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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X MORALIDADES E IMPLICAÇÕES EM TORNO AO CONCEITO DE VÍTIMA EM CASOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. ANÁLISE DE UM CASO ARGENTINO DESDE UMA PERSPECTIVA FEMINISTA Matilde Quiroga Castellano 1 Resumo: Se pretende refletir sobre os discursos morais que giram em torno ao conceito de "vítima" em casos que envolvem violência contra a mulher dentro do sistema patriarcal e como eles afetam e interferem nos processos judiciais e na aplicação das penas. Principalmente o discursos analisados estão localizados nos organismos de justiça e seus representantes (delegados, juízes, jurados populares, etc.), mas também entendendo que os mesmos não são alheios aos discursos sociais que circulam na comunidade. A reflexão pretendida será feita tomando como exemplo um caso de femicidio argentino, que envolveu violações aos direitos humanos da mulher. O femicidio referido é o que tem como vitima fatal a Paola Acosta, quem foi morta pelo pai de sua filha (quem sofreu intento de femicidio) em setembro de 2014. Serão base da analise a sentença judicial e extratos de algumas das principais publicações num jornal com edição virtual, que fez um relato cronológico do caso e apreciações em relação sentença judicial. As discussões que giram em torno à temática apresentada serão propostas desde uma óptica feminista, incluindo referencial teórico das áreas de antropologia da violência e antropologia da moral, por sua vez será feito o enquadramento legislativo pertinente ao caso. Palavras-chave: Gênero. Violência contra as mulheres. Vítima. Moralidades. Justiça. Gostaria de iniciar este trabalho com um breve relato de como foram surgindo estas reflexões em torno a pensar e repensar o conceito de “vítima” em situações de violência contra a mulher, e como esta possibilidade me levou finalmente a perceber que esse conceito, tão utilizado no cotidiano, guardava relação com questões morais e exigia ser problematizado. Durante o exercício de minha profissão de Assistente Social, tive a oportunidade de trabalhar na assistência de vítimas de tráfico de pessoas, a maioria delas mulheres que tinham sido traficadas com fins de exploração sexual. Durante o quase ano que trabalhei nesta tarefa houve alguns meses em que tive que assumir, junto com uma colega psicóloga, a coordenação do Refugio "8 de Março", Refugio que a Província de Córdoba mantinha nesse momento destinado a vítimas de 1 Formada em "Licenciatura en Trabajo Social" pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Trabalhou profissionalmente na assistência e prevenção de vítimas de trafico de pessoas, na "Secretaria de Asistencia y Prevención de la Trata de Personas", "Ministerio de Gobierno y Seguridad" da Provincia de Córdoba, Argentina. Conta com ampla e diversa formação e participação em diferentes eventos acadêmicos, multidisciplinares, locais e internacionais, que discutiram gênero na Argentina, Brasil e Cuba. Participou como analista de artigos do Projeto “Avaliação do Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero no Brasil” coordenado pelo NIGS (Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades). Atualmente Mestranda em Antropologia Social no PPGAS da UFSC, pesquisa moralidades e justiça com mulheres vitimas de situações de violência de gênero. Pesquisadora do LEVIS (Laboratório (Núcleo) de Estudos das Violências), orientanda do Prof. Dr. Theophilos Rifiotis.

MORALIDADES E IMPLICAÇÕES EM TORNO AO CONCEITO DE …...Resumo: Se pretende refletir sobre os discursos morais que giram em torno ao conceito de "vítima" em casos que envolvem violência

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

MORALIDADES E IMPLICAÇÕES EM TORNO AO CONCEITO DE VÍTIMA EM

CASOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. ANÁLISE DE UM CASO ARGENTINO

DESDE UMA PERSPECTIVA FEMINISTA

Matilde Quiroga Castellano1

Resumo: Se pretende refletir sobre os discursos morais que giram em torno ao conceito de "vítima"

em casos que envolvem violência contra a mulher dentro do sistema patriarcal e como eles afetam e

interferem nos processos judiciais e na aplicação das penas. Principalmente o discursos analisados

estão localizados nos organismos de justiça e seus representantes (delegados, juízes, jurados

populares, etc.), mas também entendendo que os mesmos não são alheios aos discursos sociais que

circulam na comunidade. A reflexão pretendida será feita tomando como exemplo um caso de

femicidio argentino, que envolveu violações aos direitos humanos da mulher. O femicidio referido é

o que tem como vitima fatal a Paola Acosta, quem foi morta pelo pai de sua filha (quem sofreu

intento de femicidio) em setembro de 2014. Serão base da analise a sentença judicial e extratos de

algumas das principais publicações num jornal com edição virtual, que fez um relato cronológico do

caso e apreciações em relação sentença judicial. As discussões que giram em torno à temática

apresentada serão propostas desde uma óptica feminista, incluindo referencial teórico das áreas de

antropologia da violência e antropologia da moral, por sua vez será feito o enquadramento

legislativo pertinente ao caso.

Palavras-chave: Gênero. Violência contra as mulheres. Vítima. Moralidades. Justiça.

Gostaria de iniciar este trabalho com um breve relato de como foram surgindo estas

reflexões em torno a pensar e repensar o conceito de “vítima” em situações de violência contra a

mulher, e como esta possibilidade me levou finalmente a perceber que esse conceito, tão utilizado

no cotidiano, guardava relação com questões morais e exigia ser problematizado.

Durante o exercício de minha profissão de Assistente Social, tive a oportunidade de

trabalhar na assistência de vítimas de tráfico de pessoas, a maioria delas mulheres que tinham sido

traficadas com fins de exploração sexual. Durante o quase ano que trabalhei nesta tarefa houve

alguns meses em que tive que assumir, junto com uma colega psicóloga, a coordenação do Refugio

"8 de Março", Refugio que a Província de Córdoba mantinha nesse momento destinado a vítimas de

1 Formada em "Licenciatura en Trabajo Social" pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Trabalhou

profissionalmente na assistência e prevenção de vítimas de trafico de pessoas, na "Secretaria de Asistencia y Prevención

de la Trata de Personas", "Ministerio de Gobierno y Seguridad" da Provincia de Córdoba, Argentina. Conta com ampla

e diversa formação e participação em diferentes eventos acadêmicos, multidisciplinares, locais e internacionais, que

discutiram gênero na Argentina, Brasil e Cuba. Participou como analista de artigos do Projeto “Avaliação do Prêmio

Construindo a Igualdade de Gênero no Brasil” coordenado pelo NIGS (Núcleo de Identidades de Gênero e

Subjetividades). Atualmente Mestranda em Antropologia Social no PPGAS da UFSC, pesquisa moralidades e justiça

com mulheres vitimas de situações de violência de gênero. Pesquisadora do LEVIS (Laboratório (Núcleo) de Estudos

das Violências), orientanda do Prof. Dr. Theophilos Rifiotis.

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tráfico de pessoas. Ao longo dessa experiência, junto com o cumprimento das outras tarefas que

demandava a Secretaria2, consegui-me aproximar mais ao cotidiano das pessoas que a Secretaria

assistia e comecei a perceber que existiam certas situações que me incomodavam. Em primeiro

lugar a denominação geral para referir-se a essas pessoas era "as vítimas", assim circulavam sem

discussão alguma as frases “hoje temos que comprar a comida para as vítimas”, “a área de

assistência tem que planificar o que as vítimas vão fazer no verão”, “vocês tem que trazer três

vítimas para ir ao controle odontológico”, etc.

Afortunadamente, ao mesmo tempo em que trabalhava ali, estava participando de um grupo

de pesquisa sobre violência de gênero na minha universidade, o que me serviu como um espaço de

supervisão da prática profissional e para discutir minhas inquietudes com outras profissionais,

principalmente da área de serviço social e da psicologia. Dentro de esse equipo de pesquisa também

participavam profissionais da área de atendimento em situações de violência contra a mulher, e

essas profissionais também estavam vivenciando algum desconforto em relação a categoria de

“vítima”.

Depois de trazer a discussão para o equipo fomos aos poucos enxergando que colocar as

pessoas, e, sobretudo as mulheres com as que trabalhávamos na categoria de “vítimas” tinha várias

implicações e envolvia diferentes julgamentos morais. Assim, quem era denominada como “vítima”

devia se adequar na verdade a uma idéia moral de “vítima perfeita” ou "boa vítima" sem

possibilidade de fuga alguma desse papel se queria continuar nesse estatuto. Isso significava que

elas deviam ser vítimas sempre, vítimas às 24 horas do dia e portanto atuar de uma maneira

submissa, tranqüila, sem grandes mudanças de ânimos (não estar irritadas, nem bravas por

exemplo), sem exigências nem reclamações, basicamente num rol de obediência e de passividade

invisível, etc. Isto tinha como conseqüência que todas as atividades ou "escolhas" que “as vítimas”

do Refugio faziam eram reguladas desde as autoridades da Secretaria e submetidas a avaliações

morais (verificando se eram pertinentes ao "estatuto de boa vitima"), esquecendo o fato de que “as

vítimas” são essencialmente pessoas e tem a possibilidade e direito de ter qualquer comportamento

que qualquer outra pessoa pode ter. O mais grave e preocupante destas situações, além dos

julgamentos e eventuais “disciplinamentos” por sair-se da caixinha de “vítima perfeita”, foi uma

progressiva anulação de sua capacidade de agência (Ortner, 2012) o que atrapalhava completamente

sua recuperação e atentava contra o que se trabalhava em relação a capacidade de construir e de ter

2 "Secretaria de Asistencia y Prevención de la Trata de Personas" dependente do "Ministerio de Gobierno y Seguridad"

da Provincia de Córdoba, Argentina.

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uma nova vida depois do acontecido. Alem disso, esta situação provocou em várias ocasiões a

aparição de discursos que colocavam uma sombra de dúvida sobre eventos dos que estas mulheres

diziam ter sido vítimas (de trafico de pessoas, ou exploração sexual, por falar de alguns casos).

Por citar só um exemplo das situações as que me refiro vou relatar o caso de uma das jovens

que morava no Refugio. Era estrangeira, adolescente menor de idade e tinha sido colocado sob a

tutela da Secretaria e incorporada ao sistema de assistência por ordem judicial depois de ter sido

resgatada de uma denúncia de situação de exploração laboral e abuso sexual. Segundo a denúncia

foi trazida de seu país de origem para trabalhar numa loja, e terminou além de trabalhando na loja,

trabalhando na casa dos donos como empregada doméstica em todas as horas em que não

trabalhava na loja, sem salário (com moradia e pouca comida) e sendo abusada sexualmente pelo

dono cada vez que a mulher dele viajava para comprar mercadoria. A jovem conseguiu ser

resgatada porque uma moça que entrou a trabalhar na loja fez a denuncia. Depois de toda essa

situação, já sob a tutela da Secretaria, a jovem decidiu junto com o equipo de assistência (uma

assistente social, uma psicóloga e uma advogada) começar a escola, lugar aonde sempre ia

acompanhada por custódias policiais de civil (o que era exigido por protocolo, em função de sua

seguridade). Ali se "apaixonou" por um colega (da mesma idade), e pretendeu “namorar”, toda essa

situação que em outras circunstâncias teria sido “normal” para uma jovem de 16-17 anos, despertou

suspeitas do seguinte tipo “mas ela não foi abusada?, como vai querer namorar?”, “se ela esta

seduzindo seu colega deve ter seduzido o dono da loja”, “se ela esta tão bem e contente deve ser

porque nunca foi abusada”, etc.

Logo desta breve introdução à temática gostaria de estruturar este trabalho da seguinte

forma: no próximo apartado desenvolverei alguns eixos principais da normativa argentina em

relação à violência contra a mulher aos fins de contextualizar as possibilidades legais em torno ao

delito de femicidio e posteriormente relatarei o caso do femicidio de Paola Acosta que servirá de

fonte principal de análise desde uma perspectiva feminista. As categorias de análise próprias da

perspectiva serão desenvolvidas num outro apartado, finalmente esboçarei algumas considerações

finais.

Por ultimo, e sem pretender fazer neste momento um percurso pelos diferentes momentos do

movimento feminista nem suas discussões centrais, considero importante destacar que entendo esta

perspectiva como ferramenta política e epistemológica de grande utilidade, em termos de

possibilidade crítica e propiciadora de uma problematização das categorias estabelecidas e

naturalizadas que são utilizadas para entender e descrever os fenômenos sociais.

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Normativa internacional e argentina em relação à violência contra a mulher

Ao nível normativo é possível identificar alguns Sistemas em que se organizam as

regulamentações que legislam em relação à violência contra as mulheres.

Dentro do Sistema de Nações Unidas encontramos a “Convenção sobre a Eliminação de

Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher” (CEDAW) e seu Protocolo Facultativo, que

foram ratificados pelo Brasil e Argentina entre outros países. Que define em seu artigo 1° que

“"discriminação contra a mulher" significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e

que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela

mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos

direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil

ou em qualquer outro campo.”

Dentro do Sistema Interamericano ocupa um lugar fundamental a “Convenção

Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher- Convenção de Belém

do Pará”. A mesma entende que “a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e

psicológica:

a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o

agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras

formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;

b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o

estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual

no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro

local; e

c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.”

O sistema nacional, no caso Argentino, conta com duas leis que regulam a violência contra

as mulheres: a primeira no tempo foi a Lei 26.4853 "Ley de Protección Integral para Prevenir,

Sancionar y Erradicar la Violencia contra las Mujeres em los âmbitos en que desarrollen sus

relaciones interpersonales" e uma lei que produz uma reforma ao Código Penal Argentino, a Lei

26.791, conhecida popularmente como “lei do femicidio”, e que na verdade aparece para se

constituir como agravante.

3 A Lei 26.485 de "Protección Integral a las Mujeres" foi promulgada no ano 2009.

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A primeira Lei define no artigo 4° como “violencia contra las mujeres toda conducta, acción

u omisión, que de manera directa o indirecta, tanto en el ámbito público como en el privado, basada

en una relación desigual de poder, afecte su vida, libertad, dignidad, integridad física, psicológica,

sexual, económica o patrimonial, como así también su seguridad personal. Quedan comprendidas

las perpetradas desde el Estado o por sus agentes”.

Por outro lado, acho importante colocar textualmente as modificações feitas ao Código

Penal pela Lei 26.791, que servirão para a posterior análise:

“ARTICULO 1° — Sustitúyanse los incisos 1º y 4° del artículo 80 del Código Penal que quedarán

redactados de la siguiente forma:

Artículo 80: Se impondrá reclusión perpetua o prisión perpetua, pudiendo aplicarse lo dispuesto en

el artículo 52, al que matare:

1°. A su ascendiente, descendiente, cónyuge, ex cónyuge, o a la persona con quien mantiene o ha

mantenido una relación de pareja, mediare o no convivencia.

4°. Por placer, codicia, odio racial, religioso, de género o a la orientación sexual, identidad de

género o su expresión.

ARTÍCULO 2° — Incorpóranse como incisos 11 y 12 del artículo 80 del Código Penal los

siguientes textos:

11. A una mujer cuando el hecho sea perpetrado por un hombre y mediare violencia de género.

12. Con el propósito de causar sufrimiento a una persona con la que se mantiene o ha mantenido

una relación en los términos del inciso 1°.”

Se bem esta ultima lei é considerada de grande avançada e muito importante em termos

jurídicos, baseada no estudo de vários casos que apareceram na media por sua gravidade poderia

afirmar que parece bem difícil de aplicar.

Depois de especificar este marco legal, como já expliquei com anterioridade, apresentarei a

continuação o caso do femicidio contra Paola Acosta. Cabe destacar que o mesmo foi amplamente

difundido nos jornais locais, nacionais e nas redes sociais, já que provocou uma espécie de choque

social a partir da violência exercida além de contra Paola Acosta sobre sua pequena filha M.4

O femicidio de Paola Acosta5

4 É preciso esclarecer que durante a busca das duas vitimas foram expostos os dois nomes completos das mesmas, mas

que a partir de ter encontrado à criança com vida, por uma questão de sigilo jurídico por ser menor de idade, seu nome

aparece abreviado com a letra M. 5 Tive acesso as duas sentenças que julgaram este caso.

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O crime contra Paola Acosta, de 36 anos de idade, e a tentativa de assassinato de sua filha

M., de um ano e nove meses, foi um caso que manteve a Córdoba em vigília por quase 80 horas.

Mãe e filha desapareceram entre a noite da quarta 17 de setembro de 2014 e só foram encontradas

na manha do domingo 21 de aquele mês, num esgoto de um bairro da cidade. Segundo a autopsia

Paola tinha morrido entre 48 e 96hs antes de se produzir o achado do corpo. M. apresentava várias

feridas e sobreviveu “de milagre” (depois de 10 dias de internação) já que pela insalubridade do

lugar onde foi encontrada as feridas tinham-se infectado. O suspeito e finalmente condenado pelo

crime, de nome Gonzalo Lizarralde, tinha ido à noite da quarta 17 a conhecer por primeira vez à

menina e levar a primeira mensalidade da pensão alimentícia depois de várias instancias judiciais

(DNA por ordem do judiciário que provou a filiação, e ordem judicial de pagar a pensão) como

resultado do processo que tinha iniciado Paola em sua contra. O femicidio incluiu uma troca de

promotor por demoras na busca das duas vítimas, além de várias especulações mediáticas e nas

redes sociais em relação à suposta inocência do acusado e avaliações morais em relação a se a filha

era produto de uma relação estável ou encontros sexuais esporádicos e supostos interesses

econômicos de Paola. Desde esse primeiro momento foi ficando claro mediaticamente que alem do

ajuizamento do autor dos crimes, haveria um julgamento em relação as ações da vitima.

Depois das inúmeras provas avaliadas pelos juízes e jurados populares em outubro de

2015, sentença n° 46, da "Cámara Undécima del Crimen", se resolveu declarar culpável a

Lizarralde por “homicidio calificado por alevosia” contra Paola e “homicídio calificado por el

vinculo y por alevosia em grado de tentativa” contra M., com a pena de prisão perpetua6.

Em relação esta primeira sentença, Frascaroli (presidenta do tribunal) “sostiene que fue

calificado por alevosía porque el victimario "preordena (el crimen) de modo tal de evitar la reacción

de la víctima o de un tercero y así poder dar muerte a la primera con mayores chances de lograr el

resultado querido, a ocultas de cualquier auxilio exterior, frente à víctimas desprevenidas e

indefensas: la madre por su diferencia de tamaño comparado con el del matador y porque cargaba

6 Cabe destacar que a sentença foi apelada, e finalmente em marco de 2017 o Tribunal Superior de Justicia da Provincia

de Córdoba resolveu mediante sentença Nº 56 o seguinte : "II. Hacer lugar parcialmente al recurso presentado por el

querellante particular, Hernán Faerher, con asistencia técnica del Dr. Juan Carlos Sarmiento, en contra de la citada

sentencia. En consecuencia, corresponde modificar la calificación legal dispuesta para el hecho atribuido al imputado

Gonzalo Martín Lizarralde quien deberá responder como autor de los delitos de homicidio calificado cometido con

alevosía y mediando violencia de género (arts. 45, 80 inc. 2º, 2º supuesto y 11 del Código Penal) en contra de Paola

Soledad Acosta y homicidio calificado por el vínculo y cometido con alevosía, en grado de tentativa (arts. 45 y 42, art.

80 inc. 1º, 2º supuesto, e inc. 2º, 2º supuesto del Código Penal) en contra de su hija M.L., todo en concurso real (art. 55

del Código Penal), manteniéndose para su tratamiento penitenciario la pena de prisión perpetua. Sin costas por el éxito

obtenido en esta sede (art. 550/551 CPP).

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en brazos a su pequeña hija; esta, porque era incapaz de valerse por sus propios medios" além disso

Frascaroli adicionou: "Todo lo dicho nos aleja de esa mujer vulnerable, sumisa, dominada, víctima

de una desigualdad de poder y nos coloca frente a una mujer fuerte, decidida, pero atacada

sorpresiva y alevosamente, en un momento en que seguramente ni imaginó que algo podía

sucederle durante su encuentro con Lizarralde"7. Esta última frase e o fato de Paola ter acudido à

justiça para lutar pelos direitos de sua filha foram os principais argumentos para interpretar que o

crime não envolvia uma situação desigual de poder, portanto não envolvia violência de gênero.

Categorias de análise fundamentais desde uma perspectiva feminista

Em primeiro lugar, se retomamos os três Sistemas jurídicos apresentados no apartado que

descreve as normativas: o Sistema de Nações Unidas (CEDAW), o Sistema Interamericano

(Convenção de Belém do Pará) e o Sistema Nacional; nenhum deles descreve que a mulher vitima

de violência tem que ter determinadas características pessoais ou físicas para que seja considerada

tal circunstância. Se esta descrevendo em todas as oportunidades situações que guardam uma

estreita relação com o lugar da mulher na sociedade, que em nossos contextos latino americanos

fica evidenciado na quantidade de casos como estes, as diferencias de salário que existem, o acesso

diferenciado a saúde a educação, o menor acesso à terra e moradia, etc.

No mesmo sentido, Maqueda de Abreu entende em relação à violência contra as mulheres

“es consecuencia de una discriminación intemporal que tiene su origen en una estructura social de

naturaleza patriarcal”. (Maqueda Abreu, 2006 apud Soldevila, 2014, p. 32). O que nos esta falando

de um sistema, uma estrutura, de um coletivo social (e não de sujeitos afetados individualmente por

esta condição) dentro do qual se desenvolvem as relações humanas.

Segundo o Diccionario de estudios de género y feminismos8 (2009) o patriarcado “puede

definirse como un sistema de relaciones sociales sexopoliticas basadas en diferentes instituciones

públicas y probadas y en la solidaridad interclases e intragénero instaurada por los varones9, quienes

como grupo social y en forma individual y colectiva oprimen a las mujeres también en forma

7 http://www.lavoz.com.ar/ciudadanos/el-crimen-de-paola-no-fue-femicidio-porque-no-hubo-relacion-desigual-de-

poder 8 Cabe destacar que diferentes feministas de diversas áreas têm participado na definição das palavras contempladas no

dicionário, é que no final de cada palavra aparece o nome da autora que teorizou sobre cada uma delas. 9 O termo “varones” é utilizado em espanhol em geral por estudos e escritos feministas em oposição e crítica ao termo

“homens” que tem sido utilizado historicamente como o ser humano universal.

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individual y colectiva, y se apropian de su fuerza productiva y reproductiva, de sus cuerpos y sus

productos, sea con medios pacíficos o mediante el uso de la violencia. (Fontenla, 2009, p. 258-260).

A utilidade que tem o uso do termo patriarcado para Arruza (2010), sem pretender entrar na

discussão entre as diferentes posições que existem ao torno da utilidade do mesmo, é identificar que

estamos nos referindo a um sistema de relações humanas, sociais, matérias, culturais de dominação,

opressão e desigualdade que não correspondem a escolhas feitas desde individualidades, nem são

questões excepcionais. Além disso, a autora adiciona que “nos países capitalistas não existe mais

um sistema patriarcal que seja autônomo do capitalismo. Relações patriarcais continuam a existir,

mas não são parte de um sistema separado” (Arruza, 2010, p. 37).

A partir de todas estas definições é importante explicitar que ao entender o patriarcado e o

capitalismo como dois sistemas interdependentes, como duas faces da mesma moeda, em que se

produzem e se reproduzem as relações sociais, devemos entender então que qualquer um deles não

pode deixar de existir se o outro permanece existindo.

Harraway (2004) traz uma discussão interessante citando a Hartmann, em relação a quando

se intenta colocar uma supremacia de “importância” de um sobre outro (capitalismo- patriarcado)

na luta por direitos. Esta discussão, muitas vezes chamada de “eterna”, tem cercado e continua

fazendo-o às profissões que trabalham historicamente com a “questão social” e fazem críticas

profundas ao sistema capitalista como sistema de opressão, particularmente dentro do Serviço

social, estas discussões aparecem com grande ênfase. “Hartmann tentou explicar a parceria do

patriarcado e do capital e a incapacidade dos movimentos trabalhistas socialistas, dominados por

homens, em priorizar o sexismo. Hartmann utilizou o conceito de sistema de sexo-gênero de Rubin

para reclamar a compreensão do modo de produção de seres humanos nas relações sociais

patriarcais através do controle masculino da capacidade de trabalho das mulheres. No debate

estimulado pela tese de Hartmann, Iris Young criticava a abordagem “dualista” do capital e do

patriarcado que eram vistos então como aliados na opressão de classe e gênero” (Hartman e Young

apud Harraway, 2004, p. 42).

Como acabei de dizer, em muitas profissões surge esta discussão (aparece bastante no

serviço social), e em várias oportunidades se termina escolhendo entre uma “luta” ou outra, sem

conseguir enxergar que correspondem as duas fases mencionadas, o que nos traz grandes

retrocessos e demoras principalmente na conquista de direitos para as mulheres.

Voltando a questão da violência contra as mulheres, neste sistema de dominação tão claro e

presente, que permeia todas as relações dentro de uma sociedade, dificilmente existam canais

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normativos que consigam dar “solução final” às situações vivenciadas pelas mulheres. Assim

Aguiar (2000), manifesta que “A violência contra mulheres e a impunidade, como legítima defesa

da honra masculina, consiste em outra indicação de relações patriarcais” (Aguiar, 2000, p. 305).

Para o caso do femicidio contra Paola Acosta pode-se interpretar que esta "honra masculina" do

femicida Lizarralde se encontrava em perigo com a presencia de Paola e as demandas em relação a

sua filha em comum, já que ficou claro durante o juízo como o homem ocultou por todos os meios e

até de sua atual mulher o fato do vinculo com Paola como assim sua paternidade. Este fato foi

interpretado pelo tribunal como uns dos motivos principais para o femicidio, já que ha existência de

Paola e M. em perigo os planos de vida que Lizarralde tinha.

Por outro lado, Saffioti (2001) incorpora a idéia de “agentes sociais subalternos” que

participam de “cúmplices” (cúmplice que Bourdieu (2000) parece enxergar principalmente entre “as

vítimas” da dominação masculina), desempenhando as ações na ausência “do patriarca”. Muitas

vezes essa justiça que deveria ao menos reparar a ausência de igualdade aparece reforçando

estereótipos e julgamentos sobre a vitima que acabam fazendo com que esta seja a culpada. O que

me retrotrai a vários dos casos (acontecidos em Campinas nas décadas de 50 e 60) apresentados por

Correa (1983) no livro "Morte em Família". Os casos descritos envolvem homens que feriram ou

mataram suas companheiras e que alegam como justificativa a defesa de sua honra. Embora se

esteja falando de outro momento histórico, considero que guardam estreita vigência, pelo tipo de

crime e, como estou tratando neste artigo, pelo tipo de julgamento que envolvem. Correa analisa

que nos casos em que é possível a apresentação das vitimas como distantes de ser mulheres fracas, e

mas bem como fortes a sentença permitiu uma dúvida em relação ao crime cometido e em geral foi

aceita a possibilidade de argumentação de legitima defesa em favor do acusado de tê-la matado. A

mesma situação foi verificada pela autora nos casos em que a vitima era apresentada como uma

mulher "não honesta", sempre esse tipo de argumento acabavam reduzindo a pena ou o delito

configurado era menos grave.

Contudo, é plausível de ser entendido, que as situações de violência contra as mulheres, a

mais grave delas o femicidio, como o padecido por Paola Acosta, aparecem sempre que alguma

delas pretende fugir da dominação, são as possibilidades de fuga (em outros termos as

possibilidades e direito de viver sua própria vida) o que coloca as mulheres em algum grau de

vulnerabilidade em relação a ser vítimas de situações de violência.

Ramalho recupera que “em trabalhos produzidos ao longo das duas últimas décadas, Nancy

Fraser tem vindo a demonstrar como o binarismo do público e do privado na moderna teoria crítica,

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designadamente no pensamento de Habermas, acaba por continuar a conceber o cuidado do sustento

como “feminino” e a cidadania plena como “masculina” apenas. (Fraser apud Ramalho, 2001, p.

17).

Ao mesmo tempo Harraway (2000) traz a reflexão que “Por gerações, foi dito às mulheres

que elas são “naturalmente” fracas, submissas, extremamente emocionais e incapazes de

pensamento abstrato. Que estava “em sua natureza” serem mães em vez de executivas, que elas

preferiam entreter visitas em casa a estudar Física das Partículas. Se todas essas coisas são naturais

significa que elas não podem ser mudadas. Fim da história. Volta à cozinha. Proibido ir adiante. Por

outro lado, se as mulheres (e os homens) não são naturais, mas construídos, tal como um ciborgue,

então, dados os instrumentos adequados, todos nós podemos ser reconstruídos. Tudo pode ser

escolhido, desde lavar os pratos até legislar sobre a Constituição. Pressupostos básicos como, por

exemplo, decidir se é natural ter uma sociedade baseada na violência e na dominação de um grupo

sobre outro se tornam repentinamente questionados. Talvez os humanos estejam biologicamente

destinados a fazer guerras e a poluir o ambiente. Talvez não.” (Harraway, 2000, p. 25-26).

Neste contexto de reprodução histórica e cultural de estas supostas verdades, em contextos

capitalistas e patriarcais, os processos de reformas legislativos em termos de direitos para as

mulheres não são acompanhados socialmente, o que se traduz em que qualquer tentativa de

exercício de cidadania plena feminina já coloca a mulher como possível alvo de violência.

Assim no caso trazido para a análise, Paola Acosta, por ter iniciado ações legais para o

reconhecimento de sua filha e sua pretensão de exercer o direito a manutenção da menina, ousou

desafiar as “leis” do patriarcado. Desafio que foi entendido como tal por seu femicida, que se

achando impune a matou e tentou fazer a mesma coisa com sua filha (considero que não é

casualidade que a filha também seja mulher e tinha recebido o mesmo trato que sua mãe, mas não

foi interpretado assim por nenhum dos tribunais que julgaram o caso). Particularmente considero

que o fato de ter recorrido à justiça para lutar pelo reconhecimento de sua filha, longe de evidenciar

como principal um suposto "empoderamento" de Paola Acosta expõe fundamentalmente a relação

desigual de poder que existia entre ela e seu femicida, já que por se só ela não conseguiu garantir o

direito de sua filha, senão que deveu acudir à justiça para tentar ser ouvida num reclamo justo.

Por outro lado, interpreto que Lizarralde achava que contava com certo grau de impunidade,

portanto fazendo uso de um lugar de poder privilegiado, pela maneira em que realizou os atos

criminais e posteriormente por exemplo, se apresentou em reiteradas oportunidades com diferentes

versões do ocorrido àquela noite (na delegacia por exemplo tentou inventar que durante as horas de

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desaparição de Paola e M. ele mesmo tinha sido seqüestrado10). Em palavras de Saffioti (2001) “No

exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias

sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que

se lhes apresenta como desvio”. (Saffioti, 2001, p. 115). Círculo que se termina de fechar, ao meu

entender, quando na primeira sentença judicial a pena não corresponde a um “castigo

social/judicial” por femicida, senão que parece mais uma tolerância mascarada para o femicida e

sim um castigo social para o desvio de uma mulher que pretendeu sair da esfera do privado e

apresentar uma demanda por alimentos e reconhecimento da filha. Assim então, quem é finalmente

julgada é a considerada “vítima”, que não se encaixou na idéia moral que se tem desse conceito.

Neste sentido trago para a reflexão se não é novamente o sistema patriarcal operando nas

instituições como a justiça.

Algumas considerações finais

Gostaria de trazer para o analise o considerado por Rifiotis (2015) quem considera

pertinente retomar a noção de judicialização das relações sociais, "como um dispositivo que, ao

mesmo tempo, leva ao reconhecimento e à legitimidade da “violência de gênero” e postula um

tratamento jurídico diferenciado, visando ampliar o acesso à justiça, o que se dá no âmbito de uma

“cultura técnica-política-institucional” atravessada por regimes morais contra os quais a lei objetiva

atua." (Rifiotis, 2015, p. 283). O autor também adverte que "no sistema de justiça penal, a

judicialização implica numa leitura criminalizante e estigmatizada contida na polaridade “vítima-

agressor” (Rifiotis, 2015, p. 265), o que acaba delimitando ambos roles e tipificando em certa

medida o que se espera deles.

Finalmente, considero oportuno de retomar as discussões motivadas pelas leituras de Fassin

(2010), que me fazem pensar na categoria de “vítima” como uma potência moral, como imperativo

moral absoluto. O que significa isto, em definitiva é que circulam nos espaços sociais que se

traduzem cotidianamente nas instituições do Estado, idéias e valores sobre o que é ser realmente

vítima. Fugindo da atenção o fato de que se esta julgando aos culpáveis dos crimes e não os atos das

vítimas, Paola Acosta poderia ter sido até lutadora de boxe, mas isso não a tira da situação de vítima

10 A notícia que relata este fato aparece publicada na versão digital do jornal “La Voz del Interior” no seguinte link. http://www.lavoz.com.ar/ciudadanos/la-increible-coartada-de-lizarralde

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de esse ato e momento particular; como não tira a nenhum homem de situação de vítima quando

quem lhe roubou o carro era mais baixo ou menos corpulento.

Em palavras de Butler (2002) “hay restricciones crueles y fatales a la desnaturalización”, e

sair-se do permitido, tentando liberar-nos das situações que nos oprimem e dominam como

mulheres cotidianamente, nas nossas sociedades patriarcais têm um custo muito alto para nós

mulheres principalmente.

Depois de estas reflexões, gostaria de perguntar olhando no olho para esses juízes e jurados

populares, os de este caso e os de tantos outros que aparecem diariamente no meu pais e no nosso

continente: é qualquer pessoa que um assassino (femicida) joga no esgoto, ou são as mulheres?

Quais são as vidas que vão parar num esgoto ou num saco de lixo? Não são acaso as vidas que tem

menos valor? Na Argentina morre uma mulher cada 30 horas por violência de gênero, será que elas

também não estão sendo mortas por sua condição de mulher nesta sociedade que as enxerga como

inferiores e com menos direito a vida? Então será que a “condição de vítima” de Paola Acosta é a

que é determinada pelo olhar social (de um jurado, de um vizinho, de uma juíza) ou é cada vez mais

imprescindível entender como o femicida de Lizarralde (que nunca quis fazer declaração alguma) a

enxergava?

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http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/150000-154999/152155/norma.htm

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Disponível no link: http://www.lavoz.com.ar/sucesos/hallaron-muerta-paola-acosta-en-una-

alcantarilla-de-cordoba-0

Nota intitulada “La increíble coartada de Lizarralde”. 27/09/2014. Disponível no link:

http://www.lavoz.com.ar/ciudadanos/la-increible-coartada-de-lizarralde

Nota intitulada “El crimen de Paola no fue femicidio porque no hubo relación desigual de

poder”. 22/10/2015. Disponível no link: http://www.lavoz.com.ar/ciudadanos/el-crimen-de-

paola-no-fue-femicidio-porque-no-hubo-relacion-desigual-de-poder

Nota intitulada “Según el fallo por el crimen de Paola, el agravante de femicidio no parece

sencillo de aplicar si la víctima no es una mujer sumisa.” 25/10/2015. Disponível no link:

http://www.lavoz.com.ar/opinion/la-violencia-de-genero-y-los-muros

Secção intitulada: “Caso Paola y M.” Disponível no link:

http://www.lavoz.com.ar/temas/caso-paola-y-M.

Nota intitulada: "Las partes clave del fallo el TSJ sobre el femicidio de Paola Acosta".

09/03/2017. Disponível no link: http://www.lavoz.com.ar/ciudadanos/las-partes-clave-del-

fallo-del-tsj-sobre-el-femicidio-de-paola-acosta

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Moralities and implications around the concept of victim in cases of violence against women.

Analysis of an Argentinean case using a feminist perspective.

Abstract: It is intended to reflect on the moral discourses that revolve around the concept of

"victim" in cases that involve violence against women within the patriarchal system and how they

affect and interfere in judicial processes and the enforcement of their sentences. Primarily, the

speeches analyzed are located in judicial bodies and their representatives (delegates, judges, juries,

etc.), but also understanding that they are not alien to the social discourses that circulate in the

community. The reflection will be done taking as an example a case of Argentinean femicide,

which involved violations of women`s human rights. The femicide referred to is the one that has

Paola Acosta as a fatal victim, she was killed by the father of his daughter (who suffered attempted

femicide too) in September 2014. The judicial sentence and extracts from some of the main

publications in a journal with a virtual edition, which made a chronological report of the case and

judgments regarding the judicial sentence, will be the base for the analysis. The discussions that

revolve around the theme presented will be proposed from a feminist perspective, including

theoretical reference of the areas of anthropology of violence and moral anthropology, and also will

include the legislative framework pertinent to the case.

Keywords: gender, violence against women, victim, moralities, justice