MOURA, Roberto, Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro

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  • TIA CIATATIA CIATATIA CIATATIA CIATA e a Pequena frica no Rio de Janeiro

    Heitor dos Prazeres. Batuque no samba. 1965. leo s/tela, 63x50 cm. In: Cinqenta anos de samba. Calendrio Pirelli, 1968.

  • PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

    Cesar Maia

    SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA

    Helena Severo

    DEPARTAMENTO GERAL DE DOCUMENTAO E INFORMAO CULTURAL

    Graa Salgado

    DIVISO DE EDITORAO

    Heloisa Frossard

    CONSELHO EDITORIAL

    Graa Salgado (presidente), Margareth da Silva Pereira,

    Renato Cordeiro Gomes, Alexandre Mendes Nazareth,

    Heloisa Frossard, Margarida de Souza Neves, Paulo Elian

    dos Santos, Anna Maria Rodrigues, Lygia Marina Pires de

    Moraes, Heloisa Buarque de Hollanda e Beatriz Resende.

  • TIA CIATA e a Pequena frica

    no Rio de Janeiro

    Roberto Moura

    1995 2 Edio

    revista pelo autor

    Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro Secretaria Municipal de Cultura

    Departamento Geral de Documentao e Informao Cultural Diviso de Editorao

  • Coleo BIBLIOTECA CARIOCA Volume 32 Srie publicao cientfica Organizadora Heloisa Frossard 1995 by Roberto Moura Printed in Brazil /Impresso no Brasil ISBN 85-85632-05-4 Capa e projeto grfico da coleo

    Heloisa Frossard Equipe de editorao

    Clia Almeida Cotrim, Diva Maria Dias Graciosa, Paulo Roberto de Arajo Santos e Rosemary de Siqueira Ramos

    Pesquisa ngela Nenzy, Cida Dacosta e Elizabeth Formaggini

    Reprodues fotogrficas Antnio Luis Mendes Soares, Henrique Sodr e Roberto Machado Junior

    Gravaes Paulo Baiano Fortes

    1 Edio: 1983; FUNARTE, Coleo MPB. Instituto Nacional de Msica/ Diviso de

    Msica Popular Monografia vencedora do concurso sobre a vida e obra de Tia Ciata promovido pela FUNARTE. Comisso julgadora: Trik de Souza, Ary Vasconcelos, Lygia Santos, Paulo Tapajs, Ana Maria Bahiana e Albino Pinheiro. Agradecimento especial: IBAC/FUNARTE pela cesso dos fotolitos das imagens catalogao: Diretoria de Bibliotecas C/DGDI

    Moura, Roberto, 1947- M929

    Tia Ciata e a Pequena frica no Rio de Janeiro/Roberto Moura. 2 edio Rio de Janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Diviso de Editorao, 1995.

    178 p.: il. (Coleo Biblioteca Carioca; v. 32. srie publicao

    cientfica)

    1. Negros Rio de Janeiro (RJ). 2. Tia Ciata. 3. Almeida, Hilria Batista Biografia. 4. Msica popular brasileira Rio de Janeiro (RJ) Histria e crtica. 5. Abolio Brasil. I. Ttulo. IL Srie.

    CDD 305.89608153 CDU 816.356.4(815.3-96)

    Diviso de Editorao C/DGDI rua Amoroso Lima n 15, sala 112 Cidade Nova 20211-120 Rio de Janeiro RJ Telefone (021) 273-3141 Telefax (021) 273-4582

  • ORELHAS DO LIVRO Roberto Moura focaliza um Rio de Janeiro subalterno,

    eventualmente marginal, indefinido, a partir da virada do ltimo

    sculo, que teria particular expressividade no engendramento da

    identidade moderna da cidade. Ao lado da histria de Tia Ciata e

    da dispora baiana no Rio, um trabalho de contexto que inter-

    relaciona e desvenda esta cidade, em contrapartida quela que se

    civiliza no Centro e na Zona Sul, redefinida pela reforma do prefeito

    Pereira Passos. Abrindo a obra com um painel da situao poltica

    nacional, quando da Abolio e do advento da Repblica, o autor

    traa o roteiro da vinda dos negros de Salvador para o Rio de

    Janeiro, uma histria possvel, uma histria banal, sublime,

    vergonhosa. E mostra como a colnia baiana se impe no mundo

    carioca, em torno de seus lderes vindos dos postos do candombl e

    dos grupos festeiros, cuja influncia se estenderia a toda a

    comunidade heterognea que se formou nos bairros, em torno do

    cais do porto e depois na Cidade Nova, tocada pelas

    transformaes urbanas.

    So revisitadas figuras lendrias como Hilrio, o mais

    fecundo fundador de ranchos e sujos do Carnaval carioca; a casa

    de candombl de Joo Alab, com as tias Amlia, me de Donga,

    Perciliana, me de Joo Baiana, e a mais famosa de todas, Tia

    Ciata, cuja casa se tornar a capital na Pequena frica, em torno

    da Praa Onze.

    Mais do que em qualquer cidade brasileira, a diversificao

    da vida e o ritmo cosmopolita do Rio de Janeiro permitiriam que

    certos hbitos musicais dos negros se encontrassem com a msica

    ocidental de feio popular. O maxixe e o seu sucessor, o samba,

    acharam terreno propcio na Cidade Nova: festeiros baianos,

    msicos e compositores negros, em processo de profissionalizao,

  • e empresrios da catica vida noturna da cidade criariam as

    formas da cano popular carioca, antecedendo uma gerao de

    compositores que, junto com burgueses de Vila Isabel, depois de

    1930, fariam a poca de ouro da msica popular brasileira.

    Assim definida por uma densa experincia scio-cultural,

    quase sempre omitida pelos meios de informao da poca,

    sedimenta-se, j no fim da Repblica Velha, uma verdadeira cultura

    popular carioca, que se mostraria, ao lado dos novos hbitos

    civilizatrios das elites, fundamental na redefinio do Rio de

    Janeiro e na formao de sua personalidade moderna.

    Fruto do encontro de uma

    fluminense com um paraense no Rio

    de Janeiro, Roberto Moura, pai de

    Pedro e Alice, tricolor.

    Cineasta, dirigiu e produziu na

    Corisco Filmes, desde os anos 70,

    firmemente sediada na praa

    Tiradentes, uma linha de

    documentrios que lanam olhar

    potico-antropolgico sobre a cidade,

    abordando as repercusses da modernidade no povo negro e sua

    expresso atravs da indstria cultural. Filmes e livros, como os

    escritos e filmados sobre Tia Ciata e Cartola.

    Nos anos 80, comeou a experimentar a fico numa srie de

    trabalhos que desembocaram num filme protagonizado por

    Grande Othelo, uma biografia precoce de uma gerao ps-

    Cinema Novo. Esse longa foi sua tese em Cinema no doutorado da

    Escola de Comunicao e Artes da Universidade de S. Paulo,

    depois de ter se graduado e feito o mestrado na Escola de

  • Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro. , h

    alguns anos, professor do Departamento de Cinema e Vdeo da

    Universidade Federal Fluminense, e com a equipe temperada por

    profissionais e alunos que est realizando seus novos projetos:

    uma pesquisa sobre a representao do Rio no cinema e um novo

    filme que, novamente da Tiradentes, busca a cidade.

  • SUMRIO

    NOTA DO AUTOR

    APRESENTAO 1 EDIO

    ABOLIO & REPBLICA: A SITUAO POLTICA NACIONAL

    DE SALVADOR PARA O RIO DE JANEIRO

    O RIO DE JANEIRO DOS BAIRROS POPULARES

    VIDA DE SAMBISTA E TRABALHADOR

    GEOGRAFIA MUSICAL DA CIDADE

    A PEQUENA FRICA E O REDUTO DE TIA CIATA

    AS BAIANAS NA FESTA DA PENHA

    A POLMICA DO PELO TELEFONE

    AS TRANFORMAES NA COMUNIDADE NEGRA E A VIDA NO RIO DE JANEIRO NO INCIO DO SCULO

    LBUM DE FAMLIA

    LEMBRANAS, IMPRESSES & FANTASIAS

    BIBLIOGRAFIA

  • NOTA DO AUTOR

    Uma oportunidade de reescrever algumas partes e

    acrescentar coisas do que se conversou ou publicou nesses dez

    anos que separam a primeira desta edio. E de trazer no captulo

    GEOGRAFIA MUSICAL DA CIDADE ponto partida para o

    trabalho que escrevo agora sobre o nascimento e a peculiaridade

    da indstria cultural no Brasil, os pioneiros negros do espetculo-

    negcio na reinveno do Rio de Janeiro, algumas idias mui

    abrangentes, latinoafromundistas, fruto dos papos e trocas de

    textos com meu amigo Alejo Ulloa. Mas basicamente o mesmo

    livro, um dos trabalhos que mais me deu alegria pela

    multiplicidade de coisas que me trouxe e provocou.

    E ele teve uma verso cinematogrfica, se eu puder dizer

    assim, pela maneira extremamente livre que lidei com o livro, j

    que sabia que o autor no ia reclamar. O filme, um mdia

    metragem 16mm OK JUMBEBA A PEQUENA FRICA NO RIO

    DE JANEIRO, um documentrio elaborado com recursos

    ficcionais, se organiza em pequenas cenas, suscitadas por charges

    da poca dramatizadas por atores, em torno da revolta popular de

    1904. Um trabalho surpreendente para alguns a quem sou

    apresentado pelo livro sem saber que perteno ao Cinema, e

    esperam uma ilustrao audiovisual do que leram. Mas j em seu

    prlogo as imagens vem sujas, desordenadas, preferindo soluo

    institucional sugerir um filme primitivo de uma outra era. As

    partes que ficcionam os acontecimentos na virada do sculo

  • procuram aquele cinema pr-giftiano que se fazia num surto

    precoce no Rio da poca 200 filmes por ano, escuta essa, eram

    filmados aqui antes de se organizar o sistema internacional de

    distribuio que ainda nos ocupa! Os elementos conceituais do

    samba e suas entidades em sua marcante & conflituada presena

    na cidade do Rio de Janeiro, a possibilidade que o Cinema trs de

    buscar um olhar da poca a partir dos pintores e desenhistas

    negros, sugerindo com suas imagens, procedimentos

    cinematogrficos.

    Essa nova edio tem a parceria incisiva e carinhosa de

    Heloisa Frossard, com quem discuti e trabalhei todas as fases

    desses 2.000 livrinhos, cada um dedicado a algum e todos a essa

    cidade nesse final de milnio.

    Roberto Moura

    Dezembro de 1994

    [pg. 09]

  • APRESENTAO PRIMEIRA EDIO

    Este livro o desdobramento de um trabalho realizado

    inicialmente em cinema sobre o Rio de Janeiro subalterno e

    eventualmente marginal, redefinido a partir da virada do sculo

    que teria uma particular expressividade para essa cidade no

    engendramento de sua identidade moderna.

    Em torno da Corisco Filmes, organizamos um pequeno

    centro de informao primariamente voltado para a vida carioca,

    que, tendo produzido filmes sobre o tema, agora termina esse

    primeiro texto como resposta s prprias dificuldades de pesquisa

    e resultado das discusses que mantivemos nesses anos de

    trabalho. Assim, ao lado da histria da Tia Ciata e de sua dispora

    baiana no Rio de Janeiro, tomou corpo a nostalgia por um

    trabalho de contexto que interrelacionasse e desvendasse este Rio

    de Janeiro, em contrapartida quele que se civiliza no Centro e

    na Zona Sul, redefinido pela reforma do prefeito Passos. Tal

    postura alongou o texto e acabou por lhe dar essa feio final,

    onde preocupao didtica e informativa se junta o intuito

    ensastico e especulativo.

    Alm de todos que participaram dos filmes que comeamos a

    rodar nos anos 70, cada um sua maneira parceiro nessa

    proposta, nesse trajeto, fui apoiado no trabalho de pesquisa deste

    livro por ngela Nenzy, com quem tanto discuti as questes sobre

    as religies negras no Rio; Elisabeth Formaggini, que muito

    contribuiu para o levantamento da situao do mercado de

  • trabalho e particularmente da presena da mulher, alm de liderar

    a pesquisa iconogrfica, e Cida Dacosta, que, inicialmente

    trabalhando na parte administrativa, bandeou-se para a pesquisa

    por seu interesse responsvel pela situao do negro na cidade.

    Formou-se ento uma equipe criativa e profissional onde quase

    sempre trabalho foi prazer. Ainda na Corisco, Roberto Machado

    Jr., Antonio Luis Mendes Soares e Henrique Sodr se ocuparam

    das fotos e reprodues; e Paulo Baiano Fortes, das gravaes

    das entrevistas, sempre feitas com qualidade esperando o cinema.

    Pedro Wilson Leito leu e criticou o texto entre viagens. Amigos,

    irmos. Do Departamento de Editorao da Funarte, Suzana

    Martins revisou o texto com tcnica e realismo, enquanto Martha

    Costa Ribeiro fez a diagramao das fotos com sua sensibilidade

    esclarecida.

    Sinto que fazemos parte de um movimento maior, no

    codificado ou institucionalizado, mas que parte de sensibilidades

    fundamentais comuns e de um projeto de mudana que

    transcendem a origens sociais e culturais, ou geraes, que

    repudia as desigualdades como valoriza as diferenas, que se volta

    para o passado para dimensionar o presente. A ns, o futuro.

    Roberto Moura

    [pg. 11]

  • TIA CIATA e a Pequena frica no Rio de Janeiro

  • ABOLIO E REPBLICA: A SITUAO POLTICA NACIONAL

    Jamais se aninhou em mim qualquer preconceito de raa. Cresci, e me fiz homem, amando os meus semelhantes, tratando com especial deferncia e carinho os pretos, os mulatos, os mais humildes. Pensava, assim, resgatar a injustia da escravido a que foram submetidos. Como j disse antes, minha famlia foi entusiasta da Abolio. E quanto ao aspecto concreto e pessoal da questo: poder parecer que minha resposta a este item contradiz a dada ao anterior. Mas no h tal: fui sincero, como serei ao responder o ltimo. Falo a um socilogo, a um fino psiclogo e estou certo, ele me compreender. No veria com agrado, confesso, o casamento de um filho ou filha, irmo ou irm, com pessoa de cor. H em mim foras ancestrais que justificam essa atitude. So elas, percebo, mais instintivas do que racionais, como, em geral, soem ser aquelas foras, sedimentadas, h sculos, no subconsciente de sucessivas geraes. Depoimento de Luiz de Toledo Piza Sobrinho, nascido em 1888, respondendo a enqute realizada por Gilberto Freyre para o livro Ordem e Progresso.

    Com a Independncia e a formao do Imprio, configura-se

    uma nao brasileira nos moldes definidos pela moderna poltica

    internacional. O pas se transforma. Mas nem tanto: da prpria

    casa real portuguesa herdamos soberanos, e poucas foram as

    transformaes operadas no regime produtivo e nas relaes

    sociais. Do autoritarismo de Pedro I personalidade poltica

    ambgua de Pedro II, s chegamos Abolio atravs da,

    finalmente insustentvel, presso internacional isso dito sem

    minimizar a importncia da campanha abolicionista, mas apenas

    aferindo seu peso. O sistema poltico-administrativo do Imprio

    parecia no acompanhar as necessidades de mudana exigidas

  • pelos sistema econmico internacional, justificadas tanto pela

    argumentao ideolgica da burguesia europia e dos

    revolucionrios ianques, como pelas exigncias operacionais do

    capitalismo. Assim, o golpe republicano na madrugada de

    novembro de 1889 pega surpreendida a cidade, sua gente alheia

    trama poltica definida pelo encontro de liberais burgueses,

    organizados num movimento republicano sem fora popular, com

    uma faco do conflituado Exrcito nacional particularmente

    incompatibilizada com o governo monrquico, encontro que d

    materialidade impalpvel das idias o peso das armas. O apoio

    internacional, no pronto reconhecimento da Repblica brasileira

    pelos pases centrais e posteriormente pelos bancos ingleses,

    completaria a manobra que marca fundas alteraes na vida

    nacional: o incio de nossa modernidade.

    A confirmao pelo novo regime do disposto pela Lei de

    Terras de 1850 que legalizara o monoplio [pg. 15] por uma

    minoria sobre as terras disponveis, restringindo o acesso

    propriedade primria, mesmo contra opinies isoladas de alguns

    abolicionistas e republicanos considerados radicais que, desde

    antes, propunham uma reforma agrria contemplando

    principalmente aqueles que tinham sido escravizados garantia

    na prtica a reproduo do padro de poder e de apropriao

    diferencial da riqueza. Antigos segmentos populares vindos ainda

    da Colnia, muitos interioranos, e migrantes recm-chegados so

    confrontados com a implantao de um processo de proletarizao

    nas cidades, que se absorve s alguns enquanto muitos seriam

    condenados marginalidade, aproxima esses homens diversos em

    um formidvel encontro. Crescem e se sofisticam classes mdias

    urbanas, favorecidas pelo reaparelhamento estatal e pelo

    progresso industrial, para quem prioritariamente seria montada

  • uma indstria do entretenimento, que daria voz, entretanto, ao

    negro, omitido num pas que se queria ocidental. No topo,

    redefinem-se posies no bloco de poder entre as elites nacionais,

    fortemente mimetizadas com a burguesia europia.

    O progressivo deslocamento do poder decisivo das

    oligarquias para setores mais modernos ligados ao caf,

    indstria nascente e ao comrcio internacional, tem como

    contrapartida uma abertura, pelo menos formal, do espao

    poltico, ocasionando um recrudescimento das oposies lideradas

    por setores das elites alijados episodicamente do poder, mas

    tambm por alguns setores das classes mdias e do nascente

    operariado, oposies essas, de baixo para cima, que seriam

    imediatamente compreendidas pelo sistema como uma ameaa

    situao instituda, como uma transgresso s regras tcitas do

    jogo. A reao a essas manifestaes iria do autoritarismo

    hierrquico introjetado pela experincia histrica com o mando

    irrefreado, ao ritualismo eleitoral, que tem seu auge na prpria

    Repblica Velha, a poltica institucional manipulada pelos

    demagogos conservadores e oportunistas, o controle estatal

    sufocando o nascente sindicalismo e as demais tentativas de

    organizao fora da rbita oficial.

    Em nossa verso tropical da democracia burguesa, a minoria

    que se constitua na classe possuidora nacional teria no Estado

    sua principal rea de manobra. Com uma precria legitimao

    eleitoral, os governos republicanos definem as metas sociais, j

    que a prpria nao no seria capaz de fix-las em prol do

    progresso nacional, a privatizao do poder justificada com o

    mal necessrio em virtude da permanente subestimao da

    maioria. O povo vil, a plebe, a malta, a ral, o povo de negros

    libertos, para quem no seria destinado nem o acesso terra nem

  • os investimentos em educao ou treinamento tcnico reclamados

    anteriormente. Homens que passam a conviver nos cantos das

    grandes cidades brasileiras, nas suas ruas, nos seus bairros

    populares e favelas, com italianos, portugueses, espanhis,

    franceses e francesas, poloneses e polacas, tocados de uma

    Europa superpovoada e em crise.

    Como pertencendo a um outro Brasil, so mantidos fora do

    mercado de trabalho e da vida poltica nacional negros, caboclos e

    brancos pobres, se mestiando, alheios s grandes cenas da vida

    nacional e ausentes de sua histria oficial. Apesar da ruptura

    determinada pela Abolio, com a modernizao de aspectos do

    sistema produtivo, o pas no oferecia a esses homens,

    principalmente aos libertados, alternativas para a reordenao

    de suas vidas a partir de uma nova posio na sociedade nacional,

    a no [pg. 16] ser as construdas por eles mesmos. Assim, por

    algumas vezes esses homens se uniriam rebelados nas cidades e

    no interior, como em Canudos, onde, por algum tempo, o engenho

    militar popular e o conhecimento da terra derrotam divises do

    Exrcito, ou no cangao, quando arte e desespero terminam

    esmagados pela inexorvel rotina da represso.

    Com a Abolio se rompem muitas das formas anteriores de

    convivncia entre brancos e negros e mesmo entre negros e

    negros. Anteriormente, seja atravs de eufemismos religiosos que

    ganhariam tradio e complexidade na vida brasileira, seja nas

    festas populares retraduzindo as franquias governamentais para o

    melhor controle da massa cativa, o negro havia conseguido manter

    aspectos centrais de suas culturas, fundando tradies que se

    incorporam de modo prprio na aventura brasileira. Entretanto,

    tanto as grandes concentraes propiciadas pelas plantaes,

    como seus pontos de encontro nas cidades, se dispersam neste

  • momento de transio, vivendo o negro no Brasil novamente a

    situao de ruptura de seu mundo associativo e simblico frente

    s estruturas sociais em mutao.

    A intensa imigrao de operrios europeus que ocorre no

    perodo no vinha atender s necessidades internas de mo-de-

    obra, j que esta era abundante, se justificando no s pelas

    vantagens tcnicas que os estrangeiros j proletarizados

    ofereceriam s nossas primeiras indstrias, mas principalmente

    pelas ideologias raciais que suportavam os grandes investimentos

    do Estado, idealizando o imigrante como agente culturalmente

    civilizador e racialmente regenerador de um Brasil idealizado por

    suas modernas classes superiores. Assim, as extensas massas

    de trabalhadores nacionais que chegam s cidades centros

    antiescravagistas do perodo anterior, logo, smbolos e promessas

    de liberdade passam a transitar sem condies de penetrar em

    seu mercado de trabalho regular e sustentar suas regras, sejam

    eles negros ou nordestinos expulsos pela seca, funcionando como

    um exrcito proletrio de reserva entregue aos servios mais

    brutos e sem garantias, exercendo efeitos depressivos sobre as

    condies de remunerao.

    Alm disso, o mercado capitalista, colocando os homens uns

    diante dos outros em termos unicamente do valor de seus bens e

    de sua fora de trabalho, e assim posicionando-os socialmente,

    impe uma nova lgica que de imediato no absorvida nem

    utilizada em suas possibilidades pelos trabalhadores nacionais,

    vindos de outras tradies civilizatrias, de outras experincias. A

    teimosia de alguns em se ater ao mnimo para a subsistncia. A

    ausncia de uma tica da venda do trabalho e de uma motivao

    para a acumulao. Muitos no compreenderiam inicialmente a

    natureza essencial do trabalho livre, da mercantilizao do

  • trabalho, que separa este da pessoa do trabalhador; ou ento

    visceralmente se opunham a essas concepes, o que atrasa entre

    ns o surgimento de uma conscincia profissional em sua

    expresso ocidental moderna. O uso da competio e do conflito

    em relaes contratuais se chocava com as tradies de lealdade

    do trabalhador nacional, situao que seria vivida de forma

    simetricamente oposta pelos antigos senhores, agora tornados

    patres, que esperavam vinculaes e obrigaes de seus

    subordinados que de muito ultrapassavam as novas relaes

    profissionais estabelecidas.

    Despossudos de bens e de conhecimentos valorizados nesse

    mercado, eles se ajuntam na cena das [pg. 17] cidades, em bairros

    que, com a ampliao da cidade, progressivamente vo se

    afastando dos setores aristocrticos; ou ento em suas cozinhas e

    oficinas. Uma vida subalterna que vai da brutalizao extrema

    vitalidade. Uma histria mal contada ou omitida, que s aparece

    no pragmatismo estatstico dos servios sanitrios ou da

    represso, nos desconcertantes esteretipos da nacionalidade

    surgidos na arte popular filtrada pela indstria de diverses.

    Pontos de luz e de escurido que irregularmente se completam.

    Uma histria que comea na Bahia para se transferir para o Rio

    de Janeiro. Uma histria possvel mas despercebida. Uma histria

    banal, sublime, vergonhosa. [pg. 18]

  • DE SALVADOR PARA O RIO DE JANEIRO

    A extino do elemento servil pelo influxo do sentimento nacional e das liberalidades dos particulares, em honra do Brasil, adiantou-se pacificamente de tal modo que hoje aspirao aclamada por todas as classes, com admirveis exemplos de abnegao por parte dos proprietrios. Quando o prprio interesse privado vem espontaneamente colaborar para que o Brasil se desfaa da infeliz herana, que as necessidades da lavoura haviam mantido, confio que no hesitareis em apagar do direito ptrio a nica exceo que nele figura, em antagonismo com o esprito cristo e liberal das nossas instituies. Princesa Isabel, Fala do trono: 13 de maio de 1888.

    Salvador, antiga capital, no incio do sculo XIX uma

    surpreendente cidade do mundo colonial portugus. Porto

    exportador reunindo gente de diversos interesses onde renascia

    uma forte aristocracia local, porto negreiro abastecendo a regio

    das Minas Gerais, Salvador seria a cidade colonial em que o negro

    tinha maior presena, onde a chegada de iorubas e islmicos daria

    novas cores e significados s fortes tradies festeiras dos bantos.

    L se deflagram as grandes revoltas urbanas, conflitos que legam

    sociedade brasileira da Primeira Repblica o temor de levantes

    negros nas capitais, expresso pelas instituies policiais por uma

    duradoura vigilncia e intolerncia.

    Em 1584 o padre Anchieta faz uma estimativa: existiam j

    trs mil negros na Bahia. Na verdade, o trfico se inicia logo que

    se define uma inteno prtica de explorao da terra descoberta

    merc do governo portugus, e o primeiro negreiro aporta na

    terra brasileira antes mesmo que se estabelea o governo geral. Os

  • negros que chegam ao porto de Salvador so da Guin, o que

    significa apenas que eram mandingas, berbecins, felupos, achatis,

    berberes e de outras etnias, povos mais ou menos conhecidos aqui

    genericamente como bantos.

    O mercado negreiro de Salvador continuaria com os mesmos

    endereos, que definiam a presena esmagadora de bantos por

    sculos. Entretanto, a conquista pelo Daom do porto de Ajud em

    1725, favorecida por uma srie de circunstncias, faz com que o

    rumo dos navios que abasteciam a capital baiana se mude para a

    Costa da Mina. As epidemias de bexiga que se sucediam nos

    portos sujos e ensangentados dos negreiros, e o excepcional

    valor de que desfrutava o fumo baiano no mercado da Mina, fazem

    conveniente a mudana do negcio, e logo os traficantes

    portugueses passam a apregoar a qualidade superior do novo

    produto: o negro sudans. A pior parte da safra do fumo baiano,

    enviado para o negcio com os vendedores de homens africanos,

    concorria no mercado africano com outro refugo, a famigerada [pg.

    19] aguardente Roma, oferecida pelos comerciantes ingleses,

    levando vantagem os negreiros portugueses de Salvador, pais da

    aristocracia da cidade.

    As relaes entre Bahia e Daom seriam intensas. O

    comrcio de escravos era por vezes mediado por negros nascidos

    no Brasil, como o mulato Flix de Sousa, o Chach, ttulo

    concedido pelo rei de Daom. Homens fabulosamente ricos e

    poderosos controlavam o negcio do fumo, utilizando negros

    aprisionados na frica subquatoriana em guerras fomentadas

    para satisfazer o apetite do mercado escravagista. Embaixadas

    daomeanas visitam Salvador por vrias vezes, a partir do final do

    sculo XVIII, para acertar os negcios e garantir as prioridades de

    que gozavam com os interesses locais, tentando conseguir o

  • monoplio do fornecimento, acordo que nunca vem a se dar. Dos

    negros que chegam, parte considervel negociada para o

    trabalho das minas, mas os muitos que ficam na cidade comeam

    a transformar a populao escrava, embora sempre se mantenha

    a forte presena banto, atravs dos seus descendentes nascidos

    no cativeiro, antes mesmo da chegada de novos africanos do

    trfico com Angola, que nunca vem a se interromper, apenas

    perdendo a expresso anterior. Os iorubas ou nags ganham

    prestgio do meio negro, assim como os islamizados vindos do

    outro lado, com a chegada recente e macia dos prisioneiros da

    guerra, vindo entre eles negros cultos, conscientes do valor de

    suas culturas expressas por elaboradas filosofias e prticas

    religiosas.

    Se o negro escravizado em Salvador no perde seus hbitos

    coletivistas, teimosamente mantidos, seus vnculos de linhagem e

    famlia, que no caso dos iorubas eram pontos de referncia

    religiosa essenciais, so inevitavelmente destrudos. Mortos na

    viagem ou precocemente no cativeiro, j que era mais barato

    comprar africanos adultos do que criar seus filhos, separados

    entre diversos compradores, nos primeiros tempos da Colnia so

    poucos os exemplos dos ncleos de africanos que se mantm na

    nova terra. Aqui se torna necessrio, uma vez que a cultura

    trazida desprendida das formas sociais africanas, que sejam

    recriados os meios de convvio e organizao da religio e fora da

    rbita de controle dos escravagistas, onde proibida.

    A prpria sobrevivncia do indivduo escravizado dependia

    de sua repersonalizao, da aceitao relativa das novas regras do

    jogo, mesmo para que pudesse agir no sentido de modific-las, ou

    pelo menos de criar alternativas para si e para os seus, dentro das

    possibilidades existentes na vida do escravo. So inimaginveis os

  • choques, a perda da liberdade, a viagem no negreiro, a exposio a

    uma nova sociedade onde seria escravizado, que se somam para o

    indivduo. Aqui, cada negro viveria imerso em duas comunidades

    distintas, grande parte do tempo em contato com a sociedade

    branca que o fora a adaptar-se a sua nova condio e funes, o

    que implica uma srie de aprendizados sobre a nova cultura.

    Homens ajuntados, vindos de diversas procedncias, irmanados

    pela cor da pele e pela situao comum, que redefinem suas

    tradies como escravos nessa sociedade paralela do mundo

    ocidental-cristo.

    Acostumada com o carter festeiro do banto, que abria suas

    celebraes na rua baiana se apropriando do calendrio catlico,

    criando novas tradies na antiga capital, a mudana do trfico

    para a Costa da Mina povoa Salvador com negros sudaneses,

    vindos de culturas extremamente elaboradas e com forte [pg. 20]

    sentimento nacional (aqui falamos das naes africanas),

    prontos a se organizar separados, diversos, e da resistncia

    cultural partir para a revolta armada.

    Preta Baiana. Ilustrao de Marques Jnior. In Luiz Edmundo, O Rio de

    Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro, Conquista, 1957. 5v., v.l., p.99.

    Preta Mina. In Luiz Edmundo, op. cit., v.l, p. 101.

  • Relata Nina Rodrigues o que provavelmente o babala

    Martiniano Eliseu do Bonfim lhe contou: Em 1802, o Dam-Foit

    Othman, constituindo-se, com os fiis, em dijema, ou associao

    religiosa e militar, (...) inspirou-se no mesmo fanatismo religioso

    que lanou os rabes vitoriosos sobre a frica e sobre a Europa

    (Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil). Na frica, as jihd,

    guerras santas islmicas que se iniciam no sculo XIX,

    forneceriam escravos para Salvador, exportando tambm o esprito

    guerreiro e independente dos contendores. Com as lutas

    religiosas, negros islmicos haussas (aus) e mals, que j eram

    enviados anteriormente pelos azares do trfico, vm agora em

    maior nmero juntamente com seus adversrios na frica,

    iorubas e jejes. O islamismo, como ideologia religiosa e guerreira,

    passa a ter grande influncia entre os escravos em Salvador,

    operando um movimento cultural de grande importncia que se

    fortalece na marginalidade com a organizao de cultos religiosos

    e sociedades secretas. No Isl fica explcito que a funo do Estado

    servir lei divina, implicando a converso num projeto poltico

    de tomada do governo (uma teocracia almejada, como diz Manuela

    Carneiro da Cunha em Negros, estrangeiros) que seria liderado por

    um lder religioso letrado, como foi Licutan na revolta mal

    baiana.

    Continua Nina:

    repelidos pelos fuls, os negros haussas caram sobre o grande e

    poderoso reino central de Ioruba e [pg. 21] destruram-lhe a capital

    Oy. No reinado de Arogangan, Ioruba perdeu, em 1807, a provncia

    Ilorim, cujo governador Afunj, sobrinho do rei, se serviu dos haussas

    para declarar-se independente. Os maometanos em 1825 queimaram

    vivo a Afunj e desde ento elegeu-se ali um rei ou governo

    muulmano. Ilorim tornou-se por este modo um centro de propaganda

    do islamismo nos povos iorubanos ou nags (Nina Rodrigues, op. cit.).

  • Inicia-se, assim, com a guerra civil que divide o imprio ioruba de

    Oy no incio do sculo XIX, irradiando o islamismo de Ilorin onde

    se reuniram iorubas islamizados com haussas, um processo de

    transnacionalizao, que teria seqncia imediatamente depois no

    Brasil, um movimento multitnico que toma o Isl como

    linguagem. Um projeto poltico embutido num projeto religioso,

    reunindo sob a bandeira do islamismo diversos grupos tnicos.

    Esse processo de transnacionalizao se amplia no Brasil entre os

    prprios adversrios na frica, atravs dos prisioneiros de ambos

    os lados que se reencontram aqui, em condies comuns como

    escravos em um novo mundo. A revolta de 1809 rene pela

    primeira vez haussas e nags, o processo se expandindo a ponto

    do movimento de 1835 unir oito naes em Salvador contra o

    poder colonial.

    A antropologia brasileira clssica privilegiou o estudo dos

    negros sudaneses que se concentram em Salvador, enquanto na

    maioria das outras provncias seguia-se o trfico com a costa de

    Angola. O livro de Lus Viana Filho, O negro na Bahia,

    significativamente prefaciado pela mestria de Gilberto Freyre,

    mesmo trazendo como novidade uma reavaliao da presena

    numrica de negros bantos na Bahia, mantm a tese de sua

    inferioridade frente aos nags (iorubas), e da diluio de suas

    marcas civilizatrias numa cultura popular urbana liderada pela

    Igreja e vulgarizada para o consumo das grandes camadas

    escravizadas da populao. Tal fato teria determinado na poca a

    no participao dos bantos nos movimentos insurrecionais

    baianos.

    As religies banto partiam do culto dos ancestrais, dos

    grandes personagens da comunidade que retornavam

    incorporados nos seus cavalos, atualizando suas caractersticas

  • frente s novas situaes enfrentadas por seu povo. Apesar da

    dita pobreza da mtica banto, em relao aos sudaneses, fato

    reconhecido por todos os etngrafos, o que resultou na sua quase

    total absoro no Brasil, pelo feitichismo jeje-nag (Artur Ramos,

    O negro brasileiro), essas concluses parecem esconder tanto o

    pouco conhecimento real da cultura dos povos subequatorianos,

    como uma no compreenso do sentido dinmico fundamental de

    seu complexo civilizatrio, menos comprometido com a

    manuteno de formas tradicionais fixas, sensvel s conjunturas

    histricas vividas e aos encontros culturais. Edison Carneiro, um

    negro doutor mais versado nos bantos, dizia que na Bahia, j na

    primeira metade do sculo XIX, talvez s houvesse um candombl

    estritamente afro-banto, o do pai Manuel Bernardino no Bate-

    Folha, o que pode ser compreendido tanto como prova da

    fragilidade de suas formas culturais superadas pelos cultos nas

    naes iorubas, como numa reavaliao, percebida sua extrema

    vitalidade assimiladora, que no inconsciente coletivo do negro

    brasileiro faria aflorar uma multido de entidades novas, ndios,

    caboclos, [pg. 22] santos catlicos, representaes de seu novo

    mundo social que, atravs das novas religies afro-brasileiras,

    seriam integradas numa cosmogonia comum onde ganham

    Inteligibilidade, preservadas suas caractersticas e posies.

    Se o banto escravizado marca sua presena em Salvador

    pela transformao que opera nas caractersticas das festas do

    calendrio catlico hegemnico na cidade, o negro sudans se

    voltaria para a atividade de flagrante resistncia, se distinguindo

    explicitamente no s dos brancos, como inicialmente dos negros

    das outras naes a quem apresentado pelo proselitismo poltico

    dos islmicos. A poltica do conde dos Arcos, permitindo a

    retomada dos encontros de naes, para que surgissem

  • rivalidades dentro da massa escrava, j que a experincia comum

    do cativeiro aproximara indivduos atomizados vindos de diversas

    etnias, se revela eficiente para que muitas rebelies fossem

    denunciadas por escravos rivais, mas no impediria a

    aproximao de haussas e iorubas. Os textos existentes repetem

    as informaes tentando uma tipologizao do escravo a partir da

    oposio bsica de bantos e sudaneses, pouco esclarecendo sobre

    as alianas entre iorubas e mals, os antigos adversrios nas

    cruzadas islmicas, invocando coincidncias culturais superiores,

    e portanto seu impulso comum para o enfrentamento da

    sociedade escravagista, onde brancos e mulatos no eram

    diferenciados como inimigos.

    O que certo a denncia por parte de um indivduo cujo

    nome o governador no declina, apesar de afirmar ser de

    probidade e empregado nesta cidade, de um extremamente

    articulado levante haussa em 1807 em bairros de Salvador e suas

    redondezas, que duramente reprimido pelo poder colonial com

    execues e aoites. Registra ainda o conde da Ponte a apreenso

    de armas, alm de certas composies supersticiosas e de seu

    uso a que chamam mandingas, com que se supem invulnerveis

    e ao abrigo de qualquer dor ou defesa. Uma sociedade secreta

    negra, Obgoni, estaria por trs de nova rebelio que explode dois

    anos depois, quando os haussas, dessa vez j apoiados pelos

    nags, agridem as propriedades em volta da capital, terminando

    por ser esmagados pela tropa. Apesar dos redobrados cuidados

    dos capites-de-mato, feitores e policiais, as revoltas se sucedem

    durante as primeiras dcadas at a grande insurreio de janeiro

    de 1835, quando mesmo novamente denunciados por uma negra

    forra, forando o abortamento da luta, os negros chegam a tentar

    dominar o quartel dos permanentes da Mouraria, mantendo pela

  • Barraquinha, na Baixa do Sapateiro, e finalmente em guas de

    Meninos, a luta com a tropa organizada, sendo finalmente

    derrotados depois de batalha cruenta.

    Se a liderana guerreira era dos haussas islmicos, a vida

    religiosa da cidade redefinida com a chegada da grande religio

    dos iorubas, seus orixs conquistando os terreiros que batiam

    tarde da noite, disfarados como meras reunies festivas. Mesmo

    nas casas dos bantos, os orixs iorubas passam a descer juntos

    com suas entidades, expresso das identidades e compatibilidades

    entre a mstica dos diversos africanos. O proselitismo, e, por outro

    lado, a intolerncia dos haussas com a vida religiosa das outras

    naes, acirrando rivalidades, e a perseguio e violncia que lhes

    sobrevm a partir de suas constantes revoltas, faz que suas casas

    de culto caiam na marginalidade, e que muitos dos iniciados

    tenham que se [pg. 23] isolar ou mesmo desaparecer da cidade,

    alguns de volta para a frica, outros tambm subindo de navio

    para a capital do Imprio.

    Grupo de antigos carregadores africanos. In: Artur Ramos, O negro brasileiro. 3.ed. So Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1951, p.16 (Brasiliana, 188).

  • Por volta do fim do primeiro quarto de sculo chegam a

    Salvador quatro africanos livres do golfo de Benin que fundariam o

    candombl do Iy Omi Ax Air Ontile, situado perto da igreja da

    Boa Morte, no bairro da Barraquinha, em cuja irmandade depois

    ingressariam. Iy Nass, filha de uma escrava baiana que voltara

    para a frica, Iy Det, e Iy Kal, juntas com um Wassa,

    sacerdote com alto ttulo religioso, vm de forma deliberada fundar

    uma casa de orix, trazendo seu ax e seus fundamentos para os

    negros de origem na Bahia. Iy Nass, ao contrrio do que

    geralmente acontecia na frica, onde os homens lideravam os

    terreiros, se torna Yalorix e d nome casa, Il Iy Nass (casa

    da me Nass), que ganha fora e respeito entre os iorubas. Esse

    terreiro, que muda muita vezes de stio, at se instalar

    definitivamente no bairro do Engenho Velho, sem dvida a

    instituio negra mais duradoura na histria brasileira, central na

    vida religiosa de Salvador. [pg. 24]

    Marcelina seria a substituta de Iy Nass depois de sua

    morte j depois da metade do sculo, mas sua sucesso

    provocaria uma ciso que redunda na fundao de outro

    candombl no Rio Vermelho que tambm se celebrizaria, o Iy

    Omi Ax Iy Mass, que fica conhecido com o nome do antigo

    proprietrio do terreno, Gantois. ainda do velho Il Iy Nass,

    outra vez dividido na sucesso de Me Ursulina, que Aninha, filha

    do afamado Bamboch, lidera outros dissidentes para uma nova

    casa: o Ax de Op Afonj. Trs candombls tradicionais na vida

    baiana, e centrais em sua histria moderna, na histria

    subalterna do Brasil. Outros candombls ioruba surgiriam em

    Salvador, como o Alaketu, fundado no Matatu Grande, local hoje

    chamado Lus Anselmo, por duas princesas, que a histria conta

    terem sido alforriadas pelo prprio Oxumar, o Il Ogunj,

  • tambm no Matatu, e outros j com fortes razes de Angola,

    chamados de Caboclo, caracterizadas tambm pela forte presena

    da mstica dos ndios do interior baiano, em um encontro de

    similitudes religioso-filosficas e cumplicidades sociais.

    O candombl trazido por

    Iy Nass e para o Brasil , de

    uma forma, um culto novo,

    pois compensa as lacunas na

    cosmogonia nag ocasionadas

    pela escravatura com uma

    nova organizao ritual,

    incorporando num s terreiro

    os cultos das principais

    cidades iorubas, diversamente

    do que ocorria na frica, onde

    eles se davam em templos

    separados. O terreiro toma a

    forma simblica do prprio

    continente africano, os orixs

    das cidades com seus

    assentamentos no barraco,

    enquanto as entidades do cu aberto so cultuadas em sua mata.

    O prprio termo candombl, s aqui teria o significado de culto, ou

    casa [pg. 25] religiosa, e a forma acabada do Il Iy Nass, do

    Gantois, do Il Ax Ap Afonj e dos outros terreiros tradicionais,

    se manteria como estrutura central das organizaes religiosas

    negras no Brasil.

    A extino do trfico negreiro ingls em 1807 ocasiona

    mudanas fundamentais no trfico de escravos para o Brasil.

    Movidos por razes morais e humanistas firmemente aliceradas

    Negra baiana. 1909. Postal da coleo Antonio Marcelino. Funarte, Ncleo de

    Fotografia, 1982.

  • por forte pragmatismo econmico, que confia nas vantagens que

    traria a modernizao do sistema de trabalho liberando grandes

    parcelas de capital imobilizadas na compra de escravos, os

    ingleses passariam a no permitir a concorrncia dos pases

    escravagistas, j que os primeiros momentos de implantao do

    sistema do trabalho livre poderiam dar vantagens aos que se

    valessem dos negros cativos. Sua diplomacia, amparada pelo forte

    poderio naval, passa a impor uma srie de medidas restritivas,

    que se iniciam com o tratado de 1810 assinado pelo temeroso

    governo portugus. Este comprometia Portugal a no negociar fora

    dos domnios portugueses na frica e vedava os negcios com

    Bissau e Molembo, que caem definitivamente na influncia

    francesa, e com Ajud na Costa da Mina. Cinco anos depois, esse

    tratado seria complementado com o compromisso formal de

    Portugal de cessar o trfico com toda a costa africana ao norte do

    Equador, impedindo, pelo menos no plano formal, o comrcio

    baiano com seus tradicionais parceiros. A partir da, todos os

    escravos que entram oficialmente no porto de Salvador seriam de

    procedncia angolana, o que uma verdade apenas parcial, se

    caracterizando os anos que separam este ltimo tratado da Lei

    Euzbio de Queirs de 1850, proferida pelas cmaras brasileiras,

    que marca o fim efetivo do comrcio escravo no pas, por uma luta

    surda entre contrabandistas e os vigilantes brigues ingleses.

    O Brasil na poca da Independncia era ainda bem pouco

    urbanizado. Os interesses colonialistas fizeram com que o pas

    ficasse inteiramente voltado para fora: as grandes cidades-portos,

    como Salvador, locais de embarque do produzido pela

    monocultura ou pelas minas, eram os centros de administrao e

    controle, locais de desembarque do necessrio para manuteno

    do sistema produtivo subordinado, instrumentos, aparelhos,

  • manufaturas, algum alimento, e, principalmente, escravos. O

    negro era fundamental no nosso mundo colonial, e a Abolio s

    seria assinada quando as presses internacionais e internas

    tornam o regime insustentvel. Assim,

    num sistema dominado pelo trabalho servil fatal que inmeras

    atividades sejam entregues aos escravos. A eles cabe todo o trabalho

    considerado vil pela populao branca de origem europia, que mesmo

    pobre, no quer se rebaixar executando certos servios manuais. Alm

    disso, todo imigrante pretende encontrar alm-mar um estado superior

    ao que possua na Europa. Os relatos dos viajantes estrangeiros

    mostram os escravos atrelados aos trabalhos mais diversos desde o

    comeo do sculo XVII. E a mo-de-obra livre era rara. O trabalho

    escravo indispensvel e a figura do senhor que aluga seus escravos

    encontra-se em todas as cidades brasileiras (Ktia M. de Queirs

    Mattoso, Ser escravo no Brasil).

    No s at a metade do sculo o comrcio escravo mantido,

    seja legalmente com a costa de Angola, como ilegalmente com a

    venda dos vindos da Costa da Mina, mais valorizados, como se

    mantm internamente depois de impedido o trfico, tornando-se a

    maior fonte de renda da provncia da Bahia. [pg. 26]

    Finalmente, as contnuas

    revoltas negras em Salvador e

    a rudeza da fiscalizao

    inglesa, foram finalmente o

    governo imperial a aceitar o

    fim do trfico, continuando o

    comrcio escravagista a atuar

    internamente, tambm de

    forma bastante lucrativa,

    vendendo escravos do Nordeste para as plantaes de caf do Sul.

    Apesar da denncia moral da escravatura pelo movimento

    Baiana quituteira. Foto Roberto Moura,

    1976.

  • abolicionista, o negcio negreiro no era na poca socialmente

    infamante nem dava dores de conscincia aos donos da Cidade

    frente Igreja ou ao governo colonial, que, acumpliciados, s

    cederiam em suas rendosas transaes, quando no restavam

    mais meios prticos de mant-las. Henri Cordier registra em seu

    livro Mlanges amricains um relato do baro Forth Rouen sobre

    sua passagem em Salvador:

    Numa igreja da cidade tive a oportunidade de ver, entre um grande

    nmero de ex-votos, um quadro bem recente representando um navio

    negreiro sob pavilho brasileiro, sendo perseguido por dois barcos, um

    francs e outro ingls. No cu, aparecia a figura de Cristo que, com

    sua mo poderosa protegia o navio brasileiro, permitindo-lhe escapar

    do perigo e entrar calmamente na enseada.

    De qualquer forma, depois de anos de trfico contnuo com a

    frica, a Bahia liquidava sua populao escrava. Dos quinhentos

    mil que teria pelo incio do sculo XIX, em 1874 no restaram

    mais, de acordo com as estatsticas, que 173.639 escravos. A

    decadncia do acar brasileiro frente concorrncia no mercado

    internacional e a progressiva importncia econmica que assumia

    o caf que se expande em municpios do Rio de Janeiro, Minas

    Gerais e So Paulo, faz com que grandes levas de negros sejam

    vendidas a preos crescentes para o Sul. As plantaes cafeeiras

    haviam sido supridas no primeiro momento, no segundo quarto do

    sculo XIX, pelo excedente de escravos acumulado na regio

    mineira. O esgotamento desta fonte, agravado pelo trmino do

    trfico africano, diminui a oferta, subindo astronomicamente a

    procura e os preos por pea, j que inicialmente os fazendeiros

    no consideravam a possibilidade de mobilizar trabalhadores

    livres como uma alternativa.

    Assim, o Rio de Janeiro, com sua cultura de caf localizada

  • principalmente no vale do Paraba, seria um importante

    comprador, seguido por So Paulo, que se expandia e que no

    momento seguinte optaria por uma soluo mais moderna

    atraindo o imigrante europeu, embora ainda oferecendo condies

    [pg. 27] econmicas e sociais praticamente insustentveis para o

    trabalhador rural na grande empresa cafeeira. A provncia do Rio

    de Janeiro, de 119.141 escravos em 1844, no incio da dcada de

    1870 passa a contar com mais de trezentos mil, dos quais grande

    parte havia chegado da frica atravs dos portos do Nordeste,

    muitos vindos de Salvador, podendo se imaginar que tambm

    sudaneses da Costa da Mina e do golfo de Benin foram vendidos

    para essas bandas.

    Os negros vendidos em Minas Gerais enfrentavam enormes

    caminhadas, acompanhados pelos feitores montados na direo

    de suas novas senzalas no vale do Paraba. As estradas de ferro

    que vo se instalando sob o comando dos engenheiros ingleses,

    smbolos do progresso, tambm curiosamente possibilitariam o

    trnsito de milhares de escravos. Muitos homens de dinheiro,

    afetados pelo estado de depresso por que passava a provncia da

    Bahia, passam a se valer dos altos lucros da venda de negros,

    enviando-os para o Sul por navio, sendo que somente entre os

    anos de 1872 e 1876 chegam ao Rio de Janeiro 25.711 escravos

    vindos do Norte e Nordeste.

    Entretanto, surgem possibilidades para alguns da populao

    negra de Salvador. Se muitos escravos recm-chegados ou j

    trabalhando no estado so transferidos abruptamente para o Sul,

    muitos se alforriariam, aumentando uma classe intersticial de

    negros livres que tomam as ruas com seus interesses e ofcios

    junto aos negros de ganho, gente que sobe e desce as ladeiras, que

    toma o espao dos cantos, das beiras, das madrugadas, das feiras,

  • gente que aprende o fascnio da velha cidade baiana, onde, mesmo

    inferiorizada, acharia suas alternativas de resistncia e prazer. De

    um escrito de 1870:

    Poucas cidades pode haver to originalmente povoadas como a Bahia.

    Se no se soubesse que ela fica no Brasil, poder-se-ia sem muita

    imaginao tom-la por capital africana, residncia de poderoso

    prncipe negro, na qual passa inteiramente despercebida uma

    populao de forasteiros brancos puros. Tudo parece negro: negros na

    praia, negros na cidade, negros na parte baixa, negros nos bairros

    altos. Tudo o que corre, grita, trabalha, tudo o que transporta e

    carrega negro (Robert Av-Lallemant, Reise Durchnord-brasilien).

    Pela cidade se dividem os pontos das naes, negros que

    saam de casa com tarefas, ou gente de ofcio, operrios,

    pedreiros, carpinteiros, ferreiros, sapateiros, cocheiros, barbeiros,

    msicos, dividindo seus ganhos com os senhores. Estes ficam com

    a parte do leo, aqueles guardando, de tosto em tosto, as sobras

    para a compra da cara, portanto difcil, alforria. Geralmente, uma

    vez obtida a alforria, continuavam nos mesmo ofcios, os que

    podiam abrindo uma portinha onde exploravam suas habilidades

    ou instalavam um pequeno comrcio. Suas roupas eram feitas

    pelas mulheres com o algodo grosso dos sacos: calas de enfiar

    de canos curtos, camisoles compridos com bolsos, s vezes sem

    mangas, vestimentas quase invariavelmente complementadas por

    gorros, tambm de algodo grosso.

    Ainda no incio de sculo XX, restavam alguns desses

    pontos, onde se reuniam africanos, cada vez menos numerosos.

    Pierre Verger reconstri Salvador de um pouco antes, da segunda

    metade do sculo passado [pg. 28]

    Na cidade baixa, nos Arcos de Santa Brbara ficam os guruncis.

    Passos adiante entre os Arcos de Santa Brbara e o hotel das Naes,

  • alguns velhinhos cansados e modorrentos, ltimos representantes da

    outrora enrgica, belicosa e aguerrida colnia dos Haussas, ali

    diariamente se renem. Mais numerosos so os cantos dos Nags.

    No canto do Mercado, rua do Comrcio ao lado dos Cobertos

    Grandes, em mais de um ponto da rua das Princesas em frente aos

    grandes escritrios comerciais, se congregam velhos Nags. So

    tambm dos Nags os cantos da cidade alta: rua da Ajuda, no largo

    da Piedade, na ladeira de S. Bento. No canto do Campo Grande, a

    alguns Nags se renem uns trs ou quatro Gegs (Pierre Verger,

    Notcias da Bahia de 1850).

    Com a melhora das vias de comunicao abertas pelas

    tropas de bois a partir do incio do sculo XIX, e com a abertura

    das estradas de ferro na provncia, a migrao do campo para a

    capital se intensifica, por vezes carregando trabalhadores rurais

    de outras provncias nordestinas tocados pela seca, situao que

    chegaria a seu pice depois com os flagelos de 1868 e 1871. A

    migrao contnua somava-se o nmero crescente de negros forros

    disputando posies no mercado de trabalho de Salvador,

    diminuindo a oferta e agravando as condies de moradia e de

    fornecimento de alimento para os trabalhadores livres na cidade.

    Os bairros populares se superlotam, os negros se juntam em

    casares alugados, geralmente com os irmos de nao. So os

    hbitos da vida comum que os protegeriam nesses duros anos de

    transio. Muitos pensam em voltar para a frica, outros, aqui j

    nascidos, no saberiam mais para onde se dirigir num continente

    rasgado pelas disputas colonialistas. Talvez valesse mais a pena,

    muitos pensavam, tentar a sorte em outra cidade brasileira.

    Na verdade, se trava no perodo uma luta surda entre

    trabalhadores livres e donos de escravos, provocando o

    aparecimento de uma srie de disposies municipais, vedando a

    ocupao de funes pblicas e de alguns ofcios aos escravos. S

  • aos livres nacionais facultado trabalhar no transporte de

    saveiros da cidade a partir de 1850. Em 1861 a vez dos

    estivadores protestarem junto ao presidente da provncia quanto

    ao nocivo e contumaz ascendente que h formado o abuso da

    introduo de escravos no servios da profuso de atividades no

    porto desta cidade. Tambm nas obras pblicas, uma das

    possibilidades que se abrem a indivduos sem especializao

    profissional, a partir de 1848, fica impedida a contratao de

    escravos. No constituindo a indstria ainda uma fonte de

    absoro significativa de mo-de-obra, e os empregos no

    funcionalismo pblico se reservando a uma minoria mais

    instruda, restam como sada para o grande nmero de

    desempregados os pequenos ofcios e o comrcio ambulante,

    expedientes que se tornam tradicionais para grande faixa da

    populao, marginalizada das possibilidades regulares de trabalho

    at nossos dias.

    A Alforria nunca uma aventura solitria. A carta de

    alforria um ato comercial, raramente um ato de generosidade. A

    afirmao de Ktia Mattoso resume bem a questo das cartas de

    alforria. Se a legislao garantia ao escravo dentro da perspectiva

    crist ressuscitar como homem livre, a compra de sua prpria

    liberdade se reveste de extrema dificuldade, s sendo possvel com

    o concurso das juntas de [pg. 29] auxlio mtuo ou com a ajuda

    dos parentes. O preo de referncia era o de sua compra

    atualizada pelos novos preos do mercado, o proprietrio s o

    alforriando quando o negcio lhe era favorvel, possibilitando a

    compra de um escravo mais moo. Frequentemente, o escravo

    passava por um perodo intermedirio em que continuava devendo

    obrigaes ao senhor, ou pagando parcelas peridicas sobre seu

    valor de venda. A liberdade, entretanto, era apresentada ao

  • escravo no como um direito mas como uma recompensa. E

    para obt-la, precisava conquistar o senhor com seu

    comportamento e seu esforo, sem que isso absolutamente

    significasse a dispensa do pagamento em moeda corrente.

    particularmente

    significativo naquele momento,

    e para o prprio destino do

    negro no pas, esse grupo

    intermedirio de libertos, sua

    paradigmtica cidadania de

    segunda classe, suas

    possibilidades de trnsito e

    influncia. Se eles eram

    homens livres, havia restries

    legais institudas aos seus

    direitos de cidadania. No

    sistema eleitoral onde o acesso

    ao voto e aos cargos era

    proporcional propriedade e

    aos rendimentos, o liberto, qualquer que fosse sua fortuna, votava

    apenas nas primrias, no podendo ingressar nas ordens

    religiosas, no alto funcionalato ou oficialato do Exrcito e da

    Marinha, podendo no mximo se eleger para vereador e ingressar

    na tropa ou Guarda Nacional, isso se nascido no Brasil, tendo

    direito a propriedade e relativa capacidade civil.

    Na verdade, a lei considerava o forro a partir de duas

    preocupaes: o abastecimento de mo-de-obra, e a segurana da

    sociedade por eles ameaada. Muitas alforrias j eram

    condicionais, prevendo anos intermedirios de servio antes da

    alforria completa. As restries econmicas e policiais presena

    Baiana na lavagem do Bonfim. Foto de Antonio Luiz Mendes Soares, 1977.

  • do negro em geral em Salvador indicavam que o pas legal os

    queria, mesmo depois de libertos, de volta ao eito. J o levante de

    1807 provocara a proibio da livre circulao dos escravos depois

    das nove da noite, [pg. 30] visando impedir os preciosos

    momentos de encontro dos negros depois do dia de trabalho.

    Havia, desde antes da Independncia, um antiescravismo que

    argumentava em razo do medo do aumento incontrolado da

    populao negra, medo que ampliara seus argumentos com a

    ecloso da revoluo haitiana e depois das insurreies baianas,

    culminando com a revolta mal em 1835, suscitando medidas

    draconianas na legislao provincial e aps 1835 na legislao do

    Imprio.

    Lei nacional em

    10.06.1835 punia com pena de

    morte os escravos que

    matassem ou ferissem

    gravemente seus senhores. A

    Assemblia Provincial do Rio

    de Janeiro chega a pedir em

    1835 que se impea o

    desembarque de escravos da

    Bahia e principalmente o de

    libertos de qualquer estado na

    capital, j que esses eram

    considerados os fomentadores

    das revoltas. Escreve o

    presidente da provncia da

    Bahia: Os insurgidos

    entretinham comunicaes e

    inteligncias, as quais no podiam ser convenientemente

    Negras baianas com vestimentas tpicas. In: Luiz Viana Filho, O negro na Bahia. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1946, s.n.p. (Documentos Brasileiros, 55).

  • entretidas seno pelos libertos, que podiam livremente dispor de

    seu tempo, e de suas aes para formar proslitos e partidrios de

    seus desgnos. Vrias assemblias provinciais afirmavam em

    moes enviadas ao governo central a existncia de sociedades

    secretas de escravos e forros apoiando propagadores de doutrinas

    subversivas entre os escravos de grandes propriedades, onde

    penetravam disfarados de vendedores ambulantes, justificando

    assim o estabelecimento de limitaes circulao dos negros.

    Forros podiam ser expulsos do pas sob simples suspeita de

    revolta, e para eles se estabelece um imposto de dez mil-ris

    anuais, sob pena de dois meses de priso, s sendo dispensados

    os invlidos, os empregados em fbricas (algodo, acar) e os

    delatores...

    Africanos eram objeto de maior ateno, aptridas, nem

    eleitores nem elegveis, obstados a [pg. 31] incorporar-se em

    qualquer instituio nacional. Indesejveis. Em 1831 se estabelece

    a proibio do desembarque de africanos livres no pas, lei que

    vigora at 1868. A eles se probe adquirem bens de raiz, alugar ou

    arrendar casa, a no ser com autorizao especial do juiz. Mesmo

    depois da proibio do trfico em 1851 os africanos apreendidos

    em negreiros em guas brasileiras, embora declarados livres, eram

    distribudos pelo juiz de rfos para aprendizado com

    empregadores sendo estipulado salrios irrisrios. O chefe de

    polcia baiana Sousa Martins explicita a posio da administrao

    da provncia em 1835:

    no sendo os africanos libertos nascidos no Brasil, e possuindo uma

    linguagem, costumes e at religio diferente dos brasileiros, e pelo

    ltimo acontecimento declarando-se to inimigos de nossa existncia

    poltica; eles no podem jamais ser considerados cidados brasileiros

    para gozar das garantias afianadas pela Constituio, antes devendo-

    se reputar estrangeiros de naes com que o Brasil se no acha ligado,

  • por algum tratado, podem sem injustia serem expulsos quando

    suspeitos ou perigoso.

    Francisco Gonalves Martins, chefe da polcia na poca da

    revolta mal, se torna presidente da provncia da Bahia de 1849-

    53 e, com sua obsesso pelo perigo africano, defende limitar o

    escravo esfera da agricultura e coagir os libertos a voltar para a

    frica. Durante sua gesto amplia as excluses dos escravos a

    ocupaes urbanas, probe aos negros o aprendizado de

    determinados ofcios, estabelece impostos aos artfices urbanos, e

    aumenta a insegurana com a ao repressiva da polcia, que

    enche as prises com libertos, aumentando as levas de forros que

    partem, alguns para a frica, muitos para o Rio de Janeiro.

    Embora o crescimento da populao forra, com o aumento

    da oposio escravatura, fosse maior do que o da populao

    branca, a oposio dos forros, s se manifesta na poltica oficial,

    depois da dcada de 1870, quando aparecem lderes mulatos

    como Jos do Patrocnio e Andr Rebouas, e, mais

    definitivamente, quando surge uma pequena classe mdia de

    mulatos. Afinal,

    com um padro de povoamento escasso e a ausncia de uma camada

    significativa de brancos pobres, no que contrastaria fortemente com o

    Sul dos EUA, o Brasil necessitava criar uma camada intermediria que

    desempenhasse os trabalhos que os brancos desdenhavam e que os

    escravos no podiam ser autorizados a desempenhar: atividades de

    tipo intersticial, militares e econmicas, que s poderiam se

    preenchidas no Brasil pelos mestios livres e libertos (Marvin Harris,

    Patterns of race in the Americas).

    Gilberto Freyre escreveu no monumental Casa Grande e

    Senzala:

    Desses centros de alimentao afro-brasileira decerto a Bahia o mais

  • importante. A doaria de rua desenvolveu-se como em nenhuma

    cidade brasileira, estabelecendo-se verdadeira guerra civil entre o bolo

    de tabuleiro e o doce feito em casa. Aquele, o das forras, algumas to

    boas doceiras que conseguiram juntar dinheiro vendendo bolo.

    verdade que senhora das casas-grandes e abadessas de convento

    entregaram-se [pg. 32] s vezes ao mesmo comrcio de doce e

    quitutes; as freiras aceitando encomendas, at para o estrangeiro, de

    doces secos, bolinhos de goma, sequilhos, confeitos e outras

    guloseimas. Mestre Vilhena fala desses doces e dessas iguarias

    quitutes feitos em casa e vendidos na rua em cabea de negras mas

    em proveito das senhoras mocots, vataps, mingaus, pamonhas,

    canjicas, acas, abars, arroz-de-coco, feijo-de-coco, angus, po-de-

    l de arroz, po-de-l de milho, rolete de cana, queimados, isto ,

    rebuados etc.(...)

    Mas o legtimo doce ou quitute de tabuleiro foi o das negras forras. O

    das negras doceiras. Doce feito ou preparado por elas. Por elas

    prprias enfeitado com flor de papel azul ou encarnado. E recortado

    em forma de corao, de cavalinhos, de passarinhos, de peixes, de

    Embarque de negros africanos da Bahia para a frica aps a libertao dos escravos. In: Luiz Viana Filho, op. cit., cap. 4

  • galinhas s vezes com reminiscncias de velhos cultos flicos ou

    totmicos. Arrumado por cima de folhinhas frescas de banana e dentro

    de tabuleiros enormes, quase litrgicos, forrados de toalhas alvas

    como pano de missa. [pg. 33]

    Com o esfacelamento da famlia africana pela escravatura,

    geralmente em torno da mulher que comea a se formar uma nova

    famlia negra entre os forros, assim como so principalmente elas

    que mantm o culto. As precrias condies de moradia e de

    trabalho a que fica exposta a maior parte dos libertos fazem com

    que a prole fique, na maior parte das situaes, sob a

    responsabilidade nica da mulher, que, com a precariedade das

    ligaes, tem geralmente filhos de diferentes pais. O descompasso

    psicolgico ocasionado pela libertao depois de uma vida de

    cativeiro, a incerteza frente s ambiguidades da nova situao

    foram o negro liberto a se amoldar a expedientes para sobreviver,

    vivendo aqui e ali, trocando de quarto nas casas de cmodos de

    nao, ou se instalando em casebres erguidos longe do Centro da

    cidade.

    As mulheres respondem com bravura situao: uma vez

    forras, e entre estes so maioria, procuram trabalho ligado

    cozinha ou venda nas ruas de pratos e doces de origem africana,

    alguns do ritual religioso, a comida de santo, e recriaes profanas

    propiciadas pela ecologia brasileira. Algumas trabalham ligadas s

    casas aristocrticas, onde recebem sua cidadania de segunda

    classe; outras preferem se manter trabalhando em grupo,

    geralmente como pequenas empresrias independentes,

    cooperativadas, produzindo e vendendo sua criaes. Verger fala

    do esprito ao mesmo tempo empreendedor e dominador da

    mulher: o homem se enfraquece no abandono do filho e com a

    perda da liderana que a mulher assume na vida religiosa. dela

    que depender muito o destino e a continuidade do grupo, o poder

  • redefinido entre os sexos, a poligamia africana dos machos

    senhores superada pelo matriarcalismo que se desenha nos

    bairros afastados de Salvador, como depois aconteceria no Rio de

    Janeiro.

    Na escravatura, quando o escravo era integrado famlia do

    senhor como criado, o nmero menor de homens e a

    instabilidade da sua vida, sempre merc de ser vendido e ento

    enviado para outro lugar, no importando a durao ou

    significado das relaes que mantivesse com o grupo ou com

    indivduos do grupo em torno de seu antigo dono, torna as

    relaes amorosas preferencialmente provisrias. Mesmo o

    casamento formal entre escravos, que era eventualmente

    autorizado pelos senhores, no impedia a separao dos cnjuges,

    acaso aqueles o decidissem. Era tambm comum casais formados

    arbitrariamente, a partir dos interesses na reproduo dos

    escravos por parte dos senhores. A criana geralmente s tinha

    me, integrando-se comunidade de senhores e escravos, com

    seus aposentos comuns ou rigorosamente separados, se

    sobrepondo vida familiar do negro, praticamente inexistente.

    As irmandades para leigos floresceriam na Igreja durante a

    Colnia, como um expediente regulador do comportamento e das

    relaes sociais entre grupos racial e socialmente diversos,

    amortecendo os choques, fazendo com que cada um se sentisse

    igual entre os seus, estes cuidadosamente definidos pela

    organizao eclesistica. J os dominicanos haviam enviado seus

    missionrios frica apoiados pelo Estado portugus, difundindo

    o culto de santos e virgens negras num catolicismo separado.

    Este, ao incorporar elementos culturais do novo grupo abordado,

    redefinia-os de acordo com os princpios da cristandade, e mais

    especificamente, de acordo com as necessidades de manuteno

  • da dominao [pg. 34] imposta ao africano: o sacerdote era

    definitivamente associado ao soldado conquistador e ao

    mercenrio escravagista.

    As irmandades partem dos nexos iniciais de distino entre

    os indivduos, grupando-os, assim, a partir de suas caractersticas

    raciais e sociais, e cultivando-as como rivalidades. Irmandades

    ligadas a uma nao, ou exclusivamente a um sexo, irmandades

    de negros africanos, negros brasileiros, de mulatos e,

    evidentemente separadas, irmandades de brancos. Integrados

    todos como fiis, mas percebidos como diversos e assim

    hierarquizados, eis o princpio da Igreja colonial, uma ordem

    coreograficamente explicitada no espetculo das procisses,

    assegurando a diferenciao das raas e a diviso no meio

    escravo. Esse catolicismo negro geraria uma srie de subcultura

    de etnias, de castas, se constituindo, com a Independncia e

    depois com a Abolio, em embrio das subculturas de classe.

    no seio das confrarias negras que as tradies africanas

    ganhariam o espao necessrio sua perpetuao na aventura

    brasileira, sincretizadas com o cdigo religioso do branco, de

    maneira mais ou menos formal, inicialmente apenas como um

    disfarce legitimador, mas progressivamente absorvendo o

    catolicismo como uma influncia profunda que se expande nas

    religies populares urbanas negras da modernidade.

    Entretanto, na rua, evitada pelos aristocratas, domnio do

    povinho, do negro, progressivamente se contestam essas

    distines no meio popular, e nela surgem as grandes

    manifestaes do encontro dessa pluralidade de civilizaes

    africanas de extrema expressividade mstico-religiosa. O Ocidente,

    via Portugal e seu catolicismo ritualizado, j vira renascer

    surdamente no sagrado a festa recalcada pela Inquisio. As

  • narrativas, como a de Froger, descrevem as procisses medievais

    portuguesas:

    a do Santssimo Sacramento, que no menos considervel nesta

    cidade por uma quantidade prodigiosa de cruzes, de relicrios, de ricos

    ornamentos e de tropas em armas, de corpos de ofcios, confrarias e de

    religiosos, como tambm ridcula pelos grupos de mscaras, de

    msicos e de danarinos, os quais por suas posturas lbricas

    atrapalham a ordem desta santa cerimnia (Froger, Voyages de Mr. de

    Gennes).

    Mas em Salvador que se redefine o calendrio cristo num novo

    ciclo de festas populares, quando nos santos catlicos seriam

    encontradas correspondncias e identidades associadas aos orixs

    nags, homenageados no s em cerimnias privadas, mas, a

    partir de ento, com toda exuberncia na festa catlica, nas

    ruas, nas praas, nos mercados e mesmo nas igrejas da cidade.

    Esse ciclo de festas populares que daria substncia

    identidade profunda de Salvador, criando elementos fundamentais

    sua personalidade moderna de cidade, se inicia com o Advento,

    um ms antes do Natal, aberto pela festa de santa Brbara, a

    Ians, que j na metade do sculo XIX tinha a participao

    marcante dos africanos, celebrando sua entidade de devoo no

    mercado dos Arcos de Santa Brbara. Dias depois homenageada

    Iemanj, no dia de Nossa Senhora da Conceio da Praia, a festa

    armada em torno de sua igreja, onde, j no princpio do sculo

    XIX, se misturavam brancos, pretos e mulatos, as negras com

    seus turbantes, suas camisas finamente bordadas e saias

    franzidas e rodadas. O Natal era [pg. 35] pretexto para uma srie

    de manifestaes dos negros: cheganas, bailes, pastoris, bumba-

    meu-boi e cucumbis, que saam rua revelando, mesmo em meio

    da dura represso provocada pelas insurreies dos escravos, a

  • progressiva afirmao do negro na cidade. Os cucumbis baianos

    reapareceriam no Rio de Janeiro anos depois, em ranchos negros

    onde se cantava e danava msica africana em procisses que

    atravessavam os bairros populares, s interrompidas pelas luzes

    da manh.

    A festa de Primeiro de Janeiro, que tinha seu pice na

    procisso de Nosso Senhor dos Navegantes, tambm seria ligada

    indiretamente ao negro, j que era patrocinada por capites e

    pilotos dos navios negreiros, se acostumando o povo a associ-la

    aos batuques de rua, s rodas de samba e capoeira nas praas e

    em torno da igreja do santo. Uma das mais importantes, e ainda

    hoje celebrada em moldes semelhantes, a do Senhor do Bonfim,

    a festa de Oxal, que leva, na quinta-feira que a precede,

    inmeros negros sua igreja para a lavagem do cho, numa

    manifestao de devoo africana e piedade crist. Mulheres

    vestidas com suas roupas rituais brancas levam, com um

    equilbrio elegante, potes de barro com gua, acompanhadas de

    carros e carroas decorados por bandeirolas e serpentinas sempre

    brancas. O prncipe Maximiliano da ustria, insuspeitadamente

    excelente cronista, descreve com um sentido cinematogrfico,

    onde no est ausente um excelente fecho de cena, uma dessas

    ocasies, por volta da metade do sculo passado, enfatizando o

    surpreendente convvio da festa africana com a reunio da

    sociedade baiana e o rito catlico:

    O tumulto de uma feira reinava, neste momento, na praa e na igreja.

    A populao negra, em roupas de festa, empurrava-se com muito

    barulho. Viam-se suspensas sobre as cabeas caixas de vidro repletas

    de comestveis. Pequenos grupos de vendedores de cachaa formavam

    como ilhas no meio deste oceano de seres humanos. Ns nos deixamos

    levar pela torrente at o edifcio principal. Penetramos, por uma porta

    lateral, como gua que se precipita numa represa. Uma longa fila de

  • jovens e alegres negrinhas ocupavam a extenso de um dos muros.

    Seus encantos bronzeados estavam mais velados que ocultos, sob

    gazes transparentes. Assumiam as atitudes mais cmodas, as mais

    vontade, e as mais voluptuosas vendiam toda sorte de objetos de

    religio, amuletos, velas e comestveis que levavam em cestas. Tudo

    ocorria muito alegremente na sala. Indo avante com a multido ou em

    sentido oposto, chegamos a uma vasta pea decorada de ricos

    ornamentos. Alguns utenslios indicavam que era a Sacristia. Um

    eclesistico, amarelo como um marmelo, apoiado num cofre, ao lado

    dos ornamentos do altar, entretinha-se, da maneira mais ntima, com

    algumas senhoras. A corrente nos levou como nos havia trazido,

    empurrou-nos e nos arrastou atravs da sala do mercado e nos jogou,

    enfim, apertando-nos at quase sufocar, numa grande sala de aspecto

    resplandecente. Lustres inumerveis e carregados de velas acesas

    desciam do teto; as paredes brancas eram ornadas com quadros. Um

    ar de festa e de alegre diverso reinava em todos os rostos. Parecia que

    faltavam apenas os violinos para comear a dana. A sala estava

    cheia; via-se apenas caras negras, amarelas e morenas, e entre elas as

    mais belas mulheres; todas pareciam encantadas e exaltadas pela

    influncia da cachaa. Como trofu de festa, elas levavam uma

    elegante vassoura. Todos se misturavam e se empurravam. Sentia-se

    que era uma festa longamente esperada onde os negros sentiam-se em

    casa. A sociedade toda parecia concordar em manter uma conversa

    incessante e barulhenta. E ns, tambm, conversvamos alegremente

    e em voz alta [pg. 36] atravessando a sala. De repente, na outra

    extremidade, notei, em um ponto elevado, um personagem que ia e

    vinha com ar inquieto, passava os olhos sobre um livro, olhava ao

    redor de si e parecia, de vez em quando, mergulhar e tornar a subir.

    Era o eclesistico de cor amarela que cumpria as cerimnias da missa

    (pois certamente no se poderia chamar aquilo de missa) (Maximilien

    dAustriche, Souvenirs de ma vie).

    Alm de se envolver com a organizao das festas religiosas

    que se profanizavam nas ruas uma vez cumpridos os rituais, as

    irmandades prestavam assistncia social a um meio

    completamente ignorado pelas instituies pblicas, com exceo

  • da fora policial. com as reservas das irmandades que eram

    garantidos os enterros dos negros, como atravs delas se

    conseguiam alguns recursos para rfos e mesmo um auxlio para

    muitos velhos ou incapazes de se sustentar. possvel mesmo se

    associar a decadncia das irmandades de cor, por volta do terceiro

    quarto do sculo, criao de novas formas institucionais no meio

    negro e mesmo de instituies municipais de assistncia pblica,

    que absorveriam muitas de suas antigas funes, a larga vivncia

    nas irmandades, egb, se somando ao convvio nas suas

    associaes creditcias, esusu. As irmandades, assumindo os

    moldes burocrticos da associao, com estatutos, por vezes at

    exageradamente valorizados, e procedimentos regulares, serviriam

    tambm para o negro como uma introduo s formas de

    procedimento e trnsito social da modernidade, racionalizadas

    pelo sistema de organizao e documentao produzido pelo

    Estado moderno e pelas

    instituies financeiras,

    comerciais e industriais europias.

    Juntamente com as irman-

    dades, surgem as primeiras

    instituies urbanas autnomas

    de negros. Juntas de alforria que

    se [pg. 37] organizam entre negros

    de ganho e libertos, para a compra

    da liberdade dos parentes e dos

    irmos de nao. Essas

    organizaes procuravam apoi-

    los tambm nos primeiros passos

    depois da compra da liberdade,

    quando, uma vez pago o senhor

    Ilustrao de Armando Pacheco. In: Luiz Edmundo, op. cit., v.l, p.219.

  • com todas as suas economias, o negro se via sem recursos, alm

    de sua fora e seu engenho, encontrando moradia entre os seus,

    no nag Tedo no alto da subida do Alvo, ou na rua dos Capites,

    perto da Tira-Chapu, nos bairros populares como o Santo

    Antnio Alm do Carmo, nas casas com telhas romanas e sem

    forro, com janelas sem vidraa e venezianas de madeira. A prpria

    roupa marcava a nova situao, principalmente, sapatos que,

    mesmo carregados na mo, davam dignidade de homem livre a

    seu proprietrio. notvel tambm a organizao de grupos de

    trabalhadores negros, como a Companhia dos Africanos Livres,

    que trabalharia com sucesso em obras no Jequitinhonha e em

    outras, promovidas pela municipalidade, para modernizar a

    cidade arcaica em sua paisagem e nos seus servios, como mais

    tarde e mais radicalmente sucederia no Rio de Janeiro.

    Relatava Manuel Querino, em Costumes africanos no Brasil:

    Praticaram aqui na Bahia, quase o mesmo, os africanos. Ainda no

    existiam as caixas econmicas, pois que a primeira fundada na Bahia

    data de 1834, no se cogitava ainda das caixas de emancipao e das

    sociedades abolicionistas, antes mesmo de se tornar to larga como

    depois se tornou a generosidade dos senhorios, concedendo cartas de

    alforria ao festejarem datas ntimas, e j havia as caixas de

    emprstimo destinadas pelos africanos conquista de sua liberdade e

    de seus descendentes, caixas que se denominavam Juntas.

    Com esse nobilssimo intuito reuniram-se sob chefia de um deles, o de

    mais respeito e confiana, e constituam a caixa de emprstimos.

    Tinha o encarregado da guarda do dinheiro um modo particular de

    anotaes das quantias recebidas por amortizao e prmios.

    No havia escriturao alguma; mas proporo que os tomadores

    realizavam suas entradas, o prestamista ia assinalando o recebimento

    das quantias ou quotas combinadas, por meio de incises feitas num

    bastonete de madeira para cada um.

    Outro africano se encarregava da coleta das quantias para fazer

    entrega ao chefe, quando o devedor no ia levar, espontaneamente, ao

  • prestamista a quantia ajustada.

    De ordinrio, reuniam-se aos domingos para o recebimento e

    contagem das quantias arrecadadas, comumente em cobre, e tratarem

    de assuntos relativos aos emprstimos realizados.

    Se o associado precisava de qualquer importncia, assistia-lhe o

    direito de retir-la, descontando-se-lhe, todavia, os juros

    correspondentes ao tempo. Se a retirada do capital era integral, neste

    caso, o gerente era logo reembolsado de certa percentagem que lhe era

    devida, pela guarda dos dinheiros depositados. Como era natural, a

    falta de escriturao proporcionava enganos prejudiciais s partes.

    s vezes, o muturio retirava o dinheiro preciso para sua alforria, e

    diante dos clculos do gerente o tomador pagava pelo dobro da

    quantia emprestada. No fim de cada ano, como acontece nas

    sociedades annimas ou de capital limitado, era certa a distribuio de

    dividendos. Discusses acaloradas surgiam nessas ocasies, sem que

    todavia os associados chegassem s vias de fato, tornando-se

    desnecessria e imprpria a interveno policial.

    Assim auxiliavam-se mutuamente, no interesse principal de obterem

    suas cartas de alforria, e dela usarem como se encontrassem ainda

    nos sertes africanos. Resgatavam-se pelo auxlio mtuo de esforo

    paciente, esses heris de trabalho. [pg. 38]

    A populao escrava, desta forma, se dividia entre escravos

    alforriados, muitos que ainda se mantinham sob obrigaes com

    os senhores, e os libertos. Essa subclasse de indivduos libertos,

    ou em processo de se libertar, se caracterizava a partir da postura

    de cada um frente a sua comunidade de origem, seja de nao ou

    de ofcio, uns identificados com seus irmos escravos, envolvidos

    tanto com as sublevaes, apesar de j libertos, quanto com as

    juntas de alforria; outros se afastando, se individualizando, alguns

    procurando se mimetizar com os brancos e ascender. Muitos

    negros de ofcio chegam a comprar escravos para escapar das

    tarefas braais estigmatizantes associadas escravatura, negros

    que carregavam vistosamente os instrumentos de trabalho de seus

  • novos donos, tambm negros, pela rua baiana.

    Entre os mulatos, j por natureza mais aproximados do

    mundo dos brancos, alguns eram integrados aos estratos mais

    altos da populao. Entretanto, na vida brasileira e no mundo

    moderno em geral, a cor da pele no necessariamente define a

    prtica e a viso de mundo de cada indivduo. Nos mulatos,

    particularmente, se manifesta uma aguda sensibilidade para a

    questo da identidade racial, muitas vezes resolvida por uma

    aderncia a um dos extremos, sem se perceberem como uma

    possibilidade virtual, como uma metfora biolgica de uma

    nacionalidade brasileira vinda do encontro das diversas raas de

    nossa formao.

    Muitos forros trabalham nas foras militares e policiais,

    confinados s posies subalternas como no mundo civil, expostos

    aos trabalhos mais pesados. Muitas vezes alguns no puderam

    aceitar e se desesperaram, com as lembranas que tais tarefas

    brutas traziam dos seus dias como escravo, esmagados pela

    impresso de que, apesar da carta de alforria, nada tinha mudado,

    de que haviam sido enganados. Outros libertos negam-se a aceitar

    trabalho ligado ao prprio sistema escravagista, principalmente os

    postos de controle e represso, estes cada vez mais difceis de

    serem preenchidos, como confirma a incompreenso de Vilhena:

    A Bahia que possue uma numerosa populao contudo h

    dificuldades de conseguir todos os obreiros livres, geralmente h

    queixa nisto: Exmo. Sr., em meu poder mais de 60 pedidos para

    lugares de feitores, apontadores, mas ningum para trabalhar, h

    repugnncia, eis ahi o exemplo mais evidente em que vivem, preferem

    pois a vadiao a hum trabalho honesto, pelo qual conseguem o po

    necessrio para o sustento de suas famlias, e habilitam-se desta

    maneira para os empregos de feitores, e apontadores, pois quanto a

    mim, prefiro um feitor dentre os melhores trabalhadores, de que um

  • homem que no sabe trabalhar e no pode mandar em consequncia

    disto os outros (Luiz Vilhena, Cartas soteropolitanas).

    Na recente classe de bacharis e doutores que se afirmavam

    progressivamente na sociedade baiana, muitos so filhos de

    escravas negras, ou seus descendentes, mulatos claros de

    sobrecasaca e cartola identificados com os novos valores europeus

    modernizantes, os gentlemen de cor de quem falam na poca os

    viajantes europeus, de passagem na capital da provncia. Esses

    homens progressivamente identificados com as elites, e por elas

    acolhidos, vivem uma vida parte da grande comunidade negra

    das ruas, tendo mesmo eventualmente posies contra os seus

    irmos de origem, como relata Freyre em [pg. 39]

    Ordem e Progresso:

    Em 1884 apresentaram-se candidatos Cmara dos Deputados

    Gerais por esta provncia (Bahia), cerca de trinta cidados. De todos

    eles s havia um homem de cor era o conselheiro Domingos Carlos

    da Silva, um ex-professor da faculdade de medicina desta provncia.

    Pois bem: o nico que em documento escrito e pblico teve a coragem

    de pedir sufrgios em nome da escravido. Foi alm do sr. Pedro Moniz

    digno representante dos engenhos de Santo Amaro e que, com os

    srs. Lacerda Werneck e Coelho Rodrigues, votou contra a abolio dos

    aoites.

    Na verdade, a sociedade baiana no perodo surpreende os

    europeus, principalmente aqueles que conheciam outras

    sociedades onde o negro havia sido introduzido como escravo,

    como revela numa carta o ministro francs no Brasil, o conde de

    Alexis Saint Priest:

    Chegando aqui eu pensava que os mulatos formavam uma classe

    parte, rejeitada pelos brancos e dominando os negros, mas sou forado

    a convir que mesmo encontrando muitos indivduos mulatos, estou

    ainda procura do partido dos homens de cor. Na Martinica e nas

  • outras ilhas, a orgulhosa aristocracia dos brancos l nascidos tornou

    temvel a associao dos mestios; a vaidade ferida fez muitas vezes

    derramar o sangue de uns pelos outros, mas no Brasil, nem essa

    aristocracia branca nem esta democracia parda existem na realidade.

    Os mulatos no formam em absoluto uma classe parte, h muitos

    mulatos nos clubes, mas no h clubes de mulatos. Eles esto

    misturados, confundidos com todo o mundo, se os encontra na

    escravido, nos mais vis dos ofcios, mas tambm na alta sociedade e

    no Senado. A guarda permanente composta metade de mulatos que

    vivem s mil maravilhas juntos e servem fielmente ao governo atual.

    Na diviso dos partidos, tal como ela existe ainda hoje, seria bem

    difcil designar um lugar s pessoas de cor, nenhum deles

    inacessvel aos homens de cor.

    No entanto, afastados dos sales e dos escritrios, da poltica

    e dos negcios, nas ruas do Centro e da orla, nos bairros

    populares, que surgem os negros. com a proibio do entrudo

    em 1853, e o deslocamento das manifestaes processionais

    negras para a poca do Carnaval baiano, que este comea a tomar

    uma feio moderna com seus blocos e cordes, muitos deles com

    intenes crticas, que ressurgem no Carnaval carioca. Aparecem

    clubes carnavalescos liderados por africanos, crioulos e mestios,

    j para o final do sculo, como a Embaixada Africana, os Pndegos

    da frica, a Chegada da frica, e muitos outros. Atravs dos

    nomes, claro estava o sent