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Mulheres e bordados: os têxteis como telas do coração DÉBORA PINGUELLO MORGADO * Resumo: Por muito tempo os trabalhos de linha e agulha foram pensados como intrinsecamente femininos. De mãe para filha, desde cedo as meninas aprendiam a manejar a agulha sobre o tecido, atividade que aplicavam na confecção dos têxteis decorativos da casa. Nos meios rurais e nas pequenas cidades, como apontam as fontes orais utilizadas, essas tarefas eram significativas, uma vez que as modestas condições financeiras obrigavam mulheres a coser tecidos de algodão liso e a enfeitá-los com as imagens por elas bordadas. Analisados enquanto estruturas de sentimentos, esses trabalhos buscarão ser compreendidos à luz de seu aspecto subjetivo, como forma de comunicação de sentimentos e ações que colocam em movimento a realidade de mulheres por meio de seu trabalho e das imagens por elas construídas. Para além da força coercitiva das estruturas, a partir das entrevistas coletadas, apreende-se o uso que mulheres fazem de suas agências no ato de comunicar, com linguagem não verbal, os sentimentos destinados para aqueles que lhes são queridos. Por fim, entende-se que os desenhos bordados se constituem enquanto imagens que, ao decorar o coração de uma família, perenizam a memória de mulheres no mundo. Introdução No fazer historiográfico, durante muito tempo, as mulheres foram esquecidas ou então, quando lembradas, anexadas aos grandes personagens masculinos que protagonizavam as narrativas. Perrot (2015), por este mesmo viés, chama a atenção para a capa de invisibilidade lançada sobre os trabalhos femininos no lar, que apenas recentemente vêm ganhando o status de trabalho e entrando definitivamente para a História. Nesse sentido, a história oral, muito mais do que dotar o historiador de metodologias para trabalhar com a oralidade, tem cumprido um importante papel ao dar a voz às mulheres as quais outrora foram emudecidas. Assim, além de ferramentas metodológicas e de se constituir enquanto um campo da história, a história oral, pensada na perspectiva das mulheres, apresenta-se enquanto um espaço que confronta o hegemônico ao lançar luz sobre as histórias e labores femininos. Tenta-se recuperar, hoje, o que no passado foi descartado por ser pensado enquanto trabalho menor ou não trabalho, a fim valorizar a história feminina, que é também a história da família e a história de toda a sociedade, constituída por homens e mulheres. Os trabalhos de linha e agulha realizados no lar, e passado entre mulheres de geração em geração, costumeiramente eram dispensados, destruídos, destituídos de um valor que os tornassem * UDESC, Doutoranda em História.

Mulheres e bordados: os têxteis como telas do coração ... · lentes: “A focalização de uma lente fotográfica também não permite um longshot e um close ao mesmo tempo.”

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Mulheres e bordados: os têxteis como telas do coração

DÉBORA PINGUELLO MORGADO*

Resumo: Por muito tempo os trabalhos de linha e agulha foram pensados como

intrinsecamente femininos. De mãe para filha, desde cedo as meninas aprendiam a manejar a

agulha sobre o tecido, atividade que aplicavam na confecção dos têxteis decorativos da casa.

Nos meios rurais e nas pequenas cidades, como apontam as fontes orais utilizadas, essas

tarefas eram significativas, uma vez que as modestas condições financeiras obrigavam

mulheres a coser tecidos de algodão liso e a enfeitá-los com as imagens por elas bordadas.

Analisados enquanto estruturas de sentimentos, esses trabalhos buscarão ser compreendidos à

luz de seu aspecto subjetivo, como forma de comunicação de sentimentos e ações que

colocam em movimento a realidade de mulheres por meio de seu trabalho e das imagens por

elas construídas. Para além da força coercitiva das estruturas, a partir das entrevistas

coletadas, apreende-se o uso que mulheres fazem de suas agências no ato de comunicar, com

linguagem não verbal, os sentimentos destinados para aqueles que lhes são queridos. Por fim,

entende-se que os desenhos bordados se constituem enquanto imagens que, ao decorar o

coração de uma família, perenizam a memória de mulheres no mundo.

Introdução

No fazer historiográfico, durante muito tempo, as mulheres foram esquecidas ou então,

quando lembradas, anexadas aos grandes personagens masculinos que protagonizavam as

narrativas. Perrot (2015), por este mesmo viés, chama a atenção para a capa de invisibilidade

lançada sobre os trabalhos femininos no lar, que apenas recentemente vêm ganhando o status

de trabalho e entrando definitivamente para a História. Nesse sentido, a história oral, muito

mais do que dotar o historiador de metodologias para trabalhar com a oralidade, tem cumprido

um importante papel ao dar a voz às mulheres as quais outrora foram emudecidas. Assim,

além de ferramentas metodológicas e de se constituir enquanto um campo da história, a

história oral, pensada na perspectiva das mulheres, apresenta-se enquanto um espaço que

confronta o hegemônico ao lançar luz sobre as histórias e labores femininos.

Tenta-se recuperar, hoje, o que no passado foi descartado por ser pensado enquanto

trabalho menor ou não trabalho, a fim valorizar a história feminina, que é também a história

da família e a história de toda a sociedade, constituída por homens e mulheres. Os trabalhos

de linha e agulha realizados no lar, e passado entre mulheres de geração em geração,

costumeiramente eram dispensados, destruídos, destituídos de um valor que os tornassem

* UDESC, Doutoranda em História.

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objetos guardáveis (PERROT, 2015). Ou ainda, quando guardados, constituíam-se enquanto

um cofre com os segredos daquelas que os deram vida; gavetas nas quais se depositavam os

sentimentos e os afetos dos quais não se falavam. Malta (2015: 1), ao escrever sobre os

paninhos para a casa confeccionados por mulheres, reflete acerca de seu atual desuso, e

também que “Alguns os consideram um excesso, outros, uma cafonice. E assim, descansam e

amarelam-se no fundo de muitas gavetas.”. Esses tecidos amarelecidos foram, no passado,

decorados com imagens que ali se coloriram com fios e linhas, materiais trabalhados com a

agulha. Muitos desses panos são lembranças de importantes ocasiões, como o enxoval

preparado para o matrimônio ou as mantas e roupas de banho e cama confeccionadas para o

nascimento de um filho.

Na obra O Casaco de Marx, Stallybrass (2008) traz reflexões sobre memórias, família,

roupas e têxteis. Em uma interessante abordagem, o autor compara as roupas e as joias: as

roupas carregam as marcas humanas enquanto as joias, ainda que carreguem as marcas de

seus donos, resistem à história dos corpos, ridicularizam a mortalidade humana. Já a roupa e

os têxteis carregam o cheiro da mortalidade, as histórias de vida e morte de seu dono. A

roupa de alguém que já se foi, como observado no livro, é a parte viva de seu antigo usuário, a

parte que permaneceu viva dentro do guarda roupas; o lençol usado para acompanhar o sono

do namorado é a lembrança mais forte dele quando o dia amanhece e ele se vai. O que autor

aborda em sua obra, em outras palavras, é capacidade de transformação dos têxteis em vetores

de histórias e fontes históricas que podem e devem ser apropriadas pelo historiador.

A partir desse enfoque, e com os recursos da história oral, este artigo pretende

focalizar os trabalhos de bordado em têxteis realizados por mulheres enquanto fontes para

uma narrativa das ações das donas de casa no lar. Salienta-se, ainda, que há aqui uma tentativa

de dar movimento a essas ações, tal qual foram e ainda são vividas e experimentadas por essas

mulheres – tarefa para a qual os conceitos de estratégia e tática, de Certeau (1998), e

estruturas de sentimentos, de Williams (1979), serão aplicados. Os autores mobilizam esses

conceitos a fim de revelar a trama que é tecida no cotidiano e atravessada por sujeitos e

objetos. Enquanto as estratégias falam de uma estrutura de coerção mais forte, as táticas são

as formas como as pessoas agem diante das estratégias, utilizando-se de suas agências que,

muitas vezes, estão abaixo das estruturas. Estruturas de sentimentos, de forma simplificada,

apontam para os elementos objetivos e subjetivos que orientam as práticas cotidianas e

relevam-na como algo complexo.

A história oral e o seu poder de atuar na escala micro da história contribuem, por sua

vez, para dar movimento à história de mulheres com seus tecidos e seus bordados. Ao ter em

mãos, enquanto narra, a fonte da qual se narra, os sentimentos emergem e as lembranças

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revelam suas linhas inacabadas, acrescentando ao presente os nuances de um passado não

findado. São mulheres que aprenderam a costurar e a bordar ainda meninas, fosse porque este

era um trabalho obrigatório para as mulheres, ou porque a necessidade de coser as roupas da

família e as vestes da casa fora imposta pelas precárias condições financeiras. Tanto por

proximidade quanto pelo anseio de narrar a história daquelas que são geralmente esquecidas,

optou-se, para este trabalho, utilizar como fontes orais as histórias de seis mulheres

familiarizadas com certa rotina de costuras e bordados.

As mulheres selecionadas possuem entre 50 e 85 anos. O critério de escolha das fontes

foi baseado na região de moradia e na idade, considerando mulheres moradoras de pequenas

cidades - até quinze mil habitantes -, residentes rurais ou não, e que praticam o ofício do

bordado desde a infância ou adolescência. As entrevistas questionaram acerca da relação

dessas mulheres com o bordado, quais os tipos de bordados, quais as aplicações que deles são

feitas e quais as interações produzidas, por meio deles, entre elas e os demais membros da

família. Ainda, focaram nas imagens produzidas sobre os tecidos e nos sentimentos

envolvidos na escolha de determinados desenhos. O método de coleta da entrevista foi a

gravação seguida de transcrição, que após ser digitalizada foi revisada pelas autoras das falas

coletadas. Os têxteis dos quais se fala foram fotografados e se integram a este artigo no corpo

do texto.

1. O manejo das escalas e o enfoque oral para uma história das donas de casa

Nas dinâmicas que intermediam as relações no lar entre mulheres e homens, ressoam

os projetos, as estratégias e os acontecimentos de variadas escalas; incorporam-se as táticas

desses atores sociais: força basilar de sua sobrevivência. Depositadas em campos de

experiência, essas dinâmicas engendram horizontes de expectativa, ou seja, encadeiam sua

existência nas especulações para o futuro; conectam-se a outras experiências e expectativas

cujas sucessões elaboram a vida vivida por esses sujeitos. Não se pode medir a complexidade

das relações entre passado, presente e futuro utilizando-se, para isso, apenas uma escala de

observação, ou seja, apenas um enfoque historiográfico. Por muito tempo, a história foi feita

olhando-se somente para as estruturas, ignorando-se, portanto, as dimensões táticas dos

sujeitos abaixo delas – em muitos tempos e sociedades, as mulheres, principalmente, foram

colocadas em tal posição.

Para Revel (2010), importa menos priorizar a análise que focaliza uma escala do que

variar a escala para lançar luz aos vários ângulos dos objetos estudados.

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Retomando uma metáfora que foi muito utilizada nos últimos anos, variar a

focalização de um objeto não é unicamente aumentar ou diminuir seu tamanho no

visor, e sim modificar sua forma e sua trama. Ou então, para lançar mão de outro

sistema de referência que a mim pessoalmente me parece mais elucidativo – o

cartográfico –, a escolha de uma ou outra escala de representação não equivale a

representar em tamanhos diversos uma realidade constante, e sim transformar o

conteúdo da representação mediante a escolha do que é representável (REVEL,

2010: 438).

Cada escala de tempo e espaço guarda em seu interior uma das muitas facetas de um

objeto, de tal modo que optar por uma escala é também optar por um algo a se representar, o

que vai muito além de aumentar ou diminuir o tamanho da representação da realidade

analisada. A possibilidade de caminhar no espaço e no tempo lançando perguntas aos objetos

permite desvendar-lhes as dimensões que os integram, aproximando o historiador da verdade

almejada. Nesse mesmo sentido, Koselleck (2014: 304) utiliza a metáfora da câmara e suas

lentes: “A focalização de uma lente fotográfica também não permite um longshot e um close

ao mesmo tempo.”. Em suma, os autores concordam que cada temporalidade do objeto, cada

escala, guarda um algo em específico, necessitando essa troca de lentes para que esse algo

seja captado.

A perspectiva de escala, ao democratizar a história e incentivar a busca de ferramentas

para a percepção dos vários ângulos de um objeto, tenta dotar os objetos da história de

temporalidade e complexidade, uma vez que esses carregam em si estratos de tempo e que são

permeados por forças, desejos, sentimentos. São, em suma, objetos dotados de movimento,

que não são uma coisa apenas, mas que acontecem na vida que se vive enquanto é atravessado

por inúmeros eventos e escolhas. Difícil, então, ao se considerar esses aspectos, é escrever a

história sobre qualquer coisa que seja, uma vez que a escrita tende a ser congelante no seu ato

de perenizar com palavras gravadas no computador ou no papel. São problemas dos quais se

ocupam até mesmo os historiadores de história oral, pois há, na escrita da história, a

imobilização das falas coletadas. Isso não significa, no entanto, que não há saída para os

historiadores; trabalhar com a oralidade, em especial com grupos como mulheres – que

passam suas tradições utilizando-se do recurso oral – mostra-se uma ferramenta capaz de

representar, justamente, as cores de uma cultura vivida e que se vive.

Sahlins (1994) identifica que as linguagens não entram no mundo para, simplesmente,

adicionar aos objetos já dados; mas sim, são elas próprias as mediadoras na formulação dos

objetos. Quando representações se posicionam em cena, é a própria cultura acontecendo,

colocando-se enquanto “[...] síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, de

diacronia e sincronia.” (SAHLINS, 1994: 180). Ou seja, a cultura é um movimento constante

que se desencadeia nos usos das linguagens. Assim, ao serem capturadas as falas de mulheres

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em relação às imagens bordadas em tecidos, é preciso que a leitura a ser feita não veja apenas

o passado da fala, mas também o presente, e a transformação daquele passado em presente no

objeto, transformando, por sua vez, o próprio conteúdo do objeto. A reelaboração dos

sentimentos passados e sua irrupção no presente para dar conta de uma história, não apenas

acontece e atua para falar das práticas e relações pretéritas, mas desponta como

transformadora da realidade daquele espaço.

É necessário também apontar para o convívio, na escala micro, entre os gêneros

opostos; homens e mulheres unidos e em oposição dentro de espaços, culturas, sociedades,

economias e políticas, o que pode ser mais compreendido, no que tange à questão de

movimentos e de fluxos, ao se considerar as estruturas de sentimento nesses âmbitos – como

propõe Williams (1979) –. Tais estruturas dizem respeito aos mais diversos elementos,

objetivos ou subjetivos, que atravessam as práticas das pessoas e que, por isso mesmo, não

traceja uma linha reta e contínua dentro de sustentações imóveis. O que dizer das mulheres

que, no emprego de práticas consideradas femininas, como é o caso da culinária e da costura,

conquistam espaço no coração dos homens e plantam ali, de forma sutil, algumas de suas

vontades? Como escrever sobre o amor empregado nas artes de fazer e nas formas de ser no

mundo, ainda que essas formas se valham das estruturas de poder?

Essas questões são levantadas para viabilizar, de forma resumida, as relações que dão

o tom deste trabalho na análise de têxteis e de lembranças de mulheres. Assim, para além das

forças de coerção, mas sem desligar-se delas, a análise micro busca adentrar portas, gavetas e

corações femininos; para além de estratégias engendradas por aqueles que detêm maior poder

– neste caso, os homens da casa –, as táticas das mulheres ao se utilizarem de sua própria

posição para driblar os campos de força; por fim, para além de escolhas baseadas em modelos

racionais de pensamento, estruturas de sentimentos que revelam desejos e sonhos escondidos.

O recipiente deste bolo, de tão instigantes ingredientes, é a história oral, que sustenta e dá a

forma e a vida da narrativa a se erigir.

2. Imagens em tecidos e sentimentos bordados

Os objetos do cotidiano trazem em si as marcas do humano e, portanto, possuem um

poder biográfico. O tempo e o uso modificam os objetos, o que lhes proporcionam uma

continuidade na história. A vida social e cultural está intrinsicamente ligada à vida dos objetos

materiais, cujas alterações sofridas pela ação humana se fazem representativas das mudanças

pelas quais passam a sociedade e os grupos que nela se inserem.

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Na medida em que os objetos materiais circulam permanentemente na vida social,

importa acompanhar descritiva e analiticamente seus deslocamentos e suas

transformações (ou reclassificações) através dos diversos contextos sociais e

simbólicos [...] Acompanhar o deslocamento dos objetos ao longo das fronteiras

que delimitam esses contextos é em grande parte entender a própria dinâmica da

vida social e cultural, seus conflitos, ambiguidades e paradoxos, assim como seus

efeitos na subjetividade individual e coletiva (GONÇALVES, 2007: 15).

Considerando isso, mais do que representativos, esses objetos possuem uma vida

própria e um modo particular de se comunicarem. Para decifrá-los é preciso atenção aos

detalhes. No caso dos têxteis, deve ser levado em consideração todo tipo de detalhe

circunscrito sobre os tecidos, o próprio tecido em si (ou linha, no caso dos trabalhos de

crochê), as cores e os desenhos. Oliveira (2007), ao pensar na linguagem dos tecidos e da

moda, considera que ela se dá por meio das texturas, estampas, linhas e bordados. E para a

leitura dessa linguagem, Gonçalves (2007: 21) complementa que é “relevante conhecer a

forma desses objetos, o material, a técnica de fabricação, assim como as modalidades e os

contextos de uso.” Pois o seu fabrico e o seus usos dizem muito de uma cultura, de uma

identidade, de uma biografia. Todos esses aspectos devem ser levados em consideração no

momento de análise dos objetos como fontes.

Não se deve esquecer, no entanto, que os objetos – até mesmo os escritos – possuem o

seu aspecto indescritível, ou seja, realidades que não aparecem como leitura que se pode ser

feita. Nesse sentido, a história oral tem muito a oferecer, pois tenta recuperar o indizível dos

objetos.

É através do oral que se pode apreender com mais clareza as verdadeiras razões de

uma decisão; que se descobre o valor de malhas tão eficientes quanto as estruturas

oficialmente reconhecidas e visíveis; que se penetra no mundo do imaginário e do

simbólico, que é tanto motor e criador da história quanto o universo racional

(JOUTARD, 2000: 34).

Nota-se a importância dos relatos orais ao serem observadas as imagens aqui

apresentadas. Na figura 1 é mostrado um jogo de copa que foi bordado para compor o enxoval

de uma das mulheres entrevistadas (M1, 60 anos). O bordado foi realizado sobre um tecido de

poliéster e apresenta bordas com chuleado manual, em recorte nuvem, e com flores

margeando os tecidos. A cor do tecido é azul claro e as flores são vermelhas e amarelas com

seus ramos em verde.

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Figura 1 – Flores nas bordas

Fonte: imagem própria

Eu fiz esse bordado quando tava juntando as coisas pro meu enxoval, eu já tava

com o casamento marcado. Isso aqui eu fiz tudo à mão, a gente tinha muita

habilidade. Eu escolhi flor porque eu amo desenho de flor, pra mim é a coisa mais

linda da natureza. Aí eu ficava imaginando que a gente ia comprar aqueles

armários lindos de madeira, e quando tava bordando fiquei pensando nesses

paninhos em cima da copa combinando com a cor da madeira. No fim o dinheiro só

deu pra comprar um armário mais barato que era todo vermelho, aí até achei que

tinha ficado legal ter flores vermelhas, mas o azul não sei se combinou muito com a

cor do armário. Eu usava mesmo assim e achava tão bonito quando o meu esposo

me ajudava a limpar a casa e ele pegava esse jogo pra colocar no armário... me

sentia feliz porque é uma coisa que a gente faz com carinho, né? (M1).

O depoimento da primeira mulher é bastante revelador sobre as expectativas de um

casamento, as frustrações impostas pelas condições financeiras e os sentimentos de carinho

que envolvem a confecção do bordado e, especialmente, o seu uso. A sensação de felicidade

se completava ao ver o esposo colocando, por ele mesmo, os paninhos sobre o armário. É

como se o esposo, ao utilizar os têxteis, assentisse o apreço por eles, e valorizasse aquele

trabalho. Os têxteis bordados com flores, como percebido na oralidade, falam de uma

aproximação das mulheres com as flores, aproximação essa que se concentra na concepção

histórica da feminilidade enquanto natureza delicada e frágil, tal como a flor.

Na Figura 2, a segunda entrevistada (M2, 53 anos), apresenta uma de suas toalhas de

chá, já bem manchada. A toalha tem os quatro cantos bordados com a imagem de uma flor,

um cravo, realizado em ponto cruz.

Figura 2 – Cravo em toalha de chá

Fonte: imagem própria

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Naquela época a gente não tinha como ficar comprando revista de bordado, a gente

morava no sítio e nem sei se vendia revista na cidade. Essa toalha eu bordei quando

ainda era moça, pensando no meu enxoval. Eu tinha ido na casa de um pessoal do

sítio vizinho e vi uma toalha com um bordado tipo esse, eu achei lindo e quis fazer

também. Eu já tinha essa toalha guardada, aí peguei e fui bordar. [...] Nossa, eu

usei tanto essa toalha, na cozinha tudo tinha que ter flor ou fruta, acho muito

bonito... borboleta também, passarinho... Eu fazia muito bordado, hoje eu bordo

mais pras minhas filhas que moram longe, aí sempre que eu vou eu levo algum

bordado ou um crochê. Minha maior alegria é chegar na casa delas e ver que elas

estão usando uma coisa que eu fiz. Minha caçula também faz bordado e as vezes me

dá umas coisas, mas é tão bonito que eu tenho até dó de usar (M2).

A fala dessa entrevistada demonstra, além das expectativas depositadas no casamento,

o amor do cuidado para com as filhas e o papel do bordado nessa relação de cuidado. A troca

de sentimentos entre mãe e filha se dá nos presentes trocados entre elas. A beleza e o esmero

com que foram feitos os tornam objetos de um valor muito íntimo para essas mulheres. O uso

desses presentes, ao mesmo tempo em que é a expectativa e felicidade de quem presenteou, é

uma probabilidade, para o presenteado, de estragá-lo com manchas ou outros danos do uso, o

que parece destruir o sentimento em sua forma material e, portanto, produz o movimento que

encerra os têxteis dentro de uma gaveta.

As imagens bordadas, mais uma vez, apresentam as flores, que na fala se complementa

com as frutas, as borboletas e os passarinhos. A relação entre esses objetos está na leveza, na

doçura, na pequeneza e delicadeza. Ainda, o ponto cruz feito sem um tecido guia apropriado

para o bordado, revela a habilidade da mulher em construir pontos tão parecidos uns com os

outros, apontando para uma boa noção de espaço, o que por sua vez faz pensar sobre um fazer

artístico, habilidoso, complexo, que equipara o trabalho dessas mulheres aos trabalhos de

artistas reconhecidos enquanto tal.

A terceira entrevistada (M3, 85 anos), apresenta também uma toalha de chá com

raminhos de flores bordados em ponto cruz nos cantos da toalha, como é demonstrado pela

Figura 3. As cores escolhidas foram o azul, o vermelho, o amarelo e o verde.

Figura 3 – Raminhos

Fonte: imagem própria

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Essa toalha eu fiz depois de casada, foi depois que os meninos já tinham crescido,

enquanto eu tinha que cuidar deles pequenos não dava muito tempo de fazer

bordado não. Eu gostava de fazer esses desenhos mais facinhos assim, uns

ramadinhos de flor... acho que fica mais delicado né. Essa toalha tá inteira porque

eu só usava quando vinha visita, não gostava de por no dia a dia, tenho dó dos meus

bordados. Aí era bacana quando o pessoal elogiava o que a gente fazia, a gente

gostava de deixar a casa bem enfeitada. As comadres ficavam querendo copiar as

coisas da gente. [...]. Hoje em dia eu não consigo mais fazer tanta coisa por conta

das vistas e porque a mão as vezes treme, mas dá pra fazer alguma coisa vez ou

outra. É bom que distrai, pra quem tem depressão é um remédio até (M3).

A fala da terceira entrevistada e sua toalha de chá vai ao encontro dos têxteis e dos

testemunhos das demais mulheres ao apresentar as flores e o apreço por elas. As flores

pequenas com ramos são as preferidas por seu aspecto mais delicado. A entrevistada ainda

aponta para as ocasiões de uso de seu bordado; ao utilizar somente quando iam as visitas, a

dona de casa buscava mostrar seus dotes e também criar um ambiente bonito para receber

aqueles por ela queridos.

Os fins de semana, as festas e as visitas dispendem, assim como a moda do vestir-se,

que a casa esteja com um traje diferente, bonito, enfeitado. Uma junção de tradições, entre as

quais a cristã, preconiza o embelezamento dessas datas, desses dias, como rituais que marcam

a sucessão dos dias no calendário, ou do passar do ano, fato reconhecido por meio das datas

comemorativas. O embelezamento é um “não passar em branco”, é a sensação de coisa feita e

nos “devidos conformes”, afinal, a espécie humana capta a maior parte dos sentidos pela visão

(FREITAS, 2011): sentido esse que demanda uma nutrição própria, toda uma construção de

mundo para saciar a fome de se enxergar a beleza.

Ao final do depoimento, a mulher indica que a relação com o bordado é também para

distração e para afastar o mal da depressão, o que é recorrente com as mulheres donas de casa,

e é também apontado pela quarta entrevistada (M4, 73 anos), junto ao seu pano de prato

decorado com rosas vermelhas e botões em ramos apresentado pela Figura 4.

Figura 4 – Rosas e botões

Fonte: imagem própria

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Pra mim rosa é tudo! Você viu né no meu jardim o tanto de rosa que tem. Eu gosto

de rosa de outras cores, mas gosto mais da vermelha porque me lembra o dia que

meu finado marido me trouxe uma rosa quando a gente ainda namorava. Tem uns

pés ali na frente que foi ele que plantou, eu não deixo ninguém tirar as rosas de

mim. Esse guardanapo aqui eu bordei não faz muito tempo, antes eu não sabia fazer

essas coisas com fita, aí vi isso numa revista e acabei fazendo, achei que ficou tão

lindo. [...] Depois que o meu marido morreu eu fico bordando mais do que antes,

porque aí penso menos nisso... as vezes dá uma solidão muito grande. Aí eu bordo,

dou presente pras minhas filhas, pras noras e pras netas também, todo mundo gosta

e fica me pedindo quando que eu vou fazer outro, ou então elas mostram um

desenho e pedem pra eu fazer. [...] Eu acho que é um jeito bonito de dar presente

porque aí eu sei que quando elas usam essas coisas que eu faço elas vão lembrar de

mim... e quando eu vir a faltar é uma coisa minha que elas vão ter de lembrança

(M4).

O depoimento da quarta entrevistada foi talvez o mais emocionante, e onde as

emoções transpareceram de forma mais evidente na fala e nos gestos da mulher, que olhava

para baixo e para o seu bordado enquanto falava. Há uma consciência muito grande acerca da

morte que se aproxima com o passar dos anos, e o anseio de deixar os registros de si no

mundo para não ser esquecida quando “vir a faltar”. As flores do jardim e as flores do

bordado, em especial as rosas vermelhas que a fazem se lembrar de sua época de namoro e de

seu finado marido, são cultivadas como forma de presentificar as ausências e o passado.

A quinta mulher (M5, 50 anos) e a sexta mulher (M6, 64 anos) entrevistadas, em suas

falas, revelam que se utilizaram do bordado para conseguir fazer dinheiro extra. Enquanto M5

borda como passatempo e aproveita a habilidade para complementar a renda, M6 utilizava o

bordado como ferramenta com a qual obtinha maior liberdade diante a autoridade do marido

já falecido.

Eu não podia trabalhar fora, tinha que ficar em casa, o meu marido era um homem

muito antigo e não me deixava trabalhar, aí eu fazia os bordados e vendia pra

alguma amiga que as vezes passava em casa. Eu vendia barato, não sei muito

cobrar essas coisas, mas aí o dinheirinho que dava eu comprava uma blusa, um

batom. Porque tudo o que eu ia comprar eu tinha que pedir para o meu marido, aí

quando eu tinha esse dinheiro eu ia escondido mesmo, e ele nem percebia quando

eu tava com uma roupa nova (M6).

A dimensão tática dessa fala é muito nítida, pois apresenta o uso de uma agência

feminina – os trabalhos manuais de bordado enquanto dotes – para a negociação da liberdade.

Ainda que a mulher tivesse que realizar as compras escondida do marido, o bordado permitia

que ela se enfeitasse com uma roupa ou batom novo. Ela revela que o seu marido mal notava

essas aquisições, o que aponta tanto para o fato dela poder comprar sem medo de ser

descoberta quanto para o fato de que ela não se embelezava para ele, uma vez que ele não era

capaz de reparar nesse aspecto.

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Os têxteis apresentados por essas mulheres também eram decorados com flores,

apontadas pelas duas como os seus desenhos favoritos. Por falta de espaço as imagens não

serão acrescentadas a este texto. Os bordados eram em ponto cheio, ou seja, um tipo de ponto

que traça um contorno de um desenho e o preenche inteiro com pontos simples. A quinta

entrevistada revelou, ao manusear o seu bordado de flores miúdas e coloridas, que:

Teve um dia que a gente brigou feio e eu fiquei com muito medo dele me deixar, aí

eu tinha que fazer a marmita dele pra ele levar pro trabalho, ele é pedreiro né, aí

aquele dia eu acordei cedo, a gente tinha brigado no dia anterior e ele tava sem

falar comigo, eu fiz a mistura preferida dele, que é um ovo mexido com batatinha, e

enrolei a marmita numa toalha que eu tinha bordado fazia pouco tempo. Ele tomou

café, tudo sem falar comigo, pegou a sacola que tava a marmita embrulhada dentro

e foi pro trabalho. Quando ele chegou em casa do trabalho ele parecia outra

pessoa, disse que era pra gente esquecer aquilo e que a gente tinha que ser um

casal unido. Eu tenho certeza que o meu ovo e a minha toalha mexeram com ele,

mas ele nunca falou (M5).

Os sentimentos presentes em um relacionamento e que direcionam as práticas do casal

são cruzados e modificados pelos objetos cotidianos. Como compreender a atuação

psicológica do alimento e do bordado na reconciliação da entrevistada com seu esposo? É

preciso atentar para o que Giard (1996) entende como a impressão de um estilo próprio de ser

no mundo. Como toda ação humana, as tarefas femininas dependem da ordem cultural que

varia entre as diferentes sociedades, classes sociais e à própria individualidade forjada pelas

relações, pelos aprendizados no decorrer do tempo e também por meio da subjetividade e

personalidade, imprimindo um estilo próprio e que se faz ver na arrumação da casa e preparo

dos alimentos.

Deste modo, apropriando-se do “saber-fazer” comum, cada “fada do lar” adquire

finalmente um modo próprio de fazer intervir, umas sobre as outras, as seqüências

cronológicas e de compor, sobre temas obrigatórios, ne varietur, uma música de

variações jamais fixas numa forma estável (GIARD, 1996: 218).

Os trabalhos femininos, então, conferem o movimento que complexificam a sua

cultura, não podendo ser capturadas apenas ao se considerar as estruturas de poder que se

colocam sobre as táticas dessas mulheres. É possível pensar que o marido, ao ver o estilo

próprio de sua mulher impresso naquela comida e naquele bordado, percebeu a

individualidade ali posta, única e insubstituível de sua esposa, o que o fez repensar e retornar

ao lar com o coração aberto à reconciliação.

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Considerações finais

Ao final deste texto, percebe-se uma evidente inclinação das mulheres em relação aos

desenhos de flores. As concepções de feminino da mulher como flor perpassam a história das

mulheres de múltiplas formas. Estão nos nomes das revistas, nos nomes das mulheres, nas

imagens que representam o feminino e nos desenhos bordados como um dos principais

elementos das artes decorativas de bordar sobre tecidos. O design de superfície têxtil

constituído por flores foi, ao longo da história e em diversas culturas, utilizado pelas mulheres

em seus corpos e na decoração de ambientes, principalmente para as roupas da cama e mesa

(EDWARDS, 2012).

O trabalho artístico da mulher, permeado pela sensibilidade, é cingido pelas flores. As

“naturezas semelhantes” entre mulheres e flores, como por muito tempo se acreditou, fazem

da flor um símbolo de feminilidade que contribui para a integração da mulher com a casa por

meio das vestes e dos têxteis domésticos. Se não estão, as flores, nos próprios desenhos

executados pelos trabalhos manuais, é comum que estejam compondo o estilo indumentário

dessas mulheres, aliando, portanto, a mulher com a sua casa, ambiente que historicamente se

constituiu enquanto espaço de mulher.

Apesar de disporem de táticas, as mulheres entrevistadas, como se pôde perceber,

precisavam respeitar um certo espaço. Dentro desse espaço, os “jeitinhos” iam se aplicando

nas formas por elas encontradas de registrar sua marca e levar amor para os que estavam

próximos de si ou mesmo distantes, como é o caso das filhas que moravam longe. “Ser-no-

mundo” a partir das “artes de fazer”, então, eram formas encontradas de se colocar nos

objetos, de participar das memórias de cada membro da família, de nutrir, de fortificar a vida

e de saciar com beleza. A casa das famílias dessas mulheres, antes de narrar sobre poder de

consumo, status social e aderência a certas modas, pode narrar sobre aconchego, cuidado e

amor, experimentado na interação com os elementos que concentram os símbolos de ser

mulher, ser mãe e esposa, símbolos de acolhimento e de afeto que fazem, dos momentos em

família, um grande abraço de mãe, ou um grande abraço de mulher.

Referências

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