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Além das amélias: música popular e relações de gênero sob o “Estado Novo” Lasar Segal. Baile de negros. 1930 (detalhe). Adalberto Paranhos Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/ SP). Professor do Instituto de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais e em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pesqui- sador do CNPq. Autor, entre outros livros, de O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2007. [email protected]

música popular e relações de gênero sob o “Estado Novo” · pela retaguarda doméstica que lhes proporcionariam as mulheres, estas encarnariam a autoridade que simbolizaria

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Adalberto ParanhosDoutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor do Instituto de Ciências Sociais e dos Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais e em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pesqui-sador do CNPq. Autor, entre outros livros, de O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2007. [email protected]

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*Versão ampliada de trabalhoapresentado no VII Congressoda IASPM-AL (seção latino-americana da InternationalAssociation for the Study of Po-pular Music), realizado na Casade las Américas, em La Habana,Cuba, em junho de 2006.

1 AURÉLIO, século XXI: o dicio-nário da língua portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira: 1999, p. 119.

2 DICIONÁRIO HOUAISS da lín-gua portuguesa. Rio de Janeiro:Objetiva, 2001, p. 186.

3 “Três apitos” (Noel Rosa), A-racy de Almeida. 78 rpm Conti-nental. Samba gravado em 27mar. 1951 e lançado em jun.1951 (relançado no CD Noel Rosa– Aracy de Almeida. Warner,2002). Composto em 1933, foiengavetado por Noel Rosa porconter, segundo ele, “incorre-ções”. Para uma análise maisgeral dessa canção e seu entor-no social, v. PARANHOS, Adal-berto. O roubo da fala: origens daideologia do trabalhismo noBrasil. São Paulo: Boitempo,1999, p. 15 e 16. Sobre os fatosmais imediatos que inspiraram“Três apitos” (o envolvimentodo autor com uma operária têx-til, uma história que deu panopra manga...), ver MÁXIMO, Joãoe DIDIER, Carlos. Noel Rosa: umabiografia. Brasília: Linha Gráfi-ca/Editora UnB, 1990, p. 184.

4 “Você vai se quiser” (Noel Ro-sa), Noel Rosa e Marília Batista.78 rpm Odeon. Samba gravadoem 12 nov. 1936 e lançado emdez. 1936 (relançado no CD n.10 da caixa de CDs Noel pela pri-meira vez. Funarte/Velas, 2000).

amélia, “mulher amorosa, passiva e serviçal”1.amélia, “mulher que aceita toda sorte de privaçõese/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem”2.

Observador atento da cena social carioca dos anos 30 — e, em espe-cial, das relações de gênero que se desenrolavam diante de seus olhos —,Noel Rosa registrou em “Três apitos”3 umas tantas mudanças cujos con-tornos iam, mais e mais, se definindo. Inconformado por ver a fábricaroubar-lhe o precioso tempo de convívio com a amada, ele desabafa: “vocêque atende ao apito/ de uma chaminé de barro/ por que não atende aogrito tão aflito/ da buzina do meu carro?” Numa outra composição, “Vocêvai se quiser”4, Noel descarrega seu protesto contra o novo mundo que seabria ao trabalho feminino e aos direitos da mulher. Enxergando-o comlentes de aumento, ele se queixa:

(...) Todo cargo masculinoDesde o grande ao pequeninoHoje em dia é pra mulherE por causa dos palhaçosEla esquece que tem braçosNem cozinhar ela quer

Os direitos são iguais

R E S U M O

Enxergado freqüentemente com lentes

de aumento, o “Estado Novo” — a jul-

gar por muitos analistas — parece ter

sido bem-sucedido na tentativa de mol-

dar a sociedade brasileira à sua ima-

gem e semelhança. Indo na contracor-

rente dessas análises, este texto enve-

reda pelo mundo da canção popular

produzida nessa época e busca captar

vozes destoantes das falas oficiais, em

especial no campo das relações de gê-

nero.

PALAVRAS-CHAVE: música popular; re-

lações de gênero; “Estado Novo”.

A B S T R A C T

Frequently viewed through increasing

lens, the so-called “Estado Novo” — ba-

sed on its many commentators — seems

to have succeeded in its attempt at giving

its own shape to the Brazilian society.

Contrary to this view, this paper follows

the way of the popular music written in

Brazil at the time and searches to pick up

voices inconsistent with the official ones,

especially in the gender relationships

domain.

KEYWORDS: popular music; gender rela-

tions; “Estado Novo” dictatorship.

Além das amélias: música popular e relações de gênero sob o “Estado Novo”*Beyond amélias**: popular music and gender relations under the “Estado Novo” (New State) dictatorship

Adalberto Paranhos

**Amélia: name of a submissive, acquiescent woman portrayed with a tongue-in-cheek tone in a famous Brazilian song writt en in 1942 by Ataulfo Alves and Mário Lago (Translator’s note).

*Versão ampliada de trabalhoapresentado no VII Congressoda IASPM-AL (seção latino-americana da InternationalAssociation for the Study of Po-pular Music), realizado na Casade las Américas, em La Habana,Cuba, em junho de 2006.

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aMas até nos tribunaisA mulher faz o que querCada um que cave o seuPois o homem já nasceuDando a costela à mulher

Os papéis sociais assumidos no espaço urbano por um número cres-cente de mulheres — num momento em que a industrialização ganhavaimpulso em certas áreas do Brasil — embaralhava o jogo de cartas marcadasrepresentado pela tradicional divisão sexual do trabalho. Ainda na décadade 1940, Wilson Batista e Haroldo Lobo compuseram “Emília”5, um elogiorasgado à mulher de mil e uma utilidades domésticas. Nesse samba eleschoram a ausência da personagem-título, cuja memória é evocada:

Quero uma mulherQue saiba lavar e cozinharQue de manhã cedoMe acorde na hora de trabalharSó existe umaE sem ela eu não vivo em pazEmília, Emília, EmíliaEu não posso mais!

Ninguém sabe igual a elaPreparar o meu caféNão desfazendo das outrasEmilia é mulherPapai do céu é quem sabeA falta que ela me fazEmília, Emília, EmíliaEu não posso mais!

Que não se pense, contudo, que o presente sepultara de vez o pas-sado. Este se atualizava sob diversos aspectos e se insinuava em muitosdiscursos, práticas e normas legais. Como se sabe, não se cortam de umahora para outra os laços que nos prendem à tradição e a traços culturaismarcantes partilhados por diferentes grupos e classes sociais.

Ao eleger como objeto de estudo a Inglaterra na virada dos séculosXIX e XX, Eric J. Hobsbawm6 já explicou por que a classe e o movimentooperários não encaravam com bons olhos o trabalho da mulher fora decasa. Independentemente disso, o que se tem de concreto é que “a indus-trialização do século XIX (em oposição à industrialização do século XX)tendeu a fazer do casamento e da família a carreira principal da mulher daclasse trabalhadora que não fosse forçada pela total pobreza a assumiroutra atividade”7. No Brasil, estigmas sexistas semelhantes vieram à su-perfície ao longo da história do movimento operário. Sob uma estruturafamiliar patriarcal, as mulheres — como mostraram, entre outras, MariaValéria Junho Pena8 e Margareth Rago9 — eram condenadas a arcar, deforma prioritária, com o trabalho doméstico e reprodutivo, por maior quefosse sua participação na composição da força de trabalho assalariada naPrimeira República.

5 “Emília” (Wilson Batista eHaroldo Lobo), Vassourinha. 78rpm Colúmbia. Samba lançadoem out. 1941 (relançado no CDVassourinha. Warner, 2002).

6 Ver HOBSBAWM, Eric J. Mun-dos do trabalho: novos estudossobre História Operária. 2. ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988,esp. cap. Homem e mulher: ima-gens da esquerda.

7 Idem, ibidem, p. 135.

8 Ver PENA, Maria Valéria Ju-nho. Mulheres e trabalhadoras:presença feminina na constitui-ção do sistema fabril. Rio de Ja-neiro: Paz e Terra, 1981, esp. itemO trabalho feminino na discus-são operária da I República.

9 Ver RAGO, Margareth. Rela-ções de gênero e classe operáriano Brasil, 1890-1930. CadernoEspaço Feminino, n. 1, Uberlân-dia, Universidade Federal deUberlândia, jan.-jun. 1994.

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À época do “Estado Novo”, concepções tradicionalistas teimavamem expressar-se, como se observou, entre o final dos anos 30 e o início dos40, em meio ao debate que se instalou e estalou nos próprios meios gover-namentais a propósito do Estatuto da Família10. Na contracorrente dasnovas realidades que iam se estabelecendo, Gustavo Capanema, ministroda Educação e Saúde, chegou a bancar um projeto que, em prol da gran-deza do país, salientava a necessidade de promover o aumento da popu-lação e de oferecer proteção estatal à família monogâmica e ao casamentoindissolúvel. Para tanto, propunha, entre outras providências, a “progres-siva restrição da admissão das mulheres nos empregos públicos e priva-dos. Não poderão as mulheres ser admitidas senão aos empregos própri-os da natureza feminina e dentro dos estritos limites da conveniência fa-miliar”11. Tratava-se de reforçar o direcionamento das energias femininaspara funções julgadas compatíveis com sua “essência”, o que significavareafirmar seu enraizamento natural na vida doméstica.

Virando o lado da moeda, no caso do homem era exaltado o dever acumprir como chefe de família, trabalhador/provedor12, que, nas palavrasde Gustavo Capanema, “deve ser preparado com têmpera de teor militarpara os negócios e as lutas”13. Enquanto os homens estariam respaldadospela retaguarda doméstica que lhes proporcionariam as mulheres, estasencarnariam a autoridade que simbolizaria o poder do Estado, num con-texto em que, como frisa Sueann Caulfield, a família brasileira era a “me-táfora central da ordem social”.14

Resta indagar, aqui, em que medida essa ordem familiar patriarcalidealizada se materializou sob o regime disciplinar ditatorial do “EstadoNovo”. Quando se estuda a “ditadura Vargas”, freqüentemente os analis-tas inflacionam as aparências e, a partir daí, supervalorizam o poder disci-plinar estatal na sua ânsia de erigir uma sociedade à sua imagem e seme-lhança. O poder tentacular do regime estado-novista tende a ser visto,então, como algo que se disseminaria por todo o corpo social, penetrandotodos os seus poros.

Ao romper com tais quadros de referência, este artigo — que seapóia em parte da produção musical do período15 — busca destacar deter-minadas práticas discursivas que configuram discursos cruzados no uni-verso das relações de gênero e que apontam para a existência de vozesdestoantes das falas oficiais. De um lado, temos as falas colocadas na bocade personagens femininas que censuram o procedimento malandro de seuscompanheiros. De outro, o canto de personagens masculinos que recrimi-nam a conduta de suas companheiras que transbordam a bitola estreita deseus papéis sociais mais tradicionais.

Embora privilegie, neste texto, as letras das canções — até por ex-plorar mais especificamente o componente ideológico dos sambas pes-quisados —, tomei como ponto de partida a audição das gravações arrola-das, por entender que o documento fonográfico não deve ser esvaziado desonoridade, resumido a simples peça escrita. Afinal, em muitos casos, alinguagem estritamente musical e a performance dos intérpretes podemfalar mais alto do que a própria linguagem literal, que, de resto, não édotada de significado unívoco, congelado no tempo.16

Seja como for, uma certa ambivalência se incorpora por vezes àscomposições (que eram submetidas à censura prévia do Departamento deImprensa e Propaganda, DIP) tanto quanto às interpretações registradas

10 Sobre a preocupação com po-líticas públicas destinadas à“contenção das mulheres” e àdemarcação de seu lugar soci-al, incluindo-se aí o Estatuto daFamília, ver SCHWARTZMAN,Simon, BOMENY, Helena Ma-ria Bousquet e COSTA, VandaMaria Ribeiro. Tempos de Capa-nema. Rio de Janeiro: Paz e Ter-ra/ Editora FGV, 2000, p. 123-139, e CAULFIELD, Sueann. Emdefesa da honra: moralidade,modernidade e nação no Rio deJaneiro (1918-1940). Campinas:Editora da Unicamp, p. 337-339.11 Apud SCHWARTZMAN et. al.,op. cit., p. 128.12 Ao abordar as relações entrealcoolismo, trabalho, mulher efamília, MATOS, Maria IzildaSantos de. Meu lar é o botequim:alcoolismo e masculinidade.São Paulo: Companhia EditoraNacional, 2000, p. 39-55, evi-denciou como o discurso médi-co emergente nas primeiras dé-cadas do século XX procuravaassociar a condição de homemtrabalhador a padrão de mas-culinidade e a atributos de viri-lidade.13 Apud SCHWARTZMAN et. al.,op. cit., p. 123.14 CAULFIELD, Sueann, op. cit.,p. 332 e 333.15 Este texto é produto de pes-quisa de maior amplitude quepriorizou o material fonográficodisponível principalmente naDiscoteca Oneyda Alvarenga,do Centro Cultural São Paulo/SP, na gravadora Revivendo, deCuritiba/PR, e na discoteca doautor. Baseia-se, portanto, namúsica popular industrializa-da posta no mercado pelas trêsgravadoras (Odeon, Victor eColúmbia/Continental) queoperavam no Brasil durante o“Estado Novo”. Elas se sedia-vam no Rio de Janeiro, onde, porsinal, era gerada grande partedas composições transpostaspara o vinil. Quanto às referên-cias às datas de gravação e/oude lançamento dos discos ouvi-dos para este trabalho, eu mevali das informações disponí-veis em SANTOS, Alcino, BAR-BALHO, Gracio, SEVERIANO,Jairo e AZEVEDO, M. A. de (Ni-rez). Discografia brasileira 78 rpm:1902-1964, v. 2 e 3. Rio de Janei-ro: Funarte, 1982.16 Estas e outras reflexões de ca-ráter metodológico sobre os ris-cos de nos tornarmos reféns daliteralidade da canção e sobre aimportância da performance,que pode ressignificar umacomposição, são desenvolvidaspor mim em PARANHOS, Adal-berto. A música popular e a dan-ça dos sentidos: distintas facesdo mesmo. ArtCultura, n. 9, Uber-lândia, Edufu, jul.-dez. 2004.

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aem disco. Para além disso, no entanto, em todas as gravações que analisa-rei, um denominador comum as irmanava: nelas despontavam figuras —em geral, retratadas na terceira pessoa — que fugiam aos códigos de com-portamento que a “boa sociedade” recomendava.

Por outro lado, do ponto de vista musical, os arranjos dessas grava-ções, em regra, se distanciavam dos adornos orquestrais altissonantes quevestiam, por exemplo, os sambas-exaltação. Eles eram, comumente, confi-ados a pequenos conjuntos, chamados de regionais, à frente dos quais seachava, muitas vezes, o flautista Benedito Lacerda. Sem assumir ares demonumentalidade, esses eram os arranjos que predominavam nos sam-bas, como aqueles bastante sincopados que levavam a assinatura de Ge-raldo Pereira, um compositor que fez escola por esses anos e que já foiconsiderado como o tradutor musical do andar malandro. E, se apurar-mos o ouvido para captar as distintas entonações e dicções dos intérpre-tes, uma outra diferença se revelará claramente audível: o tom mais colo-quial de um cantor como Vassourinha — um mestre no canto-falado — oude um sambista de primeira linha como Ciro Monteiro se diferencia emmuito do estilo de interpretação mais impostado de um Francisco Alves, o“rei da voz”, que, não por acaso, gravou vários sambas-exaltação.

Mulheres do lesco-lesco

Durante a ditadura estado-novista, particularmente de 1940 em di-ante, piscaram os sinais de alerta para os malandros e os que cultuavam amalandragem17. Desencadeou-se uma cruzada antimalandragem que ti-nha entre seus objetivos interromper a íntima relação que, na história damúsica popular brasileira, unira o samba à malandragem. Mesmo assim,em pleno império do DIP, de modo enviesado que fosse, tipos que viviamà margem do trabalho regular continuavam a freqüentar muitas composi-ções, como que a fornecer um atestado de sua sobrevivência. É impressio-nante a quantidade de canções que se converteram em muros delamentação de mulheres insatisfeitas com seus parceiros sanguessugas ecom a sua condição de muro de arrimo da família. Normalmente compos-tas por homens e cantadas por mulheres, tais músicas, apesar de compor-tarem alguma dubiedade, se ocuparam de figuras que voltavam as costasao trabalho.

Em “Sete e meia da manhã”18, Dircinha Batista, cheia de bossa, narraa via-crúcis de uma operária na luta pelo pão-nosso-de-cada-dia. Berra odespertador, seu companheiro a acorda, vira para o lado, puxa a coberta,torna a dormir, e lá vai ela, a contragosto, trabalhar:

(...) Estou atrasadaE se não for para o batenteEle vai me dar pancadaEstou tão cansadaDe ouvir todo diaA mesma toadaO apito da fábrica a me chamarLevanta da cama e vem trabalharMas que viver desesperado!

17 Retomo, parcialmente, aqui eem outras passagens deste arti-go, algumas considerações queapareceram, originalmente, emPARANHOS, Adalberto. Osamba na contramão: músicapopular no “Estado Novo”. Cul-tura Vozes, v. 95, n. 1, Petrópolis,Vozes, 2001.

18 “Sete e meia da manhã” (Pe-dro Caetano e Claudionor Cruz),Dircinha Batista. 78 rpm Conti-nental. Samba lançado em jul.1945.

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19 Sobre o assunto, ver PARA-NHOS, Adalberto. Os desafina-dos: sambas e bambas no “EstadoNovo”. Tese (Doutorado em His-tória Social) – PUC-SP, São Pau-lo, 2005, esp. p. 138-143. Nessesestudos se acata, em certa medi-da, a “teoria do rebaixamento”a que se refere BURKE, Peter.Cultura popular na Idade Moder-na: Europa, 1500-1800. 2. ed.São Paulo: Companhia das Le-tras, 1998, p. 84-90. O que se per-de de vista é o processo de inte-ração entre os sujeitos, quais-quer que sejam eles. Os conteú-dos manipulados pelo agentetransmissor, no caso o Estado/DIP, teriam sido interiorizadossem mais pelos receptores. Nu-ma palavra, o receptor é prati-camente reduzido a locutor dafala alheia, ao ser rebaixado àfunção de “locutor-papagaio”.

20 Suas palestras semanais,transmitidas em cadeia nacio-nal obrigatória de emissoras derádio, constituem uma autênti-ca sinfonia do trabalho. Elas sãoexaminadas por mim em PA-RANHOS, Adalberto. O roubo dafala, op. cit., esp. cap. IV.

21 “Não admito” (Ciro de Souzae Augusto Garcez), Aurora Mi-randa. 78 rpm Victor. Sambagravado em 19 mar. 1940 e lan-çado em maio 1940 (relançadono CD n. 14 da coleção Os gran-des sambas da história. Globo/BMG, 1997).

22 “Hildebrando” (Wilson Batis-ta e Haroldo Lobo), Ciro Mon-teiro. 78 rpm Victor. Samba gra-vado em 13 nov. 1941 e lançadoem jan. 1942.

23 “Inimigo do batente” (WilsonBatista e Germano Augusto),Dircinha Batista. 78 rpm Odeon.Samba gravado em 5 out. 1939 elançado em maio 1940 (relan-çado no LP Cantoras da época deouro. Revivendo, 1988).

Neste ponto o samba se recolhe, a melodia envereda pelo ritmodolente da seresta, e a trabalhadora conclui, em tom de lamento: “Se Deusum dia olhasse a terra/ e visse o meu estado”. E, de novo, soa o desperta-dor.

Logo se vê que “Sete e meia da manhã” não exala o espírito oficialda época. Sem maquiar o dia-a-dia do operário, trabalho, nesse samba,rima com martírio, quando não com miserê, como se constata em outrascomposições. Isso tudo atropela o discurso governamental e determina-das análises elaboradas por historiadores e cientistas sociais que insistemem sustentar quase exclusivamente a tese da assimilação da mensagemtrabalhista pelos compositores populares19. Estamos aqui muito longe doelogio ao trabalhador que se encontrava na base dos pronunciamentos doministro do Trabalho Marcondes Filho no programa radiofônico “Hora doBrasil”20. Em vez de ser concebido como atividade humanizante eregeneradora, o trabalho é percebido como fonte de sacrifício que se im-põe aos que vivem atracados com a luta pela subsistência.

Em “Não admito”21, com Aurora Miranda, outra mulher vociferacontra o boa-vida que mora com ela. Nesse samba-choro, uma espécie depeça de acusação, ela chega às raias da indignação:

Não, não admitoEu digo e repitoQue não admitoQue você tenha coragemDe usar malandragemPra meu dinheiro tomar

Sem se refugiar em meias-palavras, a personagem bate duro:

Se quiser vá trabalhar, oiVá pedir emprego na pedreiraQue eu não estou dispostaA viver dessa maneiraVocê quer levar a vidaTocando viola de papo pro arE eu me mato no trabalhoPra você gozar

“Hildebrando”22 é outro indivíduo que habita esse mundo de pesso-as que não integram o exército regular da produção. Esse samba, cantadopor Ciro Monteiro, dramatiza o paradoxo de uma família às voltas comnecessidades crônicas, enquanto o suposto chefe de família se entrega aoócio: “sempre descansando”, “perambulando na rua”, ele, decididamen-te, “não quer procurar o que fazer”.

Na pele de Dircinha Batista, mais uma trabalhadora martela a mes-ma tecla em “Inimigo do batente”23. Para começo de conversa, seus doisautores são emblemáticos. Wilson Batista, um mulato que jamais fincoupé num emprego convencional, e vira e mexe tinha contas a acertar com apolícia. Germano Augusto, um malandro que se notabilizou, entre outrascoisas, por suas façanhas de se apoderar, com golpes de astúcia ou namarra, de composições alheias, além de figurar em parcerias fictícias. Ambos

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ase dão as mãos nesse samba para expor as queixas de uma mulher varadade sofrimento e cansada do “lesco-lesco”24 da vida de lavadeira que vemconsumindo os seus dias. Seu homem, corpo atlético, “tem muita bossa”e, mais, “diz que é poeta”, e aguarda a gravação de um samba de suaautoria, antevendo um sucesso de arromba... Nesse meio-tempo, ela cole-ciona frustrações. Se paciência tem limite, a dela com certeza se esgotou:

Eu já não posso maisA minha vida não é brincadeiraÉ, estou me desmilingüindoIgual a sabão na mão da lavadeiraSe ele ficasse em casaOuvia a vizinhança toda falandoSó por me ver lá no tanqueLesco-lesco, lesco-lesco, me acabando

Se eu lhe arranjo trabalhoEle vai de manhã, de tarde pede a contaEu já estou cansada de darMurro em faca de pontaEle disse pra mimQue está esperando ser presidenteTira patente do sindicatoDos inimigos do batente

Ele dá muita sorteÉ um moreno forteEle é mesmo um atletaMas tem um grande defeitoEle diz que é poetaEle tem muita bossaE compôs um samba e quer abafar (breque: é de amargar!)Não posso mais, em nome da forraVou desguiar

Abro, aqui, um parêntesis. Deixando de lado aquilo que, nesse sam-ba, quase fala por si só, há um aspecto que não pode passar despercebido.Nela, bem como em outras composições da época, apela-se para o uso degírias, nascidas do linguajar da gente simples, o que atesta a proximidadede certos gêneros de música popular com o “brasileiro falado”. É como seestivéssemos anos-luz distantes de canções contemporâneas, a exemplodos sambas-exaltação, com seu carro-chefe, “Aquarela do Brasil”25, domi-nado pelo tom oficioso, grandiloqüente e pelo culto a expressões empola-das, como a “merencória luz da lua”.

O emprego de gírias na música popular, especialmente no samba —prática consagrada por Moreira da Silva, um expert na matéria — provoca-va calafrios nos agentes e instituições investidos da função de polícia dalíngua. O que seria o dialeto da malandragem senão um subpadrão, oumelhor, um não-padrão do idioma português? Esses policiais de plantãonão tinham papas na língua ao abominarem a utilização de expressões“chãs” e “chulas”, vistas como próprias da ralé ou da arraia-miúda. Coisa

24 Convém atentar para o trânsi-to lingüístico de expressõescomo lesco-lesco, miserê e outrasque tais. Assim como, analo-gamente, uns tantos elementosdas ideologias das classes tra-balhadoras são incorporados e/ou ressignificados pelas ideolo-gias das classes dominantes (v.GRAMSCI, Antonio. Literatura evida nacional. Rio de Janeiro: Ci-vilização Brasileira, 1968, p. 132e 133), muitas palavras originá-rias da linguagem cotidiana desetores populares acabam porser dicionarizadas. Foi o que severificou, por exemplo, com les-co-lesco, miserê e o verbo des-guiar (ir embora). Ver AURÉLIO,século XXI, op. cit., p. 1203, 1344e 654, e DICIONÁRIO HOUAISSda língua portuguesa, op. cit., p.1745 e 1933.

25 “Aquarela do Brasil” (AryBarroso), Francisco Alves. 78rpm Odeon. Samba gravado em18 ago. 1939 e lançado em out.1939 (relançado no CD n. 2 dacaixa de CDs História da Odeon– 1927-1942: as primeiras mú-sicas do século XX. Emi, 2003.).Cito a primeira gravação dessacomposição. No total, foram 5as gravações nacionais de“Aquarela do Brasil” no perío-do do “Estado Novo”.

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26 Ver as seções de música e deradiodifusão da revista CulturaPolítica, publicada pelo DIP en-tre 1941 e 1945. As palavras ci-tadas são de CASTELO, Mar-tins, Cultura Política, n. 6, ago.1941, p. 331. O mesmo articulis-ta censurava a “degradação” re-presentada pela “baixa lingua-gem” em idem, n. 11, jan. 1942,p. 300. Manifestações dessa na-tureza, de acordo com o escritorMarques Rebelo, eram típicas de“zeladores de gramatiquices” ede “perseguidores de letristasda música popular”. REBELO,Marques. A mudança (tomo 1 deO espelho partido). 3. ed. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 2002. p.179.

27 Ver HUGO, Victor. Os miserá-veis (v. 2). São Paulo-Rio de Ja-neiro: Cosac & Naify/Casa daPalavra, 2002, esp. p. 361-374.

28 VELLOSO. Mônica Pimenta.Os intelectuais e a política cul-tural do Estado Novo. Revista deSociologia e Política, n. 9 (EstadoNovo: 1937-1945), Curitiba,UFPR, p. 66.

29 Ver glossários da malandra-gem em AUGUSTO, Alexandre.Moreira da Silva: o último dosmalandros. Rio de Janeiro-SãoPaulo: Record, 1996, p. 279-288,e CISCATI, Márcia Regina. Ma-landros da terra do trabalho: ma-landragem e boêmia na cidadede São Paulo (1930-1950). SãoPaulo, Annablume/Fapesp,2001, p. 255-267.

30 “No lesco-lesco” (HanibalCruz), Carmen Costa. 78 rpmVictor. Samba gravado em 30maio 1945 e lançado em set.1945.

31 “Vai trabalhar” (Ciro de Sou-za), Aracy de Almeida. 78 rpmVictor. Samba gravado em 10fev. 1942 e lançado em abr. 1942.

de capadócios, diriam eles, que enxergavam nisso uma espécie de conspi-ração dos cretinos contra a pureza do vernáculo.

A ferocidade da crítica contra esse “linguajar vulgar” está fartamen-te documentada. Aqueles que se arvoraram em guardiões da ordem lin-güística receberam, logicamente, cobertura oficial à sua empreitada. Des-fechou-se um virulento ataque à “gíria corruptora da língua nacional”26.Nada de muito novo, se levarmos em conta que, no século XIX, por exem-plo, Victor Hugo já escrevia sobre a gritaria de escritores respeitáveis con-tra a linguagem do bas-fond e o uso da gíria em textos literários na Fran-ça27. Sob o “Estado Novo”, a preservação das formas cultas do idiomapátrio era tida como algo concernente à sobrevivência nacional. MônicaVelloso lembra que, “para os doutrinadores do regime, a língua se consti-tui em patrimônio nacional, no sentido de que preserva a segurança eunidade do país.”28 E o atentado à linguagem séria e austera, sempre pre-sente nos pronunciamentos oficiais, seria considerado ainda maisinsultuoso se soubessem que, na era da ideologia do trabalhismo, o linguajarmalandro identificava trabalhador a ladrão. “Fazer um trabalho” era sinô-nimo de roubar...29

Fechado o parêntesis e pondo à parte questões vernáculas, assinaloque várias canções entravam em linha de sintonia com “Inimigo do baten-te”. “No lesco-lesco”30, com Carmen Costa, e “Vai trabalhar”31, com Aracyde Almeida, recolocavam em cena a queda-de-braço travada pelas lava-deiras com a luta pela sobrevivência. No primeiro, se relata a lida da mu-lher que se mata de tanto trabalhar no tanque (a repetição, ao longo damúsica, de lesco-lesco, lesco-lesco, lesco-lesco, sugere, obviamente, o mo-vimento quase incessante de quem lava a roupa), o que se choca com obem-bom em que vive seu marido:

Meu marido não faz nadaSó leva a vida gozandoEu já estou com dor nas costasO tanque está me acabandoNo lesco-lescoNo lesco-lescoNo lesco-lesco

As mulheres estão por baixoO homem é que determinaTraz da rua a roupa sujaA mulher que vá pra tinaNo lesco-lescoNo lesco-lescoNo lesco-lesco

“Vai trabalhar” ilumina mais ainda o contraste entre a mulher traga-da pela rotina, dedicada ao trabalho penoso, e o homem que leva a vida naflauta, dando-se ao luxo de usufruir os pequenos prazeres que o mundolhe reserva. Ela ergue a voz e solta seu protesto:

Isso não me convémE não fica bem

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aEu no lesco-lescoNa beira do tanquePra ganhar dinheiroE você no samba o dia inteiro

Você compreendeE faz que não entendeQue tudo depende de boa vontadePra nossa vida endireitarVocê deve cooperarÉ forte, pode ajudarProcure empregoDeixa o sambaE vai trabalhar

Nessas representações, as lavadeiras, personagens miúdas dessesdramas do cotidiano que costumam ser relegados para as zonas de som-bra da História convencional, não se pautavam exatamente pelo confor-mismo, como se deduz desses sambas. Nem toleravam seu calvário porforça de qualquer predestinação. À sua maneira, resistiam ante uma situa-ção nada confortável. E isso não constituía uma novidade. Ao se reportaràs funções de lavar e amamentar, Maria Izilda Santos de Matos retira doesquecimento as lavadeiras de São Paulo das primeiras décadas do séculoXX. Ressalta que delas restou a imagem “de mulheres muito dispostaspara o trabalho”, muitas das quais se tornaram chefes de família. De que-bra, “eram tidas como ‘quem não leva desaforo para casa’, pois cotidiana-mente envolviam-se em brigas e acabavam parando na polícia”32. Essasrepresentações — que se nutriam, mesmo que parcialmente, de experiên-cias vividas — perduravam, como se percebe, pelo menos até o “EstadoNovo”. Afinal, é de dentro dessas experiências que brota, como frisa MunizSodré, o “discurso transitivo” dos sambistas: “em outras palavras, o textoverbal da canção não se limita a falar sobre (discurso intransitivo) a existên-cia social. Ao contrário, fala a existência”33, ao transformar a matéria-pri-ma de suas vivências em samba.

Seria possível arrolar outros exemplos de tipos malandros e de bam-bas que ressurgiram, aqui e ali, em composições gravadas e/ou lançadasentre 1940 e 1945, sob o reinado do DIP. “Já que está deixa ficar”34, “Nãovou pra casa”35, “Quem gostar de mim”36, “Batata frita”37 e “Fez boba-gem”38 são apenas mais algumas. Mas é interessante atacar, agora, o pro-blema pelo lado do avesso.

Mulheres do balacobabo

Já se observou que a música popular se revelou um solo fértil para odesabrochar das dores de corno sentidas pelos homens39. Quantas não sãoas canções que expõem aos nossos olhos a fragilidade do “sexo forte” a sedissolver em lamúrias ao ser passado para trás. “Oh! Seu Oscar”40, su-cesso estrondoso do carnaval de 1940, na interpretação de Ciro Monteiro,flagra mais uma situação na qual as pedras do tabuleiro parecem fugir dolugar habitual. Seu Oscar, trabalhador braçal, descreve seu melodrama:

32 MATOS, Maria Izilda Santosde. Cotidiano e cultura: história,cidade e trabalho. Bauru: Edusc,2002, p. 144 e 146.

33 SODRÉ, Muniz. Samba: o do-no do corpo. Rio de Janeiro: Co-decri, 1979, p. 34.

34 “Já que está deixa ficar” (As-sis Valente), Anjos do Inferno.78 rpm Colúmbia. Samba lan-çado em ago. 1941 (relançado noLP Um turbilhão de alegria. Re-vivendo, s/d).

35 “Não vou pra casa” (AntonioAlmeida e Roberto Ribeiro), Joele Gaúcho. 78 rpm Colúmbia.Samba gravado em nov. 1940 elançado em dez. 1940 (relan-çado no LP Foi uma pedra que ro-lou. Revivendo, s/d).

36 “Quem gostar de mim”(Dunga), Ciro Monteiro. 78 rpmVictor. Samba gravado em 8 jul.1940 e lançado em set. 1940(relançado no CD A bossa de sem-pre. RCA/BMG, 2001).

37 “Batata frita” (Ciro de Souzae Augusto Garcez), AuroraMiranda. 78 rpm Victor. Grava-do em 19 mar 1940 e lançadoem jun. 1940 (relançado no CDn. 11 da coleção Os grandes sam-bas da história, op. cit.).

38 “Fez bobagem” (Assis Valen-te), Aracy de Almeida. 78 rpmVictor. Samba gravado em 20jan. 1942 e lançado em mar.1942 (relançado no CD n. 5 dacoleção Os grandes sambas da his-tória, op. cit.).

39 Ver, por exemplo, OLIVEN,Ruben George. A mulher faz (edesfaz) o homem. Ciência Hoje,v. 7 , Rio de Janeiro, SBPC, 1987.

40 “Oh! Seu Oscar” (AtaulfoAlves e Wilson Batista), CiroMonteiro. 78 rpm Victor. Sambagravado em 12 set. 1939 e lan-çado em nov. 1939 (relançadono CD A bossa de sempre, op. cit.).

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41 Num diário-romance é lem-brado que a vingança popularcontra o moralismo se expres-sou na consagração dessa sam-ba durante os festejos carnava-lescos de 1940. Ver REBELO,Marques, op. cit., p. 179.

42 Sobre o assunto, ver PARA-NHOS, Adalberto. O roubo dafala, op. cit., p. 160 e 161.

43 Ver a palestra A senhora dolar proletário, irradiada em1942 na “Hora do Brasil”. MAR-CONDES FILHO. Trabalhadoresdo Brasil! Rio de Janeiro: Revis-ta Judiciária, 1943, p. 51-55.

44 Discurso pronunciado em 2out. 1942, na solenidade de fun-dação da Legião Brasileira deAssistência. Idem. Boletim do Mi-nistério do Trabalho, Indústria eComércio, n. 98, Rio de Janeiro,out. 1942, s/n.

Cheguei cansado do trabalhoLogo a vizinha me falou:“Oh! Seu Oscar, tá fazendo meia horaQue tua mulher foi-se emboraE um bilhete deixou”O bilhete assim dizia:“Não posso maisEu quero é viver na orgia!”

Aturdido, ele desfia o seu sofrimento:

Fiz tudo para ver seu bem-estarAté no cais do porto eu fui pararMartirizando o meu corpo noite e diaMas tudo em vão, ela é da orgia (breque: É, parei)

Seu Oscar, estivador, com seus braços de carvalho, suportara porela um pesado fardo. O trabalho, mais uma vez, é aqui associado a sacrifí-cio, a martírio, a mortificação do corpo, em completo descompasso com aladainha trabalhista. O trabalhador, aliás, é indiretamente convertido emotário, dando o duro no batente ao mesmo tempo em que sua mulher seatira à orgia. Sintomaticamente, o título original dessa composição, quechegou a despertar reações moralistas, era “Ela é da orgia”41. Orgia, diga-se de passagem, não tinha, naquela época, o sentido de bacanal que adqui-riu mais recentemente. Era sinônimo de festa popular, regada a samba,batucada e coisas do gênero.

Por sinal, não deixa de ser significativa a reiteração da palavra orgiana gravação de “Oh! Seu Oscar”. Ela é ouvida nada menos do que novevezes. Seus versos-chave (“Não posso mais/ eu quero é viver na orgia!”)se repetem sete vezes. Inclusive no final da gravação, levando a canção apassar por uma relativa ressignificação. Se, graças à dubiedade da sualetra, “Oh! Seu Oscar” pôde levantar o primeiro prêmio, na categoria sam-ba, do concurso carnavalesco patrocinado pelo DIP em 1940, o fato é quetudo indica que, no calor do carnaval, os foliões se empolgaram com osversos que glorificavam a orgia. Postos na encruzilhada, entre identificar-se com as desventuras do trabalhador ordeiro ou com as aventuras damulher pândega, aqueles que pulavam mais um carnaval sob o “EstadoNovo” não devem ter pensado duas vezes para fazer sua opção.

Novamente se cavava uma distância considerável entre a fala gover-namental e os comportamentos referidos nas canções populares. De umlado, artigos inseridos no Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Co-mércio realimentavam uma certa tradição, ao enaltecer a mulher e situá-lano seu “devido lugar” como braço auxiliar do chefe de família42. Nessestermos, o ministro do Trabalho Marcondes Filho derramava copiosos elo-gios sobre a “senhora do lar proletário” e evocava imagens historicamentevinculadas à mulher dona-de-casa: maternidade, prole, berços43. Mulher,lar, esposa, mãe e doçura formariam um composto especial que resultariana “divina fraqueza das mulheres”.44

De outro lado, em “Oh! Seu Oscar” as relações de gênero não secircunscrevem à ótica da vitimização das mulheres. Ao invés de vítimaindefesa de uma sociedade machista, rebaixada à condição de pobre-coita-

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ada ou de mera amélia45, a ex-mulher de seu Oscar desponta como alguémcapaz de quebrar cadeias de padrões de conduta instituídos. E não se tratade um caso isolado: muitas outras personagens femininas são menciona-das em composições desse período por trocarem as prendas domésticaspela gandaia, o que, em algumas situações, precipitava no ridículo a figu-ra do “malandro regenerado” ou, como queira, do trabalhador traído. Em“Madalena”46, o chefe da família parece ter perdido as rédeas da casa:

Madalena, você foi ao sambaSem me avisarParece incrível, mulherVocê não tem pensarVeja se isso é horaO sol já está de foraVou para o trabalhoE você no samba até agora (...)

Essas mulheres do barulho ou do balacobaco47, conforme a gíria daépoca, infelicitavam a vida de seus companheiros e os irritavam a maisnão poder, como se nota em “Acabou a sopa”48 (a mamata). Condenadaspor eles, no voz de Gilberto Alves, como “Louca[s] pela boemia”49, nempor isso elas se enquadravam nos moldes do figurino estado-novista: “loucapela boemia, me abandonou/ e meu castelo dourado se desmoronou”.No mesmo estilo e no mesmo tom, Arnaldo Paes canta “Samba de 42”50,ao som de uma batucada de carnaval:

(...) Emília já não quer fazer mais nadaDiz que vai pra batucada (...)Emília diz que não é mais aquelaQue não lava mais panelaDiz que vai viver sambandoIh! Ih! Emília enlouqueceuSaiu gritando:“Quem não pode mais sou eu!”

Em tempo: “Samba de 42” se contrapunha, deliberadamente, a“Emília”, canção citada páginas atrás. Nessa sua reencarnação, ela ajusta-va as contas com o passado e caía na folia.

Disso tudo sobra a conclusão de que o círculo de ferro que o regimeestado-novista tentou impor a fim de modelar de forma diferenciada oscomportamentos masculino e feminino freqüentemente não foi bem-suce-dido. Neste caso específico, a despeito das “políticas intervencionistas doEstado Novo (que) reforçavam a dependência das mulheres em relaçãoaos homens”51 e dos protestos de compositores populares e de malandrosrenitentes, outros mundos se agitavam sob a aparente calmaria. O espaçopúblico do prazer/lazer, tido e havido como essencialmente masculino,era, de modo progressivo, invadido por mulheres que, de um jeito ou deoutro, se recusavam a resignar-se diante de seu papel de reles objeto do-méstico.52 Enquanto isso, ainda persistiam expedientes malandros de quem,vivendo à sombra das mulheres, transferia para elas o ônus do sustentodo lar, porém, seja lá como for, não se deixava apanhar na rede do culto ao

45 Certo ou errado — não entro,aqui, no mérito da questão, queé passível de discussão —, foiesse o sentido, historicamenteconsagrado, que se colou à letrada canção que exalta Amélia.Escrita por um comunista, Má-rio Lago, ele a concebeu comoum exemplo de solidariedade ede dedicação sem igual a todosquantos experimentavam difi-culdades pela vida afora. VerVELLOSO, Mônica. Mário Lago:boemia e política. 3. ed. Rio deJaneiro: Editora da FundaçãoGetúlio Vargas, 1998, p. 119, eouvir “Ai, que saudades daAmélia” (Ataulfo Alves e MárioLago), Ataulfo Alves. 78 rpmOdeon. Samba gravado em 27nov. 1941 e lançado em jan. 1942(relançado no CD n. 2 da caixade CDs História da Odeon, op. cit.).46 “Madalena” (Bide e Marçal),Anjos do Inferno. 78 rpm Colúm-bia. Samba lançado em jan. 1942(relançado no CD n. 17 da cole-ção Os grandes sambas da histó-ria. Globo/BMG, 1998).47 A palavra balacobaco (ou, se-gundo o gosto do freguês, bala-cubaco) também está hoje dicio-narizada com a acepção, entreoutras, de “festa, farra”, ou paranomear quem “gosta de festas,de farras, farrista”. DICIONÁ-RIO HOUAISS da língua portu-guesa, op. cit., p. 382.48 “Acabou a sopa” (Geraldo Pe-reira e Augusto Garcez), CiroMonteiro. 78 rpm Victor. Sambagravado em 11 set. 1940 e lan-çado em nov. 1940.49 “Louca pela boemia”. (Bide eMarçal), Gilberto Alves. 78 rpmOdeon. Samba gravado em 9 jun.1941 e lançado em ago. 1941.50 “Samba de 42” (Arnaldo Paes,Marília Batista e Henrique Ba-tista), Arnaldo Paes. 78 rpm Co-lúmbia, 1942. Lançado em jan.1942.51 CAULFIELD, Sueann, op. cit.,p. 337.52 A presença feminina no car-naval carioca é indissociáveldas transformações que ele so-freu. As mulheres como sujeitoshistóricos marcantes nesse pro-cesso aparecem de corpo intei-ro em SOIHET, Rachel. A subver-são pelo riso: estudos sobre o car-naval carioca da Belle Époque aotempo de Vargas. Rio de Janei-ro: Editora Fundação GetúlioVargas, 1998, esp. cap. A inter-dição e o transbordamento dodesejo: mulher e carnaval no Riode Janeiro (1890-1945).

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trabalho que o discurso familiar oficial veiculava.Fica evidente que a realidade social, com toda a sua teia de relações

complexas, muitas delas consideradas indesejáveis, escapava, sob dife-rentes aspectos, por entre os dedos dos governantes e dos mais diversosgrupos e classes sociais comprometidos com a perpetuação de modelosde relações de gênero tradicionalistas. Nesse jogo de poderes e contra-poderes, nenhuma vontade se impôs de maneira absoluta e os própriosvencedores se viram obrigados a admitir concessões e a amargar algumasderrotas, aqui ou ali.

Ora, não há regime ditatorial, qualquer que seja ele, que reine sobe-rano, assim como hegemonia não se confunde com dominação ou imposi-ção absoluta, muito menos com uniformização. Isso se aplica a todos oscampos, inclusive ao cultural. Como salienta Thompson, “na verdade, opróprio termo ‘cultura’, com sua invocação confortável de um consenso,pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fratu-ras e oposições existentes dentro do conjunto”53. E essas fraturas, como sefossem fissuras sobre uma superfície plana, teimavam em se manifestarsob o “Estado Novo”, por mais que este buscasse soldá-las.

Artigo recebido em agosto de 2006. Aprovado em outubro de 2006.

53 THOMPSON, E. P. Costumesem comum: estudos sobre a cul-tura popular tradicional. SãoPaulo: Companhia das Letras,1998, p. 17.

Artigo publicado originalmente em ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte, v. 8, n. 13, jul.-dez. 2006.