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MULHERES QUE OUSAM LUTAR:
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE COMO MULHER QUILOMBOLA1
Nivaldo Aureliano Léo Neto*
“A gente vai com os pés, mas não sabe se volta”
Bila
Resumo
No município do Conde, litoral sul do Estado da Paraíba, no ano de 2006, uma
comunidade negra obtém sua certidão de auto-reconhecimento como comunidade
remanescente de quilombo, intitulada Ipiranga. Este trabalho tomou como fio condutor
conceitos teóricos e instrumentos metodológicos próprios à antropologia, que dão conta
dos fenômenos de emergência étnica, juntamente com as relações inter-étnicas inclusas
em um campo intersocietário. Na comunidade Ipiranga, as mulheres possuem um
importante papel na organização sócio-política, seja pelo seu histórico de lutas pela
terra, por conduzirem a manifestação cultural do coco-de-roda, pela direção da
associação de moradores ou simplesmente pela luta diária em sustentar a sua família, já
que a maioria destas são mães solteiras. Seguindo um histórico de lutas, elas “tornam-
se” negras e, sobretudo, mulheres, dotadas de livre expressão e capacidade de optar pelo
o que querem. Ser mulher não é a pura constatação de um estado de fato, mas a
afirmação de uma vontade de ser, de serem portadoras de uma voz ativa e política que
as permitem lidarem com as suas próprias vidas. Elas passam da consciência de objetos
(mulher-para-o-outro) à consciência de sujeitos (mulher-para-ela-mesma), em um
processo de construção de si que implica certo amor para consigo mesma.
Palavras-chave: Etnicidade, negras, identidade, política.
1 INTRODUÇÃO
A partir do Decreto nº4887, de 20 de novembro de 2003, Art.2º, consideram-se
remanescentes das comunidades dos quilombos “os grupos étnico-raciais, segundo
critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida”. O critério de auto-atribuição também pode ser
encontrado na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. Logo, a primeira
demanda para o reconhecimento destas populações não parte do Estado, mas do
reconhecimento de uma identidade diferenciada pelos próprios sujeitos sociais que
assim a reivindicam. Nos moldes de Weber (1994), uma “consciência étnica”, o
1 Este trabalho faz referência ao laudo antropológico que é elaborado pelo autor, como peça fundamental
para o Relatório de Identificação e Delimitação Territorial (RTID) da comunidade remanescente de
quilombo Ipiranga, município do Conde, considerando o contrato CTR/PB05/2012, pela empresa
Demacamp (sede em Campinas-SP). * Mestre em Ciências Sociais – Universidade Federal de Campina Grande. Laboratório de Estudos em
Movimentos Étnicos – LEME. E-mail: [email protected]
sentimento de pertencimento a uma comunidade étnica, organizada de uma forma
política, juntamente com o “sentimento de ser diferente” (aqui podendo ser entendida
como identidade diferenciada), resultando em uma “comunhão” desses indivíduos que
se uniriam e se organizariam socialmente/politicamente.
Reconhecendo a essas comunidades o direito a terra como direito “ancestral”,
estes sujeitos tornar-se-iam “sujeitos históricos” e aqui poderíamos incorrer no erro de
presumir que os quilombos de antigamente (aqui definidos como “quilombos
históricos”) são os mesmos quilombos que podemos encontrar na atualidade. Para Leite
(2000), “falar dos quilombos e dos quilombolas no cenário político atual é, portanto,
falar de uma luta política e, consequentemente, uma reflexão científica em processo de
construção”. O termo “quilombo”, até recentemente, era de uso quase exclusivo de
historiadores que, por meio da documentação disponível ou inédita, procuravam
construir novas abordagens e interpretações sobre o passado como nação (O’Dwyer,
2002). Tal termo, portanto, deve ser ressemantizado, procurando discutir não o que foi o
quilombo, mas sim discutir como essa autonomia foi sendo construída historicamente,
logo, considerando o que ele é no presente (Almeida, 2002). O quilombo surge como
uma forma de organização, de luta, de espaço conquistado e mantido através das
gerações (Leite, 2000).
Se a fundamentação da definição de um quilombo torna-se inoperante a partir do
binômio fuga/resistência (fuga aqui entendida em um período histórico no qual os
escravos fugiam dos “seus senhores”), o termo resistência pode nos ser útil para a
presente análise. Resistir torna-se a pedra de toque para a afirmação étnica destes
indivíduos: resistir contra as questões de desemprego, à discriminação racial, contra a
posse indevida das terras que ocupam, entre outras. Apesar do discurso oficial que
defende uma identidade brasileira suprarracial, ignorando o status marginal da
população negra, os negros brasileiros – especialmente as mulheres negras – continuam
a sofrer discriminação, sendo que a opinião pública brasileira raramente reconhece ou
critica os mecanismos sociais que reforçam essa discriminação (Reichmann, 1995).
Acabamos por colher os frutos plantados pelos colonizadores europeus, a partir de uma
visão eurocêntrica (supremacia do branco) e androcêntrica, gerando opressão e
traduzida em racismo, discriminação sexual e social. Portanto, qualquer análise sobre a
opressão da qual a mulher sofre, deve prezar pelo enfoque histórico e material,
permitindo, desta forma, a desnaturalização da subordinação.
Ao longo do texto, pretendo demonstrar como as mulheres da comunidade
remanescente de quilombo Ipiranga, localizada no município do Conde, Estado da
Paraíba, articulam a sua identidade enquanto negra quilombola e, concomitantemente,
se posicionam como atrizes sociais no processo de afirmação de sua constituição
enquanto mulheres.
Este trabalho faz referência ao laudo antropológico que realizado por mim, como
peça fundamental para o Relatório de Identificação e Delimitação Territorial (RTID) da
comunidade remanescente de quilombo Ipiranga, município do Conde, considerando o
contrato CTR/PB05/2012, pela empresa Demacamp (sede em Campinas-SP). Foram os
meus interlocutores nove mulheres e três homens.
2 APRESENTANDO: A COMUNIDADE IPIRANGA
A comunidade Ipiranga está localizada entre a cidade do Conde e a cidade de
Jacumã, às margens da PB 018. Esta mesma rodovia faz o limite das comunidades
Ipiranga, Gurugi I e Gurugi II. Possui estabelecimentos comerciais próximo às
comunidades: bares, padarias, pequenos mercados, lojas de roupas e barracas que
vendem frutas da região, tais como manga, mangaba e jaca. Estes estabelecimentos
constituem uma fonte de renda para os moradores da região, que aproveitam,
majoritariamente, o fluxo turístico que se dirige às praias do litoral sul, tal como
Jacumã, e que por ali passam. Fato que com a construção da PB-008, o movimento
diminuiu de forma considerável. O deslocamento até a comunidade (e desta para
cidades próximas, tais como Conde e João Pessoa) pode ser realizado, basicamente, de
duas formas: através de ônibus que executam este serviço e os chamados “alternativos”,
carros de particulares que, após preencherem todas as vagas, executam o mesmo
itinerário dos ônibus.
Os moradores obtiveram a certidão de auto-reconhecimento, emitida pela
Fundação Cultural Palmares (FCP), no dia 8 de setembro de 2006. Data de 22 de abril
de 2006 a primeira assembléia geral para a constituição da Associação da Comunidade
Negra do Ipiranga (ACNI), com o propósito de iniciar o processo de eleição e
constituição da diretoria da respectiva associação.
3 “SOU QUILOMBOLA! SOU MULHER!”: A CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE COMO QUILOMBOLA
O critério de auto-reconhecimento da comunidade como remanescente de
quilombo pode suscitar, dentre os defensores de certas correntes teóricas e sujeitos
sociais contrários aos interesses destas comunidades, dúvidas quanto ao critério de
legitimidade de sua identificação étnica. Ao invés de se pensar estas sociedades como
portadoras de uma cultura determinada (o que, para algumas correntes teóricas, seria
decisivo para um grupo étnico), prezo por um reconhecimento embasado em sua
organização social, tal como proposto por Barth (1969). Para este autor, os grupos
étnicos, através de sua organização social, selecionariam os elementos culturais que
seriam manuseados e expostos como sinais diferenciadores (i.e., sinais diacríticos) e de
estabelecimento das fronteiras (exclusivas e inclusivas), em um processo de
dicotomização entre membros e não-membros, do tipo nós/eles. Portanto, em vez de ser
pressuposto de um grupo étnico, a cultura seria, de certa maneira, produto deste.
Porém, já que a cultura é adquirida e não biologicamente dada, também poderia
ser perdida, e logo inventou-se o conceito de aculturação, sendo possível pensar na
perda da diversidade cultural (Cunha, 1986). Por sua vez, esta perspectiva é
insatisfatória para se pensar os movimentos étnicos, tendo em vista que as culturas são
fluidas e dinâmicas e, portanto, passam por processos de “hibridizações” (Canclini,
2008) através de uma rede de “fluxos, trocas e aquisições” (Hannerz, 1997). Para Mota
(2007), “a identidade étnica é construída sobre sistemas culturais e ideologias, tendo
pouco a ver com traços biológicos”. Contudo, a “questão do sangue” (Reesink, 1999)
pode ser manuseada pelos atores sociais, o que nos leva às construções sociais sobre a
noção de “raça”. As identidades, portanto, estariam embasadas em um dispositivo
discursivo, não sendo coisas com as quais nós nascemos, mas formadas e transformadas
no interior da representação (Hall, 2003).
Procurando resgatar antigos valores encontrados na memória das gerações mais
antigas, os indivíduos colhem os significados que comporão o arcabouço da sua
identidade. A geração mais antiga, atuando como os “guardiões da tradição” (Giddens,
2005), ajudaram a resgatar o passado histórico da comunidade que, por sua vez, auxiliou
no auto-reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo.
Analisando o caso dos índios do Nordeste, Pacheco de Oliveira (1999) considera
que não podemos supor ou reforçar a crença de que os habitantes de uma dada
sociedade indígena, atualmente, seriam anteriores à constituição da nação brasileira.
Lançando mão das considerações teóricas desse autor, podemos visualizar que as
comunidades se modificam ao longo do tempo, já que lidamos com uma cultura
dinâmica ao invés de estática, estruturada e imutável ao longo do tempo. Portanto, para
compreendermos melhor o fenômeno da formação de uma identidade quilombola para
os moradores da comunidade Ipiranga, devemos ter em mente que, tal como as
formulações de Sahlins (1990: 7), “a história é ordenada culturalmente de diferentes
modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas”,
sendo o contrário também verdadeiro “esquemas culturais são ordenados historicamente
porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na
prática”. Portanto, cultura e identidade estariam em fluxo constante, não sendo estáveis
e concedidas, mas fluidas e mais ou menos construídas de forma consciente (Kuper,
2002: 270).
A cultura (e aqui poderíamos colocar também a noção de identidade) seria
justamente a organização da situação atual em termos do passado (Sahlins, 1990:192),
mesmo que este passado seja construído, “imaginado” historicamente (Comaroff e
Comaroff, 1992) e por que não simbolicamente, ou até mesmo tendo como base uma
tradição inventada (Hobsbawm, 2008). Nesta perspectiva, conforme já alertara
Grünewald (1999), qualquer enfoque respaldado sobre uma oposição passado/presente
não teria sentido, sendo mais lógico nos voltarmos para a estrutura da conjuntura, que
para Sahlins (1990:15), seria “a realização prática das categorias culturais em um
contexto histórico específico, assim como se expressa nas ações motivadas dos agentes
históricos, o que inclui a microssociologia de sua interação”. Como passado
“imaginado” historicamente, compreendo o fato das comunidades elaborarem novas
identidades colhendo antigos. Portanto, seguindo os pressupostos de uma “etnografia da
imaginação histórica” (Comaroff e Comaroff, 1992), a tarefa consiste em:
estabelecer como as identidades coletivas são construídas e tomadas
em seu contexto cultural particular; como elas tornam-se reais,
essenciais, qualidades personificadas para aqueles que vivem-nas;
como elas tornam-se átomos naturais da existência social (Comaroff e
Comaroff, 1992: 44, tradução minha).
Investigando a ocupação histórica da região, encontramos registros de índios da
etnia Tabajara2. Se este passado não é reivindicado como atributo de uma identidade
étnica pelos atuais moradores da comunidade, nem por isto torna-se de menor
2 Como atesta o “Relatório de fundamentação antropológica para caracterizar a ocupação territorial dos
Tabajara no Litoral Sul da Paraíba”, Instrução Técnica Executiva nº 34/DAF/2009, elaborado por Fábio
Mura, João Martinho Braga de Mendonça, Estêvão Martins Palitot, Henrique Sampaio, Amanda Marques
e Aline Paixão.
importância, tanto para a atual afirmação enquanto quilombola como pelo fato
constituinte de traço histórico de Ipiranga. Se os antigos moradores comentaram que os
pais nunca falaram nada sobre quilombos e quilombolas, mas sim sobre a presença de
índios e caboclos, temos várias nuances de uma subjetividade entremeada por aparatos
jurídico-políticos. Em uma primeira análise, se as gerações anteriores não passaram
nada às atuais gerações (mais antigas da comunidade, por sua vez) sobre o fato de serem
quilombolas ou de existir um quilombo na região, isto não quer dizer que nada sabiam
sobre este fato.
O início do declínio da escravidão na capitania da Parahyba ocorreu por volta de
1850. Contudo, o vulto da escravidão não deixava de assolar as casas e as mentes dos
moradores, inclusive dos chamados “homens livre pobres”, pois estes, na constituição
do seu trabalho, não queriam ser identificados como escravos e, tampouco, perderem a
sua liberdade (Medeiros e Sá, 1999). Qualquer informação que remetesse a presença de
negros fugidos, nessa época, poderia acarretar em mudanças na região, por causa das
forças policiais. Aliado a isto, não devemos desconsiderar o fato de que, antigamente, os
mais velhos não permitiam que os mais jovens participassem das conversas, sequer
passassem por perto quando adultos estivessem reunidos3. Muito se “perdeu”, conforme
os interlocutores afirmam. Mas, principalmente, devemos ter em mente que a categoria
hoje reconhecida como “quilombo/quilombola” assume outras significações, conforme
demonstrado no início deste trabalho. Mais uma vez, se as gerações anteriores não
comentavam nada sobre serem quilombolas, talvez isso se deva simplesmente ao fato de
que, na época, quilombo significava, estritamente, uma “reunião de negros fugidos”.
Com a ressignificação dessa categoria e, por sua vez, direitos assegurados pela
Constituição Federal de 1988, através do artigo 68, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), os atores sociais passaram a estabelecer outras
formas de conexão com o seu passado e consolidação de uma identidade étnica.
De acordo com os interlocutores, a terra do “Sítio Piranga” deveria ser
respeitada, pois era “terra de caboclo”. Mesmo que o caboclo seja elencado, na noção
clássica, como um indivíduo gerado da miscigenação entre o índio e o negro,
aparentemente, dentro da comunidade, funda-se mais a noção do caboclo próximo ao
3 Este fato foi elencado inúmeras vezes durante as entrevistas, chegando-se a comparar a situação atual
com a vivenciada antigamente. Algumas informações (algumas delas, por sinal, apenas remetendo ao
conhecimento de nomes de pessoas) adquiridas nessa época, eram escutadas pelas crianças (hoje a
geração mais antiga) que se escondiam dos adultos.
índio. No depoimento abaixo, também podemos visualizar a construção da categoria
“moreno(a)”, conforme exposto anteriormente:
Aqui nasci, aqui me criei. Meu pai nascido e criado aqui também. Um
caboclo, um caboclo não...era um moreno. Bem moreno. Trabalhava
na agricultura. Minha mãe também (Joana Rodrigues da Silva).
O caboclo surge como um construto social no qual podem ser visualizados
critérios de estabelecimento de “fronteiras étnicas” (Barth, 1969), com o seu caráter de
inclusão e exclusão. Se a figura do índio é “inexistente” na memória das pessoas mais
antigas, esta emerge, principalmente, na figura do caboclo.
Em suma, mesmo que se reconheça a presença (histórica, inclusive) de índios e
caboclos na região, os atuais moradores da comunidade Ipiranga não utilizaram este
fator como a pedra de toque para a sua afirmação étnica. Outros critérios foram
percebidos/manuseados, tais como a posse da terra (na modalidade de “terra de
herdeiro”) e características fenotípicas, a semelhança de “raça”. Mas qual seria o motivo
de alguns interlocutores não utilizarem recorrentemente, o que poderia ser esperado de
nossa parte, a identidade de quilombola? Mais especificamente, quais seriam os motivos
que poderiam levar alguns moradores a utilizarem a categoria “moreno(a)” ao invés de
“negro(a)”?
É difícil ser negro em nosso país, tão marcado pelos grilhões da escravidão,
carregando o estigma de ter sido o último país a declarar sua e, contudo, ainda continuar
com regimes de escravidão ou semi-escravidão. Os anos passam, leis são promulgadas,
mas a forma de dominação continua, praticamente, a mesma, apenas muda quem são os
“senhores”. O depoimento abaixo demonstra um pouco da dificuldade encontrada de se
assumir enquanto negro:
Se assumir negro não é muito fácil não gente. Tem pessoas que diz
assim, que a gente não nasce negro, se torna negro a partir do
momento em que vai se identificando com determinadas coisas,
vivendo no coletivo (Walquiria Rodrigues do Nascimento).
Se ser negro é difícil, ser “negro quilombola” pode ser ainda mais complicado,
devido, justamente, aos estigmas que essa noção pode carregar como classe minoritária.
Contudo, o negro quilombola surge como ator social intimamente conectado com uma
característica da noção histórica de quilombo: a resistência. Se os “senhores” mudam, a
resistência permanece a mesma. Versando sobre resistência e dificuldade de se afirmar,
devido, justamente, às opressões históricas sofridas, não devemos deixar de elencar uma
das mais antigas formas de dominação do homem sobre o homem, na forma da opressão
do homem sobre a mulher (justamente pelo fato de uma ininteligível incompreensão do
“ser mulher”).
Na comunidade Ipiranga, há um forte processo de encaminhamento para a
autonomia da mulher. Através da formação da associação de moradores, a Associação
da Comunidade Negra do Ipiranga, estas descobrem os seus direitos e se propõem a
iniciar uma luta pela conquista destes. Conquistas tanto do ponto de vista familiar,
adquirindo a casa própria4, quanto pela questão dos direitos perante a “sociedade
masculina” (entendida aqui como um sistema de opressão sobre a mulher). Para Sales
(2007: 438), “ao ingressar em movimentos, as mulheres rurais criam possibilidades de
se afirmarem como portadoras de um saber-poder no campo da política, que lhes
proporcione também repensar seu cotidiano”.
Seguindo um histórico de lutas, elas “tornam-se” negras e, sobretudo, mulheres!
Logo, elas não se “tornam” mulheres negras como a sociedade vigente espera delas,
mas, essencialmente, como mulheres negras, dotadas de livre expressão e capacidade de
optar pelo o que querem. Para Touraine (2010: 27), “ser mulher não é a pura
constatação de um estado de fato, mas a afirmação de uma vontade de ser”, logo,
“definir-se como mulher significa colocar no centro da vida certo relacionamento para
consigo mesma e construir uma imagem de si como mulher”. Sobre este fato agora nos
deteremos.
4 “AS MULHERES COMANDAM”: A VOZ ATIVA E POLÍTICA DAS
MULHERES QUILOMBOLAS
Para todos os que participarem mais atenciosamente da vida da comunidade,
salta aos olhos a presença maciça de mulheres solteiras (muitas com filhos). Durante as
reuniões quinzenais da ACNI (Figura 1), as mulheres se fazem presentes, chegando aos
poucos, a passos lentos pela idade ou devido às crianças que carregam em seus colos. A
4 Na comunidade Ipiranga, muitas casas de alvenaria foram construídas através de programas do governo
federal. Estas casas, por sua vez, estão no nome das mulheres.
própria gestão da ACNI, em seu corpo diretor, é constituída, principalmente, por
mulheres5.
Figura 1: Reunião quinzenal da Associação da Comunidade Negra do Ipiranga (ACNI). Foto: Darllan
Rocha.
Quando questionadas sobre esse fato, algumas pessoas possuem opiniões
diferentes, mas que, em parte, não se excluem. Primeiro, há a percepção de que as
mulheres participam mais na vida comunitária justamente porque há muitas mães
solteiras. Esta percepção foi proferida por um homem, durante uma entrevista-coletiva
com uma mulher (Walquiria Rodrigues do Nascimento). Durante este acontecimento,
esta mulher demonstrou um pouco de insatisfação, contra-argumentando que “é melhor
estar solteira, sozinha, cuidando dos meus filhos, que estar casada com fulano”6,
esclarecendo, logo em seguida, o seu ponto de vista:
Tem essa questão de dizer mãe solteira, mas tem essa questão também da
mulher assumir, de ir às reuniões, de ocupar os espaços.
Mais adiante, a interlocutora detalha mais a sua percepção/vivência:
5 No dia 9 de junho do corrente ano, a quarta gestão da ACNI foi eleita com 100% do seu corpo diretor
formado por mulheres. 6 Por mais de uma vez pude presenciar/participar de conversas nas quais tive conhecimento, inclusive
com relatos das próprias envolvidas, de separações conjugais por conta de atitudes opressoras contra elas.
As envolvidas, inclusive, tinham conhecimento da lei Maria da Penha.
Eu acho que a mulher é que percebe mais os problemas. Ela vivencia
mais. Então, na medida que é ela que tem que correr atrás de buscar o
alimento, ela é que tem que gerenciar a renda da família, quando
tem alguma coisa de organizar, de ficar melhor, ela vai atrás mesmo.
Em busca dessa melhoria. Aqui, infelizmente, a gente tem uma
tradição, eu acho até que positiva, que as mulheres é que trabalham.
As mulheres aqui sustentam os homens.
Portanto, “a identidade que as mulheres afirmam (...) não é somente a rejeição da
dominação social, ela é, sobretudo, a afirmação da experiência vivida da própria
subjetividade que emergiu e, consequentemente, a confirmação da capacidade de
pensar, de agir, de esperar ou de sofrer por si mesma” (Touraine, 2010: 32).
Devido ao desinteresse dos homens, caberia às mulheres esperarem pelos
benefícios que almejam e, ainda por cima, sabendo que a sua voz seria emudecida,
silenciada pelo fato de serem mulheres? Não foi essa a resposta encontrada pelas
mulheres da comunidade Ipiranga, conforme percebemos no depoimento abaixo:
Os homens não tem esse interesse que as mulheres tem de lutar pelos
seus direitos. Através da Associação elas conheceram muitos
direitos que elas tinham mas não sabiam. Então elas foram
batalhar, correr atrás. Então só mulheres se interessam. Pra você ver
que as mulheres que lideram as suas casas. Não só as suas casas,
como a comunidade (Luzicleide Silva do Nascimento).
Com isto, concordo com Touraine (2010: 54) quando este afirma que “é para
elas mesmas que as mulheres se voltam e, se elas agem dessa forma, é antes de tudo
porque querem afirmar-se como sujeitos livres e responsáveis e não como produtos do
poder masculino”. Elas passam da consciência de objetos à consciência de sujeitos, em
um processo de construção de si que implica um certo amor para consigo mesma7. Esta
luta pelo processo de construção de si não deixa de ter o seu caráter político e, portanto,
situada em um “campo político”. Para tal, devemos visualizar o campo político ao
mesmo tempo “como campo de forças e como campo das lutas que têm vista a
transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado
momento” (Bourdieu, 2012a: 164). Como o campo político é perpassado pelas
desigualdades de gênero, percebemos a divisão dos ditos competentes e aqueles que
precisam ser representados. Como constatou Sales (2007: 438): “as mulheres sempre
7 Deixa-se de ser, nos dizeres de Touraine (2010), uma “mulher-para-o-outro” para se tornar uma
“mulher-para-ela-mesma”.
estão incluídas entre os que precisam ser representados, entretanto, aquelas que estão
inseridas nos movimentos sociais têm demonstrado que as diferenças entre mulheres e
homens não podem afirmar falta de competência política das mulheres”. Essa formação,
portanto, ocorre no cotidiano, na luta contra tudo o que as assolam, em questões de
fonte de renda (seja através de recursos extrativistas, como a manga e a mangaba, ou a
partir da sua contratação como mão-de-obra) ou problemas relacionados à comunidade,
como o abastecimento de água ou a construção de casas. Aqui cabem considerações
sobre o que podemos considerar sobre uma “esfera pública” (na forma de uma vida
política) e uma “esfera privada” (na forma da unidade doméstica). Para Okin (2008):
Argumentos importantes nos debates contemporâneos dependem da
suposição de que questões públicas podem ser facilmente
diferenciadas de questões privadas, de que temos uma base sólida para
separar o pessoal do político. Algumas vezes explicitamente, mas
mais freqüentemente de maneira implícita, perpetua-se a idéia de
que essas esferas são suficientemente separadas, e suficientemente
diferentes, a ponto de o público ou o político poderem ser discutidos
de maneira isolada em relação ao privado ou pessoal (p.305: grifos
meu).
Se não devemos discutir isoladamente, em uma visão reducionista, o que é
considerado como público e privado, penso que, para tal, devemos reconhecer que
independente de qualquer categorização dicotômica, os processos que aí estão
envolvidos estão imersos em “relações de poder” (Foucault, 2011). Pensado nos moldes
do referido autor, o poder não deve ser visto como algo que pode ser localizado aqui ou
ali, mas que é exercido em rede, na qual não só indivíduos circulam, mas estão em
posição de serem submetidos ou de exercer esse poder. Recorrendo a Bourdieu (2012b:
8), o poder e, no seu caso, “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual
só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão
sujeitos ou mesmo que o exercem”. Para ter a sua eficácia, o “poder simbólico”
necessita da legitimidade por parte dos dominados, já que “o que faz o poder das
palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença
na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da
competência das palavras” (idem: 15). Logo, “simbolicamente votadas à resignação e à
discrição, as mulheres só podem exercer algum poder voltando contra o forte sua
própria força, ou aceitando se apagar, ou, pelo menos, negar um poder que elas só
podem exercer por procuração” (Bourdieu, 2011: 43).
Quando as mulheres da comunidade Ipiranga começaram a não mais legitimar o
poder do qual elas eram submissas, passaram a ter sua voz ativa e política. Com esse
posicionamento, as mulheres conseguiram reverter, em alguns aspectos, a relação que
possuíam com homens:
É uma comunidade mais lidada com mulheres, as mulheres que
lideram. Tudo bem, o homem trabalha e às vezes coloca comida
dentro de casa, mas as mulheres é que mandam. Aqui em casa
mesmo, são 4 mulheres para um homem. Aí geral, as mulheres mais
é que mandam dentro de suas casas. É orgulho. Antigamente as
mulheres viviam embaixo dos pés dos homens, mas hoje mudou, a
situação reverteu. A maioria dos homens é que depende das
mulheres. Pelo menos aqui na comunidade é assim. Muitos homens
trabalham, sim! Mas quem comanda mais é as mulheres
(Luzicleide Silva do Nascimento).
Curiosamente, essa forma de agir acabou gerando um critério atributivo, por
parte de agentes externos, às mulheres das comunidades Ipiranga e Gurugi8. Por serem
reconhecidas como mulheres trabalhadoras, gera-se a impressão de que são boas
mulheres para se casar, já que os homens possuiriam uma fonte de renda (vinda da
mulher) e, ainda por cima, podendo ter relações extra-conjugais (talvez até como
necessidade para símbolo de masculinidade imposta), conforme entrevista abaixo:
Aaa, querer casar com uma mulher de Gurugi? Porque elas só prestam
pra levar cangaia e ainda sustenta o homem. Aí eu digo: ‘é, mas se
pegar uma besta! Porque se pegar uma mulher mesmo, a mulher
quebra o homem no pau e ainda pega a vadia que tiver com ele’.
Por parte dos homens, eles percebem que as mulheres são mais atuantes na
comunidade, mas não expressam a relação apresentada pelas mulheres sobre o fato
delas “comandarem”. Estes, por sua vez, pouco participam das reuniões quinzenais e,
segundo uma das entrevistadas, ainda possuem uma percepção negativa da reunião,
conforme depoimento abaixo:
Eles pensam que é besteira. Que a gente se reúne lá pra falar da vida
dos outros (Luzicleide).
8 Gurugi também é uma comunidade remanescente de quilombo vizinha à comunidade Ipiranga. Suas
histórias se cruzam, sejam nos personagens que atuaram nos conflitos agrários ou através dos laços de
parentesco próximos entre as famílias, gerando a percepção, por parte dos moradores, de que “tudo é uma
família só”.
Até agora, vimos brevemente como os moradores da comunidade Ipiranga vão
consolidando a sua identidade étnica, através da escolha de sinais manuseados em
contextos políticos. No caso das mulheres, percebemos como a formação da associação
dos moradores9 teve importância para a inserção da mulher no campo político, de luta
pelos seus direitos. À guisa de conclusão, trago, brevemente, três exemplos da inserção
das mulheres no histórico da comunidade.
Foi com os pés e não voltou: o caso de Bila e a luta pelas terras
Como muitas histórias de pequenas comunidades que são alijadas de seus
territórios, o município do Conde foi marcado por intensos conflitos agrários, que
geraram a formação de alguns assentamentos de reforma agrária. A luta pela
desapropriação da fazenda Gurugi e Barra de Gramame, na época, posses dos irmãos
Nilson e Nelson Pimentel, envolveu os moradores tanto da comunidade Ipiranga quanto
da comunidade Gurugi, seja pelo fato de que ambas usufruíam das mesmas terras,
quanto pelo fato das ligações parentais que auxiliavam nos vínculos de ajuda pela luta.
Em março de 1989, após o assassinato de Zé de Lela, morador de Gurugi, nova
tragédia se abate sobre Gurugi II. No dia 30, cerca de 70 agricultores de várias
comunidades, além de Gurugi, foram ao Fórum de Alhandra com o objetivo de
prestarem queixa ao juiz da comarca Antônio Leobaldo Monteiro, de que o Zequinha,
mesmo com prisão preventiva decretada, era visto constantemente no sítio Gurugi
ameaçando os agricultores (Moreira, 1997: 104). Nesta ocasião, o tio de Zequinha,
chamado Severino Mariano, também conhecido por “Biu Mariano”, lançou sobre os
agricultores uma camioneta D-10. Em seguida, este desce e passa a atirar à queima-
roupa nas pessoas atropeladas, ainda voltando ao carro e tornando a passá-lo sobre as
pessoas caídas (ibidem). Vinte e duas pessoas ficaram feridas (inclusive duas crianças,
uma de 5 meses) e uma foi morta. A moradora que veio a falecer chamava-se Severina
Rodrigues de França, mais conhecida por “Bila”, de 55 anos, mãe de 12 filhos10
. O
acontecimento teve grande repercussão na região, sendo veiculado por jornais locais
(Figura 2).
Só em 19 de junho de 1990 é que a imissão de posse, como lote de reforma
agrária, ocorreu para os agricultores e agricultoras.
9 A formação de uma associação de moradores é exigência para o encaminhamento visando à obtenção da
certidão de auto-reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo pela Fundação Cultural
Palmares. 10
Alguns de seus filhos residem na comunidade Ipiranga.
Figura 2: À esquerda: cartaz-denúncia sobre a morte de Bila e Zé de Lela, moradores envolvidos na luta
pela terra; À direita: Página de jornal local que veiculou a notícia da “chacina de Alhandra”, onde Bila
foi assassinada.
Coco-de-roda
O coco-de-roda, como manifestação artístico-cultural, reúne um misto de dança,
música e formas de comunicação respaldadas em uma “memória coletiva” que não
exclui as ressignificações do presente. É apresentado como emblema de tradição
herdada dos antepassados, com mais de 200 anos, segundos as interlocutoras.
Atualmente, o coco-de-roda é conduzido, principalmente, por uma família que se
desdobra em três mulheres: Lenita Lina, reconhecida pelo Ministério da Cultura, Ana
Rodrigues (sua filha) e Lenira (sua irmã).
Ao observar o coco-de-roda, podemos notar que alguns participantes utilizam
vestimentas semelhantes. Destacam-se, sobretudo, as mulheres e as suas saias, com
estampas de flores ou à semelhança de retalhos (também com flores), explodindo em
cores a cada vez que uma participante dança no centro da roda (Figura 3). Longe de ser
uma mera coincidência ou uma simples padronização para apresentação do grupo,
encontramos um motivo específico para tal fato.
Em conversa informal com Ana, esta informou que certa vez fez uma saia
totalmente branca para utilizar durante os cocos. Sua mãe Lenita, ao ver a saia, afirma
que esta deveria ser florida. Os tecidos utilizados para as roupas, antigamente, eram de
baixa qualidade, chamados de “chita”. As roupas de “chita” tornavam-se uma espécie de
critério de reconhecimento de indivíduos com baixa renda. As estampas coloridas do
tecido de “chita” permanece e sobrevive, nas saias do coco-de-roda, como um critério
de reconhecimento, mas não de pessoas consideradas pobres, mas de quilombolas que
possuem o coco-de-roda como “tradição ancestral”.
Figura 3: À esquerda: duas integrantes da comunidade dançam no centro da roda, com as suas saias
floridas. À direita: Ana distribui as saias floridas para algumas crianças
Da mesma forma que as músicas podem contribuir para um processo de um
resgate de uma identidade étnica ligada à resistência de uma opressão histórica sofrida,
elas retratam a resistência do trabalhador, mais especificamente, do agricultor, do povo
do campo, de indivíduos que eram donos da terra e que passaram a serem moradores,
expropriados, ao longo dos anos, de terrenos que eram, historicamente, de seus
antepassados. Contudo, mesmo com esse processo de opressão sofrida, a resistência por
parte desses moradores foi mantida, constituindo, desta forma, a possibilidade de pensar
o “novo” conceito de quilombo, ligado não a um processo estritamente de fuga de
escravos, mas de resistência de indivíduos perante uma sociedade que procurou tirar os
seus direitos (mesmo que poucos ou quase nenhum, como os relatos indicam). Nesse
sentido, o coco-de-roda pode ter funcionado como uma resistência, tanto pelo fato de
guardar, em suas letras, essa opressão sofrida, como pelo fato de servir como uma
“brincadeira”, uma diversão para esquecer do sofrimento e das agruras de uma vida de
labuta. Neste sentido, destaco a seguinte canção:
Lengo, tengo, lengo, tengo
Eu morro de trabalhar
De dia to na enxada
De noite vou batucar
Manga e mangaba
Utilizando a terra e significando-a como território, os moradores utilizam
recursos que estão disponíveis aos mesmos em algumas épocas do ano. Alguns destes
recursos estão localizados no que antigamente era chamada “terra do comum”.
Inicialmente, nos deteremos na extração da manga e da mangaba.
Mangueiras e mangabeiras são árvores frutíferas facilmente encontradas em
todos os trechos da comunidade. São duas frutas que são coletadas e comercializadas
nas feiras e, até mesmo, às margens da PB-018. Historicamente, essa atividade é
realizada principalmente pelas mulheres e, segundo consta, consistiu na principal fonte
de renda de muitas famílias.
Mas se antes, segundo nos contaram, “tudo era escuro” (devido às várias
mangueiras nos caminhos que proporcionavam sombreamento) e “não pisava no chão
de manga” (por existirem muitas mangueiras, vários frutos ficavam caídos no chão),
atualmente e em comparação ao que era antes, as mangueiras não são tão abundantes.
Os moradores contam que as mangueiras, há cerca de 10 anos, começaram a apresentar
uma doença conhecida por eles como “Mal-do-Recife”. Essa doença atinge as
mangueiras, secando-as e ocasionando a morte destas.
Com relação às mangabas, estas não são cultivadas nos quintais dos moradores,
mas encontradas nas antigas “terra do comum”. Atualmente, essas terras são
propriedades particulares nos quais os seus donos impedem o acesso dos moradores
para a extração da mangaba
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do trabalho, visualizamos, brevemente, como uma exigência jurídica
para o reconhecimento étnico como comunidade quilombola acabou por propulsionar
um processo de afirmação das mulheres em seu espaço social. Desta forma, percebemos
Cantador (a)
Coro
que, se a cultura é dinâmica e os significados são reavaliados na prática, os moradores
da comunidade Ipiranga colheram os seus “antigos valores” para a constituição de uma
identidade diferenciada da população circundante. Justamente por ser dinâmica, o
significado de quilombo passa a ser modificado, ressignificado para os moradores.
Se a inserção das mulheres no processo de luta antecedeu, em parte, o
reconhecimento como comunidade remanescente de quilombo, nem por isto devemos
deixar de levar em consideração que o reconhecimento como grupo étnico contribuiu
para o processo de formação delas. A partir da inserção das mulheres na luta dos
movimentos sociais (e o caso quilombola aqui não é excluído), estas tomam
conhecimento dos seus direitos e partem para conquistá-los.
Posicionando-se contra os agentes sociais que a oprimem, como por exemplo, o
proprietário particular de terras, as questões de moradia, emprego e renda para a família,
a dificuldade em se afirmarem como mulheres negras não se sobrepõem. Pelo contrário,
estas acabam por utilizar a sua afirmação identitária como bandeira a ser levantada em
sua marcha por respeito, dignidade, oportunidade e, acima de tudo, pelo direito de
serem “mulheres negras quilombolas”, rompendo a cultura do silêncio que lhes é
imposta.
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