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i PENÉLOPE DINIZ BITTENCOURT NEPOMUCENO MÉTODO, CAPITALISMO E IDEOLOGIA A PARTIR DE MARX CAMPINAS 2014

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PENÉLOPE DINIZ BITTENCOURT NEPOMUCENO

MÉTODO, CAPITALISMO E IDEOLOGIA A PARTIR DE MARX

CAMPINAS 2014

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

PENÉLOPE DINIZ BITTENCOURT NEPOMUCENO

MÉTODO, CAPITALISMO E IDEOLOGIA A PARTIR DE MARX

ORIENTADOR: PROF. DOUTOR ALCIDES HECTOR RODRIGUEZ BENOIT

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto

de Filosofia e Ciências Humanas, para obtenção do

título de Mestra em Filosofia pela Universidade

Estadual de Campinas

Este exemplar corresponde ao exemplar definitivo da Dissertação defendida

pela aluna Penélope Diniz Bittencourt Nepomuceno e orientada pelo

Professor Doutor Alcides Hector Rodriguez Benoit.

Campinas 2014

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RESUMO

O objetivo primordial deste trabalho é, visando à prática, analisar de

modo crítico aquilo que Marx denomina como sendo ideologia. Contudo, a

apreciação de qualquer temática marxista deve considerar a totalidade na qual se

encontra inserida, bem como a relação dialética existente entre seus mais

variados elementos. Por isso, começar pelo método, passando pelo sistema, longe

de constituir apenas uma escolha, revela-se como exigência basilar que deve nos

acompanhar durante toda a empreitada.

Palavras-chave: Ideologia, Método, Dialética, Capitalismo

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ABSTRACT

The main objective of this work is to analyze in a critical way what Marx

called as being ideology, aiming at the practice. However, the attention to any

Marxist theoretical framework must consider the entirety in which it is found, as

well as the dialectical relation present amongst their most diverse elements.

Therefore, starting from the method, passing through the system, far from

constituting only a choice, reveals itself as a basic requirement that must

accompany us during this undertaking.

Keywords: Ideology, Method, Dialectics, Capitalism

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 1

CAPÍTULO I - SOBRE O MÉTODO ..................................................................... 13

1.2 - A INFLUÊNCIA DE HEGEL ............................................................... 24

1.2.1 - A RELAÇÃO DIALÉTICA SENHOR-ESCRAVO ................. 28

1.3 - ACERCA DE ALGUMAS CATEGORIAS ESSENCIAIS ................... 31

1.3.1 - APARÊNCIA E ESSÊNCIA .................................................. 36

1.3.2 - ABSTRATO E CONCRETO ................................................. 40

1.3.3 - POSITIVO E NEGATIVO ..................................................... 43

1.3.4 - UNIVERSAL E PARTICULAR ............................................. 48

1.3.5 - NATUREZA E HISTÓRIA .................................................... 51

CAPÍTULO II - PRODUÇÃO DA VIDA ................................................................. 57

2.1 - VALOR ............................................................................................... 60

2.2 - DINHEIRO ......................................................................................... 66

2.3 - O FETICHE DA MERCADORIA ........................................................ 77

2.4 - CAPITAL ............................................................................................ 82

2.5 - A ASSIM CHAMADA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA ........................... 88

2.6 - FORMAÇÃO DAS DUAS PRINCIPAIS CLASSES EM LUTA .......... 91

2.7 - DIVISÃO DO TRABALHO E PROPRIEDADE ................................ 100

2.7.1 - COOPERAÇÃO, MANUFATURA E MECANIZAÇÃO ....... 104

2.7.2 - TRABALHO MATERIAL E INTELECTUAL ....................... 111

CAPÍTULO III - PRODUÇÃO DA CONSCIÊNCIA ............................................. 117

3.1 - IDEOLOGIA ..................................................................................... 124

3.2 - ELEMENTOS ESSENCIAIS OU CONSTITUTIVOS ....................... 133

3.2.1 - INVERSÃO (VERKEHRUNG) ........................................... 134

3.2.2 - ALIENAÇÃO (ENTÄUSSERUNG) ..................................... 139

3.2.3 - ESTRANHAMENTO (ENTFREMDUNG)........................... 143

3.2.4 - FRAGMENTAÇÃO (ZERSTÜCKELUNG) ......................... 148

3.3 - ELEMENTOS ACIDENTAIS OU APARENTES .............................. 153

3.3.1 - LIBERTÉ, EGALITÉ, FRATERNITÉ X DOMINAÇÃO ....... 155

3.3.2 - RACIONALIDADE X REALIDADE ..................................... 159

3.3.3 - POSITIVIDADE ÚNICA X MULTIPLICIDADE RELATIVISTA ....................................................................................................... 162

3.3.4 – INTELECTUALIDADE BURGUESA X SENSO COMUM . 167

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 181

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 191

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Para Claudinha, Índio e Cícero, in memoriam,

trabalhadores conscientes e exemplos históricos

de combatividade, força e revolução.

Nenhum minuto de silêncio,

mas toda uma vida de luta!

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AGRADECIMENTOS

Robson, sem você esse mestrado não seria possível. A sua amizade é

samba de morro, cria da classe que só pode contar com ela mesma, exemplo de

bumbo que bate fundo no peito, aquilo que de mais verdadeiramente humano a

gente pode sentir e ouvir. Obrigada de novo e sempre!

Maria, sua compreensão intuitiva que me dá a coragem que eu preciso

nos dias mais difíceis – aqueles de sol a pino, gastos em frente ao computador e

em meio aos livros – só pode ser recompensada com muito carinho e amor... em

frente a um mar limpinho, cheio de tranquilidade! Bora viajar!

Carmem, Mariana, Caroline e Elaine obrigada pela força que me dão

para qualquer estripulia, ideia, invencionice. Obrigada por me mostrarem o que é

realmente importante nessa vida e seguirem sendo exemplo de ética, coerência e

solidariedade! Amo vocês por escolha, todos os dias.

Alexandre, obrigada pelas correções e pela paciência de reler as

contestações às correções! Obrigada, principalmente, por ler essa dissertação,

tirando a poeira das estantes acadêmicas e trazendo um pouquinho de vida,

conforme seu real propósito.

Juzinho, gracias a la vida que eu tenho um amigo matemático e artista

e que faz gráficos bonitinhos pra colocar em meio a um monte de letras! Obrigada!

Obrigada aos amigos Lucas, Matheus, Bia, Felipe, Hugus e Julia, que

me convocam a brindar com o filosofante hedonismo carioca, absolutamente

imprescindível ao ato de trocar ideias e almas!

Agradeço, ainda, aos pacientes professores que me iniciaram em Marx

da forma mais bonita e marxista que há: pela atitude militante! Obrigada, Virgínia,

Franklin e Hector.

Agradeço, também, aos funcionários da secretaria da pós-graduação

em Filosofia da Unicamp, especialmente à Maria Rita. Foram todos, desde o

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começo, muito solícitos, extremamente prestativos e dispostos a ajudar quando eu

me encontrava mais perdida e desesperada! Muito obrigada!

Aos meus colegas, alunos da Unicamp, os quais eu encontrei fortuitas

vezes e, alguns, nem cheguei a saber o nome, mas que, ainda assim, graças à

solidariedade discente, me ofereceram uma casa pra ficar, me indicaram um lugar

pra comer, o melhor ônibus pra se pegar, um sambinha de raiz, ou uma boa

discussão política. Obrigada por fazerem eu me sentir tão confortavelmente em

casa e por renovarem um pouquinho das minhas esperanças no ser humano.

Um agradecimento especial aos companheiros do MST e ao setor de

educação do RJ, à Bia, Elis, Lara, Luana, ao Dudu, aos Sem Terrinha, que me

corrigem, na prática, aquilo que eu acho que sei na teoria. Poder viver a luta de

classes ao lado de trabalhadoras e trabalhadores conscientes é um privilégio. Ver

as categorias e conceitos de Marx sendo utilizados concretamente pela classe a

que se destinam para combater e destruir o capital é uma experiência indescritível

e a qual eu nunca poderei devolver a vocês como realmente merecem. Obrigada

pela oportunidade de estarmos, ombro a ombro, nas trincheiras da revolução.

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INTRODUÇÃO

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Há uma crise sem precedentes na filosofia. Crise de valores, cultural,

hermenêutica, da linguagem, de representação, ontológica, conceitual ou

propriamente racional? Frente às complexidades do mundo pós-moderno, a razão

volta-se para si em busca de ideias que, embora não resultem em uma explicação

satisfatória dotada de sentido, desenvolvem-se interiormente em uma infinidade

criativa tão diversificada quanto os indivíduos que as elaboram. Dissolvidos os

grandes sistemas totalizantes característicos da modernidade, o homem se vê

livre das ilusões e utopias que o aprisionavam e se depara com uma multiplicidade

de microcosmos envoltos em um caos geral, impossível de ser reorganizado.

Voltado para as partes que não compõem um todo, desconstrói coletividades com

a mesma rapidez com que acumula informações advindas de todos os lados do

globo e que, no contexto geral, servem de suporte ao consenso acerca da

fragmentariedade desde sempre existente, mas só agora plenamente manifesta.

Em 1989, pouco antes da disseminação mundial da internet, o arquiteto

Richard Wurman, em seu livro Information Anxiety (ROBREDO, 2008), calculava

que uma simples edição semanal do jornal The New York Times continha uma

quantidade muito maior de informações do que todas aquelas passíveis de serem

reunidas por um homem comum vivendo na Inglaterra do século XVII, durante

toda a sua vida. A revista Science, em fevereiro de 2011, publica estudo de dois

membros da Universidade do Sul da Califórnia (EUA), Martin Hilbert e Priscila

López, no qual é estimada a capacidade mundial de armazenar, compartilhar e

computar informações mediante a análise de dados provenientes de tecnologias

digitais e analógicas, entre 1986 a 2007 (HILBERT & LÓPEZ, 2011). De acordo

com a pesquisa realizada, os autores concluem que de 2.6 exabytes de dados de

informação existentes em 1986, passa-se a 295 exabytes em 2007, sendo

quadruplicados a cada ano. Neste mesmo ano foram transmitidos 1,9 zetabytes de

dados por meios de tecnologias como televisão e GPS (as denominadas

tecnologias de transmissão de sistemas unidirecionais), o que corresponderia a

174 jornais diários por pessoa.

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Não obstante a gigantesca quantidade de dados reunidos, afirma-se

que tal fato é insuficiente para que se resolva ou, ao menos, sejam indicados

caminhos destinados à resolução da crise filosófica. Um conhecimento que se

apoie tão-somente em elementos quantitativos deveria localizar-se

fundamentalmente em outras áreas, e não propriamente na esfera mais dilatada

da filosofia. Na verdade, não seria a qualidade das informações acumuladas que

resultaria nas fissuras entendidas como possibilidades colocadas para o fim da

aporia? É possível negar que, dispondo atualmente de tantas e tão diversificadas

fontes, ampliam-se qualitativamente as ideias pelo exercício fundamental da

razão? Não seria esta, justamente, a tarefa da filosofia desde o seu início: o

estranhamento que impele o pensar? Não é daí que advém sua capacidade de

abstração e que diferencia essencialmente o homem? Acaso a grande crise na

qual a filosofia se meteu não é resultado, justamente, da crítica qualitativa das

certezas solidificadas da modernidade pela relativização aprofundada de suas

categorias e conceitos, alcançada pelos pensadores pós-modernos? De que

modo, portanto, o filosofar vem a ser a saída para a Filosofia?

Partindo do pressuposto de que este filosofar, sob qualquer de suas

formas (artísticas, linguísticas, normativas, culturais), é conditio sine qua non e

abertura efetiva para que se ultrapasse o crítico estágio atual, torna-se necessária

a utilização de uma metodologia que contribua para tal fim. Da lógica aristotélica,

passando pela onto-teologia medieval, pela dúvida cartesiana, pelo imperativo

categórico kantiano, pelo cientificismo moderno, até que se alcancem as soluções

desconstrutivistas pós-modernas, a razão surge como método geral e inafastável

para as abstrações filosóficas. Destinada a variados propósitos, serve de guia,

critério de validade, veracidade, certeza e/ou imprecisão. Só por meio dela é

possível a criação, a destruição, a recriação, os devaneios, a normatização. É a

capacidade racional que, instrumentalizando a reflexão, possibilita ao homo

sapiens sapiens reencontrar-se com aquilo que o essencializa e diferencia. Sendo

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método neutro, imparcial, lógico, permite que se formalizem questões e resoluções

que respeitem a particularidade de quem as formula.

O otimismo moderno racionalista cede lugar aos desencantos

fragmentários da pós-modernidade. A impossibilidade de alcançar o todo do objeto

se estende aos diferentes sujeitos. Racionalmente o homem crê em sua

capacidade subjetiva, descartando, frente ao estilhaçamento da razão e ao

esvaziamento da totalidade, antigos propósitos e construções coletivas. Assim,

racionalmente imagina encontrar-se livre e acima dos simplórios estados e

conceitos empírico-idealistas que balizaram as buscas e certezas modernas.

Extremista, relativiza verdades, categorias, critérios; repele, frente ao espelho,

ontologia, história, teleologia, sentido.

Racionalmente procura desvendar as pequenas redes relacionais

dentro das quais acredita se encontrar, as mínimas relações de poder que o

submetem e submetem outros indivíduos, as estruturas de símbolos e signos que

constituem e determinam cada particularidade linguística e, consequentemente,

cultural. Racionalmente cria novos mundos que harmonizam lógica e,

intersubjetivamente, emissores e receptores, sejam eles homens ou animais, sem

que, com isso, se sinta obrigado a utilizar qualquer correspondência com a

realidade. Racionalmente, frente à aceleração vertiginosa das mudanças, à

complexidade do mundo e à multiplicidade de razões, pensa sozinho,

particularizado, compartimentado. O homem racional pós-moderno é-aí sem

querer ser.

Por mais que se admitam certas distinções entre as construções

teóricas modernas e as micronarrativas filosóficas da atualidade, há, no método

utilizado (e não só nele, como oportunamente se demonstrará), uma nítida

correspondência que as equipara em forma e conteúdo. O Iluminismo positivo que

tem seu ápice no século XVIII creditava à razão humana a capacidade de

resolução dos dilemas morais, sociais, políticos e filosóficos enfrentados pela

humanidade. Lançando a luz da teoria sobre os problemas e questões (práticos ou

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não), seria perfeitamente possível ao homem, após identificá-los, racionalmente

superá-los. A lógica, o formalismo, as regras a serem seguidas serviriam para

indicar e balizar o conhecimento até que se alcançasse o estágio ideal. O homem

se salvava na e pela razão. O homem do saber se salvava pelo próprio saber.

Aprofundando-se no quadro geral é possível notar que a metodologia

proposta acaba por desdobrar-se em uma tautologia que se reproduz de modo

abstrato, indefinidamente. O solipsismo no qual se encontrava o pensamento, as

justificativas circulares, a autorreferenciação, quando somados ao abandono do

universal resultam em teorias que, mesmo excluindo características otimistas

típicas da modernidade, não negam, em essência, a primazia do método lógico-

racional. O filosofar continua sendo a tábua de salvação da atual crise filosófica.

A crença iluminista contemporânea mantém por base a mesma

racionalidade universal lógica positiva, utilizando-se de certas regras e normas de

validade para verificar, classificar, conceituar e julgar fenômenos. Excluindo tudo

aquilo que não for imparcial, objetivo, neutro, harmônico, será possível adentrar na

verdadeira essência da crise filosófica e, por meio da crítica, abrir, para a filosofia,

as infinitas possibilidades a que sempre se destinou. Somente assim, livre de

quimeras, dogmas, conceitos já superados, pseudo-universalidades, a razão

poderá exercer plenamente suas capacidades e fornecer ao homem que conhece

o estágio ideal para reconectá-lo ao saber.

A eleição destes critérios normativos, longe de ser aleatória, acaba por

manter um sistema que se revela muito mais amplo que as restritas cercas

acadêmicas. Conforme se analisará no Capítulo I, método, forma e conteúdo

entrelaçam-se enquanto partes de uma totalidade. Rejeitando a fragmentariedade

presente nas teses filosóficas e nas ciências predominantes na atualidade,

procuraremos demonstrar a falácia de discursos/teorizações que, ao final, explícita

ou implicitamente, se propõem a um único objetivo: a manutenção do status quo.

Ignorando a realidade, excluindo a universalidade em prol de

particularidades estanques, fazendo prevalecer o formalismo em detrimento do

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conteúdo, rejeitando as condições em que sobrevive a maior parte da

humanidade, apregoando uma atemporalidade estagnada em desfavor do

movimento histórico, aceitando o dado e revestindo-o de uma aparência de crítica

que, ao menor abalo, desponta como aceitação, as preferências metodológicas

dominantes parecem pairar, imparcialmente, sobre todas as contradições. Não há

nada que se indagar acerca delas. Não há que se interrogar acerca de sua

preferência. Elas são aquilo que são: meras e inócuas metodologias destinadas

apenas à apreensão de uma substância que – esta, sim – realmente importa.

Formas sem maiores conteúdos questionáveis. Ferramentas eleitas tradicional e

aleatoriamente por um sujeito, voltadas à instrução e auxílio na tentativa de

compreender um objeto.

A aparência de naturalidade que legitima e torna válida a escolha de um

método é desfeita tão logo se contraponha um outro que exponha sua verdadeira

essência. A partir daí, o método dialético criado por Marx servirá de fio condutor

para, primeiramente, realizar uma análise sobre as estruturas que sustentam e

são sustentadas pelo conceito de racionalidade lógica dominante, atualmente, na

Filosofia e nas ciências ocidentais.

Não seria possível analisar de modo radicalmente crítico um fenômeno

utilizando-se dos elementos metodológicos, formais e substanciais fornecidos por

este mesmo fenômeno. A coerência ética de Marx presente durante toda a sua

vida alcança a teoria e, consistentemente, contribui para sua criação e

aperfeiçoamento. Somente uma metodologia própria, externa à coisa a ser

analisada (ainda que advinda internamente de sua crítica), com regras e

determinações diferenciadoras, é capaz de expor aquilo que se encontra

profundamente oculto, camuflado, invertido, em oposição a si mesmo.

Ao apresentar a negatividade presente em cada uma de suas

contradições internas, Marx exibe a positividade empacada da razão e,

concomitantemente, impulsiona o movimento do real visando à sua superação. A

racionalidade universal lógica e positiva, cujo método tem servido por critério de

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verdade e validade nas várias áreas do conhecimento, é recolocada sob seus

alicerces reais e considerada resultado de um desenvolvimento histórico concreto.

A influência de Hegel, o rompimento com o idealismo, a consideração acerca de

algumas categorias tão caras à filosofia que distinguem e individualizam a teoria

marxista, permitirão reconsiderar e reavaliar conceitos e atitudes cristalizados

dentro da tradição filosófica, e que acabam por se estender, em forma e conteúdo,

ao todo social.

Em segundo lugar, a construção de uma teoria que tem por escopo a

materialidade e por objetivo maior a destruição completa do sistema capitalista só

poderia ser concebida com e por meio de um método que unifique estes

elementos como são na realidade. A crítica radical do autor de O Capital, ao

superar o idealismo da dialética hegeliana na qual se inspirou, aporta na violenta

concretude dos processos históricos que criam, mantém e reproduzem a

dominação existente sob o capitalismo. O Capítulo II procurará apresentar, mesmo

que de forma extremamente sucinta, alguns conceitos e categorias de Marx, sem

os quais se torna impossível abordar qualquer um de seus temas.

Ocultas sob a forma do dinheiro-mercadoria, as relações sociais que

inicialmente possuem uma aparência fragmentária, pouco a pouco vão

manifestando sua essência. Ao serem trazidas à superfície por um complexo

processo de mediações tais relações se mostram, ao final, como constituindo uma

mesma unidade sintética: resultado histórico do modo capitalista de produção.

Neste capítulo apreciaremos os valores de uma sociedade que tem por base este

modo de produção, as relações que encerra, formas de viver e trabalhar, o

conteúdo do produzido, seu percurso histórico.

Ao se considerar os indivíduos concretamente, produzindo seus meios

de vida e existência de uma forma específica, relacionando-se historicamente

como classes em luta, revela-se o movimento fundamental de uma metodologia

meta-teórica com base e finalidade práticas, pois, apreendidas as relações de

dominação que os submetem, voltar-se-iam para aniquilá-las, libertando-se.

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Compreender o capital deveria, assim, necessariamente, implicar em arruiná-lo.

Contrariando a lógica clássica, contudo, a conclusão difere das premissas

adotadas.

Os esquemas mentais que procuram adaptar a vida prática às fórmulas

ideais previamente concebidas têm aqui o seu fim. Tornada estátua frente aos

olhos da Medusa-viva, a consciência não consegue encontrar uma saída para o

solipsismo capital no qual se encontra. No momento em que se descobre

qualitativamente fortalecida, a filosofia cai prostrada frente à certeza inelutável da

crise. Porque o filosofar não salvou a filosofia? Não seria justamente este o

momento de a consciência-consciente apresentar soluções?

Novamente o velho idealismo toma a forma de um espírito e se eleva

ao céu das abstrações filosóficas. No Capítulo III, a relação dialética entre vida e

consciência se intensifica. A falsa fragmentariedade pós-moderna, a circularidade

da via racional lógico-positiva, os abismos intransponíveis de um sistema que

segrega conhecimento e ação, episteme e onthos, sujeito cogniscente e objeto a

ser modificado, quantidade de informação e qualidade teleológica parecem agora

ceder lugar a um subjetivismo que caracteriza a crise filosófica como sendo uma

crise puramente moral ou patologicamente esquizofrênica. Por que motivos o

homem que ama o saber não socorreu a humanidade? Falta-lhe probidade,

desejo, vontade, tratamento, normalidade? Não seria, então, a crise da filosofia,

na verdade, uma crise dos filósofos?

Não, não é a filosofia-ente-abstrato-metafísico que se encontra em

colapso frente ao espelho arrancando os cabelos na falta de ideias, mas sim seus

criadores. Perdidos entre a ciência e a arte, o real e a representação, a fluidez

moral e o desejo psicanalítico, a esterilidade pessimista e a positividade

normativa, os filósofos do novo século fracionam-se sob inúmeras bandeirinhas

micro-teóricas, tentando, inutilmente, abarcar um todo contraditória e

obstinadamente recusado. Sim, a crise da filosofia é, destarte, uma crise dos

filósofos. Ela não pode ser considerada, porém, de ordem moral, subjetiva,

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puramente estrutural, ou qualitativamente criativa, como frequentemente

asseveram diferentes pensadores. Não é uma insuficiência de ou por ideias. Caso

contrário, cada um, ao se recriar, ao se moralizar, realizar ou se reestruturar já

teria dado conta de si.

O colapso, o estranhamento estreito e árduo no qual se encontram só

pode ter uma causa que seja, portanto, material, advinda das condições objetivas

da sua própria vida, sem que, contudo, a cada uma delas se restrinja, dada a sua

característica universalizante. Existindo como excertos de um conjunto maior, de

uma sociedade, de um sistema no qual se encontram inseridos, realizam aí suas

atividades filosóficas, buscam satisfazer suas necessidades, adquirem sua

consciência. A crise da Filosofia é, assim, a crise dos filósofos, de sua

consciência, e esta, por sua vez, se constitui em uma crise mais ampla, mais

geral, uma crise do sistema, do próprio modo capitalista de produção.

O século XXI surge como um momento histórico no qual, nacional e

internacionalmente, há uma inédita e crescente eliminação dos direitos sociais

conquistados, precarização das condições de trabalho, aumento colossal do

desemprego, destruição e privatização incessante dos bens naturais, exploração

de massas de despossuídos, imposição civil, econômica e militar de um

imperialismo global hegemônico, concentração ainda maior do capital. A crise

estrutural do sistema capitalista exige a intensificação ampliada de sua sanha

destrutiva e exploradora. Sua gravidade e profundidade, distinguindo-a das

anteriores, expandem suas consequências ao conjunto da classe trabalhadora.

São tais condições gerais de produção que submetem a todos, filósofos

e lixeiros, professores e camponeses, carvoeiros e prostitutas, às ordens

ditatoriais do capital. Produção da vida e produção da consciência entram, no

Capítulo III, em ampla e profunda relação dialética. O conjunto de ideias que

contribui para manter e reproduzir o sistema de dominação de uma classe sobre

outra é armamento imperioso em tais períodos.

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Elementos essenciais, a inversão, a alienação, o estranhamento e a

fragmentação são potencializados sob novas e ofuscantes formas. Elementos

aparentes, o consenso, a harmonia, a reforma, a técnica, a especialidade, a

democracia, a igualdade, a individualidade, a racionalidade, são preenchidos por

uma positividade oca cujo conteúdo destina-se a aniquilar abordagens

verdadeiramente críticas, naturalizando a ideologia das classes dominantes. Saber

e poder serão investigados sob uma perspectiva histórica que entrelace as

diversas manifestações voltadas à legitimação e validação das relações sociais de

produção.

Desvendar parte desta superestrutura em sua relação dialética com a

base econômica pressupõe, além disso, apontar alguns equívocos na tentativa de

se evitar a (farsa da) repetição. Sob o risco de se resvalar em um materialismo

exclusivamente empírico (no qual incide grande parte da tradição marxista) ou em

um idealismo praticamente religioso (existente na maior parte da filosofia), a

mediação deve tomar parte e, por meio de um processo dialético, adentrar nas

múltiplas determinações existentes no fenômeno acercando-se de sua síntese

para, só então, retornar, sob um novo patamar, à completude da superfície. O

método, que retira seu movimento da realidade a qual se propôs a desvendar,

impede a fixidez de estruturas, conceitos, tipos e categorias que fracassam à

menor tentativa de enquadrá-la. Ao mesmo tempo, essa abertura não significa,

conforme já assinalado, a impossibilidade analítica restando-nos meras digressões

filosófico-ideais ante a prevalência de um universal abstrato ou de frações

incomunicáveis sem a existência de qualquer materialidade.

A ideologia das classes dominantes é um fenômeno real, e, como tal,

por sua historicidade e concretude, essencialmente variável, sendo totalmente

passível de uma análise que respeite, em forma e conteúdo, suas contradições.

Ela não se constitui, tampouco, em um artifício supérfluo do modo capitalista de

produção. Disseminando-se através de múltiplos instrumentos ao conjunto da

sociedade reproduz, incessante e insistentemente, suas estruturas nas

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consciências dos indivíduos. Os indivíduos, por sua vez, reproduzem-na

concretamente em suas relações sociais, recriando-as de acordo com as

contradições existentes na realidade e novamente produzindo-as, dialeticamente,

no pensamento. É esta sua imprescindibilidade que, imperativamente, nos convida

a iniciar, aqui, uma busca teórica com pretensões eminentemente práticas. Ou,

colocando de modo abertamente parcial e explicitamente militante: que esta teoria

não sirva à interpretação burguesa, mas à revolução proletária.

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CAPÍTULO I

SOBRE O MÉTODO

GREVE DAS DOCAS, INGLATERRA, 1889.

(FOTÓGRAFO DESCONHECIDO)

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1.1 - POR QUE COMPREENDER O MÉTODO? A apreensão de qualquer fato, fenômeno, argumento ou conceito exige

daquele que pretende realizá-la um mínimo instrumental metodológico. Por mais

que seja possível o questionamento acerca da veracidade ou certeza do

apreendido, há que se dispor, inicialmente, de um método qualquer que contribua

e oriente o processo de conhecimento. Assim, abrir uma lata de coca-cola ou

analisar criticamente a teoria de S. Zizek são atos que, para serem realizados,

requerem uma ferramenta específica, uma determinada forma de agir, a

elaboração prévia de uma metodologia adequada para que se alcance o objetivo,

pois, caso contrário, não se sorverá o conteúdo pretendido.

Recolhimento de dados empíricos, sensibilidade, intuição, repetição,

dedução, indução, saltos filosóficos foram, e ainda são, alguns dos métodos –

cada qual em sua área – considerados válidos, durante toda a história da filosofia

ocidental para apreender a realidade, os fenômenos, os argumentos, os conceitos,

o homem, o pensamento, o mundo. Desde o espanto inicial grego, passando pela

reunião (com suas diferenças específicas da mitologia) entre possibilidade de

conhecimento e explicação religiosa dominantes na Idade Média, ao incognoscível

kantiano que repercute na aparente fragmentação experimentada na atualidade,

as contradições filosóficas aparecem (principalmente para os filósofos) como

existentes em si, independentes e até opostas à realidade, pairando, anistórica e

abstratamente sob suas cabeças, quando, na verdade, são apenas sua

expressão; aparência de uma essência com base real.

Para se compreender, em sua inteireza, o fenômeno da ideologia,

torna-se imprescindível, por conseguinte, a utilização de um procedimento que

tenha por fundamento esta base real que o constitui. Tal realidade, por sua vez,

nada mais significa, como se verá, que o modo capitalista de produção. A

exigência maior para sua apreensão será, pois, uma metodologia que se mostre

capaz de abarcar os fatos, os fenômenos, os conceitos, as categorias, as relações

contraditórias e o movimento, determinantes e determinados, existentes e

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constitutivos deste modo de produção. Serão estas características distintivas

essenciais que, por tratarem de singularidades próprias, demandarão, para efeitos

de análise, um método também específico.

Analisar e expor esta sociedade, esse movimento do qual é composta a

realidade não configurariam, entretanto, atos distintos e, por suas particularidades,

exigiriam, cada qual, um método diverso? Decerto que investigação e explanação

daquilo que foi investigado serão fases (inter-relacionadas) inseridas em um

mesmo processo de conhecimento. Porém, diferenciam-se categórica,

metodológica e temporalmente. No primeiro caso, objetiva-se a apreensão

detalhada da matéria, a análise das várias modalidades que pode vir a assumir e

suas mais intrínsecas relações, seguindo-se – só então – a exposição formal mais

adequada daquilo que foi apreendido. Adverte Marx que a modificação deste

encadeamento resultará na alteração não apenas do modo de exposição, como,

principalmente, do conteúdo daquilo que se expõe, pois pareceria tratar-se de uma

construção a priori, pairando abstratamente sobre as cabeças dos homens e

descartando a materialidade existente ao assumir uma característica mistificadora

do real1.

Assim, a apreciação das contradições históricas reais enraizadas nos

antagonismos da sociedade de classes à qual pertencem primará pela aplicação

da dialética criada por Marx2 por ser esta a única capaz de apreender

metodologicamente estas contradições3. Sua exposição, no entanto, parece, à

primeira vista, adotar a forma lógica geral onde vigoram, especialmente, os

princípios da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído. Esta forma de

1 MARX, K. & ENGELS, F., 1985, p. 21. Posfácio da Segunda Edição.

2 A recusa à denominação criada pela tradição marxista (em especial, de acordo com Benoit, na

obra Da lógica com grande L à lógica de O Capital, por Engels) de materialismo histórico e dialético ou, ainda, na separação entre materialismo histórico e materialismo dialético, de Althusser, dar-se-á em razão de Marx nunca ter adotado esta denominação; mais ainda, por não caber, em sua obra, uma epistemologia de tal modo reducionista. 3 “A sociedade capitalista é uma união de contradições. Ela atinge a liberdade pela exploração, a

riqueza pela pobreza, o crescimento da produção pela restrição do consumo. A estrutura verdadeira do capitalismo é uma estrutura dialética: toda forma e instituição do progresso econômico cria sua negação determinada, e a crise é a forma extrema pela qual as contradições se expressam”. (MARCUSE, 2004, p.28) (grifo nosso).

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expor, dominante nas ciências, na filosofia e no senso comum, opera, grosso

modo, por meio de regras específicas formalmente válidas que, aplicadas a

determinadas proposições relacionadas entre si, inferem, necessariamente, uma

conclusão verdadeira4. Ou seja, quando, por exemplo, no primeiro parágrafo de O

Capital (MARX, 1985, p. 45) afirma-se que:

A - “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção

capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’”,

B - “e a mercadoria individual como sua forma elementar”,

nada mais lógico que concluir:

C - “Nossa investigação começa, portanto, com a análise da

mercadoria”.

A opção de iniciar a apresentação pela forma lógica não é aleatória. Em

primeiro lugar, por ser esta a forma historicamente dominante de raciocínio nas

sociedades ocidentais, busca-se facilitar a compreensão daquilo que se está

investigando. Marx e Engels (1985, p. 23) dirige sua obra a um público específico,

a classe trabalhadora: “Aplaudo a sua ideia [de Maurice La Châtre] de publicar a

tradução de O Capital em fascículos. Dessa forma, a obra será mais acessível à

classe operária, e, para mim, isso é mais importante que todo o resto”. Dar acesso

ao conhecimento do sistema que oprime essa classe é abrir as possibilidades para

sua superação, pois ela será a única capaz de destruir o modo de produção

capitalista. Expressando teoricamente a consciência desta classe, atribui-lhe seu

papel histórico de sujeito destinado a extinguir, em teoria e prática, esta

dominação.

4 Ao passo que no método criado por Marx “[...] a prática é o critério da verdade [...]” (TSE-TUNG,

1999, p. 25) e o conhecimento dessa verdade é, tal como o movimento de modificação do mundo real, ilimitada, sem fim (TSE-TUNG, 1999, p. 29). Sendo que nas 7ª e 8ª Teses sobre Feuerbach, o filósofo comunista assevera: “Feuerbach não vê, por isso [por dissolver a essência religiosa na humana, idealizando e abstraindo o indivíduo, suas relações sociais e o próprio processo histórico, naturalizando-os] que a “índole religiosa” é, ela mesma, um produto social, e que o indivíduo abstrato que ele analisa pertence a uma determinada forma de sociedade” [é concretude] “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que levam a teoria ao misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e no ato de compreender essa práxis” (MARX, 2007, p. 28-29, grifos do autor).

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Em segundo lugar, por se tratar de uma obra, em seu conjunto,

eminentemente crítica, propõe-se a denunciar teorias que contribuem para a

produção e reprodução do capitalismo. Ao se utilizar, inicialmente, dos mesmos

métodos positivos de análise empregados por estas teorias (econômicas, políticas,

filosóficas) torna-se visível, pelo movimento do negativo, a sua mais clara

insuficiência em lidar com o tema, uma vez que “Na velha lógica, não há transição,

não há desenvolvimento (do conceito e do pensamento), não há “conexão interna,

necessária” (p. 43) entre todas as partes nem transição de umas às outras”

(LÊNIN, 2011, p. 105). Tais formas lógicas, desprezando qualquer conteúdo,

demonstram per si total inaptidão para alcançar o todo ou mesmo as partes que o

compõem, apresentando-se, ao final, como formas vazias, limitadas, superficiais.5

A aparente reprodução dogmática na forma de exposição, tão logo se

aprofunde na investigação, é complementada, em razão de sua incapacidade e

positividade legitimadoras do sistema, pela dupla crítica dialética (BENOIT, 1997,

p. 1): crítica teórica e crítica social. A ausência de movimento, a anistoricidade, a

unilateralidade, os princípios da não-contradição e da identidade presentes nas

formas dominantes de conhecimento revelam sua carência para apreender, expor

e superar a totalidade do sistema que as determina. Será somente por meio desta

dupla crítica dialética concretizada pelo proletariado que se tornará possível

apreender a historicidade negativa do movimento do real nas mais variadas

configurações assumidas dentro do modo capitalista de produção, realizando-a.

Partindo do mais simples, empírico e abstrato objeto, aquele com o qual

a consciência se depara comumente na sociedade todos os dias, o sujeito, por

meio de um processo de mediação, estranha o que antes lhe parecia familiar.

5 O que não significa dizer que elas sejam um “envoltório vazio” (LÊNIN, 2011, p. 158). Muito pelo

contrário, tanto as formas quanto as leis lógicas são, na realidade, “um reflexo do mundo objetivo” (LÊNIN, 2011, p. 158), pois “A lógica é a teoria do conhecimento. O conhecimento é o reflexo da natureza pelo homem. Mas não é um reflexo simples, imediato, total; este processo consiste em toda uma série de abstrações, de formulações, de formação de conceitos, leis etc. – e estes conceitos, leis etc. (o pensamento, a ciência = a ideia lógica) abarcam relativamente, aproximativamente, as leis universais da natureza eternamente em movimento e em desenvolvimento.” [...], i. e., “As leis da lógica são o reflexo do objetivo na consciência subjetiva do homem” (LÊNIN, 2011, p. 160).

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Espantado, continua, passo a passo, decompondo cada uma de suas partes, suas

propriedades e relações contraditórias buscando sua essência e aprofundando-se

cada vez mais. O objeto apreendido pela sensibilidade, antes estável, seguro e

imutável, é dissolvido na complexidade de determinações que, negando suas

características iniciais, dão impulso ao movimento metodológico advindo do real,

que o exige. O desenvolvimento histórico das categorias segue realizando-se nas

abstrações ao mesmo tempo em que as institui e supera, até alcançar o momento

propriamente dialético.

Por último, observa-se que o movimento de apreensão de um

fenômeno acaba por integrar em um só processo diversos graus do conhecimento,

elevando-se da sensibilidade à racionalidade e abarcando, assim, as fases lógica

e dialética, pois, “O conhecimento racional depende do conhecimento sensível e

este deve se desenvolver em conhecimento racional.” (TSE-TUNG, 1999, p. 23).

A base prática une, então, os aspectos exteriores e isolados advindos da

percepção sensível ao conhecimento racional atingindo sua essência: as ligações

internas do mundo objetivo aprofundadas em conceitos, juízos e contradições. De

acordo com Mao:

[...] Todo aquele que quiser conhecer um fenômeno não pode consegui-lo sem se pôr em contato com esse fenômeno, isto é, sem viver (entregar-se à prática) no seu próprio seio. Era impossível conhecer de antemão as leis da sociedade capitalista enquanto se estava vivendo a sociedade feudal, dado que o capitalismo ainda não havia surgido e faltava a prática correspondente. O marxismo só podia ser produzido pela sociedade capitalista. [...] (TSE-TUNG, 1999, p.17, grifos nossos).

A utilização da lógica dentro da dialética (unida a ela) se revela, então,

como imprescindível para que se abarque a unidade composta pela multiplicidade

de determinações e contradições que movimentam o mundo, superando-as e

criando, desta forma, um método filosófico próprio (LÊNIN, 2011, p. 105).

Tautologia, formalismo, univocidade, vacuidade, imobilismo, sofismas e demais

consequências lógico-metafísicas são desfeitas tão logo se assuma uma postura

propriamente dialética cujo impulso é dado pela negação em seu sentido mais

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amplo. Aberto o método pela constante transformação, abre-se, igualmente, o

conhecimento embasado na realidade e que a ela, acrescido do novo, se destina,

com vistas a criar tantas outras. Diz Lenin, trazendo Hegel:

Citando, na p. 125, o “famoso” silogismo – “Todos os homens são mortais; Caio é um homem; logo, Caio é mortal” -, Hegel aduz espirituosamente: “Quando se ouve enunciar este silogismo, morre-se de tédio”, o que decorreria da sua “forma inútil”, e faz ainda uma observação profunda: “Tudo é um silogismo, um universal que, pela particularidade, está unido à singularidade; mas é certo que nem todos se compõem de três proposições (126)”. (LÊNIN, 2011, p. 156).

Mais à frente, na mesma página, fazendo um paralelo entre níveis

diferentes existentes no ato teórico metodológico de criação de conceitos e no

conhecimento da realidade objetiva, ele conclui:

Tal como a forma simples do valor, o ato isolado de troca de uma mercadoria por outra já envolve, numa forma não desenvolvida, todas as contradições fundamentais do capitalismo – assim como a mais simples generalização, a primeira e mais simples formação de conceitos (juízos, silogismos, etc.) denota o conhecimento progressivamente mais profundo, pelo homem, da conexão universal objetiva. É aqui que se deve procurar o sentido verdadeiro, a significação e o papel da lógica de Hegel. (LÊNIN, 2011, p. 156).

e, obviamente, daquela de Marx.

Marx, na Miséria da Filosofia (2009, p.120-125) explicita, a contrario

sensu, as relações entre os conceitos, o movimento histórico e a abstração,

indispensáveis ao método dialético. Ao erro metodológico da empiria econômica

que afirma a fixidez e a eternidade de suas categorias e/ou do idealismo hegeliano

que assegura à razão pura a origem do pensamento, assumidos por Proudhon,

contrapõem-se as relações de produção engendradas pelo desenvolvimento de

cada época. São delas, e não da ideia pura, que provêm, por um ato de abstração

teórica, os conceitos destinados a apresentar as relações econômicas e sociais

reais. Igualmente, será este movimento histórico existente na realidade quem

impedirá a imutabilidade dogmática destas mesmas categorias.

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Caso este ato de abstração – tão caro a toda a filosofia – se desligue,

por completo, do real, do objeto, e acredite se apartar do próprio indivíduo, a

metafísica reduzirá tudo às categorias lógicas. Excluindo de um objeto todo e

qualquer acidente que a ele ocorra restariam, em substância, somente elas.

Afastando-se progressivamente das coisas, os metafísicos creem aproximar-se

delas; examinando-as naquilo que acreditam ser seu estado mais puro, realizam

não uma análise, mas uma inversão da realidade criadora destas concepções.

Tudo o que há é transformado em categorias lógicas, toda a exterioridade sensível

se subsumiria ao mundo metafísico das abstrações representadas por estas

categorias. Inclusive o próprio movimento adquiriria a característica da forma

puramente lógica da razão pura que explica e implica todas as outras coisas,

enredando a filosofia da história na história de sua própria filosofia.

Dado que as contradições filosóficas que fazem parte deste sistema

são/expressam nada mais que a realidade que as determina, não será este o

método do qual se vale Marx para investigar o modo capitalista de produção. Não

poderá ser este o processo de abstração empregado pelo sujeito que analisa.

Ademais, não serão estas as categorias destinadas à apreensão do objeto.

Conforme já referido, o método dialético apreende o real em seu próprio

movimento. O movimento, as categorias, as abstrações, as contradições

procedem da realidade. É nela, na sociedade capitalista, que existem e se

manifestam e, por essa razão, única e exclusivamente, se mostrarão instrumentos

metodológicos válidos e adequados para alcançar a totalidade.

A materialidade inserida por Marx no método dialético transmuta-o em

um novo, diferenciando-o e transformando-o em “antítese direta” ao método

hegeliano (MARX, 1985, p. 21). A ideia de sujeito autônomo fundador do real é

recolocada em sua gênese material: no homem que a cria ao lidar com a

realidade. Afirma Marcuse que, para Marx, “(...) o ponto de partida materialista lhe

era imposto pelo teor materialístico da sociedade que ele analisava” (2004, p.

237). O exame da sociedade capitalista tem início, portanto, no fato histórico que

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constitui as relações materiais e a ordem social vigentes considerados por meio do

método dialético que, em seu movimento contraditório, expressa as contradições

existentes na própria realidade, visando superá-las.

A exclusão de um materialismo vulgar que se restringe à “empiria dos

fatos”, desconsiderando, por completo, a abstração como ferramenta de análise,

deve, da mesma forma, ser levada a cabo. Quando Feuerbach (apud MARCUSE,

2004, p. 233-236) limita a filosofia ao ser concreto, ao indivíduo, à natureza que

condiciona a existência, expressa nada mais que o conceito de homem e de

conhecimento dominantes na sociedade de classes. Seu conteúdo e interesse

voltam-se ao ser humano particular existente nesta sociedade e determinado pela

natureza, recusando, per se, o universal. Não há mais, aqui, o sujeito ativo do

pensamento, espontâneo e autodeterminado, mas surge um eu passivo, receptivo,

moldado naturalmente. Ao ignorar, igualmente, o processo histórico e a função

material do trabalho que transforma a natureza, acaba por abdicar da

sensibilidade como atividade humana prática e por vulgarizar o próprio princípio

que lhe serve de base.

Aprofundar o conhecimento acerca da realidade exige que,

dialeticamente, se passe do grau da percepção sensível à racionalidade.

Restringir-se à sensibilidade do mundo exterior objetivo é desprezar o racional que

contribui para que se adentre na essência concreta e nas contradições inerentes

aos fenômenos que a compõe. A apreensão de uma totalidade tem início, sim, na

materialidade da qual advém, contudo nela não se encerra. Submetendo a

experiência ao movimento de abstração preenchido por conceitos e categorias

lógico-racionais permite-se abarcar o caráter histórico que se eleva, ativa e

constantemente, da prática à teoria, para depois, abastecido das múltiplas

determinações encontradas no processo, retornar à realidade objetivando

modificá-la.

Libertas das particularidades estanques do materialismo presente na

economia política ou do idealismo totalizante hegeliano, as categorias

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(econômicas, filosóficas, políticas) aliadas ao método dialético se prestam, agora,

a embasar a apreciação crítica acerca da natureza e existência humanas na

universalidade de seu desenvolvimento histórico. Superar a analítica a ela

retornando como síntese; reconstruir concretamente o universal; dar vida à análise

e aos conceitos apreendidos; inter-relacionar a totalidade, até então dividida em

abstrações realizadas pelo sujeito, às partes que a compõe – seriam,

precisamente, estes os papéis destinados à dialética de Marx.

Estabelecer e conceituar o valor de troca, por exemplo, exigirá que,

saindo da inércia com a qual se apresenta uma mercadoria pela primeira vez à

consciência, aprofundando-se em seus elementos constitutivos, manifestem-se

suas contradições determinantes. Valor de uso, propriedades corpóreas,

distinções qualitativas deverão ser considerados em conjunto com o valor de

troca. Este, por sua vez, aparece, inicialmente, em uma relação quantitativa casual

e relativa, como fazendo parte, intrínseco à mercadoria, tal e qual seus mais

variados e infinitos valores de uso Todavia, esta semelhança, esta expressão, não

proclama ainda sua essência. Outra vez, negando esta forma aparente, é induzida

a propulsão ao movimento de embrenhar-se na relação dialética existente

buscando superá-la – surgindo novas teses, antíteses, sínteses e assim

sucessivamente:

Suas propriedades corpóreas [da mercadoria] só entram em consideração à medida que ela lhes confere utilidade, isto é, tornam-nas valores de uso. Por outro lado, porém, é precisamente a abstração de seus valores de uso que caracteriza evidentemente a relação de troca das mercadorias. (MARX, 1985, p. 46-47, grifo nosso).

A empiria do objeto mais aparente e mais positivo do início, ao ser

inserida em um processo de mediações por abstração, se revelará como

incompletude em meio à complexidade histórica que, por força do negativo, gerará

sínteses preenchidas pela concretude das relações existentes. O retorno ao

começo, agora sob um novo patamar: “[...] no método dialético, avançar é um

retroceder, [...]. O começo pressupõe assim o fim, fim que, na verdade, é princípio,

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arché, fundamento originário” (BENOIT, 1996, p. 8), desvela a totalidade da

essência mesma do capital como história da luta de classes e da classe

trabalhadora como a classe universal destinada à superação que expropria os

expropriadores. São precisamente estas contradições existentes na sociedade

capitalista que movimentam ambas, realidade e metodologia, ao gerarem e

intensificarem sua negatividade propulsora.

Para que se compreendam as relações sociais capitalistas e as

contradições concretas que as permeiam, o método de análise a ser utilizado deve

acompanhá-las, portanto, em forma e conteúdo. A relação dialética estabelecida

entre eles ocorre porque este método entrelaça, une (também dialeticamente)

teoria e prática. O método e a obra são ambos instrumentos teóricos que

emergem da realidade histórica que funda o modo de produção capitalista, da luta

de classes e, ao final, da própria classe trabalhadora. Encerrar-se, portanto, na

pura teoria seria abandonar seus próprios fundamentos em prol de uma

metodologia positiva dogmatizante típica das classes dominantes, contribuindo,

destarte, para a manutenção e reprodução do sistema que critica. Oferecer à

teoria um destino eminentemente prático é realizar o método e a obra elevando-os

à verdadeira síntese dialética:

Marx foi percebendo, cada vez mais, que o conteúdo era inseparável de uma certa forma ou lexis específica que deveria ser encontrada. [...] Tratava-se de superar o domínio meramente analítico e encontrar um modo de exposição que, de forma imanente, se mostrasse analítico e sintético ao mesmo tempo. [...], ou seja, à forma da dialética superior. (...) Este seria o método que daria vida à matéria (Leben des Stoffs), como afirma Marx no Pósfácio da Segunda Edição de O Capital, ou seja, seria o método que reconstruiria o concreto histórico na teoria a partir de suas determinações mais simples e abstratas, conduzindo-o ao movimento contraditório que transformaria a teoria em vida e em práxis revolucionária. (BENOIT, 2009, p. 27-28).

Modificar a forma de exposição, o método utilizado, é modificar o seu

conteúdo – que se presta não somente à apreensão teórica pela classe

trabalhadora do sistema de dominação que a submete, mas à prática que dele

emerge: a destruição total e violenta de um sistema que tem por fundamento a

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violenta expropriação de classe. A dialética de Marx, reunindo tais elementos,

possibilita, no movimento do negativo, que se aprofunde a investigação tanto

quanto se aprofunda a luta de classes, até que se alcancem suas determinações

essenciais na ação concreta. Por tais motivos permite-se afirmar que, extinto o

modo capitalista de produção com a passagem da pré-história à história da

humanidade, extingue-se, por conseguinte, pela negação da negação, o método

destinado a seu entendimento.

1.2 - A INFLUÊNCIA DE HEGEL

Muito já se discutiu acerca da influência de Hegel nas obras de Marx.

Em toda a tradição marxista e antimarxista, na filosofia, e nas ditas ciências

sociais, na história, na educação, na economia ou em diversas outras disciplinas o

tema é constantemente objeto de debates e controvérsias entre aqueles que se

dedicam a estudá-lo. Qual seria o real alcance da filosofia hegeliana em suas

apreciações? O constante retorno de Marx a seu pensamento (ainda que com ele

tenha rompido por diversas vezes) permitiria afirmar que, ao final, o que há é

apenas uma inversão de seus conceitos e categorias? Ou, pelo contrário, este

avançar e retroceder estaria contido, em realidade, no próprio método? E, sendo

este o caso, é, da mesma forma, digno de questionamento: o método, enfim, é o

mesmo (ainda que de cabeça para baixo)?

Afirmar que a dialética de Marx possui influência hegeliana significa

dizer que existem pontos de contato entre ambas – e apenas isso. Adotar uma tal

postura que transplante, diretamente, todas as características de uma para a outra

(ainda que com algumas alterações) significaria comprometer toda a obra.

Diversos estudos marxistas apontam, entretanto, para a denominada “inversão da

herança dialética hegeliana”6, compreendendo-a de modo simplificado como mera

6 Que tem em Althusser um de seus principais expoentes; ainda que não se encontre, em seus

estudos, uma simplificação, propriamente.

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sucessora lógica de uma modificação ocorrida em razão da evolução analítica

colocada de forma linear.

Na Introdução aos Cadernos sobre a dialética de Hegel (2011), de

Lênin, Lefebvre e Gutterman abordam o tema da inversão sob a ótica da

totalidade, incluindo e relacionando no método a forma e o conteúdo que o

compõem. Assim fazendo, rejeitam aqueles intérpretes que se utilizam

exclusivamente da forma rejeitando o conteúdo hegeliano em prol de um

materialismo puro – ao final, tão idealizado quanto o próprio idealismo que

buscavam combater. Ainda que hipostasiado, por exemplo, o racional opera em

Hegel como um momento da abstração que, não apenas deve ser levada em

conta no processo que compõe o método – do particular ao universal e deste

retornando ao concreto – como fornecerá, contraditoriamente, a essência objetiva

do fenômeno a ser observado. Somente deste modo (quando parte do conteúdo é

transferida para a dialética de Marx) há o rompimento dos limites dialéticos aos

quais o método hegeliano o submeteu e sua consequente superação, com a

incorporação de elementos antigos ao novo criado:

Nestas condições, a “inversão” não pode ser uma operação simples, realizada mediante um único e mesmo procedimento para todas as partes do hegelianismo. [...] A “inversão”, operação delicada e complexa, deve ser considerada, pois, como momento de um processo ainda mais amplo do pensamento. Este momento é essencial na medida em que ele garante a integração e a conservação de todo o acúmulo filosófico anterior. (p. 12 e 14).

Porquanto,

A dialética só se mantém como dialética se não deixa fora dela o materialismo, se se une a ele. Para o idealismo a ideia se exterioriza e se degrada em natureza. Para o materialismo, a natureza se supera e a ideia supõe e envolve as relações da natureza e da sociedade humana, sua luta e sua unidade. (p. 22).

Benoit (2003), no mesmo diapasão, contrariando a tradição

estabelecida traça o percurso histórico-filosófico da dialética hegeliana e procura

analisar os diferentes conceitos assumidos ao longo de sua movimentação

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constitutiva. Sua crítica a determinados autores marxistas se daria em função de

equívocos cometidos quando da utilização das categorias aristotélicas de ato e

potência na tentativa de se explicarem as transformações consideradas dialéticas.

De acordo com ele, a lógica da não-contradição dominante nestes casos

impediria, per se, qualquer movimento que infira a proveniência do não-ser do Ser,

pois nela a contradição só ocorre entre categorias diversas, nunca no “interior de

um mesmo gênero” (BENOIT, 2003, p. 2). O Ser torna-se entidade teológica

responsável pela criação da multiplicidade de entes: “pura indeterminação que se

desdobra em Nada e deste em vir-a-ser, movimento, Devir” (BENOIT, 2003, p. 2)7,

ao passo que para a dialética de Marx a contradição só é possível, só se dá, com

a mesma coisa, dentro e, consequentemente, fora dela. Para ele, não existem dois

entes diversos contraditórios, mas apenas diferentes entes que não se negam

mutuamente; multiplicidade indedutível de uma unidade suprema.

Marcuse, em Razão e Revolução (2004), ainda que aristotelize, em

determinadas passagens da obra, o pensamento hegeliano, é, ainda, fonte

indispensável para a compreensão das categorias e do sistema que o compõem.

Ele encontra em Hegel e no negativo de seu método uma das teorias mais críticas

do idealismo alemão, confrontando-se tanto com as filosofias positivistas

posteriores, quanto com a realidade político-social da época. Em fins do século

XVIII e início do XIX, as condições miseráveis da grande maioria da população, o

absolutismo despótico esclarecido e as influências dos ideais burgueses

racionalistas em evidente contraste com o Reich fornecem os subsídios concretos

necessários ao surgimento do idealismo na Alemanha.

A ausência da unificação, o atraso na industrialização, a dispersa

classe média e os marcantes traços feudais contrastam, visivelmente, com as

7 Lefebvre e Guterman, na Introdução aos Cadernos sobre a dialética de Hegel (2011), de Lênin,

ao tratarem da Teoria da Contradição, tal e qual: “Ele [Hegel] abandona a história concreta (fenomenologia) para se instalar na história abstrata da ideia. O começo não é mais a sensação ou a ação; para este desenvolvimento absoluto da ideia é necessário um começo puro – o ser, idêntico ao nada” (p 17, grifos nossos).

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sociedades francesa e inglesa da época. O desenvolvimento do capitalismo

industrial na França e na Inglaterra apresentava o homem como liberto das

necessidades naturais de sobrevivência, aberto às possibilidades de dedicar-se

inteiramente à racionalidade e às suas mais variadas potencialidades: “[...] o

processo econômico aparecia como o fundamento da razão.” (MARCUSE, 2004,

p. 16). O idealismo alemão nasce nesse contexto conflitivo e conta com a

inspiração direta dos ideais da Revolução Francesa na construção de seus

conceitos fundamentais.

Destes elementos contraditórios surge uma filosofia com aparência de

pura teoria, apartada e até mesmo contrária à estrutura miserável existente.

Desviados do mundo exterior para o mundo interior, os valores potencialmente

dotados de transformação esvaziam-se e transformam-se em pujantes

legitimadores da hegemonia social. A grande maioria da população, submetida ao

estado de servidão, crê na compatibilidade entre tais formas de submissão

externas e na liberdade salvacionista interna. A plenitude e a realização humanas

são buscadas em sua essência, na alma, em uma espiritualidade imaculada, na

liberdade do pensamento ao invés da ação, restando à sociedade a indiferença

dos indivíduos e seu consequente comodismo com a realidade existente.

Não obstante encontremos em Hegel (especialmente em sua Filosofia

do Direito) contexto suficiente para a legitimação da ordem estabelecida por meio

da adoção do idealismo filosófico e pela ausência da apreciação direta do modelo

dominante ao tentar a composição harmônica entre indivíduo e Estado, a tarefa

negativa da qual dota a razão acaba por exigir a superação da forma aparente

(dada, acidental) das coisas em favor de sua essência, visando restaurar a

totalidade, o que acaba por impregnar todo o sistema de um forte conteúdo crítico.

As ideias básicas da modernidade que têm início no racionalismo cartesiano

encontram em Hegel seu ápice e seu fim. Ao interpretar o mundo como razão,

sujeita natureza, história e a própria ordem social a seus ditames, reúne filosofia e

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teoria crítica da sociedade e leva a filosofia “ao limiar da negação da filosofia”

(MARCUSE, 2004, p. 220).

O abalo das estruturas e certezas do senso comum se configura,

então, como seu ponto inicial. Excluindo a religião como solução para os

problemas do restabelecimento da unidade e liberdade perdidas – tendo em vista

seu caráter historicamente coletivo (social e político) –, surge a necessidade de

um instrumento transformador também dotado de tais características. O

movimento do vir-a-ser será fornecido pela negatividade de um método que

critique e supere a fixidez oposicional “segura” das categorias tradicionais,

desestabilizando-as.

A dialética é tida, por conseguinte, como o instrumento capaz de

desenvolver e resolver as contradições reais no seio da razão. Por meio da

mediação (Vermittlung, processo que diz respeito apenas ao ser vivo,

constituindo-o e atualizando-o), a unidade vital entre homem e physis é

restabelecida. O saudosismo de uma Grécia Clássica tida como a união perfeita

entre o indivíduo e a polis, estendendo-se à cultura e à organicidade política,

aparece em Hegel como fim derradeiro de seu sistema, livre desenvolvimento das

forças nacionais e do próprio homem, vontade e espírito de um povo. O Volksgeist

(espírito de um povo, de uma nação) torna-se a base das leis, totalidade das

partes que compõem (ou deveriam compor) o Estado, entidade concreta, não

metafísica, sujeito histórico da nação. Compreendida como forma última do saber

humano, a filosofia imbui-se do poder de unificação (“die Macht der Vereinigung”

(apud MARCUSE, 2004, p. 41)) e destina-se a restaurar a harmonia vital outrora

existente entre indivíduo e coletividade, possibilitando o exercício da liberdade em

sua plenitude.

1.2.1 - A RELAÇÃO DIALÉTICA SENHOR-ESCRAVO

Neste ponto teremos que nos deter um pouco mais em Hegel, dado a

sua influência direta na construção de alguns conceitos de Marx essenciais à

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compreensão do tema aqui proposto, os quais serão tratados em seu devido

tempo (trabalho, alienação, reificação, etc.). O pleno desenvolvimento do espírito

buscando o exercício livre de suas potencialidades passa por um processo

progressivo de conhecimento por meio do qual ele se reconcilia consigo mesmo,

pois só é livre o homem que conhece a liberdade, e esta só pode ser conhecida

por aquele que é livre. A autoconsciência desta liberdade é alcançada por meio do

autorreconhecimento, na satisfação dos desejos, apropriando-se das coisas que a

cercam. Deste modo, consciência e mundo, sujeito e objeto, são pares

fundamentais para a compreensão da relação dialética estabelecida entre eles.

Quatro etapas progressivas configuram este processo de realização da

experiência autoconsciente: a experiência ou senso comum, o conhecimento

sensível, a percepção consciente e a autoconsciência. O movimento de superação

existente entre elas, ao negar o conhecimento adquirido na fase anterior, impele o

sujeito à fase seguinte, na busca pela essência da coisa e, ao final, na busca por

sua própria liberdade. A relação entre a consciência e o objeto – e vice-versa – é a

todo tempo abalada e cede lugar a novas e mais profundas formas de

compreensão. Estas, por sua vez, incidem em ambos e realizam alterações

subjetivas e, consequentemente, objetivas, em um incessante percurso destinado

ao conhecimento verdadeiro e à realização livre do espírito absoluto.

Não nos ateremos aqui às três primeiras fases. Entretanto, a quarta e

última fase exige uma análise mais aprofundada que evidencie, na diversidade

desejante, a existência da unidade. O verdadeiro fim dos desejos é um só: o

reconhecimento. E este tem como condição de existência o outro, ou seja, só há

reconhecimento (satisfação do desejo) de uma autoconsciência por meio de outra

autoconsciência. Será esta quem fornecerá àquela o seu sentido, a sua essência

original: “O indivíduo só pode tornar-se o que ele é, através de outro indivíduo; sua

existência mesma consiste neste ‘ser-por-outro’” (MARCUSE, 2004, p. 107).

O trabalho servirá a Hegel como figura fundamental para explicitar a

relação estabelecida entre duas autoconsciências que lutam pelo reconhecimento,

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pois lidar com ele e com seus objetos é lidar com aquele que os criou, que

trabalhou para produzi-los; é, enfim, lidar com o próprio (outro) homem. Senhor e

escravo vêm ao mundo, assim, travando um combate mortal onde visam o

reconhecimento de sua autoconsciência e o exercício pleno de suas

potencialidades na liberdade. Tratando-se de indivíduos cujas essências são

eminentemente diferentes, seria de se supor que somente a destruição de um

permitiria a existência vitoriosa do outro. Não é esta, no entanto, a solução

dialética.

Afirma Marcuse (2004, p. 107) que “[...] Hegel mostra que os objetos do

trabalho não são coisas mortas, mas concretizações vivas da essência do sujeito:

ao lidar com tais objetos, o homem está de fato lidando com o homem”. Seja por

meio da criação destes objetos, seja pela mera apropriação deles, o concreto

produzido é o sujeito autoconsciente (tendo em vista a unificação já restabelecida

pela consciência entre os mundos objetivo e subjetivo). A diferenciação e o

embate ocorrerão, portanto, nestes dois domínios em conflito: aquele que produz

e aquele que se apropria. A relação entre eles, tendo por base a própria relação

de trabalho é, desta forma, não natural, mas mediatizada pelas coisas criadas.

Acorrentado ao trabalho, o escravo é por ele determinado em toda a

sua existência. Ele é, em sua essência, um trabalhador, “[...] seu ser é o trabalho”

(MARCUSE, 2004, p. 108). Não há como separá-lo, por isso, das coisas que

produz. Sua consciência é produzida ao trabalhar, ao criar as coisas relacionando-

se com elas, e é apenas nelas, em sua coisidade, que se reconhece como sujeito.

Tornar-se sujeito implica, para ele, tornar-se coisa. E tornar-se coisa é possuir a

característica de ser apropriável, é “ser-por-outro”. A verdadeira relação se

completa, então, com a apropriação do escravo pelo senhor.

Apropriando-se do trabalho e dos objetos produzidos pelo escravo, o

senhor passa a dominá-los. A satisfação de seus desejos é realizada por meio do

esforço de outro que lhe fornece as coisas prontas para serem consumidas, sem

que necessite produzi-las. Sua positividade na relação advém precisamente desta

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independência com relação ao trabalho, pois, não havendo reconhecimento nas

coisas produzidas, não há qualquer entrave negativo que o impulsione à

superação de sua condição. Ele se define tão somente pelo “fato único da

apropriação e posse” (MARCUSE, 2004, p. 108).

A exteriorização da consciência do trabalhador ao reconhecer o mundo

como produto de seu fazer é, por fim, autoconsciência que inexiste, desta forma,

no senhor. Este se revelará negativamente apenas ao se deparar com as coisas

relacionadas ao sujeito produtor. Sua autoconsciência encontrará aí a

autoconsciência do trabalhador, percebendo não ser-por-si, mas dependente, para

satisfazer-se, do seu oposto. A essência de cada um está, portanto, no outro e só

no outro atinge sua verdade.

O último passo da autoconsciência em direção à liberdade será a

superação do “Eu” ao “Nós”. A unidade derradeira que terá como resultado a

realização plena do espírito absoluto parte do reconhecimento mútuo entre senhor

e escravo e se dirige ao pensamento. Será, inicialmente, por meio dele que a

consciência, ao mesmo tempo em que se apropria do mundo exterior, sabendo-se

substância, dele se liberta ao subjetivar o objeto. A reunião fundamental completa-

se, pois, com a autossuficiência: o sujeito conquistou a exterioridade.

A liberdade seria, então, pensamento. Seu exercício independeria das

condições externas, sendo possível tanto ao senhor quanto ao escravo. Contudo,

adverte Hegel, esta seria uma falsa espécie de liberdade, conceito e não

realidade, pois a liberdade verdadeira depende da concretude viva de saber ser o

homem seu próprio mundo. Apenas deste modo o processo do espírito se

completa no processo da história e se realiza com plenitude no “Nós” unificado

sob a Nação.

1.3 - ACERCA DE ALGUMAS CATEGORIAS ESSENCIAIS

Abordar algumas categorias essenciais à filosofia em geral visando à

apreensão do tema proposto, em se tratando de um trabalho que tem por base as

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obras de Marx, demanda sua inter-relação com o método dialético por ele

elaborado. Não haveria a possibilidade de se compreender qualquer categoria ou

analisar qualquer assunto dentro deste universo sem que se estabeleça esta

conexão. Por isso, a relação dialética existente entre ambos, categorias e método,

deve ser capaz de indicar, ao menos, as peculiaridades que os tornam originais

dentro da história do pensamento ocidental.

Em Hegel, os pares de opostos categoriais (espírito e matéria, fé e

entendimento, liberdade e necessidade, razão e sensibilidade, história e natureza,

subjetividade e objetividade) existentes de modo segregado na tradição filosófica

ocidental são reinterpretados, dissolvidos e coligados pela análise dialética. Será

apontando a inconsistência filosófica de alguns sistemas e conceitos anteriores

(em especial a liberdade interiorizada de Kant e Fichte) que Hegel reunirá sujeito e

objeto sob a identidade antagônica e dotará a razão da possibilidade de organizar

a realidade.

Transformados, por meio de um processo dialético racional, em uma

nova forma não excludente (ainda que com elementos preservados), os opostos

são reunificados até que se alcance o todo absoluto. Esta unidade dinâmica segue

organizando e congregando as diferentes partes do real, modificando-as em um

movimento cujo fim explicite a necessária interdependência de sentido e essência

entre elas e delas com a totalidade. O caráter negativo da dialética que se

manifesta no processo da realidade preenche as assertivas e axiomas vazios das

categorias lógicas e impede a fixidez da cotidianidade. A verdade do conhecer se

identifica com a verdade do ser e “desafia a formalização e estabilização, por ser a

negação mesma de qualquer forma estável” (MARCUSE, 2004, p. 131). A

identidade é produzida pelo concreto contraditório e se constitui como

desdobramento das potencialidades presentes nas coisas: o não-A é resultado

deste processo e conteúdo do próprio A negado.

Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx (2005), dando

continuidade à apreciação acerca do poder soberano hegeliano, esmiúça a

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proveniência dos opostos categoriais e aponta seu real antagonismo8. Por não

exprimir “a oposição em toda a sua agudeza” (id., ibid., p. 100), não é possível a

Hegel estabelecer corretamente a mediação entre os extremos reais, uma vez que

não haveria um processo de mediação, “precisamente porque são extremos reais”

(id., ibid., p. 105) dele prescindindo por se constituírem como seres opostos, sem

nenhuma identidade entre si. Assim, polo norte e polo sul, gênero masculino e

gênero feminino participariam da mesma essência, todavia como categorias

diferenciadas, não sendo possível, porém, considerá-los verdadeiros pares

antagônicos.

Ao deduzir o Não-Ser do Nada, Hegel idealiza as categorias. Para

Marx, no entanto, o antagonismo real seria produzido não por uma essência que

contém uma determinação diferenciada (polos, gêneros), mas pela disputa

negativa, pela luta da existência. Um conceito só tem significado, portanto, a partir

do momento em que é derivado de outro, da abstração de sua concretude. Ele se

torna totalmente dependente, para se opor ao outro do qual provém, ao dele se

abstrair. É conteúdo derivado da forma sem a qual o Não-Ser apenas se tornaria

extremo abstrato; par em oposição, por advir do Ser abstratamente considerado

(aqui, uma vez mais, os princípios lógicos da identidade e da não-contradição,

dominantes na tradição da metafísica ocidental, são refutados). As categorias

ganham, então, uma carga de historicidade e concretude inserida pela

negatividade antitética e que se torna indispensável ao promover a fissura que

possibilitará a realização do movimento destinado à apreensão de sua essência9.

Na dialética de Marx este movimento (ainda que se apresente como

mecânico quando provocado por fatores externos geradores de alterações

8 Para Mao Tse-tung (1999, p. 74-77), o antagonismo constitui uma das formas da contradição.

Esta forma específica ocorre quando, na luta dos contrários, a contradição se agudiza. O movimento dela advindo leva o processo ao ponto de rompimento da unidade inicial com profundas alterações qualitativas. O antagonismo, aberto ou não, só existe em condições determinadas, ao passo que a contradição possui, em si, universalidade.

9 Uma esclarecedora investigação acerca do tema é fornecida por Benoit em “O negativo em Marx”

(2007).

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eminentemente quantitativas) tem como causa fundamental as contradições

internas do fenômeno, manifestadas no desenvolvimento dos pares antagônicos.

Conforme Mao Tse-Tung (1999, p. 39), “Não há fenômeno que não contenha

contradição. Sem contradições o mundo não existiria”. Esse caráter de

universalidade – que existe e subsiste no particular, pois sem um não há o outro –

permite afirmar que o movimento do contraditório se realiza desde o princípio até o

fim em cada um dos fenômenos a serem estudados. São as contradições,

portanto, a condição e a base das modificações na matéria, nas sociedades, nos

conceitos. São elas que instituem as formas simples e complexas do movimento

que conserva, altera, suspende e supera o velho pelo novo.

Precisamente neste ponto a unidade dos polos contraditórios possibilita

à dialética materialista adentrar na essência de qualquer fenômeno, opondo-se

frontalmente àquelas concepções metafísicas idealistas que negam a existência

da contradição em favor de uma filosofia da diferença (sendo que toda diferença

contém uma contradição e a diferença em si nada mais é que uma espécie de

contradição (TSE-TUNG, 1999, p. 41)). Para estas teorias, o aspecto isolado de

cada fenômeno o diferencia, essencialmente, de todos os outros. A ausência de

movimento, o eterno estado de repouso, a fixidez e a imutabilidade qualitativa são

transformados em dogmas e ampliados para o conjunto da sociedade. Exploração,

concorrência, desigualdade, individualismo, racionalidade, inteligência, riqueza,

são fatos desde sempre existentes, autônomos e independentes entre si. Não

haveria quaisquer causas ou condições intrínsecas a cada um deles que permita

afirmar que em sua essência exista a perenidade, transformação histórica ou

interdependência. Os movimentos são mecanizados. A totalidade é rapidamente

descartada em favor de uma fragmentariedade estática. A existência da

contradição é impossível. Tudo o que há é uno; exclusão categórica pela diferença

inconciliável das respectivas essências: vida ou morte, natureza ou história,

universal ou particular, racionalidade ou irracionalidade, liberdade ou escravidão.

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A princípio, ao serem tomados em suas especificidades, os fenômenos

parecem ser totalmente díspares entre si, excluindo-se graças a essas diferenças

antagônicas. Tais acepções metafísicas adquirem, de tal modo, a aparência de

verdade. Analisando concretamente uma situação concreta, aprofundando-se no

processo de conhecimento que tem início na particularidade, passa-se do

subjetivismo inicial aos aspectos objetivos. Desta primeira fase particular segue-se

o geral e deste, em espiral, um novo ciclo se inicia, de forma mais elevada e

profunda, retornando ao particular, e assim continuamente. Por isso, afirmar a

particularidade das contradições que diferencia os fenômenos e suas formas de

movimento é apresentar aquilo que constitui a essência específica de cada um,

i.e., cada fenômeno possui, em si, um movimento próprio determinado por suas

próprias contradições internas. Concomitantemente, o caráter antagônico das

categorias manifesta-se em sua interdependência como condição necessária de

sua existência: Ser não existe sem Não-Ser; A não existe sem Não-A; quantitativo

não existe sem qualitativo; absoluto não existe sem relativo; capital não existe sem

trabalho, explorador não existe sem explorado; “Na identidade há luta, no

específico há universal, no particular há geral” (TSE-TUNG, 1999, p. 73).

Transformar-se no seu oposto e ser a condição de existência do outro fornecem

os dois sentidos da identidade.

Os polos contraditórios que, dada a universalidade da contradição, não

podem existir um sem o outro, coexistem na incessante luta travada até que sejam

superados no processo de desenvolvimento de um fenômeno. Por meio do

movimento contraditório interno a unidade inicial é rompida, suscitando

modificações qualitativas até que novos antagonismos se formem. Tal forma de

existência particular é, portanto, condicionada, passageira e estende-se a toda

uma série de contradições existente nos fenômenos complexos. Somente por

meio de uma análise concreta destas particularidades é que se tornará possível

revelar cada antagonismo específico, bem como se determinar qual é a

contradição principal dentre os mais variados elementos que ocuparão, em um

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dado momento, uma posição secundária, subordinada e determinada por aquela.

É desta forma que Marx identifica, analisa e apresenta a crítica teórica do modo

capitalista de produção e das categorias que o informam. Será, portanto, seguindo

o mesmo método, que inclui identificando ao mesmo tempo em que opõe

excluindo, que se apresentarão algumas categorias contraditórias essenciais para

a compreensão do fenômeno proposto.

1.3.1 - APARÊNCIA E ESSÊNCIA

Marx dá início à sua investigação n'O Capital utilizando-se de uma

palavra que permeará toda a sua obra, em forma, método e conteúdo: “aparece”

(erscheint). A tradução direta do alemão indica a junção do prefixo er, designativo

de aquisição, com o substantivo Schein ou, ainda, o verbo scheinen, cujos

significados aproximam-se respectivamente de “brilho, luz, aspecto, clarão,

aparência”; e, “brilhar, luzir, resplandecer, parecer, ter a aparência de”10. A escolha

da palavra não é aleatória. O amplo e aprofundado conhecimento filosófico do

autor conjugado a seu rigor teórico-metodológico demonstram todo um constructo

destinado não apenas à apreensão conteudística de cada conceito utilizado, não

somente à forma com a qual se encontram inter-relacionados, mas, acima de tudo,

ao modo como se movimentam; ao método que impele e impede a fixidez

logicizante; à harmonia oposicional que se abre à História e expande-se à

totalidade em teoria e práxis revolucionárias.

O ressurgimento da discussão filosófica entre aparência e essência

apresenta-se indispensável, seja para a devida compreensão de seu conjunto,

seja, ainda mais, para a proposta aqui levantada. A mercadoria ou a

“monstruosa11 coleção de mercadorias” que aparenta ser a riqueza das

10

Dicionário de Alemão/Português – Português/Alemão, Porto Editora, Portugal, s/d.

11 Ao invés da tradução mais usualmente utilizada (“imensa coleção de mercadorias”) elegemos

aqui a palavra “monstruosa” como tradução livre do alemão realizada em aula pelo professor

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sociedades dominadas pelo modo capitalista de produção é o ponto de partida

para o necessário desenvolvimento da obra. A forma mais diretamente observável,

imediatamente palpável e, portanto, empiricamente ilusória enquanto expressão

elementar desta riqueza é a mercadoria; clarão súbito onde se tomam as sombras

como realidade, brilho que cega à primeira vista, exterioridade tida como onthos.

Entretanto, há nela conteúdo.

Diferindo essencialmente (e ao mesmo tempo) tanto do materialismo

vulgar, no qual prevalecem a anterioridade e a supremacia do concreto face ao

abstrato, da matéria frente à ideia, quanto de idealismos que pugnam o inverso ou,

ainda, de princípios lógicos fundamentais que exigem a exclusão de um ou outro

dos termos contraditórios, a dialética de Marx não descarta a aparência em favor

da essência. Apresentada naqueles casos como falsa, meramente provisória,

simples momento para se chegar à essência, aqui, contrariamente, passa a fazer

parte do próprio movimento dialético. Não há uma superioridade da essência que

comportaria a mais pura verdade, a eternização categórica do ser, o fim último de

toda análise, mas, sim, a necessária interação dialética entre ambas.

O movimento dado pela inter-relação dos elementos permite afirmar a

redefinição dos papéis assumidos ao se vislumbrarem as tensões existentes entre

as formas antitéticas, as quais, não sendo suprimidas ou eliminadas por completo

no choque, serão elevadas a novas categorias. É justamente essa conservação de

parte das categorias antagônicas produzida pela síntese explicitada no novo que

comportará o retorno do processo da essência à aparência, do abstrato ao

concreto, da luta de classes à mercadoria, agora visualizados sob uma outra

perspectiva, acrescida de elementos e aprofundamento até então encobertos.

Lênin trata do tema em várias notas nos Cadernos sobre a dialética de

Hegel. Segundo ele (em Hegel), a aparência é a “natureza negativa da essência”

Franklin Trein (UFRJ) porque ela expressa, de modo ainda mais contundente, o próprio modo capitalista de produção.

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(p. 125) e, portanto, é a própria essência “em uma de suas determinações, em um

de seus aspectos, em um de seus momentos. A aparência é o aparecer da própria

essência nela mesma. [...] reflexo da essência nela mesma.” (p. 126). Por

conseguinte, o que importa não é excluir a aparência para que se encontre o

elemento escondido atrás dela, ou ainda, desconsiderá-la e tentar buscar a

verdade mais profunda que demonstra um para além dela mesma, mas, sim,

tentar apreender o movimento de externalização realizado pela essência. O

interior se externaliza no momento em que se efetiva, ou seja, a exteriorização da

interioridade, a unidade da multiplicidade ocorre quando a essência é posta na

existência, na própria realidade (Wirklichkeit) dentro da qual foi criada. A

aparência, no processo que se constituiu como resultado concreto das relações

contraditórias ocultas acaba por se tornar a externalização da essência, síntese

histórica aparente, clara, luminosa (Schein) (CRESSONI, 2011).

A manifestação e a aparência, observadas em sua imediatez,

coincidem, identificam-se. Contudo, submetendo-se a aparência à análise de suas

categorias contraditórias fundamentais conclui-se que no processo mesmo de

mediação já se abandona a premissa inicial de identidade. Aprofundar-se nas

múltiplas determinações contidas nos elementos que a compõem nada mais é,

assim, que afastar-se da aparente congruência ontológica entre ambas, sem a

exclusão, contudo, do ponto lógico de convergência imanente.

A passagem da aparência à essência não é imediata, tal como não é

imediata a exposição do modo capitalista de produção ou a desmistificação da

mercadoria. A mediação (Vermittlung) é o instrumento capaz de possibilitar a

apreensão do concreto, da unidade na diversidade. Por isso, a superficialidade,

quando tomada em sua inteireza, permite e exige a afirmação negativa. Não há

que se descartar, então, de antemão, a superfície em favor da profundidade, a

forma em favor do conteúdo, a aparência em favor da essência, sob pena de se

modificarem os próprios termos. São justamente estas as partes que constituirão o

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todo; positivo e negativo apontando para a negação da negação; teoria advinda da

prática e a ela retornando de outro patamar, engrandecida pela análise crítica.

Começar pela explicitação das relações mais simples e abstratas que, à

primeira vista, aparecem a todos os envolvidos como expressão da realidade na

qual vivem é partir desta própria realidade como imediata, e empiricamente revela-

se ao trabalhador no modo de produção capitalista para, desdobrando-a, chegar à

essência que o constitui. A simplicidade inicial é, também, apenas aparente. A

falsa identidade entre aparência e essência encobre os processos reais e as

diferenças existentes entre a variedade de relações que compõem o fenômeno

estudado. A mesma mercadoria com a qual se depara o senso comum no dia-a-

dia será investigada em toda a sua totalidade e, passo a passo, revelará sua

complexidade, esclarecendo à classe trabalhadora (a quem se destina a obra) a

contradição fundamental do capital:

A sensação só pode resolver o problema da aparência dos aspectos exteriores dos fenômenos; o problema da essência só pode ser resolvido pelo pensamento teórico. A solução desses problemas não pode se separar em nenhum grau da prática. (TSE-TUNG, 1999, p. 17).

A resolução da oposição aparência/essência se dá, para Marx (tal como

em diversas outras oposições), na síntese do processo histórico e não meramente

no plano do pensamento puro (caso do idealismo); surge da e aponta para a

realidade concreta. Desvelar as aparências exige a inclusão do objeto nas

relações que lhe dotam de sentido; pois não há que se falar em um objeto isolado,

puro, sem qualquer relação com o sujeito que busca apreendê-lo. Mediatizados e

incorporados um ao outro, negativo e positivo deixam de ser opostos e convertem-

se em partes da unidade substancial do sujeito. A infinidade das relações

transforma-se, pois, em verdadeira realidade das coisas, potencialidade realizada,

forma última do todo.

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A aparência subjaz, deste modo, como aparência. Não há anulação

completa em razão de ter se chegado à essência. Ao contrário, há interpenetração

em causa e consequência: a aparência só existe em razão de uma essência e

esta, por sua vez, só permite ser alcançada quando o percurso trilhado tem início

em sua mais clara exteriorização, como condição constante para sua existência e

possibilidade. A essência configura-se na própria lei interna da aparência sob a

forma refletida. Será por meio do desenvolvimento contraditório da aparência que

se alcançará a essência. O caráter do fenômeno a ser desvendado é, portanto,

ambivalente, ou seja, não prescinde das duas categorias tanto para sua

compreensão quanto, ainda mais, para sua perpetuação. Nota-se, assim, que a

aparência visa proteger a essência de ser desvelada. Ela é aparência da essência.

Trataremos, posteriormente, de forma mais minuciosa, do fato de que o

capitalismo não pode prescindir da aparência de harmonia, liberdade, igualdade.

Ele necessita dessa aparência para dar continuidade a seu funcionamento; ela é,

em vista disso, parte essencial do sistema. Sem a aparência, a essência se

exterioriza, se mostra claramente, e dificulta (greves, protestos...) sua reprodução.

Por esta razão, a ligação entre essência e aparência é peça-chave, estrutura

fundamental, elemento orgânico essencial para a manutenção e reprodução do

sistema. Desmistificar o mundo das mercadorias exige, igualmente, a

desmistificação de todos os seus elementos, sendo a aparência um deles. É ela

forma de manifestação contraditória que exige seu desvelamento crítico tanto

quanto todas as demais categorias.

1.3.2 - ABSTRATO E CONCRETO

O movimento do abstrato em direção ao concreto e deste novamente

àquele surge como o instrumento do método dialético que permite conceber a

totalidade negativa composta pelas contradições históricas da sociedade

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capitalista. Isto porque ela mesma é construída e reproduzida sobre um complexo

de relações (subsunção do valor de uso ao valor/capital, da circulação à produção,

do trabalho concreto ao abstrato) que, ignorando o primeiro, falsificam a realidade,

mistificam o mundo e alienam os homens, reificando suas relações. Será a partir

destas relações aparentemente mais particulares que se dará início à análise

crítica, aprofundando-se cada vez mais em direção à concretude do real até se

chegar à superação deste modo de produção. Conforme adverte André Cressoni

(2011, p. 70-71):

O conhecimento dialético-conceitual não se limita às representações autonomizadas e relacionando-se externamente. O paradigma da passagem dialética abstrato-concreto deve ser compreendido no sentido de uma crítica à representatividade do entendimento. Porém, o caráter dessa crítica científica ao procedimento representativo só atinge sua plena significação na medida em que se apreende que esta passagem abstrato-concreto só se realiza imanentemente. Caso contrário, se retornaria à representatividade de categorias que apenas se tocam nos seus limites, sem sua interpenetração.

Realizar a transição exigida pelo método, que vai do mais imediato e

particular ao universal, pressupõe, ademais, que se mediatizem os momentos que

o compõem por meio de abstrações que, ainda e sempre, se mantenham

atreladas ao real pela base prática que as fundamenta. Esta base, este

fundamento imediato constitui, no caminho do conhecimento, uma sensação,

impressão, intuição, fato, e se apresenta como particularidade concreta. Ao se

percorrer o fenômeno por meio de abstrações cada vez mais aprofundadas, esta

concretude primeira revela-se, contudo, como simples aparência (extremamente

abstrata) de uma essência que – esta, sim – se mostrará como universal concreto.

O processo que permite fazer a transição de um a outro, do particular abstrato ao

universal concreto (desdobrando-se em múltiplas determinações) e deste o

retorno ativo à concretude do real implica na assunção do método dialético criado

por Marx como método destinado à apreensão e ação prática sobre a totalidade.

Lênin aborda o ponto ao expor a querela idealista entre Kant e Hegel:

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No fundo, Hegel tem toda razão contra Kant. O pensamento, elevando-se do concreto ao abstrato, não se afasta – se ele é verdadeiro (e Kant, como todos os filósofos, fala do pensamento verdadeiro) – da verdade, mas, ao contrário, se aproxima dela. As abstrações da matéria, da lei natural, a abstração do valor, etc., em suma, todas as abstrações científicas (corretas, sérias, não arbitrárias) refletem a natureza mais profundamente, mais exatamente, mais completamente. Da intuição viva ao pensamento abstrato e dele à prática – tal é o caminho dialético do conhecimento do verdadeiro, do conhecimento da realidade objetiva. Kant rebaixa a ciência, para abrir o caminho à fé; Hegel eleva a ciência, assegurando que o conhecimento é o conhecimento de Deus. O materialista aprofunda o conhecimento da matéria, da natureza, relegando Deus e a canalha filosófica que o defende à lixeira. (LÊNIN, p. 151-152).

A equiparação entre os diversos tipos de trabalho encontrados nos

Estados Unidos (de concretos a abstratos) serve como exemplo para Marx

elucidar o caráter histórico das categorias mais abstratas que se possa conceber

(MARX, 2011, p. 57-58). Será justamente a característica universalizante, com

validade para qualquer época, a que fornecerá a particularidade aplicável somente

às relações históricas especificamente determinadas. Isto porque as categorias

mais abstratas, em sua determinabilidade, são resultado concreto da história e,

apenas nestes momentos, dentro de suas especificidades, serão igualmente

válidas. O abstrato passa a se configurar como momento do concreto através do

movimento e em razão da relação dialética existente entre eles.

Reduzida esta relação à mera contraposição dos termos que a compõe

enclausura-se a análise filosófica à unilateralidade do pensamento interiorizado e

contemplativo que tem como desígnio final a mera apreensão intelectiva do real. A

equivocada percepção acerca do binômio abstrato-concreto, tanto no caso da

economia política clássica quanto em Hegel, faz parte de um sujeito que se

percebe livre, igual, proprietário, contratante e, portanto, instância máxima

determinante da sociedade. Esta, por sua vez, é tida como abstração desprovida

de concretude ou reprodução concreta realizada pela razão, generalidade sem

existência, resultado metafísico de acordo individual. Os termos são invertidos. A

realidade é encoberta. Contrapondo-se ao método hegeliano – e às abstrações

peculiares da economia política clássica – que concebe o real como síntese do

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movimento do pensamento com início e fim em si mesmo, mera forma de

apreensão e reprodução do concreto, Marx, nos Grundrisse (2011, p. 54),

assevera:

O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação.

A base empírica de algumas teorias econômicas, entretanto, parece

fundear adequadamente seus conceitos no concreto. No capítulo sobre o dinheiro

dos Grundrisse, Marx inicia com aberta crítica aos proudhonianos acerca de suas

teorizações sobre o papel dos bancos, crédito e sistema financeiro na sociedade

capitalista. Darimon e seu livro De la reforme des banques, de 1856, contribuem

fundamentalmente para a apreciação dialética que chega a abranger inúmeras

outras doutrinas dos denominados “socialistas utópicos”. A positividade existente

nas teorias expostas, ao pretender revelar a concretude corretamente válida, os

fatos econômicos que produzem a realidade – pois, para esta ciência, a prova de

veracidade irrefutável encontra-se na adequação das categorias à factualidade –,

manifesta, na verdade, o seu oposto: “a gênese de sua abstração teórica” (MARX,

2011, p. 71).

1.3.3 - POSITIVO E NEGATIVO12

Contrapor-se à positividade dominante nas mais diversas áreas do

conhecimento significa servir-se de uma metodologia que se coaduna com o

12

Para Benoit (1997, nota 4): “Ainda que se possa sustentar a inquestionável existência de partes

'positivas' na obra de Marx (a análise do valor, ou mesmo as contribuições à teoria da História), nenhuma dessas partes, do ponto de vista de Marx, seriam passíveis de abstração e de análise 'epistemológica' separadas do conteúdo negativo revolucionário que dialeticamente dá a significação e tanto de cada proposição de sua obra, assim como, particularmente, da sua própria concepção de universalidade científica.”

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conteúdo afirmado. O negativo do método dialético dissolve as estruturas formais

consideradas seguras e acirra suas contradições essenciais. Tanto em Hegel

quanto em Marx a compreensão dos fenômenos e fatos singulares existentes na

realidade só é possível quando considerados dentro da relação com a totalidade

negativa a qual pertencem. Apreender a negatividade existente no real, que leva

às suas contradições e ao seu movimento progressivo, exige percorrer as fases de

um processo que se inicia na aparência para atingir seu conteúdo verdadeiro.

Demanda, portanto, a apreensão destas mesmas singularidades naquilo que

possuem de mais essencial.

A negação que impulsiona o método em Hegel é a mesma que, sendo

também seu princípio, rompe com alguns dos postulados lógicos fundamentais. A

existência de Ser e Não-Ser ao mesmo tempo e na mesma relação (por mais que

não se apresentem com a mesma carga) criando um terceiro que é, em parte,

ambos e não é, no todo, nenhum dos dois, institui a presença indelével da união

dos polos contraditórios de um fenômeno. Tal contradição, presente em tudo,

destrói a coesão forçando à solução. A negatividade fenomênica cria, impelida,

aquilo que a positividade insiste em manter harmônico, idêntico, imóvel sobre os

próprios pés de barro. Ao dar início ao novo, incita a recomeçar outro movimento,

destinado à superação daquilo que, agora, se positivou, sendo, até que se atinja o

Espírito Absoluto.

Todavia, no método hegeliano, a negatividade não é pura negação. Da

mesma forma não é uma negação vazia, cética, advinda da dúvida. Ela é,

sobretudo, momento de conexão, desenvolvimento da Ideia, “que mantém o

positivo, isto é, sem qualquer hesitação, sem ecletismo.” (LÊNIN, p. 188). Negado

o primeiro termo pelo segundo há, na transição, uma predicação deste naquele

por já estar contido nele, ser ele em sua unidade. Esta unidade, por sua vez, nada

mais significa que “a conexão do negativo com o positivo, a descoberta deste

positivo no negativo.” (LÊNIN, p. 189). Por isso, como condição de existência do

próprio método, tem-se o momento de transição, o movimento, a conexão, a

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unificação daquilo que é contraditório: “Da afirmação à negação, da negação à

unidade com o afirmado: sem isto, a dialética se converte numa negação vazia,

num jogo ou em ceticismo.” (LÊNIN, p. 189).

O caráter negativo assumido pela dialética de Marx, apartando-a da

hegeliana, advém não da teoria pura ou de alguma entidade metafísica, mas do

próprio modo de produção que ora se analisa. Atingindo a totalidade da sociedade

capitalista, o método dialético aufere dela, igualmente, sua negatividade e sua

carga de historicidade, pois, não sendo aplicável a qualquer sociedade, a ela se

restringe e nela se encerra. Neste ponto a conexão fundamental entre método de

análise e conteúdo daquilo que se analisa recebe sua forma de totalidade

concreta, transformando-se em crítica radical. “O caráter histórico da dialética

marxista abarca a negatividade vigente, e sua negação.” (MARCUSE, 2004, p.

270).

Para a racionalidade não-contraditória, aceitar a historicidade de um

presente constantemente negado pelo passado que o determina (aqui, não custa

lembrar, sem determinismos) e o constitui negativamente torna-se impossível. A

negação, quando existente, é meramente externa, e descarta como ilógica a sua

própria constituição krono-lógica. A atemporalidade é reafirmada impedindo a

interpenetração entre elementos essenciais à composição e compreensão da

realidade atualizada (BENOIT, 2004).

De acordo com Benoit (2004), é somente com Marx que se torna

possível o aprofundamento crítico da tradição metafísica ocidental. A inserção da

concretude como Não-Ser antitético do Ser-abstração, ou a inserção da prática no

domínio da teoria pura é a via que inaugura a passagem fundamental estabelecida

entre superfície e profundidade (“No mesmo sentido [de Hegel], mas mais

profundamente, já que ultrapassando o domínio meramente teórico, veremos o

retorno da proveniência do negativo em Marx” (apud BENOIT, 2004, p. 129)).

Aqui, a negatividade dialética abre-se à história como possibilidade de análise e

transformação da realidade por meio da negação que insere passado, presente e

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futuro em relações antitéticas nas quais a interpenetração permite,

contraditoriamente, afirmar a negação da negação.

A ruptura com o idealismo hegeliano, ao mesmo tempo em que

demonstra ser sua dialética insuficiente contribui para o aprofundamento analítico

necessário ao superar (Aufhebung) a mera teoria, no denominado “modelo

antitético de negativo” (BENOIT, 2007). O movimento do negativo que, a cada

antítese criada, impulsiona uma nova negação, estabelecendo novas contradições

em sínteses ampliadas torna-se, deste modo, essencial ao próprio método. É

somente por meio dele que se torna possível a compreensão do conteúdo da obra

e sua consequente superação fenomênica (fática).

Constatar que o fato vai além de si, negando e restringindo

possibilidades, é explicitar o caráter alienante de uma sociedade fetichizada,

expondo sua negatividade até o ponto crucial impeditivo da realização das

potencialidades humanas. Porém, limitar-se a essa constatação significa restringir-

se à solução filosófica tradicional ensimesmada na metafísica ideal. A partir do

momento em que “a prática social do homem incorpora a negatividade, bem como

a superação da negatividade” (MARCUSE, 2004, p. 245), visando à abolição

completa do modo de produção capitalista, a teoria dialética é preenchida com o

conteúdo essencial da prática que nega a negação e, assim fazendo, supera-a.

Ao se estabelecer a relação antagônica, a região antitética que se situa

na negatividade não deve ser confundida com os termos que a compõe. Ela é um

outro. Não obstante participe de ambos, deles deve discernir como ente que Não-

é. Um Não-Ser, no entanto, diverso do nada, do indeterminado e, portanto, da

tradição metafísica ocidental que deles deduz/cria algo em razão da assunção da

lógica da não-contradição; pura ontoteologia. Em Marx, o negativo antitético é

imanente ao Ser, está situado dentro de e em relação com ele. O Ser,

transpassado, contém o Não-Ser. O transpassar entre valor de uso e valor

presente na mercadoria, por exemplo, manifesta-se como negatividade, antítese

dotada de conteúdo histórico (e não puramente discurso, logos sem realidade).

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Apenas pelo movimento de superação, negando a negação inicial, é

que se poderá chegar à essência do Ser. O processo é colocado, então, do

seguinte modo: a estabilidade que fixa os objetos em uma dada forma (tal como o

realiza a Lógica) é dissolvida, na dinâmica da razão, em uma multiplicidade de

relações que acaba por alterá-los ao negar-lhes a positividade afirmada no início.

Aquilo que aparece ao senso comum como (indício positivo da) verdade é,

essencialmente, sua negatividade (determinante de seu movimento e seu

conteúdo). Tendo em vista que apenas a destruição desta afirmação inicial

permitirá estabelecer a verdade, sua força motriz, o impulso necessário à dinâmica

do processo encontra-se, justamente, na sua negação.

No desdobramento das representações antitéticas que se encontravam,

inicialmente, postas como verdade nas abstrações mais simplificadas (mercadoria

como valor de uso e valor de troca) Marx, n’O Capital, avança em sua análise e

nos conduz a um interior cada vez mais complexo existente em cada um de seus

conceitos. A realidade, aprofundada na teorização, se transforma ao negar-se

como aparência e apresentar-se em fenômeno concreto. O retorno ao ponto inicial

é realizado a partir de um novo patamar conceitual, cujo acréscimo foi dado por

superações (Aufhebung); nenhum deles é, agora, o mesmo:

A luta de classes, que era, desde o começo, o motor pressuposto em todas as contradições categoriais, finalmente, aparece agora posta como fundamento, e ainda, a acumulação originária, por sua vez, mostra-se como tendendo para a negação da negação, a expropriação dos expropriadores. O Livro I começa, assim, com as representações categoriais da Economia Política burguesa e termina apontando para a práxis revolucionária [...]. (BENOIT, 2003, p. 7).

A luta de classes ganha propulsão por meio desta negatividade

específica. Tendo sido constituída e aprofundada na história universal desde as

formações econômicas pré-capitalistas, permite revelar a grande contradição

fundante deste modo de produção: aquela estabelecida entre capital e trabalho. A

separação gradual entre os homens e seus meios de reprodução até que se

alcance a totalidade, no capitalismo, nada mais significa, portanto, que a formação

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desta região negativa que contrapõe, pelo transpassar histórico, as classes em

luta em inúmeras outras contradições categoriais.

1.3.4 - UNIVERSAL E PARTICULAR

O universal em Hegel é representado pela razão e toma a forma de um

abstrato. A dupla universalidade do pensamento que o constitui de modo objetivo

(tornando as coisas meios para o desenvolvimento do homem) e subjetivo

(conduzindo o homem para além de suas particularidades) caracteriza a própria

história. O pensamento, ao possuir o universal como sujeito e a realização da

autoconsciência da liberdade como seu conteúdo, unifica os conflitos individuais e

coletivos, integrando-os na Comunidade (Allgemeinheit) e produzindo os últimos

princípios por meio dos quais são superadas todas as oposições.

Reconciliar individual e universal em uma sociedade que preserve e

mantenha os interesses de ambos, possibilitando o exercício pleno das

potencialidades, acaba por se tornar, assim, a tarefa maior da razão hegeliana que

traz na unidade o verdadeiro ser e na realização do espírito absoluto o seu fim.

Tentando integrar os ideais presentes na sua filosofia com a realidade

circundante, dota a história de um papel constitutivo e dá início ao processo

dialético que busca unir verdade e universalidade.

O indivíduo particular com suas necessidades, paixões e características

privadas, ainda que siga exclusivamente seus próprios interesses, dialeticamente

se universaliza em suas ações utilizando-as como alavancas históricas ao realizar

o progresso do espírito, favorecendo a liberdade. Ao unificar universal e particular,

Hegel pretende superar as condições reais que impedem o desenvolvimento

humano e abrir as reais possibilidades para o exercício pleno de suas

potencialidades:

Um princípio universal está, pois, latente nos propósitos particulares dos indivíduos; um princípio que é universal porque é “uma fase necessária

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do desenvolvimento da verdade”. É como se o espírito usasse os indivíduos como instrumentos inconscientes. (MARCUSE, 2004, p. 200).

Para Marx, per contra, a universalidade é inserida na prática pelo

próprio modo de produção capitalista ao desenvolver-se em direção a um conjunto

social que universaliza, empiricamente, os próprios indivíduos. As ações privadas

executadas pelos capitalistas visando manter e aumentar seus lucros, superando

os demais, por exemplo, exige que sua adaptação ao célere progresso tecnológico

seja realizada reduzindo o valor da força de trabalho. Esta redução implicará,

contudo, na redução da taxa de lucro para toda a classe, contribuindo, ao final,

para um aumento das tendências destrutivas do sistema como um todo. Deste

modo, ainda que se considerem, meramente, as ações particulares, evidenciam-

se suas consequências históricas universais, pois “[...] nas contradições o

universal existe no particular” (TSE-TUNG, 1999, p. 38).

Tal universalidade, ao negar ao homem o exercício pleno de suas

potencialidades, é dotada de uma carga negativa que toma a aparência de uma

realidade caótica e incontrolável que submete a todos por meio de um poder

estranho. Exatamente neste ponto abre-se a negatividade universal do sistema:

afetando e submetendo todas as formas e esferas de vida à dominação do capital

– e, por essa mesma razão, aplicando de modo exemplar o movimento dialético –,

Mao Tse-Tung alerta:

[...] muitos camaradas, em especial os dogmáticos, [...] não compreendem como é importante, para dirigirmos o curso da nossa prática revolucionária, o estudo do particular nas contradições inerentes aos fenômenos concretos face aos quais nos encontramos. [...] Essa é a razão por que, na nossa análise da lei da contradição inerente aos fenômenos, começamos por examinar o problema da universalidade da contradição, depois veremos mais especialmente sua particularidade, para voltar finalmente ao problema da universalidade. [...] (TSE-TUNG, 1999, p. 38).

As denominadas “robinsonadas do século XVIII” são expostas por Marx

na Introdução dos Grundrisse (e depois, expressamente, também n’O Capital, ao

versar sobre o fetiche da mercadoria), quando trata da produção realizada em

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sociedade. O isolamento individual natural considerado pelos mais diversos – e,

muitas vezes, antagônicos – pensadores, tais como Smith, Ricardo, Rousseau e

até Proudhon, é terminantemente refutado ao se vislumbrar a argumentação

aristotélica aparentemente mais simples acerca do ser humano: o animal político e

social (zóon politikon). As diferentes feições que pode assumir a produção em

geral (entendida como abstração que fixa o comum isolado; universal prenhe de

pluralidades) presentes em cada época histórica, longe de isolarem o indivíduo e

sua produção da sociedade, apenas corroboram o fato de que ambos são

realizados dentro de um contexto social específico que os determina de acordo

com a totalidade à qual pertencem.

A consideração acerca de como é realizada esta produção (em que

condições, sob que fatores, com que meios e instrumentos, etc.) exige o

conhecimento do momento em que ocorre e das diferentes formas que assumiu

no processo de desenvolvimento. A amplitude destas abstrações poderia indicar,

contudo, uma impossibilidade de se identificarem as especificidades de cada

modo de produção e de seus elementos, levando a uma indeterminação

generalizante. É este o caso das teorias econômicas e políticas criadas por

aqueles autores que, ignorando o todo societário e seu movimento histórico,

creem em uma existência social natural e eterna em si. A crença na harmonia da

natureza que cria o indivíduo isolado contrasta, frontalmente, com a realidade da

época que produz tais fantasias, onde as relações sociais atingem um alto nível de

desenvolvimento até então não experimentado na história.

O processo histórico no qual se constitui e se reproduz a sociedade

capitalista é considerado por Marx como uma totalidade que compreende, em seu

interior, diversos outros processos. Circulação, distribuição, produção e consumo

configuram, deste modo, uma unidade sem que, todavia, sejam anuladas suas

diferenças essenciais. Assim, ainda que haja a predominância da produção –

início, fim e recomeço do processo – na definição dos outros momentos e de suas

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relações, ela será por eles também determinada. É este o complexo de interações

que institui e mantém o todo orgânico (MARX, 2011, p. 53).

1.3.5 - NATUREZA E HISTÓRIA

Conhecimento e agir filosóficos, frutos que são do desenvolvimento

histórico, devem ter por fundamento a dinâmica da própria realidade para,

negando-a criticamente, superá-la pela razão, alcançando a liberdade. Assim é

que “[...] O método dialético apreende o existente nos termos da negatividade que

ele contém, e examina as realidades à luz das transformações que nelas se

processam. A transformação é uma categoria histórica” (MARCUSE, 2004, p.

187). O papel da história no sistema idealista criado por Hegel vai se tornando

cada vez maior.

Para Hegel, o processo de compreensão e conhecimento da realidade

objetiva é realizado progressivamente pelo indivíduo por meio de uma experiência

de interiorização que se inicia na certeza sensível do senso comum, passa pela

percepção, desta ao entendimento, do entendimento à certeza-de-si, finalizando

na verdade da razão. Tais etapas constituem a própria historicidade da

experiência humana determinada pela relação consciência-mundo e totalizada

pela filosofia dialética. Será a História quem estabelecerá a conexão maior entre o

particular e o universal, imprescindível para que o pensamento, desvelando a

aparência, apreenda a essência da realidade e o autodesenvolvimento do sujeito

atinja sua plena potencialidade.

Não havendo propriamente um desenvolvimento histórico na natureza,

tendo em vista a repetição do mesmo e a ausência de temporalidade que

produzem apenas alterações cíclicas naturais, sem que se crie nada novo,

exclusivamente ao sujeito pensante é dada a possibilidade de se alcançar o pleno

desenvolvimento de suas potencialidades por meio da autorrealização. A

dissolução de cada particularidade em suas potencialidades inerentes,

transformando-se em novas condições também a serem atualizadas e dissolvidas,

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coloca o sujeito na história permitindo-lhe, ao se desenvolver, chegar até o ponto

da autoconsciência universal.

De acordo com o filósofo idealista, a razão, tida como medida de

adequação da ordem social existente, por mais que não adquira um caráter

metafísico possui um poder que a dota de uma força histórica capaz de (e

destinada a) alterar o real. É ela a totalidade dos conceitos e princípios objetivos e,

por conseguinte, passível de governar a realidade (Estado) no momento em que

esta se tornar racional em si. O longo processo que culmina na realização da

liberdade e das potencialidades humanas como fim da razão ou história total

unifica ambas, razão e realidade, sob a forma do Espírito Absoluto.

A realidade deve, assim, ser moldada pela razão até que adquira a

plenitude em ápice racional, ou seja, o real só o é quando se adequa aos padrões

da racionalidade. Não há real sem racional e vice-versa e por tal motivo assevera-

se que o existente ainda não racionalizável se configura em mera aparência. Tal

constructo crítico que “nega a hegemonia de qualquer forma dominante de

existência, denunciando os antagonismos que a dissolvem em outras formas”

(MARCUSE, 2004, p. 21-22) acaba por perder sua radicalidade e solidifica-se na

própria dominação negada, contribuindo para impedir sua superação.

A totalidade da razão de Hegel enclausura a história por meio de um

processo metafísico do ser na racionalidade de um sistema ontológico universal.

Liberdade e verdade perfeitas passam a ser consideradas pela ótica das

atividades do espírito e não mais como fins do Estado. Religião, arte e filosofia,

dadas as condições reais da sociedade, são as únicas soluções possíveis para a

reconciliação entre o indivíduo e a universalidade. Realizar a verdadeira liberdade

é tarefa que “se transfere do plano da história para o domínio interior do espírito”

autoconsciente (MARCUSE, 2004, p. 93). O movimento dialético que unifica

filosofia e realidade e destrói o racionalismo tradicional se imobiliza face a seus

próprios conceitos, restringindo o sistema ao Espírito Absoluto. “O método, porém,

que funcionara neste sistema, tinha alcance muito mais amplo que os conceitos

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que produziu” (MARCUSE, 2004, p. 223). A diferenciação entre a dialética

hegeliana e a dialética de Marx se situa neste ponto fundamental.

Em carta dirigida a P. V. Annenkov, datada de 1846 (anterior, portanto,

à Miséria da Filosofia), Marx (2009) revela suas impressões acerca do livro de

Proudhon, A Filosofia da Miséria. Nela, nota-se mais claramente a importância da

história para refutação do idealismo dialético hegeliano assumido (ainda que de

modo superficial e confuso) por Proudhon.

Incapaz de seguir o movimento real da história, o Sr. Proudhon nos oferece uma fantasmagoria com pretensões à dialética. Não sente a necessidade de falar dos séculos 17, 18 e 19 porque a sua história decorre do reino nebuloso da imaginação e paira muito acima do tempo e do espaço. Numa palavra, isso não é história, mas velharia hegeliana: não é a história profana – a história dos homens, é a história sagrada – a história das ideias. (MARX, 2009, p. 246).

O caráter materialista da dialética criada por Marx exclui a metafísica

idealista e coloca a realidade no centro da investigação, tendo a história por

condição e critério para seu desvelamento. Ela não é mais hipostasiada como ente

determinante de um processo do espírito e cujo método contém a negatividade

generalizada a todo ser, mas reflete, sim, o movimento concreto real do

desenvolvimento que visa deslindar.

Esta historicidade coaduna-se, por conseguinte, com o sistema e a

metodologia adequados à sua apreensão. Como recusar, contudo, a influência

direta do evolucionismo de Darwin – que ganhou imenso destaque à época – no

conceito de história do qual se serve Marx para explicar os contínuos modos de

produção? De que maneira seria possível libertá-lo de tal determinismo

teleológico? Aqui devemos retornar, novamente, ao fundamento inicial: por meio

do método. Assim, compreender o desenvolvimento dialético da história universal

torna-se imprescindível não apenas para se realizar uma crítica acerca das

diversas formas societárias assumidas até então, mas, principalmente, para que

não se dogmatizem seus conceitos em uma teleologia de fundo determinista.

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Seja nas análises ditas marxistas, seja naquelas antimarxistas, a

afirmação de que há, em Marx, uma necessária linearidade histórica evolutiva

presente em cada país que teria início nas sociedades primitivas passando pelos

modos de produção asiático, feudal e capitalista, até se chegar,

consequentemente, ao comunismo, é absolutamente incompatível com o próprio

método dialético. Dotadas de uma positividade imperativa, tais análises etapistas

encobrem a carga de negatividade da qual a dialética recebe seu principal impulso

e que impediria, por si, as descontinuidades e regressões existentes na realidade.

Tal e qual, excluir, por completo, a continuidade do desenvolvimento

(das contradições) dos modos de produção na história universal é ignorar a obra

marxista, posta na Ideologia Alemã, nos Grundrisse, no Manifesto Comunista e

pressuposta, em fundamento, n’O Capital. Não são formas paralelas que

coexistem, não é a justaposição entre os diversos modos de produção, ou a

combinação aleatória entre eles, como querem historiadores, cientistas sociais,

antropólogos. O que há é, sem dúvida, totalização da pré-história das classes

sociais em luta, até que se alcance – como mais uma possibilidade – o

comunismo e, assim, se adentre na História. Apenas deste modo a continuidade e

a simultaneidade poderão se reencontrar no movimento de superação dado por

sua relação dialética essencial:

Do ponto de vista propriamente marxista, ao contrário, trata-se justamente de desvelar a constituição de uma única história contínua, porém, dialeticamente simultânea, trata-se de manter uma perspectiva dialética diacrônico-sincrônica que constitua uma temporalidade única, uma história universal voltada, inclusive, para o projeto revolucionário de negação definitiva do presente capitalista (...). (BENOIT, 2004, p.8, grifo nosso).

A interpenetração entre o presente, o passado e o futuro ocorrerá se, e

somente se, considerarmos que a relação dialética estabelecida entre as

diferentes temporalidades é unificada sob a teoria revolucionária da história

universal. A simultaneidade dos processos que dão a luz às relações

contraditórias, não obstante a diacronia dos tempos de cada modo de produção,

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fazendo-se presentes, sincronicamente, um no outro (o presente conservado em

parte no futuro como passado e a influência deste no presente e nos possíveis

acontecimentos, modo de produção feudal com indícios capitalistas, modo de

produção capitalista com trabalho escravo, etc.) espelha nada mais do que a

totalidade de uma única temporalidade histórica mundial.

A abolição das classes sociais – ou a superação da pré-história da

humanidade – prima, então, por uma teoria e uma prática permanentes, pois

permanentes são os seus efeitos. Tempo e luta são dotados da universalidade

concreta e superam as particularidades abstratas. São eles, em suas

contradições, que permitirão estabelecer a ligação entre os mais diversos

acontecimentos do processo diacrônico e as expansões sincrônicas em uma tal

negatividade que, apontando para o futuro, surja como fundamento primeiro.

Diversos pares antagônicos ou contraditórios que constituem as

categorias marxistas na análise do modo de produção capitalista poderiam (e

deveriam) ser propostos e aprofundados. No entanto, por mais que não se

revelem de pronto, tantos outros serão abordados durante a elaboração deste

trabalho de modo a embasar a análise naquilo que ela se propõe a investigar. À

imperiosa necessidade de se desvelarem os processos ideológicos no que

possuem de mais oculto e camuflado diante da aparente fragmentariedade do real

atual soma-se, por se encontrar intrínseco a ela, o descortinar das categorias e

conceitos que justificam, legitimam e reproduzem em totalidade o modo capitalista

de produção sob a forma da ideologia.

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CAPÍTULO II

PRODUÇÃO DA VIDA

REVOLUÇÃO CUBANA, CUBA, 1959

(FOTÓGRAFO RAÚL CORRALES)

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A base real sob a qual se constitui o método dialético criado por Marx é

o modo capitalista de produção. Tanto o método de análise quanto o objeto a ser

analisado somente serão aperfeiçoados com O Capital – sua última, mais

completa e, contraditoriamente, inconclusa obra. Não haveria a consumação e a

finalização do método sem os elementos essenciais do capitalismo; ao mesmo

tempo, não seria possível compreender o sistema em toda a sua amplitude sem

um método especificamente destinado a tal empreitada. O movimento histórico, as

contradições mais fundamentais, a realidade constantemente revista expõem o

negativo que impulsiona e desloca, a todo o tempo, a aparente segurança das

categorias e conceitos pré-estabelecidos. Desvelar os pressupostos do que está

posto é o passo inicial, então, não apenas para se investigar criticamente o modo

capitalista de produção, como – e aí se revela o objetivo final, programático e

revolucionário da obra – para superá-lo.

De acordo com Benoit:

De fato, Marx jamais fez uma filosofia metafísica da história como Hegel, assim como não fez uma teoria positiva da história, à maneira das ciências humanas. Para Marx, a Weltgeschichte está distante tanto das construções hegelianas como daquelas comteanas ou weberianas, e por uma razão bastante simples. Marx, rompendo com a metafísica e positivismo dos saberes burgueses, seguindo uma dialética que “em sua essência é crítica e revolucionária”, ao investigar os modos de produção pré-capitalistas, os investiga ainda e sempre do ponto de vista da negação do presente capitalista posto procurando os seus pressupostos. Assim, a partir da reflexão dialética sobre os outros modos de produção, desvelará a especificidade do modo de produção capitalista e a gênese histórica de cada uma das suas principais contradições e categorias: mercadoria, valor de uso e valor, trabalho abstrato e trabalho concreto, trabalho social e trabalho individual, dinheiro, extração de trabalho excedente, separação dos produtores dos meios de produção e, claro, acima de tudo, a particular especificidade de cada forma efetiva da luta de classes no interior das próprias categorias estruturais de cada modo de produção. (p. 43).

Reconstruindo concretamente o universal por meio do método dialético,

Marx revela os limites teóricos das ciências burguesas ao apresentar, em

contraposição, um método crítico e revolucionário, analítico e programático no

qual a conexão estabelecida entre a forma lógica e a história cria a abertura

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necessária à superação pretendida. Apresentando a realidade a partir da

dissolução dialética das categorias que utiliza, gera o movimento que, por meio da

totalidade da luta de classes, expõe toda a materialidade do real e uma nova

disposição efetiva dos elementos e relações que o compõem; discurso e prática

revolucionários, contraditória e constantemente criados pelo proletariado. Seus

fundamentos são desconstruídos e reconstruídos até que se abarque a totalidade

posta, a luta de classes com todas as suas contradições. Ao final, negam-se,

sucessivamente, capitalismo e o próprio proletariado, não em puro logos

harmônico, construção homo-lógica, forma sem conteúdo concreto, mas, antes,

em método de ação, práxis redescoberta de uma classe em si e para si, revolução

que supera sujeito, objeto e conceito.

O conhecimento começa pela prática; e uma vez adquirido o conhecimento teórico através da prática, é preciso levá-lo de novo à prática. A função ativa do conhecimento não se exprime somente no salto ativo do conhecimento sensível ao conhecimento racional, mas também, e o que é ainda mais importante, no salto do conhecimento racional à prática revolucionária. (TSE-TUNG, 1999, p. 24).

Por isso, dar início à investigação do fenômeno da ideologia utilizando-

se de algumas de suas categorias fundamentais e reconstruindo o percurso

trilhado é exigência indispensável para sua correta compreensão e possível

eliminação como resultado concreto da destruição completa do modo capitalista

de produção. Ampliadas as sucessivas negações até que se alcance a totalidade

contraditória por meio de sínteses dialéticas que se radicalizam (aqui a concepção

de Marx de radicalidade exposta na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de

Hegel (p. 151): aquilo que vai à raiz, à gênese estruturante) o que se terá colocado

de modo mais eminentemente incisivo será a negação da negação como resultado

da luta de classes pela expropriação dos expropriadores (BENOIT, 2003).

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2.1 - VALOR

Toda pessoa possui um conjunto de ideias e representações que o

constitui como um ser humano dotado de particularidades. Tais concepções são

utilizadas para sua sobrevivência, manutenção e, muitas vezes, aprimoramento de

sua vida, garantindo-lhe, por meio do trabalho, a satisfação de suas necessidades.

Por se tratar de um dentre tantos outros seres humanos, este indivíduo que nasce

e vive em sociedade é um ser singular que participa, no entanto, de uma

universalidade do gênero, existindo, ainda, dentro de uma determinada

coletividade, seja ela tão díspar quanto a comunidade esquimó, kadiwéu ou

estadunidense.

Todas elas, por sua vez, possuem valores materiais e espirituais

distintivos das outras e comungados, de forma geral, por aquelas pessoas que

delas fazem parte, criando, mantendo ou extinguindo estes valores de acordo com

a necessidade ou conveniência. A arte na tribo kadiwéu, o iglu para os esquimós

ou os dólares na sociedade estadunidense ocupam, na ordem hierárquica do

conjunto dos valores estabelecida por seus membros, um patamar superior.

Sendo frutos do trabalho humano, resultados concretos da interação e

transformação no contato ser humano-natureza, a eles são destinadas

determinadas cargas valorativas, “[...] pois é atribuição do sujeito que trabalha

conhecer minimamente o complexo causal que é objeto da atividade – o complexo

causal desconhecido não pode ser mudado pelo trabalho, não podendo ser,

portanto, criador de valoração humana” (RANIERI, 2012, in: MARX, 2012, p. 14)

Arte, casa e dólares valem por aquilo que proporcionam, por seu uso ou por aquilo

que concebem os membros que compartem das mesmas ideias e representações;

podendo não ter valor ou ter valor diverso para os membros de sociedades

distintas.

Não obstante, ao compararmos os três objetos, é possível notar que os

dois primeiros são passíveis de apresentar seu valor como expresso no terceiro –

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e vice-versa. Uma cerâmica kadiwéu vale US$ 5,00 (cinco dólares), uma casa

esquimó no Alaska vale R$ 500,00 (quinhentos dólares); ou uma casa esquimó no

Alaska vale 100 cerâmicas kadiwéu porque ambas valem, no total, R$ 500,00

(quinhentos dólares); e, ainda, com essa quantia de dólares em mãos tenho o

valor de 100 cerâmicas ou um iglu.

A denominada Teoria do valor analisada nos mínimos detalhes por

Marx encontra n´O Capital o aperfeiçoamento necessário para dar início e pautar

toda a investigação crítica sobre o modo capitalista de produção. Não se

resumindo à pura teoria, ela é a análise de um processo histórico que busca

compreender como são criados os valores das mercadorias e do trabalho. Do

mais básico valor de uso ao mais complexo problema da queda tendencial na taxa

de lucro13, a questão do valor torna-se imprescindível a qualquer estudo que se

pretenda realizar dentro da área.

Expor os valores predominantes em uma sociedade significa, portanto,

decompô-los até se chegar à gênese do fenômeno para, depois de apreendida

sua essência, retornar à superfície sob um novo patamar. Diferenciar o aparente

caráter abstrato que expressam e a concretude da base mediante o qual são

erguidos é o primeiro passo em direção ao desvelamento do fenômeno que se

pretende compreender e da exploração que visam encobrir.

Grosso modo, temos:

1 – “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção

capitalista aparece como uma “monstruosa14 coleção de mercadorias”, e a

mercadoria individual como sua forma elementar.” (O Capital, vol. I, MARX &

ENGELS, 1985a, p. 45);

2 – “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a

qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer

13

Afirma Benoit que: “O lucro e a taxa de lucro são formas ilusórias da economia política do capital, são formas ideologizadas da categoria decisiva da sociedade burguesa: a mais-valia gerada pelo trabalho gratuito do operário” (2009, p. 111, grifo nosso). 14

Ver opção pela tradução de Franklin Trein no Capítulo 1, tópico 1.3.1, Aparência e Essência, pé de página.

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espécie”. (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 45). A mercadoria, por

sua característica de satisfazer necessidades, contém um determinado valor: o

valor de uso. Esse valor de utilidade de uma coisa é o elemento diferenciador

entre as diversas mercadorias. Por possuírem diferentes qualidades

(determinadas por sua natureza, ou historicamente, por convenção), as

mercadorias distinguem-se qualitativamente umas das outras. Um livro de S. Žižek

serve para leitura, uma lata de coca-cola para se beber o líquido contido em seu

interior, um iglu para se proteger do frio, uma arte kadiwéu para deleite e

apreciação estética. A soma deste ato histórico de se usarem as mercadorias com

suas qualidades corporais constitui o valor de uso delas e, assim, o conteúdo

material da riqueza.

3 – Afora estes, os valores de uso possuem, ainda, uma segunda

característica. Eles “[...] constituem, ao mesmo tempo, os portadores materiais do

valor de troca. O valor de troca aparece, de início, como a relação quantitativa, a

proporção na qual os valores de uso de uma espécie se trocam contra valores de

uso de outra espécie, uma relação que muda constantemente no tempo e no

espaço” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 46). Para que haja a troca

entre mercadorias tão díspares é preciso que exista algo nelas que as iguale, as

torne comuns, propícias e tendentes à relação. Abstraídos os valores de uso das

mercadorias – aquela propriedade corpórea qualitativa que as diferencia – resta-

lhes este elemento igualador, o valor de troca, que as quantifica dissolvendo suas

características distintivas. As propriedades corpóreas das mercadorias (valor de

uso) são desconsideradas, abstraídas, ocultadas para cederem lugar a um tipo de

valor totalmente independente delas15. Reduzidas a um mesmo valor em comum,

elas adquirem a capacidade de intercâmbio; coisas totalmente diferentes são,

15

A economia política clássica coloca como questão central de sua análise apenas o valor de troca. Marx, utilizando-se da categoria do valor de uso, não apenas a reinsere no exame necessário do modo de produção capitalista, como também a coloca como arcabouço imprescindível à sua crítica. Por isso, a investigação acerca do processo econômico toma a forma de uma investigação acerca do próprio homem, sua criação dos meios de sobrevivência e satisfação de suas necessidades.

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agora, intercambiáveis entre si, devendo ser considerada apenas a diferença

expressa na quantidade. Por tal abstração trocam-se três livros de S. Žižek por

quinze latas de coca-cola, ou um iglu por duas cerâmicas kadiwéu. O valor de uso

de livros de S. Žižek é o valor de troca de latas de coca-cola, ou A=A e, ao mesmo

tempo, A=B. A (três livros de S. Žižek) = A (três livros de S. Žižek), e A (três livros

de S. Žižek) = B (quinze latas de coca-cola). Esta é a relação mais simples de

valor entre duas mercadorias, ou a forma simples de valor.16 O valor de troca

representa, contudo, apenas a aparência contraditória de uma essência que

denota a contradição real entre o valor de uso e o valor:

A mercadoria é mostrada, logo no começo da exposição, comportando uma dupla e contraditória determinação: a de valer ao mesmo tempo e na mesma relação como valor de uso e como portadora do valor de troca. [...] Como mercadoria, o produto comporta em seus interior a contradição de ser ao mesmo tempo e na mesma relação valor de uso e não-valor de uso. (BENOIT & ANTUNES, 2009, p. 37-8, grifos nossos).

Marx trará, ao final da análise, o valor de troca como forma de

manifestação do valor. Este, sim (o valor), se revelará como antítese interna do

valor de uso da mercadoria: “A antítese interna entre valor de uso e valor, oculta

na mercadoria, é, portanto, representada por meio de uma antítese externa, i.e.,

por meio da relação de duas mercadorias [...]” (O Capital, vol. I, MARX &

ENGELS, 1985a, p. 63).

4 – “Deixando de lado então o valor de uso dos corpos das

mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do

trabalho [...]”, mas,

16

Por se tratar de forma simples de valor esta relação apresenta dois problemas principais: 1) ela é

limitada a duas mercadorias, e 2) institui uma mercadoria específica como equivalente individual. Aprofundando-se na relação, as determinações complexas surgem sob a forma desdobrada do valor ou forma total. Aqui, em decorrência do desenvolvimento histórico das trocas, o número de equivalentes é aumentado. Entretanto, também sob esta forma, surgem mais dois problemas: 1) agora o número de mercadorias se torna ilimitado, ao passo que 2) o equivalente ainda se mostra como particular. Para resolver estes dois problemas é necessário que se inverta a relação. Aparece, assim, historicamente, a denominada forma geral de valor na qual uma mercadoria tem seu valor de uso duplicado sob a forma de equivalente geral representando todas as outras mercadorias. Resultam desta relação a forma dinheiro e a forma preço que, ao final, ocultam e transformam a verdadeira relação social existente entre os produtores e seus trabalhos.

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Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados, e desaparecem, também, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato. (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 47).

Para que se reduzam as mercadorias a um mesmo valor comum (o

valor de troca), é indispensável que se abstraiam suas qualidades diferenciadoras

(o valor de uso). Este ato de abstração só é possível graças ao processo de

redução advindo de algo que lhes é coincidente; pois, caso contrário, inexistindo

qualquer átomo de identidade, não poderíamos equipará-las. Aquilo que as torna

iguais é serem produtos, objetos históricos de trabalho, frutos do processo de

modificação empreendida pelo ser humano em seu contato com a natureza dentro

de sociedades específicas, mercadorias, portanto.17 Não se troca o ar ou a água

do mar, não se trocam folhas secas caídas de uma mangueira ou a luz do sol.

Nenhuma destas coisas é intercambiável por qualquer outra, a não ser que, por

meio do trabalho humano exercido nestas sociedades e sob suas condições,

sejam historicamente transformadas em mercadorias; tal como o nitrogênio líquido

para hospitais ou uma música tocada em uma rádio. O trabalho que iguala todas

as mercadorias, permitindo a sua troca, não pode ser, da mesma forma, um

trabalho específico, concreto, abarrotado de qualidades que o distinguem de outro

(“trabalho útil” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 50)), como o

trabalho de um filósofo diferiria do trabalho de sua empregada doméstica.

Também os mais díspares trabalhos devem ser reduzidos a algo que os iguale e

identifique para que seu resultado (a mercadoria) se mostre idêntico e digno de

troca. A abstração da diferença cede lugar, uma vez mais, à igualdade

comunicante. Todos os trabalhos concretos e suas características diferenciadoras

são transformados em um mesmo trabalho abstrato: uma massa disforme de

17

O produto de trabalho é, em todas as situações sociais, objeto de uso, porém apenas uma época historicamente determinada de desenvolvimento transforma o produto de trabalho em mercadoria. (MARX & ENGELS, 1985, p. 63).

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trabalho humano em geral. O trabalho que antes se traduzia por “um processo

entre o homem e a Natureza [...]”, no qual o homem atuava “[...] por meio desse

movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao

mesmo tempo, sua própria natureza [...]” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS,

1985a, p. 149), é abstraído de suas características concretas essenciais e se

transforma em outro tipo de trabalho: o trabalho abstrato. Caracterizado tão-

somente pelo dispêndio de energia humana fisiológica, pelo consumo de cérebro,

sangue, músculos e nervos transformados em força de trabalho, tendo em vista

sua indiferenciação qualitativa realizada pela abstração, torna-se exequível por

qualquer pessoa em qualquer lugar.

A ausência de qualquer um desses quatro pontos torna inviável a

análise acerca dos valores existentes dentro das sociedades onde domina o modo

de produção capitalista. A relação dialética estabelecida entre os conceitos de

mercadoria, valor de uso, valor de troca e valor, trabalho concreto e abstrato,

orientará, assim, o exame das condições e modos pelos quais se cria, se mantém

e se reproduz o sistema e, consequentemente, um de seus principais pilares de

sustentação: a ideologia.

O valor de uso da cerâmica, do iglu e dos dólares traduz a

especificidade de cada um desses objetos, diferenciando-os subjetiva e

qualitativamente por servirem a funções e a indivíduos de modos diversos. A

importância da arte para a sociedade kadiwéu (o seu valor de uso) admite, quando

comparado a um iglu, que seja alocada em uma posição hierarquicamente

superior. O mesmo prevalece, a princípio, para a situação contrária, pois a

necessidade da casa para um esquimó encontra-se acima das expressões

artísticas naquilo que se refere à sua sobrevivência. O trabalho humano

concretizado na feitura de um iglu e de uma cerâmica indígena apresenta-se,

também, essencialmente diferente. A modificação experimentada pelo homem ao

alterar a natureza, criando abrigo ou arte, é peculiar a cada ato, inconfundível,

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portanto. Ao se considerarem os dólares, porém, a situação se torna mais

complexa e um tanto quanto enigmática.

2.2 - DINHEIRO

Um esquimó, diante de certa quantia de dólares, trocará o objeto de seu

trabalho, que lhe fornece abrigo e proteção; da mesma maneira, um índio da tribo

kadiwéu se desfará de sua elaborada arte expressa na cerâmica por um punhado

de dólares18. Quais os motivos que levam indivíduos de culturas, hábitos e valores

tão diferentes a se igualarem frente a um mesmo objeto? Por que, no monstruoso

mundo das mercadorias que nos rodeia (e circunda as tribos indígenas ou os

esquimós) o dinheiro acaba por se tornar a mercadoria essencial, intercambiável e

hierarquicamente superior a qualquer outra? Que propriedades metafísicas ele

contém que aparentemente o colocam para além da história e acima das

imediatas necessidades humanas?

Materialmente não há valor de uso no dinheiro, no papel moeda19, nas

ações ou títulos, letras de câmbio ou cartões de crédito. Não se constrói um iglu

ou se pinta o corpo com estes objetos. Exceto pelos metais como o ouro, a prata,

o cobre ou o níquel que, por sua maleabilidade, permitem a feitura de artefatos, as

18

Obviamente que tais indivíduos devem ser concretamente considerados em suas relações sociais, caso contrário incorre-se em equívoco muito comum de se idealizar a materialidade que possuem transformando-os em entidades metafísicas cuja existência se restringe à consciência de seu criador. Deste modo, a preferência por indicá-los com um artigo indefinido não é aleatória. No contexto a que nos referimos um esquimó ou um kadiwéu somente servirão como exemplos na medida em que qualquer um dos indivíduos cuja origem tenha se dado nestas comunidades já não mais a elas pertençam integralmente (com suas tradições, costumes, modos de vida, ...) dado que já participam do modo capitalista de produção - base que constituirá suas relações sociais sendo, portanto, passível da análise indicada. O caráter global do sistema exposto nestes exemplos é resultado de seu desenvolvimento histórico, atualmente alcançando a quase totalidade das relações sociais mundiais. Tal constatação não exclui, contudo, as diversas formas de resistência e luta destes e de outros povos contra o capitalismo e suas consequências avassaladoras.

19 De acordo com Marx & Engels (1985, p. 109): “a moeda papel é o signo de ouro ou signo do

dinheiro”, tendo sua origem na função do dinheiro como meio de circulação de mercadorias. Ela só é signo de valor, no entanto, na medida em que representa quantidades de valor expressas em quantidades de ouro.

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cédulas elencadas não servem a outro propósito exceto meio de troca de uma

mercadoria por outra (por mais que se admita a possibilidade de combustão do

papel moeda, existem outros materiais, como a lenha ou o carvão, que, além de

perdurarem por mais tempo queimando, se mostram menos tóxicos). No entanto,

espiritualmente, estes títulos monetários parecem adquirir tamanha importância

que se dissolve qualquer materialidade cuja pretensão seja cerceá-los sob alguma

conceituação fisicamente humana.

Ainda no primeiro capítulo d´O Capital, no qual Marx aborda a questão

da mercadoria e do valor, surge, no subtítulo 3, que trata da “Forma Equivalente”,

a figura de Aristóteles como o primeiro pensador a se debruçar sobre o valor e o

dinheiro. Ele seria “a figura mais desenvolvida da forma simples de valor”

assumida pela mercadoria, a “expressão do valor de uma mercadoria em outra

mercadoria qualquer” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 61), i.e, um

iglu = 100 cerâmicas kadiwéu = US$ 500,00. Isto por que, como visto, igualar

coisas qualitativamente diferentes é exigência para o ato de troca20. Ao se

equiparar iglus com cerâmicas ou dólares, abre-se a possibilidade de tais coisas –

essencialmente diferentes – se relacionarem como objetos diretamente

comensuráveis.

Esta comensurabilidade, para Aristóteles, seria fornecida pelo dinheiro,

pois, atuando como equivalente universal, se estabelece como mera

representação abstrata de todos os bens pelos quais pode ser trocado. A utilidade

do dinheiro residiria, portanto, em sua capacidade de fornecer comensurabilidade

20

A troca parece ser, inicialmente, o ato mediante o qual os indivíduos se reconhecem e se relacionam dentro das sociedades capitalistas. “Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus produtos de trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa mesma troca” (MARX & ENGELS, 1985, p. 71). A propriedade privada, base da desordem na sociedade civil hegeliana, é retomada por Marx em sua forma “pura”, sem a competitividade e a busca desenfreada pela apropriação particular dos bens existentes. O pensador comunista parte de uma situação ideal para, depois, paulatinamente, desconstruí-la ao inserir a complexidade material presente na realidade. Nos capítulos iniciais d´O Capital que tratam da circulação ou troca de mercadorias, após retirar a subjetividade do objeto – “As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e se trocar” (p. 79) – são os proprietários privados, livres e com iguais direitos, que se arranjam, voluntaria e contratualmente, frente à frente, dispostos a trocar seus produtos.

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às coisas, reduzindo-as à igualdade. Assim, tem-se que: sem comensurabilidade

não há igualdade, sem igualdade não há a troca e sem esta não há associação. A

equiparação entre coisas qualitativamente diversas resulta, diz o estagirita, da

demanda. É ela que propiciará a medida comum exata para a comparação. Sua

utilidade prática convencionalmente determinada (nummisma) valora iglus,

cerâmicas ou livros, igualando-os sob a forma do dinheiro. Aristóteles, na Ética

(2009), ao afirmar ser o dinheiro nómos, parece indicar as mesmas propriedades

de mutabilidade e transitoriedade para se referir às necessidades humanas:

É necessário, portanto, que todas as mercadorias sejam medidas por algum padrão, como foi dito anteriormente. E esse padrão ou unidade é, na realidade, demanda, aquilo que mantém a coesão de tudo, já que se os seres humanos deixassem de ter necessidades ou se mudassem suas necessidades, o intercâmbio não perduraria ou seria efetuado em linhas distintas [...]. (Ibid., 1131a1, 30).

A origem do dinheiro encontra-se em seu Capítulo 5, no Livro V.21

Tratando das diversas formas de justiça (distributiva ou proporcional no Capítulo 3,

corretiva ou equalizadora no Capítulo 4, reciprocidade proporcional no Capítulo 5,

justiça política no Capítulo 6 e justiça natural e legal no Capítulo 7), Aristóteles,

detalhando o que considera como justa retribuição proporcional, utiliza-se,

inicialmente, de critérios meramente quantitativos para determinar a troca de

produtos através da conjunção cruzada. Será esta exposição inicial que permitirá

sua construção dos valores, uma vez que, ao comparar produtos qualitativamente

diferentes com a possibilidade de um ter mais valor que outro, chega a um

impasse: não há igualdade no ato, não há justa medida e, por conseguinte, não há

justiça. Surge, então, a necessidade de equivalência quantitativa e qualitativa

entre os diversos bens para que sejam intercambiáveis. Equiparando coisas

diversas, a comensurabilidade que permitirá sua troca é a mesma que suscitará o

21

Interessante observar que, sendo destinada à atividade prática (eudaimonia), como condição necessária à vida em comunidade e ao bom governo da polis, a obra, por mais que não abarque toda uma teoria econômica do valor, acaba por enumerar valores éticos e morais sob a forma da virtude. A vida virtuosa, expressa na excelência de cada ação (ato e não apenas potência), é ideal a ser alcançado por meio da justa medida, sendo a justiça considerada como a maior das virtudes.

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surgimento do dinheiro – entendido como termo médio por ser medida de todas as

coisas e de seus valores, sejam eles inferiores ou superiores nas relações entre

elas. A proporção de reciprocidade expressa pela moeda torna-se, deste modo,

condição de possibilidade da troca entre os produtores. Ausente esta condição,

impossibilitada se encontra não apenas a relação de troca, como ainda a própria

associação.

A dificuldade de Aristóteles em abarcar a totalidade da teoria

econômica do valor residiria nas limitações históricas dentro das quais se

encontrava inserido (trabalho escravo, desigualdade social, comunidade pré-

mercantil22, etc.), impeditivas de elaboração e determinação de substância e

grandeza advindas do trabalho abstrato geral. O algo comum aristotélico que

equipara trabalhos diversos como termo médio, o dinheiro, embora cumpra a

função de estabelecer a proporcionalidade, o faz não em razão da objetividade

abstrata referida, mas na concretude do valor de uso.

Nos Grundrisse Marx investiga de modo mais detalhado a origem, o uso

e as formas do dinheiro para depois, n´O Capital, dilatar as conclusões a que

chegou. Para ele, contudo, a característica de comensurabilidade das mercadorias

não será fornecida pelo dinheiro; ao revés, será ele forma de manifestação da

medida de seu valor, do tempo de trabalho (“Não é por meio do dinheiro que as

mercadorias se tornam comensuráveis. [...] Dinheiro, como medida de valor, é

forma necessária de manifestação da medida imanente do valor das mercadorias:

o tempo de trabalho” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 87). Trabalho

22

Apenas a sociedade capitalista poderia ser considerada uma sociedade eminentemente mercantil, pois exclusivamente nela a troca e a mercadoria como forma dominante do produto social constituem a base das relações sociais. A contrario sensu, nas associações pré-capitalistas, estas duas características seriam meros acidentes – ainda que presentes de modo regular e contínuo. Diante disso, na sociedade feudal, troca e mercadoria, ainda que existentes e cotidianamente presentes nas mais diversas relações não possuíam este traço distintivo fundamental e constitutivo, inerente, assim, àquele modo de produção. Objetivando o valor de uso a troca adquire um caráter não apenas acidental como também subordinado. O formato da circulação simples expresso na fórmula M – D – M evidencia a relação existente entre a maior parte dos produtores que se encontravam restritos, muitas vezes, a comércios locais não integrados, desvinculados da atividade dos comerciantes (compreendidos nestas coletividades como meros intermediários).

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abstrato e trabalho concreto encontram-se, assim, em uma relação direta de

reciprocidade com valor de uso e valor de troca da mercadoria.

O caráter bifacético do trabalho expresso na natureza dual da

mercadoria permitiria determinar o conteúdo e a manifestação (forma) do valor,

tanto de um quanto do outro. Aristóteles teria falhado, afirma, por não dispor do

conceito de valor que torna idênticos todos os trabalhos humanos sob a mesma

matéria indiferenciada da igualdade humana.

Mas isso só é possível numa sociedade na qual a forma mercadoria é a forma geral do produto do trabalho, por conseguinte também a relação das pessoas umas com as outras enquanto possuidoras de mercadorias é a relação social dominante (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 62).

O processo se configurará, portanto, do seguinte modo:

a) “A forma equivalente de uma mercadoria é consequentemente a

forma de sua permutabilidade direta com outra mercadoria”, pois uma mercadoria

não pode expressar sua própria grandeza de valor, a não ser quando em relação

(de valor) interna com outra que se lhe equivalha. (Afirmar que um iglu vale um

iglu é uma tautologia que não expressa qualquer grandeza de valor). Assim, “A

primeira peculiaridade que chama a atenção quando se observa a forma

equivalente é esta: o valor de uso torna-se forma de manifestação de seu

contrário, do valor” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 59). É preciso

que se advirta que a compreensão da forma equivalente só pode se dar quando

considerada em sua relação com a forma relativa de valor. O iglu só adquirirá sua

expressão de valor ao ser sobredeterminado pela cerâmica kadiwéu, encontrando-

se ambos, cada qual em um polo extremo, em uma relação recíproca constitutiva

e excludente.

b) A forma relativa de valor, aquela na qual uma mercadoria ocupa a

posição de ter seu valor expresso por outra, não é, portanto, uma propriedade

natural, algo que esteja presente no corpo das mercadorias. O valor relativo de

uma mercadoria é, antes, uma relação (oculta por detrás desta forma) construída

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socialmente. Contrariamente, a mercadoria que assume a forma equivalente

parece possuir o valor natural de ser permutável, pois o trabalho humano concreto

despendido para a sua realização se oculta e se transmuta em trabalho abstrato,

refletindo apenas essa propriedade: “É, portanto uma segunda peculiaridade da

forma equivalente que trabalho concreto se converta na forma de manifestação do

seu contrário, trabalho humano abstrato” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS,

1985a, p. 61).

c) Uma terceira peculiaridade se insere na medida em que os trabalhos

concretos privados atuam apenas como expressão do trabalho humano geral

indiferenciado, igualável a qualquer outro por produzir mercadorias, convertendo-

se “na forma de seu contrário, trabalho em forma diretamente social” (O Capital,

vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 61). Ao ser transformado, historicamente, em

mercadoria, o produto do trabalho recebe um determinado valor que vai além de

seu valor de uso, encobrindo-o. Dentro das sociedades nas quais prevalece a

troca como relação social primordial o desenvolvimento da forma valor caminha

pari passu com o desenvolvimento da forma mercadoria. Relacionando as

mercadorias entre si, comparando-as e equiparando-as, o valor (ou sua expressão

aparente como valor de troca) retira delas e dos trabalhos concretos específicos

exigidos para a sua produção quaisquer qualidades diferenciadoras.

A relação de equivalência entre mercadorias (ou trabalhos) se perpetua

indefinidamente. Considerando que um iglu = cem cerâmicas, ao se estabelecer a

proporção correta, tem-se, consequentemente, a possibilidade de equiparação tão

extraordinariamente monstruosa quanto a existência de mercadorias: um iglu =

cem cerâmicas = trezentas gramas de maconha = uma bomba de gás

lacrimogêneo = dois controles de Playstation 3 = etc. mercadorias. Eleger uma

única mercadoria, excluindo-a da série, como equivalente geral para todas as

outras passa a ser exigência do grau de desenvolvimento social alcançado nas

sociedades onde a troca se torna habitual. Logo, “A forma valor geral relativa do

mundo das mercadorias imprime à mercadoria equivalente, excluída dele, [...], o

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caráter de equivalente geral” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 67).

Qualquer mercadoria estaria apta a ser eleita como equivalente geral, pois, como

visto, anuladas suas características diferenciadoras, igualam-se como formas de

valor em si. Iglu ou ouro podem, assim, se travestir com a figura da

permutabilidade geral e se confrontar com toda e qualquer mercadoria, que, por

sua vez, terá seu valor expresso neles. O processo histórico por meio do qual o

ouro veio a desempenhar o papel de equivalente geral acaba por fundir sua forma

natural com sua forma cultural, imprimindo-lhe essa função especificamente social

(“O ouro e a prata só são aceitáveis de direito porque o são de fato, e o são de

fato porque a organização atual da indústria necessita de um agente universal de

troca. O direito não é mais que o reconhecimento oficial do fato” (MARX, 2009, p.

101)).

Neste processo ocorre sua duplicação como mercadoria em mercadoria

e dinheiro, dobrando seu valor de uso, servindo tanto para o uso particular (ex.:

talheres, obturação de dentes), quanto para o uso formal (troca). Do intercâmbio

inicial expresso na relação pura existente entre mercadorias (M – M), passando

pelo intermediário no qual se troca mercadoria por dinheiro (M – D), chega-se

agora a uma nova fórmula onde mercadoria troca-se por dinheiro e, este,

novamente por outra mercadoria. O processo se completa, então, com uma

metamorfose oposta e complementar à da mercadoria em dinheiro: a

retransformação do dinheiro em mercadoria sob a clássica fórmula M – D – M.

A circulação de mercadorias (e as relações sociais que encerra)

conforme apresentada não apenas se estende para além dos locais onde ocorre e

de seus produtores individuais, desenvolvendo o metabolismo social, como se

torna incontrolável pelos indivíduos que dela participam em qualquer nível. São

estas duas características que diferenciam a circulação, em aparência e essência,

da troca direta de produtos, dotando o dinheiro da função de meio circulante (que

se soma à de medida de valor) e afastando-o cada vez mais do ponto inicial. Ele

aparece, assim, como forma autônoma e oculta a metamorfose da mercadoria da

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qual é parte integrante ao apresentar o processo de circulação como pura

consequência de seu próprio movimento. “Sua existência funcional [sob a forma

de papel moeda] absorve, por assim dizer, sua existência material” (O Capital, vol.

I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 110).

Como uma de suas consequências, a essência da antítese valor de uso

e valor aufere sua forma fenomênica expressa na oposição aparente entre valor

de uso e valor de troca. Tais valores se dissociam a tal ponto que os objetos

outrora criados para emprego no interior da comunidade, em decorrência das

relações constituídas pela troca de produtos com outras sociedades, são

produzidos a partir daí visando quase que exclusivamente a troca23. Com o

desenvolvimento histórico destas relações a forma de equivalente geral é

cristalizada na forma dinheiro (fornecendo-lhe não o seu valor, mas sua forma

valor específica).24 O preço das mercadorias nada mais significa, assim, que a

transformação ideal ou imaginária de seus valores reais, quantum de trabalho

social nelas objetivado, cuja expressão é fornecida historicamente pelas diversas

denominações monetárias que possa vir a assumir (O Capital, vol. I, MARX &

ENGELS, 1985a, p. 87-93).

A partir do momento em que a grandeza de valor se transforma em

preço, a divergência entre ambos se insere como regra, encobrindo a verdadeira

essência da relação imanente entre mercadoria e tempo de trabalho social sob o

véu da aparente troca entre mercadoria e mercadoria monetária, expressão

exterior daquela. A esta incongruência quantitativa gerada pela forma preço soma-

se, ainda, uma contradição qualitativa fundamental: a sua expressão imaginária.

Neste caso, não há propriamente uma (coisa que seja considerada) mercadoria,

23

As trocas têm sua origem na produção de excedentes entre comunidades diversas sem que, ainda, tais produtos adquiram a característica mercadológica, por não se tratar de produção com este objetivo. Como mero acidente, a relação estabelecida entre os possuidores é direta, independente, ainda, da mediação realizada pelo dinheiro. 24

O valor do ouro ou da prata não pode ser, portanto, puramente imaginário pois valor e forma valor recebidos são eminentemente diferentes e, mais, assevera Marx, por ter a possibilidade de ser substituído por signos dele mesmo, ainda assim, ele não é mero signo considerado como “produto arbitrário da reflexão dos homens” (MARX & ENGELS, 1985, p. 83).

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embora possa ser colocada à venda. Honra, consciência, liberdade, ainda que não

possuam um valor, ao serem vendidas por seus possuidores, adquirem um

determinado preço – e, consequentemente, recebem a forma de mercadoria. “Isso

não é um defeito dessa forma [a forma “preço”], mas torna-a, ao contrário, a forma

adequada a um modo de produção em que a regra somente pode impor-se como

lei cega da média à falta de qualquer outra regra” (O Capital, vol. I, MARX &

ENGELS, 1985a, p. 92).

Nas sociedades onde domina o modo de produção capitalista as

relações entre os homens tomam a forma de relações entre coisas. Possuidores

de mercadorias distintas apropriam-se do produto do trabalho alheio alienando o

próprio, que, por sua vez, já se destituiu de seu valor de uso e de sua forma de

trabalho útil, restando-lhe apenas a carapaça de uma massa de trabalho

indiferenciado exposta no valor de troca. A relação econômica do intercâmbio

entre mercadorias diversas transfere-as “da mão em que elas são não-valores de

uso para a mão em que elas são valores de uso” (O Capital, vol. I, MARX &

ENGELS, 1985a, p. 94).

O vendedor só troca suas mercadorias porque, para ele, elas não

possuem qualquer valor de uso, apenas o valor de troca. O comprador,

contrariamente, compra-as por possuírem valor de uso para ele, alienando sua

própria mercadoria pelo mesmo motivo que o vendedor. Para que ocorra a compra

e venda, essa transformação da mercadoria receberá uma segunda forma

antitética ao ser duplicada em mercadoria e dinheiro (o “salto mortal da

mercadoria” de acordo com Marx & Engels (O Capital, vol. I, 1985, p. 95),

confrontando-se os seus valores. O dinheiro servirá tão-somente como meio de

circulação, mediador das trocas.

Nascido da troca como produto destas relações, o dinheiro tem sua

forma inicial em qualquer mercadoria, destinando-se não ao consumo, mas à

circulação. Sal, gado, escravos, ao serem considerados em seu valor de uso

específico, têm, incidentalmente, uma função monetária. Com o desenvolvimento

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e a ampliação das trocas essa situação se inverte e o valor de uso monetário

torna-se função primordial. A transformação experimentada pelas sociedades em

decorrência do aumento no intercâmbio de produtos exige que o dinheiro adquira

certas características como portabilidade, maleabilidade, durabilidade e

divisibilidade para facilitar estas relações. Assim, do brilho dos metais preciosos à

oculta opacidade do cartão de crédito - respeitadas as especificidades das

relações sociais existentes em cada uma destas formas - a aparência da

mercadoria-dinheiro se universaliza em razão direta à sua particularidade mais

essencial. (MARX, 2011, p. 113).

O lugar que o dinheiro ocupa na sociedade capitalista parece indicar

que seria ele o sujeito do processo de produção da vida, abarcando todas as suas

fases. Da fabricação à circulação e consumo é o meio privilegiado para a

satisfação das mais variadas necessidades humanas. A partir do momento em

que a troca se generaliza e todas as coisas passam a ter um valor monetário, o

dinheiro, ao facilitar estes atos, é posto como equivalente universal para qualquer

mercadoria, expandindo seus domínios até alcançar a totalidade das relações

sociais. Tudo passa a ser objeto de compra e venda e a possuir um preço

expresso em moeda.

Bens móveis, imóveis, materiais e imateriais, palpáveis ou ideais são

submetidos à ditadura da mercantilização ilimitada. Automóveis, soja, armas,

softwares, cultos religiosos, pessoas, óvulos, rins, ideias, bem estar, paz e

personalidade recebem uma determinada expressão monetária para que se

tornem aptos a serem comprados e vendidos diariamente. Valores qualitativos

absolutos passam a ser relativizados e quantificados, perdendo-se no monstruoso

mundo das mercadorias. Quantidade é apresentada como qualidade: quanto mais

as coisas valem, melhor elas são. O dinheiro, epicentro determinante da dinâmica

social, agrava as distorções ideológicas ao adquirir a aparência do sujeito que o

criou; e este, por sua vez, neste processo, inverte a relação: faz dele mesmo mais

um objeto comercializável, alienando-se.

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No capítulo sobre o dinheiro dos Manuscritos Econômicos-Filosóficos

(2012, p. 157-162) Marx destrincha algumas de suas potências (Macht)

essenciais. Possuindo a universalidade como um de seus atributos mais próprios,

o dinheiro recebe a valoração máxima como coisa onipotente. Com ele tudo se

pode comprar; por meio dele todas as outras coisas adquirem o atributo de

tornarem-se apropriáveis. Seu possuidor, consequentemente, é aquilo que pode

comprar. O sujeito adquire as qualidades do objeto ao mesmo tempo em que

perde as próprias. Fidelidade, beleza, amor, conhecimento, honradez,

honestidade, são apenas resultados da “força verdadeiramente criadora” (2012, p.

160) do dinheiro e não predicados de alguém – que pode ser, em realidade, infiel,

desonesto, feio, fraco, estúpido. Ele transforma a imperfeição em perfeição, o vício

em virtude, a representação em efetividade, e vice-versa. A inversão operada por

aquilo que o dinheiro possui de universal nega-lhe, assim, a individualidade: “[...]

Eu, que por intermédio do dinheiro consigo tudo o que o coração humano deseja,

não possuo, eu, todas as capacidades humanas? Meu dinheiro não transforma,

portanto, todas as minhas incapacidades (Unvermögen) no seu contrário?”

(MARX, 2012, p. 159).

O dinheiro, apresentando-se como expressão geral do valor, ganha tal

autonomia que parece que a mercadoria expressa seus valores em dinheiro

porque ela é dinheiro, e não o contrário. Parece que são as mercadorias que

existem em razão do dinheiro, quando, na verdade, o dinheiro só existe em função

delas. O dinheiro é apenas uma forma social necessária para mediar as trocas,

mas, nas sociedades capitalistas, ele é o sujeito de tudo; e o trabalho, que em

realidade é a base da sociedade, ao ser submetido a seu reinado, desaparece. O

dinheiro detém esse poder por representar, na realidade, o tempo de trabalho, o

tempo de vida dos homens. Comprando o tempo de vida alheio sob a forma de

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trabalho, o dinheiro ganha ainda mais poder, pois, ter dinheiro significa ter o poder

de comprar (o tempo de) vida dos homens.25

Contudo, assevera Marx, a compreensão acerca de saber que dinheiro

é mercadoria não apresenta maiores dificuldades. Tal concepção já se encontrava

posta desde o fim do século XVII, não se mostrando tão complexa quanto o

oposto: apreender por que e de que modo se pode afirmar que mercadoria é

dinheiro. A mediação da qual se vale para explicar o processo desaparece à

primeira tentativa de se fazer o caminho inverso. Mas essa aparente “magia do

dinheiro” se desvanece tão logo se iguala, em essência, a qualquer mercadoria

produzida sob os pesados grilhões do trabalho alienado. Reificação,

personificação, alienação e estranhamento caracterizam o brilho transformador

que o ouro exerce na comensurabilidade do tempo de trabalho: “O enigma do

fetiche do dinheiro é, portanto, apenas o enigma do fetiche da mercadoria tornado

visível e ofuscante” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 85).

2.3 - O FETICHE DA MERCADORIA

Para além do mero valor, para além de bem e mal,

As mercadorias parecem ter vida própria, dão a impressão de se moverem por si mesmas. Nossos olhos são condicionados para enxergarem coisas que se movimentam, objetos por trás dos quais desaparecem os sujeitos que promovem os deslocamentos. A própria linguagem cotidiana reforça o condicionamento, quando nos leva a dizer:

25

Marx, nos Grundrisse, alerta sobre o erro de certas teorias (como a dos socialistas utópicos) que propõem a transformação social por meio da retirada completa do dinheiro da esfera da circulação, retornando ao estágio intercâmbio direto e, assim, aniquilando, pela base, todas as relações sociais que nele se fundam e, consequentemente, a própria sociedade capitalista. Afirma ele que ainda que se considere que as variadas etapas de cada sociedade referentes à produção pressuponham diferentes formas de dinheiro, cada qual melhor adaptada às exigências sociais da época, seria ilusão afirmar que a abolição dele derivaria a destruição das relações contraditórias que induz. Permanecendo relação social essencial, a transmutação do dinheiro acarretaria tão-somente a alteração na representação das formas destas relações sem que houvesse sua completa extinção. Do mesmo modo, o trabalho assalariado, no qual: “Nenhuma forma do trabalho assalariado, embora uma possa superar os abusos da outra, pode superar os abusos do próprio trabalho assalariado” (MARX, 2011, p. 75).

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o pão subiu, a manteiga baixou, o açúcar sumiu, o leite melhorou, os fósforos pioraram etc. Difundem-se por toda parte e com insistência as imagens de uma objetividade ilusória, que encobre e mascara a presença da subjetividade, quer dizer, disfarça a realidade das iniciativas contraditórias e das motivações contrastantes de seres humanos divididos. (KONDER, 2002, p. 47).

A análise mais acurada acerca da mercadoria permite perceber que ela

encontra-se, assim, impregnada de “sutilezas metafísicas e manhas teológicas” (O

Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 70). O mistério da mercadoria não se

localiza, no entanto, em seu valor de uso que, como em qualquer matéria

transformada pelo trabalho humano concreto, ganhando características de

utilidade, satisfaz necessidades por meio de seu uso ou consumo. Da mesma

forma, não há que se falar em mística advinda do conteúdo das determinações de

seu valor (dadas as características intrínsecas ao trabalho fisiológico

abstratamente considerado e compreendido como simples dispêndio da forma

humana em músculos, nervos, cérebro), ou mesmo de sua forma social assumida

quando da quantificação da grandeza de seu valor (em tempo de trabalho

socialmente necessário à produção de mercadorias). O enigma da mercadoria

descobre-se, em verdade, na própria mercadoria.

A indiferenciação do trabalho concreto produzida pelo valor de troca

que iguala e desfaz qualquer especificidade contida nos trabalhos de produção de

mercadorias acaba por gerar seu caráter fetichista. A troca de produtos como

única possibilidade de relação social entre produtores e comparativa de trabalhos

privados explicita-se, então, como relação entre mercadorias a serem trocadas,

destituída de qualquer interpessoalidade que não a contida nas coisas. A

valoração já se coloca no momento em que são produzidas coisas úteis com valor

suficiente para serem trocadas, quando a troca já atingiu o ápice da importância.

É o duplo caráter social do trabalho – determinado útil e privado útil

particular permutável – que iguala coisas verdadeiramente desiguais, nivelando

todo trabalho humano como abstrato, logo, produto (abstratamente) igual na troca,

assumindo valor. A quantidade a ser trocada – ou as grandezas de valor –

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uniformiza as diferenças qualitativas e cria a ilusão de que a variação possuiria

movimento e forças próprias, controlando os desígnios humanos. Invertida a

relação, reduzem-se os diferentes trabalhos (principalmente em tempo necessário

à produção de mercadorias) à sua medida socialmente proporcional regulada por

uma ordem naturalizada, ocultando-se suas mais profundas relações.

Da forma relativa de valor inicialmente simples, onde a mercadoria A se

confronta diretamente com a mercadoria B, passando por sua forma desdobrada

(A x B, C, D, E, etc.), que se transforma, historicamente, nas formas equivalentes

de valor (Geral: B, C, D, E, etc. x A; Dinheiro: B, C, D, E, etc. x 100 gramas de

ouro; Preço: B, C, D, E x US$100,00), a síntese de múltiplas determinações é

diretamente proporcional às ocultações assumidas. À relação mais aparente e

visível entre duas mercadorias, que demonstra, claramente, o tempo de trabalho

concreto gasto para produzi-las, seguem-se velamentos cada vez mais obscuros

até o ponto em que se ocultam as próprias relações humanas.

A mercadoria-dinheiro passa a expressar, assim, uma relação entre

coisas (relações pessoais entre coisas) e não relações sociais entre os indivíduos

e seus trabalhos como produtores de artefatos. A inversão operada neste

processo que reifica as relações pessoais e as apresenta como relações

aparentes, ilusórias, é processo, não obstante, objetivo, real. Ao velar as relações

entre indivíduos produtores de mercadorias, esconde, na verdade, uma relação

muito mais ampla. Fazendo parecer que, desde o início, o que se apresenta é a

troca entre dois produtos, obscurece a classe como um todo; ocultando-lhe o

caráter coletivo pela valorização individual, anula as verdadeiras relações sociais e

apaga a luta de classes como movimento da história dos homens.

Da mesma forma, naturalizam-se os modos pelos quais a mercadoria,

sua produção e valor aparecem para os homens, encobrindo-se seus sentidos

históricos – tanto em sua criação como em seus resultados – nos quais o

conteúdo maior assumido pela forma dinheiro impõe, de forma definitiva, esta

ocultação imprescindível ao modo de produção burguês. Quatro exemplos

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principais são passíveis de corroborar a afirmativa na qual fetichismo surge

intrinsecamente conectado a este modo de produção: 1) O trabalho de Robinson

Crusoé e seus produtos servem apenas a ele e como objetos de uso e

transformação; 2) No feudalismo as relações pessoais com suas respectivas

cadeias de dependência pessoal constituem a base social, descartando, portanto,

a necessidade do ocultamento pela generalização do trabalho particular e de seus

produtos; 3) Igualmente, desnecessário se torna o disfarce das relações no

trabalho familiar que, com sua a divisão sexual ou etária natural, em nada

influencia nos produtos ou características dos trabalhos específicos e

determinados socialmente; e 4) A hipótese de existência de um trabalho não

alienado em uma futura sociedade socialista cujos meios e instrumentos de

produção seriam de propriedade dos produtores excluiria, por derradeiro, esse

fetiche e suas consequências.

No capitalismo, no entanto, o espectro da mercadoria ronda os homens

e em suas relações se corporifica, refletindo a principal característica que os

diferencia da natureza: o trabalho. Propriedades sociais são a ela imputadas no

momento em que são retiradas da relação de valor dos produtos do trabalho.

Humanizando-as, os homens coisificam suas relações. Em um sistema que se

manifesta como uma sociedade mercadológica há a personificação da própria

sociedade que se transforma em

[...] uma sociedade-pessoa, que não é a sociedade das pessoas, já que possui leis à parte, não tendo nada em comum com as pessoas de que se compõe a sociedade, e possui também a sua “própria inteligência”, que não é a inteligência do comum dos homens, mas uma inteligência desprovida de senso comum. (MARX, 2009, p. 105).

A inversão operada historicamente e objetivada na coisificação das

relações humanas e na humanização da troca de coisas impede qualquer

mudança de consciência em si e para si senão sob a forma de um movimento

histórico destinado a alterações profundas na realidade que os criou.

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O trabalho que constitui e transforma o ser humano em seu

metabolismo com a natureza é denominado por Marx de trabalho útil, pois cria

artefatos dotados de valores de uso. À diversidade de objetos – e de valores de

uso – corresponde uma diversidade qualitativa de trabalhos úteis que, por suas

propriedades, possibilitam sua produção e intercâmbio. Esta característica

diferenciadora apresenta um complexo sistema regido pela divisão social do

trabalho como condição de existência para a produção de mercadorias (resultado

de atividades produtivas privadas autônomas). Apenas por meio de um processo

de abstração destes valores de uso e do caráter concreto contido nos diversos

trabalhos úteis, transformando-os em abstratos, duas mercadorias distintas

poderão se confrontar no mercado. Do metabolismo inicial do homem com a

natureza parte-se, então, para um metabolismo social.

Pela redução a um mesmo dispêndio de força humana de trabalho

médio simples igualam-se as diferentes atividades produtivas; pela abstração de

seus valores de uso particulares, resta à mercadoria apenas sua característica de

produto de um trabalho qualquer. Como fruto de trabalho indiferenciado, porta

valor e se depara, na sociedade, com toda e qualquer outra mercadoria. Da forma

particular à generalidade universal, trabalhos e mercadorias qualitativamente

diferentes são equiparados em quantidades de tempo e de formas de

manifestação de seu valor. A essência de ambos é ocultada pelo caráter dúplice

que ostentam, como trabalho útil concreto/abstrato em geral e valor de uso/valor

de troca aparente (ou valor), camuflando, ainda, a verdadeira relação

determinante de todo o processo: a relação social.

A conhecida fórmula M – D – M se aperfeiçoa nos moldes impostos

pela divisão social do trabalho e a mercadoria recebe, por fim, sua denominação

monetária na forma preço:

Nossos possuidores de mercadorias descobrem por isso que a mesma divisão do trabalho que os torna produtores privados independentes, torna independentes deles mesmos o processo social de produção e suas relações dentro desse processo, e que a independência recíproca

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das pessoas se complementa num sistema de dependência reificada universal. (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 96).

Com o desenvolvimento da produção e o aumento da circulação de

mercadorias, a dupla função exercida pelo dinheiro (mercadoria monetária e figura

de valor de troca na qual todas as outras mercadorias expressam seus valores)

acaba por se fixar apenas naquela que faz as vezes de equivalente universal.

Igualando todas as mercadorias, apagando suas diferenças qualitativas,

nivelando-as sob o brilho ofuscante do ouro e da prata, o dinheiro, ser ilimitado,

traveste-se da alcunha de representante geral de toda a riqueza material existente

na sociedade, convertendo tudo em si mesmo.

2.4 - CAPITAL

Qualquer coisa se torna, assim, objeto de compra e venda, mercadoria

categorizável em valor monetário – que se põe como totalmente independente e

acima de seu valor de uso (que desaparece). A medida de todas as mercadorias,

ao ser quantificada em dinheiro (o dinheiro é a medida de todas as coisas...), é

espelhada, diretamente, pelo seu possuidor. Sua riqueza nada mais é, portanto,

que a quantidade de dinheiro (mercadoria) que possui; seu poder privado de

compra e disposição adquire um tal status que se universaliza e alcança, não

apenas as coisas, como toda a sociedade: “O poder social torna-se, assim, poder

privado da pessoa privada” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 112).

Apropriar-se de todo esse poder social é fim reservado apenas àqueles que,

historicamente, já dispõem dos meios e instrumentos necessários a esta ação.

Comprar para vender passa a determinar o movimento global da circulação. A

fórmula inicial M – D – M transfigura-se em D – M – D. O valor de troca se

sobrepõe ao valor de uso encerrando o processo sem que haja o consumo de

uma mercadoria e a satisfação de necessidades – que pouco importa ao sistema

capitalista ao ponto de, em verdade, simplesmente não ocorrer. Inexistindo a

diferença qualitativa do resultado na troca de dinheiro por dinheiro, ao final resta,

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tão-somente, uma distinção quantitativa; pois não faria qualquer sentido uma troca

entre coisas absolutamente iguais, ou, trocar US$ 100,00 por um iglu e este pelos

mesmos US$ 100,00, recaindo-se em uma tautologia. A derradeira metamorfose

se insere na circulação: D – M – D´, ou, trocar US$ 100,00 por um iglu e este por

US$ 110,00. Deste modo, a circulação simples de mercadorias se transmuta em

circulação capitalista.

Comprar para vender e valorizar o valor inicial passa a ser o objetivo do

capital. Ao valor a mais existente no final do processo (D´) Marx dá o nome de

Mehrwet, mais-valia (ou Mais Valor):

Esse incremento, ou o excedente sobre o valor original, chamo de – mais-valia (surplus value). O valor originalmente adiantado não só se mantém na circulação [os US$ 100,00], mas altera nela a sua grandeza de valor, acrescenta mais-valia ou se valoriza [os US$ 110,00]. E esse movimento transforma-o em capital. (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 128).

26

Essa aparência da fórmula com a qual o capital se imiscui na

circulação, essa valorização do valor, exige a renovação contínua deste

movimento: a circulação do dinheiro como capital é um fim em si. Per contra,

teremos a figura do entesourador que retira de circulação o dinheiro, impedindo-

lhe o acréscimo contínuo de mais valor. Por mais que se considere o

entesouramento como a primeira manifestação e fundamento do capital, ele “ainda

não é acumulação de capital” (MARX, 2011, p. 176); diz Marx: “(...) o entesourador

é apenas o capitalista demente” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p.

130) e aqui compara o entesourar que se encontra preso à circulação ao mito de

Sísifo.

O proprietário deste tipo de dinheiro valorizado que deve retornar,

sempre, para ele mesmo, é o capitalista. Sua meta é valorizar o dinheiro de que

dispõe (sem a utilização imediata de algum valor de uso); apropriar-se

26

Utilizamos, aqui, a tradução mais-valia por dois motivos simples: 1 – por ter sido a tradução popularizada no Brasil; 2 – porque nos utilizamos da tradução clássica de O Capital realizada em 1985 por Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, seguindo determinada tradição acadêmico-marxista brasileira.

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constantemente daquele poder social que o eleva sobre todos os outros

indivíduos. Agindo assim, dentro desta forma de circulação ininterrupta, ele é o

próprio capital personificado. Sua consciência é criada, então, pelo processo de

produção do valor. Sua existência está condicionada a ele. Não há uma tal

autonomia no capitalista que lhe permita sair deste processo sem a perda daquilo

que lhe constitui essencialmente. Ele é submetido, a todo o tempo, à valorização

do valor, dominado por ele. Valorizar o valor passa a ser condição sine qua non

para manter-se como classe dominante dentro da sociedade, submetendo,

concomitantemente, todos os outros que dela participam a esta mesma exigência

(a classe trabalhadora tem o dever de trabalhar para valorizar o valor; a

mercadoria, de sujeito principal no início, passa aqui, também, apenas a meio de

valorização do valor, etc.). O valor se torna o protagonista, o sujeito determinante

da sociedade capitalista.

Mas para valorizar o valor, para transformar dinheiro em capital, é

preciso antes que haja uma mercadoria que, quando vendida, acrescente valor

àquela quantia adiantada no início do processo. Para que D se transmute em D´ é

necessário que M crie uma valorização inexistente até o momento. Seja pelo

intercâmbio entre valores equivalentes, seja considerando a troca de valores não-

equivalentes, não há, no todo social, qualquer criação de valor. A circulação

simples de mercadorias parece não produzir esta mais-valia.

Entretanto, o detentor de dinheiro (mercadoria) só o transforma em

capital dentro desta esfera, por meio da troca, do contato com outros produtores

de mercadorias diversas, pois o capital é, antes de tudo, uma relação social –

ainda que oculta sob outras formas (mercadoria, dinheiro). A circulação incessante

é imprescindível ao processo de valorização do valor, pois, sem ela, a

possibilidade de crise se instaura.27 O capitalista deve comprar e vender as

27

Sobre a questão da crise do capitalismo, sua atualidade, contradições, e, principalmente, sua inter-relação dentro do método dialético de Marx, ver excelente obra de Hector Benoit e Jadir Antunes: Crise – O movimento dialético do conceito de crise em O Capital de Karl Marx, Editora

Tykhe (Col. Marx e a Tradição Dialética, fev. 2009).

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mercadorias por seu valor e, ao final, de algum modo, ainda extrair valor

excedente sob a forma de capital: “Capital não pode, portanto, originar-se na

circulação e, tampouco, pode não originar-se na circulação. Deve, ao mesmo

tempo, originar-se e não se originar dela.” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS,

1985a, p. 138). Produção, troca, distribuição e consumo se revelam, portanto,

como diferentes partes integradas de uma mesma totalidade, de um só todo

orgânico (MARX, 2011, p. 53). Uma região negativa se estabelece entre as

esferas da circulação e da produção de mercadorias e é nela que terá origem a

mais-valia.

Ao final da Seção II e início da seção III do primeiro volume d´O Capital,

Marx abandona a superfície confusa da esfera da circulação para entrar

diretamente na essência da produção. A fábrica, contrariamente ao ruidoso,

irracional e caótico mundo do mercado, surge silenciosamente organizada sob as

ordens de seu dono capitalista. Técnica racional, planejamento estrutural e ciência

são colocados a serviço de uma produção que distribui, metodicamente, o trabalho

em cada espaço fabril. Os proprietários privados de mercadorias que se

encontravam na circulação simples visando à troca de produtos agora se

confrontam sob a forma de possuidores de bens distintos: dinheiro e força de

trabalho. Retirar o véu da igualdade, da propriedade e da liberdade aparentemente

existentes entre eles é possibilitar o desvendamento da mais-valia oculta sob os

ideais burgueses presentes na sociedade capitalista.

O capitalista precisará comprar, no mercado, uma mercadoria especial

que crie valor quando, depois de submetida aos ditames de sua produção, retorne

sob a forma de mercadoria à esfera da circulação para que seja vendida. Presente

no mercado, exposta à venda por seu possuidor, a única mercadoria que possui

essa característica especial de criar valor é a força de trabalho humana.

Desdobrando-se, na complexidade, a segunda fórmula (D – M – D´) teremos todo

o processo, da circulação inicial, passando pela produção, com o retorno à

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circulação:

Sendo:

D = Dinheiro

FT = Força de Trabalho

MP = Meios de Produção

P = Produção

M = Mercadoria

M´ = Mercadoria valorizada

C= Consumo

D´= Valor valorizado

Livres proprietários de mercadorias diversas, o possuidor do dinheiro e

o possuidor da força de trabalho encontram-se para concretizarem o intercâmbio

como “pessoas juridicamente iguais” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a,

p. 139). A liberdade como condição de existência da troca pressupõe, igualmente,

que o vendedor da força de trabalho o faça por determinado tempo, caso

contrário, se vendê-la de uma vez e inteiramente, estará vendendo a si mesmo

como escravo, propriedade (mercadoria exclusiva, instrumento de trabalho) de seu

comprador. Ele é livre para vender, durante um prazo temporal, suas capacidades

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físicas e mentais expressas em sua corporalidade ao produzir mercadorias para

outrem.

Essas capacidades laborativas são compradas pelo capitalista, e, por

isso, possuem um valor de uso; ao mesmo tempo, são vendidas pelo trabalhador,

e aqui, possuem um valor de troca. Por isso, a liberdade formal é requisito

essencial para que a relação de troca se estabeleça, ou seja, não pode haver no

trabalhador livre nenhum valor em si – como sói acontecer na escravidão em que

o escravo tem um valor de troca, é coisa, res, mercadoria e não sujeito. Para que

possa alienar sua força de trabalho (a única mercadoria que possui) a ausência do

valor e sua desvalorização são pressupostos inafastáveis da sua constituição –

também formal – como pessoa liberta e autônoma. (MARX, 2011, p. 227).

A cadeia de dependência existente sob o regime feudal na qual o

trabalhador é tido como mais um instrumento da produção, acessório da

propriedade fundiária pertencente ao senhor, restringe a disposição do servo da

gleba sobre sua força de trabalho, impedindo o ato de compra e venda. O

rompimento com estas relações de servidão nas quais a determinabilidade dos

indivíduos baseava-se predominantemente em uma dependência pessoal

(relações consanguíneas, entre membros de uma casta, de suserano e vassalo,

senhor e servo.) como resultado do desenvolvimento social do sistema de trocas

proporciona a aparência de liberdade e autonomia dos sujeitos que dele

participam. Ambos devem se deparar, no mercado, como pessoas livres e

autônomas; trocadores que se reconhecem como proprietários de mercadorias

diversas, independentes e iguais. Abstraídas e naturalizadas as condições de

existência sob as quais eles entram em contato, essa determinabilidade, que

antes aparecia como uma limitação pela conexão pessoal, se mostra agora como

simples restrição da coisa, descolada dos indivíduos que, inclusive, poderiam,

livremente, superá-la.28 Um segundo tipo de liberdade surge ainda como condição

28

Aprofundando-se para além da aparência destas relações, Marx (nos Grundrisse, 2011, p. 111) conclui que, na qualidade individual, a superação das condições dadas é impossível sem que elas sejam totalmente abolidas por uma classe inteira. Ainda que, eventualmente, um indivíduo consiga

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essencial à troca destas duas mercadorias: a liberdade de propriedade. O

capitalista deve ser livre para possuir o capital, o dinheiro, a mercadoria para a

troca e os objetos que a produzem, em contraposição à força de trabalho como

mercadoria específica do trabalhador (“A existência do capital perante o trabalho

exige que o capital para si, o capitalista, possa existir e viver como não

trabalhador” e “Se o capital também tivesse de trabalhar para viver, ele se

conservaria não como capital, mas como trabalho” (MARX, 2011, p. 249; 254,

grifos do autor). Este, por sua vez, não deve ser proprietário de nenhuma outra

mercadoria que não sua força de trabalho, nem dos meios e instrumentos

necessários à sua produção, pois, se assim o fosse, não ofereceria sua força de

trabalho à venda, mas a usaria ele próprio na fabricação de outras mercadorias

com as quais poderia realizar a troca. Deve se ver livre da propriedade dos meios

e instrumentos de produção. Essa liberdade não é dada por natureza, mas como

resultado concreto do desenvolvimento histórico e base estrutural sob a qual se

ergue o modo de produção capitalista.

2.5 - A ASSIM CHAMADA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA

No capítulo XXIV de O Capital (MARX & ENGELS, 1985b, p. 261-294),

entendendo a assim chamada acumulação primitiva, inicialmente, como ponto de

partida (e não resultado) da acumulação necessária à existência do modo de

produção capitalista, Marx utiliza-se do conceito presente em Adam Smith para

depois, criticamente, superá-lo. A relação dialética anteriormente estabelecida

entre capital e trabalho é aqui retomada em sua historicidade, sem que, no

entanto, a ela se reduza.

A transformação de dinheiro, mercadoria, meios de produção e

subsistência em capital é processo que pressupõe a existência de relação entre

romper as barreiras da classe a que pertence, a massa dos indivíduos dominados por essas relações não o pode fazer sem que sejam destruídas desde o seu fundamento. Ademais, estas relações de dependência pessoal não teriam sido abolidas pelas relações coisais, mas, tão-somente, sido resolvidas ao tomarem a forma universal como seu fundamento.

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dois distintos possuidores de mercadorias: aquele que possui o dinheiro, os meios

de produção e de subsistência e aquele que possui sua força de trabalho; ou

proprietários dos meios de produção e trabalhadores assalariados. A violenta

separação do trabalhador dos meios sociais de sua subsistência e sua

consequente concentração em poucas mãos, transformando os primeiros em

trabalhadores assalariados e a última em capital, constitui a base sob a qual se

funda e se reproduz o modo de produção capitalista: “A violência é a parteira de

toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência

econômica” (O Capital, vol. II, MARX & ENGELS, 1985b, p. 286).

Advinda da estrutura econômica e de exploração do feudalismo, a

alienação do produtor de seus meios de produção somente pode se efetuar por

meio de um longo e violento processo expropriatório no qual a base fundiária que

mantinha o servo em sua gleba é desfeita e seus meios de subsistência lhe são

roubados. Tal processo histórico, entendido como a pré-história do capital, é

designado, inicialmente por Adam Smith e depois de modo sarcástico por Marx,

como acumulação primitiva, servindo tanto à concentração do capital como à

criação do proletariado a nível mundial.

Ao eleger como exemplo a Inglaterra dos séculos XV e XVI, Marx busca

apresentar as diversas formas pelas quais se dá a acumulação primitiva como

alicerce estrutural de todo o sistema em sua configuração clássica. Dissolvidos os

grandes feudos e suas relações sociais e econômicas, os servos, expulsos de

suas terras, acabam como uma massa proletária urbana destituída dos seus

meios de produção.

Em meio à revolução agrícola, as pastagens de ovelhas e, depois, as

florestas de caça invadem as terras expropriadas. Vilas e aldeias são destruídas,

instrumentos de trabalho desapropriados, bens do Estado e da Igreja (Reforma)

roubados, doados ou vendidos ilegalmente. A pauperização imediata de grande

parte da população passa a ser combatida com duras leis penais que visam criar

trabalhos forçados e mão-de-obra semiescrava para as indústrias nascentes.

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Aliam-se aristocracia fundiária, burguesia capitalista manufatureira e financeira em

defesa de seus próprios interesses.

O roubo das terras comunais pelos cercamentos é determinado não

apenas pelos atos violentos dos grandes arrendatários, mas passa a deter a

chancela estatal, legalmente, no século XVIII sob a forma das Bills for Inclosures

of Commons, transformando-os em proprietários privados de bens comuns e

tomando o lugar dos senhores feudais. Impedindo ampla e sistematicamente os

trabalhadores de habitarem e lavrarem o solo, por meio do denominado

Clareamento das Propriedades, completa-se a usurpação dos camponeses de sua

base fundiária, lançando-os às fábricas:

O roubo dos bens da Igreja, a fraudulenta alienação dos domínios do Estado, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpadora e executada com terrorismo inescrupuloso da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos de acumulação primitiva. Eles conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram a base fundiária ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado livre como os pássaros. (O Capital, vol. II, MARX & ENGELS, 1985b, p. 275).

Desde o século XIV, com o surgimento da classe dos trabalhadores

assalariados, inúmeros regulamentos para sua exploração já se encontravam em

vigor. Da proibição de se pagarem salários mais altos que o máximo estabelecido

em tarifas legais ao impedimento da coalizão de operários considerada como

crime grave, o Estado buscava forçar ainda mais a subordinação do trabalho ao

capital. Com a regulação das fábricas pelas normas privadas do proprietário, o

papel estatal torna-se, em sua maior parte, supérfluo, restando-lhe, no entanto, a

penalização da associação dos operários, como, por exemplo, a legislação criada

logo no início da Revolução Francesa que estabelecia, no decreto de 14 de junho

de 1791, a multa de 500 libras além da privação dos direitos de cidadão por um

ano para aqueles que participassem de ligas de trabalhadores.

Naturalizadas pela classe trabalhadora por meio de um processo

ideológico que tem por fundamento a violência estrutural aliada ao costume e às

tradições, as leis exploratórias que organizam e mantém as condições de trabalho

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da produção capitalista buscam impedir qualquer forma de resistência. A violência

direta que fornece a gênese histórica do sistema, ainda que plenamente existente,

vai, pouco a pouco, cedendo lugar à violência exercida pela “[...] muda coação das

condições econômicas” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 277).

Mantendo os salários adequados à valorização do capital pelo aumento da

população submetida à lei da oferta e procura de trabalho, garante-se, de modo

“limpo”, a dependência do trabalhador ao proprietário capitalista e a consequente

exploração capitalista sobre o trabalhador (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS,

1985a, p. 298). As leis naturais da produção asseguram ao capital a expropriação

adequada da mais-valia ao mesmo tempo em que mantém a classe trabalhadora

longe da propriedade dos meios produtivos.

A legislação dos séculos XV e XVI é criada, assim, de modo a se

criminalizar a massa de despossuídos expulsos pela expropriação de suas terras.

Encarceramento, açoite, escravização e até mesmo a pena capital são aplicados

indiscriminadamente e em escala colossal. Mendigos, vagabundos, assaltantes e

pobres de toda sorte, homens, mulheres, velhos e crianças, são levados a

julgamento tão rápido quanto foram obrigados a migrar para as cidades. Impondo

a disciplina necessária ao novo sistema de trabalho e produção e tentando impedir

resistências e revoltas, tais leis, por mais terror que encerrem, são naturalizadas à

custa de torturas e mortes, contribuindo para a organização e consolidação do

novo modo de produção.

2.6 - FORMAÇÃO DAS DUAS PRINCIPAIS CLASSES EM LUTA

O reflexo das expulsões do camponeses de suas terras é sentido nas

fábricas com o aumento da produção e do trabalho e na concentração dos meios

de subsistência em elementos materiais para o capital industrial. Como resultado

imediato tem-se a destruição da indústria subsidiária rural e a separação

estabelecida entre a manufatura e a agricultura, gerando a tal ponto uma coesão

interna do sistema imprescindível à sua manutenção e reprodução ampliada.

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Libertam-se, deste modo, as forças produtivas que se encontravam estagnadas

sob o regime feudal.

A revolução agrícola do final do século XV, aliada à usurpação fundiária

comunal, faz com que duas classes aflorem em uma relação dialética na qual, ao

mesmo tempo em que empobrece o camponês, destituindo-lhe de seus meios de

produção, enriquece o capitalista usurpador. Empregando trabalhadores

assalariados e pagando parte de seu arrendamento ao dono das terras em

dinheiro ou in natura, o arrendatário capitalista surge valorizando seu próprio

capital.

No século XVI, com o decréscimo no valor dos metais preciosos e do

dinheiro, diminuem-se os salários e o valor pago pela renda da terra ao mesmo

tempo em que são elevados os preços dos produtos agrícolas, resultando em um

enriquecimento ainda maior deste capitalista à custa da miséria do trabalhador

assalariado do campo. Os alimentos necessários à subsistência e anteriormente

cultivados e consumidos pelos próprios camponeses, com a expropriação de suas

terras e migração para as cidades, ausentes as condições de produção, são

transmutados em mercadorias, tornando-os meros consumidores daquilo que

outrora produziam. A criação de um mercado consumidor se dá, então, em

conjunto com a criação do operariado fabril: de trabalhadores a assalariados (“O

camponês despojado tem de adquirir o valor deles de seu novo senhor, o

capitalista industrial, sob a forma de salário” (O Capital, vol. II, MARX & ENGELS,

1985b, p. 282).

Com o fim do feudalismo, a antiga divisão entre campo e cidade se

estabelece de modo mais contundente. O forçado êxodo rural, em decorrência dos

cercamentos das terras comunais e da expropriação dos meios e instrumentos de

produção e sobrevivência dos trabalhadores, suscita um aumento populacional

urbano inédito. A maioria dos servos fugidos da gleba é incorporada,

individualmente, aos ofícios já existentes, submetendo-se, agora como plebe

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desorganizada, às ordens dos mestres das corporações e ao regime do soldo

diário e, com isso, diferindo-se dos artesãos e aprendizes em suas relações.

A divisão do trabalho ocorre entre estas corporações de modo ainda

primitivo, com o trabalhador realizando diversas funções referentes a um mesmo

ofício especializado, ocupando-se apenas de seu trabalho e reconhecendo-se, em

parte, nele. Da mesma forma, o capital nas cidades resume-se às moradias,

ferramentas e parca clientela frente às restritas relações comerciais,

apresentando-se como um capital natural-primitivo, estamental, “diretamente

ligado ao trabalho determinado e concreto do proprietário e inseparável dele”

(MARX & ENGELS, 2007, p. 78).

Apartados processo produtivo e processo de intercâmbio, com a

formação da classe dos comerciantes, sobrevém uma nova divisão do trabalho. O

localismo destes processos antes limitado às cidades é dissolvido pela expansão

das trocas gerando a concorrência entre os diferentes capitalistas e uma ampla

interação entre produção e circulação, levando cada um deles a explorar um ramo

produtivo. A manufatura se instaura tomando o lugar das corporações.

Os antigos servos, vassalos, cavaleiros e vagabundos, todos sem

posses, são incorporados ao processo de trabalho assalariado e compõem a

população das cidades. A relação patriarcal existente entre mestres e artesãos é

subsumida pela relação monetária entre trabalhador e proprietário das empresas

manufatureiras. O capital se subdivide: o estamental é concentrado por estes

proprietários enquanto a outra parte se acumula na classe dos comerciantes,

como capital móvel.

Contando com um mesmo inimigo externo na Idade Medieval – a

nobreza feudal –, ampliado o contato dos indivíduos de cidades diversas pelo

desenvolvimento do comércio, unem-se os interesses dos mais diversos

capitalistas em um tipo de reconhecimento mútuo. Da união destas condições de

produção e intercâmbio, oposições frente ao feudalismo e interesses idênticos,

paulatinamente nasce a classe burguesa.

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A nova divisão do trabalho que, a princípio, chega a decompor a

burguesia em várias frações, no final do processo colabora para sua reunião, ao

absorver diversos proprietários e capitais sob uma mesma e única classe. No

entanto, essa reunião de capitais como tendência à centralização típica do sistema

não perdura por muito tempo. Por se tratar de um processo relacional dinâmico e

contraditório, o mesmo movimento que levaria à fusão de todos os capitais

individuais em um único e gigantesco capital, extinguindo suas diferenças,

eliminaria também a própria classe trabalhadora, i.e., eliminando sua própria força

geradora, se autoextinguiria. Para que se mantenha e se reproduza de modo

ampliado, o capital, ainda que se unifique, só pode existir na realidade por meio

desta tendência à fragmentação como pluralidade de capitais individuais,

autônomos, independentes e concorrentes entre si: “A antítese entre o capitalista

individual e a classe capitalista, por isso, está no fundamento do conceito do

capital. As determinações opostas do capitalista individual e da classe capitalista

são, assim, determinações imanentes ao capital” (BENOIT & ANTUNES, 2009, p.

163).

Concentrados também os diversos ramos de trabalho – e,

consequentemente, os estamentos ideológicos (MARX & ENGELS, 2007, p. 79 –

nota 56) – nas mãos da burguesia, o restante da sociedade composta por

indivíduos despossuídos formará a classe trabalhadora, em oposição direta ao

capital. Assim como o capital só “[...] existe e só pode existir como muitos capitais

[...]” (MARX, 2011, p. 338), também o trabalho só poderá existir enquanto

totalidade, reunião dos diversos trabalhos singulares.

Será no processo de produção do capital, contudo, que estes trabalhos

fragmentados serão combinados (e não por meio de uma decisão dos

trabalhadores como se autônomos e livres fossem), aparecendo como um mesmo

e único trabalho independente de seus produtores, resultado direto do capital.

Uma vez mais não há reconhecimento, mas negação de trabalho e produto.

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[...] como o trabalho do trabalhador particular, singularizado. [...] [este trabalho] é posto simultânea e imediatamente como algo distinto do trabalho singular efetivamente existente - como objetividade alheia (propriedade alheia), bem como subjetividade alheia (a subjetividade do capital). (...) Por seu lado, o capital aparece consequentemente como o sujeito dominante e proprietário do trabalho alheio, e sua própria relação é uma relação de uma contradição tão completa quanto a relação do trabalho assalariado”. (MARX, 2011, p. 387, grifos do autor).

A despersonalização das duas principais classes no sistema capitalista

obedece à mesma lógica e se constitui em mais um ardil ideológico que,

metafisicamente, visa encobrir a exploração do trabalhador. Tanto capital como

trabalho aparecem, então, como entes independentes cuja materialidade se

autonomiza frente aos indivíduos e passam a determinar diretamente sua

condição. A relação que encerram é apagada frente à força que adquirem na

qualidade de coisas.

Aparecendo por isso como meras abstrações, capital em geral e

trabalho em geral suplantam suas respectivas particularidades e, em razão de

suas determinações em comum, combinam-se numa totalidade concreta que

configura o próprio sistema (MARX, 2011, p. 369; 387). Essa aparência de mera

abstração, contudo, é assumida pela consciência destituída de sua materialidade,

resultando em uma ocultação das classes que compõem o modo de produção

capitalista.

Uma vez mais a reificação e a despersonalização, duas faces de uma

mesma moeda, se inserem no processo e invertem a realidade na consciência –

tanto dos teóricos burgueses da economia política clássica, quanto dos socialistas,

utópicos, ou não. Ocultados capitalistas e trabalhadores, ocultam-se, em igual

medida, suas relações. A ideologia que nega a existência de exploradores e

explorados nega também a história e as violentas relações sociais que os criam,

mantêm e reproduzem em escala sempre crescente. Dissolvida a realidade

concreta em abstrações idealizadas, impede-se à classe trabalhadora como um

todo superar sua condição enquanto classe em si e para si.

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Por conseguinte, com o advento do capitalismo como modo de

produção global são desnaturalizadas as antigas relações entre as diferentes

classes das sociedades anteriores, reduzindo-as ao mero contato pelo dinheiro.

Aniquiladas as peculiaridades existentes em cada nação, as relações sociais se

igualam em toda a parte. Tornando estranhamente insuportável a relação do

trabalhador apátrida com o trabalho e estranhamente confortável aquelas

existentes entre as clássicas burguesias nacionais e seus meios de produção, o

novo sistema oculta a real condição de classe sob a qual se encontra cada

indivíduo. A luta de classes se desenvolve conjugada ao desenvolvimento do

capital industrial, transformando-se, nos séculos XIX e XX, em capital financeiro e,

ainda mais acirrada, também se universaliza.

O avanço das forças de produção, comércio, divisão do trabalho,

propriedade privada e (concentração de) capital se acelera com o período das

grandes navegações, o domínio colonial e as novas invenções científicas. O

século XVIII experimenta, com a reunião do comércio e da manufatura na

Inglaterra, o surgimento da grande indústria. A revolução francesa, aliada às

revoluções inglesas de 1640 e 1688, abre o caminho para a livre concorrência e, a

despeito das barreiras alfandegárias existentes, gera o moderno mercado mundial

onde todo o capital é centralizado em capital industrial. Bancos, sistema

monetário, meios de comunicação, papel-moeda, dívida pública, especulações,

são elementos deste processo que transforma todas as relações de modo

universal. A grande indústria disseminada por todo o globo:

[...] Destruiu, onde foi possível, a ideologia, a religião, a moral, etc. e, onde logrou fazê-lo, transformou-as em uma mentira palpável. Criou pela primeira vez a história universal, fazendo com que toda nação civilizada e todo indivíduo, dentro dela, dependessem do mundo inteiro para a satisfação de suas necessidades [...]. (MARX & ENGELS, 2007, p. 87, grifos nossos).

A universalização da grande indústria significa a universalização de

seus elementos e, portanto, de suas estruturas fundamentais. Com ela são

destruídas as antigas formas produtivas artesanais e manufatureiras e são criadas

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as grandes cidades industriais e comerciais modernas que ganham predomínio

sobre o campo. A ciência colocada a serviço deste capital industrial engendra

novas forças de produção, desfazendo a aparência natural da divisão do trabalho.

[...] Tão logo porém os povos, cuja produção se move ainda nas formas inferiores de trabalho escravo, corveia, etc. são arrastados a um mercado mundial, dominado pelo modo de produção capitalista, o qual desenvolve a venda de seus produtos no exterior como interesse preponderante, os horrores bárbaros da escravatura, da servidão, etc. são coroados com o horror civilizado do sobretrabalho. [...]. (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 191, grifo nosso).

Proveniente da destruição da estrutura econômica do feudalismo, a

estrutura econômica capitalista permite um desenvolvimento social até então

inédito. Incorporando e desenvolvendo as forças produtivas existentes sob o

regime feudal, a burguesia capitalista supera – ainda que não inteiramente, dado o

caráter dialético do movimento histórico que preserva, no novo, traços das partes

superadas – as antigas formas de relações econômicas, os velhos antagonismos

entre classes (nobreza, clero, servos) e as tradicionais ordens institucionais.

Inserindo novos elementos, a ampliação e o domínio deste modo de

produção se efetivam a tal ponto que alcançam, geográfica, cultural e

historicamente, a totalidade das relações sociais.29 Transformando os meios de

29

De acordo com Marcuse, a relação dialética estabelecida por Hegel entre negatividade e progresso contribui para refutar um determinismo positivista nas categorias históricas com as quais se pretende explicar o movimento do espírito em seu desenvolvimento total. Afirma ele que o “poder destrutivo do tempo” (2004, p. 195) fornece à história sua carga de negatividade ao transformar e negar uma fase presente em uma outra por vir. A alternância entre etapas de progresso e retrocesso, pertencendo à essência mesma da dialética histórica, além de recusar uma linearidade ou continuidade etapística, abre inúmeras possibilidades permitindo às forças negativas reais a ocupação do primeiro plano, empurrando, progressivamente, a história para sua fase seguinte. Este progresso em direção à autoconsciência da liberdade depende da volição e da ação consciente do homem que busca apreender e concretizar a razão na realidade. A exclusão de um possível determinismo é feita, assim, por meio do próprio conceito de homem livre, pois só é livre aquele que conhece e age com liberdade, sendo ela uma característica intrínseca e fator determinante de seus atos. Ao considerar essa mesma questão em Marx, Marcuse afirma que o caráter negativo de um fenômeno não impede que o mesmo fenômeno progrida. O progresso técnico-científico alcançado pelo modo capitalista de produção e a denominada racionalidade instrumental com a qual se atingiu o aumento da produtividade e de “capacidades humanas até então desconhecidas” (2004, p. 244) são fatos que demonstram o avanço de qualidades positivas dentro de um contexto maior de negatividade. Ainda que se admita ter se progredido em um domínio da razão mais amplo sobre a natureza e sobre os próprios homens, não há que se excluir

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subsistência e produção em capital, a terra em artigo de comércio, o camponês

em proletário urbano, o capitalismo modifica estruturalmente as sociedades por

todo o mundo e suas relações essenciais. A expansão marítima, o sistema

colonial, a criação dos mercados interno e externo, a grande indústria, o avanço

tecnológico, a mecanização, o Estado moderno, o sistema financeiro mundial, que

alargam a base da acumulação primitiva do capital, são métodos criados visando

sua crescente e ininterrupta acumulação.

Tal alargamento cria, historicamente, tipos capitalistas que acabam por

se afastar do processo produtivo direto representado pela grande indústria. É o

caso, por exemplo, do denominado capital financeiro ou monetário. De acordo

com Virgínia Fontes: “O capitalista monetário – ou o capital monetário, em sua

forma social – é o detentor das propriedades das condições (ou recursos) sociais

de produção, podendo ser ou não o proprietário imediato dos meios de produção.”

(FONTES, 2013, p. 2). Ambos, capital monetário e capital produtivo, no entanto,

ainda que aparentemente descolados encontram-se, na realidade, profundamente

conectados. Por meio de uma relação de interdependência dialética cujo resultado

é expresso pela crescente extração (direta ou indireta) de mais-valia amplia-se

constantemente a concentração e centralização de capital até que se abranja a

totalidade da vida social30:

[...] Vale lembrar, pois, que o rendimento do capital monetário deriva, fundamentalmente, de uma parcela da mais-valia extraída. Resulta da generalização da exploração da força de trabalho assalariada, depende dela, e, portanto, a cada dia precisa inventar novas formas de fazê-lo. (FONTES, 2013, p.4)

Dado que “[...] todo capital – qualquer que seja – é sempre parasitário,

isto é, sobrevive da exploração da força de trabalho previamente expropriada [...]”

a negação do homem na sociedade de classes à qual pertence. Enquanto esta consistir na forma adotada para a produção dos meios de vida, o progresso se restringirá ao tecnicismo, sendo inversamente proporcional ao progresso da liberdade e felicidade humanas. De acordo com Marcuse: “[...] Aqui, mais uma vez, a filosofia de Hegel estivera certa: o progresso da razão não significa o progresso da felicidade” (2004, p. 244, nota 46). 30

Para um maior aprofundamento acerca das íntimas relações entre estes tipos capitalistas ver

LENIN, V.I., O imperialismo fase superior do capitalismo (2010), em especial os capítulos II e III.

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(FONTES, 2013, p. 2, grifo nosso) a pluralidade de capitais configura, ao final, um

único e mesmo processo. O modo de produção capitalista ao diversificar as

formas específicas de extração de mais-valor, generaliza, em conteúdo, sua

própria lógica exploratória.

O impulso positivo que desenvolve e altera completamente a própria

sociedade só pode ser considerado, entretanto, quando cotejado com o quadro

geral de negatividade que o gera e impede a liberação de novas forças produtivas.

O desenvolvimento das forças produtivas é nada mais que o resultado concreto do

desenvolvimento e do antagonismo entre as classes que compõem o novo modo

de produção:

[...] Dia após dia, torna-se assim mais claro que as relações de produção nas quais a burguesia se move não têm um caráter uno, simples, mas um caráter dúplice; nas mesmas relações em que se produz a riqueza, também se produz a miséria; que, nas mesmas relações em que há desenvolvimento das forças produtivas, há uma força produtora de repressão; que essas relações só produzem a riqueza burguesa, ou seja: a riqueza da classe burguesa, destruindo continuamente a riqueza dos membros integrantes dessa classe e produzindo um proletariado sempre crescente. (MARX, 2009, p. 138-9).

31

A unidade dialética entre os dois polos, capital e trabalho, somente se

complementa a partir do momento em que se desvelam as reais contradições

existentes por detrás da aparente harmonia do sistema. A luta de classes, a

oposição entre capitalistas e trabalhadores considerados coletivamente, e,

consequentemente, a exploração de um pelo outro em razão da separação

histórica entre produtores e meios de produção que caracteriza a pré-história do

sistema capitalista (acumulação primitiva ou primeira ou originária) estabelecem e

intensificam de modo ainda mais contundente esta negação.

Tal sistema produtivo, portanto, ao mesmo tempo em que liberta o

produtor direto de sua condição de servidão, tornando-o livre como os pássaros,

31

Ainda que na Miséria da Filosofia (2009) Marx não tenha conceituado decididamente a contradição essencial do modo de produção capitalista – aquela entre a classe capitalista e a classe trabalhadora – aqui (p. 75; 138-139), ao refutar Proudhon, ele já possui, em germe, a luta de classes como motor da história que será suficientemente analisada n´O Capital.

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escraviza-o como trabalhador assalariado sob as vestes do proprietário dos meios

de produção. A servidão do trabalhador submetido ao senhor feudal dá início ao

processo que desembocará no desenvolvimento do sistema capitalista e no feitio

da exploração particular que o constitui. A modificação histórica na forma de

sujeição que tem por alicerce a expropriação fundiária com a separação violenta

de trabalhador e meios de produção gera e intensifica uma divisão social do

trabalho que segue se complexificando e se reproduzindo em escala crescente.

Dialeticamente, a mesma divisão social do trabalho inaugurada com a instituição

do modo capitalista de produção torna ainda mais incisiva a violência da

separação inicial e a concentração da propriedade privada, i.e., o acirramento da

própria luta de classes.

2.7 - DIVISÃO DO TRABALHO E PROPRIEDADE

Negando o idealismo hegeliano, Marx reinsere o tema sob suas bases

reais e elabora sua teorização sobre a divisão social do trabalho.

Concomitantemente, destrói, ainda, o alicerce da propriedade privada exposto no

materialismo vulgarizado da economia clássica. Esse duplo movimento de

construção teórica e desconstrução de duas teorias também opostas

(materialismo vulgar e idealismo) expõe a dialética criada como o único método

capaz de realizá-lo, por meio da superação concreta das condições de exploração

a que foi submetida, historicamente, a classe trabalhadora.

Na obra Miséria da Filosofia (MARX, 2009, p. 270), em seu capítulo 2,

denominado A metafísica da Economia Política, ao tratar da propriedade

burguesa, o autor afirma que, para defini-la, é necessário, tão-somente, expor

suas relações sociais. Por isso: “Pretender dar uma definição da propriedade

como uma relação independente, uma categoria à parte, uma ideia abstrata e

universal – isso não pode ser mais que uma ilusão de metafísica ou de

jurisprudência”. (id., ibid., p. 170).

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Da mesma maneira, definir a divisão social do trabalho por meio de

conceitos idealizados tais como talentos naturais, aprimoramento da produção, do

produto (valor de uso) e do produtor, aumento da quantidade e qualidade das

mercadorias produzidas, progresso técnico, é ocultar, por completo, suas reais

determinações sob o manto acrítico de abstrações puramente formais. Por

conseguinte, para se desvelar o caráter ideológico assumido neste tipo de posição

metafísica que engloba tanto o dito materialismo vulgar quanto o idealismo em

suas várias vertentes é preciso considerar as formas pelas quais os indivíduos

constituem concretamente suas relações sociais e determinam seus modos de

vida, revelando o processo de produção como base das próprias relações

materiais. Apresentar o desenvolvimento histórico que as transforma

substancialmente torna-se igualmente imprescindível para se desconstruir as

concepções segundo as quais propriedade privada e divisão social do trabalho

são consideradas formas naturais, imutáveis e desde sempre existentes.

“Divisão do trabalho e propriedade privada são termos idênticos – um

deles diz, referido à atividade, o mesmo que o outro diz referido ao produto dela”

(MARX & ENGELS, 2007, p. 55). O desenvolvimento histórico da divisão do

trabalho segue, portanto, pari passu, o desenvolvimento das diferentes formas de

propriedade, determinando as relações dos indivíduos entre si por meio da

distribuição quantitativa e qualitativa e de sua desigualdade como resultado

concreto da transformação sofrida historicamente.

Baseando-se puramente em elementos fisiológicos, a primeira divisão

do trabalho é estabelecida naturalmente em razão das características qualitativas

distintivas de cada membro tribal. Assim, a força física, a idade, a rapidez, a visão

privilegiada, se colocam como elementos fundamentais para a sobrevivência das

pessoas. O desenvolvimento de novos modos de associação resultando na família

monogâmica expõe aquela que é considerada a primeira forma de exploração por

meio da divisão do trabalho: a disposição, pelo homem, do trabalho realizado pela

mulher e pelos filhos. A distribuição desigual dos produtos destes trabalhos como

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resultado da divisão quantitativa e qualitativa exibe a forma latente de escravidão

familiar como primeira forma de propriedade privada. (MARX & ENGELS, 2007, p.

55).32

Criadas as famílias que constituem as sociedades, o contato entre elas

e sua respectiva oposição geram, progressivamente, a permuta de produtos até o

ponto em que, pela frequência da troca, a produção passa a se voltar quase que

exclusivamente para o intercâmbio e os objetos produzidos se transformam em

mercadorias. Uma vez mais, portanto, a mercadoria surge como categoria

essencial para se compreender o modo capitalista de produção.

Ao relacionar as diferentes esferas produtivas, a troca de mercadorias

as modifica. A exigência do aumento na quantidade a ser produzida (não mais o

valor de uso interno, mas o valor para a troca exterior) faz com que ramos

produtivos anteriormente independentes e autônomos conjuguem-se em uma só

produção social, repartindo, ao mesmo tempo, fases que pertenciam a um mesmo

e único ofício. O impulso principal que transmuta a divisão fisiológica e sexual em

divisão social do trabalho é dado, assim, pelo intercâmbio de produtos, invertendo

todo o processo: “Em um caso é a dependetização do que era autônomo, no outro

a autonomização dos antes dependentes.” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS,

1985a, p. 277).

De tal modo, a parca divisão natural do trabalho com o regime

incipiente da escravidão familiar existente nas tribos antigas, bem como seu

produto (a propriedade tribal), ampliado o intercâmbio pelas guerras e pelo

comércio, segue sofrendo alterações até que se constitua a denominada

propriedade estatal ou comunitária da Antiguidade e a propriedade privada

32

Essa divisão sexual que estende seus tentáculos até a atualidade, ainda que não tenha sido

investigada minuciosamente por Marx, dispõe de vasta bibliografia: O segundo sexo, vol. 2: A

experiência vivida, de Simone de Beauvoir (1980), é uma excelente obra acerca do tema. Friedrich

Engels (2010), em A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, também contribui

para o início e aprofundamento na questão ao analisar as diferentes maneiras de organização

social experimentadas pela humanidade que servem de base histórica ao modo de produção

capitalista.

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103

(subordinada, ainda, à comunitária). Unificadas as tribos nas cidades, essa

segunda forma de propriedade privada comunitária e divisão do trabalho que têm

por base a escravidão já possui, consequentemente, o antagonismo entre classes

plenamente desenvolvido. Cidadãos-proprietários e escravos-propriedade

confrontam-se em uma relação de tamanha interdependência que, com a

necessidade de liberar as forças produtivas, extingue-se a própria estrutura social,

derivando na propriedade privada imóvel particular. A compleição do mundo antigo

apresenta, ademais, em sua origem, aquela que será a maior divisão entre os

trabalhos físico e intelectual: a separação entre campo e cidade.

Concentrada e expandida a propriedade privada romana, enfraquecida

a quantidade populacional, destruída a velha civilização e suas forças de

produção, interrompido o amplo comércio entre as diversas cidades e difundida a

agricultura como meio de sobrevivência, instaura-se a propriedade

feudal/estamental. Tendo por base o campo contrapondo-se às cidades, esta

terceira forma de propriedade se revela como propriedade privada da terra e

coloca como estamentos antagônicos basilares senhores e servos. O trabalho dos

pequenos camponeses despossuídos de bens imóveis (por mais que não se

configure propriamente como uma forma de divisão social) opõe-se diretamente à

nobreza proprietária ociosa que o explora para manter seus privilégios. Esta

repartição estamentária se consolida nos feudos que, agrupando territórios,

formam reinos cujos representantes são constituídos pela monarquia oficial.

O sistema capitalista que principia concentra a propriedade privada nas

mãos da burguesia ao passo que às massas pauperizadas resta a venda da única

coisa que possuem: sua força de trabalho. Pela primeira vez na história a

população é separada em duas grandes classes sociais pelo critério da divisão

social do trabalho e da exclusiva propriedade privada dos meios e instrumentos de

produção. A primeira grande divisão do trabalho ocorre, contudo, com a separação

campo-cidade estabelecida pelo fim do feudalismo e na consolidação do modo

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capitalista de produção. O antagonismo radical entre os meios de vida rural e

urbano só se torna possível graças à instituição da propriedade privada:

Ela é a expressão mais crassa da submissão do indivíduo à divisão do trabalho, a uma determinada atividade que lhe é imposta, submissão que transforma alguns em limitados animais urbanos e outros em limitados animais rústicos, reproduzindo diariamente esta oposição de interesses. (MARX & ENGELS, 2007, p. 75-76).

O êxodo rural que se seguiu à expropriação dos meios de trabalho dos

servos provoca o surgimento da vida urbana em oposição direta à vida no campo.

Novas relações de produção são estabelecidas e altera-se, profundamente, a

organização social e política das comunidades. O movimento do capital mantém,

assim, em constante transformação as sociedades e ele submetidas. A divisão

social do trabalho sendo ao mesmo tempo resultado violento da imposição do

modo capitalista de produção e condição para sua reprodução ampliada segue se

concretizando em escala crescente ao desenvolver novos ramos produtivos e

negando, ainda mais incisivamente, à classe trabalhadora, o acesso aos meios de

produção.

2.7.1 - COOPERAÇÃO, MANUFATURA E MECANIZAÇÃO

Liberados os séquitos dos senhores feudais nos séculos XV e XVI, uma

imensa massa de despossuídos passa a ser criminalizada por leis contra a

vadiagem, restando-lhes, para escapar das penalidades, submeterem-se às

terríveis condições do trabalho assalariado. Expulsos do campo em um inédito

êxodo rural, os trabalhadores chegam às cidades e encontram, primeiro nas

corporações de ofício, e depois na indústria manufatureira nascente a única

solução para a situação miserável a eles infligida.

A cooperação, compreendida como “A forma de trabalho em que muitos

trabalham planejadamente lado a lado e conjuntamente, no mesmo processo de

produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos” (O Capital, vol.

I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 259), ainda que existente nas variadas formas de

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trabalho social (das tribos antigas à Microsoft Corporation), apenas sob o

capitalismo adquire um feitio histórico original. Servidão e escravidão presentes na

antiguidade, no modo de produção asiático e nas colônias modernas, tradições

tribais dos povos caçadores ou nas castas indianas, apresentam trabalhos

realizados por indivíduos em cooperação simples, cada qual com sua

especificidade. Nestes casos, a ausência do trabalhador livre e da propriedade

privada dos meios e instrumentos de produção (elementos tipicamente

capitalistas) possibilita afirmar uma existência cooperativa puramente contingente,

ainda que necessária à sua manutenção.

Submisso ao capital, o trabalho dentro do modo de produção capitalista

expõe a existência da cooperação como forma histórica essencial de seu processo

produtivo. Ela aparece não mais em uma forma específica acidental de

determinado modo de produção, mas elemento distintivo e resultado modificado

desta subordinação. Em sua figura simples, mantém-se como fundamento básico

para as demais complexidades que venha a adquirir, sem que, no entanto, se

constitua como forma fixa de uma dada época do desenvolvimento capitalista.

Elevando a capacidade produtiva individual ao juntar no mesmo

espaço diversos trabalhadores assalariados, a cooperação cria uma força tal que

o todo se revela maior que a mera soma das partes. Ao produzir essa “força de

massas” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 260) pelo contato social,

reduz o tempo necessário à feitura de mercadorias, aumentando

exponencialmente sua própria produção,

[...] de forma que 1 dúzia de pessoas juntas, numa jornada simultânea de 144 horas, proporciona um produto global muito maior do que 12 trabalhadores isolados, cada um dos quais trabalha 12 horas, ou do que 1 trabalhador que trabalhe 12 dias consecutivos. Isso resulta do fato de que o homem é, por natureza, se não um animal político, como acha Aristóteles, em todo caso um animal social. (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 260).

A importância da questão do tempo para o sistema capitalista é

colocada, então, por Benoit (2009, p. 87-91), ainda que em poucas páginas, em

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uma interessante análise. As diferenças na valorização do valor existentes entre

os tempos, tempo de produção, tempo de trabalho e tempo de circulação,

expostas por Marx no Livro II d´O Capital, os arranjam como tempos

reciprocamente excludentes. Todo o processo capitalista objetivará ampliar o

tempo de trabalho e encurtar os outros dois aproximando-os do zero, dado ser

aquele o único a valorizar o valor.

O desenvolvimento técnico e científico dos meios e instrumentos de

produção, dos transportes e da comunicação nada mais significa que aumento

exponencial do tempo de trabalho, ou seja, ampliação da taxa de extração da

mais-valia com o aprofundamento da exploração e empobrecimento da classe

trabalhadora e aumento da riqueza produzida e de sua concentração pelo capital.

O ritmo das sociedades, o tempo cotidiano em que se vive, será determinado,

portanto, pelas necessidades do capital, uma vez que “[...] o tempo é a forma de

ser da realidade objetiva” (LÊNIN, 2011, p. 189):

Como agentes do capital, um do trabalho e outro da produção, trabalhador e capitalista terão seus ritmos naturais de vida acelerados ao nível do ritmo artificial da mercadoria. Para que a contradição entre a esfera da produção e a esfera do consumo seja superada no mais curto espaço de tempo, ambos terão que arrebentar suas vidas a serviço da irracionalidade do tempo da mercadoria. Para que a saúde da mercadoria seja conservada deverão ambos arrebentar com suas próprias. (BENOIT, 2009, p. 90, grifo nosso).

Obviamente, há um erro crasso na comparação feita. No inferno

dantesco da realidade do trabalhador não há, durante toda a sua vida, qualquer

átimo de alívio tolerado pelo capitalista sanguinário, ao passo que para este o

processo se revela, no mínimo, confortável. Não serão a saúde e a vida de ambos

igualmente arrebentadas. Senão, veja-se o exemplo concreto de uma das maiores

empresas destinadas a diminuir ao máximo o tempo de circulação das

mercadorias produzidas, a Amazon. Em uma investigação jornalística conduzida

por Jean-Baptiste Mallet (03 dez. 2013, online) sobre os denominados entrepostos

do e-commerce (empresas responsáveis pelo comércio de produtos vendidos pela

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internet) realizada nesta corporação há o seguinte relato de uma ex-funcionária

que trabalhou na Alemanha:

No verão, a temperatura ultrapassa os 40 graus, e os mal-estares são muito frequentes. Um dia – vou me lembrar disso por toda a vida –, quando eu estava fazendo ‘picker’ [ato de prender as mercadorias nos alvéolos metálicos], encontrei uma moça deitada no chão e vomitando. Seu rosto estava azul. Eu realmente achei que ela fosse morrer. Como não tínhamos maca, o gerente pediu-nos que conseguíssemos um palete de madeira sobre o qual a estendemos para transportá-la até a ambulância. (MALLET, 03 dez. 2013, online).

E prossegue o autor:

Fatos semelhantes foram relatados pela imprensa nos Estados Unidos. Na França, foi o frio, em 2011, que atingiu os funcionários do armazém de Montélimar (Drôme), forçados a trabalhar com parcas, luvas e bonés, até que uma dúzia deles começou uma greve e conseguiu que o aquecimento fosse ligado. Foi assim, em parte, que a Amazon catapultou seu fundador ao 19

o lugar entre os bilionários do planeta. (id., ibid.).

Os sujeitos só entram nesta cooperação ao serem submetidos

violentamente à divisão social do trabalho, pois fora dela são pessoas

independentes entre si. Contraditoriamente, ao se tornarem membros cooperados

inseridos na mesma produção e atuando sob as mesmas condições determinadas

pelo capital, a ele se incorporam como coisa, perdendo a autonomia que os

constituía como indivíduos. Essa força produtiva do trabalho social decorrente da

cooperação dos trabalhadores produzindo em um mesmo local para um mesmo

capitalista dependerá, evidentemente, da concentração dos meios e instrumentos

de produção nas mãos deste proprietário individual; tal é a condição material para

a existência da cooperação. O aumento da produtividade será diretamente

proporcional, portanto, aos diferentes graus assumidos por esta concentração.

Acerca da relação dialética entre divisão do trabalho e acumulação do capital

Marx, logo no início de seus Manuscritos econômicos e filosóficos (2012, p. 26),

coloca:

[...] a acumulação do capital aumenta a divisão do trabalho, a divisão do trabalho aumenta o número de trabalhadores; inversamente, o número de

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trabalhadores aumenta a divisão do trabalho, assim como a divisão do trabalho aumenta o acúmulo de capitais [...].

A contradição existente entre explorador-capitalista e explorado-

trabalhador se reproduz como essência inafastável deste modo de produção. Não

há como excluir do processo a matéria-prima humana que o constitui e, por tal

motivo, um de seus efeitos é, justamente, a cooperação entre os explorados.

Destarte, na manufatura há ainda o isolamento das atividades particulares com a

articulação subjetiva da produção por meio da combinação de trabalhos parciais,

ao passo que o processo de trabalho surgido com a grande indústria prima por

uma objetividade do organismo de produção, combinando esses diversos ofícios

particulares em um só sistema. O trabalho sob a forma cooperativa ou coletivo

surge, assim, como condição técnica sine qua non desta nova modalidade

produtiva. (O Capital, vol. II, MARX & ENGELS, 1985b, p. 13-17). A reunião que

aloca os trabalhadores em um mesmo local obedecendo às mesmas ordens

arbitrárias gera a resistência e dissemina a revolta. Superando-as autoritariamente

o capitalista aumenta a repressão e, consequentemente, a produção da mais-

valia, mantendo a exploração na unidade produtiva: “[...] [A] aliança entre os

capitalistas é habitual e produz efeito; [a] dos trabalhadores é proibida e de

péssimas consequências para eles. [...]” (MARX, 2012, p. 23).

Do artesão independente e autônomo da Antiguidade e da Idade Média

às corporações de ofício, a cooperação se cristaliza historicamente e instaura,

com a transformação efetuada pela produção manufatureira, a divisão do trabalho,

assumindo, de meados do século XVI ao final do século XVIII, a forma clássica e

característica predominante no capitalismo. Deste modo, a dúplice origem da

manufatura, ao mesmo tempo em que introduz e desenvolve a divisão do trabalho,

decompondo uma ocupação artesanal em diversas atividades parciais e isoladas

com funções específicas, une ofícios anteriormente independentes entre si em um

mesmo processo produtivo.

As corporações, os trabalhos nas oficinas, as relações entre os mestres

e aprendizes são subsumidos pela produção manufatureira e esta, por sua vez, ao

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se desenvolver, gradativamente perde espaço para o avançado maquinário da

moderna produção industrial sob o controle capitalista. Da propriedade

comunitária tribal, passando pela propriedade privada comunitária da antiguidade,

propriedade feudal da terra, propriedade mobiliária corporativa e capital

manufatureiro, alcança-se a propriedade privada pura como típica forma do

Estado Moderno.

Em igual medida, o início da divisão do trabalho por meio da diferença

natural sexual e familiar, sobrevindo o escravagismo, a parca divisão rural feudal,

a bruta segregação cidade-campo, as separações entre ofícios e aquelas

existentes na modesta indústria manufatureira individual, historicamente derivam

na divisão do trabalho existente sob o novo modo de produção que acaba por

alcançar o todo societário e se traduzir na mais ampla divisão social. Alterada pelo

movimento histórico do capital objetivando aumentar a produção e a extração da

mais-valia, a divisão do trabalho exercida anteriormente sob a forma da

cooperação simples adquire novos elementos e se complexifica. A redução das

categorias de tempo (decretando uma máxima produção inversamente

proporcional ao período de sua realização) e espaço (ao impor um mesmo local

para as diversas atividades específicas) na fabricação de mercadorias,

conjugando-as em uma mesma unidade técnica, acaba por desenvolver o

maquinário específico imprescindível à realização requerida:

À medida que se desenvolve a concentração dos instrumentos, desenvolve-se também a divisão e vice-versa. É isso o que faz com que toda grande invenção mecânica seja seguida de uma maior divisão do trabalho e que cada acréscimo na divisão do trabalho, por sua vez, conduza a novas invenções mecânicas. (MARX, 2009, p. 155).

A mecanização que, a partir da manufatura, passa a organizar a

produção em suas diversas formas (manufatureira, grande indústria) ao mesmo

tempo em que aumenta o grau de exploração e concentra o capital, amplia e

aprofunda a divisão social e a fragmentação do trabalho. As tarefas dos operários

são simplificadas ao extremo e, automática e mecanicamente, ele as executa de

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modo ainda mais indiferente, mais fragmentário. Ao “idiotismo do ofício” (MARX,

2009, p. 160) criado pela divisão do trabalho na sociedade, passa a corresponder,

diretamente, o trabalho fabril com o aniquilamento de quaisquer outras

especialidades.

Enquanto a primeira divisão do trabalho tinha por base as qualidades

naturais prevalecentes de cada trabalhador, com o seu desenvolvimento e

ampliação a nível mundial as diferenças entre os talentos naturais tornam-se cada

vez mais irrelevantes. A indiferenciação estabelecida pelo processo de produção

que ignora quaisquer particularidades transforma indivíduos em meros

reprodutores. Classificados de acordo com as necessidades do capital para o

exercício especializado das atividades são criadas forças de trabalho destinadas a

cada função específica. Deste modo, trabalhadores individuais ou grupos de

trabalhadores são hierarquizados como membros funcionais de um mesmo

organismo. Eles descem à condição de máquinas e, pela divisão do trabalho, com

elas se enfrentam como concorrentes. (MARX, 2012, p. 27).

O processo exploratório – que não se dá sem inúmeras revoltas dos

trabalhadores que acabam por frear ou minorar algumas de suas consequências;

“O estabelecimento de uma jornada normal de trabalho é o resultado de uma luta

multissecular entre capitalista e trabalhador” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS,

1985a, p. 215) – é intensificado pela mecanização visando ao máximo de extração

de mais-valia. Ao mesmo tempo em que aumenta a taxa de exploração do

sobretrabalho de cada trabalhador, a maquinaria utilizada, contraditoriamente,

diminui a quantidade absoluta de trabalhadores empregados, levando o capitalista

a aumentar a exploração individual até o ponto em que se:

[...] produz a exaustão prematura e o aniquilamento da própria força de trabalho. Ela prolonga o tempo de produção do trabalhador num prazo determinado até o encurtamento de seu tempo de vida. (...) O capital não tem, por isso, a menor consideração pela saúde e duração de vida do trabalhador, a não ser quando é coagido pela sociedade a ter consideração. À queixa da degradação física e mental, morte prematura, tortura do sobretrabalho, ele responde: Deve esse tormento atormentar-

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nos, já que ele aumenta o nosso gozo (o lucro)? ((O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 212; 215).

Deste modo, quanto maior o desenvolvimento das forças produtivas

aumentando a riqueza e sua concentração, tanto maior o número de trabalhadores

violentados e outros tantos desempregados excluídos de sua fruição – o

denominado exército industrial de reserva. O aumento exponencial da miséria que

submete o indivíduo a salários irrisórios, abaixo do mínimo historicamente

necessário, ante à ameaça constante do desemprego, se estende à classe

trabalhadora como um todo, sendo diretamente proporcional à reprodução

ampliada do capital e sua unificação em poucas mãos. Ao acúmulo da miséria

corresponde, assim, o acúmulo do capital. (BENOIT, 2009, p. 65-68).

2.7.2 - TRABALHO MATERIAL E INTELECTUAL

A categorização entre trabalhadores qualificados e trabalhadores não

qualificados permite, nesta ordem, diminuir e anular os custos relativos à

aprendizagem do ofício. Essa diminuição se reflete, ademais, na desvalorização

relativa da força de trabalho e, por conseguinte, na valorização do capital, “pois

tudo o que reduz o tempo de trabalho necessário para reproduzir a força de

trabalho [no caso, o aprendizado] amplia os domínios do mais-trabalho” (O

Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 276). A concorrência entre os próprios

trabalhadores que passam a perceber salários diferenciados conforme o grau de

complexidade exigido pela função é incentivada pelas terríveis condições a que

são submetidos, contribuindo para o aumento na extração da mais-valia.

O pequeno capitalista proprietário de um mínimo de capital individual,

ao se libertar historicamente do exercício do trabalho manual, põe sob suas

ordens, subordinando e explorando, determinados trabalhadores. Estabelecido

como relação social o capital segue transformando os trabalhos individuais, antes

autônomos e dispersos, em um mesmo processo de trabalho combinado. “No

princípio um carregador difere menos de um filósofo que um mastim de um galgo.

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A divisão do trabalho é que introduziu um abismo entre ambos.” (MARX, 2009, p.

145).

A cooperação instituída por esse modo de produção passa a demandar,

então, que o trabalho seja realizado sob determinadas condições, visando a um

aumento cada vez maior da taxa exploratória. Estas condições serão definidas e

ordenadas de acordo com os interesses do capitalista individual, restando aos

trabalhadores obedecer às suas leis diretivas.

Ao capitalista liberto do trabalho manual resta a função de exercer o

controle da produção sobre os trabalhadores que se encontram subordinados às

suas ordens. Essa tarefa diretiva será realizada por meio de uma administração

despótica com vistas à “[...] maior autovalorização possível do capital, isto é, a

maior produção possível de mais-valia, portanto, maior exploração possível da

força de trabalho [...]” (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 263).33 Tal

como pôde se desincumbir da tarefa manual (assim que seu capital atinge um

valor mínimo que lhe permite comprar o trabalho de indivíduos assalariados) com

o desenvolvimento e ampliação da cooperação, o proprietário capitalista se verá

livre, também, das ocupações diretivas e administrativas que serão designadas a

outros indivíduos. Os gerentes, os oficiais industriais, os dirigentes, os capatazes,

receberão as tarefas de controle e supervisão contínua dos outros trabalhadores,

atuando como uma espécie particular de assalariados, com funções exclusivas e

posicionando-se em um patamar hierárquico superior aos demais. “Pois o capital,

como a força controladora do processo de reprodução econômica e social, não

pode ser senão hierárquico e autoritário nas suas determinações mais íntimas [...]”

(MÉSZÁROS, 2012, p. 23, grifo nosso) e

33

Constituindo-se como serviço advindo da natureza específica do processo de trabalho existente no capitalismo, a tarefa de direção, ao se destinar ao aumento da exploração reunindo os trabalhadores assalariados em um mesmo local, ao mesmo tempo, cria também o próprio germe de sua destruição: “A grande indústria aglomera num mesmo local uma multidão de pessoas que não se conhecem. A concorrência divide os seus interesses. Mas a manutenção do salário, esse interesse comum que têm contra o seu patrão, os reúne num mesmo pensamento de resistência: coalizão.” (MARX, 2009, p. 189).

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113

Em sua constituição original, a classe subordinada é necessariamente estruturada de modo hierárquico, não apenas por causa de sua confrontação com a classe dominante, mas sobretudo pelas funções metabólicas vitais que ela deve desempenhar no sistema de reprodução social historicamente dado. (...) Portanto, a hierarquia e a dominação são imperativos materiais e estruturais dolorosamente evidentes de determinadas formas de divisão do trabalho, a partir das quais se articulam também, de maneira semelhante, no plano político. (id., ibid., p. 335).

34

Trabalho manual e intelectual segregados dentro da classe

trabalhadora conjugam-se, então, no capital, como forças destinadas a majorar

exponencialmente a produção e a extração da taxa de mais-valia. Marx, na breve

passagem de O Capital (Vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 284) acerca desta

divisão do trabalho, cita três autores que acabam por corroborar não apenas a

separação e a rígida hierarquia existente entre as funções materiais e intelectuais,

como também, em antítese direta, a aliança niveladora estabelecida entre ambas.

A primeira citação (com comentários do filósofo comunista) é do tradutor francês

de Adam Smith, G. Garnier:

Como todas as outras divisões do trabalho”, disse ele, “a do trabalho manual e trabalho intelectual se torna mais acentuada e mais resoluta à medida que a sociedade” (ele emprega acertadamente essa expressão referindo-se ao capital, à propriedade da terra e ao seu Estado) torna-se mais rica [...].

A segunda e a terceira citações são notas de rodapé de W. Thompson

e Ferguson, respectivamente:

O homem do saber e o trabalhador produtivo estão amplamente separados um do outro, e a ciência, em vez de nas mãos do trabalhador

34

Aqui, a comparação com outros sistemas produtivos é inevitável. Marx a realiza quando insere o modo de produção dos artesãos e camponeses independentes com a escravatura. Contudo, para ele, esse trabalho de superintendência no capitalismo não advém da posição adquirida na função, mas, ao contrário, a direção do capitalista só se dá por ser ele capitalista, proprietário dos instrumentos e meios de produção. Ainda que não seja possível estabelecer tal analogia em razão da formação específica do sistema, o capitalista, ao se desincumbir da tarefa de vigilância, supervisão e direção, imputando-lhes a um trabalhador assalariado idêntico, a princípio, a qualquer outro, cria uma hierarquização cuja eficiência encontra-se, justamente, na aparência da diferença entre indivíduos em condições classistas iguais. No Brasil e demais sistemas coloniais estabelecidos entre os séculos XVI a XVIII, a figura do “Capitão do Mato” ou capataz ilustra a situação de modo exemplar (ainda que restrita a suas particularidades típicas).

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aumentar suas próprias forças produtivas para ele mesmo, colocou-se contra ele em quase toda parte. [...]. O conhecimento torna-se um instrumento capaz de ser separado do trabalho e oposto a ele;

“E o pensar propriamente pode, nesta época de divisão do trabalho, vir

a ser um ofício especial”.35

Lênin (2011, p. 100-101), analisando o Prefácio à segunda edição da

Ciência da Lógica de Hegel, naquilo que se consideraria pensamento puro ou

formas de pensamento libertas da matéria corrobora – contra Kant – a posição

hegeliana que afirma a existência inter-relacional entre sujeito de pensamento e

35

Quanto ao trabalho (do) intelectual, sua valoração, inserção no processo produtivo, produção ou não de mais-valia, importância na reprodução ampliada do capital, etc. infelizmente, não se considerará ante a amplitude do tema. Ainda que essencial para a compreensão da totalidade do modo de produção capitalista e da contradição do próprio ofício a que se propõem os teóricos das mais diversas áreas, por isso mesmo há que se considerar a relevância da questão em um estudo em separado, cujo destaque vise contribuir para sua superação. Para uma pequena introdução acerca da teoria do valor e do trabalho imaterial, ver, especialmente, Trabalho Imaterial e Teoria do Valor em Marx, de Vinícius Oliveira dos Santos (2013).

Apontando o erro metodológico que visa distinguir a categoria dos intelectuais de outros grupamentos sociais por meio daquilo que se considera intrínseco as suas atividades, Gramsci (1982) propõe uma distinção baseada no conjunto geral das relações sociais, pois qualquer trabalho, por mais mecânico que seja, exigirá um mínimo de atividade intelectual criadora. Assim, tanto o empresário – cuja função exigirá certas qualificações intelectuais específicas –, quanto o trabalhador fabril – independente da quantificação mecânica necessária à realização de sua função – encontram-se já puramente interligados no conjunto das relações sociais do qual fazem parte em uma dada sociedade. Suas figuras serão determinadas não por meio do nível intelectual necessário à função, mas pelas relações sociais gerais caracterizadoras das posições que exercem.

Deste modo, pode-se afirmar que todos os homens são intelectuais, mas nem todos exercem a função precípua de intelectual. A distinção entre intelectuais e não intelectuais é feita apenas com relação a sua imediata função social onde se possui uma atividade profissional específica: se na elaboração intelectual ou no esforço muscular-nervoso. A oposição dialética entre as duas características funcionais impede a existência de um sem o outro. O fato é que não existem não intelectuais, o que existe são diversos graus de atividade específica intelectual já que não se pode falar de uma atividade humana na qual seja excluída qualquer elaboração do intelecto. Não há como separar o homo faber do homo sapiens: “O tipo tradicional e vulgarizado do intelectual é fornecido pelo literato, pelo filósofo, pelo artista” (id., ibid., p. 08).

As Categorias especializadas para o exercício da função intelectual são formadas historicamente interligadas a todos os grupos sociais. Entretanto, por se encontrarem conectadas em especial com os grupos sociais dominantes, tais intelectuais são assimilados e conquistados ideologicamente por estes grupos concomitantemente com a criação, pelos grupos dominantes, de seus próprios intelectuais orgânicos, facilitando sua incorporação.

Gramsci (ibid.) amplia, então, o conceito de intelectual, afirmando, entretanto, que, assim, aproxima-se concretamente da realidade, sem deixar de realizar a diferenciação necessária entre a gradação de qualificações diversas incluídos aí aqueles ausentes, a princípio, de atribuições diretivas ou organizativas.

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115

objeto, representação e coisa, homem e natureza, abstração das formas lógicas e

realidade concreta. Esta posição dialética apresenta a materialidade

historicamente criadora de categorias e conceitos (sejam eles matemáticos,

filosóficos, científicos) que se apresentam no presente descolados de tais

processos, ganhando aparência autônoma e independente até o ponto de se

tornarem a coisa-em-si. Retomando tal historicidade que exige a separação entre

os trabalhos, a libertação do desgaste físico e intelectual imposto pelo exercício

exclusivista do trabalho manual e a satisfação das necessidades elementares, o

autor cita Aristóteles e conclui:

“Somente quando o indispensável está disponível... os homens

começam a filosofar”, diz Aristóteles (p. 13-14); e, no mesmo diapasão: o ócio dos

sacerdotes egípcios como condição dos inícios da ciência matemática (p. 13). A

preocupação com os “pensamentos puros” pressupõe “um largo caminho que o

espírito humano teve que percorrer”. Num tal pensamento, “calam-se os

interesses que movem a vida dos povos e dos indivíduos” (p. 14). (LÊNIN, 2011,

p. 101). Divididas e segregadas as atividades humanas em materiais e

intelectuais, fragmentada e iludida estará, também, a consciência que a elas se

submete. Teoria e prática destinam-se, portanto, a uma ou outra classe, conforme

se realiza a apropriação privada dos meios de produção. O pensamento, a

elaboração de ideias, a teorização, as ciências, as artes, a filosofia, são

destinados, assim, quase que exclusivamente às classes proprietárias destes

meios, que creem tratar-se de atividades puras, entes independentes que pairam

acima do mundo e da realidade que as cerca.

A divisão social do trabalho, fruto do desenvolvimento do sistema

capitalista, segue se reproduzindo na atualidade e assumindo composições cada

vez mais complexas, apresentando níveis diversos de hierarquização e

especialização na produção de bens e serviços. Fordismo, toyotismo, taylorismo,

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produção flexível, pós-fordismo, integração produtiva36, não apenas contribuem

para as formas assumidas por esta divisão e pelo próprio trabalho, tanto interna

quanto externamente, como passam a determinar (consequentemente) em todas

as partes e para os mais diferentes povos o conteúdo pelo qual valorarão e

pautarão suas vidas.

Se é, portanto, o trabalho que diferencia e constitui o próprio homem;

se, modificando a natureza ele, ao mesmo tempo, se modifica e se reinventa, é no

resultado deste trabalho que ele se reconhece. Dos primeiros e mais rudimentares

objetos naturais (um osso que passa a ser utilizado como instrumento de defesa

para assegurar a posse da caça frente a outros hominídeos) aos mais complexos

avanços tecno-científicos (uma nave aeroespacial tripulada), a transformação

sentida pelo homem em seu movimento histórico resultaria, de acordo com Hegel,

no encontro da consciência consigo mesma, elevando o espírito a um novo

patamar dentro do processo a ser percorrido pela razão. Não foi essa, no entanto,

a consequência experimentada.

36

Sobre o conceito de integração produtiva, ver artigo “Integração produtiva: referencial analítico, experiência europeia e lições para o MERCOSUL”, de João Bosco M. Machado (online, cf. Referências). O autor cepalino, neste texto, apresenta aquilo que há de mais novo nas velhas teorias econômicas sobre o e, principalmente, a favor do modo de produção capitalista.

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CAPÍTULO III

PRODUÇÃO DA CONSCIÊNCIA

MANIFESTAÇÃO DO MST, BRASIL, 2014 (FOTÓGRAFO: HERIBERTO PAREDES)

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Produzindo seus meios de vida e existência, entrando em relação com

a natureza e uns com os outros, os indivíduos, ao elegerem determinada forma

para sua concretização, optam também por certos meios de viver e de se

relacionar, abdicando de diversos outros. N´O Capital (O Capital, vol. I, MARX &

ENGELS, 1985a, p. 149), afirma Marx que o que diferencia o pior arquiteto da

melhor abelha é sua capacidade de construir antes, em sua mente, aquilo que

construirá depois, fisicamente – porque (é necessário que se frise) já travou

contato histórico anteriormente com essa ação, com os materiais necessários,

com o meio, modificando-o e, deste modo, se modificando também, tornando-se

apto a construir na ideia, no pensamento, o que outrora construiu na matéria,

agindo e transformando a natureza e a si mesmo pelo trabalho.

Produção da vida e produção da consciência entram, então, em relação

dialética. Ao produzir os meios para sobreviver, o indivíduo cria as ideias e

concepções acerca desta produção e de sua existência. Onde encontrar

alimentos, de que modo consumi-los, como caçar e pescar, em que local se

abrigar do frio, qual o melhor vegetal a ser plantado em determinada época, são

questões criadas em virtude de necessidades elementares dos seres humanos.

Conforme se complexificam vida e necessidades37, tanto mais complexas se

tornam as percepções acerca do mundo e da sociedade. Ao mesmo tempo,

quanto mais a consciência acerca da produção da vida se altera, alteram-se,

também, os meios e formas de lidar e transformar os objetos, a natureza e estas

sociedades. Da coleta manual à colheitadeira computadorizada, do fogo obtido

pelo cair de um raio ao forno de micro-ondas, da correspondência epistolar às

37

As necessidades, assim como a vida e a consciência, justamente por fazerem parte do movimento histórico que engendra a relação metabólica entre indivíduo e natureza, são, na mesma medida, resultado desta relação; i.e., as necessidades são criadas e se tornam cada vez mais complexas quanto mais complexas as sociedades. Na sociedade capitalista, em que produção, circulação, distribuição e consumo são momentos de um mesmo processo em complementariedade dialética a criação de necessidades alcança um patamar nunca antes experimentado. Teoria e prática se unem destinando-se à globocolonização de todas as consciências. A denominada revolução tecnológica do século XXI gera e amplia ainda mais essas necessidades ao mesmo tempo em que multiplica, exponencialmente, a violência que submete e precariza o trabalho, sugando a mais-valia, para a produção cada vez maior de novas mercadorias que criam novas necessidades, etc.

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mensagens instantâneas por celular, da lança aos drones38 a consciência

determina a produção e a reprodução da vida e das relações sociais que, sob

ambas, se constituem. Indivíduo e mundo condicionam-se, assim, mutuamente.

Vida e consciência, na mesma medida, transformando-se historicamente pelo agir

e pelo pensar sobre a ação, excluem, deste modo, uma possível essência humana

eterna e imutável.

A crítica de Marx a essa essência é apresentada nas Teses sobre

Feurbach e se estende a todo o idealismo presente no materialismo mecanicista e

a outras concepções que a apregoam. Dissolvida a essência religiosa na humana,

Feuerbach abstrai do indivíduo singular as relações sociais que o constituem, o

processo histórico e a própria essência real. Isolada do todo, eternizada e

idealizada, a essência humana se imobiliza como gênero impedindo uma crítica

radical, bem como (por conseguinte) sua transformação. Mecanicamente e sem

qualquer contrapartida a vida determina a consciência e enreda o ser humano em

um labiríntico mundo no qual o fio/fim que se deve seguir já se encontra, desde

sempre, determinado. Apenas o método dialético, no entanto, permite se

concretizar como saída ao revelar as verdadeiras contradições que movimentam

indivíduo e coletividade, pensamento e realidade:

[...] ao mesmo tempo que reconhecemos que no curso geral do desenvolvimento histórico o material determina o espiritual, o ser social determina a consciência social, reconhecemos e devemos reconhecer a reação do espiritual sobre o material, da consciência social sobre o ser

38

Drones ou UAVs (Unmanned Aerial Vehicles) são, como o nome indica, veículos aéreos não tripulados operados por controle remoto e criados para uso da indústria militar. Utilizados, em sua maior parte, como instrumentos de espionagem, controle e vigilância, possuem baixo custo e alta performance quando comparados a outros veículos, como aviões convencionais, câmeras de satélites, etc. A maior finalidade de um drone, contudo, é seu emprego como arma bélica pelos Estados Unidos da América e pelo Reino Unido com o apoio de países como a Austrália e a Alemanha. De acordo com relatório da Anistia Internacional de outubro de 2013 (Disponível em: <http://www.amnesty.org/en/library/asset/ASA33/013/2013/en/041c08cb-fb54-47b3-b3fe-a72c9169e487/asa330132013en.pdf>), Serei eu o próximo? Ataques com drones dos Estados Unidos no Paquistão, calcula-se que desde 2004 mais de 4.700 pessoas foram assassinadas na fronteira do Paquistão com o Afeganistão após mais de 300 ataques com drones. Os assassinatos se estendem ainda às populações do Iêmen, Líbia, Faixa de Gaza, Somália e Iraque. Para mais informações: <http://www.operamundi.uol.com.br>; <http://www.vermelho.org.br>; <http://www.droneswatch.org>; <http://www.knowdrones.com>; <http://www.droneswar.net>.

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social, da superestrutura sobre a base econômica. Procedendo assim, não contradizemos o materialismo; ao contrário, evitando cair no materialismo mecanicista, nos atemos ao materialismo dialético. (TSE-TUNG, 1999, p. 64).

Marx aponta em sua obra A Ideologia Alemã três momentos desta

atividade social produtiva que coexistem e se mantêm na história desde o

princípio: o primeiro ato histórico (trabalho), o primeiro fato histórico (criação de

novas necessidades) e a primeira relação social (família; que mais tarde, graças à

criação de novas necessidades, passa a um plano secundário ou se modifica

gerando novas relações sociais). Tal base econômica considerada na dupla

relação (natural e social) estabelecida entre indivíduos e natureza e entre os

próprios indivíduos permite afirmar sua interdependência cooperativa, ou seja, a

produção da vida, um certo modo de produzi-la, estará intimamente conectado

com um determinado estágio social, uma certa forma de cooperação entre os

homens que condicionará seus modos de viver e se reproduzir.

Partindo de um pressuposto real e comprovável empiricamente, refuta-

se um possível idealismo baseado apenas em abstrações filosóficas fantasiosas

acerca da história, da realidade e da própria crítica que se ambicionava realizar.39

Assim, a existência de indivíduos humanos vivos fornece o primeiro pressuposto

constatável (portanto, não arbitrário, nem dogmático) de toda a história humana.

Viver e se reproduzir exigem a satisfação das necessidades básicas naturais de

alimentar-se, abrigar-se, dormir. Para satisfazê-las, os homens devem entrar em

relação com a natureza que os cerca, extraindo, inicialmente, aquilo que dela

necessitam para sobreviver. Pouco a pouco, no entanto, as necessidades e,

consequentemente, esta relação, seguem se complexificando até o ponto em que

39

A desconexão absoluta entre a filosofia crítica alemã (em especial aquela representada pelos neo-hegelianos) e a realidade que a circundava é a base sobre a qual Marx erige A Ideologia alemã. Aliando a crítica ao idealismo àquela proferida contra o materialismo clássico (como o concebido por Feuerbach) Marx desconstrói os principais dogmas que os fundamentam, ao mesmo tempo em que elabora conceitos essenciais ao conjunto de sua obra posterior e sem os quais se torna impossível analisar qualquer elemento ou categoria presente no modo capitalista de produção.

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começam a produzir seus víveres (Lebensmittel), a trabalhar. A partir daí

diferenciam-se dos animais.

Este primeiro ato histórico propaga-se para além da mera produção da

vida material e alcança a essência do próprio ser. Aquilo que os indivíduos são

dependerá do modo como produzem sua vida. O quê produzem e como são

produzidas as condições para a reprodução de sua existência física determinarão

uma ou outra forma de vida, sua expressão, relações com os outros indivíduos e

com a natureza, etc. Ser é produção, portanto.

Sendo o ser produção, i.e., aquilo que caracteriza e diferencia o ser

humano é o trabalho que ele realiza sob determinadas condições em cada época,

principiar a análise acerca da consciência pelos indivíduos reais e pela forma

como determinam e são determinados materialmente na produção de sua

existência é exigência sine qua non para se compreender não apenas o fenômeno

da ideologia como todo o processo que o envolve. N´A Ideologia alemã Marx refaz

o percurso histórico do desenvolvimento conjunto da propriedade, da divisão do

trabalho e, por fim, da consciência, pois: “A consciência (Bewusstsein) não pode

ser jamais algo diferente do que o ser consciente (bewusstes Sein), e o ser dos

homens é um processo de vida real.” (MARX & ENGELS, 2007, p. 48). No início, a

conexão estabelecida entre consciência e produção adquire um caráter

extremamente precário. Comportamento material e concepção de ideias

conjugam-se quase que diretamente, sem maiores mediações que não as

estabelecidas dentro do processo produtivo arcaico. Aquilo que se dá de modo

imediato, visando à mera sobrevivência, apresenta-se ao indivíduo por meio da

simples sensibilidade no contato com a natureza, limitando-o em suas relações.

Uma consciência natural surge do confronto entre o homem e o poder da natureza

estranha e a ele exterior, que aparentemente o domina como a qualquer outro

animal e do qual não pode escapar. Ainda assim – ou por isso mesmo –, não há

que se admitir uma consciência pura, uma essência do homem, um espírito livre

da matéria, ou vice-versa. A constituição da consciência é fruto de um processo

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dialético de interação entre os indivíduos e entre estes e a natureza ao produzirem

os meios e instrumentos necessários à satisfação de suas necessidades vitais. Ela

é um produto social, relacional, histórico e, portanto, tipicamente humano.

Restrito em suas limitações naturais o indivíduo inserido na sociedade

condiciona e limita, também, suas relações sociais. O movimento inverso se revela

com a mesma força e impulsiona a consciência social ao se deparar com tais

limitações quando, por necessidade de ultrapassá-las, passa a atuar de modo

necessariamente gregário. Há, aqui, a substituição do instinto pela consciência

tribal, de rebanho, o que equivale às primeiras formas de propriedade e divisão do

trabalho. O percurso da consciência é condicionado, consequentemente, pelo

percurso da produção material da vida dos indivíduos que se traduz pelo trabalho

realizado sob determinadas condições em cada época, ou pelas diferentes formas

de dividi-lo e dividir seu produto, a propriedade.

Não sobra, deste modo, espaço para devaneios metafísicos como

aqueles da filosofia idealista tão combatidos pelo autor, especialmente na obra A

Ideologia Alemã. Ao se afirmar que para compreender a consciência, a formação

de ideias, categorias e representações deve-se partir do indivíduo concreto, ativo,

da realidade material que cria, das relações sociais que constitui ao produzir os

meios com os quais vive e se reproduz, impede-se, justamente, que se incida em

um tipo ideológico que as autonomiza frente a seu criador. Por terem de produzir

sua vida de determinada maneira, os indivíduos reais e concretos produzem,

destarte, sua própria história. Assim, Hegel e os neo-hegelianos, na verdade,

apenas expressam em sua filosofia aquilo que lhes acomete na prática, ou seja,

seu idealismo nada mais é que o reflexo invertido das condições sociais de

produção a que estão submetidos.

Pouco a pouco, aquela consciência mais imediata, sensível, formada

pelo contato direto entre os indivíduos, a tribo e a natureza, com o aumento das

forças de produção, repartição da propriedade e dos diversos tipos de trabalho

somados ao contato intertribal pelo intercâmbio de produtos mostra-se

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insuficiente. Estes indivíduos reais e ativos, produtores de suas representações,

conforme desenvolvem as forças produtivas e o intercâmbio vão sendo

condicionados pelo movimento histórico que os torna mais complexos,

complexificando, igualmente, as ideias que possuem acerca de sua vida e do

mundo com o qual se relacionam.

O desenvolvimento das diferentes formas de propriedade, meios e

instrumentos de produção e divisão do trabalho demonstra nada mais que o

desenvolvimento dos indivíduos e seus variados modos associativos ao

produzirem seus víveres e sua consciência. Do simples cultivo tribal destinado a

satisfazer as necessidades mais imediatas ao se plantar um hectare de arroz,

aipim e beterraba, à extrema complexidade exigida para a fabricação, por uma

empresa transnacional, de um grão de café transgênico, a transformação

experimentada pelas sociedades ao longo do processo histórico se reflete

diretamente na propriedade, nos meios de produção e na divisão do trabalho,

tanto quanto condiciona os próprios indivíduos e sua consciência acerca do

mundo que os cercam. Igualmente, da cenoura trocada por um chumaço de lã no

intercâmbio primitivo à concessão dada pelo governo de um país a uma

companhia petrolífera para exploração privada de uma parcela soberana do mar

onde há, no fundo, petróleo, o desenvolvimento histórico das trocas introduz

alterações profundamente significativas na história das relações concretas

universais e das ideias constituídas sob essas formas.

Portanto, analisar as formas de consciência e as diferentes ideias que

as acompanham ao longo do movimento histórico é analisar a própria história

humana, pois não há uma história única e exclusiva das ideias em si, como entes

existentes por si, pairando anistórica e metafisicamente sobre as cabeças solitas

que as criam, ser internalizado, inspiração pura de um homem abstrato,

independente e oposto ao mundo exterior. Afirma Marx, peremptoriamente, que

“Nós conhecemos uma única ciência, a ciência da história” (2007, p. 39). Será

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justamente esta ciência que possibilitará o estudo das ideias, do conjunto de

ideias existente na sociedade capitalista, da denominada ideologia.

3.1 - IDEOLOGIA

De acordo com Konder (2003, p. 21-24) o termo ideologia surge,

inicialmente, com um sentido positivo: ciência que visa à apreensão da gênese

das ideias, de seus elementos constitutivos e que tem por base o mundo que a

determina, objetivando, ao fim, aperfeiçoá-lo. Destutt de Tracy (In: KONDER,

ibid.), autor de Elementos de ideologia (1801), fornece, com essa concepção, o

arcabouço conceitual utilizado por seu grupo intelectual para a assessoria e

orientação na condução das instituições pelos detentores do poder. Napoleão

Bonaparte, governante à época, recusa veementemente tal auxílio e incrimina os

denominados ideólogos de deformar a realidade por meio de uma metafísica que

a submetia às ideias constituintes e desconsiderava a própria história.

Desde então, a conceituação de ideologia ao longo da história tem

suscitado infindáveis debates e assumido as mais contraditórias feições.

Independentemente dos múltiplos conceitos fornecidos por diversos pensadores,

duas tendências mais expressivas podem ser notadas como delineadoras de

sentido: uma positiva e outra negativa. No primeiro caso, ideologia designaria um

conjunto de valores presentes em uma dada sociedade, sistema de crenças

compartilhado por determinado grupo social, ou, ainda, processo de produção de

ideias e significados por uma coletividade. Afirma-se que, neste caso, a

concepção de ideologia seria neutra, imparcial, evitando elaborar juízos críticos

acerca destas noções construídas coletivamente.

Já os adeptos da tendência negativa pressupõem uma distorção na

elaboração destas ideias em contraposição à realidade que parecem espelhar. O

sistema de crenças e valores estaria comprometido em sua própria criação ao se

relacionar com o conhecimento de forma precária, alterada, distorcida, defeituosa.

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Marx, indo de encontro à tendência positiva de neutralidade e à carga de

negatividade pura fornecida por Napoleão, fundamentando-se na denúncia feita

por Fourier do discurso moralista presente no catálogo dos 500 mil livros

publicados, atribui ao conceito duas de suas características essenciais e de maior

radicalidade: a crítica e a autocrítica. Será em 1843, com a Crítica da Filosofia do

Direito de Hegel (2005) que, ao analisar a relação do Estado com a sociedade civil

estabelecida na obra hegeliana, dá início ao aprofundamento da questão,

culminando com sua configuração mais contundente datada de 1846, na Ideologia

Alemã (2007).

O predomínio desta acepção crítico-negativa se faz notar,

principalmente, nos teóricos que se debruçam sobre a reflexão inaugurada por

Marx. De Lênin a Žižek40, passando por Pareto e Foucault, o conceito de ideologia

é, em cada um deles, construído, substituído, destruído, desconstruído e

reconstruído, sem que seja possível, ante as ambiguidades e contradições que

comporta, manter uma linha mestra que resulte em um denominador comum. À

exceção do sentido de deformação do processo de conhecimento, não há

consenso entre os autores, quer se declarem abertamente marxistas ou

veladamente antimarxistas.

A ideologia, compreendida como fenômeno advindo das condições

reais de produção, é constituída dentro do processo produtivo acompanhando-o

em suas diversas transformações. Produção material liga-se diretamente à

produção de ideias, de representações. Contrariando a tradição idealista que

40

No livro Um mapa da ideologia, S. Žižek reúne os mais diversos e controversos (inclusive entre si) autores pretendendo fornecer alguns indícios por meio de fragmentos acerca da pertinência e atualidade do tema ideologia. Não se localiza, no entanto, nos dois textos de sua autoria, um conceito do que é (ou do que não é) ideologia: “‘Ideologia’”, diz ele (2007, p. 09), “pode designar qualquer coisa” – e segue dando exemplos tais como uma atitude contemplativa, ideias falsas, conjunto de crenças, etc. – que servem “a algum inconfesso interesse particular do poder” (ibid., p. 15). Amplia-se, ainda mais, a confusão conceitual com o idealismo vulgar pela afirmação de um mecanicismo do tipo determinista na dialética de Marx e algumas abstrações formais das filosofias da linguagem da contemporaneidade. E, ainda, há a tentativa de complementar Marx com uma solução que passa por Lacan, tendo como resultado: 1) um conceito de ideologia que é, em si, ideologizado, e 2) a própria legitimação do sistema que crê criticar.

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acredita ser o mundo resultado de elaborações intelectuais, Marx, partindo das

condições reais de existência, inverte a formulação metafísica e assevera:

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de guia para meus estudos, pode formular-se, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (MARX, 2008, p. 47, grifo nosso).

Ao instituírem meios para se manterem vivos e se reproduzirem,

relacionando-se entre si por meio do trabalho, os indivíduos criam, também,

concepções acerca destes meios eleitos e das mais variadas relações

estabelecidas (sociais, políticas, econômicas, culturais). Não são quaisquer

concepções, no entanto, que depois de criadas prevalecerão dentro da sociedade.

Caso contrário, por que as ideias acerca de liberdade de um escravo grego não se

sobrepuseram às de seu proprietário-cidadão, por exemplo? Ou, onde

encontramos tantos conceitos filosóficos ocidentais criados por mulheres quanto

aqueles cunhados por homens? Por mais que entrem em relação, de que modo as

criações espirituais jesuíticas acabam por dominar um imaginário social tão amplo

e variado como o dos indígenas? A que espécie de igualdade se refere a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão? Qual o motivo de se elevar à

categoria de verdade as representações expostas diante de uma câmera de

televisão? Como se determinou que a exatidão de algumas ciências possui um

valor maior que diversos elementos presentes em outras ou nas abstrações

artísticas? Dentre a pluralidade de ideias de que dispõe uma dada sociedade,

quais serão aquelas que se farão predominantes? Por que são estas as eleitas?

E, mais, quem as elege?

Afirma Marx:

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As ideias da classe dominante são as ideias dominantes em cada época, quer dizer, a classe que exerce o poder objetal dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material [estrutura/base econômica] dispõe ao mesmo tempo, com isso, dos meios para a produção espiritual, o que faz com que lhe sejam submetidas, da mesma forma e em média, as ideias daqueles que carecem dos meios necessários para produzir espiritualmente. (MARX, 2007, p. 71, grifo do autor).

Todavia, tal afirmativa parece não esgotar as questões que a sucedem.

Ou seja, se partirmos do pressuposto que a ideologia, como concebida por Marx,

é um fenômeno que se traduz, a princípio, pelos ideais e representações das

classes dominantes das sociedades, como investigar suas origens? Bastaria a

análise das classes que os criam ou seria mais profícuo examinar as formas pelas

quais se manifestam? De que modo é possível afirmar sua concretude histórica ao

nos depararmos com seu caráter tão abstrato e aparentemente eterno? O que

expor de sua existência como particularidade em contraposição à universalidade

generalizante que parece possuir? Haveria alguma ideia que prevalecesse sobre

todas as outras? E, havendo uma tal ideia, possuiria ela algum valor de verdade

ou se restringiria à falsa aparência, devendo, portanto, ser desde logo descartada?

A consciência mais imediatamente sensível resultante do contato direto

com a natureza extraindo o que dela necessita para se sobreviver transmuda-se

em consciência tribal dividida de modo natural e, sexualmente, apresenta-se como

a primeira forma de dominação material e ideológica. Ainda que de uma aparente

simplicidade inicial, a dominação da mulher pelo homem segue se reproduzindo

ao longo da história agregando novas e mais eficazes ideias para sua manutenção

– na mesma proporção em que se encontram aquelas destinadas à sua

resistência e extinção. O patriarcalismo se mantém sob as bases da propriedade

privada nas quais o homem detém o capital que serve como meio de produção da

subsistência familiar, e a mulher restringe-se ao trabalho doméstico não

remunerado.

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A hierarquização material e, consequentemente, intelectual se completa

com a entrada retardada da mulher no mercado de trabalho, conjugando os dois

tipos de trabalho e se mantém na dupla escala de valores. Seja por meio da maior

extração de mais-valia, dado que no trabalho doméstico não há remuneração e no

trabalho externo a remuneração percebida ainda é inferior à do homem, seja,

consequentemente, em razão da menor valoração cultural, relegando-a a posição

inferior na escala social, ou pela diminuta quantidade de elaborações teóricas até

então (tendo em vista o acesso tardio – e em algumas sociedades até hoje

inexistente – ao legado cultural da humanidade), o machismo se impõe como mais

uma espécie de ideologia dominante, ganhando novo impulso com o modo

capitalista de produção.

A separação cidade-campo com a unificação das tribos e a instituição

do regime de escravidão apresenta o primeiro antagonismo estamental: entre

proprietários-cidadãos e escravos-coisa; ou, ainda, na especificidade do

despotismo do modo de produção asiático e suas castas41, e inaugura a mais

essencial divisão do trabalho: aquela entre o trabalho físico e o intelectual.

Instituída a propriedade privada móvel e imóvel, supridas as necessidades sem

que precise trabalhar fisicamente para se manter, o cidadão da polis grega e as

autoridades maiores do regime de castas podem, livremente, se dedicar ao puro

pensar, ao passo que ao indivíduo escravizado (e à mulher) despossuído de bens

e submetido a esta divisão é imposto o trabalho físico como único meio de

sobrevivência.

O poder material de uns sobre outros como resultado da divisão do

trabalho e o qual determina os últimos como propriedade dos primeiros converte-

se em poder ideológico tão logo se passa da barbárie à civilização (MARX &

ENGELS, 2007, p. 75). Com a concentração da população, criadas as cidades-

estados gregas, uma organização política, econômica e administrativa se faz

41

Sobre a importância, no pensamento de Marx e Engels, do modo de produção asiático e sua especificidade, que o difere do escravagismo grego e de outras formas mais complexas de sociedade, ver A luta de classes como fundamento da história (BENOIT, 1998, p. 45-69), em Ensaios sobre o Manifesto Comunista (cf. Referências).

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indispensável para que se reproduzam as condições de manutenção de uma casta

dominante e escravos subalternizados realizando o trabalho braçal. Divisão do

trabalho e propriedade dos instrumentos de produção passam a determinar as

formas organizativas e de consciência presentes no todo social.

Somadas à manutenção do antagonismo entre cidade e campo em

decorrência da separação entre propriedade da terra e capital (sem que essa

separação signifique que terra não é capital, ou seja, ao se considerar

exclusivamente a renda da terra como valor, não se abarcará o conceito de

propriedade rural, suas consequências e formas em toda a sua inteireza), algumas

espécies ideológicas mantém-se ao longo da história até alcançarem a atualidade,

tendo em vista que este tipo de propriedade baseada tão-somente no trabalho e

na troca também continua vigorando. Ainda que hoje, por exemplo, na grande

maioria das nações tenha havido um processo de desnaturalização do modo de

produção baseado no escravismo, o trabalho manual continua sendo valorado

(aqui, novamente, a dupla valoração inaugurada com o sistema capitalista: maior

extração de mais-valia e menor valor espiritual) como hierarquicamente inferior ao

trabalho intelectual.

Os indivíduos dominados – e os dominantes – creem na inferioridade

de seu trabalho manual (e, portanto, daquilo que os constitui e diferencia como

seres humanos) tanto quanto creem em deus e em seus desígnios impositivos

durante o feudalismo. Servos e senhores feudais trazem as relações de

propriedade das cidades gregas para o campo, sem que se extinga, no entanto, o

antagonismo entre eles. Não obstante a parca divisão do trabalho inicial que se

restringia a estas castas somadas à monarquia e ao clero e, nas cidades, aos

mestres, artífices e aprendizes e um rareado populacho, a rígida hierarquia social

aliada à religião agrupam a sociedade em torno de um mesmo componente

ideológico que se difunde às mais diversas áreas.

Preenchida no curso do desenvolvimento histórico por complexas

estruturas sociais, a consciência não mais reflete diretamente as condições de

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produção da vida, que igualmente se tornaram tanto mais complexas. As ideias

não se configuram mais como emanações diretas do contato sensível entre o

indivíduo e a natureza, mas passam por inúmeras mediações entre o emaranhado

social, as formas de produção, hierarquia, organização política, econômica,

cultural, religiosa. O fenômeno da inversão religiosa, que implanta em deus as

características consideradas positivas presentes nos seres humanos e no reino

dos céus aquilo que falta materialmente na terra, apresenta sua expressão terrena

corporificada nos senhores feudais, nos monarcas e no próprio clero. São eles os

representantes maiores de deus e, portanto, os eleitos divinamente para tomarem

as melhores decisões sobre todos os outros indivíduos.

Invertidas as relações, veladas as condições reais de existência, os

sujeitos acreditam ser aquilo a que são submetidos, de acordo com a posição

ocupada (MARX & ENGELS, 2007, p. 104). A qualidade de ser um servo, por

exemplo, torna-se inseparável de sua individualidade, é algo tido como natural,

fruto de criação divina e não resultado de um desenvolvimento histórico que o

separa da propriedade dos meios de produção. Ocultando as verdadeiras relações

sociais, estas formas ideológicas criadas em grande parte pelos indivíduos

dominantes e difundidas a toda a sociedade contribuem para a manutenção e

reprodução da ordem vigente, assegurando sua supremacia.

Contudo, somente o modo capitalista de produção instaura a ideologia

como mais um de seus instrumentos hegemônicos de dominação. Em nenhuma

outra época histórica a ideologia adquire tamanha potência e envolve de tal forma

tempo e espaço. Os quase três séculos de vigência do capital contribuem para

seu alcance em escala global, massificando as ideias dominantes ao mesmo

tempo em que, cuidadosamente, as sofisticam. A relação realidade-consciência se

aperfeiçoa e a produção intelectual alimenta a matéria viva que mantém e

reproduz, em escala sempre crescente, a concentração privada da riqueza

produzida coletivamente.

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Nascida no processo da luta de classes, a ideologia dominante se

impõe a todas as outras ideias existentes na sociedade. O embate entre as

classes antagônicas contribui para a constante (re)criação das representações

que alcançarão o todo societário. É evidente que o trabalhador sente na carne a

violência diária da exploração a que é submetido. Suas concepções acerca da

realidade adquirem, nesse contexto, um caráter de resistência e negação às ideias

pretensamente universais das classes dominantes. Contudo, a precariedade que

ostentam ante a imediatez, empiria e superficialidade típicas do denominado

senso comum que se mostra, no mais das vezes, difuso e incoerente, impede que

se revelem a profundidade e as reais determinações da totalidade do sistema.

Ao mesmo tempo, em razão da relação dialética existente entre elas, as

ideias e concepções das classes exploradas (em menor grau, obviamente)

conjugam-se com as ideias e concepções das classes exploradoras e subsistem

na concretude do modo capitalista de produção. Analisando aquilo que denomina

de “a contradição principal” existente no movimento de um processo que comporta

várias contradições, Mao (TSE-TUNG, 1999, p. 57-65) procura identificá-la

objetivando a resolução dos problemas secundários e, consequentemente,

principal, por ela gerados. O mesmo se apresenta com relação aos aspectos

contrários presentes nas contradições, no caso, conjunto de ideias das classes

dominantes e das classes dominadas dentro do sistema capitalista:

Em qualquer contradição os polos contrários desenvolvem-se de maneira desigual. Acontece que, por vezes, se estabelece um equilíbrio entre eles, mas isto não é mais que um estado passageiro e relativo; a situação fundamental é o desenvolvimento desigual. Dos dois aspectos contrários, um é necessariamente principal e o outro secundário. O principal é aquele que desempenha o papel dominante na contradição. O caráter dos fenômenos é sobretudo determinado por esse aspecto principal da contradição, o qual ocupa a posição dominante. (TSE-TUNG, 1999, p. 60, grifo nosso).

Tais representações, em especial aquelas cujo conteúdo pressupõe

uma ausência manifesta de contestação à ordem estabelecida encontrando-se em

conformidade com a dominação, transformam-se, assim, em ideologia dominante

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– modificadas pela e dentro dela. Mutatis mutandis, a alteração da última pelas

primeiras manifesta-se em ações que se opõem frontalmente ao status quo e cujo

antagonismo se traduz em crítica acerca da realidade que as gera. Os valores e

princípios historicamente determinados e impostos pela burguesia são postos em

evidência e negados pela práxis incisiva (ainda que momentânea) dos

trabalhadores.

Por tais fatos não é possível afirmar ser a ideologia dominante uma

ilusão, fantasia, ficção. Ela advém da e retorna à realidade como implicação

concreta das contradições inerentes ao sistema capitalista no movimento histórico

impulsionado pelas classes em luta. Pelos mesmos fundamentos, admiti-la como

erro, mentira ou falsidade é sustentar a posição contrária de que haveria uma

espécie de ideologia verdadeira ou um conjunto de ideias certas. Sendo

independentes, opostas e livres, localizadas fora do espectro ideológico, estariam

destinadas, então, a revelar a mentira oculta, a iluminar o erro do pensamento, a

retirar o véu de falsidade que encobre a verdade: o uso da ideologia para a

manipular e dirigir a vida de uma massa trabalhadora acrítica e ignorante. O

idealismo e a positividade presentes em tais posições retira, por completo, toda a

carga negativa e de materialidade da análise e crítica dialéticas de Marx e recai,

contraditoriamente, em uma concepção ideológica da ideologia ao acreditar ser

possível, dentro do sistema capitalista, escapar, estar acima ou livrar-se por

completo dela.

O nível de desenvolvimento alcançado por este modo de produção, sua

modificações contingenciais, crises permanentes, expansão crescente de um

mercado mundial e grandes transformações político-econômicas, especialmente

nas últimas décadas, resultaram em alterações ideológicas profundas na cultura e

valores das classes dominadas, contribuindo para um aceleramento em seu

processo acumulativo e explorador (BOGO, 2010). Na sociedade dominada pelo

monstruoso mundo das mercadorias a subordinação das relações e funções

sociais aos interesses do capital gera sua reprodução tanto em nível nacional

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quanto internacional, expandindo o mercado mundial e impondo uma uniformidade

global pelo consumo de produtos e formas de vida idênticos em toda parte. A

inédita expansão capitalista verificada no final do século XX globaliza a forma e

imperializa ainda mais seu conteúdo.

3.2 - ELEMENTOS ESSENCIAIS OU CONSTITUTIVOS

Porque a história das sociedades até hoje é a historia da luta de classes

(MARX & ENGELS, 2013, p. 08)42, admite-se a presença constante de alguns

elementos ideológicos que são criados por força desta realidade, nela se mantém,

e seguem se reproduzindo em escala crescente. A vida que determina a

consciência, a materialidade histórica que fornece as condições sob as quais os

indivíduos construirão suas ideias e representações formará a base da análise

acerca da ideologia. Manter-se no terreno histórico, na concretude do real, implica

em considerar e expor o processo de produção material e imediato de vida

presente nas sociedades e em suas diferentes fases. Explicar a ideia pela matéria,

ademais, é refutar uma posição que, fantástica e ideologicamente, transfere à

sociedade as características do sujeito, como se ela fosse um só indivíduo,

autônomo, autocriador e dotado de vontade própria.

Decompor as partes que constituem o fenômeno, apresentar suas mais

diversas implicações, desnaturalizar conceitos e categorias que pautam e

determinam formas de conhecimento, a partir da realidade, são exigências para

abranger sua totalidade. Por essa razão, tais elementos devem ser, a todo tempo,

42

Em A Luta de Classes como Fundamento da História (BENOIT, 1998, p. 45-69), Benoit se debruça sobre a sentença que dá início ao Manifesto Comunista. Respeitando o método dialético e a história, exclui-se qualquer traço de empiria factual, positividade e determinismo que possa vir a existir, como sói ocorrer em interpretações dogmáticas de tipo evolucionista. A negatividade que impele o movimento histórico permite pensar o capitalismo (ocidental) em sua relação expansiva com os diversos modos de produção, atuando sobre eles, ao mesmo tempo em que recebe sua influência negativa. A diacronia de tempos diversos (passado, presente e futuro) inter-relaciona-se, de modo sincrônico, “na simultaneidade dialética da história, a história entendida como luta de classes, ou mais precisamente, como teoria da superação das classes, isto é, como teoria da revolução permanente mundial” (id., ibid., p. 66).

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tomados em suas relações uns com os outros e com o todo que compõem. Isolá-

los seria imobilizar e retirar a história da dialética de Marx, reduzindo-a a uma

positividade idealista que impede que se alcance a síntese e se avance em

direção à negação da negação.

O somatório de forças de produção, capitais e circunstâncias

encontrado como algo dado pelas novas gerações e por elas modificado, dita, por

outro lado, suas condições de vida e as ideias a elas correspondentes; “[...] as

circunstâncias fazem o homem na mesma medida em que este faz as

circunstâncias” (MARX & ENGELS, 2007, p. 62). A divisão do trabalho e as formas

de propriedade que impõem, historicamente, a dominação material de uma classe

sobre a outra compõem o solo fértil de onde brotarão os elementos constitutivos

da dominação intelectual a ser analisada especificamente dentro do modo

capitalista de produção.

3.2.1 - INVERSÃO (VERKEHRUNG)

A realidade material, determinante das formas de organização social e

política dos indivíduos, delimita as noções que formam acerca daquilo que são, do

que representam, de como vivem e se organizam. Desprendidas de seus

criadores, as relações sociais (morais, religiosas, políticas, legais, organizacionais,

linguísticas, culturais) adquirem aparência autônoma, estranha e de dominação. A

realidade é invertida na e pela consciência e as ideias das verdadeiras relações e

atividades apresentam-se como efetivas e ilusórias. A analogia criada por Marx

(MARX & ENGELS, 2007, p. 48) ao expor o fenômeno da inversão, comparando-o

àquele processo físico que ocorre com os objetos na retina como em uma câmara

obscura, reforça a materialidade que o fundamenta e exibe, assim, um dos

elementos constitutivos da ideologia.

O misticismo abordado por Feuerbach em sua crítica à religião será a

base material utilizada pelo filósofo comunista para apreciar e superar o idealismo

alemão de vertente hegeliana. Contrariamente, a dialética de Hegel lhe servirá

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como método essencial tanto para a crítica do materialismo vulgar feuerbachiano

quanto para a construção de sua própria metodologia. A inversão religiosa que

deposita no reino dos céus a opulência e a riqueza em contraposição à miséria

terrena, apresentando-o como única forma de salvação, se coaduna com a

inversão idealista que dota o pensamento, a razão e suas formas institucionais

desta mesma propriedade redentora.

Na Introdução à Critica da Filosofia do Direito de Hegel (p. 145) Marx

explicita o caráter invertido das ideias e representações religiosas dos indivíduos:

“A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o

protesto contra a miséria real [...] A religião é o ópio do povo” (MARX, 2005, p.

145). Abolir essa irreal prosperidade fantástica abandonando uma condição que

necessita destas ilusões é exigência para realização da sua felicidade concreta.

Pela crítica religiosa os homens encontram em deus nada mais que seu próprio

reflexo. Revelado serem eles mesmos os criadores das criaturas que pairavam

sobre suas cabeças determinando seus atos e dirigindo suas vidas, estas se

desfazem cedendo lugar à busca autônoma por sua essência real - que, em

verdade, não existe. Diz ele: “Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora

do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e

esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque

eles são um mundo invertido.” (MARX, 2005, p. 145).

Desmascarado o fenômeno da inversão religiosa, é preciso, agora,

desmascarar o fenômeno da inversão em suas formas não sagradas: no mundo

dos homens, no direito, na política, na organização social, na própria produção e

reprodução da vida, na consciência. O materialismo de Feuerbach é insuficiente

para realizar esse desvelamento. Certas concepções apresentadas (o homem, o

mundo como algo diretamente dado, a consideração exclusiva dos fatos

puramente empíricos) esbarram em uma idealização metafísica que oscila entre a

simples observação do mundo que o cerca e a defesa filosófica de uma verdadeira

essência, sem que realize uma crítica das condições de vida atuais. A crítica

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filosófica alemã – e não somente a de Feuerbach – acaba por identificar a religião

como resultado da consciência e pressuposto de toda relação, fosse ela política,

social, jurídica, moral. (MARX & ENGELS, 2007, p. 40). A ausência da história, da

atividade humana concreta e real impede, portanto, que se investigue a inversão

em sua amplitude.

A crítica do céu realizada por Feuerbach, ao analisar o poder de

alienação da religião, deve se transformar em crítica da terra para se analisar a

origem da alienação do indivíduo na sociedade. A produção de uma consciência

invertida do mundo expressa na religião nada mais significa, destarte, que o

reflexo de um mundo verdadeiramente invertido. O trabalho realizado nos moldes

da produção capitalista imposto aos trabalhadores, longe de constituir a

humanidade, destrói o próprio homem. Não há, dentro deste modo de produção, a

transformação positiva do sujeito em sua relação com o objeto; inexiste a potência

criadora que o estabelece e o diferencia. O fenômeno da inversão passa a operar

da seguinte forma: ao invés de transformar o mundo se transformando, o ser

humano, ao trabalhar neste mundo invertido, em razão das condições às quais se

encontra submetido, dramaticamente se deforma.

Desde a divisão do trabalho no denominado modo de produção

asiático, passando pelo modo de produção escravista das sociedades gregas e

romanas, modo de produção feudal e, por fim, capitalista, o fenômeno da inversão

segue se agudizando e se complexificando tanto quanto mais complexas se

tornam as sociedades. O movimento histórico que separa cidade e campo

concentra a propriedade privada e segrega o trabalho em trabalho manual e

trabalho intelectual. Como resultado da divisão social, entrega, assim, à

consciência a possibilidade de se dedicar à contemplação pura, crendo na

existência de uma diferenciação qualitativa, superior e oposta ao labor físico.

No afã de desenvolver as forças produtivas, alavancam-se as relações

de produção existentes entre os indivíduos que participam da mesma comunidade.

A dominação de um estamento ou classe por sobre o restante da população exige

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que se criem condições para reproduzi-la. Inverter a aparência da realidade sob a

qual esta dominação ocorre permite que se aceitem, de modo mais inconteste, a

subjugação e a exploração impostas, tanto pela parte dos indivíduos dominados,

quanto por aquela composta pelos dominantes. Tomar o sujeito pelo objeto, a

parte pelo todo, o particular pelo universal, a aparência pela essência, o abstrato

pelo concreto, a ideia pela matéria, significa ocultar os processos exploratórios

impostos pelas condições materiais de produção.

Os modernos Estados nacionais e suas instituições surgem visando

garantir a manutenção da propriedade privada, do modo de produção capitalista e,

portanto, dos privilégios da burguesia já organizada como classe dominante na

sociedade civil. (MARX & ENGELS, 2007, p. 56-60). Os interesses particulares

desta classe são invertidos e tomam a aparência ilusória da universalidade sob a

forma estatal. Legalmente, os estados constitucionais passam a dominar todos os

indivíduos, elevando-se como entidades metafísicas a-históricas, eternas e

imutáveis; criaturas autônomas, místicas, independentes e superiores a seus

criadores. A criatura se transforma em criadora e os indivíduos passam a ter

existência somente quando reconhecida (burocraticamente) pelo Estado. Marx, ao

criticar essa inversão tão presente na filosofia idealista alemã da época e que

alcança intensamente a atualidade, assevera:

Se Hegel tivesse partido dos sujeitos reais como a base do Estado, ele não precisaria deixar o estado subjetivar-se de uma maneira mística. [...] A subjetividade é uma determinação do sujeito, a personalidade uma determinação da pessoa. Em vez de concebê-las como predicados de seus sujeitos, Hegel autonomiza os predicados e logo os transforma, de forma mística, em seus sujeitos. [...]. Hegel autonomiza os predicados, os objetos, mas ele os autonomiza separados de sua autonomia real, de seu sujeito. Posteriormente, o sujeito real aparece como resultado, ao passo que se deve partir do sujeito real e considerar sua objetivação. A Substância mística se torna sujeito real e o sujeito real aparece como um outro, como um momento da Substância mística. (MARX, 2005, p. 44).

A racionalidade operante e criadora do imaginário ficcional legitima a

dominação em nome de uma universalidade legal ampla, abarcando a totalidade

social. Na realidade, para a grande maioria, a posse dos direitos humanos nada

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mais significa que o direito de possuí-los, persistindo como inútil postulado formal

dentro de uma retórica ideológica burguesa que justifica sua hegemonia e a

exploração de uma classe sobre a outra, na vacuidade expressa pelo conceito

interesse de todos. “[...] A igualdade de trabalhos toto coelo diferentes só pode

consistir numa abstração de sua verdadeira desigualdade [...]” (O Capital, vol. I,

MARX & ENGELS, 1985a, p. 72), ou, ainda, na legitimação da liberdade máxima

do capital para a extração do sobretrabalho.

Alienado do trabalho que exercia, despossuído, cindido, mutilado e

destituído de suas capacidades naturais, o trabalhador submetido ao processo de

trabalho do modo capitalista de produção perde o conhecimento destinado à

sobrevivência e adquirido historicamente por sua classe. A concentração das

energias intelectuais produtivas e do próprio corpo social de trabalho passa à

figura do capitalista, aparecendo aos trabalhadores como uma propriedade alheia,

uma unidade de poder estranha que os domina e com a qual se confrontam. (O

Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 284).

O fenômeno da inversão que mitifica o objeto e ilude os sujeitos pode

ser notado, ainda, em diversas outras relações: no valor de uso e no valor, na

coisificação das relações humanas, no fetiche do dinheiro e da mercadoria, no

trabalho abstrato e concreto e, por fim, na própria relação capital-trabalho. Ao

afirmar que não existem contradições ou que estas já foram superadas, que o

sistema funciona ou funcionaria se fosse melhor administrado, que há ou deveria

haver harmonia entre as pessoas, que todos são livres e iguais, que não existem

classes sociais, mas apenas indivíduos participando de uma mesma e única

sociedade inverte-se a realidade que, desvelada, manifesta o seu contrário-

negativo. Vela-se, deste modo, de forma ainda mais obscura, a luta de classes e

ocultam-se as contradições inerentes ao modo capitalista de produção. As

degradantes condições a que são submetidos os trabalhadores se ofuscam,

então, sob o letreiro iluminado dos princípios burgueses de “liberdade, igualdade,

propriedade e Bentham”. (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 145).

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3.2.2 - ALIENAÇÃO (ENTÄUSSERUNG)

O senso comum costuma usar a denominação alienado para uma

pessoa que não conhece, não compreende verdadeiramente ou não atua

politicamente na sociedade dentro da qual se encontra inserida. Por que utilizar-se

especificamente deste termo? Há alguma relação entre o conceito de Marx e o

senso comum, ou são eminentemente diferentes? Em se aceitando esta primeira

posição, como uma característica aparentemente subjetiva pode vir a alcançar a

totalidade social?

O trabalho que faz do ser humano aquilo que ele vem a ser assumirá

preponderância no processo de alienação. O processo de trabalho compreendido

em sua forma mais simples, composto por objetos, instrumentos ou meios e

atividade, é abordado por Marx no capítulo V de O Capital, dando início à negação

das concepções burguesas expostas na Seção I. O universal abstrato do qual se

utiliza é o trabalho, o processo de trabalho comum a todos os modos de produção,

pura relação metabólica homem-natureza e cuja diferenciação consiste,

precipuamente, na teleologia.43 Por tais considerações é que se torna possível

afirmar que o processo de trabalho se extingue no produto, mas, ao mesmo

tempo, nele se oculta. O produto não indica, de per si, sob que condições foi

criado ou que tipo de relação social o produziu, se foi cunhado sob a escravidão,

de modo coletivo ou assalariado. Ele oculta todas as demais relações de trabalho

tornando-as invisíveis àqueles que dele se servem. Não será, então, o produto, a

mercadoria, que revelará o que é, de onde surge, como se mantém e se reproduz

a alienação.

43

Admitir-se que a diferença entre os homens e os animais se estabeleça no campo meramente antropológico implica em reduzir a carga dialética da obra de Marx, recortando-a em partes estanques, bem como em recusar o fim pretendido. Não há que se acolher, portanto, um essencialismo a-histórico e imutável na condição humana. A teleologia que diferencia o ser humano do animal é a mesma que impulsiona a teoria em direção à prática revolucionária. O Capital, de acordo com Benoit (O negativo em Marx e Sobre o desenvolvimento dialético do Programa), se lança para além da mera crítica teórica, superando-a (Aufhebung) ao apresentar em conjunto dialético um conteúdo programático destinado à superação do modo de produção capitalista pela classe trabalhadora.

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Contudo, desconsiderá-lo por completo seria excluir forma e conteúdo,

pois a mercadoria contém, em seu germe, todas as demais contradições das

sociedades em que domina o modo de produção capitalista e, portanto, onde mais

firmemente se estabelece a ideologia. Forças de produção, divisão do trabalho e

formas de propriedade são condições que novamente devem ser analisadas para

a adequada apreensão do processo de alienação. O modo pelo qual o trabalhador

cria seu produto final, os instrumentos dos quais se utiliza, os objetos, os meios

que se colocam entre ambos fornecem certos subsídios distintivos, tanto no que

se refere aos trabalhos particulares, quanto com vistas à universalidade deles em

cada época econômica.

O trabalho dividido naturalmente e realizado de forma cooperada nas

comunidades primitivas onde prevalece a propriedade coletiva das forças de

produção e dos objetos permite ao indivíduo reconhecer-se, diretamente, no

metabolismo com a natureza e no produto por ele criado. O desenvolvimento

daquelas condições torna mais complexa e mediada esta relação homem-

natureza, reduzindo-o, no modo de produção escravista, a simples instrumento,

quando submetido ao trabalho material, e a proprietário dos meios e instrumentos

de produção e de tudo aquilo que é produzido, na condição de cidadão. O

reconhecimento da humanidade na atividade e no resultado, sendo res, não

ocorre ou, sendo dono, se oculta por trás das relações de propriedade. No regime

feudal o camponês exerce o controle parcial da terra, dos meios e instrumentos

produtivos e de parte ínfima de sua produção, destinando-a a sua subsistência. Os

senhores feudais, a nobreza e o clero, afastados do trabalho manual, garantem a

manutenção de seus privilégios na propriedade rural, extraindo sua riqueza do

trabalho servil a eles submisso.

A transição do modo de produção feudal para o capitalismo segrega

violentamente o trabalhador direto dos meios, instrumentos e objetos da produção.

A expropriação aliena seus bens ao proprietário capitalista ao ponto de não mais

reconhecê-los como seus. Resta-lhe, tão somente, a venda de sua força de

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trabalho no mercado como forma de manter-se vivo. Essa oferta é feita pelo

trabalhador ao capitalista. Eles se encontram no mercado como dois sujeitos livres

e proprietários de mercadorias distintas, o primeiro com o trabalho (valor de uso) e

o segundo com o salário (valor de troca), e estabelecem o trabalho assalariado

como um novo tipo de relação social. Esta relação só adquire existência mediante

a alienação prévia de todos os outros meios de subsistência; é ela lei necessária,

conditio sine qua non para a troca entre capital e trabalho. O trabalhador aliena,

portanto, seu trabalho como força produtiva de mercadorias ao capital que dele se

apropria, apropriando-se, por conseguinte, da riqueza que produz.

O trabalho alienado é qualquer trabalho abstratamente considerado.

Por mais que a um trabalho particular corresponda um capital determinado, essa

determinabilidade é totalmente indiferente frente ao capital enquanto tal. Dado que

seu fim, ao comprar o trabalho, é o valor de uso da produção de mais-valor

independente da forma assumida, o capital possui em si a totalidade da

substância e a abstração de toda particularidade. O mesmo ocorre com o trabalho

que com ele se defronta. Por exemplo, na relação entre artesãos e mestres na

Idade Média o caráter econômico se fazia valer na especificidade, na

determinabilidade do trabalho realizado dentro desta relação, com o capital

possuindo uma forma limitada, não sendo, ainda, capital em geral; capital e

trabalho eram ainda certos e determinados de forma particular. Já na relação

econômica existente sob o capitalismo, isso não ocorre, pois somente este modo

material de produção particular (e o estágio específico de suas forças produtivas

industriais) é capaz de apresentar, pelo seu desenvolvimento, a “determinabilidade

particular da relação de produção, da categoria – nesse caso, capital e trabalho

[...]” (MARX, 2011, p. 231) como totalidade.44 Para o capital, é indiferente o tipo

44

O capital em geral é abstração e concretude. Ele aparece: “1) só como uma abstração; não como uma abstração arbitrária, mas uma abstração que captura a differentia specifica do capital em contraste com todas as outras formas de riqueza – ou modos – em que se desenvolve a produção (social). São as determinações comuns a todo capital enquanto tal [...]. 2) mas o capital em geral, diferentemente dos capitais reais particulares, é ele próprio uma existência real. [...] O duplo-pôr, o relacionar-se consigo mesmo como estranho [entre países diversos, por exemplo] torna-se desgraçadamente real neste caso. Assim, se o universal, por um lado, é somente

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específico de trabalho realizado (se de pastoreio, torneiro mecânico ou filósofo),

desde que, depois de comprado seu valor de uso, gere a mais-valia pretendida;

para o trabalho, tampouco importa o tipo de capital (industrial, rural, financeiro)

que o compra como valor de uso, contanto que lhe restitua o valor de troca

destinado à subsistência. A indeterminabilidade alcança, assim, a totalidade das

relações sociais. Porém, por mais que capital e trabalho estejam ocultos pela

indiferença que possuem um com relação ao outro, ainda não há aqui a

integralidade do fenômeno da alienação. Ela só se completa e se torna categórica

quando o velamento é autorreferente, em si e para si:

Por outro lado, o próprio trabalhador é absolutamente indiferente à determinabilidade de seu trabalho [e o capitalista à de seu capital]; o trabalho enquanto tal não tem interesse para ele, mas tão somente na medida em que é trabalho em geral e, enquanto tal, valor de uso para o capital. Ser portador do trabalho enquanto tal, i.e., do trabalho como valor de uso para o capital, constitui, portanto, seu caráter econômico; é trabalhador por oposição ao capitalista. (MARX, 2011, p. 231).

O trabalho se transforma: de uma atividade específica, determinada,

que exigia certas habilidades intelectivas, perícias particulares e exclusivas de um

indivíduo, contando com um caráter artístico, a algo sem nenhuma forma, ato

simples, puramente mecânico, físico, abstrato e totalmente indiferente a quem o

executa. O sujeito do processo, da relação econômica, aparece como sendo o

trabalho. É ele – o produtor de riquezas para o capital – quem fornecerá a

condição e as características intrínsecas essenciais de um trabalhador. Apagou-

se, na relação metabólica do ser humano com a natureza, qualquer traço de

naturalidade. A determinação econômica específica toma seu lugar. O trabalho

passa, assim, de fim diferenciador em criação, criatura e criatividade a mero meio

para produção da vida material, garantidor de uma existência alienada, forma

negativa de atividade autônoma e autômata.

differentia specifica pensada, por outro, é forma real particular ao lado da forma do particular e do singular.” (MARX, 2011, p. 369-370).

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Expulso do campo para as cidades, expropriado violentamente dos

meios e instrumentos de produção na passagem do feudalismo para o capitalismo,

o sujeito transforma-se, agora, em mais um objeto para a produção de mais-valia.

Alienado da teleologia diferenciadora do trabalho, aliena-se de si como indivíduo.

Desconstruído, despossuído, indiferente, ao mesmo tempo em que é ocultado,

oculta a sua própria humanidade. A negação se expande do uno ao múltiplo e

amplia-se do indivíduo à classe. O poderoso instrumento da alienação nega o

reconhecimento do trabalhador como trabalhador, nega a existência (conjunta) de

outros trabalhadores, nega a classe trabalhadora e, por fim, nega o próprio

capital.45

3.2.3 - ESTRANHAMENTO (ENTFREMDUNG)

A violenta separação entre trabalhador e objetos do trabalho (meios,

instrumentos, produtos) produz no curso de seu desenvolvimento histórico um

abismo aparentemente intransponível até o ponto em que estes componentes do

processo de produção se tornam fundamentalmente estranhos para ele. A divisão

social do trabalho imposta pelo sistema capitalista agudiza a divisão das próprias

condições de trabalho que tomam a aparência de um mundo próprio,

independente e segregado frente aos indivíduos que as criam. Estilhaçados, os

trabalhadores alienam-se do trabalho, de si, da classe e opõem-se uns aos outros,

“ao passo que estas forças apenas são forças reais e verdadeiras na relação e na

conexão destes indivíduos uns com os outros” (MARX & ENGELS, 2007, p. 94).

Não aparecendo mais como suas forças, mas alheias, propriedades

privadas do capitalista, as forças de produção adotam a forma material de forças

destes proprietários. Surgindo como entes contrapostos e hostis à própria vida,

45

Novamente: o capital é o “capitalista que, enquanto tal, se defronta com o trabalhador”. (MARX, 2011, p. 236). A despersonalização metafísica pela abstração dos indivíduos em um conceito qualquer, ou a particularização singular de um capitalista específico ou um trabalhador individual são faces da mesma moeda ideológica. O confronto se dá entre classes. São as classes em luta o motor da história. É a relação dialética estabelecida entre elas, compostas pelos indivíduos, que permite desdobrar a multiplicidade de determinações e chegar à sua totalidade social.

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desprendidas dos indivíduos que as criaram, tornam-se a eles opostas e

estranhas. O nexo que conectava os indivíduos com as forças de produção e com

sua existência, o trabalho, por ter se tornado alienado e alienante, não mais os

une, tendo perdido a aparência de atividade autônoma de outras épocas,

restando-lhe somente a característica de meio (único) destinado à sobrevivência.

Será somente com o capitalismo, no entanto, que as forças de produção se

desenvolverão até que se alcance a totalidade, assumindo:

[...] essa forma indiferente para a relação dos indivíduos na condição de tais indivíduos, porque sua relação [nos modos de produção anteriores] ainda era limitada. De outra parte a maioria dos indivíduos se opõe a essas forças de produção, indivíduos dos quais essas forças se desprenderam e que, portanto, despojados de todo conteúdo real de vida, transformaram-se em indivíduos abstratos e, por isso mesmo, vêem-se postos em condições de se unirem uns com os outros na condição de indivíduos. (MARX & ENGELS, 2007, p. 94-95, grifos do autor).

O capitalismo, em sua forma mais simples – o ato da troca direta de

produtos – coloca em contato no mercado dois indivíduos independentes,

possuidores de mercadorias diversas: A, proprietário da mercadoria x, e B,

proprietário da mercadoria y. X e y só se tornam mercadorias em razão da troca;

sem ela, sem o contato dos indivíduos visando o intercâmbio, eles são meros

objetos de uso. Apenas por meio da troca eles passam a existir como não-valor de

uso para seus possuidores, que os consideram como simples valor de troca (O

Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 81-82). Ao se defrontarem como

proprietários de coisas alienáveis, autônomos e diferentes entre si, confrontam-se

por meio de uma relação de estranhamento (Entfremdung) recíproco, que, entre

membros de uma comunidade primitiva, no interior da vida comunal, por exemplo,

inexistiria. Todas as relações de dependência pessoal outrora existentes nestas

comunidades são dissolvidas pela troca de mercadorias e no valor que assumem

externamente.

Tal caráter de externalidade do estranhamento ao mesmo tempo em

que apresenta a particularidade dos sujeitos do ato de troca (A é proprietário de x

e B é proprietário de y) proporciona-lhes o feitio de universais abstratos (no

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processo de troca todos são proprietários, livres e independentes), ocultando, em

sua verdadeira essência interna, a totalidade das relações sociais a que são

submetidos. O bellum ommium contra omnes hobbesiano que dá início, na

modernidade, às mais diversas teorias (inclusive em Hegel) e que opõe o

interesse particular ao interesse da sociedade como um todo aparece como regra

geral, eterna e imutável. Ao se idealizar, nestas teorias, o indivíduo, considerando-

o isoladamente, abstraído da sociedade, as relações sociais aparecem para a

consciência sob a mesma forma: autônomas, independentes, separadas e opostas

ao todo, casualmente externas e estranhas àqueles que delas participam.

A negação universal (MARX, 2011, p. 105), cujo confronto entre os

sujeitos é resultado da oposição entre interesses individuais no qual um, buscando

satisfazer suas necessidades, impede a satisfação das necessidades do outro,

feita a passagem da aparência particular à essência oculta como totalidade,

mostra-se, na realidade, como uma relação de mútua dependência. Os indivíduos

produzem tão somente na e para a sociedade. O interesse privado é, antes de

mais nada, um interesse socialmente determinado. Satisfazê-lo dependerá,

integralmente, das condições e meios existentes e determinados pelo todo social.

Essa conexão exige que o indivíduo concretamente considerado (não existindo

isoladamente e nem produzindo tudo aquilo de que necessita para sobreviver)

precise produzir bens para trocar que interessem ao conjunto da sociedade. Para

ele, estes objetos devem possuir unicamente um valor de troca, expresso em um

produto universal e individualizado: o dinheiro.

Pouco importa a forma de manifestação individual do trabalho que

desempenha ou das qualidades particulares do produto criado, o que se terá em

conta na sociedade, o poder que exercerá sobre os outros indivíduos, riquezas e

atividades será o de proprietário do valor de troca, cuja expressão é dada pelo

dinheiro. “Seu poder social, assim como seu nexo com a sociedade, [o indivíduo]

traz consigo no bolso” (MARX, 2011, p. 105). O valor de troca oculta, em sua

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universalidade, toda e qualquer particularidade, negando trabalho e criação,

concretude e realidade, individualidades e indivíduos, história e sociedade.

Com a instituição à força da divisão social do trabalho – diferindo

daquela espontânea, natural, existente nas famílias das comunidades primitivas,

mas nem por isso perdendo a característica do estranhamento –, as atividades

materiais e intelectivas destinam-se a (classes de) indivíduos diversos, cabendo a

alguns a produção e o trabalho, e a outros o desfrute e o amplo consumo dos

bens. Definidas e sedimentadas as atividades sociais imputadas a cada sujeito,

consolida-se o próprio produto em um poder objetal (sachliche Macht (MARX &

ENGELS, 2007, p. 55-57)) que não apenas escapa ao controle do criador, como

acaba por dominá-lo. O trabalho, o produto e a própria produção aparecem ao

indivíduo como coisas, algo externo, independente de sua vontade, estranhos a

ele.

A troca universal que os conectava reciprocamente toma, também,

aparência estranha, autônoma, que os controla ao invés de ser por eles

controlada. O valor de troca, fetiche da mercadoria, reifica as relações sociais ao

mesmo tempo em que personaliza as coisas. O poder pessoal, o trabalho

diferenciador, a atividade produtiva das pessoas relacionando-se entre si, tornam-

se, pelo movimento histórico, poder coisificado expresso pelo dinheiro. O dinheiro

somente adquire tal poder simbólico e social na medida em que os indivíduos se

estranham em suas relações pessoais. Descolando-se da mercadoria, tornando-

se algo externo e estranho a ela, o dinheiro imputa-lhe, pelo valor de troca, a

permutabilidade e inverte a relação, secundarizando a mercadoria e seu valor de

uso (e, consequentemente, os próprios indivíduos) ao privilegiar seu valor de troca

universalizado. Essa relação coisificada entre os sujeitos, antítese imanente da

conexão social, não é, como parece, natural e espontânea, mas produto histórico,

momento preciso de um desenvolvimento social.

A condição estranhada, base das relações sociais instituídas pelo modo

de produção capitalista, vela, necessariamente, as relações de dominação e

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exploração de uma classe sobre a outra. Acreditando-se totalmente determinados

pelas estranhas forças sociais, os indivíduos a elas se subordinam. Não as

controlando, mas sendo por elas controlados, de sujeitos transformam-se em

objetos assujeitados. A aparente contradição entre os interesses particulares e os

universais gera um poder social estranho, alheio (tal como ocorre com os meios,

instrumentos e objetos de produção), que se coloca de forma autônoma acima dos

indivíduos e passa a determinar sua existência. Ao Estado, criado como ente

independente, é reconhecido o poder de conjugar os interesses opostos (entre os

particulares em luta e entre estes e os interesses universais) em um mesmo

interesse geral. Os indivíduos que se estranham na busca pela satisfação de suas

necessidades, ao se relacionarem de modo reificado, invertem a relação e passam

a perfilhar, no Estado, uma força metafísica personificada que organiza a divisão

do trabalho e disciplina todos os aspectos da produção e reprodução material da

vida em sociedade.

Por mais que se admita o caráter ilusório da categoria da universalidade

e da justificativa apresentada para sua criação, o Estado se ergue sobre uma base

real: os interesses de classe e sua divisão do trabalho. O desenvolvimento

histórico das forças produtivas que separa e opõe capital e trabalho insere o

Estado como uma organização essencial para a manutenção dos privilégios e

interesses das classes dominantes. Existindo, na realidade, apenas com a função

de garantir a propriedade privada, adquire uma forma geral que alcança todos os

indivíduos, ocultando sob as leis e as instituições criadas os interesses

particulares da burguesia. Assim, a criação do Estado, quando considerada em

sua forma ilusória, visa unificar e balizar diferentes interesses em um só interesse

geral, aglutinando os indivíduos sob um mesmo ideal. Antiteticamente, ao se

admitir seu fundamento histórico e real, fruto da luta de classes, aprofunda-se

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ainda mais a separação entre proprietários privados dos meios de produção e

trabalhadores assalariados, opondo-os diretamente e revelando a dominação.46

3.2.4 - FRAGMENTAÇÃO (ZERSTÜCKELUNG)47

A cooperação simples presente em vários tipos de trabalho não altera a

maneira pela qual o sujeito cria um produto. Os artesãos, os trabalhadores das

corporações de ofício, o camponês e sua divisão familiar das tarefas, nenhum

deles tem fracionadas e segregadas as atividades que exercem. Com o

desenvolvimento da divisão do trabalho, que tem por base a separação entre

campo e cidade, essa cooperação adquire a forma clássica da manufatura e os

ofícios únicos se repartem em vários atos autônomos a serem realizados de modo

independente por cada trabalhador. As ações parciais a que se vê obrigado a

praticar fomentam, de maneira artificial, uma única habilidade pormenorizada

necessária à produção, descartando e restringindo o exercício pleno de todas as

outras. Reprimidos os inúmeros impulsos e capacidades humanas, aglomerados

em um só e mesmo ato, divide-se, então, não apenas o trabalho, mas o próprio

indivíduo a ele submetido:

Certa deformação física e espiritual é inseparável mesmo da divisão do trabalho em geral na sociedade [por exemplo: um sapateiro não saber plantar milho]. Mas como o período manufatureiro leva muito mais longe essa divisão social dos ramos de trabalho e, por outro lado, apenas com sua divisão peculiar alcança o indivíduo em suas raízes vitais, é ele o

46

Do mesmo modo, as diversas batalhas travadas em seu interior (direitos civis das maiorias subjugadas historicamente, dos seres vivos, preservação do meio-ambiente, democracia, maior participação popular, formas de governo, etc.) são formas ilusórias que se sustentam sob o fundamento histórico da luta de classes. Por isso, é esta a única luta capaz de, unificando todas as outras em uma totalidade concreta, superar (Aufhebung) este modo de produção, promovendo uma transformação radical das estruturas existentes. (MARX & ENGELS, 2007, p. 56-57). 47

Stück (substantivo neutro): pedaço, parte, peça, fragmento, trecho. Zerstückeln (verbo): partir em pedaços, fragmentar, parcelar, desmembrar; despedaçar, esquartejar. Como, a princípio, não há em Marx a referência a este vocábulo, optou-se pela palavra alemã de ampla utilização entre os estudiosos do tema e que fornece maior precisão ao conceito que se pretende apresentar sem que se confunda com outro – aquele referente à divisão do trabalho, do qual advém, a ele não se restringindo, porém. Para os dicionários consultados, ver Referências.

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primeiro a fornecer o material e dar o impulso para a patologia industrial. (O Capital, vol. I, MARX & ENGELS, 1985a, p. 285).

De meados do século XVI ao final do século XVIII a manufatura se

amplia sob as bases capitalistas reorganizando o processo produtivo e aparece

como progresso histórico ao expandir as potências econômicas da sociedade,

reduzindo a relação tempo/espaço da produção. Por se configurar justamente

dentro deste modo de produção, destina-se à sua autovalorização, gerando novas

formas (mais elaboradas, refinadas e civilizadas) de exploração. A divisão

manufatureira do trabalho que exige certo grau de aprimoramento da própria

divisão social do trabalho, concomitantemente, a desenvolve e multiplica até o

ponto em que se torna um entrave à acumulação ampliada de capital, sendo, por

isso, gradualmente superada.

Manufatura e capitalismo desenvolvido acabam por diferenciar-se,

assim, quantitativa e qualitativamente, ao necessitarem, cada qual em sua divisão

do trabalho, de certo número de trabalhadores produtivos que serão utilizados de

modos diversos. No primeiro caso os indivíduos encontram-se simultaneamente

em uma mesma aglomeração, configurando os trabalhadores inseridos no

processo como seu pressuposto material. Já no segundo, por se tratar de uma

divisão ocorrida no seio da sociedade, a densidade populacional (ainda que

relativa) se tornará condição de existência para o fenômeno. A diferença não se

restringe, mais uma vez, à quantidade, mas, antes, transmuda-se dela para uma

diferença qualitativa.

Na manufatura a conexão dos trabalhos parciais que, por si, não

produzem mercadorias, acontece somente pela venda conjunta da força de

trabalho a um mesmo capitalista que concentra, isoladamente, os meios de

produção; ao passo que no capitalismo o trabalho é dividido no interior da

sociedade, fracionados os meios de produção entre vários fabricantes

independentes, sendo a mediação entre eles realizada pela compra e venda de

seus diferentes produtos. Ao despotismo do proprietário manufatureiro que

submete diretamente à sua autoridade os trabalhadores divididos dentro de sua

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oficina, confrontam-se, em proporção inversa, os produtores capitalistas

independentes inseridos no livre jogo hobbesiano do mercado. O trabalhador

despojado violentamente de seus meios e instrumentos de produção e

sobrevivência é obrigado a submeter-se à produção e à sua divisão do trabalho,

tornando-se mais um acessório na oficina do capital.

Com as navegações e a instituição do regime colonial, a divisão social

(capitalista) do trabalho é estendida a uma escala mundial, ampliando produção e

comércio e parcelando ainda mais o indivíduo.

Troca e divisão do trabalho condicionam-se reciprocamente. Como cada um trabalha para si e seu produto nada é para ele, tem naturalmente de trocar, não só para participar da capacidade de produção universal, mas para transformar seu próprio produto em um meio de vida para si mesmo. (MARX, 2011, p. 106).

Universalizadas produção, divisão do trabalho e circulação, o dinheiro

se interpõe como equivalente geral da multiplicidade de mercadorias produzidas e

gera, pela independência que toma o trabalho do produto, a “possibilidade da

divisão absoluta do trabalho” (MARX, 2011, p. 147) – e, por conseguinte, também

da produção e circulação.

Dado que o trabalho nas sociedades capitalistas existe para a produção

de valores de troca, o dinheiro, representante material da riqueza universal, é

colocado no processo como unidade entre meio e fim, configurando o trabalho

concreto, particular, específico, como simples trabalho assalariado, abstraído de

suas características diferenciadoras, sem nenhuma particularidade, tanto para

aquele que o vende (trabalhador), como para aquele que o compra (capitalista). A

indiferença do trabalhador frente à atividade que exerce e ao objeto produzido, por

ambos não lhe pertencerem, neles não se reconhecendo, é consolidada ao

tomarem a forma ofuscante do dinheiro. O fetiche é elevado a um novo patamar e

as relações sociais reificadas fragmentam-se em relações pessoais particulares

que ocultam a classe como um todo. As antíteses imanentes ao sistema são

apagadas pelas relações monetárias e as diferenças tomam a aparência de

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igualdade: todos são iguais porque todos são livres proprietários; logo, livres

trocadores dos produtos de seus trabalhos, indiferentes à particularidade entre

objetos, atividades ou até entre si. Reis espanhóis e trabalhadores venezuelanos

aparecem como iguais para o vendedor porque podem comprar pelos mesmos

US$ 15,00 um livro de S. Žižek ou cinco latas de coca-cola.

À aparência formal de igualdade que oculta a realidade contrapõe-se o

movimento histórico que desvela as diferenças essenciais para a compreensão da

totalidade que compõem. Ao se considerar o indivíduo como determinado pela

sociedade (uma vez mais: sem determinismos que impediriam a aplicação correta

do método dialético), depreende-se que sua existência social só ocorre em virtude

de produzir valores de troca o que, de per si, é a “[...] negação total de sua

existência natural.” (MARX, 2011, p. 190), pois “O próprio trabalho, assim como

seu produto, é negado como o trabalho do trabalhador particular, singularizado.”

(id., ibid., p. 387, grifo do autor). Com o aprofundamento da análise crítica do

processo, toda aparente carga de liberdade e igualdade se desvanece na

realidade exposta pela concretude do sistema.

O indivíduo é limitado à sua profissão particular e, pela inversão,

acredita ser aquilo que faz. Sua individualidade, contudo, é negada pelo trabalho

alienado e, fragmentado, torna-se dominado, assujeitado pela tarefa que exerce.

Diferenciados os instrumentos de trabalho pela introdução das máquinas no

processo produtivo, diferenciam-se, cada vez mais, os ofícios que devem lidar

com estes objetos. Independentes e autônomos entre si, trabalhos parciais

tornam-se ofícios especializados e passam a ser determinados pelo próprio

processo produtivo que em seu desenvolvimento encerra, nas fábricas,

trabalhadores e maquinário industrial advindo da produção manufatureira.

Separadas e isoladas as diferentes operações, passa-se à classificação e divisão

dos trabalhadores de acordo com sua qualificação e à hierarquização destas

forças de trabalho que, para os sujeitos, se expressa na diferença salarial. A

grande indústria completa o processo de alienação e estranhamento ao separar,

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ainda mais incisivamente, o processo produtivo e a “ciência como potência

autônoma da produção” (MARX, 2011, p. 334).

O capital que, historicamente, fragmentando a produção da vida

fragmenta a consciência, neste mesmo movimento, além de aumentar a

capacidade das forças produtivas e a extração da mais valia, impede o mútuo

reconhecimento dos trabalhadores como classe em si e para si, mantendo e

reproduzindo a exploração em escala sempre ampliada. Cindidos trabalho material

e intelectual no interior da sociedade, estabelece-se entre eles uma hierarquia

aparentemente indestrutível. O caráter de classe que tomam – i.e., por terem sido

destinados a classes distintas como resultado da divisão social do trabalho –

possui uma dupla função: afirmar a dominação capitalista por meio da apropriação

privada dos meios de produção material e intelectual e impedir aos trabalhadores

o livre acesso a esses bens.

A visão fragmentária que o indivíduo experimenta acerca de si mesmo e

do mundo que o cerca se manifesta sob a forma caleidoscópica: partes que, a

cada momento, parecem constituir variados conjuntos sem que, no entanto,

deixem de ser partes separadas e sem que estes conjuntos se conectem em uma

totalidade. Nome, profissão, estado civil, nacionalidade, naturalidade, numeração

identificadora fornecida pelo Estado, opiniões, sensações, preferências, escolhas,

julgamentos, críticas, restringem-se à particularidades independentes entre si. Por

meio da fragmentação, oculta-se e nega-se a totalidade como síntese de múltiplas

determinações, “unidade da diversidade” (MARX, 2011, p. 55). O universal

concreto presente no sistema capitalista e na classe trabalhadora se apaga frente

à divisão social imposta para a produção da vida material. A consciência invertida,

alienada, estranha e estranhada, despedaça-se quanto mais se especializa o

trabalho produtivo.48

48

“[...] Trabalho produtivo é simplesmente o trabalho que produz o capital. [...] O trabalho só é produtivo na medida em que produz o seu próprio contrário. [...]” (MARX, 2011, p. 238).

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153

3.3 - ELEMENTOS ACIDENTAIS OU APARENTES

A complexidade adquirida por ambos, processo produtivo e ideologia,

no curso do desenvolvimento histórico permite identificar algumas especificidades

preponderantes em cada época ao se expor o movimento resultante do embate

travado entre as principais forças que as compõem. Proprietários dos meios e

instrumentos de produção e não-proprietários confrontam-se no terreno material e

na batalha de ideias dele advinda. As ideias dominantes nas sociedades, ainda

que formadas por meio das e dentro das contradições dialéticas, serão as ideias

dos indivíduos que possuem o poder objetal sobre os bens destas sociedades. Por

mais que os indivíduos despossuídos criem suas próprias ideias – também no

processo dialético –, elas serão submetidas, como tudo o mais, ao domínio

exercido pela parte proprietária dos meios de produção material e intelectual,

transformando-as e propagando-as de acordo com seus interesses.

As ideias dominantes não são outra coisa a não ser a expressão ideal das relações materiais dominantes, as mesmas relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, as relações que fazem de uma determinada classe a classe dominante, ou seja, as ideias de sua dominação. [...]. Por exemplo, em uma época e em um país em que a coroa, a aristocracia e a burguesia disputam o poder, em que, portanto, a dominação está dividida, impõe-se como ideia dominante a doutrina da divisão de poderes, ora proclamada como “lei eterna”. (MARX & ENGELS, 2007, p. 71, grifo nosso).

A posição de inferioridade da mulher é, sobretudo, decorrência da

divisão natural do trabalho instituída pelos homens nas comunidades primitivas

por meio da dominação pela força física. Os estratos dominantes escravocratas na

Grécia Antiga, igualmente, idealizando suas relações materiais, criam a ideia e a

prática da democracia ateniense, conservando resguardados seus privilégios. Os

Estados Nacionais modernos, da mesma forma, são resultado da dominação

burguesa e sua necessidade de expansão incessante das forças produtivas,

reproduzindo as estruturas que mantém a burguesia como classe dominante.

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154

Acreditar no politeísmo e na capacidade que um indivíduo possui em se

comunicar com os deuses é aceitar seu poder sobre os outros indivíduos da

mesma comunidade. Igualmente, o status de imperador ou rei é fornecido

misticamente pelas ideias de consanguinidade ou divindade advindas das

relações estabelecidas dentro dos respectivos modos de produção.49 Pode-se

dizer o mesmo acerca do escravismo, jesuitismo, escolástica, racionalismo

ocidental, antropocentrismo eurocêntrico, cientificismo. Historicamente, a

transformação pela qual passam estes elementos acidentais presentes nas ideias

dominantes reflete, na verdade, a alteração nas condições de produção e, por

conseguinte, dos estratos dominantes como resultado concreto da luta de classes.

Contudo, ainda que estas modificações se façam notar e que tais

elementos acidentais ou aparentes estejam restritos a tempo e espaço – ou a uma

transitoriedade que lhes providencie esse mesmo caráter –, eles adquirem em

cada época algumas características imprescindíveis a sua manutenção e

reprodução como ideias dominantes. Universalidade, eternidade, certeza,

verdade, naturalização, determinismo, proporcionam a devida carga de validade

ao justificarem por meio da ideologia as relações de dominação existentes na

sociedade. As ideias tomam, assim, uma forma mais geral e abrangente,

abarcando todos os indivíduos, dominantes ou dominados.

Deste modo, interesses particulares dos grupos dominantes são

apresentados ao conjunto da sociedade como sendo interesses de todos os seus

membros. As ideias que prevalecem se tornam cada vez mais abstratas, distantes

da realidade que as gera, tomando a aparência de universalidade. Aparentemente

descoladas daqueles que as criam, descolam-se da própria história; parecendo ter

49

“Se é o nascimento, diferentemente das outras determinações, que dá imediatamente ao homem uma posição, então é seu corpo que faz dele este funcionário social determinado. Seu corpo é seu direito social. Neste sistema, a dignidade corporal do homem ou a dignidade do corpo humano (o que pode, em pormenor, ser assim concebido: a dignidade do elemento natural, físico, do Estado) aparece de modo que as dignidades determinadas e, em verdade, as mais altas dignidades sociais, são as dignidades de corpos determinados, predestinados por nascimento. Por isso, é natural, na nobreza, o orgulho do sangue, da ascendência, em suma, da biografia de seu corpo; e é naturalmente essa concepção zoológica que tem na heráldica a sua ciência correspondente. O segredo da nobreza é a zoologia.” (MARX, 2005, p. 121).

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sempre existido, perpetuam-se como as únicas ideias realmente válidas e,

destarte, imutáveis (MARX & ENGELS, 2007, p. 74-75). Eternizadas na

consciência, são naturalizadas pelos indivíduos que por meio delas determinam

suas vidas. Certos de sua verdade, das verdades de suas crenças, não há espaço

para questionamento, espanto, crítica. Afastada a dúvida, não resta sequer a

aporia.

3.3.1 - LIBERTÉ, EGALITÉ, FRATERNITÉ X DOMINAÇÃO

Desde o fim do feudalismo os ideais da Revolução Francesa

simbolizam a destituição da nobreza e a ascensão da burguesia como classe

dominante. Cabeças e conceitos são cortados na guilhotina, sendo rapidamente

substituídos por uma nova espécie de dominação, mais ampla e densa. Liberté,

Egalité, Fraternité são um contundente exemplo do nível de abstração alcançado

por suas ideias e que fundamentam, legalmente, tanto a propriedade privada

moderna quanto os Modernos Estados Nacionais. Livres e iguais, trabalhadores e

capitalistas encontram-se no mercado como proprietários e trocam suas

mercadorias. Livres e iguais, os homens submetem-se às mesmas leis criadas por

sua vontade e ao Estado e a suas instituições, fundados por meio de um amplo

contrato social. Livres e iguais, os cidadãos idealizam sua condição e declaram-

na, universalmente, como direitos humanos.

Essa divinização das categorias e abstrações burguesas e sua

eternização sob a forma de verdade única, tomando-as como sujeitos históricos,

são subterfúgios ideológicos que ocultam as condições materiais de produção e a

realidade concreta das relações de dominação, contribuindo para sua manutenção

e reprodução. No “Capítulo do capital” dos Grundrisse, Marx, ao analisar a

transformação do dinheiro em capital, expõe o processo de velamento –

chancelado pelos conceitos abstratos de igualdade e liberdade – das contradições

imanentes às sociedades capitalistas.

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As antíteses reais apagam-se nas relações monetárias mais simples:

mercadoria ou trabalho sendo determinados por valores de troca determinam os

sujeitos também como trocadores. Não há nenhuma diferença entre eles, pois sua

existência considerada sob a forma pura é meramente econômica, i.e., cada um

deles, reciprocamente, é trocador, logo, proprietários de mercadorias equivalentes

como valores de troca e, portanto, iguais. O conteúdo dessa forma, as diferenças

individuais ou naturais porventura existentes são abstraídas do âmbito da

economia, tornando-se indiferentes aos sujeitos que trocam.

Igualados entre si e se deparando em relação social recíproca, é

preciso que, na vontade de se ter a mercadoria alheia, seja somada à igualdade a

liberdade de ambos para que não ocorra a apropriação privada pela força. O

interesse comum é reconhecido como fato pelas partes e, excluída a violência, o

sujeito A cede livremente sua propriedade-mercadoria x em troca da propriedade-

mercadoria y do sujeito B. O contrato, o direito, a lei sedimentam na consciência

(agora reconfortada) o conceito metafísico de um interesse universal que

conjugue, juridicamente, os diversos interesses particulares em conflito.

[...] Se, portanto, a forma econômica, a troca, põe a igualdade dos sujeitos em todos os sentidos, o conteúdo, a matéria, tanto individual como objetiva, que impele à troca, põe a liberdade. Igualdade e liberdade, por conseguinte, não apenas são respeitadas na troca baseada em valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva, real, de toda igualdade e liberdade. Como ideias puras, são simples expressões idealizadas dessa base; quando desenvolvidas em relações jurídicas, políticas e sociais, são apenas essa base em uma outra potência. E isso também se verifica historicamente. [...]. (MARX, 2011, p. 188, grifo do autor).

O valor de troca como fundamento das relações de produção, tendo

surgido apenas no capitalismo, com o desenvolvimento do sistema monetário,

apresenta as partes como iguais e livres, ao mesmo tempo em que oculta suas

diferenças reais. O dinheiro torna-se, pela indiferença frente às coisas, aos

indivíduos que trocam (e que aparecem um frente ao outro como dinheiro) e às

distintas relações e manifestações que encerra, a própria realização dos ideais da

Revolução Francesa. Invertida a realidade pela universalidade material do

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dinheiro, igualdade e liberdade são colocadas de maneira objetiva, e a

desigualdade, oculta, toma um espectro puramente formal e, por isso, indiferente.

Uma aparência de livre-arbítrio surge dessa inversão e fundamenta atos

meramente subjetivos, tais como entesouramento, dispêndio, enriquecimento e

pobreza, desvinculando-se por completo das concretude das relações existentes

entre os indivíduos. Se A acumula dinheiro e B o gasta, se Silvio enriquece e

Josinaldo se mantém pobre, se Geni é empregada nas fazendas de propriedade

da família de Olacyr, então B = A, ou seja, são as atitudes pessoais que geraram

tal ou qual resultado, independente das condições a que os sujeitos se submetem.

Tanto Josinaldo quanto Silvio tem a possibilidade de enriquecerem ou

empobrecerem, pois são livres para agirem e iguais perante a lei e aos outros

membros da sociedade da qual participam. Olacyr e Geni, cada vez mais,

igualam-se na qualidade abstrata de seres humanos e as diferenças que os

desigualam, os qualificam e os opõem como classes antagônicas são anuladas,

fraternalmente, frente ao império positivo dos lemas burgueses.

Quando um trabalhador recebe seu salário – o valor de troca de sua

mercadoria alienada – iguala-se ao capitalista; ambos se encontram no campo

neutro e imparcial do mercado e se reconhecem como proprietários de

mercadorias, livres para trocá-las em iguais condições. “Essa aparência, contudo,

existe como ilusão de sua parte e, em certo grau, da outra parte e, por isso,

também modifica essencialmente sua relação à diferença da relação dos

trabalhadores em outros modos sociais de produção” (MARX, 2011, p. 222). Com

a derrocada do feudalismo e a consolidação do sistema capitalista, a dupla

liberdade material infligida ao trabalhador (liberto dos meios e instrumentos de

produção e livre para vender sua força de trabalho (O Capital, vol. I, MARX &

ENGELS, 1985a, p. 140)) recebe sua forma ideológica e se dissemina entre todas

as classes como verdade racional e lógica incontestável.

Os denominados Direitos do Homem, dentre os quais se incluem a

liberdade e a igualdade, nada mais são, em uma sociedade de classes, que

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ficções legais vazias advindas de abstrações jurídicas nas quais se sustentam

Estados Democráticos de Direito em contradições intrínsecas a suas estruturas.

Existindo apenas formalmente, os Estados constitucionais assumem um poder

metafísico sobre os indivíduos como ficção universal. Em sua forma, “O elemento

estamental é a mentira sancionada legal, dos Estados constitucionais: que o

Estado é o interesse do povo ou o povo é o interesse do Estado. Essa mentira

será revelada no conteúdo.” (MARX, 2005, p. 83, grifos do autor). Não por si

mesmos, mas por meio de sua origem abstrata e irrealizável dentro de estruturas

sociais desiguais e presas a uma ordem repleta de antagonismos, os direitos

elencados na declaração francesa de inspiração iluminista são expressões da

contradição real existente. Ao mesmo tempo em que se afirmam as igualdades

políticas, afirmam-se também as desigualdades sociais, garantindo sua

reprodutibilidade sob o argumento falacioso da equidade formal destinado a

encobrir as reais disparidades materiais. O respeito aos direitos humanos

garantido em todas as constituições nacionais das sociedades capitalistas e

representado como cidadania, enquanto criação legal da e para a burguesia, será

sempre compatível com a exploração. O direito dominante em uma sociedade, tal

qual a ideologia, será sempre o direito das classes dominantes destinado a manter

e a reproduzir essa dominação: “[...] o direito do mais forte é também um direito, e

que o direito do mais forte subsiste sob outra forma em seu “estado de direito”.”

(MARX, 2011, p. 43).

A reprodução das relações de produção é assim assegurada, em

grande parte, pela existência de uma superestrutura jurídico-política e ideológica,

ou seja, por meio do exercício dos poderes do Estado garantindo pela força as

condições políticas da exploração e da ideologia que a sustenta. A relação

dialética existente entre superestrutura e base econômica legitima a dominação

em nome de uma universalidade legal ampla, abarcando a totalidade social.

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3.3.2 - RACIONALIDADE X REALIDADE

Os conceitos de razão da filosofia moderna surgem no século XVII

atrelados aos princípios da classe que os criam, destinando-se, em primeiro lugar,

à crítica de oposições a seu desenvolvimento político-econômico e à manutenção

de seu status quo. São esses os motivos principais que levam à admissão de

diferentes conceitos para se discutir a racionalidade, erigida como a forma mais

alta de expressão da essência humana. O sentido do termo dependerá, pois, da

posição a ser defendida. Assim é que, de acordo com Marcuse, a razão para tais

teorias, inicialmente: 1 - não expressa, necessariamente, uma antirreligiosidade no

termo; 2 - do mesmo modo, não se encontra limitada a uma ordem social pré-

determinada; 3 - é compreendida como universalidade, excluindo especificidades;

4 - cria a unidade na diversidade do mundo (incluindo-se aí a ideia de igualdade);

5 - identifica-se com as ciências naturais (aqui se refere, “por exemplo, à filosofia

mecanicista de Descartes, ao pensamento político materialista de Hobbes, à ética

matemática de Spinoza, à monadologia de Leibniz” (MARCUSE, 2004, p. 222); 6 -

pode ser considerada como fenômeno interiorizado do indivíduo (Leibniz, Kant,

Fichte).

Na concepção filosófica adotada por grande parte das teorias do século

XVIII (de que a história progride em direção a formas mais perfeitas de

organização social), o conceito de razão se apresenta ainda mais incisivamente

como construção de uma classe em ascensão que visa legitimar a ordem

burguesa estabelecida por meio de uma ideologia que pretende ditar os critérios

de verdade, tendo por base suas próprias concepções de mundo. As teorias

filosóficas do idealismo alemão sofrem a influência direta dos ideais da Revolução

Francesa, especialmente no que diz respeito à construção de suas categorias

fundamentais. Do protestantismo, passando por um longo processo de

treinamento disciplinar, até se chegar à cultura erudita idealizada, o que sobressai,

em grande medida, são os ditames de uma sociedade alemã que ainda espelha

características feudais e conta com uma nobreza praticamente sem oponentes.

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Uma tal interioridade em completa oposição à exterioridade miserável

surgia como resposta satisfatória criada por Lutero e disseminada pelo idealismo a

todas as classes sociais. A beleza, a liberdade, a bondade, a moralidade não

deveriam ser abaladas pela realidade social; os conflitos existentes na vida prática

não poderiam ser a base de uma cultura “ocupada com a ideia das coisas, mais

do que com as próprias coisas” (MARCUSE, 2004, p. 25); a crítica feita por uma

classe burguesa que não exercia ocupações práticas devia se restringir ao seu

próprio mundo idealizado, à parte, transcendente, para além da pobreza que o

cercava. Será somente o pensamento quem, determinando a prática dos homens,

poderá modificar a realidade concreta, ao criticá-la.

A “tradição idealista subjetiva, que supervaloriza o poder das

representações” (KONDER, 2002, p. 39) ao elaborar concepções deformadas

acerca do mundo, da história e do próprio ser humano, tratando-os como resultado

do pensamento, é criticada e ridicularizada no prólogo d’A Ideologia Alemã por

meio do seguinte exemplo:

Um homem galhardo um dia imaginou que os seres humanos apenas se afogavam na água porque estariam possuídos pelo pensamento da gravidade. Caso arrancassem essa noção de suas cabeças, por exemplo, esclarecendo a mesma como sendo uma noção supersticiosa, religiosa, eles seriam capazes de superar toda e qualquer ameaça representada pela água. [...]. (MARX & ENGELS, 2007, p. 35).

Tais filósofos, ao desconsiderarem totalmente as condições materiais

da sociedade na qual se encontravam e sua relação com os conceitos e

categorias por eles criados, incorrem em uma distorção ideológica que segue se

repetindo (como farsa?) na filosofia ocidental: a segregação autoritária

estabelecida historicamente entre pensamento e realidade. A supremacia do

primeiro em face da segunda apenas revela a cisão operada pela divisão entre

trabalho material e espiritual e espelha, ao fim, a dominação de uma classe sobre

a outra.

A aparente harmonização de interesses conflituosos e opostos adquire

um novo significado conforme se complexificam as relações sob a égide do

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capital. Ideias medievais como teocentrismo, fé, vontade divina, determinismo,

monarquia, nobreza, servidão, senhorio, consanguinidade, são paulatinamente

substituídas, na modernidade, por humanismo, antropocentrismo, liberdade,

igualdade, cientificidade, neutralidade, evolução, ampliando a ocultação

imprescindível à manutenção e reprodução da dominação. Rechaçando a

explicação metafísica predominante no feudalismo, as classes dominantes do

capitalismo se imbuem de um espírito universal que abarcaria toda a humanidade,

justificando-o por meio de um esclarecimento substancialmente racional. Iguais e

livres, os seres humanos se distinguiriam apenas por características pessoais ou

acidentais, ínfimas face à grandiosidade de sua condição natural; indiferentes,

portanto, dentro do contexto geral de uma essência da espécie humana.

Camuflando os interesses privados sob o conceito de interesses

universais, a classe dominante fornece às suas ideias a legitimidade necessária

para se manter no poder. As características de validade universal e racionalidade

são atribuídas tão somente a suas ideias, excluindo, por conseguinte, quaisquer

outras que com elas não se coadune. Este mecanismo de dominação ganha ainda

mais relevo quando se considera a essência humana como materializada nas

condições sociais dadas, em uma realidade a-histórica.

Embora considere os aspectos materiais e sensíveis do homem e sua

relação com a natureza em sua crítica à tradição idealista, Feuerbach também não

escapa da construção ideológica que visa combater, ao ignorar indivíduo e

história.50 Ao afirmar uma essência humana, despreza a realidade e a atividade

transformadora que sobre ela recai em favor de uma ordem natural determinante

das condições miseráveis que submetem o próprio homem (“[...] ele diz “o homem”

em vez de dizer “os homens históricos reais”. “O homem” é, na realidade, “o

50

Obviamente, não há, no entanto, atemporalidade nos conceitos ou no sistema hegeliano como um todo. O papel da história é essencial para a compreensão não apenas do método utilizado como, principalmente, para a sua aplicação na tentativa de se interpretarem os fenômenos e fatos que descrevem e impelem o próprio ser: “O Espírito é, por sua essência mesma, afetado pelo tempo porque ele só existe no processo temporal da história. As formas do espírito se manifestam no tempo, e a história do mundo é uma exposição do espírito no tempo.” (MARCUSE, 2004, p. 195, grifo nosso).

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alemão”. [...]” (MARX & ENGELS, 2007, p. 67). Desconsiderando a práxis,

segrega sujeito e objeto em polos opostos e excludentes em um processo de

abstração que idealiza o indivíduo, isolando-o do conjunto da sociedade e de suas

relações sociais, e coisifica a realidade na qual se encontra inserido, tornando-a

algo naturalmente dado, instrumento de pura contemplação.

Esse “materialismo contemplativo” (MARX & ENGELS, 2007, p. 27-29)

reduz, assim, o processo de vida real a sujeitos singulares abstratos comungando

de uma mesma essência e à sociedade civil desistoricizada. A metafísica presente

neste tipo de análise - cuja pretensão e modo de exposição objetivariam,

justamente, negá-la – acaba por tirar proveito de seu velamento, fortalecendo-se.

Tal subterfúgio será potencializado pela positividade afirmativa de uma filosofia útil

que, sem maiores aprofundamentos críticos e aparentemente rechaçando os

últimos resquícios metafísicos (especialmente o universal), volte-se diretamente

para o ordenamento da prática cotidiana e ao progresso do ser humano.

3.3.3 - POSITIVIDADE ÚNICA X MULTIPLICIDADE RELATIVISTA

Com o objetivo final de desconsiderar o negativo presente nas filosofias

racionalistas anteriores, em especial em Hegel51, ao negar ao real qualquer

racionalidade e fornecer apenas à razão humana a realidade da possibilidade

transformadora – ainda que se considerem suas posições absolutistas e seu

caráter idealista, o positivismo substitui a atuação humana por uma passividade

que apenas se fortalece frente aos antagonismos de classe. Desde o final do

século XIX a filosofia entra, então, em uma fase na qual se abandonam as

tentativas de totalização, recaindo-se nas parcialidades restritas a determinadas

áreas ou autores. De acordo com Marcuse, o sistema hegeliano teria sido “a

última grande tentativa para fazer do pensamento o refúgio da razão e da

liberdade” (MARCUSE, 2004, p. 25). Hegel seria, portanto, o último filósofo

51

Afirma Stahl (apud MARCUSE, 2004, p. 279) que a filosofia hegeliana contém “o princípio da revolução”.

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preocupado com a universalidade de sua obra e de seus conceitos, abrangendo

os diversos campos de investigação, da estética à metafísica, da lógica à

epistemologia, da ética à história.

Na França, Comte contrapõe-se ao método racionalista cartesiano

buscando na materialidade dos fatos comuns o conhecimento possível.

Neutralidade, imparcialidade, universalidade das leis e objetividade embasam e

legitimam a ordem social dada. Opondo-se, frontalmente, à dialética, o positivismo

assevera a existência de uma única ordem natural, espontânea e harmônica, sem

antagonismos sociais. Estáveis, a realidade e a sociologia se unificam sob as leis

gerais e universais que comandam a vida. Obedecer a estas leis e submeter-se às

autoridades que as aplicam são deveres que os homens se impõem e que lhes

garantem estabilidade e segurança. Uma autoridade forte, que conheça e saiba

aplicar as normas, coordenando, organizando e dirigindo as vontades e atividades

humanas em direção ao progresso de todos é exigência imperativa para que se dê

a completa harmonia social.

A união da ordem com o progresso se efetiva, então, pelo conceito de

evolução, ou seja, excluindo-se a ideia de revolucionar o sistema vigente e

inserindo, na dinâmica social, o desenvolvimento harmonioso e natural da

humanidade. Mantendo parte da concepção iluminista de progresso como avanço

do conhecimento (desenvolvimento intelectual), Comte procura substituir as

sublevações políticas por um amplo movimento intelectual, pois apenas aos

intelectuais é dado conhecer e aplicar as leis naturais que regem a sociedade.

Progredindo continuamente pela evolução da cultura intelectual, o ser humano

atingiria um estágio no qual se coloca em conformidade essencial com a natureza

e sua organicidade.

A metodologia assumida no estudo das realidades sociais passa a ser a

mesma das ciências naturais, utilizando-se de seus modelos na tentativa de se

preservar a independência dos fenômenos. Partindo da aceitação dos fatos

estabelecidos, eles devem ser organizados de acordo com as formas julgadas

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imparciais, restituindo-lhes a característica empírica perdida com a crítica

negativa. O pensamento deve, assim, convergir para a realidade naturalizada

utilizando-se do único instrumento puro e imparcial: a experiência. O cientificismo

cria raízes cada vez mais profundas e passa a julgar a validade do conhecimento

e a excluir toda teoria que não permita a observação positiva.

O processo de naturalização das escolhas filosóficas segue pelo

mesmo caminho. Tendo por base as ciências naturais e sua suposta neutralidade,

descarta-se, de imediato, o questionamento acerca dos critérios seletivos ou das

preferências teóricas de determinado filósofo. A denominada busca imparcial,

liberta de ideologias e escolhas pessoais não só não é vista como ilusória, como é

perseguida incessantemente por seus adeptos, visando à criação de um acordo

geral por meio de procedimentos similares aos daquelas ciências. Ignoradas as

contradições sociais, visa-se à integração harmônica entre os pares antagônicos

e, para tal, a ordenação, classificação e organização tornam-se essenciais.

Investigados e organizados categorias e conceitos segundo a certeza fornecida

pelo método e ausente a crítica negativa, o conhecimento obtido, ao invés de

meramente contemplativo, deve ser positivamente útil, destinado à lei inexorável

da evolução natural.

Igualar a filosofia e a teoria social às ciências biológicas, afirmar a

existência e a validade de leis da sociedade comparáveis às da física, racionalizar

e corroborar com o status quo sob o argumento da racionalidade e da naturalidade

das regras são afirmativas categóricas destinadas não apenas à aniquilação da

dialética e de seu movimento contraditório, como principalmente a apassivar e

destruir oposições à ordem estabelecida. A filosofia positivista que se inicia em

Comte sob o argumento de libertar a teoria social da metafísica acaba por

alcançar a atualidade e adquirir as mais diversas formas, combinadas ou puras

(analítica, linguagem, lógica). A presunção ilusória da imparcialidade/neutralidade

traduz-se, assim, em potente artifício ideológico, contribuindo para a reprodução

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ampliada do modo de produção capitalista por meio de “[...] insinuações teóricas,

formuladas por caprichosos agentes do abstrato” (BOGO, 2010, p. 22).

Todavia, dada a própria característica do conhecimento humano – a

seletividade em tudo que o envolve – a parcialidade se estende aos domínios de

ambas, ciência e filosofia, derivando em uma busca incoerente por possuir

objetivos autocontraditórios. O mito científico é colocado para a filosofia de forma

distorcida quando descarta processos mais abrangentes para se dedicar a

problemas mais limitados que possibilitariam, por suas características intrínsecas,

verdadeiras resoluções: “O que está na raiz de abordagens do tipo é o desejo de

fugir das questões abrangentes, de minimizar a importância delas, de negar a sua

legitimidade filosófica e, frequentemente, até mesmo a sua existência.”

(MÉSZÁROS, 2008, p. 134).

Termos emotivos como burguesia, proletariado e capitalismo, no âmbito

das ciências sociais pretensamente objetivas, imparciais e axiologicamente

neutras, vêm sendo substituídos, ao longo dos anos, por outros semanticamente

mais adequados, tais como grupos de rendas mais baixas ou mais altas,

sociedade industrial moderna, pós-modernidade, complexidade social,

multiplicidade de opiniões, relatividade, independentemente do que possam vir a

significar. A denominada convergência semântica anuncia o fim das

ideologizações, concentrando inúmeras teses que visam desbancar as categorias

de Marx elevando a leis universais significados limitados e princípios eufemísticos

ao dissimular as contradições reais do sistema. (MÉSZÁROS, 2008, p. 66). O

relativismo toma corpo neste desenvolvimento naturalizado e contribui para

justificar positivamente todo tipo de teoria e organização social, sejam elas

expressas sob o discurso lógico que, em favor da forma, rechaça qualquer

conteúdo, ou de habitus chauvinistas onde se realiza a excisão do clitóris

feminino. De acordo com Mészáros:

A plausibilidade e a influência espontânea do discurso ideológico dominante, para além das camadas de seus verdadeiros beneficiários, residem justamente em seu apelo pacificador à “unidade” e aos

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interesses associados [...]. A necessária função aglutinadora da ideologia dominante se torna tanto mais evidente (e significativa) se nos lembrarmos de que mesmo suas variantes mais agressivas – do chauvinismo ao nazismo e às mais recentes ideologias da “direita radical” – devem reivindicar a representação da maioria esmagadora da população contra o “inimigo” externo, as minorias “etnicamente inferiores”, o assim chamado “bando de agitadores” que, supostamente, são a causa de greves, inquietação social e assim por diante. (MÉSZÁROS, 2008, p. 12)

A atual consciência filosófica – reflexo da extrema divisão social do

trabalho – acredita na pluralidade teórica de ideias e representações acerca da

realidade, do mundo, da humanidade, como se houvessem múltiplas e infinitas

diferenças entre elas. Igualmente válidas e justificáveis (desde que em

autorreferenciação, ou seja, utilizando seus próprios critérios e métodos), excluem

a existência de sistemas absolutos, conceitos universais, totalidade, concretude,

história. Os mais variados discursos são a única realidade (questionável)

momentaneamente prevalecente.

Lebfreve e Guterman, na Introdução aos Cadernos sobre a dialética de

Hegel, de Lênin (2011, p. 22-29), expõem algumas características essenciais de

teorias relativistas (denominadas pelos autores de pluralistas) tais como:

autonomia absoluta, irredutibilidade e independência entre as mais diversas

esferas, das artes à ciência, da religião à filosofia, do homem à natureza, do

indivíduo à sociedade; experimentação e constatação acríticas; generalização,

liberalismo e aceitação de todas e quaisquer ações/ideias sob o argumento

antitotalitário; isolamento e/ou complexidade de infinitas noções e domínios que

coexistem em um mundo plural; ausência de mediação e movimento; ocultação da

inter-relação e das conexões; unilateralidade; domínio de partes sem existência do

todo; mecanicismo e empirismo; misticismo; tautologia; simplismo; metafísica. Tais

formas de consciência corresponderiam, portanto, às formas de consciência

típicas do limitado pensamento dominante, resultado da realidade concreta do

sistema capitalista:

O pluralismo corresponde à consciência do indivíduo fragmentado que se decompõe, que se dirige ao irracional, que deixa de verificar suas

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“experiências” e suas conexões e que se sente “muitos”. Trata-se de um estado muito preciso e muito avançado de “alienação”, um misticismo equívoco disfarçado de liberalismo. (p. 75-76).

A metafísica outrora repelida retorna agora sob a aparência de profunda

erudição (por mais que os exemplos reais de erudição aprofundada na atualidade

sejam tão parcos que mal possam contar como excepcionais, prevalecendo quase

que exclusivamente a superficialidade mais boçal manifestada em clichês teóricos

e opiniões espetaculares destes mesmos acadêmicos, professadas aos variados

(in)ventos midiáticos). Àqueles que a ela se dedicam é reservado o patamar

superior da racionalidade, considerada a mais alta das faculdades humanas, e o

privilégio de pertencer a uma classe que se crê independente e acima das

contradições mundanas. O elitismo do trabalho intelectual é reforçado nesta

aparência de fragmentação relativista que obscurece a realidade capitalista e sua

contradição essencial representada pelas duas principais classes em conflito.

3.3.4 – INTELECTUALIDADE BURGUESA X SENSO COMUM

Legalismo, positivismo, cientificismo, racionalidade, lógica, exatidão

cristalizam-se como formas dominantes de pensamento e passam a embasar a

superficialidade ideológica do senso comum. Assegurando a máxima pela qual só

é possível conhecer o que se mostra aos sentidos e à experiência, apregoa-se a

inexistência de uma totalidade frente à impossibilidade de observação do universal

concreto. Acredita-se, portanto, que a verdade está nos fatos cotidianos, na

particularidade dos objetos que independem do sujeito, nas coisas mesmas.

Excluindo tudo aquilo que não possa vir a se tornar diretamente observável,

restringe-se o homem à factualidade coisificada do mundo imediato, impedindo o

movimento dialético destinado à compreensão e à superação do status quo.

As percepções e invenções do entendimento geradoras destas ilusões

são responsáveis, da mesma forma, pela criação do aspecto de segurança do

senso comum. A aceitação do dado, a indiferença acerca do mundo ante a

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impossibilidade de mudança, a confusão identitária entre aparência e essência

dominam a consciência e impedem soluções concretas destinadas à

transformação estrutural da realidade. O pensamento se imobiliza em positividade

e se aliena em polaridades conceituais estéreis e imutáveis.

A consciência comum ou ordinária baseia-se, em grande parte, na

ausência de necessidade de explicação acerca dos fatos habituais por acreditar

encontrar-se com eles em uma relação direta e imediata, a-teórica, envolta apenas

em suas atividades práticas. As coisas existem somente em si e na medida em

que servem ao homem comum. Separadas do sujeito adquirem um significado

também dele independente, um tal objetivismo que as reduz a uma dimensão

prática-utilitária, coincidindo com a produtividade expressa na relação de

valoração típica do modo capitalista de produção: prático e útil é aquilo que produz

mais-valor.

A separação realizada pela consciência entre teoria e prática visando à

superação da ingenuidade expressa pelo senso comum não acontece na

cotidianidade. Embora a consideração acerca dos atos práticos ocorra

frequentemente, a atividade transformadora da práxis não é colocada como objeto

de reflexão. A atitude precipuamente teórica imprescindível à elevação deste

estado ingênuo e espontâneo a uma filosofia verdadeiramente revolucionária é

excluída ao ser afirmada como inútil e improdutiva.

Entretanto, tratando-se de ser social e histórico, o homem está desde

sempre integrado a uma série de atos e relações que pressupõem determinada

visão de mundo, consciência, princípios e valores tomados como ideias pré-

concebidas. Consciente ou inconscientemente adota perspectivas nas quais

vigora a ideologia, cujo surgimento advém, precisamente, das reflexões teóricas

acerca da prática –

ainda que nesta bagagem as teorias se encontrem degradadas [...]. A tese filosófica primitiva reaparece, assim, sob forma grosseira e simplista, na consciência comum. Mas, inclusive nessa forma elementar, ela demonstra a presença de elementos teóricos que originariamente fizeram parte de um pensamento teórico reflexivo. (VÁZQUEZ, 1990, p. 10).

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A estória da serviçal de Tales52 acaba por servir como exemplo a

diversos autores para ilustrar a atitude do homem comum perante o filósofo. Ao

senso prático, ingênuo, rasteiro, cotidiano e aparentemente superficial daquela

mulher representante da plebe é contraposta, diretamente, a atitude filosófica de

Tales, cuja profundidade teórica lhe garante uma posição hierarquicamente

superior perante o resto da sociedade.

Divididos os atos humanos, subjugado o trabalho braçal e enaltecido o

trabalho intelectual com o escárnio pelo riso ignorante do ser que não compreende

a (busca pela) verdade, a tradição metafísica ocidental reforça, com o argumento

da autoridade de Platão, a autoproclamada hegemonia do saber. Secundariza,

porém, o tropeço na realidade; a excessiva teorização que impede a filosofia de

enxergar o mundo que a cerca. Descartando a consciência comum, a prática –

que, por fim, a cria – exalta a contemplação e estende à physis suas mais próprias

aporias. Segundo Marcuse:

Com a separação entre a teoria e a prática, a filosofia tornara-se o santuário da teoria autêntica. A ciência ou fora forçada “a servir o capital”, ou degradada à posição de um passatempo ocioso, apartado de qualquer relação com as lutas reais da humanidade, enquanto que a filosofia fora incumbida de preservar, no domínio do pensante abstrato, as soluções para os problemas das necessidades, medos e desejos do homem. A “Razão Pura”, a razão purificada das contingências empíricas, tornara-se o domínio apropriado à verdade. (MARCUSE, 2004, p. 275).

Por isso, quando submetidos à análise estanque e isolada, os

antagonismos e as contradições existentes são considerados como insolúveis. As

coisas presentes no mundo aparecem como múltiplas, não relacionadas entre si,

excludentes, fixas e idênticas apenas a si mesmas. Tais apreciações, regidas

pelos princípios da identidade e da não-contradição, polarizam e isolam os

52

A estória é contada por Sócrates no Teeteto de Platão em seu diálogo com Teodoro acerca do alheamento dos filósofos. Diz ele: “Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu mas não via o que estava junto dos próprios pés. [...].” (PLATÃO, 2001, p. 83, 174a-b).

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conceitos de forma inconciliável, espelhando, em verdade, a própria realidade que

historicamente apartou sujeito e objeto, produtores e meios de produção.

A manutenção de certos conceitos e categorias ao longo do

pensamento filosófico aparenta dotá-los de uma característica universal que os

torna válidos e aplicáveis a toda sociedade em qualquer época, retirando-os da

sujeição às transformações experimentadas com o movimento histórico. Assim é

que o ontos em Parmênides ou Heidegger, o ethos ou a moral em Agostinho e

Habermas ou, ainda, a política em Nietzsche ou Žižek são questões que

atravessam os mais diversos e antagônicos momentos e que tornam a ser

colocadas como objeto pelos mais distintos pensadores. Tais conceitos e

categorias considerados em sua mais alta abstração parecem, então, localizar-se

fora da própria história, acima e para além dela, pois,

[...] a partir do momento em que não se persegue o movimento histórico das relações de produção, de que as categorias são apenas a expressão teórica, a partir do momento em que se quer ver nessas categorias somente ideias, pensamentos espontâneos, independentes das relações reais, a partir de então se é forçado a considerar o movimento da razão pura como a origem desses pensamentos. (MARX, 2009, p. 121, grifos nossos).

No entanto, é justamente por possuírem o atributo da abstração que se

manifesta, contraditoriamente, sua total historicidade. Ao revelarem sua origem

como resultado de relações históricas, apenas no âmbito delas possuem validade

e existência. A negação nasce, portanto, da propriedade afirmativa e proporciona

a propulsão necessária ao movimento de desvelamento e superação.

Ultrapassadas as condições históricas geradoras dos conceitos e categorias

existentes em uma determinada realidade, abre-se a possibilidade de concepção

de novos temas filosóficos condizentes e válidos de acordo com as novas

circunstâncias.

A herança hobbesiana da consideração acerca da vida social concebida

como batalha entre indivíduos essencialmente individualistas e determinados a

garantir para si o máximo possível de bens, encontra eco na atualidade em

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pensadores como J. Habermas, H. Arendt, N. Bobbio e J. Rawls, que afirmam a

inevitabilidade do sistema capitalista em suas variantes burguesas.53 Nestas

doutrinas a imutabilidade da essência humana restringiria algumas possíveis

modificações estruturais superadoras das atuais formações, limitando-se a meras

adaptações inseridas na mesma lógica classista e a-histórica. Com o colapso do

denominado socialismo real, são proclamados de modo espetacularmente

simplório o fim da história e das ideologias (“Na verdade, proclamar ‘o fim da

ideologia’ é em si uma ideologia característica.” (MÉSZÁROS, 2012, p. 109)). – ao

mesmo tempo em que, dialeticamente, se reforçam os ideais burgueses de

dominação e exploração.

O idealismo vulgar, o eurocentrismo, as abstrações hipostasiadas, o

iluminismo revisionista, a profissionalização burocratizada e tecnicista adquirida

nas últimas décadas pelas análises filosóficas de “viés linguístico neopositivista”

(MÉSZÁROS, 2008, p. 177) são elementos ideológicos extremamente poderosos

em uma realidade cuja (pretensa) autonomia do saber conjuga-se, lado a lado,

53

No livro Quem pagou a conta? A CIA na Guerra Fria da Cultura (2008, Ed. Record), Frances Stonors Saunders expõe as mais diversas formas de atuação e influência (diretas e indiretas) da CIA em organismos culturais e instituições acadêmicas. Artistas e intelectuais – dentre eles Hannah Arendt – comprometidos com o american way of life e em franca oposição ao socialismo, ao comunismo, ao marxismo e a quaisquer outras políticas e obras revolucionárias são financiados e têm suas obras subsidiadas, publicadas e traduzidas mundialmente. James Petras (2013), em uma resenha do livro The CIA and the Cultural Cold War Revisited, afirma: “As campanhas culturais da CIA criaram o protótipo de intelectuais, acadêmicos e artistas que, hoje, se dizem apolíticos, divorciados das lutas populares, e cujo valor aumenta na medida em que se distanciam das classes trabalhadoras e se aproximam das fundações de prestígio. O modelo que a CIA fixou, de profissional de sucesso, é o do leão de chácara ideológico, e exclui intelectuais críticos que escrevem sobre a luta de classes, a exploração dos trabalhadores, e o imperialismo norte-americano categorias consideradas "ideológicas" e não "objetivas", como eles dizem. A pior e mais duradoura influência do pessoal do Congresso para a Liberdade Cultural não foi a defesa das políticas imperialistas dos EUA, mas o êxito em impor, para as gerações seguintes de intelectuais a ideia de excluir toda discussão sobre o imperialismo norte-americano, sua influência cultural e sua ação através dos meios de comunicação de massas. A questão não é se os intelectuais ou artistas podem ou não tomar partido ou assumir uma posição progressista numa ou outra questão. O problema é a crença difundida, entre escritores e artistas, de que expressões sociais e políticas anti-imperialistas não devem aparecer em suas canções, pinturas e escritos, se querem ter sua obra valorizada como trabalho de substancial mérito artístico. A vitória política duradoura da CIA foi a de convencer intelectuais e artistas de que um engajamento sério e firme à esquerda é incompatível com arte e conhecimentos sérios. Hoje, na ópera, teatro, galerias de arte, nas reuniões profissionais nas universidades, aqueles valores culturais que a CIA promoveu na guerra fria cultural são visíveis: quem ousará dizer que o rei está nu?”.

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com a manutenção e reprodução de seu poder. Ocultando as contradições do

modo capitalista de produção, oferecendo uma via reformista pelo consenso entre

os homens, negando a existência de uma violência estrutural e da luta de classes,

presentificando simploriamente as complexas determinações históricas, erigindo

os princípios liberais a dogmas universais naturalizados, tais teorias, restringindo-

se a questões um tanto quanto superficiais e/ou imaginárias, impedem e rejeitam

qualquer apreciação crítica mais aprofundada.

A intensificação da hiperdivisão do conhecimento (como consequência

da própria divisão do trabalho) experimentada em maior grau no século XX não

impede que se reavivem as tentativas modernas de se refugiarem na consciência

a razão, a igualdade, a liberdade e uma imaginável crítica transformadora, ainda

que sejam apresentadas de forma mais sucinta ou fragmentária. A utilização de

autores contemporâneos como Derrida, Foucault, Deleuze, visando legitimar a

fragmentação identitária e dissolver materialidades de classe em uma

pulverização de lutas pontuais que em nada contribuem para a radical

transformação das estruturas sociais é justificada sob a falácia argumentativa de

crítica filosófica.

O individualismo apregoado nestas teorias, diferindo fundamentalmente

das propostas dirigidas à humanidade presentes nos grandes sistemas filosóficos

da modernidade, exacerba-se sob a forma de uma erudição vazia de sentido.

Nelas não há classes, história, concretude, contradição, totalidade. Não há uma

crítica radical às contradições reais da ordem estabelecida. A metafísica e o

idealismo vulgar, ainda que ocultos sob uma aparente matéria cotidiana,

explicitam-se tão logo colocados em contato com a realidade da luta de classes

que procuram afastar.

As teorias da “modernidade” e da “pós-modernidade” preenchem as exigências ideológicas das circunstâncias de intensificação dos conflitos. Ambas evitam fazer suas proposições teóricas fundamentais a partir da situação histórica dada. As referências aos processos sociais existentes

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parecem mais observações ilustrativas marginais do que parte essencial da própria teoria. (MÉSZÁROS, 2012, p. 98, grifo do autor).

54

A disciplina estética é apresentada como fuga total da política, da ética,

da lógica, da pobre realidade circundante, do ridículo do senso comum. A filosofia-

artística se mostra como a única capaz de oferecer uma salvação para o homem

(de saber) elevado55 – e, portanto, niilista – dos novos tempos a-históricos:

sozinho, livre, pairando acima de todos os outros, com sua consciência

embevecida de crítica e sensibilidade, deve entregar-se à pura contemplação e,

assim, criar. O ensimesmar-se, o encerrar-se em si, a tautologia, tornam-se regras

a serem seguidas por aqueles que acreditam estar acima e, por vezes, até contra,

elas: “Deste modo não se ganha nenhum conteúdo, mas apenas se modifica a

forma do conteúdo velho. Ele recebeu uma forma filosófica, um atestado filosófico”

(MARX, 2005, p. 59, grifo do autor). A herança metafísica ocidental e o sistema

54

Acerca da controvérsia entre os conceitos de modernidade e pós-modernidade, afirma o autor no mesmo livro (p. 93-95): “A controvérsia entre ‘modernidade’ e ‘pós-modernidade’ – em que cada lado, compreensivelmente, procura se autoelogiar – tem sido muito exagerada pelas partes interessadas. [...] cada grupo buscando afirmar a validade exclusiva de sua posição e transformar o que de fato é complementar em incompatibilidade. [...] Isto [identificar e observar suas respectivas afirmações] se faz necessário não só para situar a ‘modernidade’ e a ‘pós-modernidade’ uma em relação à outra, mas também para identificar o papel que elas assumiram e continuam a desempenhar na articulação pós-consensual do ‘fim da ideologia’. Por mais que ambas continuem a afirmar que vão além da ideologia, uma acusando a outra de nela permanecer, o que se observa, na realidade é que as duas, com essas afirmativas, nela se mantém, a reforçam e a reproduzem, complementando-se. 55

O desenvolvimento medieval alcançado pela atividade e organização escolares em seu sentido mais amplo resulta na atual valoração assumida por estes setores nos quais visa-se ampliar a intelectualidade individual e aperfeiçoar as especializações conquistadas em seus mais diversos graus. A hierarquização escolar em conjunto com sua verticalização tornam-se medidas da complexidade das funções intelectuais. A ampliação da base – colocada como a instrução primária – torna-se inversamente proporcional à restrição encontrada no topo da cadeia técnico-cultural por meio de processos de seleção na elaboração das mais altas qualificações intelectuais. A criação de intelectuais se dá de acordo com processos históricos tradicionais concretos, e não em uma democracia escolar abstrata. As pequenas e médias burguesias do campo – em menor grau – e da cidade são as produtoras tradicionais de intelectuais de acordo com a realidade econômica e social inscrita na sociedade. Deste modo, contribui-se para a manutenção e reprodução ampliada não apenas da divisão social do trabalho e de sua hierarquização como da própria dominação de classes na sociedade capitalista. Não obstante, a suposta autonomia e pseudoindependência pressentidas pelas diversas categorias de intelectuais permitem-lhe a crença da absoluta imparcialidade de sua produção. Ao acreditarem em sua ininterrupta continuidade histórica e julgarem-se um grupo homogêneo e distinto, por sua qualificação, veem-se como independentes do grupo dominante. (GRAMSCI, 1982).

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hierárquico que a criou, envoltos como objetos da infértil condenação, mantêm-se

absolutamente inalterados e, por fim, devidamente fortalecidos.

No sistema capitalista a existência da divisão entre classes opostas

criada na alienação do trabalho limita o exercício da liberdade individual. Não

obstante a ideologia que apregoa, com o indivíduo e a subjetividade aparecendo

como bases sobre as quais se assenta a sociedade, este modo de produção

impede e contradiz o pleno desenvolvimento da individualidade. A liberdade torna-

se mera abstração, “Cada um é livre na medida em que sua classe é livre; e o

desenvolvimento de sua individualidade está confinado aos limites de sua classe:

o indivíduo se desenvolve como ‘indivíduo de classe’”. (MARCUSE, 2004, p. 250,

grifo nosso). As aptidões, necessidades e desejos individuais são submetidos às

forças econômicas exteriores que passam a determinantes da posição social, da

realização pessoal e da própria existência.

A negação do indivíduo pela classe a que pertence, como resultado

histórico da divisão social alienada do trabalho e, em última instância, do sistema

que a cria, universaliza as relações sociais e suas propriedades constitutivas, ao

serem partilhadas por todos os membros da sua classe. “Sua existência não é

mais sua, mas da classe” (MARCUSE, 2004, p. 251). Modelados de acordo com

as condições dadas, os indivíduos são subsumidos à posição profissional ocupada

em razão da exigência da produção cada vez maior de mercadorias sob a forma

capitalista. Fragmentados em vários ramos de atividades, os trabalhos que

determinarão padrões de vida, interesses e possibilidades, fragmentam a própria

consciência. O individualismo, como expressão maior desta fragmentação,

restringe ainda mais o campo de atuação em liberdade tornando-se o ápice do

processo de alienação e recaindo no estranhamento dentro e contra a própria

classe. O filósofo que se crê liberto das contradições mundanas, independente da

superficial factualidade cotidiana, universalizado e neutro frente à concretude que

despreza, encontra-se, na realidade, encarcerado em sua posição classista e

determinado pelo sistema que acaba por legitimar.

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Tais distorções ideológicas, por assumirem, em alguns casos, uma

ampla complexidade em sua elaboração, não se apresentam de forma explícita e

clara como representações típicas das classes dominantes. O falseamento dos

interesses de classe nestes casos não se reduz “a uma racionalização cínica,

grosseira, tosca, bisonha ou canhestra” (KONDER, 2002, p. 43); pelo contrário, a

sutileza e o intrincado contexto que apresentam são meios indispensáveis à sua

elaboração e propagação aos mais diversos estratos sociais.

Precisamente pela possibilidade de se traduzirem como subsídios

elementares para sua análise, tais construções culturais não devem ser

descartadas de pronto. Respeitando a riqueza dos fenômenos surgidos nas

particularidades daquilo que se propõem a investigar, mantêm certo sentido do

real em determinadas concepções por eles criadas. Deste modo, além de

dificultarem o desvelamento dos interesses encobertos, assumem, ainda, na

autoproclamada universalidade, a aparência de uma suposta independência de

classe, restaurando a velha metafísica idealista de uma razão a-histórica e

imparcial, teoria pura, livre de qualquer sistema que não o próprio.

Desde o final da denominada filosofia antiga não são muitos os

exemplos que permitem observar diretamente a conexão entre a teoria filosófica e

a prática política. Restrita a seu próprio mundo teórico, enclausurada na metafísica

ou ensimesmada na razão, crê, cada vez mais, encontrar-se apartada e pairando

sobre a realidade. Contudo, alguns momentos concretos saltam da história e nos

brindam com considerações memoráveis acerca do tema. É o caso, por exemplo,

ocorrido em dois tempos históricos distintos: 1) na modernidade, a missão

recebida por Schelling de Frederico Guilherme IV para “destruir a semente do

dragão” (apud MARCUSE, 2004, p. 279). Esta seria representada pela crítica

negativa de Hegel ao Estado alemão. A influência direta é notada tanto a

construção ideológica de seu positivismo filosófico quanto nos rumos políticos

tomados pela monarquia nele legitimada; 2) na contemporaneidade, o filósofo

francês Bernard-Henry Lévy é considerado o conselheiro presidencial de Nicolás

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Sarkozy e, depois, de François Hollande, demandando, pessoalmente, a

participação da França na guerra contra a Líbia e a intervenção armada no Mali.

Sua teoria encontra-se direta e claramente ligada à sua prática ideológica, visando

justificar suas posições de classe e legitimar a dominação burguesa pela via

intelectual em conjunto com a bélica.

Seja nas preferências teóricas não reconhecidas como tal, mas

naturalizadas como escolhas imparciais que prescindem de justificativas para

comporem toda uma grade curricular dentro dos meios acadêmicos

contemporâneos, seja na salvação de uma pretensa erudição elitista da

pseudouniversalidade das filosofias estéticas, ou ainda por meio da formulação

analítica das filosofias da linguagem que descartam questões mais abrangentes

como sendo por demais ilimitadas ou sem significado que não a idiossincrasia

própria da parte, o que se coloca como ponto central é a ideologia que permeia

tais imposições e exclui qualquer suporte mais historicamente crítico. Não se

visualizam argumentos concretos na rejeição ou na eleição de uma ou outra

teoria.

No trabalho-mercadoria, que é de uma realidade espantosa, ele [Proudhon] vê apenas uma elipse gramatical. Logo, toda a sociedade atual fundada no trabalho-mercadoria, passa a se embasar numa licença poética, numa expressão figurada. A sociedade pretende ‘eliminar todos os inconvenientes’ que a atormenta? Muito bem: basta-lhe eliminar todos os termos inconvenientes, alterar a linguagem e dirigir-se à Academia, encomendando-lhe uma nova edição do seu dicionário! (MARX, 2009, p. 71).

A justificativa circular da confusão metafísica ou absurdos conceituais

de tais ou quais teorias, ao mesmo tempo em que as recusa pela necessidade de

justificativa em separado, elege outras sob a mesma argumentação. Na crença de

que o atual estado filosófico é o ideal – fim de estágios evolutivos inferiores, logo,

subordinados ou de estágios superiores, e, portanto, descartáveis – o tratamento

dos fatos históricos passa a ser dotado de uma liberalidade cujas conclusões só

podem ser deliberadamente acríticas.

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Cindindo em um processo violentamente progressivo, ser humano e

mundo, teoria e pratica, realidade e ação, a dimensão humana se perde em

devaneios metafísicos da razão. A filosofia, ao fim, se eleva aos céus e assume

um caráter mítico; distanciando-se da physis, retorna à Caverna. Professando o

esgotamento conceitual de teorias amparadas por grandes sistemas, estas teorias

fragmentam e diluem a atitude filosófica em consonância com os ditames

estabelecidos. O ceticismo cinicamente estandardizado nas academias forma

hordas de intelectuais preparados para a repetição tendo por alicerce critérios

avaliativos empresariais. A competitividade, a eficácia, a produtividade

quantitativa, a ascensão individual, formatam a mentalidade incipiente dos

profissionais filosóficos do novo século e instrumentalizam o logos messiânico que

incita o enclausuramento do pensar.

Recusando-se a admitir o caráter transitório das sociedades e seus

respectivos modos de produção, a ideologia mantém a necessidade de uma

crença na imutabilidade do sistema e idealiza esquemas abstratos visando à

pronta identificação dos indivíduos, em detrimento de uma negação completa da

história e da realidade conflitiva na qual se encontram. A harmonização de

interesses opostos, o consenso entre classes antagônicas, a busca da unidade em

torno de princípios, leis e regras ilusoriamente universais servem como suporte

ideológico para a construção de uma certeza de que se conhece a realidade

circundante. A falsa segurança advinda desta doxa e imprescindível à manutenção

do status quo se estende de instituições e aparatos estatais e paraestatais à

mínima célula composta por relações familiares reproduzidas em imagens

propagandísticas em todo e qualquer ambiente. O determinismo objetivo do capital

é ardil ideológico extremamente potente em um mundo no qual a fusão entre as

necessidades naturais e as necessidades históricas subsume qualquer processo

excepcional, desde as artes à filosofia, transformando-as em mercadorias

autoexpansivas em seu modo próprio de ser.

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As diversas formas assumidas pela ideologia dominante (religiosas,

cientificas, artísticas, filosóficas), resultado que são do desenvolvimento histórico

da humanidade em sociedades profundamente divididas, evoluem em crises e

choques antagônicos estruturalmente presentes na concretude da luta de classes.

Ainda que aos indivíduos, em teorias e práticas, não esteja dada a chance de

escapar completamente à ideologia dominante, por terem suas vidas e

consciências determinadas pelo sistema no qual se encontram inseridos, as

possibilidades para a substituição destas relações de produção irrompem, a

princípio timidamente, em novas ideias e manifestações concretas advindas das

classes populares.

Ao colidirem, invariavelmente, com a ordem vigente e com os

interesses particularistas das classes dominantes, as concepções e ações das

classes exploradas forçam o movimento histórico imprimindo a ele um novo ritmo,

destruindo as margens que antes as comprimiam. A burguesia, por outro lado,

neste acirramento da luta de classes, lança mão de todos os seus pressupostos

materiais e teóricos para a manutenção de seus privilégios. No entanto, sobretudo

nestas épocas, não o fazem sem o emprego de um violento aparato de repressão

indispensável à manutenção do status quo e ao refreamento e aniquilação

completa das lutas, conquistas e reivindicações históricas dos trabalhadores.

A negação da negação do projeto dominante exige a imposição de um

novo essencialmente antagônico em uma combinação entre a resistência

defensiva e o avanço ofensivo com a consciência de que o que é, na verdade,

está, e, portanto, pode ser desfeito em uma marcha qualitativa permeada por

teoria e prática. A superação absoluta da complexidade da estrutura social sob o

modo de produção capitalista pressupõe a negação pela destruição de sua

totalidade. Um projeto conscientemente elaborado deve abarcar todas as forças

sociais elevando-se acima de particularidades individualistas de aparência coletiva

que, dispostas apenas a resistir, acabam por acomodar-se sem visualizar as

contradições reais a que estão submetidas.

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Crítica e interpretação dispõem-se, tão-somente, à manutenção,

legitimação e reprodução na terra daquilo que acreditam estar a salvo dentro do

reino celestial do pensamento. As ideias só ganham materialidade quando

alcançam a força revolucionária concreta das massas organizadas. Os pesados

grilhões da pobreza impostos aos dominados somente serão destruídos através

da mesma violência usurpadora a ser utilizada contra aqueles que lhes

submeteram a estas condições, fazendo-se, assim, classe em si e para si. A

reunião, pela luta popular, da potência dialética contida no antagonismo entre ideia

e matéria, negando essa falsa oposição, torna-se maior que a soma das partes e

se multiplica no movimento histórico destinado a expropriar os expropriadores.

Elevando-se acima da força dos contrários, a classe trabalhadora eleva as

contradições a outro patamar, em uma nova sequência de negações necessárias

ao eterno movimento de superação humana.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Marx, evidentemente, sabia que sua teoria seria ignorada pela maior

parte das linhas de pesquisa e estudo dominantes dentro dos limitados muros

acadêmicos. Restringir-se às teorizações e discussões idealistas que convinham

tão somente à manutenção e reprodução da ordem burguesa nunca foi, no

entanto, sua real intenção. A crítica ao modo capitalista de produção radicalizada

por ele, sorrateiramente, se estende ao corpo social pelos ativos pensadores

marxistas. Como resultado concreto da luta dos trabalhadores, há uma ampliação

dos direitos sociais que permite à classe preparar seus próprios intelectuais.

Protestos, greves, revoltas e manifestações marcam a resistência consciente às

investidas sanguinárias do capital. Encabeçadas pela União das Repúblicas

Socialistas Soviéticas (URSS), as revoluções socialistas apresentam aos homens

e mulheres do século XX a possibilidade concreta de tomarem as rédeas da

história em suas mãos.

Por outro lado, a obra crítica de Marx e as conquistas históricas da

classe trabalhadora eram e deveriam ser ocultadas, deslegitimadas.

Especialmente durante todo o efervescente século passado e, sobretudo, após a

derrubada do Muro de Berlim e a derrocada da antiga URSS, há um relativo

aumento dos teóricos antimarxistas. Proclamando-se abertamente contrários às

ideias e práticas do autor comunista, ocultando-se por detrás de complexas

estruturas doutrinárias, ou perdidos em meio à aparente pluralidade caótica de

imagens e pensamentos, anunciam o fim. Fim da história como a conheceram os

homens até então, fim das classes, da luta de classes, do socialismo real e do

utópico, fim das ideologias, fim de Marx e do marxismo.

O capitalismo democrático, este ente sobre-humano, vencera.

Expandindo sua esfera globalmente, a alternativa proposta passa a ser reformá-lo,

humanizando-o. A positividade assumida legitima e justifica as relações de

dominação de classe utilizando-se de um discurso pacificador, moderado, que

prega a unidade e o consenso. Apresentado como interesse comum, o sistema

vigente atenua conflitos em uma pluralidade harmônica criada pela razão. O uso

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de instrumentos, de técnicas, da ideia da segurança, do exercício do voto, de uma

legislação imparcial, de um Estado com instituições neutras, visa à estabilidade e,

por fim, ao zelo pelo conforto e tranquilidade de todos os cidadãos.

Para que se mantenha a hegemonia do denominado pensamento único

(que tem sua maior representação nos EUA, com seu american way of life), face

às agruras impingidas pelo capital aos trabalhadores de todo o mundo e ausência

de um inimigo palpável que faça frente ao imperialismo, torna-se imperativa a

criação ininterrupta de uns outros que representem uma possível ameaça às

grandes conquistas da humanidade. Do terrorismo de Estado à cogente assepsia

do consumidor-cidadão, as tentativas de controle, homogeneização e vigilância

veem-se forçadas a sair das ditaduras silenciosas das fábricas e alcançarem a

desordem caótica e barulhenta das ruas. À violenta repressão e criminalização de

movimentos sociais contrários à ordem estabelecida somam-se as diversas

tentativas de desqualificá-los. O descrédito das alternativas ao capital deve ser

aliado ao convencimento acerca de sua inevitável superioridade. A crença no

sistema tem que ser aprimorada.

A espessa cortina de fumaça que se forma ao final do século XX e

início do século XXI, ao alcançar os meios intelectualizados, traduz-se em

elaborações teóricas um pouco mais sutis e intrincadas. Declarar-se um

acadêmico antimarxista é tão démodé quanto declarar-se um acadêmico marxista.

Tendo em vista o fim das ideologias, da historicidade categorizante, dos

enquadramentos em tal ou qual atitude teórica, política, das terminologias

coletivas, dos conceitos de classe, da distinção entre esquerda ou direita, afirmar

ou negar qualquer posição provoca o mesmo efeito. A evasão das infinitas

presenças, filosofias, linguagens, culturas, ciências, formas artísticas, não pode se

personalizar sem que o ser humano se liberte completamente de tais ou quais

definições. A multiplicidade pós-moderna exige a fluidez, prima pela interface,

simboliza e desconstrói à velocidade de um clique, atualiza-se em um presentificar

constante e, por tais motivos, também já se encontra em crise.

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Teorias que afirmam a necessidade de serem abertas, independentes,

autônomas, constroem, assim, modelos abstratos para adequar uma realidade

fantasiosa ao campo do dever ser, excluindo tudo aquilo que neles não se

enquadre. Frente à ausência da materialidade, tais construções não dispõem de

qualquer mediação. Passa-se diretamente do particular ao universal, do abstrato

ao concreto, da aparência à essência, descartando-se, ora um, ora outro polo.

Carregadas de falsas dicotomias embasam, por conseguinte, falsas críticas.

A inversão operada pela ideologia de classe transforma o histórico e

mutável na fixidez da eternidade. As abstrações hipostasiadas afastam a

concretude do real. A atemporalidade impositiva assenta os conceitos que lhe

interessam como eternamente existentes, imutáveis, restando apenas o progresso

ou o regresso dentro de suas rígidas estruturas. Estado, democracia, ambição,

cultura, liberdade, exclusivo, homem, são positivados em alguma essência que

convenha ao momento. Os temas filosóficos e a própria Filosofia – certifica-se a

ideologia dominante – sempre se prestaram a tal ou qual papel dentro de um

formato que sempre foi e sempre será o mesmo, discussões que se repetem com

um ou outro acréscimo casual, apêndice de questões mais puras, verdadeiras,

essenciais. A Filosofia é enquadrada em um presente circular, vir-a-ser em déjà

vu.

As características típicas da pós-modernidade restaram devidamente

expostas como variantes obtusas e requentadas das teorias modernas. O método

lógico-racional, alicerce de ambas, após ter exibidas suas profundas contradições

pela dialética de Marx, acaba por se revelar como outro instrumento ideológico,

articulando-as com o mesmo propósito. Em épocas de crise aguda do capital, a

questão metodológica ganha enorme relevância. A rejeição e invalidação das

críticas ao sistema são alcançadas utilizando-se de critérios puramente formais,

renunciando-se, assim, à discussão sobre seus reais conteúdos (políticos,

econômicos, sociais).

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O academicismo, suposta erudição ou excesso de formalismo

acadêmico surge tanto objetivando a manutenção do status quo privilegiado de

certas camadas burguesas que exercem o papel de intelectuais, quanto se

dispondo ao descrédito e desqualificação de todas as teorias e práticas que não

compactuem com a dominação de classes. Contudo, as verdadeiras motivações

tendem a ser ocultadas atrás de regras que se autointitulam universalmente

válidas, aderindo, então, ainda mais intensamente, à ideologia dominante. É esta

falsa neutralidade operada por meio do uso da metodologia pela metodologia que,

apregoando implícita ou explicitamente o fim da ideologia, na verdade, a defende

com unhas e dentes, miolos e drones. Propagar o fim da ideologia traveste-se no

meio ideologicamente mais concreto para reproduzi-la.

O discurso ideológico se apresenta como não-ideológico, falseando a

realidade e se autodeclarando, arbitrariamente, como acima dela e de suas

contradições. Concomitantemente, acusa de ideológicas todas as posições que

afrontem diretamente o sistema. Quando, na realidade, as contradições se tornam

mais fortes, é justamente aí que o discurso dominante oportunista afirma estarem

ultrapassadas. Marx, longe de precisar ser atualizado como se fora um sistema

operacional, se revela mais atual que nunca.

Tal fato não implica, todavia, em aplicar diretamente e sem qualquer

mediação as categorias criadas pelo autor d´O Capital. Os ensaios

autodenominados marxistas que enquadram fatos e realidade em esquemas pré-

concebidos, estruturas fixas ou tipos ideais acabam resultando em um

materialismo vulgar abarrotado de uma positividade determinista que em nada se

assemelha à materialidade histórica do método. O idealismo toma corpo nestas

posições e crê na sua capacidade de solucionar, per se, todas as contradições

existentes no modo capitalista de produção. Estes foram e continuam sendo

alguns dos equívocos repetidos pela tradição marxista que se utiliza direta ou

indiretamente das obras de Marx e que, como parte da totalidade, também se

encontra em crise.

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O trabalho de desideologização, tal como a análise acerca de qualquer

realidade existente sob o capital, não pode, em momento nenhum, prescindir da

materialidade histórica que, constantemente, os transformam, diferenciam e

complexificam de acordo com a realidade na qual se encontram inseridos. O

capitalismo cria, mantém e reproduz a ideologia de uma classe dominante como

um de seus pilares essenciais. Esta ideologia, por sua vez, avalia, julga e

sentencia disseminando seus princípios e normas para toda a sociedade, pois

possui materialmente os meios, instituições e ferramentas econômicos, culturais e

políticos para validar ou deslegitimar quaisquer posições. Ao construir as

condições e regras que terão validade universal, permitindo-se modificá-las ou

revogá-las a qualquer tempo, de acordo com os seus interesses e necessidades,

dispensa maiores preocupações com forma ou conteúdo. O fetiche da quantidade

se sobrepõe e passa a determinar a qualidade.

A produção, a distribuição e o consumo de valores e ideias destinados

às grandes massas exigem uma normatização e padronização que abranja todas

as classes sociais. Ainda que tais ideias e valores sirvam à dominação e

exploração, eles devem ser difundidos como universalmente válidos, sobretudo

para aqueles indivíduos que, participando da classe dominada, sofrem e padecem

em meio a suas consequências mais trágicas. Juízes, traficantes, filósofos,

cozinheiros, médicos, motoristas, engenheiros nucleares, programadores

audiovisuais, soldados, professores ou desempregados devem apreender e

internalizar a ideologia dominante, reproduzindo-a em crenças e práticas sociais

consistentes.

A consciência cotidiana, abarrotada de problemas e questões factuais,

afasta-se do pensamento crítico e tende a refletir como se fossem normais os

mesmos padrões que a (con)formaram. As diferenças existentes entre os

indivíduos são aniquiladas até o ponto em que o senso comum ideologizado os

uniformiza e nivela de modo sórdido, grotesco e tacanho. Família, organismos

militares, escola, universidades, cursos, ateliês, prisões, igreja, empresas,

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fábricas, judiciário, mídias, ONGs instrumentalizam uma razão caricaturada e

repetem, incansavelmente, os mesmos modelos de subjugação e controle.

Alienados daquilo que os constitui como seres humanos, fragmentados e

dispersos, invertem facilmente a realidade, fomentando, como nunca, o

fortalecimento dos processos de reificação das pessoas e personalização das

coisas. Manipulados, entretidos e abestalhados frente a uma vibrante indústria

cultural, vulgarizam-se em formas ocas de arte, prazer, pensamento e ação.

Frente à anestesia aparentemente inabalável da sociedade capitalista

de produção-troca-consumo, a atitude filosófica primordial que impelia o pensar

perde toda a capacidade crítica. Inexistindo qualquer questionamento

verdadeiramente radical, a razão se perde em devaneios metafísicos de

circularidades estéreis. A crise se instaura e retorna, eternamente. De que

maneira recuperar este estranhamento inicial que unia homem e physis,

pensamento e ação, filósofos e mundo prático poderia derivar em uma mudança

na própria filosofia? Não deveria, entretanto, a questão ser trazida de modo

inverso? Como uma mudança na filosofia poderia recuperar sua radicalidade? Ou,

ainda, dada tamanha ideologização social, de que forma a Filosofia – também, em

si, ideologizada – poderia realizar-se, desideologizando?

Por não se tratar de mera ilusão, pensamento falso, errado, não é

possível escapar da ideologia. Ela alcança a todos, exploradores e explorados.

Afirmava Heráclito que tudo está cheio de deuses. Tendo se constituído

materialmente sob o capitalismo, tudo, nesta sociedade, está impregnado por

ideologia. Sendo forma de consciência social, prática, não pode ser totalmente

evitada ou superada dentro da sociedade de classes que a cria. No entanto, é

possível e absolutamente necessário questioná-la. Contrapor-se às ideias

ideologizadas utilizando-se da ciência, técnica, teoria neutra ou opondo-se aos

seus valores por meio do uso adequado ou desconfiado da razão é repetir a

mesma alienação que a estrutura; trabalho-sísifo fadado ao eterno fracasso.

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Obviamente, não será tampouco a irracionalidade o contraponto às ideias (nem

sempre racionais, estruturadas, lógicas) das classes dominantes.

É inegável que o exercício teórico se constitui em atitude fundamental,

mas a reprodução iluminista que idealiza o papel da razão e do saber, além de

resultar em uma tautologia estagnante, é a mesma que repete a torre de marfim

filosófica e, destarte, a sociedade de classes e sua violenta divisão do trabalho. A

crítica radical à ideologia só pode advir, então, daquilo que a funda: a

materialidade, a prática consciente. Será esta concretude, portanto, que

capacitará o sujeito a rever e questionar suas ideias e valores. O movimento

histórico que cria, mantém e reproduz o capitalismo, suas relações dominação e

exploração, é o mesmo que é apreendido pela classe trabalhadora como um todo,

ao ser submetida à ruína diária: dê sua pele, sangue, carne, músculos e cérebro.

Construir consciência e ação de classe, em si e para si, dentro de uma

realidade que se apresenta em profunda fragmentação parece ser obra destinada

a certa parte desta classe. As mais variadas - e muitas vezes inconciliáveis -

tendências de esquerda (anarquistas, comunistas, sindicalistas, socialistas,

membros de partidos políticos e movimentos sociais, feministas, ecologistas, etc.)

acabam por convergir precisamente neste ponto: a crença em uma vanguarda que

disponha dos meios intelectuais e materiais para apontar a toda a classe os rumos

e melhores caminhos a seguir de acordo com o momento histórico, dirigindo o

processo. A precária convergência na existência do conceito logo se transforma

em divergência quanto à decisão de quem seria esta vanguarda. Intelectuais

orgânicos, sindicalistas, campesinato, operariado fabril, trabalhadores

desempregados, dividem opiniões, teses e ações acerca de qual deles constituiria

a real oposição ao capital, aquela que está mais à esquerda, a mais

revolucionária, mais verdadeira, e, portanto, a mais adequada vanguarda. A

hierarquia típica da sociedade de classes segue se reproduzindo ideologicamente

pela tradição das teorias e práticas que se pretendem críticas.

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Não é o trabalhador fabril, industrial, campesino ou intelectual,

individualizado mesmo que em um coletivo, que é o negativo do capitalista, mas o

trabalhador, qualquer e todo trabalhador, a totalidade da classe trabalhadora. A

relação dialética fundamental é aquela que opõe, como por essencialmente

contraditórios, capital e trabalho. Assim como não se afirma ser um capital

específico que institui, reproduz e mantém o modo de produção (ainda que haja a

predominância de um ou outro em alguns momentos históricos) mas o capital em

geral, que abrange, concretamente, a totalidade social, não há que se dizer de um

trabalho/trabalhador específico como polo oposto.

Por tais motivos, não se pode predefinir, como tentando profetizar o

futuro, uma vanguarda A ou B. Admitir a existência de uma vanguarda expressa

em alguns trabalhadores em particular, frações de classe, indivíduos iluminados,

visionários, mais capacitados, mais conscientes, mais revolucionários, mais à

esquerda, etc. é reproduzir a estrutura hierárquica do próprio capital e a

desigualdade intrínseca típica de suas relações sociais, tomando a parte pelo todo

e fragmentando o conjunto da classe trabalhadora.

Não há uma vanguarda. Não há a vanguarda. O que existe como

contraposição, contradição e oposição essencial ao modo capitalista de produção

(que contém e gera, ao produzir-se e reproduzir-se, teoria e prática) é a práxis:

síntese dialética da teoria e prática construídas historicamente pela luta e

resistência da classe trabalhadora. Essa práxis só pode, no entanto, ser

concretizada pela totalidade dos trabalhadores tendo em vista ser o seu oposto, o

capital, também totalidade (totalitária). Apenas considerando este universal

concreto, povo consciente e organizado munido da capacidade de apreciação e

aprofundamento teóricos necessários à prática, alcança-se a radicalização da luta

de classes.

A práxis revolucionária exige, ademais, a todo tempo, a crítica e a

autocrítica pela criação e recriação constante da cultura popular fazendo frente à

ideologia dominante. A produção, a socialização e o uso das ideias e valores dos

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e pelos dominados é mais um meio de se contraporem e se combaterem,

positivamente, as relações sociais ditadas pelo capital. Contudo, somente com a

destruição completa deste modo de produção serão abertas as possibilidades

reais ao exercício pleno das capacidades criativas dos indivíduos, dando início à

história da humanidade. A negação total e radical de um sistema que nega esta

plenitude vital, a negação da negação, exige dos movimentos dispostos a efetuá-

la que se dê um passo à frente, sem se dar nenhum atrás.

Criando seus próprios coveiros, o germe de sua própria destruição, o

capitalismo, por suas contradições internas, providencia as armas materiais com

as quais será destruído. A crítica teórica aliada à crítica produzida pela prática

fornece à classe trabalhadora a práxis necessária à revolução. A relação dialética

que entrelaça ambas em um exercício constante de exame dos teóricos

burgueses e autocrítica dos teóricos marxistas deve ter como instrumento

imprescindível uma práxis que balize, aprecie, julgue e recrie a teoria, cabendo a

esta, por sua vez, a função precípua de contribuir para o aprofundamento da ação

revolucionária.

O momento atual de crise do sistema capitalista se apresenta como um

momento no qual se agudiza a luta de classes. As contradições, manifestando-se

de forma mais aberta, mais clara, permitem que se revele o verdadeiro

contraditório da classe trabalhadora. Sendo o capital uma relação social com

alcance geral, local e global, somente aglutinando as forças centrípetas e

centrífugas, internas e externas, torna-se possível sua negação total e absoluta,

abrindo-se a possibilidade concreta para superá-lo. A arma da crítica, não

substituindo de modo algum a crítica das armas, prima, no entanto, pela rebeldia

revolucionária da Filosofia que, libertando-se do interpretar, dispõe-se a

transformar. A crítica das armas, unindo trabalhadoras e trabalhadores de todo o

mundo, imbuída do conhecimento, declara guerra aos senhores e volta suas balas

aos generais, expropriando os expropriadores e escrevendo, a partir daí, sua

própria história.

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