Movimento rapido dos olhos

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  • MOVIMENTO

    RPIDO

    DOS

    OLHOS

  • s vezes tenho a impresso de que surjo do que escrevi, como uma serpente surge da sua pele.

    (Enrique Vila-Matas)

    Algumas pessoas jamais enlouquecem. Meu Deus, como deve ser horrvel a vida delas.

    (Charles Bukowski)

  • 1 captulo

    No diria exatamente que PODERIA ser um sonho a ser

    realizado, at porque, no tinha exatamente um sonho ou uma

    meta, nem mesmo um rascunho de um desejo aos poucos

    esquecido. Mas era bom & era o que lhe bastava para acreditar

    que aquilo poderia ser chamado ento de sonho ou qualquer coisa

    que fosse boa o suficiente para no ser real. Comeou quando

    (no tinha exatamente um comeo mas apenas a percepo de

    que algo j estava se transcrevendo enquanto suas plpebras

    caiam lentamente sobre os seus olhos, movimentos rpidos por

    minuto, cada vez se afogando em algo denominado sonho)

    acabara de acordar, e andando pela casa ainda de olhos meio

    cerrados (o corpo ainda amortecido), percebeu que algumas

    cartas se encontravam espalhadas sobre seu sof (ser que j

    estavam ali quando chegou? Ser que foram postas durante o

    sono?). At onde se lembrava, os correios no entravam em casas

    trancadas, de portes encerrados por correntes pesadas, carto de

    visita por quem passa prximo a casas habitadas por pessoas

    neurticas com mania de perseguio (mas ele s tinha medo de

    infartos fulminantes, abdues aliengenas, amnsias repentinas

    e de pessoas com mais de 90 anos ainda vivas) e deixavam

  • correspondncias simplesmente sobre os sofs empoeirados e

    rasgados por unhas afiadas de felinos com tendncias satnicas (a

    combinao dos fatores mataria qualquer carteiro alrgico).

    Olhava incrdulo ao volume de cartas, e por mais que seus olhos

    cansados se recusassem a acreditar, o mais absurdo no era o

    nmero expressivo de cartas sobre seu sof datadas de muitos

    dias atrs, meses at (inclusive anos), mas o fato de no

    ser qualquer cobrana ou um equvoco, se tratando de um

    homnimo qualquer (e ele sempre se sentira nico).

    A caligrafia lhe era ntima, como se fosse sua (e no era. Era?). E

    era to incrivelmente ele que poderia ser dele cada imagem

    descrita em cada carta rasgada e lida atenciosamente entre um

    caf e outro. A cafena seria o suficiente para despert-lo

    daquilo? Por um instante, achou que se perdeu em sua prpria

    sua memria, mas o sof rasgado e o rdio relgio lembraram-lhe

    exatamente onde ele estava: na merda.

  • 2 captulo

    Primeiro estgio

    Well I don't need anybody, because I learned, I learned to be alone

    Well I said anywhere, anywhere, anywhere I lay my head, boys

    Well I gonna call my home

    (Tom Waits Anywhere I lay my head)

    - Voc acredita em vida aps a morte?

    - Eu mal acredito na vida, pr te dizer a verdade.

    - Mas voc acredita em vidas passadas?

    - Aquela coisa de reencarnao, voc quer dizer?

    - No muito, mas eu tenho uns problemas de memria, voc j

    sabe, eu nunca deixo os outros esquecerem disso. Ento quando

    o lapso de memria, aquele rombo enorme, to falando daqueles

    buracos negros tridimensionais que engolem todos os

    fragmentos, voc j leu Hawkings? Tipo, acontece de uma hora

    pr outra, a eu esqueo essa vida. Tenho que viver outra, do

    zero, mas com esse mesmo corpo. Eu reencarno com o mesmo

    corpo, a alma que vai mudando. Entendeu?

    - Voc louco.

    - Eu tambm acho

    - Gosta de cartas?

    - S as de tarot. Por causa do destino.

  • 3 Captulo

    Gosto de dizer que sou um escritor, olhar ao meu redor e ver

    sobre a mesa alguns dos meus livros j publicados, cada pgina

    um no a algo: vida social, televiso, o futebol de final de

    semana e a internet (em seus primrdios quando no

    desconfivamos do monstro que alimentvamos com nossos

    restos). Escrever a arte de renegar e se tornar escritor ter o

    arrependimento como um exerccio dirio. Parece to pouco o

    que aceitei com os nos que fui dizendo ao longo da minha

    carreira, que hoje me sinto um pouco nada. Alguns livros e

    alguma solido, satisfatria para uma vida tranquila e inquieta

    para um ego que jamais se satisfaz com pequenas notas em

    jornais e resenhas frias feitas para revistas. Leitores tmidos que

    fingem que eu no sou eu, aquele cara que no gostaria de ser

    perturbado na fila do caixa do supermercado, ou entre uma

    prateleira e outra na livraria. Minha assistente ri quando

    comento dos desencontros com leitores, onde sempre pontua

    meus pensamentos com a clebre frase Mas voc to normal

    quanto eles, natural que passe despercebido mesmo. Ela seria

    uma grande escritora se j no fosse a minha personagem

    preferida, fria e tranquila at para me esbofetear na cama quando

    a insulto. Sempre a vejo como uma iluso, um efeito ps

  • traumtico de algum acidente que eu possa ter sofrido e, por

    esse motivo no me permito ser visto ao lado dela. Qualquer

    gesto meu em direo a ela poderia ser visto por outrem como

    um gesto em direo ao vazio. Mas se ela fizesse a mesma coisa

    no estaria equivocada.

    A minha solido, como citada antes, se tornou satisfatria

    porque fui obrigado a aceita-la tal como ela : um clich

    romntico, uma mancha tuberculosa no pulmo esquerdo, aquele

    mal do sculo que nunca melhora. Um isolamento que me foi

    dado em vida e que muito maior do que a minha prpria.

    Falando em vida, h sempre o desejo de se tornar mais do que

    um best seller ao lado dos romances adolescentes e os de auto

    ajuda. Aquele livro sempre esgotado na prateleira dos mais

    vendidos da Livraria Cultura, o nmero 1 das revistas de maior

    circulao e sites mais acessados. Talvez ter meu livro na lista

    de leituras para o vestibular. Edies raras e autografadas,

    disputadas nos mais variados sebos e sites por jovens que ainda

    no eram sequer nascidos quando foram lanadas.

  • Queria tambm ser perguntinha de vestibular, essa coisa que

    decide a vida.

    Meu ego insacivel. Pr isso, a gente d o nome de ambio.

    Para estar entre os melhores, antes de mais nada, preciso estar

    morto.

  • 4 Captulo

    Escrevo todos os dias para ela, um poema, um conto ou at

    mesmo uma crnica (do meu dia de funcionrio pblico do

    Estado, mal remunerado e completamente apaixonado por algo

    ela- impossvel aquisio porque ela, nossa, de todos). Sempre

    me elogia e diz que vou longe com aquelas palavras, to longe

    quanto possa ser meus sonhos; no digo, mas que so mais

    baratos que os da padaria. Ela no desconfia das batidas

    escancaras do meu peito quando se aproxima, disfaradas pelas

    remessas de processos (kafkanianos) sobre a mesa que analiso

    em sua presena e com um sorriso amarelado pelos cafs

    amargurados de nossa repartio tento extrair algumas piadas

    daqueles romances da vida real. Imaginamos as partes dos

    processos, suas aparncias e qual foi o caminho trilhado para

    alcanarem o mrito (ou o inferno).

    Escondo dela que sei mais de Shakeaspeare do que as peas que

    ela j encenou um dia em sua juventude e que Keats sempre fora

    bem melhor que Byron, que eu detestava, mas que ela gostava

    tanto ao ponto de batizar o seu gato com o nome do poeta.

    Jamais saberamos que amor aquela coisa que morreria em

    doze ou quatorze anos de servio pblico e que ficaria apenas

  • nas lembranas e em algumas fotos, algo meio felino, com um

    olhar de quem precisa sempre ser alimentado e cuidado antes

    que fuja e encontre a sua liberdade com outro dono (eu nunca

    confio em gatos).

    Eu achava que a amava, essa era a verdade. Mas descobri que

    era apenas um pretexto para escrever todos os dias alguma coisa.

    Ela jamais descobrir que meu objeto, tal como uma caneta ou

    um papel: dispensveis escrita, a verdadeira escrita.

    Pra isso, a gente d o nome de disciplina.

    Sempre escrevo eu te odeio a lpis, me arrependo e apago, e

    escrevo a caneta eu te amo.

    Um dia ainda pretendo no escrever mais nada.

  • 5 Captulo

    Trabalho de segunda a segunda para uma revista de fofocas. O

    diploma de jornalista formado com todas as honras est

    moldurado em uma parede em casa, presente dos meus pais, que

    s tinham o orgulho de que seu nico filho se formou em algo.

    Como todos os pais de jornalistas, os meus sempre aumentavam

    as informaes a meu respeito aos amigos, que perguntavam

    onde poderiam ler minhas matrias. Na Blgica! disse meu pai

    na primeira vez, exaltando o fato de que alm de ser um

    brilhante jornalista, eu ainda era cosmopolita. Cada ano

    trabalhando em um pas diferente, cobrindo os mais variados

    assuntos. Na ltima ocasio, minha me disse que morri em um

    conflito na Palestina, reprter de guerra para um jornal

    Israelense. Enterrado sob os preceitos judeus em nossa ptria

    me. Acredito que essa histria tenha surgido quando telefonei a

    eles para informar que fui contratado por uma revista de fofocas,

    a R$3,99 nas bancas de todo pas (mas eu descolaria umas

    edies gratuitas a eles) e que nos intervalos, eu me focaria em

    publicar meu primeiro romance. Eu realmente acredito nessa

    histria. Eu realmente acredito que estou morto.

  • Meus amigos dizem que no tenho mais idade para sonhar com

    isso, mas contra argumento utilizando o Bukowski como

    exemplo (que era mediano, quase ruim). Se alcanou a glria

    entre os jovens e os grandes crticos literrios j depois de velho,

    eu ainda tinha tempo, no tinha?

    Em mim algumas rugas de noites em claro e muitas dvidas

    eram explcitas, um timo comeo para um escritor (seguindo

    uma cartilha popular beatnik disponvel para download).

    Acrescente a isso a incapacidade social de aproximao com o

    sexo oposto e a falta de prtica com o manuseio de copos cheios

    de lcool. Imagino conversas apcrifas com

    Dostoievski durante o caminho da padaria at minha casa,

    sempre pedindo conselhos a ele que nunca me respondia. Nesse

    silncio em que nos encontrvamos, eu o preenchia com a

    imagem da moa que trabalhava no caixa da padaria. Ia nutrindo

    a esperana que um dia ela percebesse a minha presena (e no

    s das moedas que eu depositava em suas mos delicadas).

    Lamentava o fato de que (aquela vadia) nunca me sorria. No

    mximo um bom dia, cabisbaixa, mas que no era

    verdadeiramente uma timidez (era quase um flerte, ou um

    chamado a ele) ou uma atrao fsica no demonstrada. Ainda

  • esfregaria em sua cara o sucesso do meu livro. E claro, a

    convidaria para jantar.

    Quando perguntado pelos amigos sobre o meu livro, aquele que

    eu sempre dizia que j estava quase terminado, respondia que

    passava por uma crise criativa, comum grandes escritores. Mas

    que logo a superaria, que ficassem atentos. Claro que, eu ainda

    nem havia o comeado. O que havia eram as histrias,

    fragmentadas, que nunca se encaixavam e que perdidas, iam se

    afastando cada vez mais da minha linha de raciocnio at nunca

    mais as encontra-las.

    Os papis em branco espalhados pela casa eram um lembrete,

    bem claro, de que eu ainda seria um grande escritor. Mas quem

    se importa? Eu j era um escritor por QUERER ser um, e

    ningum provaria o contrrio, mesmo o desnimo e o meu

    desaparecimento (de mim mesmo) a cada pgina virada. O novo

    personagem nunca era eu.

    Pra isso a gente d o nome de determinao

    Em todos os livros a mentira era minha maior verdade.

  • 6 Captulo

    Segundo estgio

    I'm going out sleepwalking

    Where mute memories start talking

    (Elliot Smith 2:45 am)

    Escrever para blogs como andar sobre as mos, uma espcie

    de mobilidade sobre o vcuo para quem tenta alcanar a

    superfcie e respirar. Desisto e insisto nisso em arquivos

    diferentes, que se perdem num mar de dados e que

    provavelmente jamais sero palpveis, inrcia da minha parte,

    confesso a vocs. A criatividade se esvai pelas redes sociais,

    notificaes informando estou muito a frente do meu tempo.

    Se me apresentasse agora a novos leitores, pularia as

    formalidades (eu sou isso, eu tento mostrar que sou isso) e

    tentaria buscar junto a eles uma explicao, lgica, sobre o que

    tem acontecido durante os ltimos dias e que tem afetado meu

    modo de escrever, os colocando no papel de meu analista (que

    est com suas mensalidades em atraso). Dias atrs, me deparei

    com algum vindo do futuro, ou talvez vindo do meu passado

    (ou na pior das hipteses, vindo da minha imaginao). Ainda

    estou bastante assustado, tentando entender e me conformar. A

    day in the life, diriam os Beatles.

    Vou lhes contar:

    Determinado dia (digamos assim) eu (sujeito estranho e

    suspeito) estava na fila da bilheteria do metr: headfones & a

    filosofia de que eles me separam do mundo, imagens de um

  • cinema mudo num universo com Dinosaur Jr distorcendo

    aquela realidade em 5 atos.

    Primeiro ato: Ela (terceira pessoa da fila) me reconhece.

    Segundo ato: o pescoo dela se sobressai da linha reta de

    pessoas concentradas nos guichs com o medo de perderem sua

    vez na fila & na vida, seus olhos procuram pelos os meus, e se

    fixam. Assustados. Seria o tal amor primeira vista?

    Terceiro ato: o olhar incrdulo (como explicar a incredulidade

    de um olhar? O espasmo dos lbios e das pequenas rugas que no

    rosto formam uma frase: eu no acredito!) e os pequenos

    movimentos das pernas numa tentativa frustrada de se

    equilibrarem. As pontas dos ps se esforam para que ela possa

    estar acima do rapaz sua frente e agir, como se falasse no

    pode ser isso/ele (o corpo fala, o livro diz) e eu (sujeito agora

    indeterminado) permaneo preso na distoro das guitarras que

    num movimento rpido dos olhos a viu com suas tmidas

    tentativas (j citadas) de se manter ali, fixa, prxima passageira

    assim como eu (estacionado) pensava.

    Quarto ato: Ela me alcana na catraca e posso ouvir seus passos

    no intervalo entre Does it Float e Pointless*, ento fixo meus

    olhos nela (ela, segunda pessoa do meu campo de viso que em,

    3 segundos, primeira e nica) que sorri (uma mecha do seu

    cabelo, com o vento do ar condicionado, fica entre os lbios e os

    dentes) e estamos entre as catracas e a plataforma. Entre o vago

    e o espao vago dos trios, do destino final & inicial daquilo e de

    tudo. Parece me dizer algo, mas no ela ainda, o J. Mascis**

    que diz algo sussurrando em meus ouvidos.

  • - Desculpa, no consegui te ouvir. No tinha desligado o som.

    Pode repetir?

    - Voc recebeu as cartas?

    - Que cartas moa?

    - Desculpa, te confundi com outra pessoa.

    - Tudo bem, isso acontece sempre, pareo mais comum do que

    voc imagina.

    - Como?

    - No foi a primeira vez moa, pode ficar tranquila

    - Posso pegar seu nome e o seu endereo?

    - Pr qu?

    - Pr enviar as cartas.

    - Mas que cartas moa? Voc no acabou de dizer que me

    confundiu com outra pessoa?

    - Talvez, mas eu sei que voc.

    -Moa, eu no fao ideia do que voc quer dizer com isso. Srio.

    - Confie em mim. Alis, meu nome Melissa.

    - Como confiar se eu nem te conheo? Por qu me mandar

    cartas? coisa de igreja? Moa, vamos passar logo as catracas

    que o trem j chegou!

    Quinto ato: passamos as catracas e ela me segura pelo brao,

    num gesto que impediria minha fuga. Minha mo agarra a dela

    que segura meu brao, repelindo tudo aquilo que me impedisse

  • de entrar naquele vago, que ela, tambm entra, porque tambm

    seu, meu destino. Sentamos lado a lado e deja vu, ela pe sua

    cabea sobre meu ombro (que acho estranho, agradeo & sinto

    algo familiar). Seus lbios tocam meus ouvidos, eu estremeo.

    Algo dentro de mim j sabe o que ela vai sussurrar.

    - Seu nome Arthur, a marca que fica bem no meio das suas

    costas foi de uma operao para correo da coluna aos 4 anos,

    j que voc no andava. Durante sua infncia e adolescncia,

    voc precisou de reabilitao, o que te afastou do convvio com

    outras crianas e jovens. Seus pais ento, para que voc no se

    isolasse totalmente do mundo o incentivaram a ler, e voc lia,

    devorava livros, traava grandes perfis e j sabia mais da vida

    do que os garotos da sua idade, em qualquer idade. Voc

    alrgico a flores, por isso no foi ao velrios dos seus pais.

    Tambm alrgico a gatos, o que te impediu de perder a

    virgindade com a primeira garota por quem foi apaixonado

    Quando sua vida foi aos poucos implodindo, a cada fracasso

    alcanado, voc se refugiou na escrita. Quis se reescrever para

    fugir do inferno que fora reservado a voc. Sua compulso

    escrever e mesmo que abandone essa vida, na prxima, isso ser

    sua obsesso e seu elo de ligao comigo. Eu sei que est

    assustado, mas s peo que me passe seu endereo, s isso. Eu

    tenho papel e caneta aqui na bolsa.

    pausa dramtica nesse momento

    ela fua em sua bolsa colorida enquanto eu planejo uma fuga

    logo na prxima estao & penso (talvez em voz alta) QUE

    PORRA ISSO? Mas me calo, ela me passa o papel e o lpis e

    eu ajo como se por instinto soubesse o que estvamos fazendo.

  • Anoto meu endereo, e de uma forma estranha sinto que nunca

    fora meu real endereo, mas no me lembro de outro endereo

    no momento que no seja aquele. claro que isso no normal,

    encaro como um sonho, um prximo estgio, onde os olhos se

    movimentam rpido e estamos suscetveis a nunca mais

    voltarmos do mundo dos sonhos, onde estamos mergulhados e a

    realidade s uma iluso.

    Trocamos um sorriso, prxima estao, o alvio da partida dela

    porque eu.

    J estou partido.

    OBSERVAES:

    Os acontecimentos so verdicos mas minha prosa no.

    Algum sabe quanto tempo em mdia os correios entregam as

    cartas de um bairro para o outro?

    * Faixas 4 e 5 do lbum homnimo do Dinosaur Jr.

    ** Vocalista da banda Dinosaur Jr.

  • 7 Captulo

    Terceiro estgio

    Old enough now to change your name

    When so many love you, is it the same?

    It's the woman in you that makes you want to play this game.

    (Neil Young Cowgirl in the sand)

    - Eu queria saber o que o meu nome significa.

    - Mas isso no vai dizer o que voc .

    - Claro que vai, tem todo aquele misticismo sobre o significado

    dos nomes, talvez isso explique porque sou to confusa.

    - Leia o horscopo, saem todos os dias no jornal e so fceis de

    se encontrar.

    - Queria que voc fosse um pouco mais delicado s vezes

    comigo, mais companheiro entende?

    - Descubra o que o meu nome significa, a voc vai entender

    porque eu sou assim. Eu j disse que amanh ou depois, eu no

    sei direito o quando, eu vou esquecer voc. Por qu ainda insiste

    tanto nesses laos?

    - Se voc esquecer, eu te fao lembrar. No quer ser

    inesquecvel?

    - Gostaria que as pessoas fossem assim, no eu.

    - Voc deveria escrever, sabia? Leva todo o jeito de escritor,

    todo pragmtico e pessimista.

  • - s vezes eu penso nisso. Muito.

    - Escreve sobre essa vida, pra no me esquecer.

    - Promete no rir?

    - Do qu?

    - Eu nunca me esqueci de voc.

  • 8 Captulo

    Existe uma histria obscura em minha cabea de tal forma que

    no consigo desembaraa-la: Um homem sofre um acidente

    gravssimo de carro, aps uma briga em que seu nico

    relacionamento vindouro se dissolveu de maneira dramtica.

    Bbado, aps algumas tentativas de amenizar aquela dor,

    decidiu que fugiria. No esperava que sua fuga fosse to bem

    executada, que o traumatismo craniano obtido aps o choque

    entre seu carro e um caminho o deixasse em estado vegetativo.

    Apesar das constantes atividades cerebrais que o mantm

    acordado, ele no consegue se recordar de maneira linear sobre

    sua vida. Lembrar apenas dos fatos que antecederam o acidente

    e, deste ponto em diante, sua mente inventar finais alternativos

    para histrias desastrosas.

    Seu nome Arthur e no consigo descrever seu passado. Nesse

    caso sofro do mesmo mal do meu personagem, s que de

    maneira invertida. Tento, de maneira cansativa e confusa,

    escrever sobre quem ele foi e o que viveu, mas apenas o seu

    futuro que se desenvolve minha frente. Talvez Arthur tenha

    sido um escritor, afinal a nica coisa da qual ele no consegue

    esquecer o fato de ser um escritor (ou de querer ser um). Em

    um dos finais ele consegue lanar alguns livros (mas no se

    sente satisfeito devido ao seu ego, maior que a Biblioteca de

    Babel*).

    Tambm h uma mulher, Melissa, que mesmo nunca tendo

    perdido a memria no quer perder aquele homem. O que ela ?

  • Seria ela o elo com o seu passado ou apenas uma alucinao? O

    que nos importa aqui que ela estar sempre presente em todos

    os finais construdos pela mente de Arthur, abandonado em um

    corpo vegetativo.

    Melissa, em algum dos finais, sugere a ele que escreva cartas

    relatando sobre os outros finais que ele venha a ter. Uma forma

    de reconstruir sua memria, ao document-la. Ele dever sempre

    enviar as cartas para o endereo de um dos finais mais

    importantes dos dois: a casa em que moraram juntos.

    Ainda no comecei a escrev-la, por falta de tempo. Minha

    esposa me espera na sala para que possamos ver o telejornal

    antes de dormirmos.

    * A referncia utilizada ao conto A Biblioteca de Babel do escritor argentino Jorge Luis

    Borges. A Biblioteca de Babel conteria todos os livros j escritos e os ainda a serem escritos

    pelo homem. Logo, infinita.

  • 9 captulo

    Quarto estgio

    Honest when you're tellin' a lie

    You hurt her but you don't know why

    You love her but you don't know why

    (Wilco Misunderstood)

    As cartas sobre o sof o impedem de qualquer fuga momentnea

    pelos cmodos da casa. Todas endereadas a ele, cada uma

    possuindo um CEP distinto, tanto do remetente quanto do

    destinatrio, como se ele, alm das cartas, tambm fugisse um

    pouco de tudo sem saber. Como se todos aqueles possveis eus

    fossem criao de seu doppelgnger.

    No fazia ideia de quem era essa Melissa, mesmo sendo sua

    caligrafia to familiar, mesmo sendo ele to familiar queles

    descritos nas cartas, todos to obsessivos com a literatura de um

    modo geral. Justo ele que evitava, alis, odiava escrever e era

    apenas um leitor restritivo a grandes obras (poderia passar horas

    elogiando Proust de tal forma que seria vergonhoso aos

    ouvintes, mas que para ele seria apenas uma pequena

    demonstrao de seu respeito obra e de seu carinho ao autor).

    Tudo aquilo lhe causava bocejos impossveis de serem contidos,

    sem ter algum fundo provocativo nisso. A cada carta, uma

    persona to mal escrita, uma vida to mal detalhada e fadada ao

    fracasso que sentia pena das personagens.

    Melissa aparecia ali sempre presente nas descries, de homens

    apaixonados por ela, mas apaixonados pelo qu, se no haviam

    maiores descries sobre quem seria Melissa? J na quinta carta

  • seu asco por aquela criatura sem emoes predominantes j era

    maior do que pelas protagonistas das novelas comentadas de

    maneira empolgante pelas senhoras em todas as filas que

    enfrentava diariamente.

    Cartas para que no se esqueam dela? Ele a esqueceria na

    prxima esquina, ao atravessar a rua, como qualquer outra

    mulher que esbarrasse nele. No sentiu nela nada comparvel s

    grandes personagens da literatura que conhecera, mulheres

    inesquecveis que moviam os leitores numa eterna jornada em

    busca delas em cada mulher que lhes cruzassem o caminho.

    Melissa era apenas Melissa, egocntrica, mimada e pelo jeito,

    uma pssima escritora.

    Se aquilo tudo PODERIA ser sua vida (e tantas coisas agora se

    interligavam em sua memria j desgastada), seria injusto deixa-

    la nas mos de Melissa. Rasgaria as cartas, como se nada

    houvesse acontecido naquela tarde. Talvez fosse um sonho entre

    um cochilo e outro, quem sabe?

    De qualquer forma, era injusta qualquer forma de vida desta

    forma, pensou.

  • 10 captulo

    Rapid Eyes Moviment

    Let me introduce you to someone before the party is done

    Someone to look to in need or in want or in war

    If you give him everything, he may give you even more

    This is the best party I've ever been to

    Don't let me die with that silky look in my eyes

    (Faith no More King for a Day)

    - Melissa?

    - Oi?

    - comum ter pesadelos?

    - Quais?

    - Estes, em que vou me tornando vrios at me perder.

    - Voc est se perdendo?

    - Um pouco. Tenho a impresso de que nunca mais voltarei para

    a minha vida depois desse acidente.

    - Voc voltar, s no sabemos quando. Voc consegue

    movimentar os olhos, o que j algo extremamente

    significativo. Muitos, em estado vegetativo, no conseguiriam

    isso.

    - O que isso quer dizer?

    - Voc ainda pode sonhar.

  • - s vezes, sinto que estou morto.

    - Fique tranquilo, essa sensao logo passar.

    - Voc real Melissa?

    - H muitas coisas reais ao seu redor das quais, para muitos, no

    so. Voc no deveria se preocupar com isso.

    [...]

    - Melissa?

    - Diga.

    - Estou dormindo?

    - No, voc ainda est em coma.

    - Profundo?

    - O suficiente para se afogar.

    - Volto um dia?

    - Sempre que quiser.

  • Sobre a autora

    Vanessa Almeida, 1989 So Paulo.