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| Mulheres de pedra 1 No abandono da Cracolândia, elas enfrentam a violência, os riscos da prostituição, as ameaças à maternidade, a rejeição e o preconceito CAROL OLIVEIRA LETÍCIA PAIVA VITÓRIA BATISTOTI CAROL OLIVEIRA texto arte Vanuza, 36 anos, em evento de beleza promovido por assistentes sociais da prefeitura. “Tem muita mulher sendo violentada. Você está no meio do inferno.” MULHERES de pedra

MULHERES de pedra - vladimirherzog.orgvladimirherzog.org/.../uploads/2017/10/mulheres-de-pedra_1.pdf · rah Fromm, da Unicamp e do Centro de Es - tudos da Metrópole (CEM) da USP

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| Mulheres de pedra1

No abandono da Cracolândia, elas enfrentam a violência, os riscos da prostituição, as ameaças à

maternidade, a rejeição e o preconceito CAROL OLIVEIRALETÍCIA PAIVA

VITÓRIA BATISTOTI

CAROL OLIVEIRA

texto

arte

Vanuza, 36 anos, em evento de beleza promovido por assistentes sociais da prefeitura. “Tem muita mulher sendo violentada. Você está no meio do inferno.”

MULHERESde pedra

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Foi com um cutu-cão no ombro que a sergipana Ivone Dantas, a “Cacau”, atraiu a atenção em nossa primeira ida à região co-nhecida como

Cracolândia, no centro da capital paulis-ta. Em seus 40 e poucos anos, de cabe-los curtos, corpo esguio, com um timbre rouco, Cacau se apresentou e disse que precisava de ajuda para comer. Antes que pudéssemos lhe acompanhar ao mercado

mais próximo, ela sentou-se no chão da calçada da Rua Mauá e acenou para que fi-zéssemos o mesmo. Pediu papel e caneta: queria escrever e contar sua história.

Cacau é capaz de revisitar toda a sua trajetória – marcada por abusos sexuais do padrasto e dos tios durante a infân-cia; pelas traições e agressões impostas pelo ex-marido; e pela saudade dos dois filhos, Gabriel, 23 anos, e Alessandra, 16. No entanto, ela não sabe dizer ao certo como chegou à Cracolândia. “Moro na rua há muitos anos. Um dia fui visitar a praia e, quando voltei, vim parar aqui...”, diz, com naturalidade, enquanto volta-se

à caneta em sua mão e começa a escrever um poema de autoria própria. Até lem-brar de sua fome. Antes de nossa visita ao mercado, porém, ela cede dois dos ca-checóis que confecciona: “Podem pegar, é um presente meu. Não está com cheiro ruim. Eu moro no ‘fluxo’, mas tomo ba-nho todo dia”.

O “fluxo”, endereço de Cacau, é mutá-vel. O termo, usado para definir o espa-ço de maior concentração dos usuários de drogas na Cracolândia, nem sempre esteve no mesmo lugar. Nas últimas dé-cadas, ele já passou por diversas ruas do bairro da Luz, zona central de São Paulo,

VITÓ

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BATI

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Entre idas e vindas na Cracolândia, Ivone Freitas, a ‘Cacau’, escreve poemas e tricota cachecóis

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e, desde maio deste ano, firmou-se entre a Praça Júlio Prestes e a Rua Cleveland.

Com o vai e vem diário de usuários, é di-fícil mensurar a quantidade de indivíduos na região. Em junho deste ano, a Secreta-ria de Desenvolvimento Social do Estado, com consultoria do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), verificou que as mulheres representam 34% dos frequentadores da Cracolândia, o que corresponderia a 642 pessoas. A pes-quisa indicou ainda que a presença delas na região dobrou no último ano, e que a maioria é dependente do crack.

A níveis nacionais, a disparidade de gênero entre os usuários da droga se re-pete. Dossiê publicado em 2014 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pelo Ministério da Saúde identificou que, das pessoas que utilizam crack em espaços públicos no Brasil, 79% são homens e 21% são mulheres.

Embora sejam minoria, as usuárias enfrentam dificuldades que vão além do uso do crack e que estão, em grande me-dida, relacionados a seu gênero. “A desi-gualdade torna as mulheres – o que inclui transexuais e transgêneros – mais expos-tas à violência sexual e psicológica; além da prática de prostituição como fonte de renda e da maior incidência de casos de HIV”, diz o psicólogo Francisco Netto, co-ordenador executivo do Programa Álcool, Crack e outras Drogas da Fiocruz.

Muitas sofrem agressões físicas dos parceiros e hostilidades simbólicas em seu dia a dia, como xingamentos, humi-lhações e chantagens; além de dilemas emocionais, como a separação da família

e o medo constante de perder a guarda dos filhos. Por conta disso, é comum que criem uma série de estratégias na tentati-va de se proteger – desde manter um par-ceiro fixo à adoção de vestuário masculi-nizado e conduta agressiva.

Tais situações foram observadas em uma pesquisa que ouviu as experiências de usuários na Cracolândia entre 2011 e 2015, conduzida pela antropóloga Debo-rah Fromm, da Unicamp e do Centro de Es-tudos da Metrópole (CEM) da USP. E con-cluiu: “A diferença central entre homens e mulheres nesse espaço é que elas precisam lidar com a iminência da violência sexual e com o trauma da experiência de abuso”.

PORTA DE ENTRADAApesar de parecer a fonte do problema,

em grande parte das vezes a rua e as dro-gas são vistas por essas mulheres como soluções temporárias. A violência de gê-nero é um dos principais gatilhos para a imersão no mundo das drogas, conforme indica a Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo o recente levantamento do Governo do Estado na Cracolândia, 44% das mulheres da região já sofreu al-gum tipo de abuso físico ou sexual duran-te a infância.

“Ter de lidar com episódios violentos faz com que elas tenham desprezo por si próprias, tornando-as propensas a se drogar de maneira compulsiva”, explica a professora Solange Nappo, do Centro Bra-sileiro de Informações sobre Drogas Psico-trópicas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), responsável por um estu-do com mulheres dependentes químicas.

A professora percebeu que o primeiro contato da mulher com o crack é, geralmente, influenciado por uma figura masculina, como um namo-rado ou marido. E, conforme o uso da droga se intensifica, os níveis de consumo tam-bém aumentam. Isso acontece devido à alternância entre as fases de pico dos hormônios femininos no corpo da mu-lher. “Quando ela está em sua fase fértil, a droga lhe garante mais prazer. Porém, após esse período, a mesma quantidade de droga já não é suficiente para atingir esse efeito. Assim, a usuária aumenta as doses, passando a consumir a subs-tância de forma mais agressi-va do que o homem”, explica Nappo. Nesse sentido, o estu-do da Fiocruz aponta que elas usam, em média, em torno de 18 pedras de crack por dia, quatro a mais do que eles.

DOR CONSTANTE

sofreu abuso físico ou sexual na infância

já sofreu violência física na Cracolândia

já vendeu sexo por drogas

sofreu abandono por parte da família

Frequentadoras da Cracolândia já passaram por episódios de violência

mesmo antes de chegar à região

Fonte: Governo do Estado de SP/Pnud

44%

71%

77%

18%

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À medida que se torna dependente, a usuária encontra outras saídas para com-prar a droga. Por não ter a mesma destreza e força para praticar roubos como os ho-mens, e também sendo esta uma opção perigosa, muitas recorrem à prostituição.

Como garota de programa, além de mais suscetível a ataques sexuais, a mu-lher precisa lidar com a negociação do próprio corpo, o que quase nunca é sim-ples. Com o valor de troca pelo sexo sendo muitas vezes imposto pelos clientes, ela fica sujeita a pagamentos irrisórios, sob risco de ser violentada caso conteste. Mais do que uma decisão da mulher, a prosti-tuição para a obtenção da droga pode ser ainda explorada por seu parceiro. “Ela se torna a provedora do casal, prostituindo-se pelos dois e sendo vista como fiel paga-dora pelos traficantes”, diz Nappo.

Com pouca opção de escolha pelo sexo seguro ao se oferecerem para programas, as mulheres estão mais propensas a con-trair DSTs. Entre as usuárias de crack, estima-se que 8% apresentem o vírus HIV; entre os homens, o número cai para 4%, segundo a Fiocruz. Isso porque eles poderiam optar por usar camisinha ao contratar um programa, por exemplo. Se comparado com o restante da população, a prevalência de infectados pelo vírus da Aids é oito vezes maior entre usuários de crack, grupo que é também mais atingido pela hepatite C.

No caso das mulheres trans, população que gira em torno de 3% na Cracolândia, além dos problemas advindos da exploração sexual e da expo-sição a DSTs, há ainda outros agravantes, como a ameaça constante de sofrer ataques transfóbicos, os riscos de se submeterem a cirurgias im-provisadas de feminilização e a ingestão de hormônios sem adequado acompanhamento de saúde.

A fissura pela droga tem po-tencial de afastar as usuárias

de métodos preventivos e até de cuidados básicos com a própria higiene. Sobretudo durante a menstruação, elas estão susce-tíveis ao desconforto e a infecções bacte-rianas. Para atender a essas mulheres, a Secretaria Municipal de Saúde afirma ofe-recer kits de higiene, além de atendimen-to ginecológico com foco em prevenção e planejamento familiar. ONGs atuantes na região também buscam fazer esse traba-lho, distribuindo calcinhas, absorventes e outros itens que permitam às mulheres ter algum bem-estar.

GESTAÇÃO DE RISCONa Cracolândia, descobrir uma gravi-

dez não é improvável e, sobretudo para as que sobrevivem da prostituição, parece ser questão de tempo ou de sorte. A mu-lher que engravida se depara com a pos-sibilidade de, em poucos meses, ter a seu lado um bebê com demanda por cuidados e atenção constante. Por vezes, a primeira

“A mulher se torna provedora do casal, se

prostituindo pelos dois”

QUEM SÃO ELAS?

é a média de idadedas mulheres usuárias

não-branca

parou de estudar no ensino fundamentalvive na rua

Mulheres representam menos de um terço dos usuários de crack no Brasil

Fonte: Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack 2014 - Ministério da Saúde e Fiocruz Governo do Estado de SP/Pnud

21%79% 78%

85%46%

29,6 anos

cor

escolaridadeendereço

idade

Solange Nappo, pesquisadora da Unifesp

frequentam a região

na cracolândia

642 mulheres

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saída é tentar interromper a gestação, sob pena de ameaçar a própria vida em inves-tidas mal sucedidas. “Mesmo em estágios mais avançados, várias acabam se arris-cando em abortos”, explica Nappo. As que decidem levar a gestação adiante – caso das que vivem com os companheiros nas ruas ou nos hotéis do entorno e não pre-tendem adiar a maternidade – amargam para seguir a rotina de saúde à risca.

Uma em cada quinze mulheres estavam grávidas durante o levantamento do gover-no estadual em junho, e 60% delas nunca havia feito pré-natal. As gestantes usuárias de drogas podem apresentar complicações obstétricas e maior risco de transmissão materno-fetal do HIV, como aponta a Fio-cruz. De acordo com a prefeitura, as equi-pes do Consultório na Rua prestam assis-tência e tentam “sensibilizá-las quanto ao retorno familiar”. Em setembro, cinco grá-vidas foram atendidas pelo programa. Para frear o aumento do índice de gestações,

a prefeitura planeja oferecer implantes contraceptivos de longa duração às adolescentes e mulheres em idade reprodu-tiva, o que, no entanto, seria insuficiente para impedir a proliferação de DSTs.

A menos de três quilôme-tros de onde o fluxo se concen-tra atualmente, a UBS Bora-céia é responsável por receber as gestantes para as consultas do pré-natal. No quinto mês de gestação do segundo filho, Paloma*, 24 anos, esforça-se para comparecer com regu-laridade. Aguarda descobrir, já nas próximas consultas, o sexo do bebê, que aparecia sentado no último ultrassom e frustrara suas expectativas. “Se for menina, já tenho ideia de nome: Clarice Sofia”, conta.

Paloma está na Cracolândia há três meses, mas vive na rua há pelo menos oito anos, e com o uso do crack há nove. “Passo a maior parte do dia dormindo por aqui”, diz, apontando para a área em frente a uma das tendas de atendimento disponibilizadas pela prefeitura. Ainda não eram 17h e ela já esperava na longa fila por uma das 100 vagas para pernoi-te. Às 18h30, já não havia mais senhas. Quem não consegue uma cama deve ten-tar novamente na tarde seguinte, quando a espera recomeça.

“Preciso encontrar uma casa para mo-rar longe do crack com urgência”, diz Pa-loma, que já saiu de diversas internações na tentativa de se desintoxicar – a última delas, em maio. Entre seus próximos pla-nos, está partir com o companheiro para o interior do estado, onde vive a sogra e onde ela pretende dar à luz. O filho mais velho, de 4 anos, vive com a avó de Palo-ma em um município vizinho à capital. À mãe, resta visitá-lo esporadicamente.

MATERNIDADE INTERROMPIDAVer-se longe do convívio e da criação

dos filhos é episódio recorrente na vida das usuárias de crack. De modo geral, as crianças são educadas por diferentes pa-rentes, com tênue manutenção do vínculo com a mãe. Uma das principais ameaças para as que esperam por um filho é perder a guarda da criança logo após o nascimen-to, sob intervenção da Justiça – temor que é, inclusive, capaz de afastá-las do acom-panhamento formal de saúde. “Muitas vezes, ao entrar no hospital para o parto, ela declara que é usuária de droga e o seu

O CRACK E OUTRAS DROGAS

já foi presa

troca sexo por dinheiro(ou faz outros trabalhos de cunho sexual)

tábaco (85%), álcool (64%), maconha (52%) e cocaína (36%) foram as outras drogas mais usadas pelas mulheres em um mês

é o tempo médio de uso do crack pelas mulheres

é a média de consumo da droga pelas mulheres

35%

55%

6 anos

18 pedras/dia

ficha policial

profissão

faz trabalho ilícito para obter drogas24%

*O nome verdadeiro foi omitido para proteger a identidade da personagem.

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filho logo é retirado de seus cuidados”, diz Nappo, da Unifesp. Na ausência de vínculo familiar com quem possa assumir sua guarda, os pequenos são enviados a abrigos. No Brasil, a dependência por ál-cool e drogas dos pais ou responsáveis foi o motivo do acolhimento de 81% das crianças vivendo nesses centros em 2013, de acordo com relatório do Conselho Na-cional do Ministério Público.

O promotor de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo, Eduardo Ferreira Valério, que têm atuado no combate à violência na Cra-colândia durante as últimas gestões mu-nicipais, explica que a criança pode ser retirada das responsabilidades da mãe em caso de maus-tratos ou negligência.

“Mas não pode-se assumir que uma mãe, por ser ou ter sido usuária de crack, será incapaz de criar o filho”, pondera. “Ela precisa ser apoiada para que tenha uma maternidade sau-dável, e não ter os filhos afas-tados à força”.

Quando engravidou de Pedro, 6 anos, a paulista An-dreia Cristina Francisco, 45 anos, dormia nas calçadas da Luz. O menino fora planeja-do durante o relacionamento com o segundo marido, que conheceu enquanto trabalha-va como garota de programa. “Com a idade avançando, não

ia esperar sair do crack para ter meu pri-meiro filho”, diz. Em uma pensão, passou os quatro primeiros anos de Pedro e en-gravidou de Lunna, hoje com 2 anos. Ao contrário dela, o companheiro não usava crack, o que gerava brigas constantes. “Ele não aceitava que eu, sendo usuária, pu-desse ter razão. Era bruto, chegava a me agredir”, lembra Andreia.

Após umas das violentas discussões, ela voltou para casa e encontrou a porta trancada por ele, além da notícia de que ali não poderia mais viver. Em meio a isso, para aumento do desespero de Andreia, Lunna adoeceu e teve de ir às pressas para o hospital, sendo internada com uma do-ença respiratória. Durante o tratamento, uma mancha no bumbum da bebê fez os médicos suspeitarem de descuido e, pe-sando o histórico de ser usuária de crack, Andreia foi pressionada a abrir mão da guarda das crianças. Os pequenos passa-ram, então, a morar com um tio em Ribei-rão Preto, interior de São Paulo.

SAÚDE EM RISCO

das gestantes ou ex-gestantes na Cracolândia nunca fizeram pré-natal

não usa camisinha durante as relações sexuais

é portadora do vírus HIV, o dobro da incidência entre os usuários homens

possui um implante de longa duração, oferecido pela prefeitura, para prevenir a gravidez

81%

8%

60%

17%

Poucas mulheres na região usam camisinha ou fazem pré-natal

Fonte: Governo do Estado de SP/Pnud - 2017

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Andreia, 45 anos, segura foto do filho Pedro, que não vê há três meses

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Desde o ano passado, após alguns meses sem teto, Andreia vive em um dos hotéis conveniados ao programa munici-pal De Braços Abertos, que disponibiliza acomodação para usuários assistidos. Com lágrimas nos olhos, conta sobre a despedida de Pedro na última vez que se viram, há três meses, na festinha de aniversário do menino, que teve o perso-nagem Homem-Aranha como tema: “Eu me desmanchava por dentro, mas resisti para não chorar na frente dele”. Ela havia percorrido as cinco horas de viagem até a casa dos filhos na companhia de um amigo, que aceitou encher o carro com os presentes de Andreia para Pedro e Lunna – em sua maioria roupas, calça-dos e brinquedos que garimpa em meio

ao fluxo, à espera da próxima oportunidade de ver os filhos.

Na tentativa de se aproxi-mar deles, Andreia pretende se internar até o final do ano, com a esperança de sair com uma aparência mais saudável e, assim, ser aceita pela famí-lia: “Eu sei que se eu estiver perto dos meus filhos não vou fumar, mas meu irmão não acredita em mim como estou”. Ela tenta juntar dinheiro para que possa viajar e se manter por algum tempo, até começar a trabalhar com as habilidades desenvolvidas no curso de ca-beleireira, oferecido pela pre-

feitura em conjunto com a vaga que ela ocupa no hotel.

Assim como Pedro e Lunna, a infância de Thalita Fernandes, 20 anos, foi marca-da por despedidas e longos períodos lon-ge da mãe, Verônica – conhecida no fluxo como a garota de programa “Vanessinha” e usuária de drogas desde que a filha ti-nha 9 anos. Thalita diz já ter morado em quase todos os bairros da capital, sendo “jogada de casa em casa, de tia em tia”. Aos 15 anos, foi enviada para um abrigo, de onde saiu três anos mais tarde decidi-da a buscar pela mãe: “Sempre quis tirá-la de lá; à força ou não”.

A última das incursões foi em agosto, quando passou duas noites na Cracolân-dia a procura de Verônica: “Eu estava can-sada, um amigo dela me emprestou um colchão limpo e disse que ficaria do meu lado. Mas eu não conseguia deitar perto do chão, vendo bicho passar, rato...”.

Morando com a namorada em Taboão da Serra, na região metropolitana, a jovem vive com o coração apertado sem notícias da mãe: “Tudo o que eu faço eu penso nela, se ela está com fome, se está viva…”. Só neste ano, Thalita tentou interná-la duas vezes. Em ambas, ela aceitou ir, mas fugiu durante o tratamento.

UM NOVO COMEÇO?A maioria dos usuários de crack no

Brasil gostaria de se tratar, segundo apon-tou levantamento da Fiocruz em que 77% dos respondentes afirmaram desejar tra-tamento. Entretanto, para um usuário fre-quente de psicoativos, a briga com a men-te e com o corpo faz parte da rotina. Não

“Eu sei que, se eu estiver perto dos meus filhos,

não vou fumar”

02 04 06 08 0 100

natimorto

abaixo do peso

prematuro

aborto

UTI

21%

100%67%

21%

21%

COMPLICAÇÕES NA GESTAÇÃOCausas da morte dos bebês nas gestações anteriores

das mulheres da Cracolândia (em %)

estava grávida no momento da pesquisaUma em cada 15 mulheres

Andreia Cristina Francisco, moradora de um dos hotéis na região da Cracolândia

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existe cura única e definitiva para a de-pendência, nem mesmo quando a busca por tratamento vem do próprio usuário. Assim como Verônica e Andreia, boa par-te dos frequentadores da Cracolândia tem no histórico alguma tentativa de interna-ção. O problema é que, ao sair das clíni-cas, sem emprego, sem laços familiares e sem moradia, acabam voltando ao crack.

As medidas de internação para de-pendentes vêm sendo uma das maiores polêmicas da política de drogas da ges-tão do prefeito João Doria, iniciada neste ano. Ao anunciar o programa Redenção, em maio, a prefeitura pediu ao Tribunal de Justiça de São Paulo autorização para internar dependentes químicos à força — a chamada “internação compulsória”.

abordagem efetiva contra a dependência de drogas.

A prefeitura informou que, do início do Reden-ção até o último dia 27 de setembro, 796 pessoas fo-ram internadas, mas des-tacou que todas de forma voluntária. Dentre as inter-nações, somente 6% foram de mulheres – não há da-dos sobre as trans.

O baixo número de mulheres nos hospitais também foi constatado pelo Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool (Comuda), órgão da prefeitura que acompanha e fiscaliza a execução das políticas de drogas. “Na maior parte dos hospitais que visitamos, há apenas homens internados. Não sabemos onde as mulheres estão ou porque não estão procurando internação”, afirma a psicóloga Maria Angélica de Castro Comis, vice-presidente do Comuda. Ela aponta que, para as mu-lheres, é ainda mais difícil confiar nos funcionários e nos programas do gover-no. “As mulheres precisam de um acompanhamento mais próximo, inclusive psicológico, porque, como já são tão violadas a vida

inteira, têm mais dificuldade de criar vín-culos.” Comis foi assessora especial de políticas públicas sobre drogas na gestão anterior, do prefeito Fernando Haddad, e, no governo Doria, continuou atuando na Secretaria de Direitos Humanos até maio deste ano, tendo inclusive contribuído na elaboração do Redenção. Ela deixou o car-go por não concordar com a forma como o programa vem sendo executado.

Atualmente, há três hospitais com lei-tos para desintoxicação funcionando em convênio com a prefeitura. A secretária

796 pessoas foram internadas

voluntariamente desde o início do Redenção

O pedido é baseado na lei 10.216, de 2001. O texto afirma que uma pessoa pode ser in-ternada contra sua vontade se houver pare-cer médico acompanhado de autorização judicial, ou por solicitação da família.

O Ministério Público de São Paulo cri-ticou a ação da prefeitura por entender que há brechas para que sejam feitas in-ternações em massa, sem análises caso a caso. O Escritório da ONU sobre Drogas e Crime e a Organização Pan-Americana da Saúde também divulgaram nota con-junta sobre a situação, reiterando que não avaliam internações à força como uma

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Fachada de um dos hotéis do De Braços Abertos, um dos maiores símbolos do programa da gestão Haddad

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municipal de Direitos Humanos, Eloísa Arruda, afirma que “legalmente, existe a possibilidade da prática compulsória”, mas reitera que todas as internações feitas na Cracolândia até então foram voluntá-rias. “Tentamos motivar a pessoa a buscar o tratamento. Se ela concorda em se inter-nar espontaneamente, a possibilidade de sucesso é muito maior”, diz.

Arruda assumiu a Secretaria de Direi-tos Humanos dias após a megaoperação do governo estadual e da prefeitura no território, no último dia 21 de maio. Na ocasião, sua antecessora, a vereadora Patrícia Bezerra (PSDB), pediu demis-são do cargo. Em vídeo divulgado nas redes sociais, Bezerra classificou a ação como “desastrosa” e disse que “problema complexo não se resolve dessa maneira”. Com a participação de 900 agentes das Polícias Militar e Civil e da Guarda Civil Metropolitana (GCM), a operação des-truiu barracas dos moradores e prendeu mais de 50 pessoas. O prefeito João Do-ria chegou a declarar que a Cracolândia “acabou”. Desde então, o fluxo mudou de quarteirão — mas ainda está longe de desaparecer. Os conflitos entre usuários e as forças de segurança também torna-ram-se mais intensos.

Um caso envolvendo diretamente as mulheres aconteceu no final de setembro, quando algumas delas alegaram ter pas-sado por “revista vexatória” por parte da Guarda Civil. A ação começou quando a GCM, enquanto supervisionava a limpe-za dos arredores, desconfiou de comér-cio ilegal de drogas em barracas na área e passou a revistar os suspeitos em uma

das tendas da prefeitura. Usuárias afirmaram que tiveram de ficar nuas e agachar para passar pela averigua-ção. Em nota, a Secretaria Municipal de Segurança Urbana, responsável pela GCM, afirmou que “vídeos e fo-tos com registros da ação indicam que não ocorreram revistas feitas de forma inadequada nem apontam excessos nas abordagens”. À reporta-gem, profissionais que atuam na re-gião afirmaram que ações policiais no território prejudicam o trabalho com os usuários. “Atrapalha o vínculo que tentamos estabelecer, eles deixam de confiar em nós”, disse uma das assis-tentes sociais da prefeitura ouvidas.

DE VOLTA À SOCIEDADEO início do ano 2000 marcou a

aproximação de Graciana Aparecida Busetti, 56 anos, da Cracolândia, pri-meiro como traficante e depois tam-bém como usuária. Naquela época, logo após a morte do marido – amor de adolescência e pai de seu filho mais velho, Gabriel, 25 anos –, ela foi surpreendida com a notícia de que o companheiro, além de traficante, era membro da facção criminosa Primei-ro Comando da Capital (PCC). “Disse-ram que eu tinha duas opções: vender os negócios dele ou continuar, sendo que a segunda alternativa daria muito mais dinheiro”, conta.

Ela resolveu, então, assumir o ofí-cio do marido falecido. Morando no bairro de Taipas, extremo norte da capital, Graciana ia quase diariamen-

2005 - Nova LuzCom o objetivo de revitalizar a área,

a gestão municipal Serra-Kassab cria o projeto Nova Luz, que não vai

adiante.

2013 - RecomeçoO governador Geraldo Alckmin

institui o Recomeço para tratar o usuário, inclusive com

internação compulsória. Oferece oportunidades de capacitação e

recolocação profissional.

2014 - De Braços AbertosO programa foi a aposta do prefeito

Fernando Haddad para reinserir o dependente na sociedade. A ser extinto pelo atual prefeito João

Doria, o projeto oferece vagas em hotéis, refeições e emprego.

2017 - RedençãoPrometendo unir os dois projetos

anteriores, o Redenção promete ser uma junção de tratamento clínico

com medidas para reinsenção do usuário. Por enquanto, tem oferecido internações a quem

solicita.

OS PROJETOS PARA A CRACOLÂNDIA

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te à Luz. Na mala, levava drogas e armas para traficar. Com o tempo, e já tendo sido apresentada ao crack, mudou-se para um hotel próximo ao fluxo. Passadas quase duas décadas, ela conta sobre as muitas transformações que acompanhou na Cra-colândia: “Dificilmente se via crianças por aqui; hoje, encontro meninos de 7 ou 8 anos fumando crack”. O tempo por lá lhe rendeu o filho mais novo, Gustavo, 14 anos; e quatro passagens pela prisão.

Em 2016, Graciana era uma entre as 44.721 mulheres encarceradas nos presí-dios brasileiros, segundo dados do Depar-tamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. Dentre elas, 60% foram presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas. A maioria ocupa uma posição coadjuvante no crime, “realizan-

do serviços de transporte de drogas e pequeno comércio”, como mostra o relatório do Depen. A maior parte também é negra, pobre e sem ensino superior. “Geralmente intro-duzidas nesse universo pelos companheiros, e consideradas menos visadas pela polícia, as mulheres são exploradas pelo tráfico. Isso acontece também na Cracolândia”, diz o promo-tor Eduardo Valério. Dentre as usuárias de crack no Brasil, 35% já foi presa.

Sem usar crack há três anos, Graciana decidiu que deixaria de usar a substância em sua última passagem pela cadeia.

E manteve a palavra mesmo após sair do presídio, no ano passado. Ela mora em um dos hotéis do De Braços Abertos há oito meses e acaba de concluir o curso de educadora social, que pôde acom-panhar com bolsa de estudos. “Quero trabalhar aqui na ‘Craco’, de onde saí”, diz.

Na tarde em que nos encon-tramos, Graciana havia acabado de voltar de uma visita aos filhos, que moram juntos em Taipas, e preparava polenta em uma panela elétrica. Ela mostra com orgulho as fotos dos filhos e dos netos no WhatsApp, mas não cogita viver com eles. “Quero morar perto de-les, mas sozinha e aberta para visi-tas”, diz. Ela gosta da independên-cia que tem no hotel, e o objetivo é ter sua casa própria em breve.

No longo e complicado proces-so de ressocialização, a moradia é vista pelo campo dos direitos hu-manos como prioridade, com base na política do housing first (mora-dia primeiro, em português), reco-nhecida mundialmente e baseada na abordagem de garantir mora-dia para, a partir daí, oferecer es-tratégias para que dependentes de drogas possam se reerguer.

O programa De Braços Abertos, implementado na gestão munici-pal anterior, de Fernando Haddad, seguia essa corrente ao abrigar usuários em hotéis conveniados sem exigir comprovada abstinên-

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Graciana Busetti, 56 anos, quer ser educadora social para atuar na região da Cracolândia

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cia. Além disso, os beneficiários podiam trabalhar em serviços como varrição e reciclagem em troca de um ganho diário. O en-tendimento do projeto é que, ten-do endereço fixo e renda, quem antes vivia na rua seria capaz de se socializar mais facilmente. O De Braços Abertos foi substituído pelo Redenção em maio, e o futu-ro dos hotéis permanece incerto: eles seguem funcionando por ora, mas a prefeitura já anunciou que vai descontinuá-los.

Com variações em adesão ao longo do programa, os hotéis su-portam cerca de 300 hóspedes em sete unidades – sendo uma delas exclusiva para homens. “Ainda são poucas as mulheres que con-seguem vaga no programa”, diz Deborah Fromm, da Unicamp. Ela ressalta que, mesmo nos ho-téis, sobretudo as grávidas e mães sofrem com problemas de infra-estrutura – como falta de espaço para eletrodomésticos básicos – e insegurança, já que algumas con-

tinuam expostas à violência dos compa-nheiros. A deficiência de vagas também é uma questão nos abrigos. Há seis cen-tros de acolhida exclusivos para homens atendendo a região, com 1.566 vagas no total; mas ainda não há nenhum voltado apenas para mulheres.

De modo geral, o poder público está longe de implementar políticas que levem em conta as especificidades de gênero de forma abrangente. “As poucas políticas existentes reforçam estereótipos e não são efetivas no atendimento à mulher”, afirma Ana Clara Telles, pesquisadora de gênero e políticas sobre drogas do Centro de Estu-dos de Segurança e Cidadania da Universi-dade Candido Mendes, no Rio de Janeiro.

Outra dificuldade para as mulheres que tentam deixar a Cracolândia para trás e se reinserir na sociedade é encon-trar novas fontes de renda. A prefeitura aponta que oferece centros de cidadania

da mulher, onde usuárias e ex-usuárias podem ser incluídas em programas de qualificação profissional. No entanto, como destaca Ana Paula Pellegrino, do think and do tank para desafios sociais Instituto Igarapé, muitos dos trabalhos de baixa qualificação ofertados às mulheres exigem especial relação de confiança com quem as contrata. “Isso é complicado para uma ex-usuária, que carrega o estigma do uso de drogas”, aponta Pellegrino.

E, no caso dessas mulheres, a barreira do preconceito é particularmente difícil de transpor. “Elas rompem com muitos padrões sociais, do que é entendido como papel da mulher, como a feminilidade e a maternidade”, completa Telles. “Acre-dita-se que elas próprias se colocam em situação de vulnerabilidade, porque não deveriam estar levando suas vidas daque-la forma. Então, se sofrem, estão apenas tendo o que mereceram.”

“As poucas políticas públicas existentes, em geral, reforçam

estereótipos de gênero”

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Ana Clara Telles, pesquisadora de gênero e drogas

Vermelho foi a cor de esmalte escolhida por Cleide para pintar as unhas em evento de beleza na Cracolândia. “Disseram que estou linda”, repete, com lágrimas nos olhos

Vermelho foi a cor de esmalte escolhida por Cleide para pintar as unhas em evento de beleza na Cracolândia. “Disseram que estou linda”, repete, com lágrimas nos olhos

Mulheres de pedra | 12

Com um sorriso de confiança, Lisandra se preparava para desfilar na passarela improvisada na rua, com a maquiagem e os novos acessórios que acabara de ganhar das assistentes sociais da prefeitura. A expressão era bem diferente de quando chegou. “Dizem que sou feia...”