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MULHERES QUE OUSAM LUTAR: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE COMO MULHER QUILOMBOLA 1 Nivaldo Aureliano Léo Neto * “A gente vai com os pés, mas não sabe se volta” Bila Resumo No município do Conde, litoral sul do Estado da Paraíba, no ano de 2006, uma comunidade negra obtém sua certidão de auto-reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo, intitulada Ipiranga. Este trabalho tomou como fio condutor conceitos teóricos e instrumentos metodológicos próprios à antropologia, que dão conta dos fenômenos de emergência étnica, juntamente com as relações inter-étnicas inclusas em um campo intersocietário. Na comunidade Ipiranga, as mulheres possuem um importante papel na organização sócio-política, seja pelo seu histórico de lutas pela terra, por conduzirem a manifestação cultural do coco-de-roda, pela direção da associação de moradores ou simplesmente pela luta diária em sustentar a sua família, já que a maioria destas são mães solteiras. Seguindo um histórico de lutas, elas “tornam- se” negras e, sobretudo, mulheres, dotadas de livre expressão e capacidade de optar pelo o que querem. Ser mulher não é a pura constatação de um estado de fato, mas a afirmação de uma vontade de ser, de serem portadoras de uma voz ativa e política que as permitem lidarem com as suas próprias vidas. Elas passam da consciência de objetos (mulher-para-o-outro) à consciência de sujeitos (mulher-para-ela-mesma), em um processo de construção de si que implica certo amor para consigo mesma. Palavras-chave: Etnicidade, negras, identidade, política. 1 INTRODUÇÃO A partir do Decreto nº4887, de 20 de novembro de 2003, Art.2º, consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. O critério de auto-atribuição também pode ser encontrado na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. Logo, a primeira demanda para o reconhecimento destas populações não parte do Estado, mas do reconhecimento de uma identidade diferenciada pelos próprios sujeitos sociais que assim a reivindicam. Nos moldes de Weber (1994), uma “consciência étnica”, o 1 Este trabalho faz referência ao laudo antropológico que é elaborado pelo autor, como peça fundamental para o Relatório de Identificação e Delimitação Territorial (RTID) da comunidade remanescente de quilombo Ipiranga, município do Conde, considerando o contrato CTR/PB05/2012, pela empresa Demacamp (sede em Campinas-SP). * Mestre em Ciências Sociais Universidade Federal de Campina Grande. Laboratório de Estudos em Movimentos Étnicos LEME. E-mail: [email protected]

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MULHERES QUE OUSAM LUTAR:

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE COMO MULHER QUILOMBOLA1

Nivaldo Aureliano Léo Neto*

“A gente vai com os pés, mas não sabe se volta”

Bila

Resumo

No município do Conde, litoral sul do Estado da Paraíba, no ano de 2006, uma

comunidade negra obtém sua certidão de auto-reconhecimento como comunidade

remanescente de quilombo, intitulada Ipiranga. Este trabalho tomou como fio condutor

conceitos teóricos e instrumentos metodológicos próprios à antropologia, que dão conta

dos fenômenos de emergência étnica, juntamente com as relações inter-étnicas inclusas

em um campo intersocietário. Na comunidade Ipiranga, as mulheres possuem um

importante papel na organização sócio-política, seja pelo seu histórico de lutas pela

terra, por conduzirem a manifestação cultural do coco-de-roda, pela direção da

associação de moradores ou simplesmente pela luta diária em sustentar a sua família, já

que a maioria destas são mães solteiras. Seguindo um histórico de lutas, elas “tornam-

se” negras e, sobretudo, mulheres, dotadas de livre expressão e capacidade de optar pelo

o que querem. Ser mulher não é a pura constatação de um estado de fato, mas a

afirmação de uma vontade de ser, de serem portadoras de uma voz ativa e política que

as permitem lidarem com as suas próprias vidas. Elas passam da consciência de objetos

(mulher-para-o-outro) à consciência de sujeitos (mulher-para-ela-mesma), em um

processo de construção de si que implica certo amor para consigo mesma.

Palavras-chave: Etnicidade, negras, identidade, política.

1 INTRODUÇÃO

A partir do Decreto nº4887, de 20 de novembro de 2003, Art.2º, consideram-se

remanescentes das comunidades dos quilombos “os grupos étnico-raciais, segundo

critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações

territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a

resistência à opressão histórica sofrida”. O critério de auto-atribuição também pode ser

encontrado na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. Logo, a primeira

demanda para o reconhecimento destas populações não parte do Estado, mas do

reconhecimento de uma identidade diferenciada pelos próprios sujeitos sociais que

assim a reivindicam. Nos moldes de Weber (1994), uma “consciência étnica”, o

1 Este trabalho faz referência ao laudo antropológico que é elaborado pelo autor, como peça fundamental

para o Relatório de Identificação e Delimitação Territorial (RTID) da comunidade remanescente de

quilombo Ipiranga, município do Conde, considerando o contrato CTR/PB05/2012, pela empresa

Demacamp (sede em Campinas-SP). * Mestre em Ciências Sociais – Universidade Federal de Campina Grande. Laboratório de Estudos em

Movimentos Étnicos – LEME. E-mail: [email protected]

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sentimento de pertencimento a uma comunidade étnica, organizada de uma forma

política, juntamente com o “sentimento de ser diferente” (aqui podendo ser entendida

como identidade diferenciada), resultando em uma “comunhão” desses indivíduos que

se uniriam e se organizariam socialmente/politicamente.

Reconhecendo a essas comunidades o direito a terra como direito “ancestral”,

estes sujeitos tornar-se-iam “sujeitos históricos” e aqui poderíamos incorrer no erro de

presumir que os quilombos de antigamente (aqui definidos como “quilombos

históricos”) são os mesmos quilombos que podemos encontrar na atualidade. Para Leite

(2000), “falar dos quilombos e dos quilombolas no cenário político atual é, portanto,

falar de uma luta política e, consequentemente, uma reflexão científica em processo de

construção”. O termo “quilombo”, até recentemente, era de uso quase exclusivo de

historiadores que, por meio da documentação disponível ou inédita, procuravam

construir novas abordagens e interpretações sobre o passado como nação (O’Dwyer,

2002). Tal termo, portanto, deve ser ressemantizado, procurando discutir não o que foi o

quilombo, mas sim discutir como essa autonomia foi sendo construída historicamente,

logo, considerando o que ele é no presente (Almeida, 2002). O quilombo surge como

uma forma de organização, de luta, de espaço conquistado e mantido através das

gerações (Leite, 2000).

Se a fundamentação da definição de um quilombo torna-se inoperante a partir do

binômio fuga/resistência (fuga aqui entendida em um período histórico no qual os

escravos fugiam dos “seus senhores”), o termo resistência pode nos ser útil para a

presente análise. Resistir torna-se a pedra de toque para a afirmação étnica destes

indivíduos: resistir contra as questões de desemprego, à discriminação racial, contra a

posse indevida das terras que ocupam, entre outras. Apesar do discurso oficial que

defende uma identidade brasileira suprarracial, ignorando o status marginal da

população negra, os negros brasileiros – especialmente as mulheres negras – continuam

a sofrer discriminação, sendo que a opinião pública brasileira raramente reconhece ou

critica os mecanismos sociais que reforçam essa discriminação (Reichmann, 1995).

Acabamos por colher os frutos plantados pelos colonizadores europeus, a partir de uma

visão eurocêntrica (supremacia do branco) e androcêntrica, gerando opressão e

traduzida em racismo, discriminação sexual e social. Portanto, qualquer análise sobre a

opressão da qual a mulher sofre, deve prezar pelo enfoque histórico e material,

permitindo, desta forma, a desnaturalização da subordinação.

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Ao longo do texto, pretendo demonstrar como as mulheres da comunidade

remanescente de quilombo Ipiranga, localizada no município do Conde, Estado da

Paraíba, articulam a sua identidade enquanto negra quilombola e, concomitantemente,

se posicionam como atrizes sociais no processo de afirmação de sua constituição

enquanto mulheres.

Este trabalho faz referência ao laudo antropológico que realizado por mim, como

peça fundamental para o Relatório de Identificação e Delimitação Territorial (RTID) da

comunidade remanescente de quilombo Ipiranga, município do Conde, considerando o

contrato CTR/PB05/2012, pela empresa Demacamp (sede em Campinas-SP). Foram os

meus interlocutores nove mulheres e três homens.

2 APRESENTANDO: A COMUNIDADE IPIRANGA

A comunidade Ipiranga está localizada entre a cidade do Conde e a cidade de

Jacumã, às margens da PB 018. Esta mesma rodovia faz o limite das comunidades

Ipiranga, Gurugi I e Gurugi II. Possui estabelecimentos comerciais próximo às

comunidades: bares, padarias, pequenos mercados, lojas de roupas e barracas que

vendem frutas da região, tais como manga, mangaba e jaca. Estes estabelecimentos

constituem uma fonte de renda para os moradores da região, que aproveitam,

majoritariamente, o fluxo turístico que se dirige às praias do litoral sul, tal como

Jacumã, e que por ali passam. Fato que com a construção da PB-008, o movimento

diminuiu de forma considerável. O deslocamento até a comunidade (e desta para

cidades próximas, tais como Conde e João Pessoa) pode ser realizado, basicamente, de

duas formas: através de ônibus que executam este serviço e os chamados “alternativos”,

carros de particulares que, após preencherem todas as vagas, executam o mesmo

itinerário dos ônibus.

Os moradores obtiveram a certidão de auto-reconhecimento, emitida pela

Fundação Cultural Palmares (FCP), no dia 8 de setembro de 2006. Data de 22 de abril

de 2006 a primeira assembléia geral para a constituição da Associação da Comunidade

Negra do Ipiranga (ACNI), com o propósito de iniciar o processo de eleição e

constituição da diretoria da respectiva associação.

3 “SOU QUILOMBOLA! SOU MULHER!”: A CONSTRUÇÃO DA

IDENTIDADE COMO QUILOMBOLA

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O critério de auto-reconhecimento da comunidade como remanescente de

quilombo pode suscitar, dentre os defensores de certas correntes teóricas e sujeitos

sociais contrários aos interesses destas comunidades, dúvidas quanto ao critério de

legitimidade de sua identificação étnica. Ao invés de se pensar estas sociedades como

portadoras de uma cultura determinada (o que, para algumas correntes teóricas, seria

decisivo para um grupo étnico), prezo por um reconhecimento embasado em sua

organização social, tal como proposto por Barth (1969). Para este autor, os grupos

étnicos, através de sua organização social, selecionariam os elementos culturais que

seriam manuseados e expostos como sinais diferenciadores (i.e., sinais diacríticos) e de

estabelecimento das fronteiras (exclusivas e inclusivas), em um processo de

dicotomização entre membros e não-membros, do tipo nós/eles. Portanto, em vez de ser

pressuposto de um grupo étnico, a cultura seria, de certa maneira, produto deste.

Porém, já que a cultura é adquirida e não biologicamente dada, também poderia

ser perdida, e logo inventou-se o conceito de aculturação, sendo possível pensar na

perda da diversidade cultural (Cunha, 1986). Por sua vez, esta perspectiva é

insatisfatória para se pensar os movimentos étnicos, tendo em vista que as culturas são

fluidas e dinâmicas e, portanto, passam por processos de “hibridizações” (Canclini,

2008) através de uma rede de “fluxos, trocas e aquisições” (Hannerz, 1997). Para Mota

(2007), “a identidade étnica é construída sobre sistemas culturais e ideologias, tendo

pouco a ver com traços biológicos”. Contudo, a “questão do sangue” (Reesink, 1999)

pode ser manuseada pelos atores sociais, o que nos leva às construções sociais sobre a

noção de “raça”. As identidades, portanto, estariam embasadas em um dispositivo

discursivo, não sendo coisas com as quais nós nascemos, mas formadas e transformadas

no interior da representação (Hall, 2003).

Procurando resgatar antigos valores encontrados na memória das gerações mais

antigas, os indivíduos colhem os significados que comporão o arcabouço da sua

identidade. A geração mais antiga, atuando como os “guardiões da tradição” (Giddens,

2005), ajudaram a resgatar o passado histórico da comunidade que, por sua vez, auxiliou

no auto-reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo.

Analisando o caso dos índios do Nordeste, Pacheco de Oliveira (1999) considera

que não podemos supor ou reforçar a crença de que os habitantes de uma dada

sociedade indígena, atualmente, seriam anteriores à constituição da nação brasileira.

Lançando mão das considerações teóricas desse autor, podemos visualizar que as

comunidades se modificam ao longo do tempo, já que lidamos com uma cultura

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dinâmica ao invés de estática, estruturada e imutável ao longo do tempo. Portanto, para

compreendermos melhor o fenômeno da formação de uma identidade quilombola para

os moradores da comunidade Ipiranga, devemos ter em mente que, tal como as

formulações de Sahlins (1990: 7), “a história é ordenada culturalmente de diferentes

modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas”,

sendo o contrário também verdadeiro “esquemas culturais são ordenados historicamente

porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na

prática”. Portanto, cultura e identidade estariam em fluxo constante, não sendo estáveis

e concedidas, mas fluidas e mais ou menos construídas de forma consciente (Kuper,

2002: 270).

A cultura (e aqui poderíamos colocar também a noção de identidade) seria

justamente a organização da situação atual em termos do passado (Sahlins, 1990:192),

mesmo que este passado seja construído, “imaginado” historicamente (Comaroff e

Comaroff, 1992) e por que não simbolicamente, ou até mesmo tendo como base uma

tradição inventada (Hobsbawm, 2008). Nesta perspectiva, conforme já alertara

Grünewald (1999), qualquer enfoque respaldado sobre uma oposição passado/presente

não teria sentido, sendo mais lógico nos voltarmos para a estrutura da conjuntura, que

para Sahlins (1990:15), seria “a realização prática das categorias culturais em um

contexto histórico específico, assim como se expressa nas ações motivadas dos agentes

históricos, o que inclui a microssociologia de sua interação”. Como passado

“imaginado” historicamente, compreendo o fato das comunidades elaborarem novas

identidades colhendo antigos. Portanto, seguindo os pressupostos de uma “etnografia da

imaginação histórica” (Comaroff e Comaroff, 1992), a tarefa consiste em:

estabelecer como as identidades coletivas são construídas e tomadas

em seu contexto cultural particular; como elas tornam-se reais,

essenciais, qualidades personificadas para aqueles que vivem-nas;

como elas tornam-se átomos naturais da existência social (Comaroff e

Comaroff, 1992: 44, tradução minha).

Investigando a ocupação histórica da região, encontramos registros de índios da

etnia Tabajara2. Se este passado não é reivindicado como atributo de uma identidade

étnica pelos atuais moradores da comunidade, nem por isto torna-se de menor

2 Como atesta o “Relatório de fundamentação antropológica para caracterizar a ocupação territorial dos

Tabajara no Litoral Sul da Paraíba”, Instrução Técnica Executiva nº 34/DAF/2009, elaborado por Fábio

Mura, João Martinho Braga de Mendonça, Estêvão Martins Palitot, Henrique Sampaio, Amanda Marques

e Aline Paixão.

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importância, tanto para a atual afirmação enquanto quilombola como pelo fato

constituinte de traço histórico de Ipiranga. Se os antigos moradores comentaram que os

pais nunca falaram nada sobre quilombos e quilombolas, mas sim sobre a presença de

índios e caboclos, temos várias nuances de uma subjetividade entremeada por aparatos

jurídico-políticos. Em uma primeira análise, se as gerações anteriores não passaram

nada às atuais gerações (mais antigas da comunidade, por sua vez) sobre o fato de serem

quilombolas ou de existir um quilombo na região, isto não quer dizer que nada sabiam

sobre este fato.

O início do declínio da escravidão na capitania da Parahyba ocorreu por volta de

1850. Contudo, o vulto da escravidão não deixava de assolar as casas e as mentes dos

moradores, inclusive dos chamados “homens livre pobres”, pois estes, na constituição

do seu trabalho, não queriam ser identificados como escravos e, tampouco, perderem a

sua liberdade (Medeiros e Sá, 1999). Qualquer informação que remetesse a presença de

negros fugidos, nessa época, poderia acarretar em mudanças na região, por causa das

forças policiais. Aliado a isto, não devemos desconsiderar o fato de que, antigamente, os

mais velhos não permitiam que os mais jovens participassem das conversas, sequer

passassem por perto quando adultos estivessem reunidos3. Muito se “perdeu”, conforme

os interlocutores afirmam. Mas, principalmente, devemos ter em mente que a categoria

hoje reconhecida como “quilombo/quilombola” assume outras significações, conforme

demonstrado no início deste trabalho. Mais uma vez, se as gerações anteriores não

comentavam nada sobre serem quilombolas, talvez isso se deva simplesmente ao fato de

que, na época, quilombo significava, estritamente, uma “reunião de negros fugidos”.

Com a ressignificação dessa categoria e, por sua vez, direitos assegurados pela

Constituição Federal de 1988, através do artigo 68, do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias (ADCT), os atores sociais passaram a estabelecer outras

formas de conexão com o seu passado e consolidação de uma identidade étnica.

De acordo com os interlocutores, a terra do “Sítio Piranga” deveria ser

respeitada, pois era “terra de caboclo”. Mesmo que o caboclo seja elencado, na noção

clássica, como um indivíduo gerado da miscigenação entre o índio e o negro,

aparentemente, dentro da comunidade, funda-se mais a noção do caboclo próximo ao

3 Este fato foi elencado inúmeras vezes durante as entrevistas, chegando-se a comparar a situação atual

com a vivenciada antigamente. Algumas informações (algumas delas, por sinal, apenas remetendo ao

conhecimento de nomes de pessoas) adquiridas nessa época, eram escutadas pelas crianças (hoje a

geração mais antiga) que se escondiam dos adultos.

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índio. No depoimento abaixo, também podemos visualizar a construção da categoria

“moreno(a)”, conforme exposto anteriormente:

Aqui nasci, aqui me criei. Meu pai nascido e criado aqui também. Um

caboclo, um caboclo não...era um moreno. Bem moreno. Trabalhava

na agricultura. Minha mãe também (Joana Rodrigues da Silva).

O caboclo surge como um construto social no qual podem ser visualizados

critérios de estabelecimento de “fronteiras étnicas” (Barth, 1969), com o seu caráter de

inclusão e exclusão. Se a figura do índio é “inexistente” na memória das pessoas mais

antigas, esta emerge, principalmente, na figura do caboclo.

Em suma, mesmo que se reconheça a presença (histórica, inclusive) de índios e

caboclos na região, os atuais moradores da comunidade Ipiranga não utilizaram este

fator como a pedra de toque para a sua afirmação étnica. Outros critérios foram

percebidos/manuseados, tais como a posse da terra (na modalidade de “terra de

herdeiro”) e características fenotípicas, a semelhança de “raça”. Mas qual seria o motivo

de alguns interlocutores não utilizarem recorrentemente, o que poderia ser esperado de

nossa parte, a identidade de quilombola? Mais especificamente, quais seriam os motivos

que poderiam levar alguns moradores a utilizarem a categoria “moreno(a)” ao invés de

“negro(a)”?

É difícil ser negro em nosso país, tão marcado pelos grilhões da escravidão,

carregando o estigma de ter sido o último país a declarar sua e, contudo, ainda continuar

com regimes de escravidão ou semi-escravidão. Os anos passam, leis são promulgadas,

mas a forma de dominação continua, praticamente, a mesma, apenas muda quem são os

“senhores”. O depoimento abaixo demonstra um pouco da dificuldade encontrada de se

assumir enquanto negro:

Se assumir negro não é muito fácil não gente. Tem pessoas que diz

assim, que a gente não nasce negro, se torna negro a partir do

momento em que vai se identificando com determinadas coisas,

vivendo no coletivo (Walquiria Rodrigues do Nascimento).

Se ser negro é difícil, ser “negro quilombola” pode ser ainda mais complicado,

devido, justamente, aos estigmas que essa noção pode carregar como classe minoritária.

Contudo, o negro quilombola surge como ator social intimamente conectado com uma

característica da noção histórica de quilombo: a resistência. Se os “senhores” mudam, a

resistência permanece a mesma. Versando sobre resistência e dificuldade de se afirmar,

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devido, justamente, às opressões históricas sofridas, não devemos deixar de elencar uma

das mais antigas formas de dominação do homem sobre o homem, na forma da opressão

do homem sobre a mulher (justamente pelo fato de uma ininteligível incompreensão do

“ser mulher”).

Na comunidade Ipiranga, há um forte processo de encaminhamento para a

autonomia da mulher. Através da formação da associação de moradores, a Associação

da Comunidade Negra do Ipiranga, estas descobrem os seus direitos e se propõem a

iniciar uma luta pela conquista destes. Conquistas tanto do ponto de vista familiar,

adquirindo a casa própria4, quanto pela questão dos direitos perante a “sociedade

masculina” (entendida aqui como um sistema de opressão sobre a mulher). Para Sales

(2007: 438), “ao ingressar em movimentos, as mulheres rurais criam possibilidades de

se afirmarem como portadoras de um saber-poder no campo da política, que lhes

proporcione também repensar seu cotidiano”.

Seguindo um histórico de lutas, elas “tornam-se” negras e, sobretudo, mulheres!

Logo, elas não se “tornam” mulheres negras como a sociedade vigente espera delas,

mas, essencialmente, como mulheres negras, dotadas de livre expressão e capacidade de

optar pelo o que querem. Para Touraine (2010: 27), “ser mulher não é a pura

constatação de um estado de fato, mas a afirmação de uma vontade de ser”, logo,

“definir-se como mulher significa colocar no centro da vida certo relacionamento para

consigo mesma e construir uma imagem de si como mulher”. Sobre este fato agora nos

deteremos.

4 “AS MULHERES COMANDAM”: A VOZ ATIVA E POLÍTICA DAS

MULHERES QUILOMBOLAS

Para todos os que participarem mais atenciosamente da vida da comunidade,

salta aos olhos a presença maciça de mulheres solteiras (muitas com filhos). Durante as

reuniões quinzenais da ACNI (Figura 1), as mulheres se fazem presentes, chegando aos

poucos, a passos lentos pela idade ou devido às crianças que carregam em seus colos. A

4 Na comunidade Ipiranga, muitas casas de alvenaria foram construídas através de programas do governo

federal. Estas casas, por sua vez, estão no nome das mulheres.

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própria gestão da ACNI, em seu corpo diretor, é constituída, principalmente, por

mulheres5.

Figura 1: Reunião quinzenal da Associação da Comunidade Negra do Ipiranga (ACNI). Foto: Darllan

Rocha.

Quando questionadas sobre esse fato, algumas pessoas possuem opiniões

diferentes, mas que, em parte, não se excluem. Primeiro, há a percepção de que as

mulheres participam mais na vida comunitária justamente porque há muitas mães

solteiras. Esta percepção foi proferida por um homem, durante uma entrevista-coletiva

com uma mulher (Walquiria Rodrigues do Nascimento). Durante este acontecimento,

esta mulher demonstrou um pouco de insatisfação, contra-argumentando que “é melhor

estar solteira, sozinha, cuidando dos meus filhos, que estar casada com fulano”6,

esclarecendo, logo em seguida, o seu ponto de vista:

Tem essa questão de dizer mãe solteira, mas tem essa questão também da

mulher assumir, de ir às reuniões, de ocupar os espaços.

Mais adiante, a interlocutora detalha mais a sua percepção/vivência:

5 No dia 9 de junho do corrente ano, a quarta gestão da ACNI foi eleita com 100% do seu corpo diretor

formado por mulheres. 6 Por mais de uma vez pude presenciar/participar de conversas nas quais tive conhecimento, inclusive

com relatos das próprias envolvidas, de separações conjugais por conta de atitudes opressoras contra elas.

As envolvidas, inclusive, tinham conhecimento da lei Maria da Penha.

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Eu acho que a mulher é que percebe mais os problemas. Ela vivencia

mais. Então, na medida que é ela que tem que correr atrás de buscar o

alimento, ela é que tem que gerenciar a renda da família, quando

tem alguma coisa de organizar, de ficar melhor, ela vai atrás mesmo.

Em busca dessa melhoria. Aqui, infelizmente, a gente tem uma

tradição, eu acho até que positiva, que as mulheres é que trabalham.

As mulheres aqui sustentam os homens.

Portanto, “a identidade que as mulheres afirmam (...) não é somente a rejeição da

dominação social, ela é, sobretudo, a afirmação da experiência vivida da própria

subjetividade que emergiu e, consequentemente, a confirmação da capacidade de

pensar, de agir, de esperar ou de sofrer por si mesma” (Touraine, 2010: 32).

Devido ao desinteresse dos homens, caberia às mulheres esperarem pelos

benefícios que almejam e, ainda por cima, sabendo que a sua voz seria emudecida,

silenciada pelo fato de serem mulheres? Não foi essa a resposta encontrada pelas

mulheres da comunidade Ipiranga, conforme percebemos no depoimento abaixo:

Os homens não tem esse interesse que as mulheres tem de lutar pelos

seus direitos. Através da Associação elas conheceram muitos

direitos que elas tinham mas não sabiam. Então elas foram

batalhar, correr atrás. Então só mulheres se interessam. Pra você ver

que as mulheres que lideram as suas casas. Não só as suas casas,

como a comunidade (Luzicleide Silva do Nascimento).

Com isto, concordo com Touraine (2010: 54) quando este afirma que “é para

elas mesmas que as mulheres se voltam e, se elas agem dessa forma, é antes de tudo

porque querem afirmar-se como sujeitos livres e responsáveis e não como produtos do

poder masculino”. Elas passam da consciência de objetos à consciência de sujeitos, em

um processo de construção de si que implica um certo amor para consigo mesma7. Esta

luta pelo processo de construção de si não deixa de ter o seu caráter político e, portanto,

situada em um “campo político”. Para tal, devemos visualizar o campo político ao

mesmo tempo “como campo de forças e como campo das lutas que têm vista a

transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado

momento” (Bourdieu, 2012a: 164). Como o campo político é perpassado pelas

desigualdades de gênero, percebemos a divisão dos ditos competentes e aqueles que

precisam ser representados. Como constatou Sales (2007: 438): “as mulheres sempre

7 Deixa-se de ser, nos dizeres de Touraine (2010), uma “mulher-para-o-outro” para se tornar uma

“mulher-para-ela-mesma”.

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estão incluídas entre os que precisam ser representados, entretanto, aquelas que estão

inseridas nos movimentos sociais têm demonstrado que as diferenças entre mulheres e

homens não podem afirmar falta de competência política das mulheres”. Essa formação,

portanto, ocorre no cotidiano, na luta contra tudo o que as assolam, em questões de

fonte de renda (seja através de recursos extrativistas, como a manga e a mangaba, ou a

partir da sua contratação como mão-de-obra) ou problemas relacionados à comunidade,

como o abastecimento de água ou a construção de casas. Aqui cabem considerações

sobre o que podemos considerar sobre uma “esfera pública” (na forma de uma vida

política) e uma “esfera privada” (na forma da unidade doméstica). Para Okin (2008):

Argumentos importantes nos debates contemporâneos dependem da

suposição de que questões públicas podem ser facilmente

diferenciadas de questões privadas, de que temos uma base sólida para

separar o pessoal do político. Algumas vezes explicitamente, mas

mais freqüentemente de maneira implícita, perpetua-se a idéia de

que essas esferas são suficientemente separadas, e suficientemente

diferentes, a ponto de o público ou o político poderem ser discutidos

de maneira isolada em relação ao privado ou pessoal (p.305: grifos

meu).

Se não devemos discutir isoladamente, em uma visão reducionista, o que é

considerado como público e privado, penso que, para tal, devemos reconhecer que

independente de qualquer categorização dicotômica, os processos que aí estão

envolvidos estão imersos em “relações de poder” (Foucault, 2011). Pensado nos moldes

do referido autor, o poder não deve ser visto como algo que pode ser localizado aqui ou

ali, mas que é exercido em rede, na qual não só indivíduos circulam, mas estão em

posição de serem submetidos ou de exercer esse poder. Recorrendo a Bourdieu (2012b:

8), o poder e, no seu caso, “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual

só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão

sujeitos ou mesmo que o exercem”. Para ter a sua eficácia, o “poder simbólico”

necessita da legitimidade por parte dos dominados, já que “o que faz o poder das

palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença

na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da

competência das palavras” (idem: 15). Logo, “simbolicamente votadas à resignação e à

discrição, as mulheres só podem exercer algum poder voltando contra o forte sua

própria força, ou aceitando se apagar, ou, pelo menos, negar um poder que elas só

podem exercer por procuração” (Bourdieu, 2011: 43).

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Quando as mulheres da comunidade Ipiranga começaram a não mais legitimar o

poder do qual elas eram submissas, passaram a ter sua voz ativa e política. Com esse

posicionamento, as mulheres conseguiram reverter, em alguns aspectos, a relação que

possuíam com homens:

É uma comunidade mais lidada com mulheres, as mulheres que

lideram. Tudo bem, o homem trabalha e às vezes coloca comida

dentro de casa, mas as mulheres é que mandam. Aqui em casa

mesmo, são 4 mulheres para um homem. Aí geral, as mulheres mais

é que mandam dentro de suas casas. É orgulho. Antigamente as

mulheres viviam embaixo dos pés dos homens, mas hoje mudou, a

situação reverteu. A maioria dos homens é que depende das

mulheres. Pelo menos aqui na comunidade é assim. Muitos homens

trabalham, sim! Mas quem comanda mais é as mulheres

(Luzicleide Silva do Nascimento).

Curiosamente, essa forma de agir acabou gerando um critério atributivo, por

parte de agentes externos, às mulheres das comunidades Ipiranga e Gurugi8. Por serem

reconhecidas como mulheres trabalhadoras, gera-se a impressão de que são boas

mulheres para se casar, já que os homens possuiriam uma fonte de renda (vinda da

mulher) e, ainda por cima, podendo ter relações extra-conjugais (talvez até como

necessidade para símbolo de masculinidade imposta), conforme entrevista abaixo:

Aaa, querer casar com uma mulher de Gurugi? Porque elas só prestam

pra levar cangaia e ainda sustenta o homem. Aí eu digo: ‘é, mas se

pegar uma besta! Porque se pegar uma mulher mesmo, a mulher

quebra o homem no pau e ainda pega a vadia que tiver com ele’.

Por parte dos homens, eles percebem que as mulheres são mais atuantes na

comunidade, mas não expressam a relação apresentada pelas mulheres sobre o fato

delas “comandarem”. Estes, por sua vez, pouco participam das reuniões quinzenais e,

segundo uma das entrevistadas, ainda possuem uma percepção negativa da reunião,

conforme depoimento abaixo:

Eles pensam que é besteira. Que a gente se reúne lá pra falar da vida

dos outros (Luzicleide).

8 Gurugi também é uma comunidade remanescente de quilombo vizinha à comunidade Ipiranga. Suas

histórias se cruzam, sejam nos personagens que atuaram nos conflitos agrários ou através dos laços de

parentesco próximos entre as famílias, gerando a percepção, por parte dos moradores, de que “tudo é uma

família só”.

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Até agora, vimos brevemente como os moradores da comunidade Ipiranga vão

consolidando a sua identidade étnica, através da escolha de sinais manuseados em

contextos políticos. No caso das mulheres, percebemos como a formação da associação

dos moradores9 teve importância para a inserção da mulher no campo político, de luta

pelos seus direitos. À guisa de conclusão, trago, brevemente, três exemplos da inserção

das mulheres no histórico da comunidade.

Foi com os pés e não voltou: o caso de Bila e a luta pelas terras

Como muitas histórias de pequenas comunidades que são alijadas de seus

territórios, o município do Conde foi marcado por intensos conflitos agrários, que

geraram a formação de alguns assentamentos de reforma agrária. A luta pela

desapropriação da fazenda Gurugi e Barra de Gramame, na época, posses dos irmãos

Nilson e Nelson Pimentel, envolveu os moradores tanto da comunidade Ipiranga quanto

da comunidade Gurugi, seja pelo fato de que ambas usufruíam das mesmas terras,

quanto pelo fato das ligações parentais que auxiliavam nos vínculos de ajuda pela luta.

Em março de 1989, após o assassinato de Zé de Lela, morador de Gurugi, nova

tragédia se abate sobre Gurugi II. No dia 30, cerca de 70 agricultores de várias

comunidades, além de Gurugi, foram ao Fórum de Alhandra com o objetivo de

prestarem queixa ao juiz da comarca Antônio Leobaldo Monteiro, de que o Zequinha,

mesmo com prisão preventiva decretada, era visto constantemente no sítio Gurugi

ameaçando os agricultores (Moreira, 1997: 104). Nesta ocasião, o tio de Zequinha,

chamado Severino Mariano, também conhecido por “Biu Mariano”, lançou sobre os

agricultores uma camioneta D-10. Em seguida, este desce e passa a atirar à queima-

roupa nas pessoas atropeladas, ainda voltando ao carro e tornando a passá-lo sobre as

pessoas caídas (ibidem). Vinte e duas pessoas ficaram feridas (inclusive duas crianças,

uma de 5 meses) e uma foi morta. A moradora que veio a falecer chamava-se Severina

Rodrigues de França, mais conhecida por “Bila”, de 55 anos, mãe de 12 filhos10

. O

acontecimento teve grande repercussão na região, sendo veiculado por jornais locais

(Figura 2).

Só em 19 de junho de 1990 é que a imissão de posse, como lote de reforma

agrária, ocorreu para os agricultores e agricultoras.

9 A formação de uma associação de moradores é exigência para o encaminhamento visando à obtenção da

certidão de auto-reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo pela Fundação Cultural

Palmares. 10

Alguns de seus filhos residem na comunidade Ipiranga.

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Figura 2: À esquerda: cartaz-denúncia sobre a morte de Bila e Zé de Lela, moradores envolvidos na luta

pela terra; À direita: Página de jornal local que veiculou a notícia da “chacina de Alhandra”, onde Bila

foi assassinada.

Coco-de-roda

O coco-de-roda, como manifestação artístico-cultural, reúne um misto de dança,

música e formas de comunicação respaldadas em uma “memória coletiva” que não

exclui as ressignificações do presente. É apresentado como emblema de tradição

herdada dos antepassados, com mais de 200 anos, segundos as interlocutoras.

Atualmente, o coco-de-roda é conduzido, principalmente, por uma família que se

desdobra em três mulheres: Lenita Lina, reconhecida pelo Ministério da Cultura, Ana

Rodrigues (sua filha) e Lenira (sua irmã).

Ao observar o coco-de-roda, podemos notar que alguns participantes utilizam

vestimentas semelhantes. Destacam-se, sobretudo, as mulheres e as suas saias, com

estampas de flores ou à semelhança de retalhos (também com flores), explodindo em

cores a cada vez que uma participante dança no centro da roda (Figura 3). Longe de ser

uma mera coincidência ou uma simples padronização para apresentação do grupo,

encontramos um motivo específico para tal fato.

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Em conversa informal com Ana, esta informou que certa vez fez uma saia

totalmente branca para utilizar durante os cocos. Sua mãe Lenita, ao ver a saia, afirma

que esta deveria ser florida. Os tecidos utilizados para as roupas, antigamente, eram de

baixa qualidade, chamados de “chita”. As roupas de “chita” tornavam-se uma espécie de

critério de reconhecimento de indivíduos com baixa renda. As estampas coloridas do

tecido de “chita” permanece e sobrevive, nas saias do coco-de-roda, como um critério

de reconhecimento, mas não de pessoas consideradas pobres, mas de quilombolas que

possuem o coco-de-roda como “tradição ancestral”.

Figura 3: À esquerda: duas integrantes da comunidade dançam no centro da roda, com as suas saias

floridas. À direita: Ana distribui as saias floridas para algumas crianças

Da mesma forma que as músicas podem contribuir para um processo de um

resgate de uma identidade étnica ligada à resistência de uma opressão histórica sofrida,

elas retratam a resistência do trabalhador, mais especificamente, do agricultor, do povo

do campo, de indivíduos que eram donos da terra e que passaram a serem moradores,

expropriados, ao longo dos anos, de terrenos que eram, historicamente, de seus

antepassados. Contudo, mesmo com esse processo de opressão sofrida, a resistência por

parte desses moradores foi mantida, constituindo, desta forma, a possibilidade de pensar

o “novo” conceito de quilombo, ligado não a um processo estritamente de fuga de

escravos, mas de resistência de indivíduos perante uma sociedade que procurou tirar os

seus direitos (mesmo que poucos ou quase nenhum, como os relatos indicam). Nesse

sentido, o coco-de-roda pode ter funcionado como uma resistência, tanto pelo fato de

guardar, em suas letras, essa opressão sofrida, como pelo fato de servir como uma

“brincadeira”, uma diversão para esquecer do sofrimento e das agruras de uma vida de

labuta. Neste sentido, destaco a seguinte canção:

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Lengo, tengo, lengo, tengo

Eu morro de trabalhar

De dia to na enxada

De noite vou batucar

Manga e mangaba

Utilizando a terra e significando-a como território, os moradores utilizam

recursos que estão disponíveis aos mesmos em algumas épocas do ano. Alguns destes

recursos estão localizados no que antigamente era chamada “terra do comum”.

Inicialmente, nos deteremos na extração da manga e da mangaba.

Mangueiras e mangabeiras são árvores frutíferas facilmente encontradas em

todos os trechos da comunidade. São duas frutas que são coletadas e comercializadas

nas feiras e, até mesmo, às margens da PB-018. Historicamente, essa atividade é

realizada principalmente pelas mulheres e, segundo consta, consistiu na principal fonte

de renda de muitas famílias.

Mas se antes, segundo nos contaram, “tudo era escuro” (devido às várias

mangueiras nos caminhos que proporcionavam sombreamento) e “não pisava no chão

de manga” (por existirem muitas mangueiras, vários frutos ficavam caídos no chão),

atualmente e em comparação ao que era antes, as mangueiras não são tão abundantes.

Os moradores contam que as mangueiras, há cerca de 10 anos, começaram a apresentar

uma doença conhecida por eles como “Mal-do-Recife”. Essa doença atinge as

mangueiras, secando-as e ocasionando a morte destas.

Com relação às mangabas, estas não são cultivadas nos quintais dos moradores,

mas encontradas nas antigas “terra do comum”. Atualmente, essas terras são

propriedades particulares nos quais os seus donos impedem o acesso dos moradores

para a extração da mangaba

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do trabalho, visualizamos, brevemente, como uma exigência jurídica

para o reconhecimento étnico como comunidade quilombola acabou por propulsionar

um processo de afirmação das mulheres em seu espaço social. Desta forma, percebemos

Cantador (a)

Coro

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que, se a cultura é dinâmica e os significados são reavaliados na prática, os moradores

da comunidade Ipiranga colheram os seus “antigos valores” para a constituição de uma

identidade diferenciada da população circundante. Justamente por ser dinâmica, o

significado de quilombo passa a ser modificado, ressignificado para os moradores.

Se a inserção das mulheres no processo de luta antecedeu, em parte, o

reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo, nem por isto devemos

deixar de levar em consideração que o reconhecimento como grupo étnico contribuiu

para o processo de formação delas. A partir da inserção das mulheres na luta dos

movimentos sociais (e o caso quilombola aqui não é excluído), estas tomam

conhecimento dos seus direitos e partem para conquistá-los.

Posicionando-se contra os agentes sociais que a oprimem, como por exemplo, o

proprietário particular de terras, as questões de moradia, emprego e renda para a família,

a dificuldade em se afirmarem como mulheres negras não se sobrepõem. Pelo contrário,

estas acabam por utilizar a sua afirmação identitária como bandeira a ser levantada em

sua marcha por respeito, dignidade, oportunidade e, acima de tudo, pelo direito de

serem “mulheres negras quilombolas”, rompendo a cultura do silêncio que lhes é

imposta.

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