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Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura MULHERES NAS PÁGINAS, MULHERES NAS CENAS Milena Britto 1 As cenas no cinema: mulheres diretoras O cinema e a literatura tem sido meios profícuos de exploração de demandas de identidade, de performance de gênero, de novas experiências estéticas promovidas pela diluição de fronteiras, sejam essas econômicas, geográficas, de gênero. Neste artigo, eu analiso brevemente o desempenho de gênero na literatura e no cinema contemporâneos de autoras e diretoras do sexo fe- minino, não apenas observando as representações, mas sobretudo as per- formances complexas que se observam no âmbito da criação. Destina-se, essa espécie de rascunho, a demonstrar como essas artistas inscrevem-se no legado da até recentemente perspectiva única – que marginalizava a presença feminina dentro de movimentos literários e cinematográficos. Se percebemos a censura como um modo que procura ativamente excluir alguns cidadãos (em oposição a legitimar passivamente limites de expressão para todos), então podemos supor que a censura, como afirma Judith Butler, “não é primariamente sobre o discurso, que é exercido no ser- viço de outros tipos de objetivos sociais, e que a restrição de expressão é fundamental para as conquistas de outros, muitas vezes implícitos, obje- tivos sociais e do Estado”. (Butler, 2004). Um dos objetivos de tais meca- nismos é “a insistência de que certos tipos de acontecimentos históricos podem apenas ser narrados de uma forma” (Butler, 1997). Isso é justamente o que autoras e cineastas vêm desconstruindo, ao abordarem a história de opressão a que estiveram/estão submetidas. No cinema, diásporas religiosas e étnicas passaram a coexistir em cenários europeus organizados e erigidos sob a força simbólica da hegemo- 1 Professora Adjunta 1 da Universidade Federal da Bahia. Integra os projetos Dois finais de século na Bahia: cenas de mulheres, financiado pelo CNPq, e o projeto Rasuras: estudos de práticas de leitura e escrita. E-mail: [email protected]

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MULHERES NAS PÁGINAS, MULHERES NAS CENAS

Milena Britto1

As cenas no cinema: mulheres diretoras

O cinema e a literatura tem sido meios profícuos de exploração de demandas de identidade, de performance de gênero, de novas experiências estéticas promovidas pela diluição de fronteiras, sejam essas econômicas, geográficas, de gênero.

Neste artigo, eu analiso brevemente o desempenho de gênero na literatura e no cinema contemporâneos de autoras e diretoras do sexo fe-minino, não apenas observando as representações, mas sobretudo as per-formances complexas que se observam no âmbito da criação. Destina-se, essa espécie de rascunho, a demonstrar como essas artistas inscrevem-se no legado da até recentemente perspectiva única – que marginalizava a presença feminina dentro de movimentos literários e cinematográficos.

Se percebemos a censura como um modo que procura ativamente excluir alguns cidadãos (em oposição a legitimar passivamente limites de expressão para todos), então podemos supor que a censura, como afirma Judith Butler, “não é primariamente sobre o discurso, que é exercido no ser-viço de outros tipos de objetivos sociais, e que a restrição de expressão é fundamental para as conquistas de outros, muitas vezes implícitos, obje-tivos sociais e do Estado”. (Butler, 2004). Um dos objetivos de tais meca-nismos é “a insistência de que certos tipos de acontecimentos históricos podem apenas ser narrados de uma forma” (Butler, 1997). Isso é justamente o que autoras e cineastas vêm desconstruindo, ao abordarem a história de opressão a que estiveram/estão submetidas.

No cinema, diásporas religiosas e étnicas passaram a coexistir em cenários europeus organizados e erigidos sob a força simbólica da hegemo-

1 Professora Adjunta 1 da Universidade Federal da Bahia. Integra os projetos Dois finais de século na Bahia: cenas de mulheres, financiado pelo CNPq, e o projeto Rasuras: estudos de práticas de leitura e escrita. E-mail: [email protected]

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nia cristã, branca, burguesa, como o bem chama a atenção Edward Said. Em filmes contemporâneos iranianos (a exemplo de Às cinco da tarde, da diretora Samira Makhmalbaf), Libaneses (como Caramelo de Ladine La-baki), africanos (Esperando os homens, documentário da senegalesa Katy Lena Ndiaye) latinos (com O pântano de Lucrécia Martel) Judeus (O ter-ceiro divórcio, de Ibtisam Mara’ana) os conflitos passam a cruzar todos os aspectos do sujeito mulher na contemporaneidade. Religião é discutida no mesmo lugar de valor que o preço das roupas da criança; fazer ou não uma operação para voltar a ser virgem por uma mulher de Beirute que vai se casar é tão catalisador quanto uma adolescente lésbica perseguir uma ima-gem de santa que aparece em uma comunidade argentina: as respectivas diretoras dessas cenas colocam na mesma altura o problema de ser mulher sob o peso de dogmas religiosos que não condizem mais com os desejos e práticas do “novo” corpo - ou da nova performance deste- com a busca espiritual particular.

Para o cinema de autoria feminina contemporâneo, as marcas so-ciais e políticas são importantes, mas as fronteiras passam a ser menos geográficas, e muito mais subjetivas. Os conflitos femininos são abordados como universais de dentro de uma situação particular, mesmo que pense-mos na cultura islâmica, chinesa, indiana ou latina ao ver os muitos filmes que tratam da mulher, dirigidos por cineastas como as citadas.

Quase todas evitam as marcas excessivamente regionalistas e con-textualizadas, contribuindo para o recém-difundido World Cinema. Segundo alguns críticos, o fato de muitos diretores de cinema autoral aderirem ao World Cinema tem a ver com o mercado econômico- consumidor depois da globalização e do mercado digital; para mim essa razão é extrapolada ao observar na literatura, ainda que não chamemos de World Literatura como se faz com a música e o cinema, principalmente aquela escrita por mu-lheres. No cinema pós- colonial que fazem essas autoras, é comum ver no centro da questão a reinvenção da mulher frente às culturas patriarcalistas que a deixaram marcada, mas, deixam que a forma e a estética traduzam grande parte dos conflitos femininos levados à sétima arte. Muitas dessas diretoras não se vêem, inclusive, como feministas, a exemplo de Lucrécia Martel, embora todos os seus filmes tragam as mulheres como explosivos

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que detonam e desmascaram as armadilhas patriarcais.

Em quase todas as diretoras, os temas se traduzem em uma esté-tica própria, com câmeras servindo ao desejo de criar e não mais apenas representar.

Ao fazer um estudo do cinema diásporico indiano, Anjali Ram inte-ressantemente tenta mostrar as estratégias de discussão das indianas que escaparam de lugares opressores e levam a discussão de gênero com as particularidades culturais, mantendo como foco os modelos indianos de comportamento de mulheres e homens em seus filmes, mas utilizam-se de seus novos lugares para debatê-los, inserindo sobretudo os modelos das mu-lheres norte-americanas, independentes sexualmente e financeiramente.

O desejo de exercerem-se livremente como mulheres em suas cul-turas chega-nos tanto com o barulho intrigante de vidros se quebrando e trovoadas rugindo como a imagem de uma mulher casada entregando-se ao prazer de ter seus cabelos lavados por outra mulher, na única forma que encontra de exercer o seu desejo proibido.

Cenas na literatura: autoras contemporâneas

Para a literatura, assim como para o cinema de autoria feminino, a cena contemporânea tem sido exaustivamente explorada . A tecnologia, a cultura pop, as linguagens híbridas parecem fazer parte da proposta de autoras e diretoras que passam a ousar, explorar e brincar com as ferra-mentas disponíveis na era líquida, num jogo no qual “se vinga” da sociedade masculina que tentou privá-las de novas formas criativas até metade do século XX.

A literatura de novas escritoras brasileiras fazem, como as diretoras citadas, amplo uso de novas formas de linguagem, sendo o cinema o mais explorado, aparentemente por encontrarem ali uma espécie de aliado para experimentos estéticos, assim como o teatro, as artes visuais, a cultura pop. Vejamos um trecho de autoria da gaúcha Veronica Stigger, retirado do livro “Os anões”:

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Curta-metragem

Cena 1

Ela está na sala, sentada no sofá vermelho, de óculos e pijama azul- céu, vendo televisão. Ele, na sacada da sala, de pijama xadrez vermelho, observa o movimento noturno da rua. A câmara passeia de um para o outro até que pousa nele, em plano geral, como se o visse a partir do sofá da sala. Ele, então, coloca a perna direita sobre a murada da sacada, projeta o corpo para a frente e diz a ela, sorrindo:

Ele: Olha só.

A câmera muda de direção. Agora, mostra ela, como se a olhasse da sacada, também em plano geral. Ela tira os olhos da televisão, olha para a sacada e fala para ele:

Ela: Você podia, pelo menos, trocar essa calça.

Ela volta a assistir à televisão. A câmera retorna a ele e se aproxima até focá-lo em plano americano. Ele se joga da sacada.

Como se pode observar, a autora traz para a literatura a técnica do cinema para dramatizar as ações da personagem, levando o leitor a partici-par da performance proposta, bem como para experimentar o jogo invertido e irônico: a mulher continua vendo televisão diante de um provável suicídio cometido pelo homem que tenta chamar a sua atenção. Além do momento mais dramático, propositalmente, ser uma observação sobre a roupa, a auto-ra elimina paisagens, cidades e contextos muito particulares, deixando a uni-versalidade dos elementos darem o tom, da mesma forma que faz o cinema.

Ainda brincando com as formas, além de trazer muitos contos com a linguagem cinematográfica, a autora performatiza sua própria existência

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na obra, jogando com o gênero anotado em seu registro: por um erro, ela foi registrada como sendo do sexo masculino e ao colocar o fac-símile de sua certidão, discute a arbitrariedade do gênero e ironiza as construções sociais: ela foi “documentada” como homem, criada como mulher.

Muitos dos textos de Stigger articulam-se com o universo cotidiano feminino, indo desde filas de supermercado a comemoração de casamentos, abandono, discriminação, novas formas de relacionamento, desejos, cor-pos. As diferenças abordadas vão de homossexualidade até altura e beleza: anões são explorados como exemplo da crueldade e fobia que a sociedade mantém em relação ao que escapa da norma. O grotesco, em seu conto “Os anões”, não é o casal de seres minúsculos numa fila da farmácia, mas a re-ação extremista e cruel dos sujeitos normatizados: assassinam a pontapés e esmagam o casal de anões numa cena digna do filme mais trash.

Brincando exageradamente com a performance, a autora traz para a literatura, de forma irônica, padrões do comportamento masculino, como o revela o conto a seguir intitulado de:

TESTE

- Que tal fazer, então, o mesmo teste com mulheres gordinhas, de cabelos crespos?

Esses exemplos se espalham pela literatura, como é o caso do livro de contos da gaúcha, radicada na Bahia, Katherine Funke em seu livro “No-tas mínimas”. Além de brincar com o gênero narrativo, a autora, que escre-ve contos curtos e híbridos, também explora a linguagem de outras artes, como o teatro, ou de formas como o blog, a canção, as anotações e frases. O conto a seguir é um dos que trazem à literatura a cena teatral:

Teatro Realista

(Entra Roberta, 8 anos, vendedora de bala no sinal:)

- Eu corro, corro, corro, corro, corro, corro, corro atéééé lá

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no final da fila e deixo as balas nos retrovisores dos carros mas ninguém ninguém ninguém compra as minhas balas e eu sinto sede, muita sede ahhhhhh sinal verde que bom que bom glu glu glu. Mainha? Trabalha fora de segunda a sábado e chega cansada e no domingo ela dorme o dia inteiro e a gente chora mas o meu pai não pode ouvir senão

(ROBERTA para de falar porque entra O PAI. Fechar cortinas).

Todo o conto é levado para fora do texto num jogo com a linguagem oral, a performance do corpo e a informação provável que está ali: fechar a cortina pode ser no teatro, mas é no fechar a cortina na literatura que pro-vavelmente ROBERTA, em caixa alta, é abusada pelo pai.

As romancistas contemporâneas também experimentam os seus lugares de mulheres pós-modernas. As narrativas enveredam-se para a au-sência de marcas geográficas. Carola Saavedra( uma chilena-paulista) tem uma forma interessante para contar a história de um triângulo amoroso no romance Paisagem com dromedário: a personagem “narra”cartas a um tal companheiro que se apaixonou pela sua amante, mas nunca sabemos se as personagens existem ou é criação da escritora/personagem. Em uma ilha vulcânica, com empregadas mexicanas, a linguagem das rádios-novelas é utilizada para compor a trama, que também é uma instalação literária com obras de arte figurando com palavras, sons elaborados, ecoando para o lei-tor que se desloca o tempo todo no jogo narrativo: ora ouvindo as gravações, ora acompanhando a confecção de esculturas em madeira, ora embrenhan-do-se pela história complicada de amor entre duas mulheres e um homem machista e egoísta que as usa para elevar-se como artista.

Laura Castro, também baiana, vai ao extremo e cria um “livro-blog” onde propõe-se a desvendar os mistérios da escrita na era líquida da infor-mática. É ela mesma quem diz, em seu romance-post não linear, utilizando-se de absolutamente todas as linguagens e gênero, internet, blog, desenho, artes plásticas, teatro, performance, diário, poesia, anotações:

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Ficção biográfica. Pode ser biografia ficcional também, ponha aí, nesse quadradinho, o que separa vida vivida de vida narrada? Essa linha onde me equilibro enquanto falo, não, não me cobre categorias. Me deixo ser irracionalista que sou: o que eu escrevo nunca foi linear, nem gramaticalmente correto. Me criei nessa confusão de bloco, na literatura de e-mail, no diário de moça. Eu escrevo bloquinhos. Eu sou escritora. Eu sou uma escritora. Eu sou uma escritora de bloquinhos.

Laura constrói uma narrativa que mescla suportes e gêneros. Trans-forma os elementos da rede em geografias estéticas; discute as híbridas formas de construir um texto num jogo de ficção e autobiografia; traz um jogo de cartas, duas máscaras, um bloco de notas. Coloca poesia e páginas em branco. Inverte a posição dos textos, deixa páginas vazias; outras com um risco ou um quadrado negro; há até uma espécie de barras de rolagem e janelas de comentários. É uma proposta de performatizar não apenas o gê-nero literário, os suportes, mas também as formas de se construir. O roman-ce é sobre a criação ou apropriação de uma personagem, mas ali se discute relacionamento, maternidade, sexo, desejo, busca por respostas.

Não há, pois, como deixar de observar que, mesmo com a aparente ausência de engajamento num discurso feminista, essas diretoras e escrito-ras estão reivindicando um lugar específico de atuação. Rompem com uma certa censura e exploram com audácia elementos estéticos e ferramentas contemporâneas, forjando seus lugares de vanguardistas, de experimen-tais, de donas tais quais os homens de todos esses suportes e meios dis-ponibilizados nessa nova economia tecnológica. Elas trazem para as suas obras e poéticas não apenas tópicos do universo feminino mas, sobretudo, “performatizam-se” nesses lugares.

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Bibliografia:

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BUTLER, Judith. Excitable speech: a politics of the performative. New York: Routledge, 1997.

Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Taylor & Francis e-Library. 2004.

CASTRO, Laura. Cabidela: bloco de máscaras. Bolsa de criação literária da Funarte 2009. Edição independente. Salvador: 2011.

FUNKE: Katherine. Notas mínimas. Salvador: Solisluna Editora. 2010.128p.

OTTONI, Paulo. Visão performativa da linguagem. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998.

RAM, Anjali. National texts/transnational identities: How Bollywood attempts to reach out the Indian diaspora. Paper presented at the annual convention of the Eastern Communication Association, Providence, RI. 2007.

SAAVEDRA, Carola. Paisagem com dromedário. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 168 p.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg, São Paulo: Cia das Letras, 2007.

STIGGER, Verônica. Os anões. São Paulo, Cosac Naify: 2010.60p.

TAYLOR, D. “O que é performance”. O percevejo. Rio de Janeiro: UniRio, Ano 11, n. 12, 2003.