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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO SOCIOECONÔMICO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS ECONÔMICAS PEDRO BUENO DE ALMEIDA A MOEDA DESCENTRALIZADA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: O CASO DA BITCOIN P2P DIGITAL CURRENCY. Florianópolis, 2013

Monografia Do Pedro Bueno de Almeida

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    CENTRO SOCIOECONMICO

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS ECONMICAS

    CURSO DE GRADUAO EM CINCIAS ECONMICAS

    PEDRO BUENO DE ALMEIDA

    A MOEDA DESCENTRALIZADA NA SOCIEDADE CONTEMPORNEA: O CASO DA

    BITCOIN P2P DIGITAL CURRENCY.

    Florianpolis, 2013

  • PEDRO BUENO DE ALMEIDA

    A MOEDA DESCENTRALIZADA NA SOCIEDADE CONTEMPORNEA: O CASO

    DA BITCOIN P2P DIGITAL CURRENCY.

    Monografia submetida ao curso de Cincias Econmicas da

    Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito obrigatrio

    para a obteno do grau de Bacharelado.

    Orientador: Prof. Dr. Roberto Meurer

    FLORIANPOLIS, 2013

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    CURSO DE GRADUAO EM CINCIAS ECONMICAS

    A Banca Examinadora resolveu atribuir a nota 9,0 ao acadmico Pedro Bueno de Almeida na

    disciplina CNM 5420 Monografia, pela apresentao deste trabalho.

    Banca Examinadora:

    -------------------------------------------------

    Prof. Dr. Roberto Meurer

    --------------------------------------------------

    Prof. Dr. Joo Rogrio Sanson

    --------------------------------------------------

    Prof. Bruno Lorenzi Cancelie Mazzucco

  • RESUMO

    ALMEIDA, Pedro Bueno de. A Moeda Descentralizada na Sociedade Contempornea: O

    caso da Bitcoin P2P Digital Currency. 68 f. Curso de Cincias Econmicas, Universidade

    Federal de Santa Catarina, Florianpolis, 2013.

    A moeda um objeto que j est presente na humanidade h tanto tempo que a sua existncia

    e funcionamento parece algo natural, como se sempre estivesse ali. O monoplio sobre a

    emisso de moedas pelos Estados Nacionais tambm um fator que se mantm presente h

    tanto tempo que o seu questionamento raramente ocorre. Porm, atravs de uma perspectiva

    histrica possvel visualizar as mudanas que ocorreram no decorrer dos sculos e

    principalmente as mudanas que esto ocorrendo neste exato momento na sociedade

    contempornea. O avano tecnolgico na rea de computao e da internet nas ltimas

    dcadas criou um novo ambiente de gerao de conhecimento e relaes sociais. A ausncia

    de fronteiras no mundo virtual tem permitido o desenvolvimento de redes de comunicao

    que abrange uma grande magnitude de pessoas em diversos pases. Neste ambiente virtual e

    tecnolgico que a computao e o aprimoramento das redes tm possibilitado que surge a

    Bitcoin P2P Digital Currency, uma moeda descentralizada de qualquer origem estatal,

    funcionando inteiramente atravs das trocas de informaes entre computadores pela internet.

    A pesquisa abordou as deficincias e eficincias que a utilizao da Bitcoin possibilita para as

    relaes econmicas do mundo, alm de discutir o desenvolvimento da qual tem at o

    momento se mostrado a moeda virtual tour de force em comparao com as outras

    experincias de moedas virtuais que j existiram.

    Palavras-chave: Moeda Descentralizada; Avano Tecnolgico; Redes de Comunicao;

    Bitcoin.

  • ABSTRACT

    ALMEIDA, Pedro Bueno de. The Decentralized Currency in the Contemporary Society:

    The Bitcoin P2P Digital Currency case. 68 f. Curso de Cincias Econmicas, Universidade

    Federal de Santa Catarina, Florianpolis, 2013.

    The currency is an object that is present in humankind for so long that its existence and

    functionality seems natural, as if it has always been there. The monopoly in the issuance of

    money by the Nation States is also a factor that is present for so long that its questioning

    rarely occurs. Nevertheless, through a historical perspective it is possible to see the changes

    that have occurred over the past centuries and especially the changes that are occurring right

    now in the contemporary society. The technological progress in computers and in the internet

    over the past decades created a new environment for the development of knowledge and

    social relations. The absence of boundaries in the virtual world has allowed the development

    of network communications that covers a large magnitude of people in several countries. In

    this virtual and technological environment, that the improvement of networks and computing

    made possible, the Bitcoin P2P Digital Currency arises, a decentralized currency apart from

    any government, functioning entirely through the exchange of information between computers

    over the internet. This study addressed the deficiencies and efficiencies that the use of the

    Bitcoin enables for economic relations in the world, and discusses the development of which

    has so far proved to be the Virtual Currency tour de force in comparison with others

    experiments of virtual coins that already existed.

    Keywords: Decentralized Currency; Technological Progress; Network Communications;

    Bitcoin.

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ...................................................................................................................... 3

    1.1 Tema e Problema de Pesquisa ...................................................................................... 3

    1.2 Objetivos ......................................................................................................................... 4

    1.2.1 Objetivo Geral .......................................................................................................... 4

    1.2.2 Objetivos Especficos ............................................................................................... 4

    1.3 Justificativa ..................................................................................................................... 5

    2. METODOLOGIA ................................................................................................................... 6

    3. PARTE I: A MOEDA ............................................................................................................ 7

    3.1 Viso Clssica ................................................................................................................. 7

    3.2 Moeda em Roma .......................................................................................................... 11

    3.4 Comrcio Medieval ...................................................................................................... 14

    3.5 Liberdade e o Capital .................................................................................................. 18

    3.5.1 Padro-ouro ............................................................................................................ 18

    3.5.2 Viso Austraca ...................................................................................................... 21

    3.5.3 Moeda privada na Amrica do Norte ..................................................................... 24

    4. PARTE II: O VIRTUAL ...................................................................................................... 29

    4.1 A internet ...................................................................................................................... 29

    4.1.1 Surgimento da computao e a internet ................................................................. 29

    4.1.3 Comunidades e Fruns ........................................................................................... 33

    4.1.4 Conexo P2P .......................................................................................................... 35

    4.1.5 Cypherpunks .......................................................................................................... 37

    4.2 Bitcoin ........................................................................................................................... 39

    4.2.1 Nascimento e proposta ........................................................................................... 39

    4.2.2 Reaes e insero ................................................................................................. 45

    4.2.3 A Bitcoin na Economia .......................................................................................... 53

    5. PARTE III: ECONOMIA DESCENTRALIZADA ............................................................. 57

    6. CONCLUSES .................................................................................................................... 62

    REFERNCIAS ....................................................................................................................... 65

  • 3

    1. INTRODUO

    1.1 Tema e Problema de Pesquisa

    O dinheiro como meio de troca, reserva de valor e unidade de conta est presente

    desde muito tempo nas relaes comerciais da sociedade, onde o poder econmico foi usado

    muitas vezes como forma de coero e domnio de uma populao, seja estampando a face do

    prncipe nas moedas ou recolhendo tributos (ROTHBARD, 2006). A ideia de que o Estado o

    detentor do poder legtimo de emitir moeda e controlar as relaes de troca algo que foi

    culturalmente criado, parecendo muitas vezes um fato natural, digno, pro hominem.

    Este trabalho tem a inteno de demonstrar, como uma moeda descentralizada

    funcionaria na sociedade contempornea. A lgica do uso de uma moeda privada e sem

    governo j foi amplamente explorada por Hayek (1990) na dcada de 1970, porm, com o

    avano tecnolgico, muitos fatores que anos atrs pareciam utpicos agora j so passveis de

    ocorrer, como o caso do uso de moedas virtuais. Na era da computao e da internet, muitos

    dos elementos crticos de implementao de um sistema monetrio descentralizado, como os

    altos custos e precariedade da engenharia matemtica computacional, foram superados com o

    avano tecnolgico e mais precisamente com o aumento da rapidez das trocas de informaes.

    Este trabalho analisa o uso da Bitcoin P2P Digital Currency como modelo de uma

    moeda digital descentralizada, questionando a utilidade de uma moeda desatrelada de um

    governo central, que no afetada por medidas de poltica monetria e no possui um banco

    central como emissor de moeda. Ser discutindo temas relacionados com a liberdade de

    comunicao no meio eletrnico atravs de softwares livres e programas de cdigo aberto que

    influenciaram e deram origem prpria concepo da moeda Bitcoin.

    A utilizao de uma moeda digital que no possui um sistema centralizado possibilita

    uma reduo nos custos de transaes, uma vez que toda a engenharia necessria para efetuar

    transaes funciona de forma pulverizada na rede, no sendo necessrio o uso de uma grande

    organizao bancria e financeira intermediadora. Dessa forma, a funcionalidade de uma

    moeda com essas caractersticas pode estar sinalizando o que um dia pode se tornar um novo

    modelo de transaes comerciais, colocando o sistema financeiro atual em uma posio de

    iminente obsolescncia.

  • 4

    1.2 Objetivos

    1.2.1 Objetivo Geral

    Objetivo central do trabalho discutir as consequncias do uso de uma moeda

    descentralizada, se existe a possibilidade, necessidade e utilidade na adoo de um meio de

    troca que seja parte do controle governamental, tanto pelos princpios morais de liberdade

    (MISES, 1987), quanto pela eficincia nas relaes comerciais pelos agentes do mercado.

    1.2.2 Objetivos Especficos

    Demonstrar as consequncias do uso da moeda em um contexto histrico, evoluindo

    dos antigos filsofos gregos at pensadores atuais.

    Utilizar do embasamento terico de vrios autores e economistas que buscavam

    fundamentar o uso de uma moeda sem o controle do governo.

    Discutir conceitos sobre o avano tecnolgico e ampliao da internet que

    possibilitaram a digitalizao dos mercados financeiros.

    Discutir temas relacionados com a criao de comunidades e fruns que possibilitam a

    criao de softwares livres e de cdigo aberto.

    Analisar o uso da moeda Bitcoin P2P Digital Currency em seu contexto de impacto

    econmico, funcionalidade e utilidade como uma forma alternativa de moeda para

    transaes financeiras.

  • 5

    1.3 Justificativa

    O processo de digitalizao dos mercados financeiros que aconteceu no fim do sculo

    XX possibilitou uma expanso muito maior do processo de globalizao (HALL, 2011). A

    quase totalidade das transaes econmicas agora so feitas eletronicamente, tanto operaes

    entre agentes como polticas monetrias. Ento, a elaborao de uma nova moeda precisaria

    necessariamente interagir dentro deste novo padro de negociao. Assim, alm de analisar os

    valores tericos da utilizao de uma moeda sem governo, busca-se compreender a utilidade

    que essa moeda teria na sociedade contempornea, uma vez que com a reduo dos custos de

    manuteno e o aumento da velocidade de comunicao, o cenrio atual tende a ser mais

    propcio para o funcionamento de um sistema com moedas descentralizadas em comparao

    com dcadas anteriores.

    A partir de uma perspectiva histria, contextualizando a origem da moeda e o seu

    desenvolvimento no decorrer do tempo, torna-se possvel apontar as mudanas e semelhanas

    entre a proposta de uma moeda virtual descentralizada e outras experincias monetrias de

    pocas passadas. Alm disso, uma contextualizao histrica permite apontar os fatores que

    levaram as moedas descentralizadas a surgirem no sculo XXI e no em pocas passadas,

    devido importncia que o avano tecnolgico tem ocasionado no crescimento das

    comunicaes e desenvolvimento de tecnologias computacionais.

  • 6

    2. METODOLOGIA

    O mtodo de construo do conhecimento deste trabalho realizado utilizando o

    processo de pesquisa exploratria, analisando fatos histricos atravs da leitura de ampla

    bibliografia (SALOMON, 2004). Realizando comparaes tericas e avaliando possveis

    desdobramentos do tema em anlise, sempre em sintonia com a teoria econmica e s

    referncias escolhidas.

    Em um primeiro momento demonstrando as caractersticas histricas e conceitos

    relacionados origem da moeda e seu desenvolvimento. Em seguida, uma segunda parte onde

    so tratados conceitos do mundo virtual, relacionando o desenvolvimento da internet com a

    digitalizao dos mercados financeiros, assim como uma anlise sobre os novos modelos de

    criao de conhecimento. Neste momento, j possvel explorar a moeda virtual Bitcoin P2P

    Digital Currency em sua interao com a economia e a abertura de novas formas de

    negociao. E uma terceira parte conclusiva onde discutidas questes a respeito do

    desenvolvimento dos mercados financeiros mundiais, explorando conceitos sobre economia

    descentralizada e as novas perspectivas em relao s moedas.

  • 7

    3. PARTE I: A MOEDA

    3.1 Viso Clssica

    A anlise sobre uma moeda digital no se resume somente ao horizonte terico das

    ltimas dcadas do nosso mundo contemporneo. preciso voltar origem das ideias e

    pensamentos que embasam o mundo atual, a fim de evidenciarmos os processos-chave que

    nos fazem interagir na economia do jeito que fazemos hoje. A moeda de qualquer pas possui

    uma evoluo histrica que muitas vezes passa despercebida em meio s incontveis

    transaes que perpetuam o sistema financeiro mundial. A moeda sempre teve a mesma razo

    para existir, seja na simplicidade da antiguidade ou na complexidade dos mercados

    financeiros atuais. Logo, antes de explorar o desdobramento das moedas virtuais devemos

    voltar ao passado e analisar a moeda em sua histria.

    A moeda surgiu como uma forma de facilitar as relaes comerciais entre os

    indivduos, funcionando como um meio de troca para transao de produtos. Por possuir a

    caracterstica de unidade de conta, foi possvel realizar o clculo exato das transaes; e por

    ser reserva de valor, a moeda se tornava um bem valioso e intercambivel em vrios

    territrios. A moeda precisava ser durvel, divisvel e fcil de ser portada e transportada pelas

    pessoas. E por se encaixarem perfeitamente nessas caractersticas que os metais preciosos

    foram amplamente utilizados para a confeco das moedas por tantos sculos em vrias partes

    do mundo (FERGUSON, 2008).

    Um dos primeiros indcios referentes origem da moeda tem como fonte a cidade de

    Ldia, localizada na antiga regio da Anatlia, atual Turquia, durante o sculo VII a.C.. As

    moedas eram compostas por um misto de ouro e prata, e possuam a imagem de um leo em

    referencia ao smbolo do Rei Alyattes. Nos sculos posteriores, houve a disseminao da

    utilizao de moedas para a Grcia e toda a regio do mediterrneo. A partir do momento que

    a moeda comeou a fazer parte da sociedade grega, a sua relao com a filosofia sempre

    esteve presente, onde vrios dos filsofos gregos questionavam a relao entre a moeda e a

    sua sociedade (RHODES, 2010).

    Ao voltarmos Grcia Antiga, encontramos os primeiros questionamentos sobre o

    funcionamento da moeda na economia e das relaes humanas da sociedade. Para Plato, o

    homem deveria ir contra as limitaes impostas pela natureza a fim de conseguir superar as

    suas dificuldades e atingir um patamar sem limites. J para os aristotlicos, o homem uma

    mera criatura como outra qualquer, no sendo eterno ou especial, mas sim mais um fator

  • 8

    advindo da ordem natural em que se deu o mundo. Onde a lei natural aristotlica j praticava

    o exerccio de ver o mundo de um ponto de vista lgico, usando princpios morais da natureza

    humana para elaborar teorias e motivos que levam o homem a ser o que (SHIELDS, 2012).

    Os Gregos viviam nas chamadas polis, que poderiam ser consideradas pequenas

    cidades-Estado, e remonta quela poca o incio de um processo de democracia. No uma

    democracia como temos hoje, pois apenas uma pequena parte da populao de fato escolhia

    os rumos da poltica da polis, mas foi este modelo que serviu sculos depois como exemplo

    para a formao dos Estados ocidentais modernos. Naquele perodo, alm do fomento de

    ideias de justia, moralidade e at mesmo de alquimia, o desenrolar do pensamento filosfico

    foi um extraordinrio avano de conhecimento que seria resgatado posteriormente pelos

    percussores do pensamento econmico, seja pelos escolsticos medievais ou por Adam Smith

    e David Ricardo. Mas mesmo naquela poca o impacto poltico que estes filsofos tinham

    sobre os acontecimentos da regio era considervel, o prprio Aristteles discpulo de Plato,

    discpulo de Scrates, foi mentor de quem anos mais tarde se tornaria um dos maiores

    conquistadores do mundo, Alexandre, o Grande (ROTHBARD, 2006).

    De acordo com Rothbard, depois de Aristteles a escola filosfica grega que merece

    mais destaque so os Estoicos, fundada por Zeno of Citium1, a qual tem como caracterstica

    mais marcante o estabelecimento sistemtico dos primeiros princpios de liberdade, tica,

    moralidade e ordenamento da esfera jurdica. Enquanto Plato e Aristteles desenvolveram

    suas filosofias em pleno contato com a polis grega, onde a verdadeira virtude humana era a

    prpria cidade-Estado (ROSSI; TIERNO, 2009, p. 201), com a queda e subjugao da polis

    aps Aristteles, os Estoicos comearam a desenvolver uma linha de pensamento muito mais

    livre, que via a lei natural de uma maneira muito mais aberta e universal. Para os Estoicos, as

    virtudes humanas em relao tica e aos direitos morais transcendiam as barreiras culturais e

    polticas, onde todos os seres humanos dotados de racionalidade deveriam agir e ser tratados

    da mesma maneira, no importando as ideologias ou regio geogrfica dos indivduos. O

    pensamento originrio dos Estoicos se manteve presente por muitos sculos e influenciou

    fortemente o Imprio Romano. Some Roman jurists declared that property rights were

    required by the natural law. The Romans also founded the law merchant, and Roman law

    strongly influenced the common law of the English-speaking countries and the civil law of the

    1 Zeno de Ctio, viveu entre 334 a.C. e 262 a.C. na Grcia.

  • 9

    continent of Europe (ROTHBARD, 2006, p. 23)2. O domnio quase total da Europa por

    Roma durante a primeira metade do primeiro milnio d.C. teve uma influncia gigantesca na

    concepo dessas regies, tanto na questo cultural, da linguagem e arte, assim como em

    relao poltica e aos moldes governamentais nas futuras naes do continente Europeu e

    posteriormente nas colnias do novo mundo.

    Durante o Imprio Romano, as moedas eram amplamente utilizadas, sendo forjadas

    com figuras importantes da poltica romana, normalmente estampando a face do imperador

    vigente em conjunto com figuras mitolgicas, como uma forma de legitimar o poder do

    Estado (CARLAN, 2007).

    As moedas no se restringiam somente regio mediterrnica, grega e romana, por

    mais que os indcios mostrem que a origem da moeda tenha sido dessas regies. Na antiga

    China, em aproximadamente 221 a.C., foi introduzidas moedas de cobre pelo imperador Qin

    Shihuangdi (FERGUSON, 2008, p. 24), o qual foi responsvel pela unificao e consolidao

    do imprio Chins. Foi da China tambm que se estruturaram algumas teorias que ficaram

    restritas e quase esquecidas quele territrio durante muitos sculos. Alguns pensadores da

    poca possuam certas noes de liberdade poltica e laissez-faire relativamente muito mais

    avanadas que os outros continentes sequer tiveram por muito tempo. I take no action yet the

    people transform themselves, I favor quiescence and the people right themselves, I take no

    action and the people enrich themselves (...) (ROTHBARD, 2006, p. 24)3, palavras de Lao

    Tzu, fundador da corrente de pensamento Taosta, o qual preconizava que o governo e as

    instituies funcionavam em um sentido que prejudicava as relaes sociais dos indivduos,

    reduzindo a felicidade e o livre arbtrio. Com uma viso radical, Lao Tzu defendia que todas

    as instituies de controle deveriam de fato ser abolidas e o Estado deveria adotar uma

    poltica de controle mnimo sobre a populao. The more artificial taboos and restrictions

    there are in the world, the more the people are impoverished... The more that laws and

    regulations are given prominence, the more thieves and robbers there will be (ROTHBARD,

    2006, p. 23-24)4. Segundo os Taostas, o mais correto a ser feito seria manter o governo de

    forma simples, para que as relaes sociais e econmicas se estabilizassem sozinhas.

    2 Traduo nossa: Alguns juristas romanos declararam que os direitos de propriedade eram justificados pela lei

    natural. Os romanos tambm fundaram a lei mercantil, e as leis romanas influenciaram fortemente as leis

    comuns dos pases de lngua inglesa e a lei civil do continente europeu.

    3 Traduo nossa: Eu no tomo nenhuma ao, mesmo assim as pessoas se transformam, eu favoreo a

    quiescncia e as pessoas se endireitam, eu no tomo nenhuma ao e as pessoas enriquecem sozinhas.

    4 Traduo nossa: Quanto mais tabus artificiais e restries existirem no mundo, mais as pessoas sero

    pobres... Quanto mais leis e regulamentos so colocados em destaque, mais ladres e assaltantes existiro.

  • 10

    A moeda foi o fator inicial facilitador das transaes comerciais, mas desde muito

    tempo existiram sistemas de crdito que por mais arcaicos que fossem, funcionavam para que

    as transaes fossem realizadas. Na regio da Mesopotmia, h cinco mil anos atrs, quadros

    de argila eram usados para anotar transaes da agricultura local e mostrar quem que devia

    para quem determinado produto e qual o preo negociado. Do ponto de vista do valor, as

    argilas, ou as moedas da antiga Ldia, o papel-dinheiro atual, ou as moedas virtuais, nada mais

    so do que uma conveno mtua de confiabilidade entre os indivduos que determinam se a

    moeda utilizada possui valor ou no (FERGUSON, 2008, p. 24).

    As pessoas utilizariam meros pedaos metlicos sem valores de uso precisos em troca

    de produtos e servios reais em uma economia? Este um dos fatores que envolvem o

    mistrio por trs das moedas, algo que vai alm das simples caractersticas fsicas do objeto

    de troca. O ouro, a prata, o dlar ou qualquer outro meio de troca utilizado somente adquire a

    funo de dinheiro no por causa de uma mudana fsica em suas caractersticas mas sim

    por causa de uma conveno social que adota estes objetos como representaes de valor.

    Este mistrio da moeda com o passar dos sculos tem se tornado cada vez maior,

    principalmente devido ao fim do padro-ouro e o aumento da digitalizao dos mercados

    financeiros (WHITE, 1999, p. 3).

    O economista austraco Carl Menger, elaborou uma explicao de como as moedas

    emergem espontaneamente e so adotadas pela populao em geral sem que algum tenha que

    de fato cri-las. Tudo se baseia em uma conveno social criada atravs das experincias de

    trocas adquiridas com o tempo. Em um mercado onde acontecem somente trocas diretas, ser

    muito difcil que cada vendedor com um produto diferente consiga troc-lo por outro que

    deseja. No exemplo de Menger, um vendedor A que deseja trocar aspargos por bacon somente

    realizar a transao se encontrar um segundo vendedor B que deseja trocar bacon por

    aspargos, algo que pode ser muito complicado dependendo do arranjo econmico do mercado

    em questo. Porm, a partir do momento em que vrios vendedores e compradores entrarem

    no mercado, com o passar do tempo determinada mercadoria ser a mais amplamente aceita

    pelos comerciantes. Pois, embora os vendedores estejam dispostos a trocar as suas

    mercadorias individuais por outras, existir alguma mercadoria em comum que a maioria dos

    outros vendedores tambm esto desejosos em adquirir. Deste modo, alguns vendedores

    analisando os moldes do mercado iro utilizar determinada mercadoria como seu principal

    meio de troca. Assim, atravs de uma conveno social, os demais comerciantes tambm

    percebero que determinada mercadoria est sendo amplamente aceita e a utilizaro, nascendo

    assim um sistema monetrio.

  • 11

    A teoria de Menger mostra que no preciso uma legislao ou consenso social

    explcito para tornar determinada mercadoria em dinheiro, este fenmeno acontece

    espontaneamente. A prpria concepo da unidade de conta tambm um fator que floresce

    socialmente, no sendo necessria uma deciso coletiva sobre quais os valores que devem ser

    atribudos a cada produto transacionado. Os vendedores sabero por si mesmos, ao analisar o

    mercado e os demais vendedores, quais devem ser o preo e a unidade de conta utilizada para

    as mercadorias que pretendem vender.

    A transio do meio de troca das mercadorias commodities para as moedas se deu por

    causa das propriedades fsicas dos metais e suas caractersticas que promoviam facilidade nas

    transaes. O exemplo mengeriano de trocas e da conveno social convergiu para a adoo

    de bens que facilitavam cada vez mais as relaes comerciais, surgindo ento o uso das

    moedas metlicas como dinheiro. O avano para mecanismos mais complexos de cunhagem

    vieram com o tempo, como uma forma de aumentar a autenticao das moedas, evitando

    assim a princpio a manipulao fraudulenta em seu contedo metlico.

    A cunhagem das moedas sempre esteve vinculada ao monoplio estatal que desde o

    incio das primeiras relaes comerciais monetrias esteve presente controlando o fluxo de

    dinheiro. Porm, segundo White (1999), no existem sinais de que a cunhagem devesse ser

    um monoplio natural. O autor destacada que muito do interesse do Estado por trs do

    monoplio no controle monetrio era com a inteno de adquirir os lucros advindos do

    processo de senhoriagem, onde a fabricao de moedas acaba por gerar ganhos devido ao

    baixo custo de produo em relao ao seu valor de mercado.

    3.2 Moeda em Roma

    O imprio Romano influenciou os hbitos, costumes e relaes sociais de grande

    parte da Europa e dos arredores do mar Mediterrneo durante muitos sculos. A forma como

    os romanos representavam o poder do Estado na cunhagem das moedas um fator

    interessante de ser observado, onde atravs do uso de imagens e smbolos mitolgicos ou

    religiosos o poder estatal sempre tentou colocar-se como um representante do poder divino.

    A cunhagem de moedas e sua utilizao em Roma se deram mais tardiamente que

    na Grcia e na sia. Um dos motivos destacados seria a falta de metais preciosos na regio,

    onde somente aps a segunda guerra Pnica que de fato foi introduzido moedas de prata para

    circulao. As moedas de ouro, denominadas de ureo, eram utilizadas primariamente como

    unidade de conta do que de fato para transaes comerciais dentro de Roma. Somente em

  • 12

    casos de comrcio com outras regies e povos do mediterrneo que o ouro era

    predominantemente utilizado (CARLAN, 2007, p. 112-114).

    O processo de cunhagem e fabricao das moedas que continham metais preciosos

    era restrito ao governo central romano, as demais provncias somente podiam cunhar moedas

    para utilizao interna se houvesse necessidade. Foram inmeras as reformas monetrias

    durante a glria romana. Segundo Carlan (2007), durante todo o perodo de dominao

    romana houve a variao do contedo metlico das moedas utilizadas, tendendo quase sempre

    para baixo. As reformas de aviltamento monetrio eram normalmente realizadas como uma

    forma do Estado gerar riquezas para subsidiar guerras e as despesas com o exrcito. A forte

    desvalorizao monetria gradativa durante sculos levou a um forte processo inflacionrio. A

    regio da Itlia no possua grandes reservas de metais preciosos, dessa forma o ouro e a prata

    vinham para Roma de outras regies, normalmente atravs dos saques e o domnio de outros

    povos. Porm, com a estagnao da expanso romana, comeou a ocorrer a falta de metais em

    seu territrio, fator que somado constante desvalorizao das moedas, um dos motivos

    apontados para o declnio do Imprio Romano.

    O fim da expanso romana levou escassez de mo-de-obra, onde conjuntamente

    com a consolidao do cristianismo e o constante avano dos povos brbaros sobre seu

    domnio, acabou resultando em uma modificao nas relaes de trabalho do imprio. Muitos

    proprietrios de terras comearam a libertar seus escravos e a fornecer a eles territrios em

    troca de parte da produo. Muitos camponeses livres que no podiam pagar os crescentes

    impostos, nem evitar saques de seus campos, abandonaram suas terras, colocando-se sobre a

    proteo de grandes latifundirios. Surgindo assim o colonato (CARLAN, 2007, p. 117-118),

    estes fatores resultariam, nos sculos subsequentes, na consolidao do feudalismo.

    Durante este perodo, existiu um forte embate entre as culturas antigas politestas

    e a religio crist, esta ltima consolidada como a religio oficial do Imprio Romano durante

    o governo de Teodsio I. O momento em questo acabava por ser representado nas moedas do

    perodo, com a substituio dos deuses antigos por elementos cristos. De certa forma, a

    numismtica nos mostra que a moeda por muito tempo serviu como um objeto que ia alm da

    funo econmica, identificando povos e naes, assim como servindo de instrumento de

    legitimao emblemtica do Estado, como ressaltado por Florenzano (1997):

    um instrumento que atua na esfera do econmico, mas de um econmico

    que no desvinculado da esfera social, poltica e religiosa. Ao contrrio, a

    multiplicidade de usos - polticos, financeiros, religiosos/mgicos -

    identificada pelos especialistas na moeda, oferece sustentao para uma

  • 13

    viso de uma sociedade na qual os aspectos econmicos, polticos e

    religiosos aparecem sobrepostos. Desta forma, a moeda adquire um

    significado importante como suporte de uma nova maneira de pensar o

    mundo, o poder, a vida em sociedade, maneira de pensar (...)

    (FLORENZANO, 1997, p. 192).

    A moeda pode ser encarada como smbolo que demonstrava tanto fatores sociais

    como polticos de uma era. Como identificado por Carlan (2012, p. 68), a moeda era definida

    "como um monumento oficial a servio do Estado." A humanidade possua a necessidade de

    se identificar atravs de smbolos e as moedas serviram para essa funo com plenitude.

    Durante momentos onde a troca de informaes era limitada, a estampa das moedas era a

    forma mais promissora de propaganda. Como explorado pelo o filsofo alemo Ernst

    Cassirer, antes de se identificar o ser humano como animal rationale, este deveria ser definido

    como um animal symbolicum5, onde atravs do uso de smbolos, poderia depreender

    interpretaes sobre a poca e a formao de determinadas naes, culturas e crenas. Em um

    mundo onde existia forte analfabetismo, os smbolos desempenhavam uma funo primordial

    de linguagem, utilizando do visual como principal forma de transmitir informaes, e nada

    mais representativo do que a prpria moeda, que alm de representar a riqueza e prosperidade,

    era utilizada cotidianamente por todas as pessoas da nao nas mais simples trocas

    comerciais. Como explicado por Hayek (1990): The coins served, indeed, largely as the

    symbols of might, like the flag, through which the ruler asserted his sovereignty, and told his

    people who their master was whose image the coins carried to the remotest parts of his

    realm (HAYEK 1990, p. 29)6.

    De acordo com o Gibbon (2008), a Roma antiga perdurou por aproximadamente

    doze sculos, passando pelo controle monrquico, pela repblica romana, at se consolidar

    como um Estado autocrtico. Muitos foram os embates polticos e administrativos da regio,

    principalmente durante o declnio do Baixo imprio que se estendeu entre os sculos III e V,

    onde Roma foi assolada por revoltas internas e crises econmicas. Durante o sculo III, houve

    intensas mudanas de imperadores durante um curto perodo de tempo, alguns que

    governaram por poucos anos ou meses, fator que mostra a instabilidade do perodo. Os limites

    geogrficos do imprio ficaram desprotegidos, uma vez que os imperadores se importavam

    5 Aristteles se referia ao ser humano como um animal rationale (animal racional), j Ernst Cassirer definiu o

    novo conceito de animal symbolicum que se referia ao ser humano como um ser diretamente influenciado pelos

    smbolos historicamente criados em todos os aspectos da sua experincia.

    6 Traduo nossa: As moedas serviram de fato, em grande parte como os smbolos do poder, como a bandeira,

    atravs do qual o governante afirmou sua soberania, e disse a seu povo quem era o seu mestre, cuja imagem as

    moedas transportavam para as partes mais remotas do reino.

  • 14

    mais com a retomada do poder do que com a manuteno do territrio. Somente com a

    ascenso de Diocleciano como imperador em 284 D.C. e a instaurao da Tetrarquia, que

    dividia o imprio em quatro regies administradas por imperadores distintos, que houve a

    volta da estabilidade poltica. Porm, com a nomeao de Constantino em 306 D.C. como

    Augustus e imperador da Tetrarquia referente Bretanha, Glia e Espanha, novamente houve

    a disputa interna pelo poder. Constantino guerreou com os demais membros da Tetrarquia at

    concentrar todo o poder do imprio sob seu controle, desse modo revitalizou a cidade de

    Bizncio na parte leste do imprio, a qual ficou mais conhecida como Constantinopla. O

    imperador Constantino foi o primeiro imperador a se converter ao cristianismo e a fomentar o

    livre culto da religio crist em territrio romano, principalmente aps o dito de Milo7.

    O declnio do Imprio Romano do Ocidente se deu por vrios motivos, tanto do

    ponto de vista econmico com a deteriorao do valor das moedas devido s constantes

    reformas monetrias, quanto com o avano brbaro e huno que dominou seus territrios e

    enfraqueceu os exrcitos; as novas crenas crists tambm repercutiram na forma como os

    romanos viam as guerras, no mais to dispostos a abrir mo da prpria vida pelo Estado. Mas

    foi somente em 476 D.C., marcado historicamente como o fim do Imprio Romano e incio da

    Idade Mdia, onde Flavius Odoacer, um comandante brbaro, matou o ltimo imperador

    romano do ocidente, Romulus Augustus, e se tornou Rei da Itlia. J o Imprio Romano do

    Oriente, que possua a cidade de Constantinopla como poder central e administrativo do

    imprio, perdurou por aproximadamente mais mil anos, permanecendo como o reino cristo

    mais estvel durante a Idade Mdia (GIBBON, 2008).

    3.4 Comrcio Medieval

    Apesar do declnio romano e a queda de Roma aps o sculo V, o comrcio do

    Mediterrneo pouco foi afetado pelo domnio brbaro da regio, o que se deu na verdade foi a

    intensificao e o aumento do comrcio em cidades porturias como Veneza, Gnova e

    Marselha. A cada sculo, estas cidades se tornavam mais importantes, virando verdadeiros

    centros comerciais que serviam de ligao entre as mercadorias do oriente e do ocidente.

    Porm, a Idade Mdia foi em muitas regies um perodo de estagnao. Com a

    transformao do colonato em regime feudal, as relaes tanto econmicas quanto sociais

    7 O dito de Milo (313 d.C.), tambm referenciado como dito da Tolerncia, declarava que o Imprio

    Romano seria neutro em relao ao credo religioso, acabando oficialmente com toda perseguio sancionada

    oficialmente, especialmente do Cristianismo (DITO DE MILO, 2013).

  • 15

    ficaram restringidas aos limites do feudo. Pouco era comercializado, prevalecendo a simples

    troca de subsistncia entre as pessoas de cada feudo.

    A mudana e crescimento do comrcio na Europa, com o estabelecimento de outras

    cidades comerciais alm das porturias, aconteceram de forma gradativa no decorrer dos

    sculos. Os acordos firmados entre os comerciantes e os reis ou senhores feudais para o

    estabelecimento de feiras em determinadas rotas foi um dos fatores que levaram ao

    crescimento de cidades como Poix, Lagny, Provins e Troyes (HUBERMAN, 1985, p. 30). Na

    regio de Champagne na Frana, por exemplo, eram realizadas feiras semanais e anuais onde

    eram trocadas mercadorias de vrias regies distintas, principalmente mercadorias asiticas

    que eram amplamente cobiadas e possuam preos altos; tudo isso acontecia em um local de

    salvo-conduto onde os comerciantes podiam transitar livremente e os impostos no eram

    exagerados. Em um momento onde as estradas eram precrias e os saques eram frequentes, o

    estabelecimento de um local comum para a realizao do comrcio, com as devidas

    salvaguardas do rei, era de fato necessrio.

    A moeda teve novamente um papel importantssimo durante este perodo, como uma

    herana romano-bizantina. O sistema monetrio dos reis francos se assemelhava ao modelo de

    Roma, mantendo as mesmas caractersticas de cunhagem e os seus valores simblicos

    (PIRENNE, 1973, p. 18). Dessa forma, as feiras da Idade Mdia concentravam vrios

    comerciantes de vrias regies distintas, consequentemente com moedas diferentes. Logo,

    surgiu a classe dos trocadores de dinheiro, que se estabeleciam nas feiras e ficavam medindo e

    pesando as moedas e realizando as trocas cambiais necessrias para o comrcio. Como

    afirmado por Huberman (1985): As feiras tinham, assim, importncia no s por causa do

    comrcio, mas porque a se efetuavam transaes financeiras (HUBERMAN 1985, p. 33).

    Foi neste perodo em que houve o nascimento da classe dos bancrios e o aperfeioamento

    das operaes financeiras.

    Talvez uma das cidades medievais que merea mais destaque em seu desenvolvimento

    foi a cidade italiana de Veneza. Com seu canal aberto para o mar Adritico, em uma

    localizao que servia de entrada para a Europa, a cidade se tornou um verdadeiro centro

    comercial e onde ocorreu imensos avanos em relao financeirizao do comrcio. Como

    destacado por Richard Sennett (2010), em seu livro Carne e Pedra, a cidade de Veneza era

    mantida majoritariamente pelas atividades comerciais e principalmente pelos estrangeiros que

    frequentavam-na. Dessa forma, existia uma grande variedade de etnias na regio, onde todos

    precisavam um do outro para realizar seus negcios.

  • 16

    Um dos exemplos clssicos a grande populao de judeus que residia em Veneza e

    era de extrema importncia para a vitalidade das operaes financeiras. Pois, como a religio

    crist condenava fortemente a usura, e a religio judaica era mais branda em relao ao

    emprstimo de dinheiro e sua posterior cobrana com juros, os judeus acabavam por

    desempenhar a funo chave de fornecedores de crdito. Funo realizada pelo personagem

    Shylock em O Mercado de Veneza de William Shakespeare e que na atualidade realizada

    por bancos, governos ou empresas privadas e de grande importncia para o fomento do

    comrcio.

    Mas importante ressaltar que o convvio entre judeus e cristos em Veneza no foi

    amigvel. Desde que os cristos culparam os judeus pela morte de Jesus, sempre houve

    embates entre as duas religies, muitas vezes sangrentos atravs dos pogrons8 que perduram

    at os dias atuais. Assim, os judeus de Veneza podiam frequentar a pequena ilha para realizar

    os afazeres comerciais, mas ao anoitecer tinham que se deslocar para uma parte reservada da

    ilha, lugar que ficou conhecido como o Gueto Judeu de Veneza, onde os portes eram

    trancados e de l eles somente poderiam sair no dia seguinte. Como destacado por Sennett

    (2010): Os corpos judaicos pareciam abrigar uma mirade de doenas decorrentes das suas

    praticas religiosas. Pouco antes de 1512, Sigismondo de `Contida Foligno relacionou a sfilis

    lepra, considerando-as doenas do judasmo (...) (SENNETT 2010, p. 231). Existiam fortes

    preconceitos entre as duas religies, principalmente depois do Conclio de Latro, de 1179,

    onde novas sanes foram impostas contra os judeus pela Igreja Catlica. Mas os

    representantes do governo da cidade de forma alguma acataram o fervor religioso em prol da

    expulso dos judeus de Veneza, principalmente pelos motivos econmicos que faziam-nos

    serem fundamentais para o funcionamento da cidade. Alm das altas taxas de impostos pagos

    pelos judeus, segundo as palavras de um cidado venezience influente: judeus so mais

    necessrios que os banqueiros, que, alis, no passam sem eles (SENNETT, 2010, p. 235).

    Outro fator a ser considerado neste perodo foi o avano do conhecimento cientfico e

    principalmente da matemtica, que possibilitou novas formas de clculos e consequentemente

    afetou as relaes econmicas do perodo. Leonardo de Pisa, mais conhecido como Fibonacci,

    aprimorou os clculos utilizando algarismos indianos e rabes como concepo numrica,

    tornando os clculos mais rpidos do que utilizando o antigo modelo com caracteres romanos.

    8 Pogrom um ataque violento macio a pessoas, com a destruio simultnea do seu ambiente (casas,

    negcios, centros religiosos). Historicamente, o termo tem sido usado para denominar atos em massa de

    violncia, espontnea ou premeditada, contra judeus, protestantes, eslavos e outras minorias tnicas da Europa,

    porm aplicvel a outros casos, a envolver pases e povos do mundo inteiro (POGROM, 2012).

  • 17

    Grande parte desses conhecimentos foram publicados em seu livro, Liber Abaci em 1202, que

    continha informaes sobre contabilidade e ajudou a melhorar as finanas da poca. Finanas

    essas que foram muito bem utilizadas por Giovanni di Bicci de' Medici e que colocaram o

    sobrenome Medici como uma das famlias mais ricas e importantes da Europa nos sculos

    XIV e XV.

    Giovanni de' Medici explorou as oportunidades do mercado de converso de moedas,

    cobrando uma comisso pela troca de uma moeda por outra. Alm disso, fornecia letras de

    cmbio que funcionavam como meios de pagamento quando um mercador precisasse pagar

    outro sem possuir o dinheiro no momento, sendo o incio do sistema de crdito que

    conhecemos hoje. Foi neste perodo em que houve o nascimento dos primeiros bancos, sendo

    o banco dos Medici o mais respeitado da Europa durante o auge de sua dinastia. Em pouco

    tempo a famlia Medici j oferecia os seus servios financeiros nas principais cidades da

    Europa, entre elas Londres, Genebra, Veneza e Florena (FERGUSON, 2008, p. 41-50).

    Este foi o momento onde aconteceu a introduo dos primeiros papis-moedas na

    Europa, que funcionavam dando o direito de quem os possusse de troc-los por ouro ou prata

    nos bancos, ou seja, era a representao de determinada quantia em papel que poderia ser

    trocada por metais preciosos. Dessa forma, o papel-moeda oferecia um mtodo mais prtico e

    seguro para as transaes financeiras, no sendo mais necessrio o transporte de ouro fsico

    para a realizao do comrcio. Com o avano do sistema bancrio e a confiabilidade de

    solvncia que as pessoas desenvolveram em relao aos bancos, logo esses papis-moedas

    comearam a servir como o prprio meio de pagamento. Esta nova forma de moeda, com seu

    valor corporificado no papel-moeda abriu a sociedade para novas formas de negociaes

    financeiras, possibilitando, por exemplo, a criao da moeda fiduciria, que no era mais

    lastreada pelos metais preciosos, fato que se mostrou um dos maiores avanos na evoluo

    histrica da moeda (LOPES e ROSSETTI, 1998, p. 32). Por estes motivos, como destacado

    por McLuhan (2002):

    O homem abandonou o mundo da tribo pela sociedade aberta, trocando um ouvido por um olho atravs da tecnologia da escrita. O alfabeto,

    particularmente, habilitou-o a romper o crculo mgico e encantado, sonoro,

    do mundo tribal. Em tempos mais recentes, graas palavra impressa e

    passagem da moeda metlica para o papel-moeda, um processo similar fez

    com que a economia mudasse de uma sociedade fechada para uma sociedade

    aberta, do mercantilismo e do protecionismo econmico do comrcio

    nacional para o mercado aberto ideal do livre cmbio (MCLUHAN, 2002, p.

    88).

  • 18

    Desde seu nascimento, a moeda foi um objeto quase que inteiramente de

    responsabilidade do Estado, que utilizava-a como bem entendesse. Mas a validade do uso de

    uma moeda nacional para as negociaes somente comeou a ser uma preocupao maior

    com o avano do comrcio. Na Europa, durante a Idade Mdia, os comerciantes e a populao

    em geral sofriam com as usurpaes dos senhores feudais, devido aos altos impostos ou

    constantes conflitos armados entre um feudo e outro. Foi assim que a figura do Rei,

    centralizador do poder, comeou a se consolidar, assim como as delimitaes dos Estados

    Nacionais. Era evidente aos soberanos que seu poder dependia das finanas. Tornava-se cada

    vez mais claro tambm que o dinheiro s flua para as arcas reais na medida em que o

    comrcio e a indstria prosperavam (HUBERMAN, 1985, p. 83). Dessa forma o acordo

    mtuo entre comerciantes e os Reis beneficiava a ambos, uma vez que ajudava os interesses

    do poder real com o fluxo de dinheiro advindo de impostos recolhidos da burguesia e

    beneficiava os comerciantes em geral com melhores oportunidades de comrcio resultante da

    centralizao do poder.

    A burguesia comeou a fazer parte do processo administrativo do poder real e a

    influenciar nas tomadas de decises, utilizando sua influncia social e sua riqueza para atingir

    a esfera poltica e ampliar seus privilgios econmicos. A substituio de vrias moedas por

    apenas uma, alm do fim do monoplio regional dos senhores feudais, facilitaram o avano

    comercial e tambm o avano do processo industrial que comeava a se consolidar. Este

    modelo poltico monrquico absolutista seria substitudo em muitos pases nos sculos

    subsequentes pelo parlamentarismo ou presidencialismo, porm o modelo econmico da

    utilizao de moedas nacionais perdura at os dias atuais.

    3.5 Liberdade e o Capital

    3.5.1 Padro-ouro

    Com o avano da consolidao dos Estados nacionais e a maior complexidade das

    relaes comerciais entre um pas e outro, a economia comeava neste momento ps-

    renascimento a se tornar cada vez mais conectada, onde um pas acabava por influenciar os

    preos em outro pas devido ao comrcio e as transaes em ouro. Foi dessa forma que os

    tericos da poca, os quais podem ser definidos com os primeiros a desempenhar a funo de

    economistas, como Adam Smith, Cantillon, Hume, Ricardo, Thornton, Mill, Cairnes,

    Goschen e Bagehot forneceram a base terica para o desenvolvimento do conhecimento que

  • 19

    daria incio a criao do padro-ouro como uma forma de controlar os nveis de inflao e

    deflao dos pases (BORDO; SCHWARTZ, 1984).

    Como teorizado por David Hume em seu ensaio Of the Balance of Trade, o padro-

    ouro tinha o objetivo de equilibrar o balano de pagamentos das principais economias do

    mundo. Atravs do comprometimento de manter o cambio fixo determinada quantidade de

    ouro, os pases realizavam polticas monetrias de exportao ou importao de ouro caso

    houvesse um dficit ou supervit no balano de pagamentos. A oferta monetria de cada pas

    era definida pela quantidade de reservas em ouro que este possusse, desse modo se um pas

    fosse deficitrio no seu balano de pagamentos, este deveria exportar ouro para os pases que

    fossem superavitrios. Dessa forma, esta exportao de ouro diminuiria a sua oferta interna de

    moeda, forando uma contrao da base monetria, o que consequentemente levaria a uma

    queda nos preos, aumentando a competitividade das mercadorias desse pas em relao s

    demais economias mundiais. O inverso deveria acontecer para pases que fossem

    superavitrios.

    O padro-ouro era uma forma de manter a estabilidade dos nveis de preos entre as

    principais economias do mundo usando como referncia o valor do ouro e a quantidade que

    cada pas possusse. A validez do padro-ouro foi discutida pelas diversas escolas de

    economia, discusso esta que perdura at os dias de hoje. Cada vertente econmica possui

    uma tica para analisar a questo do padro-ouro e o modo como este se desenrolou durante

    os ltimos trs sculos, desde a mudana para o ouro-libra, ouro-dlar e posteriormente para o

    dlar-flexvel. A maior crtica em relao ao padro-ouro como sistema monetrio a questo

    de colocar toda a oferta monetria de um pas referenciada por apenas uma commodity, que

    est sujeita a mudanas em sua oferta e demanda constantemente. Porm, o abandono do

    padro-ouro, em especial o abandono do ouro-dlar e o desmantelamento do acordo de

    Bretton Woods em 1971 pelo governo Nixon, colocou a economia mundial em srios

    problemas de estabilidade. Pois retirando o lastro em ouro, o balano de pagamentos dos

    pases passou a ser equilibrado utilizando majoritariamente reservas em dlar. Como

    apontado por Serrano (2002):

    No ltimo caso no h mais por que temer uma fuga para o ouro, pois o novo

    padro dlar inteiramente inconversvel, baseado na premissa de que um

    dlar is as good as one dollar, premissa ancorada no poder do Estado e da economia americana no mundo unipolar ps-guerra fria. Como o dlar o

    meio de pagamento internacional e a unidade de conta nos contratos e nos

    preos dos mercados internacionais, acaba por se tornar tambm a principal

    reserva de valor (SERRANO, 2002, p. 250-251).

  • 20

    Desse modo a economia mundial passou a operar atravs de um regime de dlar

    flexvel, fator que favoreceu fortemente a situao financeira norte-americana, possibilitando

    que os Estado Unidos no perdessem competitividade real. Pois, se ocorresse a valorizao do

    dlar, existiria a perda de competitividade, porm como no existe mais restrio externa

    devido a no mais conversibilidade de dlar em ouro, o dficit em conta corrente pode

    aumentar indefinidamente e ser financiado com os prprios ttulos norte-americanos

    (SERRANO, 2002).

    Durante o desenrolar da dcada de 1960 e 1970 foram fortes as presses externas pelas

    demais economias mundiais para a criao de uma moeda verdadeiramente internacional, mas

    isto era algo inaceitvel no momento para os Estados Unidos, pois abrir mo do dlar como

    moeda internacional ocasionaria a perda da liberdade do balano de pagamentos norte-

    americano e incorreria no enfraquecimento do dlar e do seu prprio poder poltico

    mundialmente.

    De acordo com Serrano (2002), a transio para o dlar flexvel levou a

    desestabilizaes na esfera geopoltica mundial na dcada de 1970, ocasionando a forte

    especulao no preo das commodities que resultou nos choques do petrleo. Somente no fim

    da dcada e incio dos anos de 1980 que os Estado Unidos voltam a recuperar gradativamente

    o poder do sistema monetrio internacional. Os demais pases comeam a partir desse

    momento a no mais questionar o poder hegemnico monetrio americano e passam a aceitar

    o dlar-flexvel como o novo padro financeiro internacional. Assim, o dlar passou a ser a

    moeda central para todas as grandes transaes internacionais. Mas a centralidade de uma

    moeda algo, como explicado por Hicks (1989), questionvel:

    Centrality and strength do not necessarily go together. Centrality is not

    acquired by a decision of the 'central' government, or of its banking system;

    it comes from decisions by others, who choose to make the currency of that

    country their chief 'international'. No doubt it is unlikely that such a choice

    would have been made unless the central currency, at the time it became

    central, had been a strong currency; but it could continue to be central,

    having no obvious rival, even when it was losing its strength. So there are

    several cases which fall to be considered, the chief division being between

    those where the strength of the central currency in unquestioned, and those

    where it is in doubt (HICKS, 1989, p. 130)9.

    9 Traduo nossa: Centralidade e fora no andam necessariamente juntas. Centralidade no adquirida por

    uma deciso do governo 'central', ou do seu sistema bancrio; ela vem das decises de outros, que optam por

    fazer a moeda daquele pas sua referncia 'internacional'. Sem dvida, improvvel que tal escolha teria sido

    feita a menos que a moeda central, no momento em que se tornou central, no tivesse sido uma moeda forte; mas

    ela poderia continuar a ser central, no tendo uma rival bvia, mesmo quando estivesse perdendo sua fora.

  • 21

    Ora, o dlar foi amplamente aceito pelas demais economias mundiais no apenas pela

    imposio subliminar americana, mas porque de fato o dlar era a melhor moeda a ser

    utilizada nas ltimas dcadas para funcionar com centralidade.

    3.5.2 Viso Austraca

    Quando se trata sobre questionamentos em relao ao padro-ouro e mais

    recentemente em relao ao dlar-flexvel, a Escola Austraca de Economia trata a questo de

    forma polmica. Muitos autores descrevem que o abandono do padro-ouro no foi devido a

    sua ineficcia, mas porque ele era eficaz demais na regulao e no controle das aes

    governamentais. Apontando que a transio e abandono deste antigo modelo econmico foi

    resultado de uma motivao muito mais ideolgica e poltica do que de fato cientfica.

    Friedrich Hayek, que foi um defensor do antigo padro-ouro, foi mais alm em relao

    s liberdades monetrias do livre mercado e do fim do monoplio do Estado sobre a emisso

    de moeda. Em seu livro de Denationalisation of Money, Hayek expe um modelo onde

    instituies privadas poderiam emitir suas prprias moedas em um ambiente de concorrncia,

    onde cada instituio estaria competindo pela maior estabilidade possvel de sua moeda.

    Hayek sempre viu a inflao como um grande problema, por atrapalhar o sistema de livre

    mercado. Com o abandono do padro-ouro original e a maior desregulamentao financeira

    que decorreu no sculo XX, Hayek desenvolveu a sua teoria de moedas privadas como uma

    tentativa de estabelecer um novo modelo monetrio baseado em princpios de livre mercado

    onde no fosse mais necessrio o monoplio estatal para a emisso de moedas. Como

    explicado pelo autor:

    ...though there is every reason to mistrust government if not tied to the gold

    standard or the like, there is no reason to doubt that private enterprise whose

    business depended on succeeding in the attempt could keep stable the value

    of a money it issued (HAYEK, 1990, p. 36)10

    .

    Assim existem vrios casos que podem ser considerados, onde a diviso principal est entre aquelas em que a

    fora da moeda central inquestionvel, e aquelas em que existem dvidas.

    10 Traduo nossa: ...contudo existem vrias razes para desconfiar do governo se no vinculado ao padro-ouro

    ou similar, no h nenhuma razo para duvidar de que empresas privadas cujo negcio depende de seu sucesso

    poderiam manter estvel o valor da moeda que emitiram.

  • 22

    Como descrito neste trabalho, nas primeiras sees, a posio do governo como nico

    emissor de moeda algo inerente histria do capitalismo, posio que evoluiu desde os

    primrdios da antiga Ldia at tempos atuais. O que Hayek tentou desenvolver foi a ruptura

    deste modelo, apresentando uma forma alternativa de um sistema monetrio. A principal

    crtica apresentada pelo autor era a de que o governo um agente facilmente suscetvel ao

    favorecimento de grupos de interesses. Desse modo colocar o poder de emitir moeda e

    consequentemente as diretrizes econmicas de um pas nas mos de poucos indivduos seria

    algo perigoso (HAYEK, 1990, p. 31). Alm disso, Hayek se posiciona contra o conceito da

    moeda de curso forado, legal tender, ou seja, onde a moeda utilizada em determinado pas

    imposta por lei, alegando que isto funciona como um instrumento que fora as pessoas a

    terem que aceitar esta moeda como meio de pagamento, indo contra princpios de contratos

    livres e voluntrios entre os indivduos.

    Murray Rothbard, tambm membro da Escola Austraca, questionou fortemente o

    modelo de moedas privadas de Hayek, afirmando que no existiria razo econmica para que

    estas novas moedas fossem aceitas. Rothbard destaca que diferentemente das outras

    mercadorias, o dinheiro somente desejado com a finalidade de ser trocado por outras coisas,

    funcionando como um meio de troca. Dessa forma se todos os indivduos tivessem a

    habilidade de criar moedas privadas dentro da lgica desenvolvida por Hayek, no existiria

    motivo para estas moedas serem aceitas, pois ningum ir aceitar uma moeda que no tenha

    antes funcionado como dinheiro e tenha sido amplamente utilizada pela sociedade. Isto,

    segundo Rothbard, seria uma das falhas de Hayek na elaborao de seu modelo,

    negligenciando o teorema de regresso, regression theorem, desenvolvido por Von Mises em

    1912. O modelo estabelecido por Mises preconizava que qualquer forma de dinheiro somente

    ser aceito pelos indivduos se este tenha sido anteriormente uma commodity, ou a

    representao de uma, pois o dinheiro no pode surgir do nada, sem possuir uma base de

    valor. Dessa forma, o dinheiro precisaria surgir de uma commodity no-monetria que

    possusse algum valor antes de virar dinheiro, como aconteceu com o ouro e a prata

    (ROTHBARD, 1985).

    A filosofia liberal defende a liberdade econmica do ponto de vista da cooperao

    social, ou seja, onde os indivduos atravs da competio catalctica11

    acabam por cooperar

    mutuamente, sem mesmo perceberam, em prol de um bem maior. A noo de liberdade

    11

    A funo social da competio catalctica, certamente, no a de estabelecer quem o mais destro, e recompens-lo com ttulos e medalhas. Sua funo garantir a maior satisfao possvel do consumidor numa

    dada situao das condies econmicas (MISES, 1987, p. 52).

  • 23

    tambm algo importante em seus preceitos. Segundo Ludwig Von Mises, o significado de

    liberdade se refere s relaes inter-humanas que seguem as leis da praxeologia, onde o ser

    humano comporta-se perante os demais indivduos da sociedade de forma a no prejudicar a

    ordem social. Mises, assim como Hayek e demais membros da Escola Austraca, defende a

    limitao do poder do Estado sobre os indivduos, como destacado em seu livro O Mercado:

    O Estado, o aparato social de coero e compulso, necessariamente um

    poder hegemnico. Se o governo tivesse a possibilidade de expandir o seu

    poder ad libitum, poderia abolir a economia de mercado e substitu-la por um

    socialismo totalitrio onipresente. Para evitar isso, necessrio controlar o

    poder do governo (VON MISES, 1987, p. 64).

    Mas como ressaltado por Milton Friedman (1985), existe a necessidade de haver um

    governo para ditar as regras do jogo e assegurar o cumprimento destas por todos os

    participantes da sociedade. A liberdade de um indivduo pode afetar a liberdade de outro,

    dessa forma necessrio estabelecer limitaes para manter a ordem social e estas limitaes

    devem ser executadas por um rbitro comum e imparcial, que no caso representado pelo

    poder da justia do Estado. Como o autor destaca: Por mais atraente que possa o anarquismo

    parecer como filosofia, ele no praticvel num mundo de homens imperfeitos

    (FRIEDMAN, 1985, p. 32).

    Ao contrrio dos argumentos expostos por Hayek, Friedman defende que o governo

    deve ser utilizado para manter o sistema monetrio estvel e assegurar uma economia livre,

    possuindo responsabilidades sobre as polticas monetrias e fiscais de um pas. Porm, a

    possibilidade de controlar o dinheiro proporciona o poder de alterar a economia e isto leva a

    questo de como deve ser realizada a concentrao e disperso do poder. Como destacado por

    Friedman (1985):

    O problema consiste em estabelecer organizaes institucionais que

    permitam ao governo exercer a responsabilidade pelo dinheiro limitando ao mesmo tempo o poder assim dado ao governo e evitando que este poder

    seja usado de modo a levar ao enfraquecimento em vez de ao fortalecimento uma sociedade livre (FRIEDMAN, 1985, p. 45).

    Mesmo dentro da esfera de discusso da Escola Austraca, a questo sobre como o

    governo deve abordar as suas funes perante a sociedade variam segundo a concepo de

    cada autor, alguns mais extremos que outros. Possivelmente o extremismo nesse gnero

    retratado pelos chamados de anarco-capitalistas, tendo como um de seus adeptos David

    Director Friedman, ningum menos que o prprio filho de Milton Friedman.

  • 24

    David Friedman em seu livro The Machinery of Freedom explora as formas de

    como uma sociedade orientada pelo Estado mnimo funcionaria. Segundo ele os anarco-

    capitalistas, ou como se autodenominam libertrios, promovem uma sociedade onde cada

    indivduo seria livre em fazer suas prprias escolhas, escolhas essas que em uma sociedade

    capitalista convencional seriam guiadas pelos interesses do governo. Dessa forma, o anarco-

    capitalismo se baseia no princpio da propriedade privada e da total liberdade dos seres

    humanos em relao ao modo como desejam viver, contanto que a liberdade de um indivduo

    no interfira negativamente na liberdade de outro. Assim, questes como o uso de drogas,

    pornografia e at mesmo o uso no compulsrio de cinto de segurana, seria algo totalmente

    escolha de cada indivduo da sociedade (FRIEDMAN, 1989).

    Como defensores de um sistema de livre mercado aos moldes capitalistas, na

    sociedade anarco-capitalista todos os servios seriam fornecidos atravs da competio de

    empresas privadas, seja questes como segurana, regulao de leis e at mesmo o sistema

    monetrio. O Estado, segundo os preceitos anarco-capitalistas, uma fonte de violncia

    desmesurada, pois pode utilizar sua fora contra indivduos que no tenham cometido crimes

    ou fraudes. Dessa forma, sempre houve o embate terico entre o libertarismo e o socialismo,

    por serem regimes antagnicos. Os pensadores liberais utilizaram de exemplo todos os

    preceitos negativos do socialismo desenvolvido durante o sculo XX para demonstrar o quo

    prspera em questes de liberdade e desenvolvimento econmico uma sociedade baseada no

    Estado mnimo poderia oferecer. Eugen von Bhm-Bawerk em seu livro Teoria da

    Explorao do Socialismo Comunismo demonstra que qualquer renda que no fruto do

    trabalho, aluguel ou lucro, est em risco de ser uma injustia econmica. Friedrich Hayek em

    O Caminho da Servido tambm explorou questes sobre como uma sociedade regida pela

    centralizao do poder levaria a um governo tirnico e sujeio dos indivduos.

    3.5.3 Moeda privada na Amrica do Norte

    Apesar de esquecida no desenrolar histrico do desenvolvimento das Amricas, o

    modelo de uma moeda privada, emitida por bancos e sem o controle estatal, vingou por

    muitos anos nos Estados Unidos durante o perodo denominado de Free Banking na poca

    pr-Guerra de Secesso.

    Na regio da Nova Inglaterra, mais precisamente na cidade de Boston, o Suffolk Bank

    foi criado com a inteno de trocar notas de bancos menores por notas emitidas por eles,

    concebendo uma das primeiras moedas privadas da histria a funcionar com eficcia. Esta foi

  • 25

    a soluo encontrada depois de constatado a grande ineficincia das notas emitidas por bancos

    menores de outras regies do pas. Como um governo central ainda no estava totalmente

    consolidado, vrios bancos espalhados pelo pas tinham o poder de emitir notas bancrias

    lastreadas ao ouro guardado em seus cofres. Tendo em vista o caos que permeava o pas

    durante aquela poca, saber exatamente qual era o valor em ouro ou prata que uma nota

    bancria possua era algo complicado, pois muitos dos bancos emissores estavam em lugares

    longnquos. Muitos desses bancos menores emitiam mais notas do que de fato possuam em

    ouro, fazendo com que os comerciantes no soubessem ao certo o valor que o dinheiro valia.

    Desse modo, o Suffolk Bank nasceu da unio de comerciantes poderosos de Boston

    que tinham a inteno de realizar o servio de trocar as notas bancrias dos bancos menores

    por suas prprias, inserindo moedas privadas na economia da regio. Como as notas emitidas

    pelos bancos menores incorriam em informaes assimtricas em relao ao seu exato valor,

    o Suffolk Bank oferecia o servio de troc-las por suas prprias notas bancrias, que eram

    consideradas solventes, e reenviar as outras notas de volta aos bancos emissores para

    amortizao (ROLNICK; SMITH; WEBER, 2000).

    Em resumo o Suffolk Bank pode ser definido como uma central de depsitos de

    reservas que realizava a compensao de notas de outros bancos menores, uma espcie de

    clearing house. Realizando seu servio, o Sulffolk Bank acabou trazendo um perodo de

    estabilidade monetria para a regio da Nova Inglaterra durante os anos em que o banco

    operou. Durante a crise de 1837, grande parte das regies norte-americanas sofreu fortemente

    com o desemprego, quebra de bancos e preos cadentes. Porm, as regies onde grande parte

    das transaes era realizada atravs das moedas privadas do Suffolk Bank superaram a poca

    de crise de uma maneira muito mais estvel: In Connecticut in the years following the crisis

    of 1837 not one bank failure occurred, nor was there a suspension of specie payments. All

    banks were able to continue to redeem their bills at the Suffolk Bank (TRIVOLI, 1979,

    p.17)12

    .

    Durante 35 anos, entre 1823 a 1858, o Suffolk Bank conseguiu manter a estabilidade

    monetria da regio de Boston ao mesmo tempo em que foi um banco altamente rentvel. Em

    1858 com a ascenso do Bank for Mutual Redemption, um banco concorrente, a situao

    operacional do Suffolk Bank comeou a ficar complicada. Alm disso, grande parte do poder

    poltico do Estado migrou para outras regies do pas, diminuindo a importncia de Boston

    12

    Traduo nossa: Em Connecticut, nos anos aps a crise de 1837 nenhuma falncia bancria ocorreu, nem houve suspenso de pagamentos em espcie. Todos os bancos foram capazes de continuar a resgatar suas contas

    no Suffolk Bank.

  • 26

    sobre as decises econmicas. sabido que o Suffolk Bank tentou de vrias maneiras tirar o

    seu concorrente do mercado, at mesmo no honrando notas bancrias de bancos que tinham

    depsitos no Bank for Mutual Redemption. Porm, no cenrio de concorrncia estabelecido, o

    Suffolk Bank acabou perdendo e parou com as emisses de notas privadas, tornando-se apenas

    mais um banco convencional. Poucos anos depois, a Guerra de Secesso teve incio,

    paralisando o sistema financeiro norte-americano. Em 1863 foi estabelecido que nenhum

    banco poderia emitir moedas privadas, fazendo do governo o detentor do monoplio da

    emisso de moedas desde ento (ROTHBARD, 2002).

    Rothbard (2002) afirma que o Suffolk Bank se mostrou como um fato legtimo na

    histria de que uma moeda privada pode funcionar de forma eficiente, trazendo estabilidade

    monetria e segurana em um ambiente de livre concorrncia.

    Outro exemplo de moedas privadas funcionando na economia, agora em um perodo

    mais recente, se deu no Canad. Em 1983, empresas privadas do ramo de supermercados

    comearam a fornecer cupons como desconto quando seus clientes realizavam compras. A

    ideia era fazer com que os clientes retornassem ao supermercado para trocar os cupons e

    acabassem realizando mais compras. O sistema em si no tinha o objetivo de inserir moedas

    privadas na economia como um modelo de negcio, mas as pessoas comearam a tratar os

    cupons como se fossem moedas, utilizando-os em outras transaes do cotidiano.

    Os cupons representavam valores de Dlares Canadenses e podiam ser trocados por

    produtos do supermercado. Como o supermercado esperava que os cupons fossem gastos pelo

    seu valor de face, eles operavam com a hiptese de que os produtos trocados pelos cupons

    estariam ento sendo vendidos pelo seu preo lquido, o seu valor bruto menos o desconto que

    os cupons possibilitavam. Invs de simplesmente oferecer o desconto, o uso de cupons

    permitia extrair o excedente dos consumidores conforme os diferentes preos de reserva, alm

    de que o desconto somente seria concebido quando os cupons fossem efetivamente gastos,

    como nem todos os cupons eram de fato utilizados isso ainda fornecia uma vantagem para o

    supermercado.

    A rede Steinberg de supermercados, a terceira maior do Canad na poca, comeou o

    sistema de cupons em maro de 1983, dando um desconto de 5% nas compras para quem os

    utilizasse. Dois dias depois a maior concorrente Provigo, baixou o preo de todos os seus

    produtos em 6% para forar a concorrncia. Em seguida a rede Metro Richelieu, segunda

    maior do ramo, tambm comeou a conceder 5% de desconto para quem realizasse compras

    futuras em suas lojas. Trs meses depois a Steinberg declarou que iria interromper o sistema

    de cupons por causa dos prejuzos acumulados devido acirrada concorrncia.

  • 27

    Segundo Eichenbaum e Wallace (1985), apesar de uma experincia rpida, o insucesso

    do sistema de cupons no se deu porque as pessoas no os utilizaram, mas sim devido

    competio dos demais supermercados que realizaram um servio similar, fato que levou a

    uma baixa generalizada no preo de todos os produtos, fazendo-os operar em prejuzo.

    As pessoas durante o perodo em que os cupons vingaram, comearam a utiliz-los

    como um meio de troca para pagar produtos e servios em outros lugares alm do

    supermercado Steinberg. Eichenbaum e Wallace (1985) destacam, utilizando como fonte um

    artigo de jornal da poca, que os demais comerciantes de regio tambm comearam a aceitar

    os cupons do supermercado como meio de pagamento, pois argumentavam que isso ajudava a

    atrair alguns clientes que acabavam comprando produtos por possurem os cupons do

    Steinberg, que caso contrrio no o fariam. Desse modo, os cupons acabavam por

    desempenhar a funo de uma moeda privada, compreendendo suas caractersticas bsicas.

    Mesmo em um perodo curto de tempo, a populao da regio entendeu que os cupons

    podiam ser utilizados em outras transaes. Pelo fato do supermercado ser um revendedor de

    comida uma mercadoria que todos precisam consumir os cupons acabaram por se

    popularizar rapidamente, sendo aceitos em farmcias, lojas de discos e em outros

    supermercados.

    Outra experincia canadense de moeda privada que merece destaque em relao

    Canadian Tire Corporation Limited, uma empresa que em 1985 tinha 354 lojas espalhadas

    pelo Canad e distribua cupons parecidos com o sistema do supermercado Steinberg, porm

    fazia isso desde 1958. Segundo Eichenbaum e Wallace (1985), em 1982 a quantidade de

    cupons emitidos pela Canadian Tire somavam 20 milhes de dlares canadenses, algo

    equivalente a 34 milhes de dlares americanos a preos atuais13

    . Seus cupons eram aceitos

    em vrias transaes do cotidiano, servindo at mesmo para situaes casuais como pagar

    uma corrida de taxi.

    A experincia canadense com cupons demonstrou que a adoo pelo pblico de uma

    moeda privada sem a legitimao do governo pode acontecer de maneira natural. O mais

    interessante destacado por Eichenbaum e Wallace (1985) que no Canad emitir moedas

    privadas ou qualquer tipo de nota representativa de valor sem o consentimento do Estado

    contra a lei, porm estas evidncias empricas mostram que aparentemente existe uma

    13

    Valores fornecidos pelo website Trading Economics. Disponvel em: . Acesso em: 10 mar. 2013.

  • 28

    inclinao das pessoas em aceitar outras formas de moedas mesmo que elas no tenham

    respaldo governamental.

  • 29

    4. PARTE II: O VIRTUAL

    4.1 A internet

    4.1.1 Surgimento da computao e a internet

    O avano tecnolgico originrio da Segunda Revoluo industrial, com a eletrificao,

    desenvolvimento de motores e a criao de maquinrios complexos serviram de base para a

    elaborao do que mais tarde daria origem ao sistema eletrnico computacional. John

    Mauchly e John Presper Eckert so reconhecidos como os criadores do primeiro computador

    da histria, o ENIAC (Electronic Numerical Integrator And Computer), que havia sido

    concebido atravs de incentivos do exrcito americano durante a Segunda Guerra Mundial. O

    ENIAC podia fazer vrios clculos dependendo de como fosse programado, mas foi criado

    primariamente para calcular precises de balstica, devido s inclinaes armamentistas do

    perodo e de seus patrocinadores. A partir de 1950, a tecnologia dos computadores comeou a

    se tornar cada vez mais aprimorada, aumentando em velocidade de processamento e

    diminuindo cada vez mais o tamanho fsico do aparelho. Nas dcadas subsequentes j

    comearam a aparecer as marcas fabricantes de computadores que conhecemos hoje, como a

    Intel com seu modelo de microprocessador Intel 4004.

    Neste mesmo perodo, conjuntamente com o avano da computao, a internet

    tambm comeou a dar seus primeiros passos. Claro que naquele momento a internet no era

    nada se comparado com os padres atuais, tudo comeou com uma mensagem enviada pela

    Universidade da Califrnia em Los Angeles (UCLA) para o Instituto de Pesquisa de Stanford

    (SRI) atravs da primeira conexo backbone na dcada de 1960. A partir disso, muitas foram

    as formas de conexo desenvolvidas nos anos posteriores, chegando a criao da ARPANET

    em 1969, que seria o primeiro sistema onde vrias redes podiam se juntar, formando uma

    grande rede interconectada. A ampliao de acesso internet comeou na dcada de 1980

    quando a agncia americana, National Science Foundation (NSF), desenvolveu a NSFNET,

    que tinha o objetivo de interligar setores de pesquisa e educacionais como uma forma de

    estimular a troca de conhecimento. Foi no incio dos anos de 1980 que o protocolo TCP/IP,

    que uma forma de padronizao dos cdigos de comunicao, se popularizou, facilitando a

    conexo entre computadores de diversas partes do mundo.

    Foi neste perodo que de fato os computadores comearam a se tornar populares entre

    a populao em geral, principalmente com a consolidao de empresas como a Apple

  • 30

    Computers e IBM com seus microcomputadores; alm da Microsoft com seu software MS-

    DOS (que deu origem posteriormente ao Windows) que permitiu que as pessoas interagissem

    com os computadores de uma forma muito mais fcil e intuitiva. A sociedade passou neste

    momento a utilizar desta nova ferramenta para as mais diversas funes, desde a elaborao

    de diagnsticos mdicos digitalizao dos mercados financeiros. O poder de clculo dos

    computadores forneceu uma base de raciocnio mais exata e socialmente aceita como correta

    do que os clculos realizados pelo crebro humano. Dessa forma, a resposta fornecida por um

    computador passou a se tornar a verdade a ser aceita. Como teorizado por Postman (1993), o

    mundo e principalmente a sociedade norte-americana passou durante o sculo XX para um

    modelo centrado na tecnologia, fenmeno que o autor chamou de Technopoly, onde os valores

    da sociedade se tornam orientados e validados atravs dos dizeres da tecnologia.

    A partir dos anos de 1990, as restries por parte do governo em relao ao uso da

    internet comearam a ceder dando espao para uso comercial da rede. Os antigos rgos

    responsveis pelo nascimento da internet foram desmantelados, como a ARPANET e o

    NSFNET, dando espao para empresas do setor privado entrarem no segmento. Assim, nos

    anos que se seguiram, a internet acabou resultando em uma revoluo na comunicao,

    cultura, poltica e economia do mundo. Com o aumento da rede em escala global, o ambiente

    virtual da internet se tornou um local aberto, sem grandes regulaes, permitindo o uso e

    acesso de qualquer indivduo ao redor do mundo.

    O avano que a computao proporcionou mudou totalmente os paradigmas sociais

    em que o mundo se estabelecia. A maior facilidade em resolver clculos complexos e a maior

    quantidade de informao disponvel aos indivduos marcou a mudana de como os seres

    humanos se comportavam em relao certeza sobre as coisas. A viso sobre o computador

    como um crebro pensante, sempre correto, transformou a sociedade, ampliando

    possibilidades e diminuindo outras. A computao tem possibilitado o desenvolvimento tanto

    das cincias quanto de novas tecnologias e at certo ponto do bem estar dos seres humanos.

    Como apontado por Benkler (2006), o avano da informtica permitiu a

    descentralizao e distribuio de funes de uma maneira muito mais abrangente em

    comparao com os sistemas industriais do sculo passado:

    What characterizes the networked information economy is that decentralized

    individual action specically, new and important cooperative and coordinate action carried out through radically distributed, nonmarket

    mechanisms that do not depend on proprietary strategies plays a much

  • 31

    greater role than it did, or could have, in the industrial information economy

    (BENKLER, 2006, p. 3).14

    O declnio do preo dos computadores e meios de comunicao permitiu a utilizao dessas

    tecnologias por uma frao significativa da populao mundial, possibilitando a transio da

    era industrial para a era da informao. Como explicado por Rosnay (1999), o mundo passou

    de uma sociedade industrial para uma sociedade informacional e agora os antigos pilares

    trabalhistas so outros. Os valores referentes ao local de trabalho, a funo desempenhada e

    tempo acabam por se tornar obsoletos na sociedade informacional. Existe uma tendncia

    dos poderes hierrquicos no servirem mais como referncia, a sociedade nascente organiza-

    se antes em redes do que em pirmides de poder (ROSNAY 1999, p. 52). Esta nova evoluo

    leva a conflitos por se tratar de uma nova sistemtica, os que ainda pensam no antigo modelo

    pr-informtica possuem dificuldade em lidar com as questes burocrticas que envolvem

    este novo fenmeno. As mudanas na forma como as relaes se desenvolvem na sociedade

    informacional acaba por causar confuso na esfera poltica e Estatal por se tratar de um

    paradigma diferente ao at ento dominante modelo industrial. As caractersticas do novo

    espao econmico, social e cultural imaterial, chamado de ciberespao, no se enquadram

    nas anlises dos que vivem e raciocinam conforme o antigo modelo. Eles no as enxergam. O

    sculo XXI ser da complexidade (ROSNAY, 1999, p. 53).

    4.1.2 Digitalizao dos mercados financeiros

    Assim como outras esferas da vida contempornea se tornaram digitais, seja no

    processo industrial, desenvolvimento cientfico e meios de comunicao, o sistema financeiro

    mundial tambm evoluiu para modelos eletrnicos. Segundo White (1997), a digitalizao dos

    mercados financeiros foi caracterizada mais como uma evoluo do que uma revoluo, pois

    apesar de possibilitar uma maior rapidez nas transaes financeiras, o modelo de

    compensao entre contas bancrias continuou o mesmo. As compensaes entre contas

    realizadas por um pedao de papel ou atravs de uma transao eletrnica possuem em si o

    mesmo modelo econmico, somente o mtodo que se tornou mais rpido. Alm disso,

    transaes entre contas e entre bancos sem a necessidade da transao fsica j era realizada

    14

    Traduo nossa: O que caracteriza a economia da informao em rede que a ao individual descentralizada - mais especificamente, a nova e importante ao cooperativa e coordenada realizada atravs de mecanismos no

    mercantis radicalmente distribudos, que no dependem de estratgias privadas - desempenham um papel muito

    maior do que faziam, ou poderiam fazer, na economia de informao industrial.

  • 32

    desde que o telgrafo se tornou popular. A verdadeira mudana que a computao e a

    digitalizao dos mercados trouxeram como novo foi a grande reduo nos custos das

    transaes.

    A evoluo para o sistema financeiro eletrnico chegou a um patamar onde a maior

    parte do dinheiro nacional (ex: Dlar, Real, Euro, etc.) em circulao na verdade digital. As

    moedas e papis-moedas representam apenas uma pequena parte da base monetria. J em

    1996, em pases em que o uso de dinheiro eletrnico j era amplamente utilizado, como nos

    Estados Unidos, o valor de M115

    j era composto majoritariamente por dinheiro eletrnico

    (BERNKOPF, 1996). A ampliao do uso de cartes de crdito e o aumento da utilizao da

    internet para pagamentos, compras e transaes eletrnicas, levaram a uma diminuio da

    demanda pelo papel-moeda e moeda metlica. O que ocorre ento a maior utilizao direta

    dos depsitos vista nos bancos comerciais atravs do uso dos cartes de crdito/dbito ou

    transaes via internet.

    Novas formas de transaes comearam a emergir com o avano tecnolgico e

    advento da internet. Empresas privadas desenvolveram servios financeiros que facilitaram a

    negociao tanto no mercado de ttulos quanto no mercado de aes e derivativos. A criao

    de plataformas de negociaes online que permitem qualquer pessoa de qualquer parte do

    mundo, que possua um computador e uma conexo com a internet, de negociar em bolsas de

    valores, ao mesmo tempo em que aumenta a facilidade e velocidade dos negcios tambm trs

    a no mais necessidade de uma representao fsica no floor das bolsas para a realizao dos

    contratos viva-voz.

    A criao de sistemas como o Paypal, desenvolvido por Elon Musk e Peter Thiel, que

    funcionam como uma carteira virtual onde o usurio pode enviar dlares ou outras moedas

    nacionais e utiliz-las em vrios websites para realizar compras, efetuar transaes e receb-

    las, possibilitou um aumento no e-commerce global nos ltimos anos. Por funcionar de forma

    prtica, esses sistemas tornaram as transaes entre agentes econmicos muito mais rpidas e

    seguras, sendo uma alternativa ao uso de cartes de crdito, onde o usurio era obrigado a

    fornecer as informaes do carto para cada website onde realizasse alguma negociao.

    Alguns autores j apontam que os bancos centrais esto olhando para a questo do

    dinheiro eletrnico com uma viso precavida, pois existem hipteses de que o uso massivo de

    dinheiro eletrnico e a utilizao de moedas virtuais, que ser tratada nas sees posteriores

    15

    A quantidade total de M0 (dinheiro/moeda) fora do sistema bancrio privado, acrescido do montante dos

    depsitos vista, cheques de viagem e outros depsitos.

  • 33

    deste trabalho, implicariam na perda do controle sobre polticas monetrias e poderiam levar a

    alteraes nas taxas de cmbio internacionais (BERENTSEN, 1997). Se as pessoas de fato

    adotassem formas alternativas como meio de pagamento, mecanismos parte do sistema

    bancrio, os bancos perderiam competitividade no mercado e pressionariam os bancos

    centrais a abaixar os valores dos depsitos compulsrios a fim de manter o sistema

    competitivo.

    4.1.3 Comunidades e Fruns

    Foi dentro deste ambiente virtual criado pela juno entre a computao e a internet

    que novas formas de organizaes sociais comearam a emergir. A possibilidade de se

    comunicar com pessoas ao redor do mundo e trocar informaes levaram ao estabelecimento

    de uma comunidade virtual, comunidade esta que no possui fronteiras geogrficas ou

    polticas, diferentemente do conceito original de comunidade referenciado por uma cidade,

    bairro ou vila.

    Devido facilidade de comunicao ao redor do mundo, na comunidade virtual as

    pessoas comearam a se agrupar e discutir contedos e informaes de seu interesse,

    possibilitando a gerao de conhecimentos especficos ao aproximar pessoas de distintas

    culturas e pases que jamais teriam a possibilidade de se reunirem fisicamente para a

    discusso de ideias. Dessa forma, alm de apenas funcionar como divulgao de

    conhecimento, o ambiente virtual leva criao de novos conceitos e possibilita o avano