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SALVADOR DOMINGO 6/4/2014 B10 BRASIL Cidades e canções Será que Dilma confundiu o “Samba do avião” com o “Samba de Orly”? João San- tana é que não pode ter sido. Quanta confusão! A Bahia tá viva ainda lá. Fui fazer uma palestra musicada em Salva- dor, para o pessoal do Projeto Axé. Essa organização se de- dica à educação dos meninos e meninas de rua de Salvador. “De rua”, aliás, é uma carac- terização que os dirigentes do Axé não aprovam. Eles vêm realizando um trabalho importante na Bahia há quase 25 anos. Discípulo de Anísio Teixeira e de Paulo Freire, Cesare Rocco tem en- contrado, com sua admirável turma de colaboradores, meios de estimular uma ga- rotada arrancada da desespe- rança a desejar crescer inte- lectual, afetiva e moralmente. A “aula” que eu me compro- meti a dar era sobre Caymmi. Melhor assunto não há. Levei meu violão e cantei algumas das muitas canções que sei desse autor (antiga- mente eu tinha a ilusão de que sabia todas: ele não tem um repertório muito extenso, tendo sempre preferido con- centrar-se na qualidade, ou melhor, na necessidade do aparecimento de certas can- ções). Foi uma ida relâmpago a minha terra. Antes eu tinha estado em Belém, uma das cidades mais bonitas e con- dutoras da imagem que o Bra- sil faz de si mesmo. Ao menos através de mim. O voo do Rio a Belém dura três horas e meia. Na noite da minha ida houve um atraso de quatro horas, acho que de- vido ao acidente com o avião que pousou sem trem de ater- rissagem em Brasília. O Galeão não está nada pa- recido com o samba de Tom (onde ele usa o verbo “ater- rar”, como em Portugal, coisa de que gosto muito, mas teve gente que quis traduzir para “pousar”, que nem fica bem As cidades brasileiras ficaram feias com o êxodo rural e o crescimento urbano. Parece insuperável? Espero o destino grandioso Caetano Veloso Cantor e compositor na métrica da melodia — e Dilma comprou essa versão), de modo que ficar quatro ho- ras lá não foi propriamente reconfortante. Sou, suponho, o exato opos- to de Karim Aïnouz, para quem o paraíso é o aeroporto de Frankfurt e que adora co- nexões de voo longas. Poucos sabem, mas foi Caymmi quem pôs letra na introdução do “Samba do avião”. Aliás, nem me referi a isso em mi- nha fala, que foi improvisada e cheia de anedotas, mas mui- to ambiciosa. “A Bahia tá viva ainda lá”, a propósito, é tam- bém de Caymmi: do samba “Adalgisa”, uma dessas joias caymmianas que a gente qua- se não consegue distinguir dos cantos tradicionais e anô- nimos. A ida a Belém teve profun- do significado para mim. Há uma canção que fala no Pará em “Abraçaço” e até agora ne- nhum eco me tinha chegado desde Belém: seja por comen- tários de amigos de lá, seja traduzido em convite para apresentações, nada. A canção, chamada “O im- pério da lei”, é, aos meu olhos, um monstrengo que me saiu, irrecacavelmente, quando as- sisti a “Receberia as piores no- tícias dos seus lindos lábios”. A expressão que lhe dá título é um chavão dos liberais que descrevem as conquistas do Ocidente moderno. Toda a letra se aferra a um prosaísmo semelhante àque- lede“ABasedeGuantánamo”, só que sem a mesma coesão e qualidade desta. A melodia la- mentosa, em tom menor, da segunda parte me foi inspi- rada pela cena do filme em que, num comício, Dona One- te canta um carimbó. Não pe- la música que ela cantava, mas pelo sentimento que re- sultava da combinação das ce- nas com o canto dela. Surpresa Pois bem, para minha surpre- sa, em todos os lugares do Brasil por onde passei com o show do “Abraçaço” a plateia cantava comigo esse trecho, o que me comovia. O show em Belém era num clube luso, muito simpático, mas parecia que na plateia não estariam as pessoas que em geral cantam: gente jovem e conhecedora do “Abraçaço”. Bem, entrei no palco satis- feito com o que tinha visto de Belém durante a tarde (as pra- ças, as ruas com mangueiras, a cara das pesaoas, o açaí sem xarope de guaraná, o Ver-o-Peso e a Feliz Lusitânia, tudo em bom estado, muito limpo e mantendo uma dig- nidade de causar inveja em qualquer Salvador): se o pú- blico mostrasse apenas impa- ciência e desconhecimento, eu não me queixaria nem in- timamente. Mas foi o contrá- rio. Cantaram “Abraçaço”, “Um comunista”, “Odeio”, tu- do, e, mais que tudo, a segun- da parte de “O império da lei”, que pela primeira vez deixei toda para a assistência. Peguei um ita no norte. Chorei. A Bahia de ACM Neto (calçadões na Barra e recapea- mentos) me pareceu muito melhor. Tomara que a ambi- ção política de Grampinho se traduza em limpeza total e diária da areia do Porto da Barra (da praia e do fundo), qualquer coisa assim grande, que traga de volta o orgulho da população. Isso pode mudar muita coi- sa. As cidades brasileiras fi- caram feias com o êxodo rural e o crescimento urbano. Pa- rece insuperável? Espero o destino grandioso. O que vi em Belém (a música que fiz com Donato na cabeça) dá confiança. Porque não há so- nho mais lindo do que sua terra, não há. LUTO O ator, um dos mais consagrados da dramaturgia brasileira, será cremado hoje no cemitério Memorial do Carmo, Rio José Wilker morre de enfarte aos 66 anos ESTADÃO CONTEÚDO Rio de Janeiro Um dos grandes atores bra- sileiros, com 50 anos de car- reira, e também diretor e crí- tico de cinema, José Wilker morreu na manhã de ontem, no Rio, aos 66 anos, do co- ração. Ele estava dormindo no apartamento da namorada, a jornalista Claudia Montene- gro, em Ipanema, na zona sul, quando teve um infarto agu- do do miocárdio, por volta das 10h. O socorro foi chamado por Claudia, mas os médicos não conseguiram reanimar o ator. Wilker deixa as filhas Isabel e Mariana. Ele foi casado três vezes, com as atrizes Renée de Vielmond, Mônica Torres e Guilhermina Guinle, e namo- rava Claudia Montenegro há três anos. O velório teve início ontem à noite no Teatro Ipanema, zona sul do Rio, por volta das 23h. Wilker será cremado hoje à tarde no cemitério Memo- rial do Carmo, na zona por- tuária da cidade. O teatro foi escolhido pela família para o velório em razão da história de Wilker com o local. Foi no Teatro Ipanema onde Wilker começou como ator no Rio. O ator foi dormir bem na noite anterior, depois de en- saiar uma peça que pretendia estrear com o ator Ary Fon- toura. Colegas da TV, do teatro e do cinema acordaram atô- nitos com a notícia, uma vez que Wilker tinha boa saúde. Mostraram certo alívio com o fato de ele ter morrido dor- mindo, sem sofrimento. A atriz Renata Sorrah, ami- ga desde os anos 1960, disse que “todo mundo ficou cho- cado. Além de ser meu amigo, foi o ator com quem mais tra- balhei. Fiz a primeira peça que ele escreveu e estreou no Rio, Trágico Acidente que des- tronou Tereza (de 1968). Era um ator brilhante, um ho- mem brilhante. Foi um ho- mem de teatro, e depois de cinema e de TV. Eu sempre ligava pra ele se tinha alguma dúvida de trabalho, e ele sem- pre tinha opiniões precisas”. Informado do falecimento pela reportagem, o ator Car- los Vereza ficou sem palavras. “A vida é muito sem lógica. Ele era jovem ainda, competente e corajoso. Trabalhamos jun- tos no teatro e na TV. Quando Wilker veio, na época do gol- pe, para o Rio, eu o dirigi no Morte e Vida Severina”. A atriz Arlete Salles “sem- pre irá lembrar de Wilker com um sorriso no rosto, jamais angustiado”.“Eraapaixonado pelo que fazia, pela vida. Era um homem para se gostar, para se sentir saudades”. O ator Marcelo Serrado, que ano passado foi dirigido por Wil- ker na peça Rain Man, con- versou com o amigo longa- mente pelo telefone no sába- do passado, e que ele estava perfeitamente normal. “Eu estou tão devastado que não consigo falar. A classe inteira está assim. A gente ti- nha um projeto junto para a Rede Globo e íamos fazer uma peça. Ele não tinha nenhum problema”. Colecionador Amável e educado, Wilker era conhecido por ser extrema- mente culto. Era colecionador de DVDs de filmes (tinha mais de 8 mil) e livros (mais de 10 mil) e apaixonado pelo traba- lho de colegas norte-america- nos, como Marlon Brando, Ro- bert de Niro e Al Pacino. Tinha carinho especial por personagens como o Vadinho de Dona Flor e seus dois ma- Embrafilme / Divulgação Atuação marcante em Dona Flor e Seus Dois Maridos Divulgação Herbert, na novela Amor à Vida, foi o último papel na TV Carreira teve passagens marcantes na Bahia, onde deixou muitos fãs FERNANDA SOARES E EDUARDA UZÊDA José Wilker tinha um forte la- ço com a Bahia, dado pela atuação em filmes e novelas que, de alguma forma, tive- ram passagem pelo local, seja através de adaptação de obras de Jorge Amado a locação de filmagens. O artista veio pela primeira vez ao interior da Bahia, em Lençóis, em 1977, para realizar as filmagens de Diamante Bruto, de Orlando Senna, e regressou em 1997, em Juazeiro, para protagoni- zar o filme Guerra de Canu- dos. Mesmo com apenas duas passagens pela região, atuou em adaptações de obras de Jorge Amado para o cinema e a televisão, respectivamente em Dona Flor e seus Dois Ma- ridos e Gabriela. Orlando Senna, diretor de Diamante Bruto, comenta que Wilker sentiu-se em casa enquanto estava no set de fil- magens em Lençóis. “Ele achava a experiência mara- vilhosa. Dizia que tinha vol- tado à infância, pois o lugar remetia à sua cidade natal”. “A perda de uma pessoa co- mo Wilker é muito grande. Ele era um artista especial, múl- tiplo”, declarou. A notícia da morte de José Wilker também repercutiu no meio teatral baiano. O ator Carlos Betão (Sargento Getú- lio) soube da morte de Wilker em Santa Catarina, onde está em excursão com a monta- gem baiana. “Trabalhei na série Gabrie- la, onde Wilker atuava. Não tive grande aproximação com ele, mas foi bastante para en- tender que ele era um mestre. Minha sensação é de orfan- dade. É como se perdesse um pai”, lamentou. Em Gabriela, o ator atuou tanto na telenovela de 1975 quanto na série de TV exibida em 2012 “Eu estou tão devastado que não consigo falar. A classe inteira está assim” MARCELO SERRADO ator “Ele era um apaixonado pela profissão, dava uma dimensão profunda a ela” MALU MADER atriz “A vida é muito sem lógica. Ele era jovem, competente e corajoso” CARLOS VEREZA ator Divulgação Na Bahia, Wilker atuou também em Diamante Bruto A notícia da morte de José Wilker também repercutiu no meio teatral baiano ridos, o seu maior sucesso no cinema (o filme de Bruno Bar- reto, de 1976, foi recordista de público do cinema brasileiro por 34 anos). Recentemente, mesmo com cinco décadas de dramaturgia, revelou, numa entrevista: “Eu sou uma pessoa que até hoje não sabe se quer ser ator. Eu tenho crises e falo: ‘Ah, essa coisa não é a minha praia, não quero fazer mais isso’. Na mi- nha cabeça, devo ter 20 anos de idade. Tenho o mesmo tipo de furor que lembro de ter tido aos cronológicos 20 anos, te- nho o mesmo tipo de dúvida, de inquietação, de seguranças e inseguranças”. Cearense de Juazeiro do Norte, Wilker descobriu o amor à arte pelo rádio. Quan- do tinha 13 anos, seus pais se mudaram para Pernambuco, onde ele começaria a traba- lhar como radialista e ator – começou como membro do Movimento de Cultura Popu- lar no Recife. Já no Rio de Janeiro, seu pri- meiro papel no cinema foi no filme A Falecida ao lado de Fernanda Montenegro. Wil- ker, entretanto, ganhou gran- de destaque ao lado de Sônia Braga em Dona Flor e seus dois maridos, de 1976. O ator criou também personagens me- moráveis na televisão, como Rodrigo, em Anjo Mau, e Ro- que Santeiro na novela de mesmo nome de 1985. Frequente comentarista do Oscar na TV, também era crí- tico de cinema. Em 1996 ele lançou o livro Como Deixar um Relógio Emocionado, que compilou várias de suas crí- ticas. Em 2004, Wilker inter- pretou o ex-bicheiro Giovan- ni Improtta em Senhora do Destino. Seu último papel na TV foi como o médico Her- bert, da novela Amor à Vida. “Nos presenteou com atuações que viraram ícones do cinema e da TV” DILMA ROUSSEFF presidente

Morte de José Wilker

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Matéria feita juntamente com a jornalista Eduarda Uzêda, com entrevistas do cineasta Orlando Senna e o ator Carlos Betão. Caderno Brasil do jornal A TARDE.

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Page 1: Morte de José Wilker

SALVADOR DOMINGO 6/4/2014B10 BRASIL

Cidades e canções

Será que Dilma confundiu o“Samba do avião” com o“Samba de Orly”? João San-tana é que não pode ter sido.Quanta confusão! A Bahia táviva ainda lá. Fui fazer umapalestra musicada em Salva-dor, para o pessoal do ProjetoAxé. Essa organização se de-dica à educação dos meninose meninas de rua de Salvador.“De rua”, aliás, é uma carac-terização que os dirigentes doAxé não aprovam.

Eles vêm realizando umtrabalhoimportantenaBahiahá quase 25 anos. Discípulo deAnísio Teixeira e de PauloFreire, Cesare Rocco tem en-contrado, com sua admirávelturma de colaboradores,meios de estimular uma ga-rotada arrancada da desespe-rança a desejar crescer inte-lectual, afetiva e moralmente.

A “aula” que eu me compro-meti a dar era sobre Caymmi.Melhor assunto não há.

Levei meu violão e canteialgumas das muitas cançõesque sei desse autor (antiga-mente eu tinha a ilusão deque sabia todas: ele não temumrepertóriomuitoextenso,tendo sempre preferido con-centrar-se na qualidade, oumelhor, na necessidade doaparecimento de certas can-ções). Foi uma ida relâmpagoa minha terra. Antes eu tinhaestado em Belém, uma dascidades mais bonitas e con-dutoras da imagem que o Bra-sil faz de si mesmo. Ao menosatravés de mim.

O voo do Rio a Belém duratrês horas e meia. Na noite daminha ida houve um atrasode quatro horas, acho que de-vido ao acidente com o aviãoque pousou sem trem de ater-rissagem em Brasília.

O Galeão não está nada pa-recido com o samba de Tom(onde ele usa o verbo “ater-rar”, como em Portugal, coisade que gosto muito, mas tevegente que quis traduzir para“pousar”, que nem fica bem

As cidadesbrasileirasficaram feiascom o êxodorural e ocrescimentourbano. Pareceinsuperável?Espero o destinograndioso

Caetano VelosoCantor e compositor

na métrica da melodia — eDilma comprou essa versão),de modo que ficar quatro ho-ras lá não foi propriamentereconfortante.

Sou,suponho,oexatoopos-to de Karim Aïnouz, paraquem o paraíso é o aeroportode Frankfurt e que adora co-nexões de voo longas. Poucossabem, mas foi Caymmiquem pôs letra na introduçãodo “Samba do avião”. Aliás,nem me referi a isso em mi-nha fala, que foi improvisadae cheia de anedotas, mas mui-to ambiciosa. “A Bahia tá vivaainda lá”, a propósito, é tam-bém de Caymmi: do samba“Adalgisa”, uma dessas joiascaymmianas que a gente qua-se não consegue distinguirdos cantos tradicionais e anô-nimos.

A ida a Belém teve profun-do significado para mim. Háuma canção que fala no Paráem “Abraçaço” e até agora ne-nhum eco me tinha chegadodesde Belém: seja por comen-tários de amigos de lá, sejatraduzido em convite paraapresentações, nada.

A canção, chamada “O im-

pério da lei”, é, aos meu olhos,um monstrengo que me saiu,irrecacavelmente, quando as-sisti a “Receberia as piores no-tícias dos seus lindos lábios”.A expressão que lhe dá títuloé um chavão dos liberais quedescrevem as conquistas doOcidente moderno.

Toda a letra se aferra a umprosaísmo semelhante àque-lede“ABasedeGuantánamo”,só que sem a mesma coesão e

qualidadedesta.Amelodiala-mentosa, em tom menor, dasegunda parte me foi inspi-rada pela cena do filme emque, num comício, Dona One-te canta um carimbó. Não pe-la música que ela cantava,mas pelo sentimento que re-sultava da combinação das ce-nas com o canto dela.

SurpresaPois bem, para minha surpre-sa, em todos os lugares doBrasil por onde passei com oshow do “Abraçaço” a plateiacantava comigo esse trecho, oque me comovia. O show emBelém era num clube luso,muito simpático, mas pareciaquenaplateianãoestariamaspessoas que em geral cantam:gente jovem e conhecedorado “Abraçaço”.

Bem, entrei no palco satis-feito com o que tinha visto deBelém durante a tarde (as pra-ças, as ruas com mangueiras,a cara das pesaoas, o açaí semxarope de guaraná, oVer-o-Peso e a Feliz Lusitânia,tudo em bom estado, muitolimpo e mantendo uma dig-nidade de causar inveja em

qualquer Salvador): se o pú-blico mostrasse apenas impa-ciência e desconhecimento,eu não me queixaria nem in-timamente. Mas foi o contrá-rio. Cantaram “Abraçaço”,“Um comunista”, “Odeio”, tu-do, e, mais que tudo, a segun-da parte de “O império da lei”,que pela primeira vez deixeitoda para a assistência.

Peguei um ita no norte.Chorei. A Bahia de ACM Neto(calçadões na Barra e recapea-mentos) me pareceu muitomelhor. Tomara que a ambi-ção política de Grampinho setraduza em limpeza total ediária da areia do Porto daBarra (da praia e do fundo),qualquer coisa assim grande,que traga de volta o orgulhoda população.

Isso pode mudar muita coi-sa. As cidades brasileiras fi-caramfeiascomoêxodorurale o crescimento urbano. Pa-rece insuperável? Espero odestino grandioso. O que viem Belém (a música que fizcom Donato na cabeça) dáconfiança. Porque não há so-nho mais lindo do que suaterra, não há.

LUTO O ator, um dos mais consagrados da dramaturgia brasileira, será cremado hoje no cemitério Memorial do Carmo, Rio

José Wilker morre de enfarte aos 66 anosESTADÃO CONTEÚDORio de Janeiro

Um dos grandes atores bra-sileiros, com 50 anos de car-reira, e também diretor e crí-tico de cinema, José Wilkermorreu na manhã de ontem,no Rio, aos 66 anos, do co-ração. Ele estava dormindo noapartamento da namorada, ajornalista Claudia Montene-gro, em Ipanema, na zona sul,quando teve um infarto agu-do do miocárdio, por volta das10h. O socorro foi chamadopor Claudia, mas os médicosnão conseguiram reanimar oator.

Wilker deixa as filhas Isabele Mariana. Ele foi casado trêsvezes, com as atrizes Renée deVielmond, Mônica Torres eGuilhermina Guinle, e namo-rava Claudia Montenegro hátrês anos.

O velório teve início ontemà noite no Teatro Ipanema,zona sul do Rio, por volta das23h. Wilker será cremado hojeà tarde no cemitério Memo-rial do Carmo, na zona por-tuária da cidade. O teatro foiescolhido pela família para ovelório em razão da históriade Wilker com o local. Foi noTeatro Ipanema onde Wilkercomeçou como ator no Rio.

O ator foi dormir bem nanoite anterior, depois de en-saiar uma peça que pretendiaestrear com o ator Ary Fon-toura. Colegas da TV, do teatroe do cinema acordaram atô-nitos com a notícia, uma vezque Wilker tinha boa saúde.Mostraram certo alívio com ofato de ele ter morrido dor-mindo, sem sofrimento.

A atriz Renata Sorrah, ami-ga desde os anos 1960, disseque “todo mundo ficou cho-cado. Além de ser meu amigo,foi o ator com quem mais tra-balhei. Fiz a primeira peça

que ele escreveu e estreou noRio, Trágico Acidente que des-tronou Tereza (de 1968). Eraum ator brilhante, um ho-mem brilhante. Foi um ho-mem de teatro, e depois decinema e de TV. Eu sempreligava pra ele se tinha algumadúvida de trabalho, e ele sem-pre tinha opiniões precisas”.

Informado do falecimentopela reportagem, o ator Car-los Vereza ficou sem palavras.“A vida é muito sem lógica. Eleera jovem ainda, competentee corajoso. Trabalhamos jun-tos no teatro e na TV. QuandoWilker veio, na época do gol-pe, para o Rio, eu o dirigi noMorte e Vida Severina”.

A atriz Arlete Salles “sem-pre irá lembrar de Wilker comum sorriso no rosto, jamaisangustiado”. “Eraapaixonadopelo que fazia, pela vida. Eraum homem para se gostar,para se sentir saudades”. Oator Marcelo Serrado, que anopassado foi dirigido por Wil-ker na peça Rain Man, con-versou com o amigo longa-mente pelo telefone no sába-do passado, e que ele estavaperfeitamente normal.

“Eu estou tão devastadoque não consigo falar. A classeinteira está assim. A gente ti-nha um projeto junto para aRedeGloboe íamosfazerumapeça. Ele não tinha nenhumproblema”.

ColecionadorAmável e educado, Wilker eraconhecido por ser extrema-mente culto. Era colecionadorde DVDs de filmes (tinha maisde 8 mil) e livros (mais de 10mil) e apaixonado pelo traba-lho de colegas norte-america-nos, como Marlon Brando, Ro-bert de Niro e Al Pacino.

Tinha carinho especial porpersonagens como o Vadinhode Dona Flor e seus dois ma-

Embrafilme / Divulgação

Atuação marcante em Dona Flor e Seus Dois Maridos

Divulgação

Herbert, na novela Amor à Vida, foi o último papel na TV

Carreira teve passagens marcantesna Bahia, onde deixou muitos fãsFERNANDA SOARESE EDUARDA UZÊDA

José Wilker tinha um forte la-ço com a Bahia, dado pelaatuação em filmes e novelasque, de alguma forma, tive-ram passagem pelo local, sejaatravés de adaptação de obrasde Jorge Amado a locação defilmagens. O artista veio pelaprimeira vez ao interior daBahia, em Lençóis, em 1977,para realizar as filmagens deDiamante Bruto, de OrlandoSenna, e regressou em 1997,em Juazeiro, para protagoni-zar o filme Guerra de Canu-

dos. Mesmo com apenas duaspassagens pela região, atuouem adaptações de obras deJorge Amado para o cinema ea televisão, respectivamenteem Dona Flor e seus Dois Ma-ridos e Gabriela.

Orlando Senna, diretor deDiamante Bruto, comentaque Wilker sentiu-se em casaenquanto estava no set de fil-magens em Lençóis. “Eleachava a experiência mara-vilhosa. Dizia que tinha vol-tado à infância, pois o lugarremetia à sua cidade natal”.

“A perda de uma pessoa co-mo Wilker é muito grande. Ele

era um artista especial, múl-tiplo”, declarou.

A notícia da morte de JoséWilker também repercutiu nomeio teatral baiano. O atorCarlos Betão (Sargento Getú-lio) soube da morte de Wilkerem Santa Catarina, onde estáem excursão com a monta-gem baiana.

“Trabalhei na série Gabrie-la, onde Wilker atuava. Nãotive grande aproximação comele, mas foi bastante para en-tender que ele era um mestre.Minha sensação é de orfan-dade. É como se perdesse umpai”, lamentou.

Em Gabriela, oator atuou tantona telenovela de1975 quanto nasérie de TVexibida em 2012

“Eu estou tãodevastado quenão consigofalar. A classeinteira estáassim”MARCELO SERRADO ator

“Ele era umapaixonado pelaprofissão, davauma dimensãoprofunda a ela”MALU MADER atriz

“A vida é muitosem lógica. Eleera jovem,competente ecorajoso”CARLOS VEREZA ator

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Na Bahia, Wilker atuou também em Diamante Bruto

A notícia damorte de JoséWilker tambémrepercutiu nomeio teatralbaiano

ridos, o seu maior sucesso nocinema (o filme de Bruno Bar-reto, de 1976, foi recordista depúblico do cinema brasileiropor 34 anos).

Recentemente, mesmo comcinco décadas de dramaturgia,revelou, numa entrevista: “Eusou uma pessoa que até hojenão sabe se quer ser ator. Eutenho crises e falo: ‘Ah, essacoisa não é a minha praia, nãoquero fazer mais isso’. Na mi-nhacabeça,devoter20anosdeidade. Tenho o mesmo tipo defuror que lembro de ter tidoaos cronológicos 20 anos, te-nho o mesmo tipo de dúvida,de inquietação, de segurançase inseguranças”.

Cearense de Juazeiro doNorte, Wilker descobriu oamor à arte pelo rádio. Quan-do tinha 13 anos, seus pais semudaram para Pernambuco,onde ele começaria a traba-lhar como radialista e ator –começou como membro doMovimento de Cultura Popu-lar no Recife.

Já no Rio de Janeiro, seu pri-meiro papel no cinema foi nofilme A Falecida ao lado deFernanda Montenegro. Wil-ker, entretanto, ganhou gran-de destaque ao lado de SôniaBraga em Dona Flor e seus doismaridos, de 1976. O ator crioutambém personagens me-moráveis na televisão, comoRodrigo, em Anjo Mau, e Ro-que Santeiro na novela demesmo nome de 1985.

Frequente comentarista doOscar na TV, também era crí-tico de cinema. Em 1996 elelançou o livro Como Deixarum Relógio Emocionado, quecompilou várias de suas crí-ticas. Em 2004, Wilker inter-pretou o ex-bicheiro Giovan-ni Improtta em Senhora doDestino. Seu último papel naTV foi como o médico Her-bert, da novela Amor à Vida.

“Nos presenteoucom atuaçõesque viraramícones docinema e da TV”DILMA ROUSSEFF presidente