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MÚSICA, IDENTIDADE, INDÚSTRIA CULTURAL E
OUTRAS BATIDAS...
Jean Henrique Costa
Lázaro Fabrício de França Souza
Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes
Shemilla Rossana de Oliveira Paiva
Tássio Ricelly Pinto de Farias
Edições UERN
2016
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Música, identidade, indústria cultural e outras batidas… / Jean Henrique Costa et al. - Mossoró – RN, EDUERN, 2016.
176 p.
ISBN: 978-85-7621-134-1
1. Música. 2. Indústria cultural. I. Souza, Lázaro Fabrício de
França. II.Mendes, Marcília Luzia Gomes da Costa. III. Paiva,
Shemilla Rossana de Oliveira. IV. Farias, Tássio, Ricelly Pinto de.
V. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. VI.Título.
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
Bibliotecária: Jocelania Marinho Maia de Oliveira CRB 15 / 319
ReitorProf. Pedro Fernandes Ribeiro NetoVice-ReitorProf. Aldo Gondim Fernandes
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-GraduaçãoProf. João Maria Soares
Comissão Editorial do Programa Edições UERN:Prof. João Maria SoaresProfa. Marcília Luzia Gomes da Costa (Editora Chefe) Prof. Eduardo José Guerra SeabraProf. Humberto Jefferson de MedeirosProf. Sérgio Alexandre de Morais Braga JúniorProfa. Lúcia Helena Medeiros da Cunha TavaresProf. Bergson da Cunha Rodrigues
Assessoria Técnica:Daniel Abrantes Sales
Capa:Antônio Pereira Fernandes (Tony)
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Jean Henrique Costa
Lázaro Fabrício de França Souza
Marcília Luzia Gomes da Costa MendesShemilla Rossana de Oliveira Paiva
Tássio Ricelly Pinto de Farias
MÚSICA, IDENTIDADE, INDÚSTRIA CULTURAL E
OUTRAS BATIDAS...
Abril, 2016
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Dedicamos essa obra a todos aqueles queenxergam na música uma fonte de prazer eentretenimento, uma espécie de curamística, de alento. Dedicamos a todosaqueles que a percebem também como
ferramenta analítica, que pode e deveservir como meio de reflexão econtextualização acerca das questões que
perpassam nossas vidas, sejam elasculturais, sociais ou políticas. Dedicamosigualmente, ainda, a todos aqueles queconstituem suas vidas em torno da música:músicos, produtores, pesquisadores,técnicos, professores e entusiastas em
geral. Que a música nos seja sempre levecomo o pássaro de Paul Valéry.
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A inexprimível profundidade da música,tão fácil de entender e no entanto tãoinexplicável, deve-se ao fato de que elareproduz todas as emoções do mais íntimodo nosso ser, mas sem a realidade edistante da dor.
- Arthur Schopenhauer
A musicalidade dos sons e dos arranjos, a poesia das letras, a entonação da voz fazem parte de um campo de organizaçãosocial, cultural e econômica, no qual acriatividade individual se encerra e sedesenvolve. Criatividade difícil, negociada,mediada pela técnica e pelas leis demercado.
- Renato Ortiz
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Sumário
Prefácio ......................................................................................................................................................................... 07 Paula Guerra
Universidade do Porto
Apresentação ............................................................................................................................................................. 14 Thadeu de Sousa Brandão Universidade Federal Rural do Semi-Árido
Palavras Iniciais... ................................................................................................................................................... 19
Jean Henrique Costa
Lázaro Fabrício de França Souza
1 Andread Jó e a nova produção independente em Fortaleza/CE: reflexõessobre a música em tempos de reprodutibilidade técnica, ciberespaço enegócios eletrônicos ............................................................................................................................................. 23 Tássio Ricelly Pinto de Farias Jean Henrique Costa
2 Heavy metal , identidade e sociabilidade: itinerários em construção................................ 63 Lázaro Fabrício de França Souza
3 Na batida do consumo: uma análise sobre o funk ostentação ................................................ 100 Shemilla Rossana de Oliveira Paiva Lázaro Fabrício de França Souza Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes
4 Indústria cultural e forró eletrônico no Rio Grande do Norte ............................................... 123 Jean Henrique Costa
Sobre os Autores ..................................................................................................................................................... 174
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Prefácio
MÚSICA SIGNIFICA IDENTIDADE CULTURAL E SOCIAL DA NOSSA ÉPOCA
Paula GuerraUniversidade do Porto
Relembrando Umberto Eco que faleceu no passado dia 19 de fevereiro,
começo por abordar este livro: “É impossível pensar o futuro se não noslembrarmos do passado. Da mesma forma, é impossível saltar para a frente se não
se der alguns passos atrás. Um dos problemas da atual civilização - da civilização
da Internet - é a perda do passado”. Um autêntico testemunho do presente
marcado pelas novas tecnologias da comunicação e informação à escala global.
Assim, somos de facto ‘todos translocais’ e este livro, com foco nas expressões
musicais locais influenciadas e impactadas pelo global, mostra-o de forma
premente e muito entusiasta. Ao mostrar e demonstrar estas apropriaçõescontínuas da música, é um belíssimo documento de abordagem do passado e do
futuro. Ao passado, remete-nos para a historicidade das cenas presentes e ao
futuro, transmite-nos uma prospetiva das suas dinâmicas de desenvolvimento
contemporâneo. Assim, este conjunto alargado de jovens investigadores, composto
por Jean Henrique Costa, Lázaro Fabrício de França Souza, Shemilla Rossana de
Oliveira Paiva, Tássio Ricelly Pinto de Farias e Marcília Luzia Gomes da Costa
Mendes, fez algo de muito importante: transpôs para livro investigações muitorelevantes em torno da importância da música e das suas diversidades estilísticas,
sociais, artísticas e culturais no presente não descurando o passado e antevendo o
futuro.
Com efeito, a popular music e suas abundantes derivações tem tido uma
importância fundamental na estruturação das vivências e sociabilidades lúdicas e
culturais ao longo dos últimos setenta anos. Tal como refere Frith, a
mensurabilidade dessa importância desemboca numa analítica orientada por dois
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vetores: a génese, a constituição e a consolidação do que poderemos apelidar de
campo do pop rock e na avaliação dos impactos e consequências que a apropriação
dessas modalidades e géneros musicais tiveram nas identidades dos agentes
sociais que passaram a fruí-los, a consumi-los e a vivê-los: “a música pop tem sido
uma forma importante na qual temos aprendido a compreender-nos a nós mesmos
como sujeitos históricos, étnicos, de vinculações classistas e de género. (...) Durante
os últimos trinta anos, por exemplo, pelo menos para os jovens, a pop tem sido a
forma pela qual os cálculos diários de raça e sexo têm sido confirmados e
confundidos. Pode ser que, no final, queiramos valorizar de forma suprema esta
música (...) que tem efeitos coletivos, perturbadores e culturais. O meu ponto é que
a música só faz isso através do seu impacto sobre os indivíduos. Que impacto é o
que precisamos primeiro entender” (Frith, 2004: 46).
Assim, a música é um domínio de investigação que responde no essencial à
relação entre a estrutura social e a música, ao desenho e configuração dos mundos
da música, à estruturação social da estética musical, à oficialização dos campos
musicais, ao uso da música na elaboração de distinções de status e à importância
das componentes musicais na formação identitária. A acrescentar a estas
dimensões, não será despiciendo realçar que as próprias modalidades e conteúdos
da relação entre música e sociedade se têm tornado mais enredados
acompanhando a própria complexidade de estruturação societal. Se, nos séculos
anteriores, a obra musical estava reservada às salas de espetáculos e a um público
eminentemente burguês, hoje em dia, a música encontra-se disseminada um pouco
por toda a parte, não só graças aos meios de comunicação social, mas, igualmente,
ao facto de os espetáculos irem ter com as pessoas aos seus locais de trabalho, por
exemplo. Igualmente, já não é só o público burguês que tem acesso à música, as
camadas mais baixas também, o que faz com que o próprio conteúdo musical e a
relação entre artista, o conteúdo do seu trabalho e o público se alterem. A música
está em todo o lado, a música é translocal portanto (Guerra, 2015). E este livro
prova isso. Assim, é um testemunho muito importante e inovador que marca a
agenda científica brasileira e mundial, mostrando-nos os recortes, as variações, as
pertenças e apropriações da música como recurso identitário para além da
influência hegemónica do mundo anglo-saxónico.
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Em Fortaleza com o Andread Jó, entre os headbangers de Mossoró, com o
funk ostentação do Rio de Janeiro e de S. Paulo, com o forró eletrónico no Rio
Grande do Norte, estes autores mostram-nos o nascimento de determinados
(sub)géneros musicais translocais. Não desconhecendo a influência do social na
música, podemos salientar a importância que o contexto social, económico, político
e ideológico detém no âmbito da criação musical. Assim, se até ao século XVIII
tinha como obrigação criar dentro do estilo representativo do seu tempo, aceite e
compreendido pelos consumidores de música, que tinha como função apenas um
consumo imediato, a partir do século XIX, e como consequência das ideias
renovadoras resultantes das revoluções, o músico procura essencialmente a
originalidade na forma como expressa a sua própria mensagem. Dito de outra
forma, até ao século XIX prevalece um estilo e uma linguagem musical coletiva,
específicas de uma geração ou período histórico. Após essa altura, a criação
musical liberta-se das necessidades de consumo imediato e o compositor apenas
cria quando se sente inspirado e quando ele próprio sente necessidade de o fazer.
As criações servem, então, para expressar de forma original a mensagem, a
emoção, as imagens dos seus criadores, para além de ser agora possível identificar
diferenciações consoante as diversas escalas nacionais como comprovam estes
estudos de caso.
Importa perceber as relações estabelecidas entre a música e a sociedade:
até que ponto a música expressa temas, assuntos e emoções? Até que ponto esses
temas, assuntos e emoções, bem como a realidade social em geral, se refletem na
música? Reconhecendo a música como um fenómeno social, a sociologia deve
aceitar a autonomia do mundo sonoro, com os seus próprios símbolos e com as
suas próprias leis sem ignorar a influência de fatores externos que sobre eles recai.
No fundo, torna-se crítico perceber até que ponto os impulsos recebidos da
realidade social atuam sobre as atividades mentais do compositor e se traduzem
na sua técnica e estilo, na sua produção. A música, ao contrário do que muitos
advogam, não é uma linguagem universal e eminentemente direta. Pelo contrário,
cria os seus símbolos específicos e só os que estão familiarizados com essa
linguagem podem, de facto, captar a ideia do criador. Mas, por outro lado, a difusão
que a música conhece hoje em dia acaba por compensar a escassez de
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conhecimentos musicais que eram habituais nos conhecedores e aficionados de
outros tempos. A música é, sem dúvida, uma poderosa forma de expressão das
emoções e das ideias individuais, mas é também uma forma de expressão de
experiências partilhadas por uma comunidade e de coesão social, no sentido em
que envolve as pessoas, integrando-as em grupos e promovendo a cooperação.
Parte-se, pois, do pressuposto de que o valor da música é determinado pela sua
função e pelo modo como preenche determinadas necessidades e cumpre funções
específicas. Neste sentido, e acreditando no potencial da música para ir ao
encontro destas necessidades, deduz-se uma obrigação ética para criar e/ou aderir
a estruturas culturais, que permitem suportar a produção, distribuição e receção
dos estilos musicais que preenchem cada uma das funções em causa.
Também é de destacar a importância atribuída à música quando são
consideradas as relações entre a cultura e as expressões de bem-estar ou
desorganização social. Uma primeira interpretação possível centra-se nas funções
sociais positivas da música. A ideia principal é a da que a música, como em
qualquer outra atividade cultural e de lazer, constitui uma manifestação positiva
da qualidade de vida. Por outras palavras, a música oferece uma compensação
individual para aspetos que falham noutros campos e fornece oportunidades de
criatividade, prazer e participação; integra os indivíduos, expressa e reforça os
valores sociais, pelo que não há diferenças de maior entre as formas culturais
populares e as mais elitistas. Deste modo, quanto maior for a oferta de
oportunidades culturais num dado local, menores serão os níveis de
desorganização social e descontentamento. Um outro ponto de vista, pelo
contrário, estabelece a diferença entre a cultura de massas e a cultura de elites,
defendendo uma associação entre a cultura popular e condições sociais
desfavoráveis e até perigosas. Ora, o que nos mostram estes trabalhos é que de
facto a música pode ser um meio poderoso de integração social, mas também de
participação, de apropriação da cidade, de reconstrução identitária – sendo a face
visível de expressividades (i)legitimadas pela sociedade hegemónica, mostrando
resistências simbólicas e social de elevo, transformando-se em competências
sociais, profissionais, culturais e juvenis. Fonte de libertação e afirmação
identitária.
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Estamos perante uma obra que conduz a uma rematerialização da música e
da cultura em termos de práticas contextualizadas e relacionais (resolvendo a
ligação cultura-estrutura numa não homologia rígida e simplificadora). Num
entendimento fiel à de relatividade dos campos sociais, o trabalho musical, que
inclui a criação e fruição, é sobremaneira prático e decorre em espaços
intersetados pelos planos biográfico dos artistas e da realidade social mais vasta
em que se situam. De facto, a subjetividade produz-se e revela-se mediada pela
música. Os lugares de ativação das práticas musicais são assim domínios
privilegiados a partir dos quais se pode ler quer o desdobramento das atitudes
incorporadas, quer os modos de atenção. Este é um plano em constante
desenvolvimento – desenvolvem-se novas posturas, consciências e identidades.
Aqui, neste livro, a música faculta ainda um importante fundo sobre o qual podem
ser levadas a cabo, performativamente, estratégias subjetivas de afirmação
identitária. E, por isso, é-nos possível adotar uma abordagem histórica que
recomponha a interioridade musical a partir da análise das manifestações práticas
e atuais da realização musical in loco.
A cultura é muito mais do que ideias e valores e, concomitantemente, a
relação da cultura com a estrutura social não poderia ser adequadamente
compreendida assumindo uma simples homologia entre as duas. Desta feita, pela
influência e uso das novas tecnologias e da Internet, a música produzida e sentida
transmuta-se e diferencia-se como se mostra no capítulo 1. Paradigmaticamente,
um subgénero musical como o metal, objeto de uma constância e fidelidade
memoráveis por parte dos seus cultores e fiéis, apresenta-se na sua vivência à
escala local com cambiantes, com especificidades como podemos observar no
capítulo 2. Distante de uma visão pautada pelo determinismo cultural, a música é
vista aqui como um reflexo da realidade, onde se espelham as condições de vida e
características inerentes, sendo explorado o conceito de homologia. Na realidade,
este conceito tem sido largamente utilizado por outros teóricos como explicar a
música pop enquanto expressão das relações de classe. Desde meados da década
de 90 do século passado, temos vindo a assistir à crescente centralidade da
chamada viragem cultural. Não se perspetiva uma negação dos constrangimentos
estruturais no dia a dia dos indivíduos, mas começa a ser considerada a capacidade
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dos mesmos na negociação dos constrangimentos, encontrando uma identidade e
construindo um estilo de vida que vão para além desses condicionalismos. Neste
cenário de viragem cultural, crê-se que os indivíduos têm capacidade de exercer
reflexividade e de conseguir um distanciamento crítico em relação à sua identidade
social e à gestão do seu quotidiano.
Desta feita, o gosto ou as preferências musicais constituem formas de
expressão reflexivas através dos quais os indivíduos constroem a sua identidade, e
não um produto determinado estruturalmente pelas circunstâncias sociais. Assim,
o funk ostentação é estrutura e ação, é autenticidade e imitação no capítulo 3.
Dentre os estudos sociológicos sobre música pop pós viragem cultural que
ressalvam as formas localizadas e subjetivas através das quais a música e as
práticas culturais se traduzem no quotidiano, podemos demonstrar como os
públicos juvenis exibem um conjunto de posições ideológicas em relação a toda a
mercadorização dos festivais, por parte da organização e dos patrocinadores,
posições essas que são por estes tomadas em linha de conta na construção dos
espaços dos festivais, conferindo um patamar de reflexividade central aos atores
sociais em situação. Na mesma linha, será lugar para assinalar os trabalhos de
Hodkinson (2002) que dão conta do modo como a criação de uma cena musical é
resultado de práticas reflexivas e criativas dos fãs de música gótica ou de Bennett e
Peterson (2004) ao examinar as diferentes leituras que os fãs de hip-hop fazem
dessa mesma sonoridade e os distintos papéis que este género musical
desempenha nas suas vidas, mediante experiências diferenciadas do local.
A perspetiva de Tia DeNora é central aqui, pois esta autora defende que a
sociologia histórica da música concentrou-se progressivamente em grounded
perspetives que mostram as bases institucionais e organizacionais da produção,
consumo e distribuição musical. Passou-se, assim, a considerar a música como um
“meio din}mico de ordenaç~o social” – i.e. como “os objetos e o seu uso podem
estruturar relações sociais, consciência e subjetividade” (DeNora, 2004: 219).
Assim, a música é a transposição dos princípios e propriedades estruturais da vida
social, podendo ser uma matriz de moldagem de novas subjetividades e das
exteriorizações destas: “por outras palavras, a música pode ter ajudado a delinear
novas subjetividades e os seus correlatos externos como convenções da ação
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(musical), mas o acesso a estas não estava aberto a todos os executantes musicais
(caso das mulheres)” (DeNora, 2004: 217). Ora, este é também o grande desafio de
abordagem do capítulo 4 em torno do forró eletrónico e das relações de género.
Não podia terminar este prefácio de modo diferente de como comecei, com
uma citação de um dos meus pensadores favoritos, Eduardo Lourenço: “H|
momentos em que a música nos comunica esse sentimento intenso de que a nossa
vida é, efetivamente, uma vida sem morte.” (In C}mara Clara, 2007). Assim, a
leitura deste livro permitiu-me recordar a imortalidade e constante vida da
música. Mostrou-me que a globalização acelerada se tem traduzido em
glocalizações permanentes. Por isso, faz sentido falar das intensas possibilidades
de conculturação dos estilos, dos géneros musicais num vaivém incessante entre
criação musical, criação social, apropriação musical e apropriação social, algo
permitido pela leitura desta obra. Obrigada pela partilha.
Porto, Fevereiro de 2016.
Referências
BENNETT, Andy; PETERSON, Richard A. (2004) – Introducing music scenes. InBENNETT, Andy; PETERSON, Richard A., eds. (2004) - Music scenes: local,translocal and virtual . Nashville: Vanderbilt University Press. ISBN 9 780826
514516. 1 - 15.
CÂMARA CLARA (2007) – A felicidade. Beatriz Batarda (depoimentos de EduardoLourenço [et al.]). Lisboa: RTP2. 30 de dezembro de 2007.
DeNORA, Tia (2004) - Historical perspetives in music sociology . Poetics. 32. ISSN
1419142402. 211 - 221.
FRITH, Simon (2004) - Popular music: music and society . Volume 1 de PopularMusic. Londres: Routledge. ISBN 978-04153326-75.
GUERRA, Paula (org.) (2015) – More Than Loud. Os Mundos Dentro de Cada Som .
Porto: Edições Afrontamento. ISBN 978-972-36-1428-2.
HODKINSON, Paul (2002) – Goth: identity, style and subculture. Oxford: Berg. ISBN
978-1-85973-605-0.
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Apresentação
Música e musicalidade são manifestações da arte humana tão antigas
quanto nossa própria “humanidade”. Manifestações da cultura e da linguagem,
despertam nosso prazer e suscitam formas diferenciadas de expressão corporal e
significados sociais. Talvez, pela sua proximidade e pela forma como utilizamos
essas manifestações, tomamo-las como coisas “inatas”, naturais e n~o como
construções socioculturais e, como este livro também aponta, atividades
econômicas.Os autores da presente obra realizam uma tarefa que não é, por si só,
inovadora. Afinal, desde Goethe e Schopenhauer, passando por Adorno e Walter
Benjamin, a análise da música na modernidade tem ganhado um escopo e um
aprofundamento cada vez maior. Porém, há elementos inovadores neste esforço
intelectual coletivo apresentado, principalmente na tentativa de ir além das
análises sociológicas, econômicas e filosóficas já realizadas pelos clássicos. Sob
ombros dos gigantes, os autores dos capítulos descortinam as várias realidadesmusicais da indústria cultural brasileira nestes tempos “interessantes”.
Os organizadores da presente obra aglutinaram neste trabalho quatro
pesquisas sobre o tema. São elas, respectivamente: um capítulo intitulado
“Andread Jó e a nova produç~o independente em Fortaleza/CE: reflexões sobre a
música em tempos de reprodutibilidade técnica, ciberespaço e negócios
eletrônicos” de T|ssio Ricelly Pinto de Farias e Jean Henrique Costa; um segundo
sobre “Heavy metal , identidade e sociabilidade: itinerários em construção” deLázaro Fabrício de França Souza; um terceiro denominado “Na batida do consumo:
uma an|lise sobre o funk ostentaç~o” de Shemilla Rossana de Oliveira Paiva,
Lázaro Fabrício de França Souza e Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes; e o
quarto e último “Indústria cultural e forró eletrônico no Rio Grande do Norte” de
Jean Henrique Costa.
O leitor irá perceber uma certa linha de continuidade nos trabalhos
apresentados, não apenas no que condiz ao tema, mas também na abordagem
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entre os chamados headbangers, através da experiência destes do gênero heavy
metal , caminhando pelos conceitos de identidade e sociabilidade. A sociabilidade
desses atores sociais, assim como sua identidade musical em construção, parecem
se pautar enquanto formas de resistência, que o autor ainda está a investigar.
No terceiro capítulo, Shemilla Rossana de Oliveira Paiva
Lázaro Fabrício de França Souza e Marcília Luzia Gomes da Costa Mendes abordam
o “Funk Ostentaç~o” que, dos quatro tipos musicais analisados neste livro, é
significativamente o mais recente (historicamente) de todos. Sua diferença
primordial é o fato deste fazer, propositadamente, uma apologia explícita ao
consumo material através de suas letras. Enfatizando produtos de “marcas”,
principalmente as esportivas, esse tipo de letra glorifica um estilo de vida
ostentatório, mas, ao mesmo tempo, desviante, pois termina por fugir dos padrões
estéticos mais dominantes. Oriundos de comunidades outsiders, os “mcs” e “raps”
desse gênero (em sua ampla maioria, negros e pardos) constroem simbolicamente
uma forma de resistência à dominação que, longe de negar, incorpora os valores
mais intrínsecos do capitalismo e do fetichismo da mercadoria. Os autores, de
forma competente, mostram que “se antes os ‘Mauricinhos’ e ‘Patricinhas’ do
asfalto eram alvos de críticas nas letras do funk , hoje parece que há uma vontade
de ter aquilo que eles possuem, se assemelhando o máximo possível àqueles que
antes eram vistos com desaprovaç~o”. Após o protesto e após a apologia ao crime e
à sensualidade, a pauta imposta agora é desejar o que há muito tempo todos já
desejavam: a integração à sociedade através de seu maior apanágio, o consumo.
Numa hipérbole fetichista, as mercadorias assumem seu valor de uso absoluto. São
toda uma linguagem simbólica que expressam posições sociais e culturais, onde a
música (rap), enfim, termina por contribuir para a disseminação e para a
consolidação hegemônica nas mentes e almas da juventude das periferias
brasileiras.
O último capítulo aborda o Forró Eletrônico. O autor, Jean Henrique Costa,
trilha sua análise em compreender determinados aspectos do forró eletrônico no
Rio Grande do Norte, seguindo relatos de alguns dos indivíduos que vivem
materialmente a deste mercado (músicos e empresários) e dos ouvintes de
diferentes perfis. Como o mesmo colocou modestamente, trata-se de um estudo de
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caso. Ao mesmo tempo, busca perceber as diferenças entre o consumo do forró
eletrônico como música de cultivo privado e como consumo festivo (espetáculo
público). Consumo privado de música e consumo público de festa são práticas
quase que indissociáveis, sobretudo num gênero musical dançante como o forró.
Primeiramente, importa dizer que, de todos os gêneros abordados neste livro, o
único dominante culturalmente no Rio Grande do Norte é o Forró. Portanto, não se
trata, como nos demais supracitados, de um consumo de “outsiders”.
Majoritariamente tocado nas rádios locais e sempre presente em praticamente
todas as festas (inclusive no Carnaval), o Forró é o gênero musical, por isso, talvez,
mais difícil de ser analisado. Afinal, os valores inerentes à pertença e à identidade
local, imprimem uma dificuldade maior em afastar o que é considerado tão
“natural” e “normal”. O autor buscou, neste ínterim, entender parte da natureza
empresarial dos grupos musicais, assim como descrever o conteúdo dominante
presente nas letras de determinadas músicas de forró eletrônico captadas pelo
recorte musical selecionado, além de compreender como os ouvintes decodificam
parte do forró eletrônico mais veiculado no Rio Grande do Norte e perceber a
ligação e o sentido prático que essas músicas desempenham na vida de cada
ouvinte. Mergulhando em uma perspectiva teórica absolutamente adorniana, Jean
Henrique Costa não abriu mão de discutir e utilizar outras searas, como a da Nova
Sociologia Econômica e sua análise de redes e a das análises culturais britânicas.
Porém, sem perder o fio do fundador da Escola de Frankfurt, ele aponta a
perspectiva de pensar o gênero como um aspecto da ideologia capitalista, elemento
que, apesar das vogas e modas “complexas” e “líquidas”, permanece atual e ainda
inesgot|vel. Como ele mesmo apontou, “as sutilezas da dominaç~o, pelas m~os da
indústria cultural, são arguciosas e cada artimanha visa envolver o consumidor
num esquema retroalimentado de falsa opção e liberdade. Imediatamente, nega-se
uma coisa e se aceita outra praticamente idêntica. (...) a dominação pela indústria
cultural não é de cima para baixo, mas sim, de todos os lados, principalmente no
íntimo de cada um”. Costa mostra que o forró eletrônico é um ritmo musical
estruturante de parte expressiva da sociabilidade da população norte-rio-
grandense. Suas músicas dominantes exploram, de forma geral, temas como festa
(diversão a todo custo), amor e sexo. Dialeticamente falando, longe de mostrar ao
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ouvinte faces de um mundo contraditório, termina o forró servindo como reforço
do emudecer humano, ou seja, termina por justificar a realidade tal qual ela
aparenta ser. “Suas letras mais cantadas desviam a atenç~o de qualquer coisa mais
séria. Tome forró, cachaça e divers~o!” Ao mesmo tempo, seu consumo n~o se d|
de forma ingênua. A estrutura mercadológica, reprodutora, não permite
esquecimento algum.
Como insinuei no início desta apresentação, tratar de musicalidade, na
esfera das Ciências Sociais, é um desafio mais sério e obtuso do que imaginam os
diletantes. Os capítulos descritos rapidamente aqui se colocam como amostras
reconfortantes de como análises sérias e metodologicamente coesas permitem o
descortinar desse assunto tão mistificado quanto à música e sua expressão
capitalista: a indústria cultural. Além do gosto e da estética, fugindo dos
preconceitos socioculturais e das estruturas simbólicas que hierarquizam o “belo”,
os autores nos premiam com uma compreensão densa e científica de parte de
nosso quadro musical. Claro que, obviamente, este quadro é muito mais extenso e
tem muitas outras nuances. Mas, com certeza, o leitor e o interessado no tema aqui
encontrarão alguns caminhos que permitem um iniciar nesta caminhada reflexiva
no tema.
Prof. Dr. Thadeu de Sousa Brandão
Sociólogo, Mestre e Doutor em Ciências Sociais.Professor do Departamento de Agrotecnologia eCiências Sociais e do Mestrado em “Cogniç~o,Tecnologias e Instituições” da UFERSA(Universidade Federal Rural do Semi-Árido).
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Palavras Iniciais...
O apelo subjetivo, situações de arrebatamento, a inspiração que sopra
regozijando a alma, os sentimentos emanados, os pelos que se arrepiam, os olhos
que, marejados, reverberam; a nostalgia que vem com as experiências resgatadas,
o coração que pulsa célere a partir de notas, acordes, melodias e harmonias que se
sobressaem. Muitos s~o os “efeitos” advindos de uma simples – e tão complexa –
audição musical. Também por isso, e não a esmo, a música esteja presente em,
basicamente, todas as sociedades das quais se têm conhecimento e apresente tanta
relevância para a grande maioria dos sujeitos, na medida em que está ligada às
suas vivências, trajetórias e experiências.
Reggae? Heavy metal ? Funk ? Forró?... Qual a relevância desses gêneros
musicais – tão caros do ponto de vista subjetivo, emocional – para as ciências
sociais e humanas? O que dizer, ainda, de gêneros musicais que por excelência
fazem parte da indústria cultural? Para além da escolha de objetos hegemônicos,
este livro aborda o fenômeno musical (produção, consumo e significação) com uma
certa atenção especial, isto é, dando voz àqueles fenômenos sociais antes abafados
pelas ciências sociais canônicas.
Pensar na questão do fenômeno musical indo além da mera dicotomia
popular x erudito; da infrutífera condenação da indústria cultural, ou mesmo do
encantamento da música enquanto fenômeno cultural; e ainda, ir além do
antagonismo produção x consumo, tecem o objetivo geral desta obra coletiva.
Quatro ensaios ilustram as páginas a seguir. Produzidos pelas
circunstâncias particulares de cada autor, expressam não um todo orgânico
concordante, mas sim, muito mais a tentativa de sistematização de quatro gêneros
musicais populares sob o olhar das ciências sociais e humanas. Nesse sentido,
trata-se da possibilidade, sempre aberta, de criação de novos olhares sobre objetos
nem sempre tradicionais em nossas searas acadêmicas.
O reggae é trabalhado, no capítulo 1, a partir das categorias
reprodutibilidade técnica, ciberespaço e negócios eletrônicos. O artigo discute a
atual – e constante – reestruturação dos mercados musicais analisando,
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especialmente, o impacto causado pela revolução das Tecnologias da Informação e
Comunicação (TICs) e o advento da Cibercultura, entendida como novo modo de
reprodutibilidade dos bens culturais. Argumenta-se que a desmaterialização da
música, unida ao processo de difusão em rede (via Internet), suscitaram novos
hábitos de produção, circulação e consumo no negócio da música. Para tanto, o
objeto da pesquisa recai sobre o estudo de caso realizado com Andread
Jó, reggeiro autônomo da cidade de Fortaleza-CE. O estudo conclui que, se por um
lado deve-se analisar o mercado musical de forma ‘dual’ (indies e majors), por
outro, percebe-se que ‘dentro’ do mainstream busca-se adotar as estratégias que
‘de fora’ surtiram efeito de diferencial estratégico, entre elas, a comercializaç~o da
música via streaming e a utilização de outros serviços de música online.
Sociologicamente as estruturas do mercado se dinamizam e, relacionalmente,
atores sociais distintos se conectam numa rede dinâmica, plural e aberta de
possibilidades de negócios no campo da chamada “música independente”. O
resultado pode ser expresso em maior possibilidade de acesso ao mercado de bens
culturais, tanto por parte dos músicos, quanto pelos ouvintes.
O heavy metal é trabalhado no capítulo 2. O ensaio busca discutir algumas
formas como se dão os itinerários e construções dos processos identitários entre
os headbangers, através da experiência do heavy metal , perfazendo inclusive uma
espécie de “sobrevôo” no que se refere aos conceitos de identidade e sociabilidade.
Trata-se o heavy metal enquanto um fenômeno musical global, presente em todos
os continentes do globo. O estilo parece se constituir em meio a culturas híbridas e
em um mundo globalizado, em constante ebulição e mudanças. Há toda uma esfera
simbólica, que se manifesta no âmbito dos signos e que assegura certa “unidade”
em termos de uma identidade grupal, no que se refere ser headbanger , podendo
ser percebida desde as vestimentas até o compartilhamento do êxtase coletivo dos
shows, das paixões por bandas e músicos e de alguma perspectiva de mundo e de
relacionamento com os pares, com a música, com a arte, com a constituição da
subjetividade, por meio de uma ética da resistência. Sendo assim, o ensaio esboça,
em termos introdutórios, uma leitura desse cenário.
O capítulo 3, que aborda o Funk , tem o propósito de analisar algumas
características da nova vertente do Funk , difundida de São Paulo para todo o país, o
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denominado Funk Ostentação. Depois de outras modalidades já conhecidas e
pesquisadas, como o Funk romântico/melody , o consciente, o pornográfico e o
proibidão, a ostentação é a primeira vertente do Funk que nasceu fora do seu
berço, o Rio de Janeiro, e que se espalhou por todo o país. Foi falando basicamente
em riqueza, itens de luxo e curtição, através de canções que mais parecem
anúncios publicitários, que os paulistanos assumiram a vanguarda desse estilo. O
capítulo discute a imbricada relação entre o fenômeno do consumo e o Funk
ostentação, universo este não só sonoro, mas primordialmente simbólico.
Por fim, o quarto capítulo aborda o forró eletrônico no nordeste. O texto
buscou compreender se, em que medida e como o forró eletrônico atualmente em
foco no mercado musical norte-rio-grandense serve para estabelecer e sustentar
relações de dominação nos contextos sociais em que é produzido, transmitido e
recebido. A pesquisa foi realizada a partir de um estudo qualitativo pautado na
realização de 12 entrevistas com músicos e empresários do mercado musical do
forró no Rio Grande do Norte e 45 entrevistas com diferentes perfis de ouvintes,
além de análise de conteúdo de álbuns da banda de forró Garota Safada. Como
resultado, percebeu-se que não há como pensar num consumo cultural apático,
passivo e monolítico. Os produtores e ouvintes de forró eletrônico fazem leituras
diversas sobre o gênero: discordam, negam, fazem chacota, escarnecem, zombam,
riem, bem como se emocionam, cantam, choram, vibram etc. Todavia, diante do
crescente cerco sistêmico e prescritivo da indústria cultural, determinadas visões
de mundo são reproduzidas e reforçadas por parte significativa do forró eletrônico
atualmente dominante. Mesmo n~o passando muitas vezes de uma “economia da
experiência” para parte substancial dos ouvintes, para outra parcela essas músicas
representam todo um ethos de diversão, lazer e relações sociais.
Logo, estes quatro estudos ilustram o intuito maior desta obra: dar um
tratamento eclético (teórico) a objetos não hegemônicos na agenda das ciências
humanas hoje.
Esperamos que o leitor tenha em mãos a oportunidade de refletir sobre a
música popular, não somente como crítica da indústria cultural, mas nela e,
sobretudo, para além dela. Porquanto a música, como só ela, é capaz de revoluções
internas e dos sentimentos chacoalhar, de empreender pensamentos, promover
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voos pujantes sem receios, sem lamentos. Parece surgir, amiúde, como panaceia;
como prosopopeia visceral, uma relação dialógico-monogâmica com aquele que a
ouve, que a respira, que dos pelos o arrepio suscita e que nos poros como faca
penetra, que a vida ressuscita... capaz de sonhos arrebatar, do mundo uma fuga
proporcionar, nos tronos um rei empoderar, uma lágrima dos olhos verter, do
coração a chama alavancar. Música. Bem ela, sem a qual, como bem dissera
Nietzsche, "a vida seria um erro". Um daqueles tremendos. A música, como só ela,
faz refletir, extrai dos sentidos a alma e nos inspira. Talvez, entre todas as artes,
seja ainda ela, a música, fulgurante, a responsável pelas maiores comoções e
arrebatamentos, proporcionando-nos a ciência dos seres sencientes que somos. O
espetacular fenômeno da música, presente em cada sociedade, nos mais
longínquos rincões, nas mais abastadas e também nas menos prestigiadas
comunidades, sempre nos acompanhando, como um alento, nas sendas incertas da
vida.
Que nas páginas que se seguem o caro leitor se permita adejar por novas
perspectivas, itinerários e horizontes. Nos galopes da Ciência, sem desprezar o
encantamento que se dá no âmbito da cultura e dos símbolos. Que se perca entre
reflexões e se encontre em novos sentimentos. Que a leitura seja, enfim, prazerosa
e elucidativa.
Uma excelente jornada!
Jean Henrique Costa
Lázaro Fabrício de França Souza
Mossoró, RNAbril de 2016
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CAPÍTULO 1
ANDREAD JÓ E A NOVA PRODUÇÃO INDEPENDENTE EM FORTALEZA/CE:REFLEXÕES SOBRE A MÚSICA EM TEMPOS DE REPRODUTIBILIDADE
TÉCNICA, CIBERESPAÇO E NEGÓCIOS ELETRÔNICOS
Tássio Ricelly Pinto de FariasJean Henrique Costa
Introdução
Pensar na indústria cultural hoje é partir de uma inversão metodológica que
reconfigurou o acesso aos bens culturais. Diga-se de passagem: se antes existiam
‘mídias de massa’, hoje imperam ‘massas de mídias’. Como disseram Albornoz e
Gallego (2011, p. 104), “o emprego de ferramentas online est| na ordem do dia”.
Assim, a desmaterialização da cultura, unida ao surgimento de plataformas virtuaisde distribuição em rede (gratuitas ou não) dos bens simbólicos, constituem os
novos desafios para se (re)pensar a atual dinâmica de produção-distribuição-
consumo da indústria cultural e, inserida nela, consequentemente, a indústria
fonográfica. Para além de seu prelúdio histórico, hoje devemos considerá-la como
uma indústria cultural de base local-global, dialeticamente produzida por
aparelhos diversos de reprodução simbólica das sociedades contemporâneas.
Indústrias culturais, no plural, expressam nosso novo tempo de midiatização eciberespaço. De cima pra baixo, de baixo pra cima, vertical e transversalmente a
produção cultural vem se forjando, fortalecendo, reinventando e impondo formas
plurais e heterogêneas de disputa por legitimidade cultural e econômica.
Diferente do que se poderia afirmar, esta indústria cultural hoje não mais se
assenta completamente em bases hegemônicas do ponto de vista tecno-
organizacional. Muito embora não se diga que ela inexista, percebe-se que
tecnológica e organizacionalmente já não é a mesma, tal qual analisada nos anos
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1940 por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Muita coisa mudou! Falar em
‘indústrias culturais’ seria, portanto, mais apropriado, visto que, muito embora o
‘sonho’ ideal de padronizaç~o (estandardizaç~o) ainda exista, existem também
formas alternativas e eficientes de driblar tais ditames. A produção musical
independente é, de certo modo, uma dessas formas. Daí que, faz-se necessário uma
análise menos pessimista das atuais estruturais de comercialização dos bens
culturais. Esta, dar-se-ia não com o abandono do conceito de indústria cultural,
como se ele estivesse caduco; muito menos com o tratamento pejorativo que ainda
hoje é dado a este conceito – visto demasiadamente através do prisma da
negatividade não-dialética, mas sim, por uma compreensão plural de suas
múltiplas dimensões (econômica, cultural e simbólica).
Primeiramente, é preciso entender que mesmo ao se falar de uma indústria
fonográfica independente, trata-se de um negócio – um comércio de bens culturais.
Ainda que alternativo ou distante do grande capital, todavia, permanece dentro da
lógica comercial. O caráter de negócio da música tem sido analisado muitas vezes
de forma dicotômica (e ingênua), como se os independentes não fossem também
parte da indústria cultural. Claro que fazem! Por maior que seja o distanciamento
organizacional e material alguns elementos de reprodução da lógica mercantil
precisam permanecer para a sustentabilidade do artista no mercado. Como lembra
o Andread Jó (2014; 2015b), “a música é um produto assim como o artista,
querendo ele ou n~o”.
Em seguida, faz-se necess|rio uma an|lise de ‘como’ e ‘até onde’, dentro da
própria indústria cultural, surgem formas alternativas que tentam fugir da
heteronomia dantes exercida hegemonicamente pelos detentores do grande
capital. Como novamente lembra Andread Jó (2015b), primeiramente insere-se no
jogo (sistema), para somente depois tentar implementar novas regras.
Por conseguinte, pensar na indústria fonográfica hoje sem relacioná-la às
mudanças das formas midiáticas contemporâneas é demasiadamente um exercício
arriscado. Entende-se, assim como Miskolci (2011, p. 12), que “mídias digitais s~o
uma forma de se referir aos meios de comunicação contemporâneos baseados no
uso de equipamentos eletrônicos conectados em rede, portanto referem-se – ao
mesmo tempo – { conex~o e ao seu suporte material”. Daí que, o desenvolvimento
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da microeletrônica resultou no aparecimento de novos equipamentos tecnológicos
(Mp3 Player, iPod, Tablet, Smartphone e etc.) que suscitaram, juntamente com a
potencialização do acesso à Internet, novos hábitos de produção e consumo
musical. Doravante, a produção musical contemporânea se dá (em sua maior
parte) por meio de mídias digitais. Não seria arriscado dizer que em poucas
décadas uma substancial revolução operou nos mercados musicais. Desse modo, é
neste pequeno caldeirão midiático e tecnológico que a denominada produção
musical independente vem se tecendo.
Outra premissa necessária à compreensão dessa atual indústria fonográfica,
e mais especialmente da Nova Produção Independente – NPI (categoria de análise
utilizada por DE MARCHI, 2006), pode ser expressa no conceito de negócio em
rede, do sociólogo espanhol Manuel Castells. Parafraseando-o, ousa-se dizer que a
Internet se tornou o alicerce organizacional da cultura atual. Portanto, sendo ela a
infraestrutura tecnológica que possibilitou o advento das novas formas de
produção e apropriação dos bens simbólicos, é mister, pois, entendê-la como um
“tecido de nossas vidas” (CASTELLS, 2003, p. 8). Doravante, deve-se compreender
que a rede – por excelência – dessa NPI é, portanto, a galáxia da Internet.
Observa-se certa similitude entre as ideias de Castells e Herscovici à medida
que, para este, a mudança nos hábitos de consumo da música deve ser entendida
como sendo fruto de um processo de desmaterialização dos bens simbólicos unido
{ sua difus~o em rede. Est| claro que, “...] no }mbito dessas redes, a música online
é um bem livre, { medida que n~o é mais escasso” (HERSCOVICI, 2007, p. 16).
Herscovici (idem, p. 11) afirma ainda que “a n~o exclus~o dos novos formatos de
áudio difundidos na rede] explica-se a partir da imaterialidade do serviço e a partir
do fato que a cópia apresenta a mesma qualidade técnica que o original”. Logo, j|
não faz sentido adquirir um CD ou um Vinil por questões de qualidade. No máximo
o indivíduo irá adquiri-los por certo ‘fetiche’ de colecionador. Neste sentido, tentar
excluir ou mesmo limitar as mídias disponíveis em rede se torna tarefa quase
hercúlea. A tendência concreta é a imaterialidade em rede do bem cultural.
Em A reconfiguração da indústria da música, Herschmann e Kischinhevsky
(2011, p. 3) afirmam que a avalanche de mudanças ocorridas nos últimos tempos
na indústria fonográfica tem duas faces: a) primeiramente, presencia-se “...] n~o só
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a desvalorização vertiginosa dos fonogramas [...], mas também o crescente
interesse e valorizaç~o da música ao vivo”; b) “e, em segundo lugar, a busca
desesperada por novos modelos de negócio fonográficos [...], ou melhor, o
crescente emprego das novas tecnologias e das redes sociais na web como una
forma importante de reorganizaç~o do mercado ...]”.
Hoje, as empresas que controlam as plataformas digitais de áudio parecem
ter assumido um dos papeis que outrora era exercido pelas grandes produtoras: o
papel de mediadoras. Observa-se, portanto, um jogo de mudanças de posições. Se
por um lado, Pierre Lévy afirmou que “...] a partir de agora os músicos podem
controlar o conjunto da cadeia de produção da música e eventualmente colocar na
rede os produtos de sua criatividade ‘sem passar pelos intermedi|rios’ ...] (LÉVY,
1999, p. 143, grifo do autor); por outro, observa-se o surgimento de uma infinidade
de intermediários, a exemplo das plataformas digitais Youtube, Myspace, Last.fm,
Spotify, iTunes e outras.
Como disse Yúdice (2011, p. 45, grifo nosso):
Frequentemente, diz-se que na era da Internet produtores e
consumidores podem dispensar os intermediários. Isso é um mito, poiscomo acabamos de assinalar, plataformas como Youtube, Myspace eLast.fm (e outras), as quais presumivelmente dispensam intermediários,na realidade se constituem em outra geração de intermediários.
Logo, como bem observaram Herschmann e Kischinhevsky (2011, p. 5), as
“velhas indústrias fonogr|ficas” estão mudando suas políticas e tornando-se, aos
poucos, “companhias musicais”. O resultado geral desse novo processo é que, “...]
em muitos casos, [essas empresas buscam] franquear o acesso a seus acervos por
meio de parcerias com novos intermedi|rios”. Portanto, os investimentos massivos
agora se voltam para ferramentas de distribuição via web. Vê-se, de longe, um
processo dinâmico, criativo e flexível de reestruturação no negócio da música.
Herscovici (2007, p. 9, grifo nosso) ajuda a entender a situação paradoxal
que vive hoje a indústria fonogr|fica ao afirmar que “a economia atual da internet
se baseia nesta complementaridade entre atividades aparentemente não
mercantis, em boa parte gratuitas e descentralizadas, e a estrutura de quase
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monopólio da info-estrutura”. Ou seja, se por um lado os artistas
autônomos/independentes têm hoje maiores possibilidades de difundir – em rede
– suas músicas, sem a necessidade de acordos com grandes gravadoras; por outro,
as empresas que controlam esses intermediários (plataformas digitais) estão se
tornando cada vez mais fortes e lucrando cada vez mais com o mercado musical.
Nesse sentido, distanciando-se dos entusiasmos pró ou contra o conceito de
indústria cultural (tal como problematizado por Theodor W. Adorno e Max
Horkheimer), este ensaio objetiva compreender algumas estruturas sociais de um
mercado musical independente da cidade de Fortaleza/CE, a partir do artista
independente Andread Jó, buscando descrever algumas características do mercado
independente do reggae numa cidade em que predomina (massivamente nos
espaços de sociabilidade populares) o forró eletrônico e as estratégias de mercado
utilizadas pelo músico, observando, nas vicissitudes desta problemática, como se
manifestam certas formas de consumo musical e reprodução simbólica. As obras
de Castells e Lévy ocupam papeis centrais nesta discussão.
O ensaio foi produzido a partir de entrevistas com o próprio Andread Jó,
realizadas nos dias 25 de setembro de 2014 e 21 de março de 2015, na própria
cidade de Fortaleza. A identificação nominal do entrevistado neste escrito foi
autorizada previamente. Metodologicamente, trata-se de uma reflexão, embora
empírica, mais ensaísta sobre o objeto aqui esboçado. Seus resultados expressam
mais o vigor da reflexão teórica do que a intenção metódica de demonstração
sistem|tica de uma realidade. N~o h| aqui, pois, a intenç~o de produzir um ‘mega
relato’ sobre as atuais estruturas e estratégias sistem|ticas e prescritivas da
indústria cultural. O intento limita-se à tentativa de compreender algumas das
novas formas de difusão da música enquanto bem imaterial e sua relativa relação
com a ascensão de artistas autônomos. Dito isto, prosseguir-se-á com a análise das
novas características da indústria fonográfica, focando-se na NPI.
A Indústria fonográfica em tempos de ciberespaço
A Revolução das Tecnologias de Informação que ocorreu nas últimas
décadas do século XX proveu mudanças significativas no modo de produção
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capitalista, intensificando o comércio mundial e provocando alterações nos modos
de produção e difusão da cultura (CASTELLS, 1999). Mais do que nunca, hoje
vivemos em rede. Especificamente tomando o mercado musical, o fato é que as
gravadoras independentes existem no Brasil há algumas décadas. Muitas delas
tinham contratos com gravadoras tradicionais nas décadas de 1980 e 1990 e
faziam parte do esquema de produção das grandes gravadoras, visto que estas
terceirizavam alguns dos seus serviços que envolviam a produção dos fonogramas.
Na visão de Castells (2003) isso já caracterizaria uma produção em rede.
Com o crescente desenvolvimento entre as décadas de 1970 e 1990 da rede
mundial de computadores e, consequentemente, com a potencialização do acesso à
Internet (que chega para o público em geral em 19951), a cultura virtual – ou
Cibercultura (LÉVY, 1999) – ganha maior relevo na vida do homem
contemporâneo. A sociedade em rede agora estava provida de uma infraestrutura
técnica jamais vista antes. A Internet surge, pois, como novo palco de atuação do
homem: seja na dimensão dos negócios, seja na dimensão dos bens culturais, ela
passa a ser a nova rede de inter-relações.
O acesso à Internet, que teve sua popularização no Brasil iniciada nos anos
2000, trouxe consigo mudanças que afetaram profundamente o negócio da música.
Dentre elas, pode-se destacar a facilidade de realizar o download das músicas.
Também se pode afirmar que a queda na venda dos fonogramas está entre as
mudanças que mais afetaram a indústria fonográfica tradicional na virada do
século XX. Esse acontecimento parece ter sido o primeiro a ameaçar o monopólio
das majors. O CD pirata (produzido à margem da legalidade jurídica) teria
desencadeado uma série de mudanças na logística da produção musical. Diante
destes desafios enfrentados pelas gravadoras tradicionais, poder-se-ia provocar se
essa queda na venda dos fonogramas e o maior acesso à música (via Internet)
estaria, assim, gerando menos comercialização de música. No entanto, o
surgimento de outras estratégias de comercialização atesta a ingenuidade desta
1 “As origens da Internet podem ser encontradas na Arpanet, uma rede de computadores montadapela Advanced Research Projects Agency (ARPA) em setembro de 1969. A ARPA foi formada em1958 pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos com a missão de mobilizar recursos depesquisa, particularmente do mundo universitário, com o objetivo de alcançar superioridade
tecnológica militar em relação à União Soviética na esteira do lançamento do primeiro Sputnik em1957” (CASTELLS, 2003, p 13).
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indagação. “As soluções que a grande indústria da música espera que tragam de
volta os vultosos lucros do passado são as vendas online e os serviços que utilizam
tecnologia streaming” (YÚDICE, 2011, p. 22). Fica claro, portanto, que embora as
estratégias tenham mudado, abalando as bases do monopólio desfrutado pelos
managers do entretenimento por décadas, ainda há certo domínio de mercado,
visto que empresarialmente os atores sociais hegemônicos desenvolveram novas
estratégias para se manterem de pé diante dos novos desafios.
A supracitada indústria cultural muito tem sido analisada nos últimos
tempos. Paralelo ao grande boom dos estudos que a rediscutem, é possível
observar um crescimento notável de estudos na área de Sociologia da Música. Nas
palavras de Timothy J. Dowd (2007, p. 1), “the sociology of music has enjoyed a
notable boom during the final decade of the twentieth century and the early years of
the twenty-first century ”2. Entretanto, é necessário lembrar que na era da sociedade
em rede (CASTELLS, 2003), um estudo de mercado como este não pode deixar de
considerá-la como catalisador de mudanças. Ou, como disseram Albornoz e Gallego
(2011, p. 104), embora seja “ainda complicado avaliar o crescimento da procura
pela música ao vivo e pelos serviços musicais online, [...] qualquer análise sobre as
transformações do mercado musical deve levar estes fatores em consideraç~o”.
A atualidade desta discussão se evidencia nos muitos estudos que têm
surgido sobre a tríade música, mercado e sociedade. Observa-se certo
redimensionamento nas discussões, ou melhor, a divisão dá problemática em
‘subcampos’ específicos: música, cinema, novela, publicidade, games e etc. Logo,
partindo somente do subcampo ‘música’ é possível destacar diversos estudos
sobre a indústria cultural, a exemplo: Indústria cultural e forró eletrônico no RN
(COSTA, 2012); A reconfiguração da indústria da música (HERSCHMANN;
KISCHINHEVSKY, 2011); O Reggae no Maranhão: música, mídia e poder (BRASIL,
2011); Produção e consumo do reggae das radiolas em São Luís/MA: significados,
simbolismos e aspectos mercadológicos (SANTOS, 2009); A Nova Produção
Independente: Indústria Fonográfica brasileira e Novas Tecnologias da Informação
e da Comunicação (DE MARCHI, 2006); Discutindo o papel da produção
2
A Sociologia da Música tem desfrutado de um crescimento notável durante a última década doséculo XX e os primeiros anos do século XXI (tradução nossa).
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independente brasileira no mercado fonográfico em rede (DE MARCHI, 2011);
Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música (LEMOS; CASTRO, 2008);
Economia “imaterial”, novas formas de concorrência e lógicas sociais n~o
mercantis: uma análise dos sistemas de troca dos arquivos musicais (HERSCOVICI,
2007); O tecnobrega no contexto do capitalismo cognitivo: uma alternativa de
negócio aberto no campo performático e sensorial (GABBAY, 2007); As estruturas
sociais de um mercado aberto: o caso da música brega do Pará (FAVARETO;
ABRAMOVAY; MAGALHÃES, 2007); Indústria cultural, cibercultura e música
independente em Brasília: um estudo com as bandas ‘Amanita’ e ‘Feij~o de
Bandido’ (COSTA; FARIAS, 2014); A Indústria Cultural na Contemporaneidade:
uma introdução (FARIAS, 2015); Apontamentos sobre alguns dos novos negócios
da música (YÚDICE, 2011); Novas formas de prescrição musical (PÉREZ, 2011);
Setor da música... independente? Apontamentos sobre a trama empresarial
espanhola (ALBORNOZ; GALLEGO, 2011); Apropriação de tecnologias e produção
cultural: inovações em cenas musicais da região Norte (BANDEIRA; CASTRO,
2011); Wado, um ilustre desconhecido nos novos tempos da indústria musical
(JANOTTI JR.; GONÇALVES; PIRES, 2011); dentre inúmeros outros estudos. Aqui
está destacado apenas um pequeno recorte do já produzido.
Uma ‘ressalva’ metodológica a ser destacada neste momento diz respeito {
terminologia utilizada aqui. Esta pesquisa analisa o mercado musical de forma
‘dual’: por um lado, considera-se como indústria fonográfica tradicional toda gama
de empresas que por décadas desfrutaram de certa hegemonia na produção e
prescrição dos sucessos musicais: referir-se-á à estes sempre como majors,
managers, mainstream; por outro, analisa-se principalmente a atitude indie
(independente), podendo também ser referida como underground , fora do
mainstream e etc. Nesse ínterim, a indústria cultural contemporânea se destaca
principalmente pela mudança estrutural causada pelo advento da Web 2.0, bem
como pela desmaterialização (digitalização) dos bens simbólicos e sua
consequente distribuição em rede. Doravante é possível sonhar (mesmo que a
possibilidade permaneça utópica) com o fim da hegemonia dos managers do
entretenimento. Tornou-se possível, portanto, falar numa real descentralização da
produção e distribuição dos bens simbólicos. Como disse De Marchi (2011, p. 151),
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“a digitalizaç~o dos fonogramas e sua desvinculaç~o dos suportes físicos d~o início,
na verdade, a outra etapa ...]” de produç~o na indústria fonogr|fica. Para ele a
indústria da música passou da sua fase propriamente industrial, caracterizada pela
produção do fonograma físico (o disco de vinil, o K7 ou o CD/DVD), e ingressou na
sua fase pós-industrial, caracterizada pela produção e distribuição imaterial em
rede.
Isso porque a desmaterialização da produção de fonogramas faz com quetoda a estrutura industrial que caracterizava a fonografia perca suarazão de ser: o fonograma digital não é um bem que deva serreproduzido em larga escala para recuperar os custos de produção, masuma informação que precisa ser difundida, compartilhada, por redes de
comunicação, a fim de que se valorize e, por conseguinte, cobresse[cobre-se] por seu acesso (DE MARCHI, 2011, p. 151-152).
Prontamente, é natural que a indústria fonográfica tradicional tenha
encarado (inicialmente) com maus olhos essa nova dinâmica de distribuição em
rede dos bens simbólicos. Falou-se até mesmo em uma suposta ‘crise’, decorrente
da queda nas vendas dos CDs no período que vai de meados da década de 1990 até
os dias atuais (DE MARCHI, 2006). No entanto, se por um lado essa suposta crise
abalou o mercado das majors, por outro, suscitou novas estratégias de produção e
comercialização que, claro, foram incorporadas (e desenvolvidas) em sua maioria
primeiramente pelas indies. Mas pouco depois despertou os olhares das majors.
Em seu escrito intitulado Novas formas de prescrição musical, Pérez (2011)
aborda as mudanças proporcionadas ao meio musical pela Web 2.0. Esta, ele a
define n~o como uma ‘tecnologia’ em si, mas sim como uma ‘atitude’. Conforme
Pérez (2011, p. 52-53),
[...] a Web 2.0 abarca características como interatividade, participação,intercâmbio, colaboração, redes sociais, bases de dados, usuário,plataforma. Realmente, passa-se de uma comunicação unidirecional ecomplexa à possibilidade de criar um espaço próprio e a realizar unainteração, uma atuação mais participativa.
Outros pensadores também teorizaram sobre as mudanças trazidas pela
popularização do acesso à Internet. Considerando que a Web 2.0 está inserida no
conceito de Ciberespaço do filósofo tunisiano Pierre Lévy (1999), entendemos o
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quanto este teórico também cabe na lista dos ‘apologistas’ dessa rede interativa.
Na tentativa de conceituar o ciberespaço, Lévy (1999, p. 198, grifo nosso) diz que:
O ponto de partida fundamental é que o ciberespaço, conexão doscomputadores do planeta e dispositivo de comunicação ao mesmo tempocoletivo e interativo, não é uma infraestrutura: é uma forma de usar asinfraestruturas existentes e de explorar seus recursos por meio de umainventividade distribuída e incessante que é indissociavelmente social etécnica [...] O nervo do ciberespaço não é o consumo de informações oude serviços interativos, mas a participação em um processo social deinteligência coletiva.
Observa-se nas citações acima que tanto Lévy quanto Pérez veem essa nova
conex~o como uma ‘atitude’, uma forma de ‘usar’ a técnica, mas n~o como a própriatécnica. A guinada que a Internet operou na dinâmica das mídias faz dela um
espaço bidirecional (ou multidirecional), mas não unidirecional. Por isso, não é
possível caracterizá-la como ‘veículo de massa’, como a TV e o r|dio. “Enquanto as
mídias de massa, desde a tipografia até a televisão, funcionavam a partir de um
centro emissor para uma multiplicidade receptora na periferia, os novos meios de
comunicação social interativos funcionam de muitos para muitos em um espaço
descentralizado” (LÉVY, 2010, p. 13). Trocando em miúdos (como diz o jarg~opopular), enquanto antigamente se tinham mídias de ‘m~o única’ – com receptores
supostamente passivos, hoje se têm mídias de ‘m~o dupla’ – com receptores ativos
(atividade de múltiplas formas de recepção e decodificação do que se consome).
Lemos esclarece a diferença:
Na estrutura massiva do controle da emissão – a indústria culturalclássica – a informação flui de um polo controlado para as massas (osreceptores). Com o surgimento e a expansão do ciberespaço, esse modeloest| sendo tensionado pela emergência de funções “pós-massivas”. Aquia liberação da emissão não é apenas liberar a palavra no sentido de umaprodução individual, mas colocar em marcha uma produção que seestabelece como circulação e conversação [...] O sistema pós-massivopermite a personalização, o debate não mediado, a conversação livre, adesterritorialização planetária (LEMOS, 2010, p. 26, grifo do autor).
Ressalta-se que, “diferente do que dizem os mais afoitos, o sistema de
comunicaç~o de massa n~o vai acabar ...]” (LEMOS, 2010, p. 26). O que se tem
testemunhado são mudanças de perspectivas proporcionadas pelo ciberespaço. Se
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antes se tinha um público-massa que era encharcado de tanta informação
unidirecional, desprovida de conversação; hoje, tem-se um público (‘massa’ ou n~o,
não cabe aqui questionar) que tem nas mãos ferramentas de conversação
multidirecionais, como as redes sociais do ciberespaço. Vale ressaltar, a
característica basilar da Web 2.0 (e do ciberespaço) é a ‘mudança de atitude’.
“Web 2.0” é um termo criado em 2004 por Tim O’Reilly para diferenciara primeira fase do desenvolvimento do ciberespaço, onde as páginas naInternet eram mais estáticas, para a fase atual, onde diversasferramentas e novas funcionalidades foram adicionadas aos websites,fazendo-os mais abertos e participativos (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 38,grifo dos autores).
As aplicações vinculadas à Web 2.0 são as seguintes: blogs; fotologs;redes sociais (Myspace e Facebook ); redes sociais mais voltadas para amúsica (Last.fm); lugares de recomendação (Pandora Music, Podcast );serviços musicais via streaming (Spotify ); redes de intercâmbio dearquivos P2P; e fóruns” (PÉREZ, 2011, p. 53).
Pérez (2011) vê a Web 2.0, sobretudo, como uma ‘mudança de atitude’.
Lemos e Lévy (2010) veem o ciberespaço como ‘liberaç~o da palavra’. O resultado
imediato dessa nova mídia é a maior participação do consumidor/internauta no
negócio da música. Se antes os grandes managers da indústria cultural prescreviam
hegemonicamente o gosto musical, hoje se percebe uma suposta descentralização
da produção e promoção de determinados hits. O que se ouve nas grandes rádios e
na TV não corresponde necessariamente ao gosto dos consumidores (YÚDICE,
2011). Este tipo de assédio já não tem a mesma eficiência de outrora (se é que já
teve este tão sonhado poder!).
Otimismos à parte! Reconhecer que a mudança de atitude característica do
ciberespaço tem sido fator relevante para que os independentes concorram com as
gravadoras tradicionais, é justo; entretanto, permanece alguma hegemonia, pois
mesmo quando bandas ascendem através das novas ferramentas da Web 2.0, a
tendência é fecharem contratos com gravadoras tradicionais, integrando-se, dessa
forma, ao catálogo das majors. Pérez esclarece na citação abaixo quando diz que:
Já durante os anos de 1980, bandas como U2 ou REM cruzaram a linha
que separava os fãs mais underground que escutavam as “college radios”para se transformarem em fenômenos de massa assimilados pela cultura
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mainstream. Ainda nos anos de 1990, formações como Nirvana, PearlJam ou Red Hot Chili Peppers também cruzaram essa barreira, e foientão que os grandes selos começaram a perceber o poder destas mídiasnão tradicionais (PÉREZ, 2011, p. 51, grifos do autor).
Embora existam hoje diversas ferramentas que proporcionam uma
concorrência mais justa das indies frente às majors, o que se tem testemunhado
comumente é a assimilação de alguns independentes pelas gravadoras
tradicionais. No Brasil, por exemplo, tem-se no próprio reggae a banda brasiliense
Natiruts, que despertou interesse da gravadora EMI (adquirida pela Sony Music)
somente após já ter se consolidado no mercado musical com o disco Raçaman,
gravado pela Unimar Music. Houve, portanto, o reconhecimento do potencial das
indies pelas majors. As novas tecnologias, assimiladas mais rapidamente por
artistas independentes, configuram-se como novos desafios às majors. Entretanto,
como observou Pérez (2011, p. 51), a mídia tradicional “...] percebeu a forte
concorrência que são os reprodutores de MP3, que possibilita à audiência formar
sua própria cultura musical sem atender às prescrições da rádio comercial ou das
televisões tipicamente musicais”, e dessa forma elaborou novas estratégias de
atuação ante ao novíssimo mercado musical digital ascendente. Se antes a
prescriç~o dos gostos musicais se dava hipoteticamente ‘de cima para baixo’, agora
ela acontece (ou tenta!) de todos os lados; e não se deve esquecer, todavia, que o
ouvinte agora caminha mais ‘livremente’ pelos aplicativos da Web 2.0, e isso
permite que bandas e artistas antes abafados pela tradicional indústria cultural
ganhem espaço nesse concorrido mercado independente. Por conseguinte, esse
‘novo’ espaço favorece uma multiplicidade de novos atores sociais nos mercados
musicais, impactando no surgimento de novos e diversificados artistas, bem como,
na dinamização, fragmentação e complexificação dos públicos ouvintes.
[...] se o rádio ocupou um papel central no cenário musical, atualmentecabe à Web 2.0 aportar outras ferramentas que permitam ao ouvinteromper as hierarquias e entrar no mundo da prescrição musical. Jácomentamos também sobre o podcasting, que permite ao usuário daInternet fazer seus programas de rádio em casa, difundindomundialmente a música que mais lhe interessa (PÉREZ, 2011, p. 55, grifodo autor).
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A citaç~o acima é ilustrativa de ‘um’ dos ‘muitos’ aplicativos da Web 2.0, o
podcasting. Essa ferramenta permite não somente que bandas e artistas criem
programas de rádio que podem ser ouvidos off-line (após o download ), mas
também que indivíduos criem listas de músicas preferidas e compartilhem na rede.
Além do podcasting existem diversos aplicativos/ferramentas que servem para
ampliar o acesso à música. Atualmente, é possível observar a crescente cultura
musical até mesmo no Facebook , à medida que muitos dos aplicativos para
sistemas Android , IOS e Windows Phone possibilitam aos seus portadores
compartilharem em redes sociais informações sobre as músicas que estão ouvindo.
Hoje já é possível acessar muitos portais brasileiros de música online que
proporcionam o consumo via streaming; entre eles: Som13, GaragemMp3,
SomBrasil (pioneiro no país), PlanetaMúsicas, Vagalume, PalcoMp3. Há no Brasil
também a presença de sites internacionais especializados nesse tipo de
distribuição de música, a exemplo dos maiores do mundo: iTunes, Spotify, Rdio,
SoundCloud, Last.Fm, entre outros.
A comercialização de música via streaming tem se tornado uma tendência
mundial, e, diferente do que se poderia imaginar, apesar de ter surgido como
estratégia das indies tem sido utilizado e adquirido pelas majors. A prova de que a
indústria cultural tradicional tem absorvido certas tendências dos independentes é
a Last.Fm3 ter se tornado “...] propriedade da CBS [Columbia Broadcasting System]
desde maio de 2007” (PÉREZ, 2011, p. 56). Concluindo a ilustraç~o, o YouTube,
pioneiro em distribuição de músicas e vídeos de forma gratuita, responsável por
promover milhares de indies, recentemente resolveu trabalhar com a estratégia de
comercialização streaming, ameaçando bloquear os vídeos dos independentes que
não fechassem acordos com o site. A atitude foi criticada pela organização que
representa os indies no Brasil4.
3 Ver também Yúdice (2011, p. 44): “Tanto a Last.fm quanto o Facebook são o tipo de plataformaque faz negócios com grandes empresas. Na realidade, o Last.fm foi adquirido pela CBS e o Youtube,pelo Google.” Ver em: . Acesso em 08 dez. 2014.4
Ver em: . Acesso em 08 dez 2014.
http://oglobo.globo.com/cultura/selos-independentes-criticam-youtube-por-acoes-indefensaveis-em-novo-servico-de-streaming-12584553http://oglobo.globo.com/cultura/selos-independentes-criticam-youtube-por-acoes-indefensaveis-em-novo-servico-de-streaming-12584553http://oglobo.globo.com/cultura/selos-independentes-criticam-youtube-por-acoes-indefensaveis-em-novo-servico-de-streaming-12584553http://oglobo.globo.com/cultura/selos-independentes-criticam-youtube-por-acoes-indefensaveis-em-novo-servico-de-streaming-12584553http://oglobo.globo.com/cultura/selos-independentes-criticam-youtube-por-acoes-indefensaveis-em-novo-servico-de-streaming-12584553http://oglobo.globo.com/cultura/selos-independentes-criticam-youtube-por-acoes-indefensaveis-em-novo-servico-de-streaming-12584553http://oglobo.globo.com/cultura/selos-independentes-criticam-youtube-por-acoes-indefensaveis-em-novo-servico-de-streaming-12584553http://oglobo.globo.com/cultura/selos-independentes-criticam-youtube-por-acoes-indefensaveis-em-novo-servico-de-streaming-12584553
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Com o que foi exposto ficou claro que, pelo menos, a Internet tornou-se a
nova rede de produção-distribuição-consumo da música. Ela “...] passou a ser a
base tecnológica para a forma organizacional da Era da Informaç~o: a rede”.
Portanto, em um mundo onde as “atividades econômicas, sociais, políticas, e
culturais ...] est~o sendo estruturadas pela Internet e em torno dela” (CASTELLS,
2003, p. 8), é indispensável a sua compressão na tentativa de teorizar sobre os
novos mercados musicais.
Vale ainda lembrar que, embora a Internet tenha possibilitado múltiplas
formas de distribuição em rede da música, isso não significa o fim dos
intermedi|rios. Como disseram Herschmann e Kischinhevsky (2011, p. 10), “corre -
se [ainda] o risco de concentração empresarial sem precedentes no mercado da
música, devido à ascensão de novos intermediários que selam parcerias
milionárias com as majors ...]”.
Para o entendimento das muitas tendências acima apontadas, a seguir será
exposto um breve estudo de caso com um artista fortalezense que faz uso das
novas tecnologias para promover sua carreira no mercado musical. Certamente se
perceberá que ele é exemplo concreto da célebre afirmação de Castells (2003, p.
78): “talento é a chave da produç~o em negócios eletrônicos”. ‘Talento’ aqui é
aplicado no sentido de ‘fazer bom uso das redes como meio de negócios’, ou seja,
sua capacidade de articulação ante ao mercado musical virtual. No mais, se
apreenderá que a utilização da rede, juntamente com o capital social do artista,
tem sido diferencial estratégico de sua promoção, concomitantemente ao seu
capital cultural no cenário do reggae nacional e internacional. Mostrar-se-á que,
Andread Jó, apesar de ser produto global dessas novas estruturas sociais dos
mercados musicais independentes, é também um fenômeno local detentor de
capital cultural articulador de seu público ouvinte. Estruturado e estruturante,
para usar a terminologia de Pierre Bourdieu, Andread Jó tem reafirmado seu
capital simbólico enquanto artista independente de Reggae na capital do Ceará.
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Andread Jó: outsider e underground (?!)
O desafio aqui é pensar na indústria fonográfica diante de uma situação
mais que paradoxal: se por um lado vivencia-se – nos últimos anos – o
encolhimento exponencial da venda dos fonogramas (CDs), que por muito tempo
foi o ‘carro chefe’ da indústria fonogr|fica tradicional, sendo esta sua maior fonte
de renda; por outro, observa-se o surgimento de novas estratégias de
comercialização que passaram a reconfigurar toda a lógica da atual indústria
fonográfica. É mister observar que o maior uso da Internet, agora como Web 2.0,
caracteriza-se como elemento-chave dessa nova indústria cultural. Como bem
observou George Yúdice (2011, p. 20),
[...] vale a pena destacar que quase todos os comentários nas matériasdos jornais e ainda nos estudos de mercado divulgados enfatizamespecialmente o encolhimento do mercado tradicional (venda de CDs) eressaltam que o grande desafio é o intercâmbio de fonogramas naInternet (chamado de pirataria pela grande indústria da mídiatradicional).
Por conseguinte, o presente estudo pretendeu, no primeiro momento já
colocado nas páginas anteriores, visualizar uma resumida parte da literatura
produzida sobre a Nova Produção Independente – NPI, caracterizada,
essencialmente, pela oportunidade de expansão comercial suscitada pelo advento
das novas estratégias de produção, divulgação e comercialização da música via
Internet. Neste segundo momento, o intuito será apresentar um estudo de caso
realizado com o cantor e compositor cearense Andread Jó. Pretende-se agora,
portanto, analisar uma dimensão (uma dentre outras existentes) do mercado
musical independente de reggae em Fortaleza/CE, a fim de compreender uma cena
quase isolada que, acredita-se, poder ser considerada (de certa forma) como
outsider . Para além disso, esta cena é também underground . Esses termos se
referem à um artista que além de autônomo/independente, representa um gênero
pouco explorado comercialmente na capital cearense (se comparado ao forró
eletrônico, gênero musical, a priori, dominante).
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André Augusto Apoliano, 35 anos, nome artístico Andread Jó, nasceu em
Fortaleza/CE no dia 22 de abril de 1979. É compositor, cantor e guitarrista. Seu
último álbum, lançado em 2012, chama-se Andread Jó Sings Bob Marley .
Atualmente o artista encontra-se produzindo o quarto disco da carreira solo.
Começou na música profissionalmente aos dezessete anos. Hoje soma quase
dezoito anos de mercado. A princípio participou de outros projetos. Em um deles, o
Projeto Roots, o artista cantava blues e reggae. Ao falar deste projeto Andread
(2014) releva: “...] era eu e um amigo inicialmente, tocando guitarra e cantando;
um pouco de gaita, depois nós colocamos ‘baixo’ e bateria, e o repertório era esse:
blues e reggae, blues e reggae... até o ponto em que eu cheguei [...] a ficar só na
música reggae, que foi quando surgiu a Donaleda [primeira banda]”.
Blues e Reggae são gêneros musicais de origem negra. Essa característica
em comum revela o gosto peculiar do Andread, que sempre valorizou a música
negra por sua capacidade de denúncia de certas desigualdades e também por ser
utilizada como forma de ‘lamento’ (ANDREAD, 2014). Reitera que começou a curtir
o reggae n~o somente pela sonoridade, mas pela mensagem, e afirma: “...] todas as
músicas que eu curto, assim – boa parte delas, no caso – a que eu trabalho,
principalmente é voltado pra questão da mensagem” (ANDREAD, 2014).
Andread iniciou no mercado do reggae com um projeto em que tocava
apenas músicas do Bob Marley, por ser este um artista que todos na banda – na
época – j| ‘curtiam’. No começo, afirma: “...] a gente tentou fazer um repertório
bem grande, eu cheguei a decorar mais de cinquenta músicas/letras do Bob
Marley” (ANDREAD, 2014). Do contato com as letras do ‘rei’ do reggae surgiu a
necessidade também de dizer ‘alguma coisa’ (ANDREAD, 2014). Foi ent~o que,
juntamente com alguns integrantes do grupo, começaram a brotar as primeiras
composições. Andread Jó (2014) afirma que, nesse momento inicial, “...] foi
fundamental a música de Bob Marley nesse processo de composiç~o”.
Após o contato com os grandes nomes do reggae, mais especialmente Bob
Marley, Andread (2014) fala do sucesso da sua primeira composição.
A primeira banda que toquei foi a Donaleda, em 2001, e a primeiramúsica que a gente escreveu foi uma música minha ‘né’! Letra e músicaminha que chama Luz de Jah, e... por incrível que pareça, foi a música
http://www.andreadjo.com/index.php/musicas/40-downloads/80-andread-jo-sings-bob-marleyhttp://www.andreadjo.com/index.php/musicas/40-downloads/80-andread-jo-sings-bob-marleyhttp://www.andreadjo.com/index.php/musicas/40-downloads/80-andread-jo-sings-bob-marley
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mais vendida até hoje, tanto na Donaleda quanto na minha carreira solo...Essa música chegou a ficar em primeiro lugar na rádio mais ouvida deFortaleza durante mais de três meses, até com as nacionais einternacionais. Então, assim... foi um lance muito legal, a gente começoubem, muito bem.
Vivendo especificamente da música, Andread (2014) revela que seu último
emprego de carteira assinada (leia-se formal) foi quando tinha dezoito anos. De lá
pra cá, quando percebeu que o que ganhava como músico já se igualava ao salário
que recebia na empresa onde trabalhava, largou o trabalho e passou a se dedicar
somente { carreira artística. Assim complementa: “...] porque era isso que eu
queria [...] Eu já tinha feito faculdade de letras, não cheguei a me formar, porque
nesse ínterim que eu comecei a tocar na Donaleda, logo [...], foi uma coisa muitorápida, a gente mal lançou o disco e já surgiu turnê no Norte e Nordeste [...]. Eu
acabei tendo que trancar em funç~o da música”. Daí em diante:
[...] a música ela sempre foi minha fonte de renda, tive altos e baixos,tenho altos e baixos, acho que viver de música não é fácil, ainda maisnum país onde as pessoas não valorizam a cultura, onde não existe umacultura de ajudar o artista, comprando disco, participando de outrascoisas que possam trazer um ‘soldo’ leia-se lucro] pro artista poder
sobreviver, lançar disco, gravar DVD, e ‘tal’... Ent~o, é uma parada muitocomplicada! ...]