singular a histria da transformao dos ndices

    de custo de vida (essas cifras que correlacionam o valor do dinheiro com o

    da vida humana) em categorias-chave da cosmologia econmica moderna,

    objeto de crena e de confiana pblica.

    A idia de que a vida tem um custo, e que ele pode ser quantificado,

    isto , traduzido em uma quantidade de moeda, em um preo, foi formulada

    talvez pela primeira vez na Inglaterra, no incio do sculo XVIII.13 Algumas

    dcadas mais tarde os clculos de nvel de preos, associados definio de

    uma cesta bsica de bens, ganharam sofisticao nas mos dos legisladores

    de Massachussets, interessados em definir uma retribuio justa para os

    soldados envolvidos na Guerra de Independncia norte-americana. Pouco

  • 129AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    depois, j no contexto da Guerra Civil, a prpria noo de seguro de vida

    comeou a ser formulada, envolvendo toda uma srie de operaes desti-

    nadas mensurao monetria do valor da vida humana.14

    No entanto, s se falaria de nmeros ndice (index numbers) algumas

    dcadas depois quando, no contexto da revoluo neoclssica, a representao

    numrica dos fatos sociais se transformaria em uma ferramenta bsica para o

    estabelecimento da economia como uma cincia autnoma do comportamento.

    A paternidade dos index numbers dilui-se entre vrios dos primeiros economistas

    acadmicos (Laspeyres, Jevons, Edgeworth, Marshall), mas reconhece um dos

    seus mais clebres formuladores no matemtico e economista norte-americano

    Irving Fisher. Foi na poca de Fisher, por volta de 1920, que pela primeira vez

    foi elaborado, nos Estados Unidos, um ndice nacional de custo de vida.15

    Fisher no se notabilizou apenas pelos desenvolvimentos tericos

    e tcnicos relativos medio dos preos. Ele tambm contribuiu para

    transformar os prprios index numbers em mercadoria, dando assim passos

    decisivos para a sua converso em nmeros pblicos. Criou, por exemplo,

    uma das primeiras empresas de consultoria, que distribua entre seus

    clientes folhas impressas com dados sobre a variao de alguns dos princi-

    pais preos da economia, introduzindo assim no espao pblico econmico

    norte-americano um novo tipo de informao que no demoraria a mudar a

    agenda dos jornais de comrcio. Pouco antes da crise de 1929, a agncia de

    Fisher colocou pela primeira vez no mercado ttulos indexados variao

    dos ndices de preos.16 Iniciava-se, dessa maneira, uma mecnica que teria

    um longo percurso: o mesmo instrumento (o index number), que servia como

    termmetro para medir o valor do dinheiro, servia tambm para proteger

    as pessoas das perdas ocasionadas pela doena da moeda, estimulando

    ao mesmo tempo o aumento dos preos. Essa circularidade entre teorias e

    prticas econmicas que est na base da popularizao dos indicadores e da

    sua transformao em nmeros pblicos justamente o tipo de fenmeno

    sobre o qual me interessa chamar a ateno neste artigo.

    Na segunda metade do sculo XX, brasileiros e argentinos conviveram

    intensamente com a instabilidade do valor do dinheiro e com outros fen-

    menos decorrentes das crises monetrias, como a repetida substituio das

    moedas nacionais, a proliferao de moedas paralelas, ou o uso intensivo nas

    transaes correntes de divisas estrangeiras ou de moedas locais (emitidas

    por entidades subnacionais, como as provncias, ou at por grupamentos

    de pessoas, clubes e associaes).17 Conviveram tambm intensamente com

    mecanismos de indexao, como os inventados por Fisher.

    A transformao dos ndices de custo de vida em verdadeiros disposi-

    tivos culturais, que circulam para alm do restrito mbito dos especialistas,

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO130

    envolve mudanas nas disposies temporais dos agentes sociais, que pas-

    sam a enxergar atravs desses nmeros o mundo social e principalmente

    as suas relaes com objetos e bens cujo valor mensurado monetariamente,

    isto , transformado em preo. As poucas descries sobre os processos

    inflacionrios (realizadas mais por literatos do que por cientistas sociais)

    acentuam justamente essa dimenso temporal da experincia inflacionria.18

    No caso que at agora mereceu maior ateno da literatura, o da Alemanha

    dos anos 20 (por exemplo, Richard 1983; Feldman 1993; Widdig 2001),

    acentuam-se dois elementos ausentes nas inflaes brasileira e argentina:

    os efeitos da guerra, e o contraste entre a crise inflacionria e a certeza

    anterior a respeito da estabilidade do valor da moeda. Aps a derrota na

    Primeira Guerra Mundial coincidem em apontar os comentadores os

    alemes descobririam aquilo que at ento era tido como inabalvel: a perda

    do valor do marco alemo.

    Ao contrrio, brasileiros e argentinos foram longamente educados na

    instabilidade monetria, interiorizando a idia de que o valor das suas moe-

    das depende de situaes transitrias, produto de convenes que resultam

    de condies polticas singulares. A repetida substituio de uma moeda

    nacional por outra foi, nesse sentido, particularmente pedaggica: entre a

    dcada de 1960 e o presente, houve na Argentina cinco moedas nacionais

    diferentes (Pesos Moeda Nacional, Pesos Lei, Austrais, Pesos Convertveis,

    Pesos), e no Brasil, oito (Cruzeiro, Cruzeiro Novo, Cruzeiro, Cruzado, Cru-

    zado Novo, Cruzeiro, Cruzeiro Real, Real).

    Na verdade, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e especialmente

    a partir dos anos 50, a pergunta sobre a natureza e as origens da inflao

    ganhou um lugar central entre os economistas latino-americanos, ou entre os

    estrangeiros interessados na regio. No o caso de me estender aqui sobre

    os debates da poca (entre estruturalistas e monetaristas, por exemplo).

    O fato que a densidade desses debates contribuiu para a conformao de

    um campo de profissionais da economia relativamente autnomo em diversos

    pases do subcontinente, com instituies prprias de formao e difuso

    de teorias e polticas. No entanto, apesar de toda a ateno dada por esses

    profissionais ao desequilbrio monetrio, o certo que, como constatou

    duas dcadas mais tarde Albert Hirschman (1984 [1981]:247), a inflao na

    Amrica Latina acabou se tornando onipresente, prolongando-se por um

    perodo extenso, aparecendo para as pessoas como alguma coisa familiar

    e quase normal19.

    Justamente, em um longo perodo de tempo que abrangeu vrias gera-

    es, ao debaterem sobre a natureza da inflao e ao criarem mecanismos

    para lidar com ela, os especialistas desenvolveram uma verdadeira pedago-

  • 131AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    gia da instabilidade monetria; ensinaram os sentidos dos dispositivos que

    permitiram s populaes (do seu ponto de vista, os agentes econmicos)

    aprenderem a conviver com a perda do valor da moeda, a se defenderem

    de seus efeitos nocivos e, tambm, a aproveitarem as oportunidades abertas

    por ela.20

    Uma nota de etnografia autobiogrfica ilustra esse ponto.21 Quando

    em agosto de 1988 sa de Buenos Aires para comear o meu doutorado em an-

    tropologia social no Rio de Janeiro, havia pouco tinham comeado a circular

    na Argentina as notas de Austral, a nova moeda que substitua o Peso (este

    tinha sido colocado em circulao pouco mais de dez anos antes). Quando

    desembarquei no Brasil e troquei alguns dlares, recebi uma mistura de

    novos Cruzados e de antigos Cruzeiros. Alguns meses depois, os Cruzados

    novos seriam substitudos por novssimos Cruzeiros. Era inevitvel sentir

    no Brasil certo ar familiar em relao s questes monetrias. No Rio de

    Janeiro, como em Buenos Aires, as pessoas investiam uma enorme parcela

    de tempo e de energia ouvindo falar e falando em dinheiro, lidando com

    assuntos monetrios, trocando umas moedas por outras, e trocando compul-

    sivamente dinheiro por outros objetos: comprando. As pessoas pensavam e

    manipulavam intensamente nmeros.

    A paisagem das filas nos supermercados e o barulho das mquinas de

    marcao de preos (antes da existncia dos sistemas digitais hoje correntes)

    reforavam a sensao de que como diziam os mais idosos, que lembra-

    vam tempos menos preocupados obsessivamente com o valor do dinheiro

    agora nada tem preo. A paradoxal intensificao do consumo, prpria dos

    processos inflacionrios que, por sua vez, estimula o desabastecimento que

    alimenta o aumento dos preos, tinha vrios correlatos, inclusive na dispo-

    sio espacial dos lares. Nas salas dos apartamentos de algumas famlias

    das classes mdias, por exemplo, generalizava-se a utilizao dos freezers

    e das geladeiras suplementares para facilitar a estocagem.22

    Mas, aos meus olhos, educados na inflao argentina, os brasileiros

    pareciam conviver de uma forma mais ordenada em relao vertiginosa

    perda do valor do dinheiro. A palavra-chave dessa ordem, que eu escutei pela

    primeira vez no Rio de Janeiro, era correo monetria como foi muito

    acertadamente batizado no Brasil o dispositivo da indexao, inventado por

    Fisher, uma figura certamente desconhecida por mim e, claro, por meus

    interlocutores na poca.

    A correo monetria fazia com que os salrios dos meus professores, e

    a minha bolsa inclusive, duplicassem o seu valor a cada 90 dias. Da mesma

    forma, eram reajustados os aluguis: como muitos outros contratos, a cada

    trs meses eles dobravam o seu valor nominal. Assim, se tinha a sorte de

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO132

    receber o reajuste da minha bolsa no ms anterior ao reajuste do aluguel,

    ficava na minha mo um montante de dinheiro quente, que podia ser tro-

    cado (e devia ser trocado rapidamente) por outros bens. Ou, seno, eu devia

    correr at o banco para aplicar o dinheiro. Uma das coisas que mais me

    impressionavam era a freqncia com que meus amigos brasileiros iam ou

    telefonavam para os bancos. Estudantes como eu, que viviam basicamente

    de uma bolsa de estudos no estou falando de grandes investimentos

    lidavam com contas bancrias, cartes e tales de cheques, com enorme

    habilidade e parcimnia, movimentando o dinheiro que seria utilizado para

    chegar at o final do ms entre aplicaes diversas, num jogo que eles pa-

    reciam dominar perfeio. Acontece que o dinheiro no banco era tambm

    corrigido, indexado, convertido em uma outra moeda, transformado em

    um ndice. Este era um assunto em relao ao qual, nesse perodo de intensa

    desvalorizao da moeda, os brasileiros podiam utilizar um conhecimento

    acumulado durante trs dcadas.

    De fato, trata-se de uma histria que nos situa na vspera do golpe de

    Estado de 1964, quando a demanda por mais e melhores estatsticas comeou

    a ser insistentemente veiculada na imprensa por alguns dos que pediam o fim

    do governo de Joo Goulart devido, justamente, sua suposta incapacidade

    para controlar os preos. Resulta fantstico observar com os nossos olhos do

    presente, educados em uma percepo quantitativa da inflao, o debate da-

    queles anos. No Brasil, no havia ento ndices nacionais de preos. O que

    merecia mais crdito, por exemplo, segundo algumas dessas usinas golpistas,

    era o ndice de preos do estado da Guanabara, que tinha uma abrangncia

    somente estadual. Isto acentuava o paradoxo: aqueles que discutiam o proble-

    ma e denunciavam o descontrole do tigre da inflao, ou os efeitos insupor-

    tveis do flagelo do aumento dos preos, utilizavam para fundamentar essa

    denncia no nmeros, mas um repertrio de frmulas qualitativas, o qual

    revelava sua suposta incapacidade para conceituar o fenmeno. Para tratar

    um mal vagamente percebido atravs dessas categorias que prescindiam

    de quantidades (finalmente, dizia-se, todo cidado brasileiro podia sentir a

    doena no bolso), seriam necessrios instrumentos precisos de diagnstico,

    cuja fabricao era vista ao mesmo tempo como o princpio da cura.23

    A correo monetria foi inventada nessa poca, imediatamente aps

    o golpe. O Programa de Ao Econmica do governo militar criou uma srie

    de moedas virtuais que serviam para a cotao e para o reajuste de todos os

    contratos da economia, inclusive os salrios. primeira dessas moedas, a

    ORTN (Obrigaes Reajustveis do Tesouro Nacional), seguiu-se uma legio

    de siglas semelhantes, como a URP, que regulava o aluguel e a minha bolsa

    quando cheguei ao Brasil.

  • 133AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    No ps-Segunda Guerra, e muito mais intensamente ainda a partir da

    dcada de 60, o Brasil experimentou uma verdadeira proliferao de indica-

    dores. Esse processo de indexao da vida social e de convvio intenso com

    os nmeros pblicos teve como base, em larga medida, a prpria expanso do

    campo dos profissionais da economia. Formados nas ento numerosas facul-

    dades de economia (tambm em algumas de sociologia com vis estatstico

    e, depois, nas de jornalismo), e recrutados por um nmero cada vez maior de

    instituies patrocinadas pelos governos (federal, estaduais e municipais), por

    sindicatos de patres e de trabalhadores, eles concorriam no mercado de idias

    e de polticas, elaborando e vendendo index numbers. Estes eram logo consu-

    midos na esfera pblica econmica, j bastante povoada pelos laboratrios

    que os elaboravam, por boletins de empresas e de associaes, por revistas

    de grande circulao, por jornais e sees informativas especializadas, o que

    ampliava, por sua vez, o mercado de trabalho dos profissionais.24

    Um dos eventos mais significativos desse processo de indexao do

    debate pblico brasileiro ocorreu aps uma denncia sobre a manipulao,

    por parte do governo, dos indicadores que serviam para a correo dos sa-

    lrios referentes ao ano de 1973. A denncia tinha sido encaminhada pelo

    Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Scio-Econmicos

    DIEESE que, pouco depois da sua criao, na dcada de 1950, havia come-

    ado a elaborar indicadores de custo de vida. Mas ela ganhou legitimidade

    pblica s em meados de 1977, aps a divulgao de um documento sigiloso

    de uma misso do Banco Mundial que encampava os nmeros do DIEESE

    e alertava para a tergiversao dos dados produzidos pela Fundao Getlio

    Vargas que, naquela poca, era o laboratrio de produo de indicadores

    oficiais para o sistema da correo monetria.

    A partir da, seguiram-se meses de debate pblico, nos quais os pro-

    fissionais da economia tiveram uma participao estelar: eram chamados a

    explicar os mecanismos de elaborao das frmulas e a discorrer sobre o valor

    cientfico da sua atividade tanto na imprensa e no Congresso Nacional (foi

    criada a Comisso Parlamentar de Inqurito dos ndices), como tambm

    nas ruas. Alguns economistas e socilogos compareciam a manifestaes e

    a comcios para os quais eram convidados a discursar. A representao nu-

    mrica dos fatos sociais e o uso de percentagens estavam to estabelecidos

    como a forma legtima de olhar para o mundo social que os coordenadores

    do Movimento do Custo de Vida, criado naquela poca, regozijavam-se

    publicamente por terem superado em 15% a meta de 1 milho de assina-

    turas para o manifesto de denncia sobre a falsidade dos indicadores25.

    Trs dcadas depois desses fatos, foi inventado o ltimo dos tais nmeros

    pblicos. Ele assumia o seu duplo papel de coeficiente de reajuste dirio dos

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO134

    preos e de unidade de conta nas transaes correntes: era a URV (Unidade

    Real de Valor), lanada em 1993 com a finalidade de se transformar em uma

    nova moeda, o Real, at hoje a moeda nacional do Brasil. Alguns dos ideali-

    zadores do Plano Real eram economistas que tinham obtido certa reputao

    como autores de uma teoria a respeito das causas da inflao a chamada

    teoria da inflao inercial que considerava justamente o papel desses

    dispositivos na longa instabilidade monetria do pas.26 A nica sada para

    conseguir terminar com a doena da moeda, segundo esses especialistas,

    era transformar um desses indexadores em moeda corrente. E foi assim que

    o convvio com a nova moeda foi ensinado populao, que durante alguns

    meses aprendeu a calcular os preos dos objetos e dos contratos por meio

    de uma unidade de conta mbil, a URV (cujo valor variava diariamente), e

    em Reais. Esta ltima era inicialmente uma moeda apenas virtual, at que

    a URV gradativamente foi se extinguindo, segundo uma tabela diria de

    variao com a qual era confrontado todo cidado que manipulava dinheiro

    nos pagamentos correntes e tambm nos contratos, a comear pelos salrios

    e pelos aluguis, por exemplo.

    Como os brasileiros, os argentinos tambm aprenderam a conviver com

    os indexadores, mas em uma intensidade e em uma escala sensivelmente

    menor. Pelo menos dois elementos gravitaram decisivamente em funo dessa

    diferena.27 Um desses elementos a menor escala relativa do campo dos

    profissionais da economia na Argentina, e tambm a intensidade menor da

    concorrncia entre os laboratrios produtores de nmeros, da qual um dos

    efeitos foi, justamente, a popularizao dos indicadores. O outro elemento

    a generalizao, entre os argentinos, do uso do dlar norte-americano como

    moeda paralela, em um longo processo que se iniciou nos anos 60. De fato,

    para os argentinos, o dlar foi aos poucos se convertendo em um equivalente

    daquilo que, para os brasileiros, eram os coeficientes de indexao. J no

    incio da dcada de 60, o preo com que se contrastava o valor da moeda

    nacional na Argentina era o do dlar. A taxa de cmbio transformou-se muito

    cedo em um assunto de interesse para amplas camadas da populao. Folhas

    com a cotao das divisas estrangeiras eram produzidas e distribudas s

    centenas pelas casas de cmbio da city portenha.28

    Naquela poca, generalizou-se entre as camadas mdias argentinas

    em ascenso a prtica da poupana em dlar (para a maioria, no colcho,

    e para alguns privilegiados, em contas no exterior). O debate pblico sobre

    a gerao de um mercado de capitais nacionais, inclusive a tentativa de

    criar uma cultura da poupana em moeda nacional por parte dos bancos,

    denota a preocupao com o uso cada vez mais generalizado do dlar como

    meio de entesouramento. A criao de mercados de bens especficos em

  • 135AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    dlar (notadamente de bens imveis) foi uma decorrncia natural desse

    processo. Ainda hoje os argentinos pensam sempre no valor das moradias

    em dlar; as propriedades so avaliadas por meio da divisa estrangeira,

    igual ao preo publicado nos avisos classificados, e as transaes so feitas

    em dlar usando sempre dinheiro vivo, o que envolve uma logstica e

    uma ritualstica especial, relativa aos meios de transporte das notas e aos

    lugares adequados para as transaes o que resulta extremamente extico

    para os observadores estrangeiros.

    Os elaboradores de polticas de estabilizao monetria na Argentina

    tambm reconheceram cedo essa dolarizao das mentes nacionais29. De

    fato, o primeiro ensaio de dolarizao geral aconteceu no pas em dezem-

    bro de 1978, com a instituio da chamada tablita (tabelinha), que permitia

    prever a desvalorizao diria do peso em relao ao dlar. Esperava-se

    que a regulao de um preo (o do dlar) servisse para orientar todos os

    outros preos da economia. Realmente, durante vrios meses, os argenti-

    nos pensaram as suas relaes (mediadas pelo dinheiro) com os objetos e

    com as pessoas calculando os coeficientes estabelecidos pela tablita. Mas

    a dolarizao aconteceria na verdade pouco mais de dez anos depois, aps

    a crise hiperinflacionria que marcou o fim do Austral e a instituio do

    regime da Conversibilidade tecnicamente um sistema de currency board

    que estabelecia por lei a paridade de 1 peso = 1 dlar. Esse sistema fez com

    que os cidados pudessem utilizar indistintamente em qualquer transao,

    mesmo nas de mais baixo valor, como comprar cigarros ou pagar um txi,

    notas de Pesos Conversveis ou de dlares, acostumando-se a manusear

    cotidianamente, e ao mesmo tempo, ambas as moedas. Naquela poca, a

    institucionalizao da dolarizao na Argentina abriu um debate em vrias

    outras partes do mundo. Nele foram discutidas as relaes entre estabilida-

    de monetria e soberania. Alguns dos autores do Plano Real, por exemplo,

    posicionaram-se claramente contra essa alternativa para o Brasil, argumen-

    tando que os brasileiros confiavam ainda na sua moeda, e lembrando que os

    mecanismos da indexao tinham tido justamente a vantagem de manter

    as cabeas brasileiras voltadas para um horizonte de equivalncias basi-

    camente nacional.30

    Concluses

    Em um estudo iluminador sobre os debates a respeito da natureza e do fu-

    turo da moeda que se seguiram ao fim da Guerra Civil nos Estados Unidos,

    Bruce Carruthers e Sarah Babb (1996) demonstraram a utilidade da anlise

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO136

    das situaes de crise para que se compreendessem os sentidos pblicos do

    dinheiro. Ao seguir as idias de Mary Douglas (1986) a respeito da relao

    entre a naturalizao e a estabilidade das instituies sociais, Carruthers e

    Babb colocaram em evidncia como em contextos inflacionrios a natureza

    da moeda deixa de ser taken for granted; a sua reproduo como lao social

    fundado na confiana e na continuidade do seu valor no mais vista como

    no-problemtica; o preo da moeda (ou a quantidade de dinheiro que deve

    ser trocada por outros bens ou servios) transforma-se em uma questo que

    preocupa os espritos no s dos especialistas que discutem alternativas

    para a estabilizao, mas tambm das pessoas que lidam com dinheiro nas

    suas transaes cotidianas.

    A particular desnaturalizao pblica da moeda nesses momentos pode

    ser observada nos esforos realizados por aqueles que esto afastados das

    crises para poderem compreender o que ali se passa. Assim, por exemplo,

    nos primeiros meses do ano 2002, a rede britnica BBC publicou no seu

    site da Internet um Dictionary of Argentine Crisis com a finalidade de

    ajudar os leitores a entenderem os sentidos das questes que envolviam

    termos como conversibilidade, bnus, pesificao, dolarizao ou

    corralito. Enquanto as pessoas no familiarizadas com os acontecimentos

    que naquele momento comoviam o pas podiam informar-se atravs desse e

    de outros meios sobre o que ali estava ocorrendo, os argentinos debatiam

    a crise nas ruas, em passeatas e assemblias, ao mesmo tempo em que os

    intelectuais de maior renome no pas apareciam reiteradamente na mdia

    discutindo os destinos da nao alguns perguntavam-se, inclusive, se a

    Argentina continuaria a existir depois da crise.

    Nessa poca, no vizinho Brasil, o fantasma da argentinizao apare-

    cia nos debates pblicos sobre o futuro da economia e da poltica. No era

    a primeira vez que se invocavam os riscos da contigidade, aparentemente

    sempre to afins com a dimenso internacional do desequilibro financeiro

    cerca de vinte anos atrs, difundiram-se algumas expresses que descreviam

    a perda sbita do valor das moedas nacionais em termos de contgio (como

    a teoria do efeito Orloff, segundo a qual dizia-se no Brasil, a Argentina

    de hoje o Brasil de amanh).31

    Como vimos, o desequilbrio monetrio no era novidade para ar-

    gentinos e brasileiros. H muito tempo, as populaes de ambos os pases

    conviviam com fenmenos semelhantes, aprendendo a identificar a perda

    do valor das suas moedas com momentos fortes no debate pblico a respeito

    da crise e do destino da nao. Qualquer um que tenha vivido no Brasil ou

    na Argentina nas ltimas dcadas do sculo passado e nos primeiros anos

    deste sculo no ter dificuldade em lembrar os repetidos anncios, em ca-

  • 137AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    deia nacional de rdio e televiso, de congelamentos de preos, poupanas

    foradas e mudanas de denominao das moedas correntes, seguidos de

    feriados bancrios em que os assalariados, os devedores, os locatrios, enfim,

    a maior parte dos cidados era exposta aos novos dispositivos concebidos

    para salvar a coletividade da peste da instabilidade monetria: novas moedas,

    desgios, tabelas de converso, indexadores. A intensidade das formas rituais

    que envolvia os anncios e a implantao desses dispositivos sublinhavam

    o carter extraordinrio do tempo das moedas doentes.32

    No este o lugar para descrever em detalhes a construo da iden-

    tificao entre crise da moeda e crise nacional; nem a dinmica ritual que

    envolve a utilizao de metforas naturais que falam de sade e doena, e que

    tm nos profissionais da economia, transformados em intelectuais pblicos,

    um dos seus principais oficiantes.33 Interessa, sim, chamar a ateno para os

    enormes efeitos pedaggicos desses longos perodos de instabilidade mone-

    tria, de dinheiro selvagem, na feliz metfora de Cris Gregory (1997).

    Isto refora uma das idias gerais deste texto, que indica a utilidade

    da reconstruo do longo e lento processo de cultivao econmica para a

    compreenso dos comportamentos individuais e coletivos nos momentos de

    crise ou hiperinflao. Certamente, esses momentos so privilegiados para

    o exerccio da pedagogia da economia, mas s na condio de que neles

    possam tambm ser mobilizadas disposies j incorporadas em perodos

    de relativa estabilidade e bem-estar.

    Volta-se, assim, questo das relaes entre as teorias e os dispositi-

    vos monetrios construdos pelos especialistas e aqueles presentes na vida

    ordinria. Dessa forma, possvel concluir este artigo com um comentrio

    a respeito da questo da performatividade, de como ela passou a ser lida a

    partir da publicao, em 1998, do livro de Michel Callon, The laws of the

    market uma abordagem que, alis, influenciou no s os estudos sociais

    da economia, mas tambm a chamada Action Network Theory, que tem como

    principal foco os Science and Technology Studies.

    Ao remeter-se vagamente teoria de John Austin (1972) sobre os atos

    de fala e dialogando implicitamente com as idias de Pierre Bourdieu (1981)

    sobre os efeitos da teoria na vida social, Callon formula, na introduo desse

    volume, uma hiptese segundo a qual a teoria econmica teria o efeito de

    moldar as prticas econmicas o fato de que, segundo suas palavras, a

    vida econmica (a economy) est embebida no na sociedade (como diria

    Karl Polanyi), mas na economics, na teoria econmica (Callon 1998:30).34

    A proposta de Callon, independente de ter o mrito de chamar a aten-

    o para um assunto crucial, mereceu at agora duas crticas principais.

    A primeira delas refere-se menos ao contedo da hiptese e mais s evi-

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO138

    dncias apresentadas. Segundo MacKenzie e Millo (2003), por exemplo,

    o processo de formatao, a performatividade, ainda estaria espera de

    demonstraes empricas plenamente convincentes.

    A outra crtica a Callon, explicitada em especial por Daniel Miller

    (2002), questiona um ponto central da hiptese: a prpria idia de que a

    teoria econmica produza um efeito de purificao (ou desentanglement)

    da vida econmica, particularmente das transaes, formatando-as segundo

    o ideal do mercado auto-regulado. No que parece ser uma nova edio do

    antigo debate entre partidrios de interpretaes formais ou substantivas

    da economia (debate que agitou, como se sabe, a chamada antropologia

    econmica nos anos 1950 e 1960), pessoas como Miller, que estaria do lado

    substantivista, digamos assim, tm procurado mostrar que uma tal purifi-

    cao nunca se produz realmente; ou que, em todo caso, os dispositivos de

    formatao econmica fabricados pela teoria, passam, eles mesmos, a ser

    capturados e misturados nas transaes, que seriam sempre algo a mais e

    algo diferente do que transaes puramente econmicas. Neste sentido,

    preciso concordar com Miller: Callon no teria feito mais do que reproduzir

    a viso (otimista) que os prprios economistas tm sobre os efeitos das suas

    teorias sobre a vida social.35

    Creio, no entanto, que apesar dos seus vrios aspectos produtivos, esse

    debate no atingiu ainda alguns pontos cruciais das relaes entre as teo-

    rias econmicas eruditas e as prticas econmicas ordinrias. Para concluir,

    gostaria de chamar a ateno sobre trs desses pontos, em relao aos quais

    a minha proposta de antropologia do dinheiro atravs da histria cultural

    da inflao busca oferecer uma viso diferente.

    O primeiro ponto exige substituir uma noo unificada da teoria

    econmica compartilhada por Callon e por seus crticos que atribui

    homogeneidade e agency teoria (tratada sempre no singular), por uma

    viso nuanada das relaes de interdependncia e de concorrncia entre

    as teorias (no plural) e, mais importante, entre os seus produtores e divul-

    gadores. A discusso sobre performatividade parece esquecer dos sujeitos

    que produzem as teorias que performatizam, sempre atentos, alis, aos

    efeitos prticos das suas investigaes. Eles, os cientistas (neste caso, os

    profissionais da economia), costumam justamente provar a excelncia de

    uma interpretao atravs da eficcia com a qual, no plano microeconmico,

    por exemplo, os preos de uma determinada mercadoria convergem para

    um novo indicador ou, no plano macroeconmico, por meio da diminuio

    das taxas de inflao ocasionadas por um novo plano de estabilizao.

    Creio que o caminho para transcender a viso que os prprios profissionais

    tm sobre o poder dos seus modelos , como sugeri neste artigo, a anlise

  • 139AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    histrica e comparativa da produo das teorias e dos processos de cultivo

    econmico de populaes diversamente relacionadas com os dispositivos

    implementados pelos especialistas.

    O segundo ponto tem a ver com os efeitos no desejados da teoria

    econmica algo que at agora parece ter merecido pouca ateno por

    parte dos socilogos e dos antroplogos da economia, embora costume

    ser considerado pelos especialistas quando denunciam, por exemplo, as

    conseqncias nocivas, ou os erros, de determinada poltica ou tecno-

    logia produzida por seus colegas. A viso aqui proposta sobre o papel dos

    profissionais da economia como verdadeiros pedagogos da instabilidade

    monetria (produzindo dispositivos e categorias para conceituar o dinheiro

    e para que os agentes econmicos possam lidar eficazmente com a perda do

    seu valor) sugere at que ponto os profissionais da economia contriburam

    para a construo da doena que eles mesmos, enquanto money doctors,

    tentaram mais de uma vez remediar.36

    O ltimo ponto diz respeito prpria noo de efeito e teoria da

    causalidade subjacente idia de performatividade. Um exame mais de-

    talhado das complexas relaes entre os dispositivos para curar as moe-

    das eliminando a inflao, as disposies e as prticas dos agentes a eles

    submetidos permite iluminar outra dimenso at agora no considerada no

    tratamento de tal questo. Na dupla qualidade dos nmeros que medem o

    valor do dinheiro, como os indicadores de custo de vida e os indexadores,

    podemos reconhecer um tipo de magia presente em outros dispositivos se-

    melhantes: ao mesmo tempo em que procuram descrever o comportamento

    emprico de agentes econmicos no passado, reclamam o poder de organizar

    o comportamento futuro.

    Apesar das significativas diferenas que, por exemplo, envolviam a

    histria social do uso generalizado dos indexadores no Brasil e do dlar

    na Argentina, ambos cumpriam perfeitamente uma das propriedades mais

    instigantes do dinheiro, e que foi descrita por Simmel (1987 [1909]): a sua

    circularidade, o fato de ele ser uma modalidade particular de representa-

    o normativa que se submete s suas prprias normas (1987:113), um tipo

    singular de objeto que , ao mesmo tempo, efeito de determinadas correntes

    culturais e causa eficiente dessas mesmas correntes (:181). Exemplos

    extremos de instrumentos que simultaneamente descrevem e prescrevem,

    esses nmeros pblicos encerram toda a dinmica das relaes entre teorias

    econmicas e culturas econmicas que a teoria da performatividade deixa

    de observar, isto em funo da noo simplificada de causalidade que ela

    supe sempre de uma teoria sobre os fatos. Produto da dinmica de

    relaes de interdependncia e de concorrncia interna no campo dos pro-

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO140

    fissionais, instrumentos como os indicadores, as moedas virtuais, as tabelas

    de converso entre moedas e indicadores ou a prpria correo monetria

    procuram interpretar e acompanhar mecanismos culturais preexistentes,

    ao mesmo tempo em que se transformam, eles mesmos, em dispositivos

    culturais com efeitos mais amplos e distintos dos originalmente previstos

    por seus fabricadores alcanando ainda a prpria teoria econmica e os

    dispositivos criados com base nela.

    Assim, compreende-se melhor o objetivo final deste artigo: assinalar

    a rentabilidade de modelos explicativos mais plsticos, que permitam

    compreender, de forma nuanada e atravs de uma perspectiva histrica

    e comparada, dimenses significativas das relaes entre as economias

    eruditas e as economias ordinrias, perguntando-se sobre as relaes dos

    dois sentidos que a palavra economia possui na linguagem ordinria: um

    conjunto de teorias sobre a sociedade um saber especializado e um

    conjunto de prticas e idias um domnio que ao se apresentar est, ou

    deveria estar, relativamente separado dos outros.

    Recebido em 08 de fevereiro de 2007

    Aprovado em 15 de maro de 2007

    Federico Neiburg professor do PPGAS (Museu Nacional, UFRJ); pesquisador do CNPq e da FAPERJ; e coordenador do Ncleo de Pesquisas em Cultura e Econo-mia (NuCEC, www.cultura-economia.org). .

    Notas

    * Este artigo baseia-se na conferncia pronunciada no Instituto de CinciasSociais da Universidade de Lisboa, em 7 de abril de 2006. Agradeo especialmente aos meus anfitries nessa ocasio, Joo de Pina Cabral e Joo Vasconcelos, pela sua hospitalidade e pela generosidade dos seus comentrios. Agradeo tambm aos mem-bros do Ncleo de Pesquisas em Cultura e Economia (NuCEC), em cujo seminrio foram discutidas verses preliminares, especialmente, Carla Ramos, Csar Gordon, Diana Lima, Eugnia Motta, Fernando Rabossi, Jos Renato Baptista, Mariana Ca-valcanti, Pedro Braum de Azevedo Silveira e Ricardo Cruz. Por fim, sou grato tambm a Alexandre Roig e Bruno Thret por suas crticas e sugestes.

  • 141AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    1 A construo social da confiana pblica nos nmeros, na segunda metade do scu-lo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX, nos Estados Unidos, associada, por exemplo, legitimao de algumas profisses como a engenharia ou a contabilidade (e inveno dos clculos de custo/ benefcio), foi sugestivamente analisada por Porter (1995).

    2 Independente do fato de que as categorias que servem para medir os aumentos de preos so parte do fenmeno que elas descrevem como pretendo argumentar ao longo deste ensaio preciso mencionar alguns nmeros para ilustrar a dimenso do fenmeno: durante quase toda a segunda metade do sculo XX, no Brasil e na Argentina, houve aumentos anuais de preos superiores a 100%. Nos anos 80 e 90, as moedas nacionais de ambos os pases desvalorizaram-se por longos perodos a taxas de 1% ao dia, mais do que 100% ao ms, chegando a nveis anuais de 1000%. Na Argentina, em 1989, houve um surto de 5000%; no Brasil, em 1994, de 3000%. Mais adiante, a singularidade destes processos ser melhor observada atravs de alguns contrastes com outras inflaes que mereceram grande ateno na histria monetria contempornea, como a hiperinflao alem dos anos 20 (que alcanou em 1923 os fantsticos 75 bilhes %), ou a inflao norte-americana dos anos 70 que, apesar de nunca superar a marca anual (comparativamente modesta) de 17%, transformou-se em assunto pblico de grande relevncia, contribuindo para o renascimento do interesse dos especialistas pelos processos de desvalorizao monetria.

    3 Nesse sentido, esta abordagem diferencia-se da interessante proposta de Stephen Gudeman e Alberto Rivera (1990), orientada para observar as possveis con-versaes entre a economia dos textos e a economia dos camponeses colombianos, junto aos quais eles trabalharam. Ao contrrio da inteno de Gudeman e Rivera, de serem eles mesmos os mediadores entre as categorias tericas dos especialistas e as categorias prticas dos seus interlocutores que, segundo eles esclarecem, no leram as obras dos especialistas, no campo apontado neste artigo abre-se a possibilidade de uma reconstruo emprica fina das relaes estabelecidas pelos prprios agentes sociais, mais ou menos eruditos, mais ou menos leigos (no limite, colocando-se em questo a prpria distino entre esses dois universos).

    4 A economia como disciplina universitria autnoma um fenmeno do s-culo XX. Nas ltimas dcadas do sculo XIX, foram fundados os pioneiros cursos e cadeiras de economia. A primeira delas, a cargo de Alfred Marshall, foi estabelecida na universidade de Cambridge em 1890.

    5 Ver, por exemplo, Keynes (1963 [1919-31]).

    6 Em um artigo j clssico, Keith Hart (1986) mostrou que o convvio tenso entre estas duas explicaes a respeito da natureza do dinheiro (uma que enfatiza a dimenso quantitativa, e a outra, os aspectos polticos, ligados confiana no poder soberano que emite, garante e regula o valor da moeda) um fenmeno mais geral, que pode ser encontrado em outros contextos histricos e culturais, no s entre as teorias nativas do dinheiro moderno, como as teorias econmicas acadmicas aqui referidas, mas tambm, por exemplo, nas teorias trobriandesas do valor, descritas por Malinowski, no contraste entre os objetos kula e gimwali.

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO142

    7 A fora da utopia monetria da economia ortodoxa, coerente com a utopia do mercado auto-regulado, to bem descrita por Karl Polanyi (2002 [1944]), tem sido responsvel, em boa medida, pela falta de ateno dada pela teoria econmica s desordens monetrias, vistas to somente como desvios de curto prazo de uma ten-dncia ao equilbrio que deveria se verificar a longo prazo (ver Ingham 2004:152).

    8 De fato, Simmel (1987 [1909]) procurava um ponto intermedirio entre a escola histrica e a neoclssica, aceitando desta ltima a idia de que as trocas e, em boa medida, o valor dos objetos resultam do jogo de preferncias subjetivas, mediadas pelo smbolo neutral do dinheiro.

    9 Neste ponto, Simmel aproxima-se efetivamente da idia de alienao de Marx. So deste ltimo (Marx 1980 [1844]:177-9) afirmaes fulminantes, como O dinheiro o objeto por excelncia [] o poder alienado da humanidade. Vale a pena notar, ainda no que diz respeito sociologia alem, que embora Max Weber no tenha escrito nenhuma obra especfica sobre o dinheiro, nas passagens dedicadas gnese dos bancos sugere relaes entre o uso da moeda como unidade de conta e a gnese social do clculo e a abstrao racional (ver p.e. Weber 1991 [1921]:259-88).

    10 Como mostrou Louis Dumont (1977), essa forma de relacionar (separando) pessoas e coisas constitui um dos pilares da ideologia individualista moderna que se exprime nas teorias econmicas. Pode-se acrescentar que ela , de fato, um dos pilares das utopias monetrias s quais estou aqui me referindo.

    11 Para um argumento semelhante sobre as dificuldades em tornar essas di-menses do dinheiro objeto de pesquisa antropolgica, ver Hart 2004; Zelizer 1994, o nmero 45 (2005) da revista Terrain, dedicado a Largent en famille; e Baptista(neste mesmo nmero de Mana). Ver tambm Maurer (2006) para um panorama da incipiente literatura anglo-saxnica recente que trata do dinheiro em antropologia. Para observar algumas das significativas pontes entre essa problemtica associada ao dinheiro e a antropologia da quantificao, ver em especial Weber (2002), e tambm Zaloom (2003).

    12 Estas consideraes explicam tambm por que, para o argumento deste tex-to, os termos moeda e dinheiro podem ser tomados como sinnimos, da mesma forma que eles so utilizados na linguagem ordinria em portugus ou em espanhol. Nesse sentido, no interessam aqui as distines estabelecidas por alguns autores que escrevem em lngua inglesa sobre money e currency, reservando o primeiro termo s moedas modernas, oficiais, dos estados nacionais, e o segundo, s moedas territoriais, locais (p.e., Akin & Robbins 1999, ou Helleiner 2003). Para uma reflexo bem informada sobre a gnese e o uso dessa distino em lngua alem (Geld/Mnze), ver o comentrio de Alban Bensa (1992) obra de Bernhard Laum, Heiliges Geld(1924). Ver tambm Thret no prelo: nota 32.

    13 Ver, por exemplo, Hoppit (2006).

    14 Ver Zelizer (1983).

  • 143AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    15 Os ndices de custo de vida so uns entre os vrios index numbers, criados por um tipo de economistas com forte formao matemtica e estatstica, que tm sido um instrumento central para fundar uma interpretao, segundo esses especialistas, cientfica (porque quantificadora) do comportamento humano e da vida social. Os nmeros relativos s contas nacionais, como os que medem o PIB ou aqueles que servem para medir pobreza e desigualdade, so tambm exemplos de index num-bers. Embora a histria social e cultural desses nmeros esteja ainda por ser feita, possvel ver a respeito, por exemplo, Diewert (2003: cap.1), e Porter (1986:261-269). A prtica de elaborar ndices nacionais de custo de vida difundiu-se de modo desigual entre os pases da Europa Ocidental e da Amrica Latina, mas s se generalizaria bem depois da Segunda Guerra Mundial.

    16 A trajetria de Fisher e suas inovaes tericas e tecnolgicas merecem uma investigao parte. Basta mencionar o fato de que sua mentalidade sistemtica (como gostam de frisar os bigrafos) produziu tambm outras invenes com as quais convivemos cotidianamente, como o sistema de cartes para organizar dados, conhecido como kardex, que sobrevive ainda hoje em muitas bibliotecas. Fisher foi scio-fundador da Rand-Kardex Co., origem da empresa Remington, fabricante de mquinas de escrever e calculadoras. Sobre Fisher, ver Tobin (2005) e a biografia do seu filho, Fisher (1956). Sobre os ttulos indexados, Shiller (2005).

    17 Sobre a generalizao do uso de moedas paralelas na Argentina, ver Luzzi(2005). Para uma viso mais ampla sobre o fenmeno, em termos comparativos, ver Blanc (2000).

    18 Inspirado em Reinhard Kosseleck, Claudio Lomnitz (2003) utilizou de forma sugestiva a expresso saturao de presente para descrever a percepo temporal das classes mdias mexicanas da crise dos anos 1970 e 1980. De acordo com essa perspectiva, h a caracterizao de Bernd Widdig (2001) (motivada na anlise da crise alem de 1923, proposta por Canetti [1984]) de que a inflao manifesta, do ponto de vista cultural, uma modernidade fora de limites [out of bounds] na inter-relao entre a exacerbao da circulao, a massificao e a depreciao do valor dos objetos (Widdig 2001:23). Raros exemplos de des-cries de corte etnogrfico dos processos inflacionrios argentino e brasileiro esto em Spitta 1988; DaMatta 1993; Sigal & Kessler 1997; e ODougherty 2002. Entre as referncias originadas no ensaio ou na literatura (todas relativas ao caso alemo), vale mencionar Thomas Mann 1975 [1942]; Stefan Zweig 1943; e Elias Canetti 1984.

    19 Sobre o contraste com a inflao alem, deve considerar-se a profundidade temporal, tanto das sries que descrevem a depreciao do valor da moeda, quanto da prpria construo da inflao, como assunto pblico de primeira grandeza. Na Alemanha, as sries que mostram a depreciao do marco comearam na PrimeiraGuerra, isto , 15 anos antes da exploso hiperinflacionria de 1923, qual se se-guiu uma imediata estabilizao. No Brasil e na Argentina, o perodo inflacionrio e a discusso pblica do problema da perda do valor do dinheiro estenderam-se por mais de 50 anos.

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO144

    20 Para uma anlise geral sobre as relaes entre as teorias econmicas e as culturas da inflao, que considera a dinmica diferencial do campo dos economistas no Brasil e na Argentina, ver Neiburg (2006a).

    21 A expresso etnografia autobiogrfica de Eduardo Archetti (2003:16).

    22 Ver a sugestiva descrio da intensificao, naquela poca, do consumo entre as classes mdias brasileiras proposta por ODougherty (2002).

    23 Ver, por exemplo, Jornal do Brasil, de 01/01/1964, p.1.

    24 Alguns dados gerais sobre a expanso do campo dos economistas no Brasilpodem ser vistos em Loureiro (1997), e sobre o jornalismo econmico, em Abreu (2003). As primeiras medies de preos apontando para o clculo de indicadores de inflao foram realizadas a partir de 1939 pela FIPE (Fundao Instituto de Pes-quisas Econmicas) para o municpio de So Paulo; a partir de 1944, a Fundao Getlio Vargas comeou a produzir o indicador de variao de preos do estado da Guanabara; e em 1955, o recm-criado Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos Scio-Econmicos (DIEESE) comeou a produzir um outro indicador de custo de vida, referido a trabalhadores sindicalizados do estado de So Paulo. Ainda hoje podem ser encontrados bons exemplos dessa dinmica de indexao da vida social associada proliferao de laboratrios de fabricao de nmeros: a Fundao Ge-tlio Vargas, um dos principais desses laboratrios no Brasil, anunciou recentemente a divulgao pela primeira vez de um ndice de preos para jovens que podero, junto com os seus pais, calcular melhor o valor justo das suas mesadas. H neste momento tambm uma equipe da mesma fundao trabalhando na elaborao de um ndice para idosos, que visa subsidiar o debate pblico a respeito do valor justo das aposentadorias. Enfim, so os nmeros uma afirmao quantitativa do valor do dinheiro, agindo de modo crucial nas relaes entre as geraes.

    25 Folha de S. Paulo, de 27/08/1978, p.31. Para uma descrio detalhada dessa polmica pblica a respeito dos nmeros, associada ao processo de proliferao dos indicadores e dos laboratrios de indexao e expanso do campo dos profissionais da economia, ver Neiburg (no prelo).

    26 Para um exame da dinmica de produo e legitimao das teorias da inflao inercial, ver Neiburg (2006a:621-25).

    27 Evidentemente, trata-se de condies necessrias, mas no suficientes para dar conta do contraste. Uma descrio da dinmica dessas diferenas, isto , uma explorao mais aprofundada da dimenso comparativa na pesquisa da qual este trabalho um resultado ainda preliminar, exige considerar-se uma pluralidade de elementos que excedem os objetivos deste artigo. Tentativas de construir os parmetros dessa comparao podem ser vistas em Neiburg (2004 e 2006b).

    28 Algumas figuras, como Julio Nudler e Daniel Muchnik, em entrevistas a F. Neiburg em 2/10/2003 e 30/10/2003, relataram a experincia na produo e na

  • 145AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO

    distribuio, nos anos 60, dessas folhas com a cotao do dlar como o incio do processo da sua converso em jornalistas econmicos, o que s aconteceria uma dcada depois.

    29 A expresso de Domingo Cavallo, presidente do Banco Central e depois Ministro da Fazenda, em duas ocasies.

    30 As atas do Frum sobre dolarizao na Amrica Latina, promovido pelo FMIem 1999, ilustram o tom desse debate, no qual os especialistas faziam aparecer de modo crucial as suas interpretaes a respeito das culturas monetrias dos seus co-nacionais (ver IMF, 1999).

    31 A teoria era uma generalizao do slogan utilizado na poca pela campanha publicitria da conhecida vodka Orloff, em que um personagem, referindo-se aos efeitos colaterais positivos (contra a ressaca) da bebida, advertia (antes de tomar): Eu sou voc amanh. O uso de bebidas alcolicas para falar do contgio da do-ena monetria se generalizaria pouco depois, com os efeitos tequila, vodka, caipirinha etc.

    32 A utilizao da imagem da doena visando lidar com o valor da moeda tem uma longa histria. Ela recua at os incios da reflexo propriamente moderna sobre o dinheiro, no contexto do processo de homogeneizao e centralizao monetrias iniciado no sculo XV, quando se estabeleceu tambm, por exemplo, a distino ainda hoje vigente entre os economistas, de moedas autnticas e moedas esprias ou quase-moedas (ver, p.e., Kaye 1988). A atualidade da relao entre doena e ins-tabilidade monetria pode ser verificada observando-se os objetivos dos modernos Bancos Centrais: o primeiro deles sempre cuidar da sade da moeda.

    33 Ver Neiburg (2005). Ver tambm Dixon (1998:47-60) e Lebaron (2000:176-81), respectivamente, para Gr-Bretanha e Frana. Sobre o uso de metforas naturais na legitimao pblica da cincia econmica, ver Mirowski (1994).

    34 Callon baseia a sua demonstrao em um extenso comentrio do trabalho de Marie-France Garcia (1986), em que ela reconstri empiricamente, em um caso concreto, o processo atravs do qual se realiza o ideal do mercado perfeito.

    35 Sobre esse debate, ver tambm Callon (2005) e Aspers (2005).

    36 A expresso money doctor generalizou-se na Amrica Latina j no fim do sculo XIX (Drake 1994).

  • AS MOEDAS DOENTES, OS NMEROS PBLICOS E A ANTROPOLOGIA DO DINHEIRO146

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