MUSEUS E MEMÓRIA INDÍGENA NO CEARÁ

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MUSEUS E MEMRIA INDGENA NO CEAR:uma proposta em construo

Governo do Estado do Cear Governador: Cid Ferreira Gomes Secretaria da Cultura do Cear Secretrio: Francisco Auto Filho Museu do Cear Diretora: Cristina Rodrigues Holanda IMOPEC Instituto da Memria do Povo Cearense Presidente: Francisca Malvinier Macdo Projeto Grco: Valdianio Macedo Expresso Grca Capa: Acervo Museu Kanind de Aratuba (foto: Joo Paulo Vieira Neto) Arte de Fbio Lopes. William de Brito Expresso Grca Reviso tcnica: Maria Manuelina Duarte Cndido; Cristina Rodrigues Holanda Reviso da Edio: Cristina Rodrigues Holanda

Realizao:

Apoio:

Alexandre Oliveira Gomes Joo Paulo Vieira Neto

MUSEUS E MEMRIA INDGENA NO CEAR:uma proposta em construo

Catalogao na Fonte Bibliotecria Perptua Socorro Tavares Guimares CRB 3- 801

G 612 m

Gomes, Alexandre Oliveira Museus e Memria Indgena no Cear: uma proposta em construo./ Alexandre Oliveira Gomes e Joo Paulo Vieira Neto.- Fortaleza: SECULT, 2009. 263p. ISBN 978 - 85 - 7563 - 439 - 4 1. ndios- Museu 2. Memria indgena - cearense 3. Museu tnico I. Gomes, Alexandre Oliveira II. Vieira Neto, Joo Paulo III. Ttulo CDD: 980

SUMRIO

Apresentao. Cristina Holanda ..............................................................9 Prefcio. Manuelina Duarte Cndido ..................................................... 11 Introduo ..............................................................................................15 1. A construo das memrias indgenas no Cear .............................23 1.1 Museus e memria indgena ..............................................................23 1.1.1 O contexto local ............................................................................27 1.1.2 Museus e antropologia ..................................................................32 1.1.3 A descoberta dos museus pelos ndios ..........................................36 1.1.4 Museus indgenas no Cear contemporneo .................................38 1.2 Educao histrica e museolgica em comunidades indgenas .........46 1.3 Diagnstico participativo e estruturao museolgica ......................49 1.3.1 Construindo o diagnstico participativo .....................................51 2. Propostas de estruturao museolgica ...........................................53 2.1 Sobre os espaos constitutivos, servios e infraestrutura ..................53 2.2 Salvaguarda ........................................................................................54 2.2.1 Coleta de objetos ..........................................................................54 2.2.2 Documentao do acervo ............................................................54 2.2.3 Organizao da reserva tcnica ....................................................57 2.3 Gesto museolgica ...........................................................................57 2.3.1 Vincular o museu a uma tutela administrativa .............................58 2.3.2 Implementao do plano museolgico.........................................59 2.3.3 Equipe de manuteno .................................................................59

2.3.4 Filiao aos sistemas de museus ..................................................60 2.3.5 Participao em editais ................................................................61 2.4 Comunicao......................................................................................61 2.4.1 Ncleo educativo ........................................................................62 2.4.2 Organizao das exposies........................................................63 2.4.3 Capacitao do quadro funcional ................................................63 2.4.4 Pesquisas sobre a histria local ...................................................64 2.4.5 Plano de divulgao ....................................................................65 2.4.6 Criao de centros de documentao indgena ...........................66 2.5 Infra-estrutura ....................................................................................67 2.5.1 Denir a sede do museu ..............................................................67 2.5.2 Reestruturao fsica ...................................................................68 2.5.3 Projeto de iluminao .................................................................68 3. Museus e centros culturais indgenas no Cear ..............................71 3.1 Memorial Tapeba Cacique Perna-de-Pau ...........................................71 3.1.1 Salvaguarda ..................................................................................76 3.1.2 Gesto museolgica .....................................................................76 3.1.3 Comunicao................................................................................77 3.1.4 Infraestrutura ................................................................................81 3.2 Museu dos Kanind............................................................................91 3.2.1 Salvaguarda ..................................................................................97 3.2.2 Gesto museolgica .....................................................................98 3.2.3 Comunicao..............................................................................100 3.2.4 Infraestrutura ..............................................................................103 3.3 Oca da Memria de Poranga ............................................................ 113 3.3.1 Salvaguarda ................................................................................ 116 3.3.2 Gesto museolgica ................................................................... 117

3.3.3 Comunicao.............................................................................. 118 3.3.4 Infraestrutura ..............................................................................121 3.4 Museu Potigatatu .............................................................................133 3.4.1 Salvaguarda ................................................................................137 3.4.2 Gesto museolgica ...................................................................138 3.4.3 Comunicao..............................................................................139 3.4.4 Infraestrutura ..............................................................................141 3.5 Museu dos Pitaguary de Monguba ..................................................149 3.5.1 Salvaguarda ................................................................................154 3.5.2 Gesto museolgica ...................................................................155 3.5.3 Comunicao..............................................................................157 3.5.4 Infraestrutura ..............................................................................159 3.6 Escola Maria Venncia Trememb...................................................167 3.6.1 Salvaguarda ................................................................................170 3.6.2 Gesto museolgica ...................................................................172 3.6.3 Comunicao..............................................................................174 3.6.4 Infraestrutura ..............................................................................176 CONSIDERAES FINAIS. Quem deu esse n, no soube dar ......187 NOTAS ..................................................................................................193 BIBLIOGRAFIA .................................................................................197 ANEXOS ..............................................................................................205 Anexo 1: Documento do seminrio Emergncia tnica. Polticas pblicas para o patrimnio, a memria e os museus dos grupos tnicos e tradicionais do Cear ............................................................ 205 Anexo 2: Estatuto de Museus ................................................................233 Anexo 3: Ficha de inventrio do Museu do Cear .................................259

APRESENTAO

O livro Museus e memria indgena no Cear: uma proposta em construo fruto do Projeto Emergncia tnica1, elaborado e executado pela Secretaria de Cultura do Estado (SECULT) em convnio com o IMOPEC (Instituto da Memria do Povo Cearense), sob a superviso do Museu do Cear, no primeiro semestre de 2009. Uma das aes previstas no referido projeto foi a realizao dos diagnsticos participativos nos museus e centros culturais indgenas existentes do Cear, sob a coordenao dos historiadores Alexandre Oliveira Gomes e Joo Paulo Vieira Neto, por meio de ocinas de 16 horas-aula, envolvendo vrios adultos e jovens de cada comunidade visitada. Os resultados dessa ao foram divulgados no Seminrio Emergncia tnica, evento que agregou 120 lideranas dos movimentos indgena, negro e quilombola do Cear, nos dias 15 a 17 de maio, no Condomnio Espiritual Uirapuru (CEU), em Fortaleza. Agora, com essa publicao, que contou com a colaborao tcnica de Manuelina Duarte Cndido, doutoranda em Museologia pela Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias, um pblico maior ter acesso aos produtos desse trabalho. As demandas por museus em comunidades tnicas e tradicionais em nosso Estado foram sentidas pela SECULT a partir em 2007, em meio aos debates da Constituinte Cultural, um modelo de consulta pblica que procurou revisar o

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captulo VIII da Constituio do Cear, dedicado cultura, mas tambm elaborar o Plano Plurianual da Poltica Cultural, que estabelece as diretrizes para o Plano Estadual da Cultura. Nesse sentido, o Projeto Emergncia tnica e todos os seus desdobramentos - como o seminrio homnimo, os livros organizados em torno do evento, a elaborao do documento Polticas pblicas para o patrimnio, a memria e os museus dos grupos tnicos e tradicionais do Cear e os diagnsticos participativos ora publicados conguram-se como instrumentos que procuram ampliar o dilogo entre o governo do Cear e a sociedade civil organizada. Colocam-se ainda como um ponto de partida para a construo de museus comunitrios no apenas entre os indgenas, mas entre outros grupos tnicos e tradicionais no Cear. Cristina Rodrigues Holanda Diretora do Museu do Cear Gerente Executiva do Sistema Estadual de Museus do Cear

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PREFCIO

Este trabalho que tenho a honra de apresentar a primeira iniciativa de flego, no Cear, sobre a questo da musealizao das memrias indgenas. Alm de apresentar e reetir sobre as experincias, cabe a ele partilhar a metodologia e as anlises sobre o seu processo de elaborao. Segundo Varine (2009), o desenvolvimento local sustentvel, enquanto processo dinmico de transformao da sociedade e do meio, assenta em grande parte na participao activa e criativa das comunidades locais. Sem essa participao, teremos apenas uma mera execuo de programas tecnocrticos, cuja eccia depende da combinao conjuntural e efmera de uma vontade poltica e da disponibilidade de meios nanceiros e humanos. O diagnstico museolgico, passo fundamental para qualicao dos processos de musealizao, deve ser realizado tanto para a vericao de potencialidades e desaos de um museu j existente como para a criao de um novo, sendo que neste caso avaliamos as potencialidades e desaos de um patrimnio ainda no musealizado. Cabe esclarecer que nossa compreenso de musealizao e de museu abrange processos relacionados administrao da memria e aplicao de procedimentos tcnicos e metodolgicos visando apropriao desse patrimnio pela sociedade (BRUNO, 1996), seja isto realizado ou no fora do mbito das instituies. 11

O Projeto Historiando, coordenado por Alexandre Oliveira Gomes e Joo Paulo Vieira Neto, vem realizando estas experincias de musealizao com nome de projetos de memria desde 2002. Despretensiosamente, realizou importantes intervenes na relao entre comunidades cearenses e seu patrimnio, que devem ser analisadas como processos de musealizao, ou seja, de projeo no tempo, em perspectiva processual e com visibilidade social, de fenmenos que tm origem no fato museal: a relao entre o homem e o objeto em um cenrio (RUSSIO, 1981). Este trabalho foi feito a partir de um olhar de historiadores que, se por um lado buscavam atender aos desejos de memria (GONDAR, 2000) de diferentes comunidades, partilhando um conhecimento acumulado nos anos de atuao como tcnicos do Museu do Cear, possibilitando s iniciativas comunitrias adaptao s novas exigncias do Estatuto de Museus, por outro lado assumia partir de um campo do conhecimento especco: a Histria. Evidentemente que a memria, campo interdisciplinar por excelncia, levou os autores a dialogar com outras reas do conhecimento e o texto demonstra esta familiaridade com o aparato terico-conceitual de reas como a Antropologia e a Museologia. Mas ca evidente a conexo com o pensamento da Histria sobre os silenciamentos e os processos de construo da memria e das identidades tnicas. Volto a Varine para explicitar a amplitude da noo de museu aqui adotada: Tudo o que existe, com duas ou trs dimenses, sobre o territrio e no seio da comunidade, pode ser utilizado para a educao popular, para a observao, o conhecimento 12

do meio, a anlise, a aprendizagem, o consumo, o controle da tcnica, a identidade, o conhecimento do passado. A sua principal qualidade ser uma realidade tangvel que multiplica a sua virtude pedaggica (VARINE, 2009). No mesmo texto, o autor aponta inventrios e exposies participativas como meios para recriar as identidades locais e identicar pessoasrecurso, agentes do desenvolvimento. buscando, nas palavras dos prprios autores deste livro, potencializar estas experincias de memria identicadas, que eles recorrem ao aporte da Museologia e o compartilham com os grupos indgenas por meio de ocinas de ao educativa museolgica. Comprovam na prtica o efeito da educao popular como qualicadora dos projetos ligados memria e preservao e construo das identidades. Tambm experienciam uma premissa de que a Museologia tem uma faceta a ser compartilhada com as comunidades, para que elas mesmas possam assumir a liderana dos processos de musealizao. Neste sentido, outros trabalhos de musealizao junto s comunidades indgenas tm sido desenvolvidos (vide VIDAL, 2008) e devem ser fortalecidos como estratgia. Para isto, so fundamentais publicaes como esta, que ampliam o mbito de divulgao das experincias e permitem iniciar um rico dilogo entre propostas ans. Goinia, setembro de 2009 Manuelina Maria Duarte Cndido Profa. do Depto. de Museologia da UFGO

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BIBLIOGRAFIA

BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Museologia e comunicao. Lisboa: Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias, 1996 (Cadernos de Sociomuseologia, 9). GONDAR, J. Lembrar e esquecer - desejo de memria. In: GONDAR, J; COSTA, I. M.. (orgs.). Memria e espao. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, p. 35-43. RSSIO, W. Linterdisciplinarit em musologie. Museological In: Museological Working Papers/ Documents de Travail Musologique (MuWoP/DoTraM), n. 2, p. 58-59. Stockholm, 1981. VARINE, Hugues de. Patrimnio e educao popular. In: O direito de aprender. http://www.direitodeaprender.com.pt/index. php?option=com_content&task=view&id=194&Itemid=30. Acesso em 7/7/2009. VIDAL, Lux Boelitz. O museu dos povos indgenas do Oiapoque-Kuah: gesto do patrimnio cultural pelos povos indgenas do Oiapoque, Amap. In: BRUNO, Maria Cristina Oliveira; NEVES, Ktia Regina Felipini (orgs.). Museus como agentes de mudana social e desenvolvimento: propostas e reexes museolgicas. So Cristvo, SE: Museu de Arqueologia de Xing, 2008. p. 173-181. 14

INTRODUO

O Projeto Historiando surgiu em 2002, a partir da iniciativa de um grupo de prossionais de Histria comprometidos com a educao como arma de transformao social, que visa historiar comunidades a partir de pesquisas coletivas sobre histria e patrimnio junto aos moradores dos lugares. Com a utilizao de metodologias que estimulam a participao e a autonomia, buscamos extrapolar os contedos escolares e experimentar outras maneiras de pensar e vivenciar o processo de ensino-aprendizagem em Histria, atravs da educao para o patrimnio cultural2. Ampliando os espaos para o exerccio do ofcio de historiador e as formas de compartilhar socialmente reexes sobre problemticas histricas e linguagens para a sua comunicao, partimos do pressuposto de que as memrias sociais em conito se constroem e se materializam nos mais diversos espaos. Assim, o Projeto Historiando surgiu com a proposta de ampliarmos nossa atuao para alm das instituies educacionais, como escolas ou universidades, inserindo a discusso sobre a construo social da memria na tica das lutas dos movimentos sociais organizados. A pesquisa em histria permite aos participantes a construo de reexes sobre histria e cotidiano, cultura e patrimnio, a partir da compreenso de sua prpria historicidade no mundo real e das diversas formas com as 15

quais a memria se apresenta em nvel local: (re)descobrir seu bairro, sua rua, sua famlia, a si prprio, o que lhe pertence e quais os signicados presentes em documentos e bens culturais cotidianamente vivenciados. Entre os objetivos do Projeto Historiando est a utilizao da pesquisa em histria local como metodologia para incrementar o processo de ensino-aprendizagem da Histria e da educao para o patrimnio, investigando, identicando, registrando, analisando e se apropriando dos diversos bens culturais comunitrios. A associao entre cotidiano e histria de vida () possibilita contextualizar essa vivncia em uma vida em sociedade e articular a histria individual a uma histria coletiva (BITTENCOURT, 2004, p.165). Identicamos coletivamente o patrimnio cultural e seus signicados, junto aos moradores, realizamos aes educativas que dialogam sobre a memria social e os bens culturais signicativos para as comunidades. Entre as experincias do Projeto Historiando, entre 2002-2009, destacamos as realizadas na cidade de Fortaleza, nos bairros Jardim das Oliveiras e Parangaba, como tambm na Comunidade dos Cocos (Praia do Futuro) e na Comunidade do Mercado Velho (centro histrico). Os educadores integrantes do projeto, durante este perodo, envolveram-se ainda em diversas atividades prossionais por todo o Cear, em espaos comunitrios (entidades e movimentos sociais), privados (escolas, universidades) e pblicos (Museu do Cear, Sistema Estadual de Museus, Escola de Artes e Ofcios Thomaz Pompeu 16

Sobrinho). Essas atividades, aliadas a outras de articulao poltica, resultaram num posicionamento ativo e num processo crescente de empoderamento de comunidades organizadas em torno das questes da memria e do patrimnio. Dentre estas articulaes, destacamos a luta empreendida pelo Comit Pr-Tombamento da Estao de Parangaba (CPTEP), que se mobilizou contra a derrubada da referida edicao por conta da construo das obras do METROFOR (Metr de Fortaleza). Em dezembro de 2007, conseguimos aprovar o tombamento municipal deste patrimnio ferrovirio junto antiga FUNCET (Fundao de Cultura, Esporte e Turismo), hoje SECULTFOR (Secretaria de Cultura de Fortaleza)3. H poucos meses, a estao de Parangaba passou por um processo de rebaixamento, realizado pela Secretaria de Infra-Estrutura do Estado (SEINFRA), que reduziu em 3,5m sua altura, possibilitando a construo de um elevado para o METROFOR. Apesar da destruio de todo o entorno do bem tombado, o rebaixamento foi um procedimento indito no Brasil e simboliza a vitria de uma articulao comunitria em torno da memria e do patrimnio. Entretanto, ainda h um longo caminho a trilhar como, por exemplo, organizar novas funes para a edicao, dentre as quais a de abrigar um museu comunitrio. Durante estes anos de atividades, fomos aprimorando metodologias participativas e que estimulam a autonomia dos envolvidos, a partir de problemticas da histria social e cultural, do ensino e da pesquisa em histria, memria 17

e patrimnio, reetindo sobre identidade(s) e diversidade cultural. Promovem-se questionamentos acerca das nalidades da educao, do ofcio do historiador e da pluralidade das memrias sociais expressas por meio do patrimnio cultural. O envolvimento do Projeto Historiando com a questo indgena no Cear aconteceu a partir de 2007, com a realizao do curso Historiando os Tapeba, em parceria com as entidades ADELCO e ACITA4. Deste curso resultaram trs exposies e um livreto, todos sob o ttulo homnimo do curso, na comunidade Tapeba, no Memorial Cacique Perna-de-Pau e no Museu do Cear. No segundo semestre do mesmo ano, fomos convidados para a pesquisa que resultou na publicao de outro livreto: Povos indgenas no Cear: organizao, memria e luta, coordenado pela antroploga Isabelle Braz e editado por ocasio da exposio ndios: os primeiros brasileiros, de curadoria do Prof. Joo Pacheco de Oliveira (Museu Nacional / UFRJ), sediada no Centro Drago do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza. Durante a pesquisa, alm da consulta a fontes primrias (manuscritas e impressas) e secundrias (estudos acadmicos, principalmente), visitamos algumas comunidades indgenas presentes em municpios como Poranga, Monsenhor Tabosa e Crates, travando contato com a realidade indgena do serto do Cear, suas organizaes locais, lideranas e desaos, bem diferentes dos povos mais prximos da capital cearense, Fortaleza. A partir de ento, o Projeto Historiando vem estabelecendo uma parceria poltica e educacional com as organizaes 18

indgenas no Cear, no que se refere reexo sobre a memria enquanto instrumento de luta e armao tnica, que se materializa na construo de espaos de memrias comunitrios geridos pelos indgenas. Entre 2007 e 2008, assessoramos o processo de organizao da Oca da Memria, nome do museu indgena dos Tabajara e Kalabaa que vivem no municpio de Poranga, a 340 quilmetros de Fortaleza. Esta assessoria aconteceu desde a formao do acervo inicial, passando pelo processo de documentao do mesmo, a organizao de um ncleo gestor e as atividades do ncleo educativo. A partir deste trabalho realizado pelo Projeto Historiando, fomos convidados para coordenar as ocinas junto s comunidades indgenas no Cear, com o objetivo de realizar um diagnstico participativo em museus, como parte do Projeto Emergncia tnica, promovido pela SECULT, IMOPEC e Museu do Cear, em 2009. Atualmente trs museus indgenas esto em funcionamento no Estado: o Memorial Cacique-Perna-dePau, construdo pelos Tapeba, em Caucaia, no ano de 2005; a Oca da Memria, organizada pelos Kalabaa e Tabajara, em Poranga, em meados de 2008; e o Museu dos Kanind, em Aratuba, organizado pelo Cacique Sotero e aberto ao pblico a partir de 1995. Existem ainda trs centros culturais de outros grupos: a Abanaroca (Casa do ndio) dos Potyguara/Gavio/ Tabajara/Tubiba-Tapuia, em Monsenhor Tabosa; a Casa de Apoio dos Pitaguary, em Monguba (Pacatuba); e a primeira sede da Escola Maria Venncia, em Almofala (Itarema). Cada um destes espaos atua com funes especcas, de acordo com a organizao de cada povo. 19

Durante as visitas tcnicas, entre janeiro e abril de 2009, foi ministrada a ocina Diagnstico participativo em museus (16h/a), que discutiu a estrutura e os fundamentos dos espaos museolgicos. O livro que ora chega s mos do leitor foi elaborado a partir do relatrio Propostas de (re) estruturao museolgica para comunidades indgenas no Cear. Traz os resultados dos diagnsticos participativos e das reexes que os fundamentaram, com o objetivo de orientar as modicaes nos espaos visitados, de acordo com as demandas e potencialidades apontadas durante as ocinas, alm de documentar a construo de uma poltica cultural voltada para a educao histrica e museolgica dos povos indgenas, difundindo a metodologia empregada a m de inspirar outras iniciativas. Uma reexo mais sinttica sobre o tema foi publicada no livro Na mata do sabi: contribuies sobre a presena indgena no Cear5, mas os autores aguardavam a oportunidade de publicar uma verso mais completa, na esteira dos processos de formao destes acervos e de (re)estruturao museolgica dos museus indgenas existentes. Este livro tambm tem por objetivo armar e reforar a autonomia dos povos indgenas, como pressuposto fundamental para o seu reconhecimento social e a demarcao denitiva de seus territrios tradicionalmente ocupados, demandas urgentes destas comunidades. A publicao est dividida em trs partes. Na primeira, intitulada A construo das memrias indgenas no Cear, realizamos uma discusso conceitual sobre o processo de construo da diversidade de memrias indgenas, no passado e no presente, dentro e fora dos museus, enfatizando a 20

importncia poltica da memria nos processos de etnognese, organizao comunitria e armao tnica. Nos outros dois captulos apresentamos as sugestes e possibilidades para a organizao desses museus, lembrando sempre tratar-se, como arma o ttulo do livro, de uma proposta em construo. A educao histrica e museolgica se constri de inmeras maneiras. As formas como a memria se apresenta na sociedade so matria-prima para as nossas intervenes, seja em forma de aes educativas sistematizadas de pesquisa, anlise e recriao das reexes histricas, seja por meio da atuao poltica junto s comunidades organizadas. Busca-se, a partir da memria local e do conhecimento de nossa histria, lutar por interesses concretos, partindo sempre das demandas do presente, reconstruindo o pretrito baseando-se em projetos sociais autnomos, coletivos e alternativos ao modelo dominante. Parangaba, Fortaleza-Cear, setembro de 2009 Alexandre Oliveira Gomes Joo Paulo Vieira Neto

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1. A CONSTRUO DAS MEMRIAS INDGENAS NO CEAR

1.1 Museus e memria indgena O Cear vem assistindo desde os anos de 1980 emergncia de novos atores sociais no cenrio poltico local: comunidades que se reivindicam como etnias indgenas e se mobilizam por reconhecimento pblico e, conseqentemente, pelos direitos sociais adquiridos a partir da Constituio de 1988, principalmente no que se refere ao acesso terra. Freqentemente, esta mobilizao vem sendo taxada de encenao por adversrios polticos, apoiados no argumento que nega a existncia de ndios no Cear (SILVA, 2005, p. 15). De uma atribuda extino ocorrida no sculo XIX ao decorrer do sculo XX, as comunidades indgenas silenciaram-se. Proclamou-se, principalmente atravs de documentao ocial da Assemblia Provincial, na segunda metade do sculo XIX, que no Cear no havia mais ndios ou que estes estavam dispersos ou confundidos na massa geral da populao civilizada (PORTO ALEGRE, 1994, p. 92).6 Com a mobilizao poltica inicial dos Tapeba (Caucaia) e dos Trememb de Almofala (Itarema) e dos Pitaguary (Maracana) e Jenipapo-Kanind (Aquiraz), posteriormente, a Fundao Nacional do ndio (FUNAI) passou a reconhecer a presena indgena no Cear. Hoje, assistimos a uma 23

crescente organizao tnica no Estado, onde o processo de etnognese atinge diversas populaes no interior, somando treze etnnimos e mais de 20 comunidades tnicas diferentes (PALITOT, 2009, p.39). Ao pensarmos a realidade dos povos indgenas no Cear, partimos da perspectiva de que a sociedade construda por mltiplos sujeitos, de memrias contraditrias, que atravs da escrita da histria, justicam suas condutas e projetos polticos. Percebendo a histria como campo de luta e possibilidades, atentamos em nosso fazer historiogrco para a diversidade de memrias em constante embate e construo. A atuao de sujeitos outrora marginalizados e as possibilidades de (re) escrita da histria, tornam os museus lugares privilegiados no conjunto de lutas provindas da organizao dos povos indgenas contemporneos. At pouco tempo atrs, a ao dos grupos indgenas como protagonistas da histria estava silenciada na historiograa e, sobretudo, nos museus histricos tradicionais, entendidos como espaos propcios legitimao de uma histria ocial dos grupos dominantes. No interior do Cear, constatamos a existncia de inmeros espaos de memria organizados por famlias vinculadas s classes dominantes locais, espaos exemplares para compreendermos a construo do culto a uma histria baseada na apologia do colonizador, seus feitos, datas e heris (BEZERRA DE MENEZES, 1994, p.4). Culto que dos museus se estende ao espao pblico, expressando-se nos monumentos das praas, nos nomes 24

de ruas e nas instituies, perpetuando verses ociais da histria. Muitos destes museus tm origem na musealizao de casares e colees de objetos formados ao longo de vrias geraes, pertencentes, muitas vezes, s oligarquias que participaram da formao social destes lugares, a partir da colonizao portuguesa. Por outro lado, os nomes das famlias, etnias e sujeitos indgenas, dicilmente batizam logradouros pblicos, mas permanecem em muitos topnimos: Ararend, Banabui, Jaguaribara, Ipaumirim, Umari, Reriutaba, Taba, Quixeramobim, Guaramiranga, Trairi. Quando eram mencionados nestes espaos museolgicos, tanto ndios como negros eram, em geral, apresentados como atores subalternos, coadjuvantes, primitivos ou exticos da nao brasileira (FREIRE, 1998; SANTOS, 2005). Junto a esta representao estereotipada, construiu-se outra imagem, idealizada, encarnada no ndio amaznico, que no contempla a realidade tnica do Nordeste, seno para negar a sua existncia.Este esquecimento dos povos indgenas do Nordeste, no espao museal, est intimamente relacionado com sua negao poltica e com o silncio que vai predominar durante a maior parte do sculo XX (GOMES;VIEIRA NETO, 2009, p.376).

Segundo Duarte Cndido, a Museologia contempornea preocupa-se com o: 25

(...) carter social em oposio ao colecionismo. H o reconhecimento de diversas formas de expresses museais (museus comunitrios, museus de vizinhana etc), alm dos ecomuseus, como processos da Nova Museologia (2003, p.26).

Dentre alguns aspectos destas ondas de renovao epistemolgica na Museologia, destacamos:(...) a investigao social enquanto identicao de problemas e solues possveis; objeto de desenvolvimento comunitrio; o museu para alm dos edifciosinsero na sociedade; interdisciplinaridade; a noo de pblico dando lugar de colaborador; a exposio como espao de formao permanente ao invs de lugar de contemplao (DUARTE CNDIDO, 2003, p. 26-27).

Os museus hoje podem ser entendidos como lugares propcios difuso e reexo acerca das trajetrias e memrias de luta e resistncia dos grupos indgenas. Nesse vis, nos museus palpitam comunidades e suas mltiplas linguagens, abrindo-se antropologia e ao etnoconhecimento (CASTRO; VIDAL, 2001, p. 270). Durante os diagnsticos participativos, percebemos que os museus indgenas aproximam-se dos chamados ecomuseus, que no so necessariamente museus ecolgicos ou de paisagem. Para a museloga Cristina Bruno, o ecomuseu 26

(...) um processo estabelecido a partir das seguintes variveis: o territrio, o patrimnio multifacetado constitudo sobre este espao e uma comunidade, uma populao, que viva nesse territrio interagindo com esse patrimnio (BRUNO apud DUARTE CNDIDO, 2003, p. 226).

So espaos que interpretam a natureza como parte da cultura e o homem como parte da natureza. Nessa perspectiva, a comunidade vista como patrimnio que tambm deve ser preservado, assim como seus saberes e modos de fazer. A preservao ocorre de maneira integrada e a comunidade vive num territrio musealizado. Um jardim zoolgico ou uma rea de preservao ambiental sem populao seriam, portanto, museus tradicionais, embora envolvam elementos da natureza. 1.1.1 O contexto local A partir de 1922, temos a origem de importantes museus histricos nacionais, dos quais destacamos o Museu Paulista (SP)7 e o Museu Histrico Nacional (RJ). Em Fortaleza, em 1932 criado o Museu Histrico do Cear. Seu fundador, Eusbio de Sousa, foi o responsvel pela formao inicial do acervo da instituio. Apesar da consagrao a objetos referentes ao do colonizador portugus, como fragmentos de canhes (relacionados aos fortins militares) e medalhas comemorativas aos 300 anos da expedio de Pero Coelho (a primeira bandeira portuguesa a adentrar na capitania 27

do Siar Grande), tambm recebeu muitos objetos oriundos dos amerndios, como arcos, echas, cachimbos, machados, vasos e urnas funerrias, provenientes de tribos localizadas dentro e fora do Cear (HOLANDA, 2005, p. 142). Sobre a formao deste acervo indgena entre as dcadas de 1930-1940, no Museu Histrico do Cear, comenta Holanda que:Presume-se que os artefatos das comunidades nativas (...) eram vistos pelos ofertantes (leigos ou intelectuais) como arte primitiva ou curiosidades exticas, descontextualizadas dos seus locais de origem, representando um ancestral distante no espao e no tempo, ou ainda como atestados de um estgio de evoluo inferior e, portanto, distinto da nao brasileira, que conseguira galgar certos patamares de desenvolvimento graas s inuncias da civilizao europia (HOLANDA, 2005, p.144).

Em 1951, o Museu Histrico foi anexado ao Instituto do Cear, tornando-se Museu Histrico e Antropolgico. O historiador Raimundo Giro tornou-se o grande responsvel por sua gesto e pelas modicaes que aconteceram, como a criao da Sala do ndio, onde guardavam-se(...) inmeros elementos de comprovao da arte, dos costumes e da luta cotidiana dos indgenas que habitaram a regio do

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Nordeste. A coleo ltica de notvel valor, pela variedade e raridade dos utenslios e efeitos que a compem. Na maior parte, tm procedncia na coleo etnogrca do antigo Museu Rocha, pacientemente coletados e classicados pelo naturalista Prof. Dias da Rocha. A outra parte, deve-se ao trabalho de acuradas pesquisas e cuidadosa catalogao do Dr. Pompeu Sobrinho, (). Mais de 1.200 machados lticos, rebolos, amuletos, cachimbos, ao lado de originalssimos piles, igaabas e camucins, do sentido de austeridade e ao mesmo tempo de reminiscncia histrica a esta Sala evocativa. Cada objeto testemunha a vida rdua e natural dos nossos antepassados das selvas, e cada um de ns sente dentro de si a fora dessa raa, que nos legou no sangue e nos hbitos, indelveis marcas. A visita Sala do ndio transporta-nos espiritualmente a um passado eloqente, gravado com o sainete vibrante da aculturao da gente branca nesta rea da nacionalidade, ento em plena formao. Como que assistimos, em desle, a todos aqueles conitos de cultura, de sentimentos, de sexo e de idias que conguraram anal nosso cruzamento rcico nas suas bases mais profundas o europeu e o amerndio a que o negro africano deu, mais tarde, o tmpero das suas qualidades de mansido e ternura. um belo passeio que realizamos pelas alamdas da pedra polida para melhor

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rmar o contraste entre o primitivismo espontneo e o cienticismo de hoje (GIRO apud OLIVEIRA, 2009, p.74).

Fica bem claro o papel destinado ao indgena nesta construo histrica do Brasil e do Cear. Aliado a uma negao de sua ao como sujeito histrico, representado como o elemento puro, primitivo, ingnuo, que passa por um processo de melhoramento a partir da miscigenao com o homem branco (OLIVEIRA, 2009, p. 75). Entre o m do sculo XIX e o incio do processo de emergncia tnica nos anos de 1980 foram formados alguns acervos etnogrcos e arqueolgicos no Cear. Dentre estes, destacamos a riqussima coleo do naturalista Dias da Rocha, cuja seo de arqueologia composta por material ltico e cermico variado, prioritariamente encontrado no Cear (BORGES-NOJOSA; TELLES, 2009). O acervo formado por Thomaz Pompeu Sobrinho tambm merece ateno, por se constituir num importante material etnogrco que, mesmo de procedncia amaznica, sugere indcios sobre a construo de formas de representao dos ndios atravs da formao de colees, acervos documentais e discursos proferidos sobre os mesmos. Estes dois acervos encontram-se espalhados entre instituies museolgicas, mas uma parte deles est sob a guarda do Museu do Cear, depois de trilharem percursos diferenciados e ainda obscuros. No Nordeste, destacamos a coleo etnogrca sob guarda do Museu do Estado de Pernambuco, formada pelo 30

folclorista Carlos Estevo de Oliveira, entre 1908 e 1946, composta de mais de 3.000 peas provenientes de povos indgenas da Amaznia e do Nordeste (ATHIAS, 2003, p. 284). Notamos semelhanas referentes s etnias e tipologias de objetos entre estas duas colees etnogrcas do Museu do Estado de Pernambuco e do Museu do Cear, que so representaes sobre os indgenas que nos permitem entender como se atriburam certos signicados, atravs da seleo de determinados objetos e de um patrimnio musealizado, Entretanto, h de se destacar que estas so representaes que falam sobre o outro, no sentido de um olhar pesquisador como um olhar dominante.O outro era visto apenas como objeto de pesquisa, um outro construdo, um objeto de conhecimento (...) no encontramos as vozes dos povos estudados, estes se conguravam como outros passivos de um discurso cientco (ABREU, 2007, p. 142).

No Cear, a busca pela construo de um panteo de heris e seus feitos notveis tomava corpo com a criao da primeira instituio museolgica do Estado, que chamava para si esta tarefa. Entre os sujeitos desta histria, estavam os cidados de origem portuguesa e os brasileiros da elite poltica e econmica (HOLANDA, 2005). Constatamos, conforme ensina Ulpiano Bezerra de Menezes (1994), que as funes de evocao e celebrao de uma narrativa da nao materializavam-se nos espaos dos museus com a 31

gloricao e heroicizao de determinados sujeitos e seus feitos, incorporados como marcos cvicos, comemorativos da histria nacional. Da se pensar comumente acerca dos museus histricos como locais nos quais os objetos devem ter uma vinculao biogrca ou temtica a um feito ou gura excepcionais do passado, normalmente heris vencedores (BEZERRA DE MENEZES, 1994, p.4). Entretanto, o nosso olhar se desloca para um outro tipo de museu: no um museu sobre os ndios, mas dos ndios (VIDAL, 2008, p.3), fruto de uma antropologia nativa, como estratgia de movimentos sociais (ABREU, 2007, p.139), e conquista da organizao indgena. 1.1.2 Museus e antropologia Em recente artigo, Regina Abreu (2007) reete sobre a histria da relao entre a antropologia e os museus. A autora prope uma diviso tipolgica interessante para compreendermos as mudanas e permanncias no modo como os indgenas so retratados nestas instituies. Segundo a autora, poderamos pensar nesta relao a partir da seguinte diviso: antropologias reexivas e museu de cincia; antropologias da ao e museus como instrumento de polticas pblicas; antropologias nativas e museus como estratgia de movimentos sociais (ABREU, 2007, p.139). Utilizaremos esta diviso tipolgica para reetirmos sobre a maneira como os indgenas foram representados nos 32

espaos museolgicos em diferentes momentos histricos e como, paulatinamente, os museus vo sendo repensados e modicados, tanto nos procedimentos expositivos de seus acervos, quanto em seus usos polticos e educativos. Em outras palavras, como estas instituies, que eram vistas apenas como lugares de pesquisa e coleo de artefatos exticos de culturas primitivas em vias de extino, transformam-se em ferramentas de luta, organizao comunitria e visibilidade e armao tnica.Durante o nal do sculo XVIII e incio do sculo XIX, constituram-se os chamados museus de cincias, ou museus enciclopdicos, voltados para a produo de pesquisas cientcas por parte de especialistas formados para este m (ABREU, 2007, p.240).

Nestes museus, encontraremos as primeiras colees de objetos representativos da cultura material dos povos nativos. Em meio a um contexto de predomnio das cincias naturais e do positivismo nas prticas cientcas, a antropologia surgia como uma nova rea de conhecimento. Buscando equipararem-se s cincias naturais em sua objetividade analtica, os antroplogos necessitavam de evidncias empricas para seus estudos acerca dos povos indgenas e encontravam nos artefatos produzidos por estes grupos as provas vivas, que materializavam a existncia destas culturas, at ento desconhecidas ou pouco estudadas. Nestes museus de cincia, poder-se-ia encontrar colees de objetos de diferentes culturas que, ao serem 33

expostas ao pblico, serviam como meio de comprovao dos resultados obtidos nas pesquisas cientcas. Sob esta perspectiva, o Museu Nacional organiza, em 1882, a primeira grande Exposio Nacional e, em busca de retratar a presena extica dos primeiros habitantes, expe indgenas vivos, de carne e osso. O que nos parece hoje absurdo era totalmente plausvel para a poca. Nesta exposio, ndios botocudos do interior do Esprito Santo e de Minas Gerais foram exibidos ao lado de objetos e pinturas retratando indgenas de diferentes procedncias do pas (ABREU, 2007, p. 142). Somente a partir da segunda metade do sculo XX, com o desenvolvimento das Cincias Humanas e Sociais, que haver uma maior preocupao e sensibilizao dos pesquisadores pelas questes e problemticas enfrentadas pelos povos indgenas no Brasil hodierno. justamente neste perodo que surge uma importante experincia que servir como divisor de guas no tocante forma de apresentar a histria, a memria e as manifestaes culturais dos povos nativos no Brasil. Em consonncia com as novas vertentes do pensamento antropolgico, mais especicamente com a antropologia cultural e sua valorizao dos aspectos simblicos da cultura, que Darcy Ribeiro, atuando na Seo de Estudos do Servio de Proteo do ndio (SPI), inaugura, no dia 19 de abril de 1953, o Museu do ndio no Rio do Janeiro. A instituio trazia uma nova orientao da etnologia que, segundo Ribeiro, deveria descartar os antigos preconceitos e se interessar, 34

sobretudo pelos problemas humanos da populao focalizada (RIBEIRO apud ABREU, 2007, p. 146). O museu idealizado por Darcy Ribeiro deveria romper com os tradicionais museus etnolgicos e servir como instrumento de luta.O museu deveria privilegiar informaes sobre as condies de vida dos povos indgenas na sociedade brasileira, os graves problemas sociais e o fato de os ndios no terem a propriedade de suas terras asseguradas. Darcy propunha que a exposio fugisse da tendncia a mostrar os objetos indgenas como exticos para se xar na idia de que esses objetos integrariam o elenco de solues encontradas pelos indgenas para os problemas com que se defrontavam diante das necessidades de subsistncia em orestas tropicais ou regies ridas (ABREU, 2007, p. 147).

Como podemos perceber, o Museu do ndio inaugura uma nova abordagem na maneira de apresentar os povos indgenas no espao museal. Seus objetos deixam de ser vistos como vestgios materiais de culturas inferiores e exticas, representantes de um passado remoto em vias de extino, e ganham um sentido positivo e de exaltao da criatividade e da diversidade cultural, uma armao da contribuio destes povos na formao da cultura brasileira.

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1.1.3 A descoberta dos museus pelos ndios Algumas experincias recentes, ocorridas no Brasil e em outros pases, como Canad e Mxico, nos fornecem pistas para reetirmos sobre as possibilidades que a criao de espaos museolgicos em comunidades indgenas pode proporcionar, principalmente nos terrenos da memria e da organizao social. O Museu Maguta, dos ndios Ticuna do Alto Solimes (Amazonas), uma experincia interessante que nos remete a alguns questionamentos fundamentais para a compreenso do papel dos museus entre comunidades indgenas. Quais os caminhos possveis para a organizao de museus criados e geridos pelas prprias comunidades tnicas? Que relaes podem ter estes espaos com questes fundamentais na luta poltica dos ndios, como o reconhecimento tnico e a demarcao de suas terras? Durante o processo de construo do Museu Maguta, que aconteceu entre 1988 e 1991,os ndios participaram ativamente na organizao do acervo, colaborando na denio dos objetos, no levantamento dos dados sobre cada pea, na seleo daquelas destinadas exposio e no desenho das ilustraes para sua contextualizao (FREIRE, 1998, p.7).

A formao do acervo se espalhou pelas quase 100 aldeias Ticuna, que enviavam os objetos para a sede, no 36

municpio de Benjamim Constant, totalizando 420 peas antes da abertura do museu. Aquele era um momento de luta fundamental para os Ticuna.[Seu direito] terra dependia, em grande parte, de serem reconhecidos como ndios pela sociedade brasileira, assumindo plenamente sua identidade tnica, muitas vezes escondida por eles prprios e negada sempre pela populao regional, para quem os ndios eram caboclos (FREIRE, 1998, p.7).

Entretanto, intensa campanha levada a cabo pelo prefeito da cidade culminou com a realizao de uma manifestao contra a demarcao das terras indgenas. A hostil manifestao aconteceu no dia da inaugurao do Museu Maguta, que foi cancelada e adiada. Resta-nos reetir sobre o que motivou a elite local a associar a criao de um museu com a demarcao de terras. Por que este espao encarnou todo o sentimento anti-indgena estimulado pelo prprio poder pblico municipal? Por que a temerosidade quanto possibilidade da imerso de outras verses da histria, neste caso, contada pelos indgenas? Conforme Clastres, a histria se conta em mltiplos sentidos e se diversica em funo das diferentes perspectivas em que est situada (1990, p. 53). Neste sentido, pra que serve um museu numa comunidade indgena? Graas interveno de instituies e da repercusso na imprensa, aps trs semanas o museu foi inaugurado, numa 37

cidade que ainda no possua nenhum equipamento cultural similar. O curioso que o fato levou a populao local a pensar que a instituio museu seria de origem Ticuna, j que os moradores no possuam referncias anteriores de museus no municpio (FREIRE, 1998). Muitas so as experincias interessantes para pensarmos na importncia de museus em comunidades tnicas. Alm do Museu Maguta e da Casa de Cultura Parintintim (Humait-Amazonas) em sua aliana com o Museu do ndio (RJ), a rede de museus comunitrios indgenas no Mxico e a Embaixada dos Povos da Floresta (SP) so outras experincias interessantes das quais podemos tirar inmeras lies (FREIRE, 1998). Em 1995, foi organizado o primeiro museu indgena no Cear, numa comunidade que iniciara h pouco sua organizao tnica: os Fernandes, moradores do municpio de Aratuba (macio de Baturit), que assumiram-se enquanto etnia Kanind durante seu processo de etnognese. 1.1.4 Museus indgenas no Cear contemporneo Em conformidade com a anlise de Holanda (2005) sobre o processo de formao do acervo indgena no Museu do Cear, o antroplogo Joo Pacheco de Oliveira arma, acerca da representao dos ndios do Nordeste nas instituies museolgicas, que tais povos e culturas passam a ser descritas apenas pelo que foram (ou pelo que supe terem sido) h sculos, mas nada (ou muito pouco) se sabe sobre o que eles so 38

hoje (OLIVEIRA, 2004, p.15). Estes povos se faziam presentes nos museus (...) seja atravs de peas arqueolgicas e relaes histricas de populaes que viveram no Nordeste, seja por colees etnogrcas trazidas de populaes atuais do Xingu e da Amaznia (OLIVEIRA, 2004, p.18). A coleo etnogrca de Thomaz Pompeu Sobrinho, hoje acervo do Museu do Cear, representativa dessa assertiva. Suas peas so provenientes de etnias indgenas da Amaznia, em sua maior parte8. Este esquecimento dos povos indgenas do Nordeste contemporneo no espao museal est intimamente relacionado com sua negao poltica e com o silncio que vai predominar durante a maior parte do sculo XX. Na dcada de 1950, a relao de povos indgenas no Nordeste inclua dez etnias; quarenta anos depois, em 1994, essa lista montava a 23 (OLIVEIRA, 2004, p. 13). Entretanto, a partir da dcada de 1980, o silncio ser rompido e novos captulos desta histria sero escritos pelos povos indgenas no Cear. A emergncia tnica ocorre:junto s articulaes polticas destas comunidades sob a categoria identitria indgena e em etnnimos especcos (). Inicia-se um processo de diferenciao, de redescoberta, de busca de sinais diacrticos em relao sociedade envolvente (GOMES; VIEIRA NETO, 2009, p. 377).

No incio do processo de mobilizao tnica, essas comunidades despertaram o interesse de agncias missionrias 39

e de setores vinculados universidade, o que resultou numa aproximao poltica atravs de assessorias diversas. A constituio de um arcabouo terico que propiciou a anlise e a compreenso cientca destes processos de reconstruo cultural foi fundamental para o fortalecimento destes movimentos e no seu empoderamento em relao aos adversrios polticos. Para a compreenso destes processos de emergncia de novas identidades e-ou reinveno de etnias j reconhecidas (OLIVEIRA, 2004, p. 20), fundamental a noo de etnognese, que consideramos enquanto um processo de recriao cultural e de reelaborao da cultura e da relao com o passado (idem, p. 22), em que o papel da memria fundamental. (...) Quais aspectos destas identidades em reconstruo sero apropriados de maneira a perceberem-se enquanto portadores de uma cultura ancestral? (GOMES; VIEIRA NETO, 2009, p. 376). Como aconteceram os processos de ocultamento/ silenciamento da cultura enquanto forma de resistncia dos antepassados? Esta volta do olhar ao passado fundamental no processo de armao tnica, mobilizao poltica e armao de determinadas referncias identitrias, para obter reconhecimento pblico. Os mais antigos, que so guardies de uma memria silenciada porque no-dita. Mantm os segredos mais recnditos destes grupos e so protagonistas das narrativas desta descoberta. Essas lembranas so transmitidas no quadro familiar (...) em redes de sociabilidade afetiva e/ou 40

poltica. espera de um momento oportuno para vir a tona, essas memrias clandestinas permanecem inaudveis at o momento em que invadem o espao pblico.Existem nas lembranas de uns e de outros zonas de sombra, silncios e no-ditos. Essa tipologia de discursos, de silncios e tambm de aluso e metforas, moldada pela angstia (...) de ser punido por aquilo que se diz (POLLACK, 1989, p.8).

Suas memrias so interpretadas de forma a justicar, no presente, a conduta da comunidade em assumir-se herdeira de uma tradio que no se rompeu. Portanto, quais aspectos destas identidades em reconstruo sero (re)apropriados pelos indgenas como portadores de uma cultura ancestral? Uma dana (o Tor/Torem), um saber-fazer (o artesanato em tucum, a produo de objetos em cermica, as armadilhas de caa e pesca etc), uma origem comum (uma ndia mateira, a terra do aldeamento ou de uma igreja), aspectos da religiosidade (presena de rezadeiras, rituais de pajelana, cantos de chamado para os caboclos da mata, a mediunidade or da pele), entre outros. Que traos culturais sero utilizados como sinais diacrticos desta cultura em relao s outras? Que traos culturais armaro a sua singularidade em meio sociedade circundante? Armar esta diferena fundamental. Alguns smbolos de diferenciao social so evidenciados intencionalmente por comunidades tnicas que armam, atravs destes sinais, referncias identitrias 41

emblemas de suas diferenas (BARTH, 1998 p.194). Nos museus, por exemplo, alguns sentidos so incorporados aos objetos, sentidos do que se deseja preservar. A cultura de um grupo tnico, ao tornar-se uma cultura de contraste, (...) tende ao mesmo tempo a se acentuar, tornando-se mais visvel, e a se simplicar e enrijecer, reduzindo-se a um nmero menor de traos que se tornam diacrticos (CARNEIRO DA CUNHA apud SILVA, 2005, p. 33) O processo de etnognese acontece junto s articulaes polticas das comunidades indgenas do Cear em etnnimos especcos (Tapeba, Trememb, Potyguara, Kalabaa etc), e o atendimento de suas demandas se relaciona com a armao de sua etnicidade perante a sociedade. A partir da, inicia-se um processo de diferenciao cultural, de redescoberta, de construo de sinais diacrticos em relao sociedade envolvente. Os povos indgenas no Cear e no Nordeste zeram diversos caminhos nesta viagem de volta9. Muitos ainda esto se reencontrando e suas diferentes trajetrias devem ser compreendidas em sua singularidade especca. Suas memrias percorreram caminhos tortuosos pelo imenso serto, litoral e serras do Cear. Suas moradas, em constante migrao, zeram-lhes enfrentar longas jornadas at o local onde atualmente esto e realizam sua luta. Sabemos que a memria oral no tem pretenso com a verdade, j que esta menos a experincia direta dos informantes do que o resultado do trabalho que a memria faz 42

com esta experincia (HALL, 1992, p.157)10. O esquecimento transforma-se em lembrana do que foi proibido dizer, mas que permaneceu guardado. So freqentes os relatos de uma memria perigosa para os que dela compartilham. So comuns, no interior do Cear, armaes como minha me foi pega a dente de cachorro na mata. A lembrana do sofrimento passado torna necessrio o esquecimento, pois da vem a possibilidade de sobrevivncia fsica, no anonimato, em relao ancestralidade. As reexes que resultaram na constituio do objeto deste estudo situam-se no interior de um debate conceitual e poltico da Antropologia e da Histria, que reinterpreta a presena indgena no Brasil, no passado e no presente, priorizando os modos como estes grupos vivenciam as relaes intertnicas, os processos de conito e a interao entre os grupos. A este suporte terico, aliamos os conhecimentos da Museologia. Este encontro epistemolgico, que se designou chamar, algumas vezes, de etnohistria ou antropologia histrica (OLIVEIRA, 2004, p.38), somamos a perspectiva de uma etnomuseologia (CASTRO; VIDAL, 2001, p.270; FREIRE, 1998), direcionando nosso olhar para as relaes entre histria, cultura e etnicidade na constituio dos museus indgenas no Cear. Compreendemos cultura enquanto produto histrico, dinmico e exvel, formado pela articulao contnua entre tradies e experincias dos homens que as vivenciam (ALMEIDA, 2003, p.33). A anlise de Fredrik Barth (1988), 43

buscando nas fronteiras tnicas os elementos da interao social, num enfoque relacional, atualmente tem grande inuncia nos estudos tnicos. Entretanto, no utilizamos aqui a noo de etnognese seno atentando para a histria e o contexto local, como uma experincia particular que se constri nas vivncias de cada grupo, num processo que peculiar a diferentes povos e culturas. Na anlise destas reconstrues identitrias imprescindvel estabelecer as relaes entre histria, cultura e etnicidade, considerando-as comoum processo contnuo de conito e esforos polticos e culturais de um povo, que ao longo de sua existncia busca criar identidades duradouras em contextos de dominao, mudanas radicais e descontinuidades, e tem conscincia histrica desses esforos (HILL apud SILVA, 2005, p.41).

Histria e Antropologia avanam em dar sentidos s percepes das formas como os grupos tnicos (re)signicaram suas culturas e memrias. So novos sentidos que superam as teorias da aculturao e do assimilacionismo (SILVA, 2005) e rompem com a perspectiva de uma etnologia das perdas culturais, que vai cedendo lugar para uma viso dinmica e situacional de cultura (OLIVEIRA, 2004). Segundo Barth, quando(...) atores usam identidades tnicas para categorizar a si mesmo e outros, com objetivos de interao, eles formam grupos tnicos no sentido organizacional (BARTH, 1988, p.194).

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Pensamos grupo tnico como categoria de atribuio/ identicao que propicia a interao e a organizao entre os atores sociais (idem, p. 189). A noo de etnognese contribui para superar o dualismo estrutura-processo histrico na teoria social, se considerarmos a inuncia mtua entre ambos e a cultura como um sistema aberto e dinmico, de circulao de signicados que, a partir das experincias, so reconstrudos e atualizam sentidos e pertencimentos identitrios, que se fundam, dentre outras formas, na interao e na ao poltica, mas que sobrevivem a esta (OLIVEIRA, 2004; SILVA, 2005; BARTH, 1998). Tanto etnias indgenas como populaes regionais no Cear tm em sua memria social fortes lembranas de migraes foradas, perseguio e violncia aos ancestrais. Para Max Weber, as lembranas da migrao e a ao poltica coletivaso caminhos para a construo do sentimento de pertencimento a um grupo tnico no qual se nutre uma crena subjetiva na procedncia comum (...) A comunho tnica (...) Fomenta relaes comunitrias de natureza mais diversas (...). a comunidade poltica que costuma despertar (...) a crena na comunho tnica, sobrevivendo esta geralmente a decadncia daquela (WEBER apud ALMEIDA, 2003, p. 262).

No Cear, diversos processos de etnognese foram objeto de reexo acadmica, a partir da dcada de 1990, 45

dentre os quais destacamos os trabalhos de Barreto Filho (1993); Valle (1993); Aires (1994, 2000); Messender (1995); Oliveira Jr (1998; 2006); Bezerra (2000); Pinheiro (1999, 2002); Souza (2001); Lima (2003, 2009) e Almeida (2004, 2009). Em 2009, a publicao da coletnea Na mata do sabi: contribuies sobre a presena indgena no Cear (PALITOT), traz a lume diversos trabalhos inditos, vindo a reforar a necessidade de publicizao da questo indgena no Cear como objeto de produo acadmica, principalmente das reas de Histria e Antropologia, para um pblico mais amplo. Alm destes, destacamos os trabalhos sobre museus cearenses sob as perspectivas da Histria e da Museologia, como os de Holanda (2005), Oliveira (2009) e Ruoso (2009), sobre o Museu do Cear; e Duarte Cndido (1998), sobre o Museu Dom Jos (Sobral). 1.2 Educao histrica e museolgica em comunidades indgenas As reexes oriundas da realizao de um processo contnuo de educao histrica e museolgica junto s comunidades indgenas no Cear nos fazem atentar para as possibilidades de percepo do aprendizado da histria atravs da cultura material, pois conforme Rgis Lopes Ramos, se aprendemos a ler palavras, preciso exercitar o ato de ler objetos, de observar a histria que h na materialidade das coisas (2004, p. 21). 46

Algumas questes foram recorrentes nas ocinas ministradas nas comunidades ao longo do primeiro semestre de 2009. Uma delas diz respeito aos vestgios arqueolgicos da cultura material de povos que habitaram, em tempos pretritos, o territrio hoje ocupado por muitas comunidades em processo de etnognese. Outra questo a do repatriamento de objetos. Com a criao destes museus indgenas, fala-se no desejo de iniciar um processo de retorno das peas que foram coletadas para salvaguarda, quando no conscadas, por pesquisadores e instituies diversas, ao longo de dcadas, para a formao de museus, colees etnogrcas ou estudos cientcos. Alm de lugar da escrita da histria, estes acervos, retornando para as localidades onde foram encontrados originalmente, possibilitaro inmeras pesquisas antropolgicas e arqueolgicas, tornando-se potenciais centros de documentao e fonte de elaborao para recursos didticos que dem subsdios para pensarmos noutras verses para a histria do Cear, contadas a partir das experincias de resistncia dos prprios indgenas11. Os museus indgenas conguram-se como espaos propcios para a educao diferenciada no-formal. Pensamos na perspectiva que apontam Castro e Vidal, quando armam que estes espaos culturais devem promover e orientar atividades de pesquisa e extenso cultural, com o objetivo de reetir sobre a construo de estratgias de desenvolvimento dessas comunidades (2001, p.270). Um dos primeiros aprendizados acontece durante a formao do acervo, quando so mobilizadas as comunidades em torno de um objetivo 47

comum: escolher os objetos mais signicativos para a histria da etnia para a musealizao. Propomos que o acervo seja formado a partir da mobilizao comunitria para a percepo da diversidade de memrias presentes na etnia. O que lembrar e o que esquecer? O que preservar no museu? Estas so decises polticas necessrias quando utilizamos a memria como instrumento para a construo da etnicidade. Outro passo fundamental a apropriao do arcabouo terico-metodolgico necessrio para o trabalho em museus, que acontecer com a contnua capacitao do ncleo responsvel por sua dinamizao na comunidade. A parceria com a escola e com os professores indgenas nos parece imprescindvel para o dilogo museucomunidade ser frutfero. O museu deve ser visto como um lugar dinmico. Para alm da preservao de memrias, acontece neste espao a construo da diversidade tnica e da alteridade, to necessrias aceitao das diferenas. Innitas so as atividades a serem desenvolvidas no espao museal indgena: expresses ritualsticas, ocinas para reaprender e reinventar saberes aparentemente esquecidos, trabalhos com a histria oral. Os guardies da memria coletiva, os troncos velhos, podem narrar, para as novas geraes, suas lembranas e conhecimentos, a partir da cultural material e simblica. O museu transforma-se num potencial vetor para dar visibilidade s diferenas culturais e terreno frtil para as lutas provindas do processo de construo social da memria. Assim como os povos indgenas do Ua (Oiapoque), os povos indgenas no Cear s podero construir sua 48

etnomuseologia - coerente com sua viso de mundo logo que possurem os suportes materiais do seu prprio museu (CASTRO; VIDAL, 2001, p.270). Para alm das reexes no campo da memria e do patrimnio cultural, tambm extremamente importante o aprendizado acerca dos procedimentos tcnicos da museologia, como a elaborao de livros de tombo, inventrios, organizao da reserva tcnica, gesto e elaborao de projetos expositivos, aplicao de metodologias de ao educativa museolgica, entre outras coisas necessrias para a salvaguarda e a comunicao destes acervos. A luta dos grupos indgenas no Cear traz em seu bojo a construo das representaes sobre si e seu processo de organizao. A memria, neste sentido, fundamental, junto escrita da sua histria. Os museus, por sua vez, constituem-se em elementos de armao desta etnicidade e lcus educativo por excelncia, por serem espaos formativos para as diversas geraes. Lugar que potencializa a memria enquanto estratgia de armao tnica, os museus indgenas armam o que muitos querem negar: a existncia de ndios no Cear, que nunca foi interrompida, apenas silenciada. Etnicidade que ressurgiu com fora, em contextos de conito e na luta por direitos bsicos de sobrevivncia, como terra, sade e educao.1.3 - Diagnstico participativo e estruturao museolgica.

Em janeiro de 2009 aconteceram duas importantes modicaes na esfera do legislativo federal que reetem 49

as transformaes que atingiram o cenrio museolgico brasileiro: a criao do IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus) e a homologao do decreto-lei que instituiu o Estatuto de Museus12. O Estatuto um documento que estabelece as diretrizes para a organizao das unidades museolgicas nacionais, pblicas e privadas. Diz respeito s suas funes, a preservao, segurana, estudo, pesquisa, ao educativa e a garantia de acessibilidade aos seus respectivos patrimnios, entre outras questes. Mais precisamente em seu Captulo II (Do regime aplicvel aos museus), seo III (Do Plano Museolgico), o artigo 44 estabelece: dever dos museus elaborar e implementar o plano museolgico. Deste modo, a elaborao deste documento uma das primeiras aes necessrias a adequao das unidades museolgicas s diretrizes do Estatuto. O plano museolgico, que estabelece a misso do museu na sociedade, tem como procedimento indispensvel para a sua elaborao o diagnstico participativo da instituio, podendo ser realizado com o concurso de colaboradores externos (BRASIL, 2009). Deste modo, o Diagnstico Participativo (DP) surge a partir da necessidade de estruturao de museus segundo os padres museolgicos vigentes na legislao brasileira. A elaborao do plano museolgico pressupe o conhecimento da realidade das instituies, suas potencialidades e desaos a enfrentar. Desde julho de 2006 foi regulamentada a elaborao do plano museolgico dos museus que eram vinculados ao IPHAN (Instituto do Patrimnio Histrico e 50

Artstico Nacional) e hoje esto sob a tutela do IBRAM. Com o Estatuto de Museus, se estabelece a exigncia do documento para as demais instituies museolgicas do pas. O plano museolgico sistematiza um planejamento estratgico da instituio museal, destacando seus objetivos e aes, constituindo instrumento essencial para a atuao da comunidade na qual o museu est inserido. O ideal esse documento seja elaborado concomitantemente ao processo de estruturao museolgica. Pode ter, entre outras partes: um diagnstico institucional; a identicao do acervo; o pblico preferencial com o qual trabalhar; e o detalhamento dos seus programas. Alm do carter interdisciplinar, o plano museolgico dever ser elaborado de forma coletiva e participativa, envolvendo o conjunto de funcionrios da instituio museal. Os trs museus indgenas existentes no Cear ainda no possuem plano museolgico e sua elaborao deve ser um dos primeiros procedimentos do processo de reestruturao museolgica. Para a construo deste documento, sugerimos a leitura do Estatuto de Museus (Seo III Do Plano Museolgico) e a contratao de um prossional capacitado para a coordenao do seu processo de elaborao. 1.3.1 Construindo o diagnstico participativo No primeiro momento do diagnstico foram apresentadas aos organizadores dos museus/centros culturais 51

indgenas as concepes museolgicas tradicionais e contemporneas (HERNANDEZ, 2006), a m de dar elementos para fundamentar a anlise da instituio. No segundo momento foi realizada uma diviso dos participantes das ocinas em grupos de trabalho, nos quais foram elaboradas as propostas para sanar demandas existentes nos museus em processo de avaliao, como por exemplo: organizao de inventrios e/ ou livros de tombo, a implantao de ncleo pedaggico, melhorias na infra-estrutura, organizao de ncleos gestor e de manuteno, adaptao de mobilirio expositivo e de acondicionamento do acervo, incorporao de novos acervos temticos e estratgias para garantir a aproximao entre o museu e a comunidade. Posteriormente, estas demandas foram sistematizadas e apresentadas na mesa-redonda intitulada Diagnsticos participativos em museus13, em forma de propostas de estruturao museolgica, que constituem-se como sugestes para orientar as adequaes dos museus nas comunidades indgenas do Cear. As propostas de (re)estruturao museolgica foram realizadas junto as etnias que j possuam espaos museais ou casas de cultura. Vale lembrar que esse processo segue determinadas singularidades de cada etnia/unidade museolgica. Embora algumas aes sejam semelhantes no processo inicial de organizao museal, para cada comunidade tnica foi elaborado um diagnstico especco, conforme ser observado no captulo 3 desse livro. 52

2. PROPOSTAS DE ESTRUTURAO MUSEOLGICA

2.1 Sobre os diversos espaos constitutivos, servios e infraestrutura. Procederemos descrio dos espaos constitutivos, servios e infra-estrutura mnima necessria para o funcionamento adequado de unidades museolgicas, bem como indicaremos os parmetros que nortearam nosso trabalho. A ocina Diagnstico Participativo em Museus (DPM) tinha por meta a socializao de ferramentas metodolgicas que possibilitam aos participantes formularem propostas de reestruturao, criao e auto-gesto de espaos museolgicos em suas comunidades. A partir do dilogo acerca dos conceitos bsicos da histria social, da antropologia e da nova museologia, buscamos construir uma reexo sobre a memria local, que possibilite a identicao das demandas, potencialidades e possveis procedimentos para a organizao de um museu de modo participativo e coletivo. Determinados procedimentos foram indicados para as todas as comunidades e tero uma breve exposio a seguir. Esta escolha metodolgica facilitar a leitura dos diagnsticos, alm de minizar a excessiva repetio de propostas. Dividiremos esses procedimentos nos seguintes termos: salvaguarda; gesto museolgica; comunicao e infraestrutura. 53

2.2 Salvaguarda A salvaguarda corresponde aos procedimentos que visam preservao dos acervos museolgicos. 2.2.1 Coleta de objetos ou campanha para doao de objetos. Uma das primeiras aes buscando a organizao de uma unidade museolgica pode ser a coleta e reunio de objetos num espao determinado que, ainda que no seja o local no qual funcionar o museu, deve ter condies fsicas adequadas para garantir a preservao dos objetos doados. Caso contrrio, recomendamos que estes objetos s sejam coletados quando este espao for providenciado, para no comprometer o acervo nem a conana dos possveis doadores. Recomendamos a organizao de uma campanha para a coleta de objetos que faro parte do acervo da unidade museolgica em processo de organizao. Esta ao pode acontecer, de preferncia, em parceria com as associaes indgenas e instituies escolares diferenciadas, atravs do envolvimento de professores, estudantes, lideranas e moradores. 2.2.2 Documentao do acervo. Entre os instrumentos utilizados para a documentao do acervo est o livro de tombo. feito por encomenda em 54

grcas ou adaptado a partir de um livro de atas comprado em papelarias. Entre suas partes, deve conter: 1. Pginas numeradas (que no podem ser arrancadas); 2. Pgina inicial com um termo de abertura, assinado pelo responsvel da unidade museolgica; 3. Pginas com colunas que permitam o registro de informaes como o nome e o nmero de entrada do objeto/ documento no museu, procedncia, estado de conservao e observaes gerais acerca da pea. Todo o acervo de um museu deve ser contabilizado com rigor, utilizando normas tcnicas da museologia contempornea. Os objetos presentes no acervo de um museu devem ser marcados com uma numerao que deve constar no livro de tombo e na sua cha de inventrio. Em peas de madeira geralmente utiliza-se tinta nanquim para a marcao. Em fotograas e documentos utiliza-se lpis. Em tecidos devese costurar uma etiqueta com a numerao. Enm, para cada tipo de objeto, considerando o seu material de fabricao, h uma forma diferenciada de marcar a numerao. Como procedimento comum h a recomendao de intervir o mnimo possvel na pea, colocando o nmero em local discreto, pois a marcao para o controle interno do museu e no para a sua demonstrao nas vitrines de exposio. Na medida em que os objetos so tombados, preciso tomar certas precaues. Eles devem ser manuseados, 55

higienizados e acondicionados adequadamente. Assim necessrio seguir normas tcnicas para a realizao de todos os procedimentos sugeridos, consultando manuais que as apresentam ou tcnicos com experincia nesse trabalho14. A cha de inventrio15 uma espcie de carteira de identidade do objeto. Deve conter informaes adicionais as do livro de tombo, como caractersticas fsicas (dimenses, cor, textura etc), histrico (poca de fabricao, usos), intervenes de restauro, alm de campos para anexar fotograas da pea. Esse registro permanente possibilita um maior conhecimento e controle sobre o acervo, dicultando as perdas materiais e a disperso das informaes com a rotatividade de funcionrios do museu. Facilita o desenvolvimento de pesquisas sobre os objetos, garantindo um registro de informaes permanente. Contribuiu ainda para a montagem das legendas e textos que acompanham as exposies, para o incentivo de pesquisas e publicaes sobre a cultura material, o incremento de visitas orientadas e a elaborao de ocinas pedaggicas que envolvam professores e alunos no debate sobre o potencial dos objetos como documentos histricos. Com o livro de tombo atualizado e as chas de inventrio organizadas, pode-se proceder informatizao das informaes do acervo em momento posterior, por meio de um banco de dados. possvel tambm organizar um catlogo do museu, que pode ser publicado para uso institucional, consulta local e divulgao do acervo.

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2.2.3 Organizao da reserva tcnica A reserva tcnica o espao do museu com acesso permitido apenas aos funcionrios que trabalham com o acervo. o local onde so guardados os objetos que no esto em exposio.. Isso no signica que as peas da reserva tcnica nunca sero apresentadas ao pblico. Ao contrrio, elas podero ser expostas em mostras de curta durao ou no rearranjo das exposies de longa durao. A qualquer momento, esses objetos podem voltar s exposies ou ainda servirem como material de consulta para pesquisadores da cultura material. As peas devem car acondicionadas em mobilirio adequado para cada tipologia de objeto. Com o aperfeioamento do trabalho da unidade museolgica, deve-se proceder aos cuidados relativos ao controle de luz, temperatura e umidade, que so fatores bsicos para a conservao de qualquer acervo. Os objetos no devem ser expostos de forma aleatria. Na reserva tcnica, devem ser acondicionados em suportes prprios e, nas exposies, em expositores de madeira, ferro, ao etc. Esses suportes podem ser encomendados a empresas especializadas, mas outras solues criativas podem ser pensadas pela prpria comunidade. 2.3 Gesto museolgica O ncleo gestor do museu a equipe tcnica responsvel por desenvolver as funes bsicas para o funcionamento da 57

instituio, realizando pesquisas, elaborando projetos para captao de recursos, coordenando o Ncleo Pedaggico e a equipe de manuteno, elaborando o projeto poltico e o plano museolgico da instituio, entre outras funes administrativas, pedaggicas e cientficas. Deve ter, entre outros profissionais: a) um responsvel pela direo; b) um coordenador pedaggico (responsvel pela ao educativa); c) pesquisadores de diferentes reas (de acordo com o acervo do museu); d) estagirios do ncleo educativo (estudantes de cursos de graduao ou estudantes das escolas diferenciadas); e) equipe de manuteno (servios gerais, eltrico, hidrulico etc). 2.3.1 Vincular o museu a uma tutela administrativa O museu no existe enquanto entidade jurdica prpria. Assim, preciso vincul-lo a uma tutela administrativa. No caso dos museus indgenas, propomos que essa tutela que a cargo das associaes formalizadas em cada etnia. Isto garantir a autonomia frente aos poderes pblicos estaduais e municipais. Para isto, necessrio indicar no estatuto da associao a responsabilidade sobre o funcionamento da unidade museolgica. A partir da, o museu utilizar o nmero do Cadastro Nacional de Pessoa Jurdica (CNPJ) da associao para concorrer aos editais pblicos e captar recursos nanceiros que auxiliem a sua gesto. 58

2.3.2 Implementao do plano museolgico Sugerimos que o documento seja elaborado de forma concomitante ao processo de estruturao museolgica. Como j foi comentado, o plano museolgico sistematiza o planejamento estratgico da instituio museal, destacando os objetivos e aes de suas reas de funcionamento, constituindo instrumento essencial para a atuao na comunidade na qual o museu est inserido. Consideramos que o momento inicial do diagnstico participativo j foi realizado durante as ocinas promovidas pelo Projeto Emergncia tnica. 2.3.3 Equipe de manuteno A partir do momento em que for organizado o espao fsico destinado a sediar o museu, deve ser formada uma equipe de manuteno composta por, no mnimo, um responsvel por servios gerais (eltrico, hidrulico etc) e outro pela zeladoria (limpeza do espao e do acervo). Porm, necessrio seguir alguns procedimentos na manuteno do espao museolgico, que atendam s suas funes de armazenar, expor e zelar pela preservao dos acervos. Deste modo, os funcionrios responsveis pela manuteno devero passar por uma capacitao para realizar a limpeza e a manuteno dos acervos e espaos museolgicos.

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2.3.4 Filiao aos sistemas de museus Em 2003 foi criado no IPHAN (Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional), autarquia do Ministrio da Cultura, o DEMU (Departamento de museus e centros culturais). Em janeiro de 2009, com a fundao do IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus), criou-se uma nova autarquia responsvel exclusivamente pela rea museolgica em nvel nacional. Desde 2003, faz parte da poltica cultural do Governo Federal a criao dos Sistemas Nacionais de Cultura (SNC), que tem por objetivo agregar a diversidade de equipamentos, grupos culturais e linguagens artsticas (teatros, museus, bibliotecas, bandas de msica, centros culturais etc). Em nvel nacional foi criado o SBM (Sistema Brasileiro de Museus)16, aos quais so agregados os sistemas estaduais de museus. Em nvel local, em 2004 foi fundado o SEM-CE (Sistema Estadual de Museus do Cear), que tem por objetivo sistematizar e implementar polticas de integrao e incentivo aos museus de todo o Estado17. Propomos que, to logo seja criada a unidade museolgica indgena, os responsveis procedam liao ao SEM-CE, atravs do cadastramento e da assinatura do termo de adeso, como tambm ao SBM. Alm de permitir um acesso direto s informaes e cursos de capacitao ofertados, alguns editais do Ministrio da Cultura, Secretaria da Cultura do Estado, dentre outros, tm entre seus critrios de seleo e classicao a participao dos proponentes nos sistemas em questo. 60

2.3.5 Participao em editais. Periodicamente so publicados editais e premiaes especcas para a rea de museus, nanciados por rgos pblicos federais, estaduais e municipais, alm de empresas privadas. Entre os editais locais esto os da Secretaria da Cultura do Estado do Cear, como o Edital de Preservao do Patrimnio. Em mbito nacional temos o Mais museus e Modernizao dos museus (Ministrio da Cultura), Petrobrs Cultural, Programa de ao cultural da Caixa Econmica Federal, BNB Cultural etc. Outra opo o cadastramento de projetos nas leis de incentivo cultural como a Lei Rouanet (de mbito nacional) e o Mecenato (SECULT), para a captao de recursos na iniciativa privada. Especicamente para as comunidades indgenas, existem editais, selees pblicas e premiaes prprias, como o Prmio Culturas Indgenas, provindo do mbito do Ministrio da Cultura. 2.4 Comunicao Este tpico refere-se a pesquisa e s aes educativas e de comunicao, que promovem a difuso dos acervos museolgicos. Segundo o Estatuto de Museus, o estudo e a pesquisa fundamentam as aes desenvolvidas em todas as reas dos museus, no cumprimento das suas mltiplas competncias (artigo 28) e as aes de comunicao constituem formas de se fazer conhecer os bens culturais 61

incorporados ou depositados no museu, de forma a propiciar o acesso pblico (artigo 31). 2.4.1 Criao de um ncleo educativo. O ncleo educativo o grupo responsvel pelo planejamento do projeto pedaggico da instituio. Pode ser composto por prossionais e estagirios de diversas reas, de acordo com caractersticas do acervo e da proposta museolgica da instituio. Propomos a capacitao da prpria comunidade indgena para o exerccio de gesto e construo de metodologias de interao com a comunidade. Cada tipologia de museu necessita de prossionais especcos. Nos museus indgenas, estes monitores poderiam ser estudantes das escolas, orientados por um professorcoordenador do museu, inserido no currculo escolar. Este ncleo ser responsvel pelas visitas orientadas. a partir dele que os visitantes tomam conhecimento dos projetos e perspectivas pedaggicas do museu. Por isso, para o seu funcionamento adequado, deve ser estruturado com horrios determinados para o atendimento aos grupos de visitantes e para as reunies administrativas e de estudo. Os jovens estudantes das escolas indgenas diferenciadas devem ser capacitados atravs de cursos, participaes em encontros e estudos, planejados pelo coordenador do ncleo educativo. Posteriormente, de acordo com seu envolvimento nas atividades, estes prossionais em formao estaro aptos 62

para o trabalho em museus e podero ser incorporados aos quadros da gesto administrativa e pedaggica. 2.4.2 Organizao das exposies. O ncleo gestor e o ncleo pedaggico devem organizar as exposies de curta e longa durao, seja por meio de grupos de estudo e trabalho ou contratando assessores para esse m. A exposio de longa durao deve ser planejada para manter-se aberta ao pblico ao menos por um ano, j que a pesquisa e os recursos museogrcos exigem investimentos nanceiros que nem sempre so captados no espao de poucos meses. A partir de uma exposio o museu poder divulgar seu acervo entre escolas, professores, outros museus, prossionais da rea, o que ocasionar um maior volume de visitaes ao espao. 2.4.3 Capacitao do quadro funcional. A capacitao da equipe tcnica da unidade museolgica um dos fatores iniciais de maior importncia para sua estruturao em slidas bases, com uma equipe gestora capaz de realizar um trabalho educativo satisfatrio. De acordo com a natureza do acervo, diferentes reas devem ser priorizadas. Entretanto, existem saberes fundamentais que independem deste acervo. Neste sentido, imprescindvel que os integrantes da equipe tcnica do museu tenham noes bsicas de museologia, patrimnio cultural e conservao de acervos museolgicos, histria indgena do 63

Cear e do Brasil, entre outros conhecimentos necessrios ao trabalho em museus indgenas. 2.4.4 Pesquisas em histria local Sugerimos a realizao de pesquisas sobre a histria local e a histria dos objetos, que subsidiaro a incorporao de novas temticas nas salas de exposies, que foram necessidades ressaltadas durante quase todas ocinas. Este aprofundamento das informaes sobre o acervo possibilitar a organizao temtica das salas de exposio e a elaborao de novas metodologias a partir da reexo sobre a cultura material. A pesquisa em histria local permite superarmos a reproduo de uma histria do poder local e das classes dominantes, pois no objetiva fazer conhecer nomes de personagens polticos de outras pocas, () prefeitos e demais autoridades, mas sim buscar uma histria que crie vnculos com a memria familiar, do trabalho, das migraes, das festas (BITTENCOURT, 2004, p. 169). Estas pesquisas fornecero elementos para o desenvolvimento de atividades educativas na prtica cotidiana do museu e do seu entorno (fauna, ora, recursos hdricos, as casas dos guardies da memria, trilhas), como tambm a elaborao de materiais didticos. Estas pesquisas fortalecero ainda os laos de pertencimento ao museu e a redescoberta de identidades, j que pela memria que se chega histria local (BITTENCOURT, 2004, p. 169). 64

A partir destes estudos, novos objetos sero coletados e incorporados s salas reorganizadas. A pesquisa em histria local deve estar vinculada a uma sensibilizao coletiva sobre a importncia do trabalho desenvolvido pelo museu indgena, na inteno de estimular na comunidade o desejo de ver, contar e preservar aquilo que parte de sua histria.Alm da memria das pessoas, escrita ou recuperada pela oralidade, existem os lugares de memria () vestgios do passado de todo e qualquer lugar, de pessoas e de coisas, de paisagens naturais ou construdas, que tornam-se objeto de estudo (BITTENCOURT, 2004, p. 169).

Esta histria do local, por estar intimamente relacionada ao cotidiano, aproxima-se de uma histria social e cultural, pois faz emergir as tenses sociais do dia-a-dia, as formas improvisadas de lutas, de resistncia e de organizaes diferentes das estabelecidas pelo poder institucional; possibilitando uma histria na qual as pessoas comuns so participantes, estabelecendo relaes entre os grupos sociais de condies diversas, que participaram de entrecruzamentos de histrias, tanto no presente como no passado (BITTENCOURT, 2004, p. 167). 2.4.5 Plano de divulgao Sugerimos que os museus indgenas elaborem um plano de comunicao que identique os melhores caminhos e 65

instrumentos de promoo da instituio. No entanto, algumas propostas podem ser colocadas em prtica, em curto prazo e de forma independente. So elas: Apresentao do museu em escolas, universidades e instituies educativas, estimulando a visitao dos diversos pblicos; Inseres em rdios locais, convidando a populao a conhecer a experincia desenvolvida; Elaborao de cartazes, folders e cartes postais; Formao de uma mala-direta de contatos via internet para divulgar as atividades do museu;

2.4 6. Criao de centros de documentao indgena Os museus indgenas so potenciais centros de documentao. Em seu acervo pode ser guardada uma documentao variada. Sugerimos a construo ou escolha de uma sala para sediar um espao de consulta, lugar onde funcionar a biblioteca e o arquivo. Este espao deve possuir estantes, arquivos, chrios, mesas e cadeiras para a consulta, alm de regulamentao do seu uso, para emprstimo ou consulta local, de acordo com as especicidades de cada realidade. Alm disso, importante denir um responsvel pelo espao, que dever receber uma formao bsica para a organizao de livros e documentos. 66

2.5 Infraestrutura

2.5.1 Denir a sede do museu. Entre as comunidades indgenas que passam por um processo de (re)estruturao de unidades museolgicas, cada uma possui uma especicidade. Os Tapeba j possuem sede prpria para o museu. Os Tabajara/Kalabaa, em Poranga, possuem uma sala na escola diferenciada que est funcionando como a Oca da memria. Os Kanind de Aratuba tm uma casa com trs compartimentos cedida pelo cacique Sotero, das quais apenas um est sendo usado. Das trs etnias que no possuem museus, os Trememb tm o galpo onde funcionou a primeira sede da escola diferenciada, j disponibilizado. Em Monsenhor Tabosa, a Casa de Cultura da Aldeia Potyguara de Mundo Novo tambm j est disponvel. Entre os Pitaguary de Monguba, a Casa de Apoio tem espao suciente para a construo de um museu, utilizando alguns espaos da mesma. O grande desao que se coloca o processo de reestruturao fsica destes imveis para abrigarem museus e os equipamentos necessrios para seu funcionamento adequado (reserva tcnica, recepo, salas de exposio, auditrio, biblioteca, administrao etc). Cada etnia vivencia situaes singulares, e nesta denio acerca das sedes dos museus, devem ser pesados fatores econmicos, sociais e culturais para a escolha mais vivel. A adaptao de lugares importantes para a memria 67

local (como a Oca da Memria, que foi a primeira sede do CIPO, e a primeira escola diferenciada dos Trememb, por exemplo), interessante por dotar espaos signicativos com novas funes. 2.5.2 Reestruturao fsica Ao optarem por um imvel j existente, o espao deve ser adaptado e, se for o caso, restaurado, para sediar o museu. Neste processo de restaurao/adaptao, devem ser inseridos: bebedouros, banheiros masculino e feminino, sala para reserva tcnica, sala para administrao, espao de recepo dos visitantes, lojinha de souvenirs etc. Alm destes locais, necessrio ter ateno especial para a climatizao, a iluminao e a estrutura hidrulica e eltrica do local, de forma a garantir a salvaguarda e a conservao do acervo existente. Para isto importante a consultoria de arquitetos e outros prossionais da bio-construo para a elaborao de uma planta-baixa do futuro museu. Lembrando sempre de fundamental envolver na escolha, construo, organizao e gesto do museu, a comunidade circundante. 2.5.3 Projeto de iluminao A iluminao um fator muito importante a ser considerado na construo da infra-estrutura de um museu, pois atravs dela podemos obter uma maior valorizao dos objetos expostos. Ela tambm contribui para tornar ambiente 68

expositivo mais confortvel, convidativo e agradvel ao visitante. O projeto de iluminao dene o tipo e a quantidade de luminrias necessrias para o local. Podemos classicar o projeto luminotcnico de uma exposio em trs categorias: Iluminao geral: distribuio regular de luminrias, proporcionando certo grau de uniformidade da iluminao, no destacando pontos especcos; Iuminao direcional: dirigida com foco luminoso para um determinado espao ou objeto, proporcionado destaque; Iluminao localizada: aliada iluminao geral, proporciona elevado nvel de iluminao, mas concentra maior luminosidade em reas predeterminadas.

Quanto s luminrias, estas podem ser suspensas em trilhos de ferro sobrepostos no forro da edicao. Neste trilho instalam-se reetores, spots e/ou projetores, de acordo com a construo de cada sede.

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Memorial Tapeba Cacique Perna-de-Pau Foto: Joo Paulo Vieira Neto

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3. MUSEUS E CENTROS CULTURAIS INDGENAS DO CEAR

3.1 Memorial Cacique Perna-de-pau.

O museu como se fosse o nosso documento. (Caio, monitor do Memorial) O Memorial Cacique-Perna-de-Pau foi inaugurado em novembro de 2005, a partir dos esforos da ACITA (Associao das Comunidades dos ndios Tapeba), em parceria com a ADELCO (Associao para o Desenvolvimento Local CoProduzido) e o apoio internacional da FAP (Fondation Abb Pierre por le Logement des Dfavoriss). Localizado no complexo do Centro de Produo Cultural Tapeba, prximo ponte sobre o Rio Cear, as duas edicaes, em formato de grandes ocas cobertas por palhas de carnabas, destacamse na paisagem local e chamam a ateno de quem passa ao longo da BR-222. Entretanto, antes da inaugurao, os Tapeba tiveram que enfrentar mais uma batalha contra posseiros e polticos locais que buscavam, por todos os meios, impedir a concluso das obras do Centro Cultural e do Memorial. Para concretizar 71

as instalaes, os ndios desobedeceram a justia e trabalharam arduamente durante inmeras madrugadas, uma vez que as obras foram embargadas em virtude de uma ordem judicial expedida pela juza titular da 2 Comarca de Caucaia. A liminar atendia a uma solicitao de um dos maiores posseiros da regio, a famlia Arruda, que impetrou uma ao reivindicatria de posse das terras onde estavam sendo erguidos o Centro e o Memorial. Premeditando o potencial simblico que tal empreendimento poderia oferecer na luta por visibilidade e reconhecimento tnico, o posseiro utilizou-se de uma prerrogativa legal, de que a Fundao Nacional do ndio (FUNAI) e o Ministrio da Justia (MJ) ainda no haviam concludo os estudos de identicao e delimitao da terra Tapeba e que, diante disso, encontrava-se suspensa qualquer atividade na rea em estudo, para que a situao fundiria local no fosse descongurada18. As sucessivas aes contestatrias dos posseiros conguram-se como um dos principais entraves, at o presente, pelo adiamento do processo demarcatrio das terras indgenas. Apesar de todas as diculdades, o Centro Cultural Tapeba e o Memorial Cacique-Perna-de- Pau foram erguidos nas madrugadas, com muita coragem e determinao, pelos prprios ndios. O Memorial recebeu o nome de um ancestral ao qual comumente os Tapeba remontam ao traar a sua genealogia no sculo XX. Trata-se de Jos Alves dos Reis, o Z Zabel Perna-de-Pau, tido como a ltima forte liderana, o ltimo Tuxaua dos Tapeba do Paumirim.19 72

No Memorial, encontramos um rico acervo composto de fotograas, objetos de uso domstico, ervas medicinais, artesanatos diversos, documentos, recortes de jornais etc, que nos permitem conhecer um pouco mais da trajetria histrica e cultural deste povo. Desenvolvem, em parceria com o Centro de Produo Cultural, vrias ocinas, capacitaes e aes de educao patrimonial e ambiental com estudante