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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X “MULHERES DE ONTEM E DE HOJE” ENEIDA PARA MULHERES, SOBRE MULHERES Carla Figueiredo Marinho 1 Maria Angelica Motta-Maués 2 Resumo: A escritora e jornalista paraense Eneida de Moraes (1903-1971), que durante a ditadura Vargas, foi ‘vizinha’ na prisão de (entre outros) Graciliano Ramos e Olga Benário, atuou na imprensa carioca como titular da coluna feminina “Mulheres de Ontem e de Hoje”, do jornal Diário de Notícias. Seus artigos nessa coluna apresentavam mulheres de diferentes perfis (nacionalidades, classes, gerações) que tinham em comum o afrontamento daquilo que se esperava como papéis atribuídos a uma mulher, para entrarem e atuarem em espaços marcadamente masculinos. Neste trabalho pretendemos identificar, através da linguagem utilizada nos textos jornalísticos, como Eneida ‘diz’ a mulher, e nesse ‘dizer’ registrar as formas, configurações e contornos de uma imagem feminina produzida na coluna, interpretada e analisada numa perspectiva sócio antropológica. O recorte de gênero se faz necessário, logo que as edições de jornais eram (são, em muito, ainda) espaços majoritariamente “masculinos”, quer na sua percepção ou atualização. Eneida, assim como outras escritoras e jornalistas de sua época, para solidificar-se em sua carreira jornalística, enfrentou e afrontou os padrões instituídos para aquilo que seria o desempenho “feminino” de sua época, pessoalmente e profissionalmente. Nos seus escritos, assim, as construções sociais acerca do “feminino” e do “masculino” e sua discussão são introduzidas continuamente, evidenciando às mulheres a atualização constante das injunções de gênero na vida social. Palavras-chave: Eneida, Mulheres, Gênero, Militância. O presente trabalho é um recorte de minha dissertação intitulada: “ENEIDA para mulheres, sobre mulheres, A Mulher ‘Dita’: contornos da Imagem do Feminino em Eneida, “a escritora que veio do Pará.” Mas especificamente do quarto capítulo que intitulei: “ENEIDA, a colunista de Mulheres de Ontem e de Hoje”, no qual retorno para o cenário dos séculos XVI, XVII e XIX, juntamente com Eneida, por meio da leitura e análise da coluna “Mulheres de Ontem e de Hoje”. Os textos são de relatos biográficos de mulheres de classes, nacionalidades e épocas diferentes, porém todas essas mulheres driblaram as regras vigentes, ao que esperava de uma mulher, para vivenciarem seus ideais, sendo estes de interesse individual ou da coletividade. A primeira incursão em campo, de algum modo, me possibilitou perceber que meu ‘objeto’ estava interligando à representação feminina, inserida em um contexto histórico-social de vivência 1 Cientista Social e Mestre em Antropologia. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), (PPGSA/UFPA) e-mail: [email protected] 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), (PPGSA/UFPA) Pesquisadora (CNPq), e-mail: [email protected]

“MULHERES DE ONTEM E DE HOJE” ENEIDA PARA … · Resumo: A escritora e jornalista paraense Eneida de Moraes (1903-1971), ... por meio da leitura e análise da coluna “Mulheres

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

“MULHERES DE ONTEM E DE HOJE” – ENEIDA PARA MULHERES, SOBRE

MULHERES

Carla Figueiredo Marinho 1

Maria Angelica Motta-Maués 2

Resumo: A escritora e jornalista paraense Eneida de Moraes (1903-1971), que durante a ditadura

Vargas, foi ‘vizinha’ na prisão de (entre outros) Graciliano Ramos e Olga Benário, atuou na

imprensa carioca como titular da coluna feminina “Mulheres de Ontem e de Hoje”, do jornal Diário

de Notícias. Seus artigos nessa coluna apresentavam mulheres de diferentes perfis (nacionalidades,

classes, gerações) que tinham em comum o afrontamento daquilo que se esperava como papéis

atribuídos a uma mulher, para entrarem e atuarem em espaços marcadamente masculinos. Neste

trabalho pretendemos identificar, através da linguagem utilizada nos textos jornalísticos, como

Eneida ‘diz’ a mulher, e nesse ‘dizer’ registrar as formas, configurações e contornos de uma

imagem feminina produzida na coluna, interpretada e analisada numa perspectiva sócio

antropológica. O recorte de gênero se faz necessário, logo que as edições de jornais eram (são, em

muito, ainda) espaços majoritariamente “masculinos”, quer na sua percepção ou atualização.

Eneida, assim como outras escritoras e jornalistas de sua época, para solidificar-se em sua carreira

jornalística, enfrentou e afrontou os padrões instituídos para aquilo que seria o desempenho

“feminino” de sua época, pessoalmente e profissionalmente. Nos seus escritos, assim, as

construções sociais acerca do “feminino” e do “masculino” e sua discussão são introduzidas

continuamente, evidenciando às mulheres a atualização constante das injunções de gênero na vida

social.

Palavras-chave: Eneida, Mulheres, Gênero, Militância.

O presente trabalho é um recorte de minha dissertação intitulada: “ENEIDA para mulheres,

sobre mulheres, A Mulher ‘Dita’: contornos da Imagem do Feminino em Eneida, “a escritora que

veio do Pará.” Mas especificamente do quarto capítulo que intitulei: “ENEIDA, a colunista de

Mulheres de Ontem e de Hoje”, no qual retorno para o cenário dos séculos XVI, XVII e XIX,

juntamente com Eneida, por meio da leitura e análise da coluna “Mulheres de Ontem e de Hoje”.

Os textos são de relatos biográficos de mulheres de classes, nacionalidades e épocas diferentes,

porém todas essas mulheres driblaram as regras vigentes, ao que esperava de uma mulher, para

vivenciarem seus ideais, sendo estes de interesse individual ou da coletividade.

A primeira incursão em campo, de algum modo, me possibilitou perceber que meu ‘objeto’

estava interligando à representação feminina, inserida em um contexto histórico-social de vivência

1 Cientista Social e Mestre em Antropologia. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

(PPGSA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), (PPGSA/UFPA) e-mail: [email protected] 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Pará

(UFPA), (PPGSA/UFPA) – Pesquisadora (CNPq), e-mail: [email protected]

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da escritora – Eneida – e a construção e publicação das suas matérias; para tanto foi necessário

estabelecer uma relação entre literatura e concepções das identidades de gênero.

Constância Lima Duarte & Kelen Benfenatti Paiva (2009) destacam a importância da inserção da

mulher no século XIX nas edições de jornais, espaço até então retratado e vivido mesmo como

majoritariamente masculino3, uma vez que essa “ascensão”, termo usado pelas autoras, do espaço

privado – espaço doméstico – para o público – edições de jornais, no caso – possibilitou que as

mulheres do campo das letras, comprometidas e influenciadas pelo movimento feminista

utilizassem a imprensa como órgão agregador e organizador das mulheres. Mediante o

desenvolvimento deste estudo foi possível apresentar a militância de Eneida agregando sua atuação

como jornalista, escritora e membro do Partido Comunista.

Neste estudo, a linguagem, mais especificamente a escrita é um instrumento eficaz na construção

de uma realidade social, conforme Bourdieu (2003) destaca na entrevista intitulada: “Du bon usage

de l’ethnologie”. James Clifford (2011) no ensaio “A arte como sistema cultural”, também pontua

que as palavras às vezes parecem existir em um mundo próprio. Neste estudo busquei identificar

através, da linguagem, como Eneida ‘diz’ a mulher, e nesse ‘dizer’ identificar as formas,

configurações e contornos de uma imagem feminina produzida na coluna “Mulheres de Ontem e de

Hoje” (1953-1957), do jornal carioca Diário de Notícias4 que foram classificadas, analisadas e

interpretadas numa perspectiva sócio antropológica.

No conteúdo desses artigos temos a escritora e jornalista paraense Eneida de Villas Boas Costa

de Moraes5 escrevendo em um espaço “destinado” às mulheres, que são as colunas femininas, as

quais, segundo Dulcília Buitoni (2009) correspondem a um espaço em que, à primeira vista nada

3 Segundo o jornalista José Hamilton Ribeiro, em seu livro intitulado “Jornalistas 1937-1997”, menciona que os

prédios onde funcionavam as empresas jornalísticas eram pensadas e construídas somente para homens, não dispunham

de banheiro feminino, as mulheres trabalhavam como telefonista, somente durante o dia, ou realizado a faxina e o café,

ou seja, a área de serviço. (RIBEIRO, 1998, p.31)

4 Foi no cenário político da Revolução de 30 que surgiu em 12 de junho do mesmo ano o Diário de Notícias, fundado

por Orlando Dantas. Ficou conhecido como “o Jornal da Revolução”, com tiragem inicial de seis mil exemplares, que,

em poucos meses passou para 168 mil exemplares. O Diário se mantém na oposição até a década de 70 quando deixa de

circular. (MENDES & SOUZA, 2006, p. 14)

5 Respeitando a decisão tomada pela autora, ao longo do texto, farei referência a ela utilizando somente seu primeiro

nome “Eneida”, visto que no ano de 1926, esta decidiu subtrair de seus escritos, o Costa e o Moraes, que assinava antes,

porque, segundo ela, não gostaria que seu pai e marido fossem responsabilizados pelos delitos que cometesse. Embora,

bem mais tarde ainda fosse referida como Eneida de Moraes. (SANTOS, 2009) É importante destacar que esta foi uma

prática utilizada na imprensa feminista francesa, segundo Perrot (2012) Michèle Riot-Sarcey analisou a emergência das

primeiras jornalistas e observou que as feministas tinham consciência do papel da imprensa na opinião pública e com

profissionalismo e muito idealismo recusam-se a adotar o sobrenome dos maridos, e apresentam somente o primeiro

nome, como: Marie-Jeanne, Désirée, Eugénie, Claire e outras. (PERROT, 2012, p. 34)

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transparece dando a falsa impressão de tratar-se de um conteúdo banal6, mas, se levado em

consideração o contexto social e político observa-se que o tom dado prenuncia a construção de uma

imagem feminina. Diante do meu objeto e a partir das considerações de Buitoni (2009), formulei as

seguintes questões: “O que havia de peculiar nessas personagens apresentadas por Eneida?”;

“Havia elementos da estrutura social que eram criticados por elas?”; “Se havia, qual ou quais

seriam?”– questões norteadoras, que orientaram meu percurso em campo.

Para isto, utilizei enquanto método o “fazer etnográfico” que tem possibilitado a vivência da

teoria, numa proposição em que a teoria e a prática não estão dissociadas, tal qual Mariza Peirano

(2008) pontua, o que possibilitou um “olhar devidamente sensibilizado pela teoria”, como destaca,

por sua vez, Roberto Cardoso de Oliveira (1998). No fazer etnográfico, a teoria está em ação, o

olhar é moldado e disciplinado por ela permitindo ou possibilitando que os fatos observados sejam

postos em “ordem”, sendo assim traduzidos por uma teoria interpretativa. (URIARTE, 2012, p.171)

Logo, entendo que o método etnográfico possibilitou a aproximação necessária para o levantamento

das informações, que após o exercício reflexivo foram transformadas em dados de pesquisa,

permitindo assim o estudo e compreensão do meu “objeto”. (GUBER, 2001)

Seguindo os padrões da academia os dados foram sistematizando, a partir dos referenciais

teóricos elencados ao longo da investigação, buscando levar o leitor a compreender, não somente as

experiências vivenciadas no campo, mas a forma como essa experiência está relacionada com a

teoria antropológica. Ainda que seja uma produção paradigmática, pois ao mesmo tempo que tenho

autoridade para contar e fazer afirmações e negações é frágil, porque com o tempo, diante de novas

investigações haverá, ou poderá haver novos problemas e refutações. Como afirma Da Matta

(1992), eis a relação entre uma boa etnografia e o romance, que pode ser revisitado, relido e

referido, mas não refutado.

Eneida, a colunista de “Mulheres de Ontem e de Hoje”

6 Michelle Perrot, em seu livro “Minha história das mulheres” mostra que o “Journal des demoiselles”, estudado por

Christine Léger era publicado mensalmente, escrito e financiado parcialmente por mulheres. Com estilo eclético, os

artigos iam da moda às receitas de cozinha, das narrativas de viagens, ilustradas com gravuras imaginativas, às

biografias de mulheres “ilustres”. Mas, por trás da fachada de assuntos tidos como supérfluos há uma vontade de

emancipação das mulheres pela educação e pelo trabalho. (PERROT, 2012, p.33)

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O percurso para a construção deste trabalho permitiu uma viagem ‘tão longe’, temporal e

espacialmente, para ouvir/ler o relato de “mulheres de ontem” para as “mulheres de hoje”, que

foram apresentadas por Eneida na série “Mulheres de Ontem e de Hoje”.

A série seguia uma periodicidade semanal, sendo publicada aos domingos no jornal Diário de

Notícias durante os anos de 1953 a 1957. No material disponibilizado pelo GEPEM, e aqui me

refiro mais especificamente à pessoa da professora Eunice dos Santos, há 167 imagens digitalizadas

que correspondem aos recortes da série e que foram organizadas em ordem alfabética. E envolta as

impressões deixadas ao longo da (re) leitura de todo o material recordei do seguinte trecho do

antropólogo estadunidense Clifford Geertz:

Para um etnógrafo, tudo é uma questão de uma coisa levar a outra, essa a uma terceira, e

essa última a uma outra que mal se sabe o que é. [...] O resultado inevitavelmente, é

insatisfatório, desajeitado, instável e mal configurado: uma grande geringonça. O

antropólogo, ou no mínimo alguém que deseja tornar complexas as suas geringongas,

jamais dando por encerrado o seu trabalho, é um concertador maníaco que não consegue

direcionar seus talentos. (GEERTZ, 2012, p.24)

Pois a cada (re) leitura um leque de temáticas se abria diante dos meus olhos, que permaneciam

atentos buscando perceber: “O que havia de peculiar nessas personagens apresentadas por

Eneida?”; “Havia elementos da estrutura social que eram criticados por ela?”; Se havia, qual ou

quais seriam?”7; Mas conhecendo cada trajetória apresentada por Eneida, me sentia como na

citação acima: um pensamento me levava a outro, e percebi que um capítulo não seria suficiente

para dar conta do universo existente no material coletado. Então estabeleci um recorte temporal,

decidi analisar as mulheres que viveram nos século XIX e os anteriores como o XVIII e XVI –

sendo estes em menor número – porém, permaneço com a sensação de que o trabalho jamais será

encerrado, pois mesmo com o recorte ainda contabilizei 35 mulheres que muito têm a ‘contar’ sobre

suas trajetórias em diferentes cenários sociais. Após contabilizar, percebi que as mesmas poderiam

ser organizadas em grupos, de acordo com as atividades que desenvolveram. Diante dos dados

elaborei o gráfico abaixo para melhor visualizar a distribuição nos 12 grupos que organizei, dentre

os quais selecionei 4 – militares, atrizes, escritoras e jornalista – para o capítulo, mas pare este

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trabalho irei me deter somente nas jornalistas, em especial a primeira jornalista da história brasileira

– Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Velasco.

Eneida, na construção do texto da coluna8 “Mulheres de Ontem e de Hoje”, fez uso de livros

biográficos como o “Ensaio Biográfico: Mulheres Brasileiras”, editado pelo Ministério da Guerra

e lançado em 1938, ao qual faz referência em diferentes momentos. É importante destacar que o

texto de Eneida é de cunho biográfico e ilustrado com retratos desenhados, de cada uma das

mulheres que tiveram episódios de sua vida apresentados semanalmente no Diário de Notícia, como

mostro abaixo.

8 Eneida refere-se às publicações de “Mulheres de Ontem e de Hoje”, como série, porém nas séries jornalísticas é

necessário que haja vozes, que haja a reportagem, o que não ocorre em nenhuma publicação, mesmo com as mulheres

que são contemporâneas à repórter como: Bibi Ferreira, Rachel de Queiroz e Tonia Carrero dentre outras. Ao longo do

estudo farei uso da categoria coluna quando me referir à publicação de “Mulheres de Ontem e de Hoje”.

23%

17%

8%8%

8%

6%

6%

6%3% 3%

9% 3%

Mulheres de Ontem e de Hoje Escritoras

Militares

Atrizes

ProfessorasCientistas

Mães

Filosofas

Nobres

Negra

Jornalista

Artistas

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Fonte: MORAES, 1953-1957.

A estrutura textual trás elementos ‘básicos’ de um texto biográfico, porém a colunista trazia

episódios da vida de cada uma das mulheres, destacando a atuação em seus respectivos contextos

sociais.

O percurso etnográfico trilhado possibilitou perceber reflexos e imagens a partir do olhar

“ancorado numa perspectiva que procurasse entender os valores de masculinidade e de

feminilidade”, respeitando o contexto social em que cada uma delas estava inserida. (KOFES, 2001,

pág.15) E neste exercício de deslocamento temporal, minha admiração por estas mulheres, na sua

maioria completamente desconhecidas para mim, só crescia, e em alguns momentos me questionava

que sentimento era despertado nas leitoras da década de 1950 da coluna “Mulheres de Ontem e de

hoje”. Infelizmente eis uma pergunta que permanecerá em aberto, mas não abandonada.

Como mencionei anteriormente, Eneida apresentou aos seus leitores mulheres que, assim como

ela enfrentaram e afrontaram os padrões instituídos para aquilo que seria – deveria ser, neste sentido

– o papel feminino da época, pois as mesmas passaram a transitar por espaços majoritariamente

“masculinos”, no que se referia à sua consideração social como o eram (em certa medida, ainda são,

em que pesem as substanciais mudanças nesse contexto).

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Dentre estas mulheres destaco Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Velasco, a primeira

jornalista da história brasileira, seu nome ficou registrado na história da imprensa brasileira, mulher

de espírito combativo e enérgico. Baiana, nascida em 01 de dezembro de 1817, cercada de carinho e

conforto teve a orientação de um preceptora que “cedo lhe incutiu no cérebro a ideia de conhecer

os idiomas, francês, inglês e italiano”. Segundo historiadores literários9 Violante aprendera música,

escrevia poesias e realizava traduções principalmente de peças teatrais. Quando sua família fixou

residência no Rio de Janeiro, ela que já lia e escrevia bastante intensificou suas atividades

intelectuais.

Imaginemos hoje a luta que ela teve que enfrentar: viveu ela no século XIX, quando os

direitos da mulher brasileira não existiam. Mas nada fazia esmorecer o ânimo de nossa

primeira jornalista, inclusive porque ela procurava abafar sua desventura amorosa no

trabalho intenso. Repudiou casamento, fugiu do amor até que encontrou João Antônio

Boaventura Velasco, oficial da marinha, e com êle casou. (ENEIDA, MULHERES DE

ONTEM E DE HOJE, 1953-1957)

Foi conhecendo o círculo de amigos do seu esposo e suas respectivas esposas que fez amizade

com Joana Paula Manso de Noronha – uma senhora argentina, casada com um brasileiro – feminista

que lutava pela emancipação das mulheres. A aproximação entre as duas fortaleceu em Violante o

desejo de lutar por direitos as mulheres, a forma encontrada de difundir suas ideias foi através do

jornal, unindo forças em 1852 “uma folha é redigida por mulheres” e recebe o título de “O Jornal

das Senhoras”. De acordo com a pesquisa realizada por Buitoni (2009) sobre a representação da

mulher pela imprensa feminina brasileira, no levantamento realizado há contradições10 quanto à

redatora responsável pelo jornal, porém ele é o primeiro a ser redigido por mulheres e com o passar

de suas publicações foi ganhando seções de moda, literatura, belas-artes, teatros e críticas, o mesmo

já contava com ilustrações.

Mas em sua biográfica sua vida confunde-se com a do jornal, pois sua vida passou a ser marcada

por sucessivas lutas, inclusive econômica para manter a circulação do jornal.

9 Sacramento Blake, Inocêncio Macêdo, Afonso Costa, Hélio Viana e Barros Vidal.

10 Segundo Godin da Fonseca o jornal era redigido por D. Cândida do Carmo Souza Menezes, porém, Nelson Werneck

Sodré afirma que o mesmo foi lançado por Violante Ataliba Ximenes de Bivar Nolasco, nos Anais da Biblioteca

Nacional é citado o nome de Joana Paula Manso de Noronha como redatora. (BUITONI, 2009, p.40)

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Para manter “O Jornal das Senhoras”, Violante teve que lutar contra tôda uma série de

obstáculos de ordem moral e financeira. Se, por um lado, houvesse quem o aplaudisse e

mesmo senhoras da Côrte para êle mandassem, sob pseudônimo, artigos, versos e contos,

por outro lado havia os que atacavam aquela arrojada empreitada feminina. Para que o

jornal vivesse, Violante lançava mão de seus próprios recursos que, com a contribuição dos

assinantes, garantia a impressão. [...] Seu ardor combativo não esmorecia. (ENEIDA,

MULHERES DE ONTEM E DE HOJE, 1953-1957)

As dificuldades financeiras aumentaram e Violante não teve mais condição de mantê-lo, o jornal

circulou durante o período de um de ano. Mesmo com o fim do jornal sua produção não parou, no

ano de 1859, publica o livro “Algumas Traduções”, em 1873 lança o jornal “O Domingo”, suas

seções traziam textos literários como: sonetos, cartas de amor e recreativos, além de dicas de moda.

O mesmo “obteve grande sucesso literário e nenhum sucesso financeiro”, ainda sobre ela nas

palavras de Eneida:

O que caracterizou a vida da primeira jornalista brasileira foi sua enorme capacidade de

trabalho, sua energia e sua coragem, sua dedicação à causa feminina e sua persistência em

manter, para a mulher, um jornal feito por mulheres. (ENEIDA, MULHERES DE ONTEM

E DE HOJE, 1953-1957)

Lendo sobre Violante, me questionei se não seria uma característica comum as jornalistas de

jornais femininos, pois sua energia e coragem lembra o esforço empregado pela equipe do jornal

“Momento Feminino”, pertencente ao Partido Comunista, o qual era editado e mantido pelas

militantes. Mas como mencionei anteriormente no texto, Eneida ‘diz’ a história de mulheres que

afrontaram os padrões dos papéis instituídos para as mulheres nos séculos XIX, XVIII e XVI. A

construção textual trás o uso constante de adjetivos, que reforçam a imagem construída de cada uma

delas, o que muito reflete as dificuldades encontradas para se estabelecerem enquanto sujeito.

Pensar sobre cada uma delas me fez lembrar o trecho da carta testamento de Eneida, que diz assim:

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“Não houve nenhuma grandeza no que fiz na vida: adquiri uma ideologia, tracei friamente meu

caminho e fui por êle, certa de estar certa.” (ENEIDA apud SANTOS, 2009, p.99)

E porque não pensar que cada uma delas também adquiriu sua ideologia e certa de estarem

certas, traçaram e seguiram friamente seus caminhos? Mas por trás de cada uma das ideologias

penso que a maior delas era a busca por direitos e liberdade, ainda que estas estivessem atreladas ao

bem estar da família, como Ana Dostoievsky que buscando melhores condições financeiras para a

família toma para si a responsabilidade de editora da produção do esposo, tornando-se a primeira

editora na Rússia. Ou Hortência de Castro, Maria Quitéria e George Sand que assumiram a

identidade masculina, trajando-se como homem para usufruírem de direitos que cabiam somente

aos homens de sua época. Outras como Charlotte Brontë e George Elliot não se transvertiram, mas

se ‘esconderam’ por trás de um nome masculino, para que sua produção fosse editada e circulasse

pela Inglaterra. Se fizeram indigentes como Adriaenne Lecouvrer que atuou para grandes plateias,

mas lhe fora negado um enterro digno, ou se esconderam para não ‘ofuscar’ a fama de seus

parceiros como Marceline Valmore, que diante da dor floresceu como poetiza. Não perderam a

oportunidade de estabelecer novos padrões como Sarah Bernhardt no teatro e Tereza Margarida da

Silva Orta na literatura brasileira influenciando toda uma geração de poetas. Viveram grandes

paixões como Anita Garibaldi que morreu lutando ao lado de seu marido, e Clara Camarão que

organizou um exército de mulheres para lutar ao lado de seu esposo Antônio Camarão.

Por alguns momentos, envolta em tantas histórias me senti distante de Eneida, então cai em si de

que quem estava contato os relatos era ela, por meio da coluna que trazia a suas leitoras – dentre as

quais me incluo – perfis de mulheres de diferentes épocas e lugares, e aqui tomando emprestado de

Eneida um pouco de seu lirismo, e aporto em seu reino de Aruanda para pensarmos um pouco mais

sobre essas mulheres, mas por que Aruanda?

Aruanda é o país que sempre trazemos dentro de nós, país de liberdade e de paz sem

desigualdades nem ódios, sem injustiças ou crueldades, do amor sonhado por todos os

homens. Aquele que carregamos como uma arma ou uma jóia tão brilhante, pois foi por nós

construído, vivido, criado e é por nós defendido. [...] Quando foi mesmo que ela chegou

pela primeira vez a meus ouvidos, não sei. Era apenas uma palavra, mas trazia um cheiro

violento de terra e de liberdade, gosto de fruta madura, uma palavra apenas, porém usando

paladar e olfato. [...] É o que quero fazer com este meu livro: abrir a minha Aruanda, meu

passado e meu presente, para que ela deixe de ser apenas minha e se torne de todos, pois

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que para mim, nada existe de meu: a própria vida é um bem coletivo. (ENEIDA, 1989, p.5-

6)

Penso que em “Mulheres de Ontem e de Hoje”, Eneida tentou também trazer para suas leitoras a

vida de cada uma das personagens apresentadas transformando o individual em bem coletivo, que

possibilitaria pensar o passado e o presente seja numa perspectiva individual ou coletiva. E por que

não arriscar e dizer que traziam também Aruanda dentro de si?

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URIARTE, Urpi Montoya. Podemos todos ser etnógrafos? Etnografias e narrativas

etnográficas urbanas. Pontourbe11. Revista do Núcleo de Antropologia Urbana USP. Ano 6.

Dezembro de 2012. Disponível em < http://www.pontourbe.net/edicao11-artigos/248-o-que-e-fazer-

etnografia-para-os-antropologos > Acesso em 10/10/2014.

Referências dos Jornais Diário de Notícias

MORAES, Eneida de. Mulheres de Ontem e de Hoje. In: Diário de Notícias, Rio de Janeiro,

07/11/1953-57. In: Eneida de Moraes: memória ícono-bibliográfica (1920-1971)/ (CD-ROM)/

Eneida de Moraes: organização e compilação de Eunice Ferreira dos santos, Belém, 2004. 7 discos

lasers:son., II. V.3 e 4.

“Women of the Yesterday and Today” – Eneida for women, about Women.

Abstract: The writer and journalist, Eneida de Moraes (1903-1971), who during the Vargas

dictatorship was a 'neighbor' in the prison of (among others) Graciliano Ramos and Olga Benário,

appeared in the Rio press as headline of the women's column "Women of Yesterday And of Today,

"of the newspaper Diário de Notícias. Her articles in this column featured women of different

backgrounds (nationalities, classes, generations) who had in common the confrontation of what was

expected as roles assigned to a woman, to enter and act in markedly masculine spaces. In this paper

we intend to identify, through the language used in the journalistic texts, how Eneida 'tells' the

woman, and in that 'say' to record the forms, configurations and contours of a feminine image

produced in the column, interpreted and analyzed in an anthropological partner perspective. Gender

cutting becomes necessary as newspaper editions were (largely still) spaces that are mostly

"masculine," either in their perception or updating. Like other writers and journalists of her day, to

solidify herself in her journalistic career, Eneida faced and confronted the standards instituted for

what would be the "feminine" performance of her time, both personally and professionally. In her

writings, thus, the social constructions about the "feminine" and the "masculine" and their

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

discussion are introduced continuously, showing women the constant updating of the gender

injunctions in social life

Key-words: Eneida, Women, Gender, Militancy.